aleena dança do ventre

Transcrição

aleena dança do ventre
Trinômia:
Os Diários de Clióphoros
Lithokhthônio
Carlos Leonardo Bonturim Antunes
Índice
Projeto Trinômia
III
Prefácio do Editor
VI
Livro Primeiro Sênnyl Oeste
VII
Hino de Agradecimento à Vida
IX
Canção Argiva dos Ferreiros
XIV
Arkhônida
XXI
Encômio a Aleena
XIX
Theogonia
XXXII
Origem dos povos de Lithos
XXXIII
Tithanomakhia
XXXV
Livro Segundo Sênnyl Leste
XL
I
Provérbios de Kyô
XLVI
Costumes dos povos de Lithos
LI
Ode a Lady Lana
LI
Encômio a Náukles
LII
Canto Primeiro
LVIII
Livro Terceiro Telogaia
LXIII
Livro Quarto Sênnyl Sul
LXX
A guerra no momento em que esperamos
LXXIX
Oração Fúnebre
LXXXIII
Origem de Ôlethros
LXXXV
Lenda de Klauma e Guélos
Livro Quinto Floresta de Gaia
LXXXVIII
XC
Soneto de amor bucólico
XCIII
De Gaia os filhos mais venustos
XCV
Livro Sexto Sênnyl Norte
XCVIII
II
Projeto Trinômia
Em 2003, veio-me a idéia de mapear um novo mundo de
RPG de uma forma diferente daquela pela qual são comumente
feitos os cenários de campanhas disponíveis no mercado. Desta
forma, ao invés de escrever um livro descritivo e impessoal a respeito
de um cenário de campanha, dei início ao projeto de criar um mundo
mapeado por seus próprios habitantes.
Passei, a partir disto, a construir a personagem a quem
caberia a missão de desbravar este novo território, cheio de mistérios
e lendas. Pareceu-me inevitável que tal personagem fosse um bardo,
um indivíduo a quem o dom das musas fosse familiar. Assim nasceu
Clióphoros, nativo de Lithokhthôn, cidadela sacra do titã Lithos.
Durante o ano que se seguiu, após ter escrito as primeiras
páginas dos diários que Clióphoros teria deixado, resolvi que a
melhor forma de terminar o mapeamento inicial de Trinômia era a de
mestrar uma aventura neste novo mundo. Para tanto, produzi alguns
rascunhos que servissem de base e orientassem a mim e aos
jogadores, nos quais descrevia de forma simplesmente informativa,
tudo o que tinha pensado até então.
A experiência foi muito produtiva e auxiliou-me tanto a
terminar a construção do mundo, quanto a produzir a teia de tramas
em que se entrelaçam as personagens antagonistas de Trinômia.
III
De volta à escrita, continuei os diários de Clióphoros, e,
junto a este trabalho, fui compondo os poemas, as histórias, os textos
proverbiais, e todos os outros que o bardo juntara durante suas
peregrinações pelo mundo. O intuito era o de, além de criar um
mundo apenas com textos que nele existiam, enriquecer Trinômia
com lendas e canções tradicionais, as quais, por um lado, dão-lhe a
cor e a vida que tem, e, por outro, fazem da experiência de jogo mais
do que diversão. Esta, com efeito, é uma das propostas que tenho
com este trabalho: a de fazer das sessões de RPG uma experiência
enriquecedora para mestres e jogadores.
Disto advém também a questão da mutabilidade do mundo,
a qual logo na primeira campanha eu expus ao jogadores, dizendolhes que as ações de seus personagens plasmaria o futuro de
Trinômia, e que, mais tarde, iria mestrar uma nova campanha,
alguns anos no futuro, para que eles contemplassem o resultado de
seus esforços. Mais uma vez, com isto, busquei fazer do jogo não
apenas uma atividade prazerosa, mas que também exercitasse a
responsabilidade e o planejamento futuro daqueles que fizeram parte
da aventura.
Depois de terminado o texto, tive infelizmente a impressão
de que os leitores careceriam de informações contextuais e mesmo
de maior explanações acerca da origem de nomes, lendas e intrigas.
Esta impressão só veio a se intensificar conforme recebia as críticas
construtivas dos amigos que leram o resultado primeiro. Por conta
disto, vim a criar uma segunda personagem para os diários, alguém
que haveria tido o trabalho de preparar o texto a seus leitores um
elfo de Sênnyl Norte, mago e bibliotecário. Desta forma, ao final de
cada parte do diário, podem-se ler as notas que Animavis deixou a
IV
fim de esclarecer as partes mais obscuras do livro. Além de
evidenciar e colaborar na elucidação dos fatos, as contribuições do
mago também criam uma nova dimensão no livro a partir de sua
leitura e interpretação daquilo que ocorreu, enriquecendo, desta
forma, a experiência do leitor.
Nos textos que virão depois dos diários, pretendo manter a
mesma filosofia, sempre criando novas personagens para escrever
acerca do tema que desejo fazer de conhecimento dos jogadores.
Por fim, menciono a última de minhas propostas, e não
menos importante, a qual diz respeito também a esta maneira pela
qual grafei os textos de Trinômia: o intuito fazer com que os livros
escritos por estas personagens fossem textos literários que possam ser
lidos e apreciados, pelo simples e puro prazer de se contar e ouvir
histórias, mesmo por aqueles que não são jogadores de RPG.
Espero que todos se divirtam e que, de alguma forma,
Trinômia lhes sirva de experiência para a vida.
Leonardo Antunes
14 de novembro de 2004
V
Prefácio do Editor
Ao ano DCXLII de Kyô, tendo se passado cinqüenta anos
desde a morte do famoso bardo, faz-se editar, por vontade de Sua
Excelência, o arquimago Fatus, a versão revista e comentada dos
presentes diários, tendo sido até agora desconhecida de nós todos
sua existência.
O trabalho de Clióphoros Lithokhthônio na pesquisa e
documentação dos povos, da cultura e da história de Trinômia
sempre pareceu, aos olhos do alto círculo dos magos, um dos mais
detalhados dentre os que dispomos. Assim, considerou-se que
deveriam ser dados ao conhecimento públicos os estudos nele
presentes, para que façam parte de nossa biblioteca e dos textos de
Iniciação. No entanto, muitas de suas observações e opiniões
mostram-se deveras duvidosas. Em vista disso, ao final de cada um
dos pequenos livros, o jovem Iniciando nos mistérios de Stratos
poderá encontrar notas de extrema utilidade acerca dos nomes e do
contexto de cada uma das viagens do autor.
É preciso que o Iniciando se esforce para compreender, em
diversas passagens, a linguagem rebuscada e fora de data do bardo.
Principalmente, também, há de se preocupar em desvendar aquilo
por trás da opinião pessoal do autor, buscando sempre a verdade
essencial a todos os fatos. Este é o caminho da verdadeira magia e
somente dominando-o poderá ser digno perante Stratos, lorde dos
ventos e titã protetor de nossa Sênnyl Norte.
Animavis, Guardião dos Tomos do Poder
XXVII de Telé de DCXLII
VI
Livro Primeiro - Sênnyl Oeste
“É olhando através dos olhos do outro que
adquirimos o conhecimento mais profundo.”
VII
I Confesso que a saudade de nossa terra pátria já me vinha
prolongando as noites de insônia muito antes de que a notícia da
enfermidade de teu pai me alcançasse os ouvidos de ancião. Por isto
agora, jovem príncipe, eu sinto que é o momento de organizar os
pensamentos e lembranças dos tempos em que errei pelas terras de
nossa vasta Trinômia, para que, quiçá, estes lhe nutram o espírito
com a luz e a profundidade necessárias ao peito incólume do grande
rei que em breve tu serás. Quanto a mim, talvez desta maneira eu
encontre a desejada paz, fazendo com que a culpa que me sobrepuja
os ombros neste triste fardo se apequeneça, nem que o seja em muito
pouco... Perdoa-me, ainda, se te disser, por vezes, aquilo que de cor já
sabes, mas também te escrevendo estas memórias eu revivo os dias
felizes que passei junto dos nossos.
I. Segundo o que nos
contou, Clióphoros, cujo nome
significa, na língua titânica,
“Portador-da-história”, e seus
compatriotas passaram a valerse da escrita somente há poucas
décadas, de modo que a
transmissão de todo o corpus
cultural se dá, mormente, pela
comunicação oral, passando
assim dos mais velhos aos mais
novos e guardando-se nos
campos da memória até que
chegue a hora de também a
geração seguinte ouvir aquilo
que seus antepassados fizeram.
II Ao contar-te estas histórias, meu senhor, hei de
empenhar-me, tanto quanto assim me for possível, em relatar com
fidelidade a cultura e os costumes dos diferentes povos com que
convivi. E, na medida em que a memória mo permita, eu te falarei
acerca de tudo aquilo que vi e ouvi, da grandeza dos mais variados
povos deste mundo e de seus monumentos, dos mitos que inspiram
seus ânimos e dos ensinamentos que os mais velhos passam às
gerações mais novas, perpetuando os feitos e as lendas dos heróis de
I
antigamente.
III Começando pela causa, pois que ela é a estrada de
encontro à qual todos os longínquos caminhos dos reinos por que
andei se vão, eu te digo, príncipe, que foi aquele evento que delineou
o fim de nossa era e criou o palco para a maior das catástrofes jamais
vivenciadas pelo gênero humano: a morte e queda de Hélios
Oriental, o menor dos três sóis a acalentarem nosso planeta.
VIII
II. A origem deste nome
me é desconhecida. Ao que me
parece, esta linhagem de reis,
há três gerações, deve ter
adotado um nome fictício,
fugindo da tradição de seus
antepassados. Certamente, isto
se deu por intermédio de
Wildegan, ele que mudou seu
nome para outro sem
significado algum. É preciso
que o jovem Iniciando se lembre
da força por trás do nome de
cada um de nós. Com efeito, o
nome verdadeiro, aquele que
pode ser proferido somente no
plano etéreo e que traz a chave
para o íntimo dos seres, este tem
ainda maior poder. Todavia,
não se deve menosprezar o
poder interpretativo que os
nomes trazem consigo, pois são
parte intrínseca da
personalidade de todos nós,
moldando-a de forma
definitiva. Desta forma, ao
não se dar seu nome de
nascença, alguém consegue
prevenir que se descubra sua
verdadeira personalidade logo
ao conhecê-lo.
III. É extremamente
curioso o fato de que todas as
culturas de Trinômia façam uso
de um mesmo calendário, ainda
que tenham surgido por
intervenção de forças
primordiais diferentes. Pelo
que soubemos de Clióphoros, os
orientais já se utilizavam do
calendário desde sua origem.
Como é de conhecimento
popular, eles são os habitantes
mais antigos ainda vivos em
nosso mundo. Disto, só se pode
concluir que o calendário teve
origem em Kyô, o pai dos
orientais, ou em Gaia, a mãeterra.
IV O início de minha viagem, no entanto, remonta ainda a
uma época bastante feliz, durante o reinado de Äschnor IIIIIsobre o
burgo de Fláurin, em nossa Sênnyl Oeste, ao final do tempo em que,
a pedido deste rei, eu me hospedara em sua corte, a fim de que a todos
entretivesse com minhas canções e historietas. Terminado o
banquete daquele auspicioso primeiro de Arkhé,III lá estava eu no
centro do salão de festas, entoando o Hino de Agradecimento à
Vida, típico àquela data especial.
Hino de Agradecimento à Vida
Tantas dádivas brotam do seio da terra!
Ó mãe Gaia, por ti gratidão todos temos,
Pois é tu quem confere este pão que comemos,
Embebido no vinho que o cálice encerra!
Solta um grito de júbilo e amor!
Salve o inefável senhor deste mundo!
Ápeiron, dá-nos viver em teu reino!
Aos pequenos e grandes amigos da terra,
Protetores fiéis, a vós agradecemos!
Sempiterna é a graça brilhante que vemos
Incrustada nos montes grisalhos da serra!
Solta um grito de júbilo e amor!
Salve o inefável senhor deste mundo!
Ápeiron, dá-nos viver em teu reino!
IX
IV.
Vide nota 2
Wildegan era conhecido, em
Sênnyl Norte, antes de ser
banido por alta traição, como
“Canis Infirmus”, pois que,
apesar de ser ousado como um
cão, era dentre todos os jovens
de sua época, o mais fraco.
V. Modo pelo qual
Clióphoros, em sua ínfima
erudição arcana, denomina as
viagens etéreas tão comuns aos
praticantes de nossa “ars
magica”. Wildegan, assim
como todos os magos de Sênnyl
Norte, tinha domínio sobre a
arte de projetar seu euverdadeiro, conscientemente,
no plano etéreo, e lá aprender e
plasmar o mundo conforme sua
vontade. Infelizmente, ele
jamais soube ser comedido em
seus intentos.
VI. Wildegan faz uso de
uma alegoria bastante
engenhosa para dar início a
seus planos. É de suma
importância que o Iniciando
aprenda e domine também este
método de persuasão.
VII. Com efeito, o
equilíbrio entre os três sóis
sempre foi importante para a
vida em Trinômia. No entanto,
há muitos e muitos séculos,
desde o início das contendas
entre os primevos, os sóis já não
se encontram alinhados em
harmonia.
E talvez ainda hoje eu estivesse naquele amplo paço, com
suas arcadas de pedra e os nobres altivos dançando, não houvesse
Wildegan,IV o mago real, irrompido do arco leste, esvoaçando seu
manto aureopurpúreo. Silenciou-se meu alaúde e a corte por inteiro.
Äschnor III ajeitou-se no trono. Em seu cenho majestoso, apesar dos
traços agrestes de um homem-de-armas, olhos glaucos fitaram um
Wildegan ofegante, que, não tardando, proferiu-lhe o resultado de
suas últimas incursões hipnógenas:V “Senhor rei, foi-me mostrada
em sonho uma cena de difícil interpretação, embora eu próprio não
tenha dúvidas quanto a seu verdadeiro significado. Conto-vos tal
qual o vi: um grande urso, à sombra de uma árvore, alimentava-se do
mel aurífluo de três colméias de tamanhos progressivamente
menores. Sem escrúpulos, o animal acabou por atacar a mais
diminuta destas com a mesma intensidade investida contra a de
maior tamanho. Não lhe suportando a demanda, tombou por terra
esta pequena colméia, cujas abelhas não tardaram a molestá-lo com
ímpeto destrutivo, causando-lhe morte com o veneno acumulado
VI
pelas muitas picadas.”
V Respondeu-lhe o rei, meneando a cabeça, que concluísse
o que tinha a dizer: “Nosso terceiro sol está morrendo. Já desde
algum tempo atrás venho percebendo mudanças em sua irradiação,
embora jamais houvesse esperado que fossem oriundas de um
problema tão grave, pois, como sabeis, o equilíbrio da irradiação dos
três sóis é mister para a vida tal qual a conhecemos hoje.”VII
VI Convocou-se o conselho, para o que não se perdeu
muito tempo, uma vez que todos os membros já se ali encontravam
por ocasião das festividades. Durante toda uma tarde discutiu-se a
questão, fazendo-se ouvir as opiniões dos mais sábios de nosso reino.
X
VIII. É simplesmente
risível que se chame de sábio
alguém como Pantagnosko,
ainda que seu nome signifique
“Sabe-tudo”. Sua força sempre
adveio pura e simplesmente do
favorecimento que os primevos
lhe concediam. Ele próprio
passou sua vida vivendo de
forma comedida e pseudosanta. Os Iniciandos devem ser
extremamente cuidadosos no
que concerne os ensinamentos
deste homem.
IX. Como o jovem
Iniciando pode imaginar, um
mísero comando mental
proferido no reino etéreo faria
com que Clióphoros deixasse
cair por terra seu alaúde. O
bardo jamais se iniciara nos
segredos arcanos, pois que só
aqui em Sênnyl Norte eles são
divulgados abertamente, de
modo que seu eu-verdadeiro
sempre esteve aberto a
quaisquer influências externas.
X. Certamente, por meio
de um ritual, Wildegan havia
preparado tal bastão para que
se lhe tornasse um terceiro olho,
de modo que pudesse
acompanhar os progressos de
Clióphoros e mesmo
manifestar-se, projetando um
corpo ilusório, a partir deste. É
triste a forma pela qual o bardo
é ludibriado, mas ela deve
servir ao Iniciando como
exemplo do que há de ser seu
futuro, caso não apreenda
corretamente os ensinamentos
de sua Iniciação.
Um deles, Jahnor, comerciante das excelentes vinhas de Cádvan e,
por conseguinte, homem de muitas viagens, deu fim às dúvidas
quando se levantou de seu assento, proclamando a todos ali
presentes: “Meus bons senhores de Fláurin, nobre rei Äschnor, ouvime no que tenho a dizer. Todos sabeis que conto, além de tantos
anos, viagens por quase todos os reinos amigos. E, numa destas
minhas andanças pelo mundo, vim a conhecer um homem de
VIII
sabedoria inigualável, o venerando Pantagnosko de Telogaia. Tal é
o homem que devemos consultar. Eu próprio o visitaria, não me
quebrantasse tanto o peso dos anos. Assim, como me vejo
impossibilitado de performar tão grande uma viagem, eu que
conheço o guia para o retiro do ancião, penso que seja possível
escolherdes, para empreendê-la, alguém talhado à empresa.”
VII E foi então que algo de prodigioso aconteceu, um
presságio, nas palavras de Wildegan, infalível. Por ação do destino,
escapou-me às mãos o alaúde paterno, presente de longa data,
estilhaçando-se no pavimento pedregoso.IX Argüiu o mago real que
este seria um novo marco em minha vida, pois, dali em diante, eu
deveria abandonar o âmbito das cortes, expandindo minha vista
para além do cinturão de montanhas que circundam a amada
Fláurin.
VIII Desta arte, ao amanhecer recebi toda a sorte de
presentes caros a viajantes: belas capas, botas resistentes, uma
mochila impermeabilizada com cera, e um bastão cujo extremo
superior, feito de prata, fora esculpido no formato de uma pequena
águia.X Tendo sido magicamente imantado, tal adorno funcionava
como uma bússola de alta qualidade. Estes foram os dons que me
acompanharam durante minhas viagens. Assim termino a
XI
XI. A mineração é o
processo por meio do qual os
homens atrasados de Sênnyl
Oeste extraem minérios para
construir suas casas e produzir
toda sorte de utensílios. Eles se
valem de ferramentas de metal,
com as quais golpeiam a
montanha a fim de que se
soltem partes dela. É-me
incompreensível como isso pode
agradar Lithos, o rei da
montanha. De fato, os
ocidentais e seu titã nutrem
costumes estranhíssimos.
Quando interrogado a esse
respeito, Clióphoros disse que
tudo se explicava através da
virtude do sacrifício.
XII. Os significados dos
nomes destas cidades são,
respectivamente: “Chão-depedra”, “Dourada”,
“Bronzeada”, “Prateada”, “De
aço”, “De pedras preciosas”,
“De ferro”. O apelido Fláurin
não tem qualquer valor
semântico a meus olhos, apenas
Sideréon o tem, sendo seu
significado o último dos supramencionados.
XIII. Segundo o que
viemos a saber do bardo,
Khrýsea e Argýrea foram,
respectivamente, os lares da
geração dos homens de ouro e de
prata, sendo aqueles os filhos
de Gaia e estes nossos irmãos,
nascidos de Ápeiron. Com
efeito, os homens ocidentais e
os sulistas nasceram dos titãs
Lithos e Pyros, enquanto nós
de Ápeiron e os orientais de
Kyô. Durante as grandes
guerras, essas duas cidades
foram completamente
destruídas, e, com o tempo, seus
tesouros foram pilhados, de
modo que hoje muito pouco
explanação da razões pelas quais empreendi a maior jornada jamais
feita.
IX Sob o olhar votivo de Äschnor, do alto de seu castelo,
tomei a Estrada de Lithos, a qual secciona em dois o reino de Fláurin.
Este é o grão-protetor epônimo de Sênnyl Oeste, pois em nenhum
outro cantão abundam em tão grande magnitude as formações
rochosas e outros recursos minerais. Não é de se espantar, portanto,
que sejam tão dados à mineração os seus habitantes.XI
X Sênnyl Oeste é composta de sete burgos principais:
Lithokhthôn, Khrýsea, Khalca, Argýrea, Adámantos, Lykhnidos, e
Fláurin,XII sendo este último também conhecido por Sideréon devido
à ocupação de seus homens.XIII De fato, Fláurin é a cidade dos
ferreiros. Quando se caminha sobre os ladrilhos pétreos de suas
veredas, dificilmente se encontra um ponto de onde não se consiga
avistar ao menos três ferrarias. Louvável é o talento daqueles
homens e a maneira que encontraram para se manter em atividade
sem nunca terem de competir uns com os outros por clientela.
XI O mais admirável, contudo, é que sequer houve um
acordo explícito para tanto. A experiência, tão-somente, ensinou
aos habitantes de Fláurin a buscarem um ofício de especialização
diferente da de seu vizinho. Com efeito, todos manejam
proficientemente a calcurgia,XIV por serem desde pequenos
ensinados a trabalhar o mais copioso dos metais. Quando, porém,
atingem a maioridade, procuram um mestre que lhes possa ensinar as
técnicas avançadas que almejam.
XII
resta delas.
XIV. A arte de forjar
armas, armaduras e outros
mais artigos metálicos feitos de
bronze.
XII Sendo a maior produtora de artigos metálicos do
mundo conhecido, Fláurin abriga os mais diversos tipos de ferreiros,
desde os muitos produtores de armas e armaduras férreas, até
joalheiros, ornamentadores, e criadores de artigos mágicos.
XIII Quando por primeiro cheguei à cidade, ainda na flor de
minha juventude, fui recebido na casa de Árgon,XV um senhor
robusto e de traços duros, como todos em Fláurin, cujas cãs
permanecem sempre presas num rabo-de-cavalo. Poucas vezes em
minha vida convivi com um homem tão humilde e agradável,
malgrado ser, sem dúvida alguma, o melhor argurgistaXVI vivo. Além
da arte com a prata, Árgon acumulou durante os anos de sua vida,
graças à simpatia que lhe é inerente, um número infindo de histórias
a ele contadas por viajantes. Sua casa se encontra perto da entrada
da cidade, logo após o portão de bronze e das altas muralhas que se
estendem como braços das montanhas circunvizinhas. Trabalhando
em seu pátio, ele passa os dias a observar os que vem e vão, e, quando
acontece ser alguém vindo de longe, ele o saúda com sua jovialidade,
e sempre acaba por aprender algo novo.
XV. O significado de seu
nome, na língua titânica, é
“Prateado”. Os ocidentais e os
sulistas somente valem-se
desta língua para comunicarse. Os orientais, por sua vez,
aprenderam com Kyô sua
linguagem, sendo esta uma das
mais antigas de Trinômia. Nós,
em Sênnyl Norte, somos os
únicos a usar a língua de
Ápeiron, a qual foi criada a
partir de um simulacro da
linguagem universal dos
planos.
XVI. Aquele que
trabalha em forjar a prata.
XIV Encantou-lhe o imo peito as canções e historietas com
as quais o agradei naquele meu primeiro dia em Fláurin, de modo que
me ofereceu um quarto em sua bela casa.
XV Há uma opulência considerável em sua cidade, embora
os homens nunca acumulem muito mais do que lhes é preciso para
viver. Por isso, suas casas são agradáveis e belas de se ver. Sobre as
bases de pedra erguidas a meia-altura, são construídas as paredes de
madeira bruta, conferindo rigidez ao conjunto. Os telhados são
XIII
igualmente de madeira, e em toda parede há sempre uma janela que
derrame a luz melíflua do sol para dentro do ambiente. A matériaprima para tais construções advém, mormente, dos bosques a leste
de Fláurin, num vale em meio aos montes de Báinon.XVII
XVI As mulheres desta cidade tem o costume de manter
canteiros de flores exóticas sob as janelas. Naturalmente, estas
mudas são adquiridas com comerciantes vindos de outros reinos,
pois em nosso país a terra fértil é de uma raridade surpreendente,
quando comparada a Sênnyl Sul e outros cantões ainda mais
distantes. De fato, a compra de plantas, terra escura para as mesmas,
e alimentos diversos, dentre eles o vinho e o pão, formam a maior
parte das importações de Sênnyl Oeste.
XVII. Báinon, cujo nome
significa “Caminhante”,
nasceu nos tempos de
Anaxândron e, a mando deste
rei, explorou as montanhas a
leste de Fláurin, e nelas
descobriu um amplo vale em
que se podiam ver árvores e
alguns animais menores.
XVIII. Seu nome
significa “Verdade”.
Doravante, deixo avisado ao
Iniciando que, quando tudo
que tiver de comentar sobre
alguém se limitar à origem de
seu nome, apenas o explicitarei
entre aspas.
XIX. “Nobre-bigorna”.
XVII Por lhes faltarem mais tarefas em que ajudar seus
maridos, as mulheres de meu país, além de cuidarem dos filhos e dos
vários afazeres domésticos, dedicam-se ao aprendizado de línguas
estrangeiras e suas respectivas literaturas e filosofias. Por elas são as
crianças, desde a mais tenra idade, ensinadas a ler e a escrever.
XVIII E foi esta a primeira cena que presenciei ao entrar na
casa de Árgon naquele dia. Alétheia,XVIiI sua esposa, ensinava ao
pequeno AristákmonXIX a antiga Canção Argiva dos Ferreiros.
Canção Argiva dos Ferreiros
Sete cidades, de Lithos no dêmos.
Prata, ouro e bronze, no ventre de outeiros.
Em cada braço de Fláurin, um ferreiro,
XIV
Para que as graças de Lithos moldemos!
Em nossas ruas as pedras cosemos.
Limpas, as casas de pedra e madeira.
Soam bigornas e o fogo lareiro,
A cada vez que no ferro batemos!
Vamos, amigos, ao pátio voltemos!
O Sol dos montes desponta bendito,
A conclamar por que nós trabalhemos!
Eis que já ouço do ferro o atrito!
Vamos, amigos, ao pátio, voltemos,
Para cuidarmos da arte de Lithos!
Conforme me viram adentrar o recinto, timidamente
cessaram o canto que vinham entoando, mas, sob pedidos meus de
que dessem fim à bela melodia, assim o fizeram.
XIX Terminada a canção e tendo as devidas apresentações
sido feitas, retribui-lhes o gesto, com algumas de minhas próprias
composições, as quais utilizei para ilustrar o caminho por mim
percorrido até Fláurin Sideréon. A tais canções voltarei mais adiante
em meu relato, pois parecem-me mais dignas de ocuparem este
espaço as histórias que me foram contadas por Árgon, em especial, a
XX
Lenda de Ucknatar, por versar sobre tantos aspectos do espírito
humano e, principalmente, dos antepassados flaurinos.
XX. O nome não tem
significado algum, assim como
a lenda que lhe diz respeito.
XXI. “Belo-homem”.
XXI
XX Ucknatar vivera durante o reinado de Kalandros,
XXII
XXIII
filho de Yor, filho de Anaxândron, primeiro rei de Fláurin. A
XV
família real dos anaxandrinos retém, com justeza, até hoje o mando
sobre este povo, tendo reinado por nove gerações.
XXI Ao primeiro destes reis, é atribuída a criação do código
de leis de Fláurin, segundo o qual ainda em meu tempo vivia a
cidade. Também foi Anaxândron, inspirado por Lithos, quem
ensinou os homens flaurinos a serem artífices dos metais, tendo ele
próprio descoberto a medida para a liga brônzea.
XXII Yor, por sua vez, parece ter sido um homem de grande
visão empreendedora, pois foi ele quem fez construírem-se as
extensas estradas de pedra, as quais, saindo do coração de Fláurin,
no vale do Nyr,XXIV serpenteiam pelas montanhas de Báinon, o
explorador, espraiando-se por todos os reinos de Sênnyl Oeste. Com
tal advento, uniram-se em aliança os burgos destes cantões,
firmando-se, assim, as rotas de comércio interno de metais e os
câmbios de conhecimentos, dos quais Fláurin adquiriu, em nossa
Lithokhthôn, a arte de erguer estruturas de pedras.
XXII. Nome sem
significado a meu ver.
XXIII. “Rei-doshomens”.
XXIV. É o vale que
secciona o reino de Lithos,
dando acesso às cidades que lá
se encontram.
XXIII Uma vez florescente, a cidade encontrou-se, nos
tempos de Kalandros, em terríveis circunstâncias. Como sabes, o
solo rochoso de Sênnyl Oeste é bastante infértil, crescendo nele,
salvo exceções, apenas hortaliças e musgo. Dependiam, portanto, os
habitantes de Fláurin exclusivamente das aves para se alimentarem,
mas mesmo estas não existem em grande número em nosso país, por
também elas não terem quantidade suficiente de alimentos com que
se nutrirem. Deste modo, quando do reinado de Kalandros, os
flaurinos contavam com mais bocas do que Lithos jamais lhes
poderia alimentar.
XVI
XXIV Na esperança de resolver-se a agrura, a assembléia foi
convocada, costume recém-criado pelo regente, o qual também deu
aos flaurinos uma praça em que se reunirem para tais ocasiões, toda
feita em mármore e ouro, com uma fonte central e diversas bancadas
ao redor.
XXV Ucknatar era, ao contrário do que se pode esperar de
um flaurino, avesso às artes de Lithos. Conta-se ainda que também
não se podia comparar aos demais concidadãos no tocante a porte e
estatura. Até então, havia sido um fardo para a cidade e motivo de
vergonha para os seus.
XXVI Sentindo-se infeliz, tomou um pedaço de madeira
encontrado ao léu e dele se fez um bordão. Indo até o portão da
cidade, lançou-o aos céus, decidido a tomar o caminho que lhe fosse
apontado quando o bastão tombasse por terra. Titubeou ao
contemplar o resultado: para além do horizonte rochoso, a
XXV
extremidade côncava apontava, em direção a Telogaia.
XXVII Ouvindo, entretanto, a risada de escárnio que os
guardas da cidade lhe dirigiam, decidiu que não havia, de fato, coisa
melhor a fazer.
XXVIII Quando da ocasião da assembléia, havia dois anos
que ele partira rumo ao nada. Podes imaginar, então, meu príncipe, o
quão espantados não ficaram os flaurinos ao avistarem, adentrando o
portão citadino, Ucknatar à frente de uma caravana mercante?
XXV. “Fim-do-mundo”.
XVII
XXIX Segundo o que lhes contou, descobrira um novo
reino ao leste, cujas campinas verdejam oito meses ao ano e flores
nascem por todos os cantos.
XXX Eis, portanto, como Sênnyl Oeste veio a criar rotas
comerciais com Sênnyl Leste, e como, movido por um desejo de
fazer-se digno, Ucknatar salvou sua cidade de um ocaso prematuro,
dando valor a si próprio entrementes.
XXXI Muito me impressionei ao ouvir tal lenda e até hoje
ainda me impressiona, por ter Ucknatar, uma vez descoberta a rota
para novos reinos, regressado a sua cidade com a caravana mercante,
para restabelecer sua glória perante os seus. E é justamente a glória
um dos pontos mais marcantes do povo flaurino.
XXXII Deixei-te um suspiro em devaneio, ó Fláurin, ao
cruzar teus portões e muralhas ancestrais. E, quando dei por mim,
volvendo o olhar acima da crista pedrosa que coroa a cidade de
Äschnor, nuvens outonais flambavam o horizonte até onde os olhos
podiam alcançar. O caminho à minha frente levou-me de volta à
terra pátria, Lithokhthôn, em busca de Phéron,XXVI o homem que
Jahnon me aconselhara a tomar como guia durante minha jornada
até Telogaia.
XXVI. “Que conduz”.
XXXIII Uma súbita alegria me arrebatou o imo peito
quando, após serpentear as últimas curvas na orla dos montes, vi
erguer-se a antiga Cidadela de Lithos, como enormes estalagmites
negras justapostas, diante de meus olhos saudosos.
XVIII
XXXIV Uma caminhada de uma semana me conduzira de
volta à terra pátria, pela qual meu coração ardorosamente chorara e
mais ainda hoje chora durante os três anos em que me ausentei de lá.
Suas ruas retilíneas me receberam com a mesma plácida austeridade
com que se me despediram três anos antes. Construída como o
templo supremo de seu protetor, Lithokhthôn jamais se fiou em
muralhas com que se proteger, embora nossos homens, feitos como
enormes torres de pedra, quase possam ser considerados como tais.
Suas armaduras negras refletem a severidade em seus olhos e cabelos
escuros, enquanto os emblemas rubros de suas vestimentas e as
longas capas de mesma tonalidade ressaltam o ímpeto jovial de seus
modos e o próprio tom avermelhado de sua tez.
XXXV Segundo a tradição, a mão de Lithos ela mesma
ergueu-se do âmago dos montes para assentar as fundações da
cidadela. De fato, não se poderia explicar de outra forma a
organização das pedras colossais que constituem o edifício. Nove
gerações de homens trabalharam tais pedras, conferindo-lhes a
forma que hoje possuem. Respeitando a constituição estalagmítica
natural das rochas, nossos irmãos esculpiram a cidadela nossa de
forma simples e harmoniosa. De suas três torres, finas correntes de
água brotam, serpenteando ao longo do palacete até unirem-se no
espelho d'água que o cinge. E, naquele dia em que retornei, o pôr-dosol concedia um púrpura rutilante à água nas correntes, dando vida à
robustez das pedras.
XXXVI Com efeito, mais do que em qualquer outro lugar
de Sênnyl Oeste, os recursos hídricos abundam em Lithokhthôn.
Duas grandes cachoeiras traçam os limites leste e o oeste da cidade, e
os cursos de suas águas, numa meia-lua, tangem-se no termo sul, face
XIX
à grande cidadela. Da união de suas águas, quase no cume
Lithokhthôn, e por conseguinte de toda Sênnyl Oeste, nasce o
magno Sôndir, o rio que cruza nosso país em direção ao Mar Pétreo.
XXXVII Devido à grande riqueza mineral dessas águas e aos
ensinamentos dos pequenos guardiões de sua cidade, os habitantes
de Lithokhthôn logo aprenderam a plantar hortaliças sobre as pedras
irrigadas, tarefa à qual suas mulheres até hoje se dedicam,
alimentando todos os cidadãos e exportando o excedente para nutrir
as demais cidades do reino.
XXXVIII Como em todo o restante do país, Lithokhthôn
abriga uma quantidade ínfima de gado, sendo os ovinos o único
grupo de número mais significante. Não obstante, o uso desses
animais é quase que exclusivamente reservado à extração de lã para
roupas.
XXXIX As crianças, desde pequenas, são encorajadas a
aprender a arte da guerra e a exercitar seus corpos em jogos e
competições. Àqueles, entanto, que não se mostram aptos a tal vida,
resta optar, não sendo de forma alguma considerados inferiores por
isso, entre a engenharia, a arquitetura e a geologia.
XL Aos guerreiros, incansavelmente, dia e noite, é
ensinada a virtude do sacrifício. Como nenhum outro povo
conhecido, os homens de Lithokhthôn entregam-se por inteiro ao
serviço de seus ideais. O primeiro dos comandantes, Árkhon I,
institui-nos a máxima segundo a qual vivem todos nossos homensXX
de-armas: “Mal nenhum alcançará aquele que, tendo o corpo firme
no solo, onde Lithos demora, se torne um com a terra; seja em vida,
seja em morte.”
XLI De Árkhon I, contam-se inúmeras memoráveis, as
quais versam tanto sobre seu valor guerreiro, quanto sua jovialidade
eutrapélica. Um dos costumes mais louváveis dos nossos em
Lithokhthôn é o de sempre manter vivas as historietas de seus
antepassados, contando-as aos mais novos, na forma de canções, ao
cair da noite em torno de uma fogueira. E, dentre todas as formas de
sabedoria e de narrativas pitorescas, a Arkhônida é, de longe, a
predileta de nosso povo.
Arkhônida - Mordakmakhia
I
Fazei silêncio, amigos, para que na glória
Do povo nosso possa vos cantar a ingente
Saga de Árkhon Primo, o louvável regente,
Senhor-da-guerra e mestre da arte oratória,
II
A quem Lithos deu força, para sobre os nossos
Reinar com impecável justeza e amor,
A fronte íntegra, olhos de alvejador,
XXI
E o porte, a majestade altiva de um colosso.
III
E é acerca dele que hoje, à sombra deste monte,
O mesmo monte que lhe deu abrigo há tantos
Séculos, eu vos narrarei em doce canto
A batalha de Árkhon e Mórdax na ponte
IV
Leste, ao final do ano em que a mão de Lithos
Irrompera da terra, criando a cidade
De nossos ancestrais, dando termo à idade
Nômade e início ao nosso período bendito.
V
Por um septênio já haviam se medido
Nossos homens de Lithokhthôn e as hordas
De Mórdax, pura força de ódio e balborda,
Pelas sendas internas dos montes de Ido,
VI
E do alto da montanha o magno rio Sôndyr
XXII
Pulsava com o sangue de nossos avós,
Quando em meio aos corpos pronunciou-se a voz
Do rei a quem as preces nossas hão de ir.
VII
Erguendo-se da massa amorfa em sangue imunda,
O vulto majestoso de um paladino
Abrupto irrompeu do ventre vespertino
E palavras aladas disse em tom profundo:
VIII
"Mataste agora o último de meus soldados.
Do sangue de meus pares não derramarás
Nem uma gota mais sequer. Monstro mordaz,
De Mórdax com acerto foste apelidado,
IX
Pois na extensão toda da vasta Trinômia
Nem homem, nem anão, nenhum elfo ou drago
Supera-te em vileza. Sus! Não vês que trago
Em mim a grande insígnia, tal qual encômio,
X
XXIII
Do senhor da montanha, o plenipoderoso
Lithos? Nos dias teus um fim há de ser dado.
Afasta teus guerreiros, prepara o machado.
Lutemos até a aurora se assim for forçoso.
XI
Neste solo um de nós cairá." Desta arte
Conclamou nosso rei, e da bainha ornada
Com prata incorruptível a montante espada
Desembainhou. Lançando-se da alta parte
XII
Dos montes, a extensão da ponte ele se pôs
A percorrer. Os passos lentos e seguros
Guiavam-no em sua negra armadura.
Atrás de si a luz da lua logo expôs
XIII
O símbolo de Lithos em sua capa austera.
Tudo a seu respeito inspirava ardor
Em seus compatriotas, e ao imigo, a dor
Vindoura pelo olhar que até na morte impera.
XXIV
XIV
Do outro lado desta ponte, entanto, achava-se
O arauto máximo da cólera infernal,
A nêmesis de um povo, o ápice do mal,
A força hedionda que Mórdax chamava-se.
XV
Um urro horríssono ao alto céu se alçou
E a besta feita toda em carne e fogo e horror,
Na ânsia por matar dos nossos o senhor,
À frente em carga insana logo se lançou.
XVI
A cada passo Mórdax estremecia a terra
Sob esta mesma ponte pétrea que ainda integra
A nossa cidadela sob a fenda negra.
Aqui, no sacro solo de Lithos a guerra
XVII
Teve fim, quando Árkhon, tendo visto o avanço
De seu imigo, pôs-se à sua espera, a espada
Montante, ingente, muito bem nas mãos firmada,
De modo que sua carne e o aço eram só
XV
XVIII
Um, enquanto do mal o mensageiro vinha
Em sua direção, saltando com as presas
Prontas para trazer a morte à nossa alteza.
O último raio dos três sóis acima tinha
XIX
Iluminado o Sôndyr quando o frígido aço
Do machado fincou-se no solo e a ponte
Toda por pouco não cedou, quando defronte
À besta esquivou-se Árkhon com um passo,
XX
Salvando assim a vida. Um segundo estrondo
Espraiou-se na escuridão quando o metal
Da espada trespassou o arauto do mal,
A adamantite refulgente se expondo
XXI
Nas costas da criatura, tendo perfurado
O corpanzil disforme, por ter feito uso
O príncipe do modo bruto e difuso
Com que se atirara, brandindo o machado,
XXVI
XXII
O inimigo de forma que sua própria sanha
Fez que se lhe cravasse a espada nos pulmões.
O seu grito de morte foi como trovões
Incontáveis, rasgando da terra as entranhas.
XXIII
Ali jorrou seu sangue em lava interna,
Corrompendo-se a si e a Árkhon Primeiro,
Deixando a nós estátuas de bravos guerreiros,
Uma vez seco o magma da "chama eterna".
XXIV
Assim morreram Mórdax e Árkhon primo,
Campeões dos titãs do fogo e da terra,
Quando por terminada deu-se a grande guerra
Num enlaço de magma e rocha opima.
XXV
Que as bênçãos do rei da montanha jamais
Faltem a ti, ó príncipe, nem nunca dos
Corações dos teus falte a glória do legado
Que às gerações deixaste de homens mortais.
XXVII
Faze das ações de teu antepassado tuas próprias, nobre
príncipe, e nada terás a temer.
XLII E, naquele dia, enquanto cruzava a ponte leste, a
mesma ponte em que há tantos séculos se mediram Árkhon Primo e
Mórdax, experimentei no íntimo uma sensação singular. Pus-me
junto do parapeito, onde cruzei meus braços cansados, e meu olhar
eu volvi para baixo em direção à fenda negra por sobre a qual a ponte
fora erguida. A meu lado divisei as marcas do embate mortal,
deixadas pelos dois guerreiros no ponto em que foram petrificados.
Abaixo, apenas a escuridão era visível, mas muito mais do que
sombras habitava aquele antro funéreo; era, segundo a crendice do
povo, o lar de Aleena. Restavam a mim apenas relatos pitorescos, já
que ninguém se atrevia a explorar o ventre sombrio do Vale do Nyr.
XXVII
XLIII Aleena, filha do fogo e irmã de Ôlethros,
senhor
da guerra de Sênnyl Sul e, de acordo com alguns, filho do próprio
Mórdax. Muitos dizem ter visto à noite o vulto de uma mulher ruiva,
cujos cabelos encaracolados lhe pendiam até a cintura fina, marcada
em seu vestido vermelho e negro. Suas aparições sempre são seguidas
de crimes hediondos, de forma que mesmo os mais bravos tremem
quando seu nome é pronunciado. A seu respeito escrevi um
XXVIII
encômio,
dado que é necessário também que se louvem os
inimigos, pois é de acordo com a grandeza deles que a glória vindoura
será medida.
Encômio a Aleena
XXVII. “Destruição”.
XXVIII. Canção cujo
intuito é o de fazer um elogio a
alguém.
O fogo fulge nos teus olhos, dama
Aleena, e com vigor sangüíneo inflama
XXVIII
A fronte, que os cachos rubros te coroam,
Vertendo às costas livres, e esvoam,
Como se em chamas, quando em meio à noite
Caminhas pelas sombras. A ti, foi-te
Dado o dom da graça ígnea das flamas,
Com que te moves, pelo qual me chamas...
Esbelta, envolve o ventre teu em giro
A veste negra em que vive Pyros.
XLIV Sem mais delongas, adentrei a cidade de nossos
ancestrais, trazendo no imo peito o orgulho de nove gerações de
guerreiros valorosos. Caminhando pela rua principal, em pouco
tempo se pode chegar à praça, ao redor da qual se estabeleceu o
comércio local em altos prédios em pedra esculpidos. Não nos é
familiar, ao contrário do que acontece em Fláurin, o costume de se
comerciar artigos nas chamadas feiras ao ar-livre. Talvez isto se dê
pelo próprio caráter sisudo dos habitantes, pelos quais as compras
são vistas apenas como um elemento necessário para a
sobrevivência. Desta forma, são vendidos em Lithokhthôn, em
geral, apenas mantimentos e utensílios simples e imprescindíveis ao
dia-a-dia.
XLV Não se deve pensar, no entanto, que os habitantes de
nossa cidade não tenham cuidado para com sua aparência. Muito
pelo contrário, eles prezam em muito o belo, estando sempre
asseados. Costumam manter seus longos cachos negros presos,
soltando-os apenas em ocasiões especiais, como combates singulares
XXIX
e apresentações formais. Outro costume notório é o de aplicarem
unções em sua pele avermelhada pelos sóis.
XLVI De onde estava, logo à entrada da cidade, podia
avistar a praça deserta, o que, se em Fláurin, certamente significaria
que algum desastre havia ocorrido. Os de Lithokhthôn, no entanto,
não tem o hábito de reunirem-se em praça pública diariamente,
ficando isto reservado apenas para quando se deseja discutir algum
assunto de interesse geral, para o que é convocada a ágora. Assim
sendo, encontram-se os homens de Lithokhthôn no ginásio quando
desejam sair de casa em seu tempo livre, e lá praticam esportes como
corrida com escudo, pugilismo, lançamento de pesos, entre outros.
A estrutura deste ginásio é quadrangular, dando espaço em seu
centro para uma grande área onde se exercitam os homens, e em cujo
redor se construiu a platéia, ponto em que os expectadores se
reúnem também para conversar e discutir assuntos menores.
XLVII Nosso maior atleta naqueles tempos, orgulho de
todos os cidadãos, era também o general das forças de Lithokhthôn,
XXIX
XXX
Algandros, filho de Sománomos. Em toda minha vida, poucas
vezes vi um homem que pudesse se medir em tamanho e força com
Algandros de Lithokhthôn, e menos ainda foram os que puderam
fazê-lo na arena de pugilismo. Um homem de imenso poder e olhos
pequenos, semicerrados sob amplas sobrancelhas que terminavam
quase juntas lá onde lhe surgia o nariz, o qual inspirava respeito por
seu tamanho e constituição.
XXIX “Dor-doshomens”.
XXX “Lei-do-corpo”.
XLVIII Creio que a única pessoa que vi durar mais do que
poucos segundos quando se medindo com Algandros foi tua querida
XXX
tia, Lady Lana, filha de teu avô, Árkhon VIII e irmã de teu pai,
Árkhon IX, senhor de Lithokhthôn. Durante muitos anos sonhei
com tua imagem, nobre Lana, com tuas tranças negras e tua grácil
figura. Ah, como agradeci a Lithos quando a vi naquele dia, parada
em frente à estalagem a que me dirigia, e, como de costume,
envergando sua armadura de combate, toda ela negra e
ornamentada com as insígnias rubras de Lithos. Percebendo-me a
presença, volveu os olhos claros para presentear-me com um sorriso
pueril estampado em seu semblante egrégio. Pensei comigo que em
todo o mundo jamais veria um nariz tão belo como aquele, pequeno,
suave em suas curvas e ao mesmo tempo trazendo em si o orgulho de
sua gente na ligeira inclinação ascendente em que se terminava. E
estava certo.
XLIX Saudamo-nos respeitosamente, mas dando vazão a
certo calor, pois que desde pequenos dividíamos assentos contíguos
ao redor da fogueira de nossos pais quando nos juntávamos para
ouvir suas narrativas. Ao lado de Lana, ouvi tudo que hoje conheço a
respeito da história de nosso povo, matéria que foi para as canções
que vim a compor durante minha juventude, as quais versam acerca
do início dos tempos, dentre elas a Theogonia, a Origem dos povos
XXXI
de Lithos, e a Titanomakhia.
XXXI. Acerca dessas
canções, é preciso salientar que
o alto círculo não aprova a
interpretação resultada de sua
versão dos fatos. No entanto,
nós a manteremos aqui para
que o Iniciando possa ver com
seus próprios olhos o tipo de
crendice que nutrem os homens
ocidentais.
Theogonia
Canta-me o início, ó musa, no tempo em que Ápeiron magno
Era a essência de tudo, pois nele tiveram origem
XXXI
5
10
15
20
25
30
Stratos e Pyros e Lithos e Hydros, os quatro titãs,
Lordes de tudo que vemos no solo da ampla Trinômia.
Ápeiron magno em si concentrava a essência de tudo,
E alto no éter reinava supremo no Templo das Almas.
Cá em Trinômia viviam os homens chamados de ouro
Por conhecerem somente alegrias enquanto eram vivos.
Em suas casas jamais lhes faltavam saúde e alimentos,
Pois tudo aquilo de que careciam mãe Gaia lhes dava.
A Ápeiron magno, entanto, isso não agradava o imo peito.
Gaia, a seu ver, estragava os humanos, minando-os de modo
A nunca poderem lidar com as vicissitudes da vida,
Desconhecendo o equilíbrio preciso a tudo que é vivo.
Por isso então resolveu o titã, nosso lorde do éter,
Vir a Trinômia assolar os domínios de Gaia, mãe terra,
Mas para tanto lhe foi necessário assumir uma forma
Que adaptasse sua essência ao plano chamado matéria.
E assim fazendo plasmou para si quatro formas distintas,
Em que se fez dividir nos poderes primevos do mundo,
Ar, fogo, terra, e água, restando amorfo o éter.
E esses poderes, na luta que então dividiu os países,
Aniquilaram mãe Gaia e a raça dos homens de ouro.
Ápeiron, lorde do éter, das cinzas dos corpos defuntos,
Fez que nascesse a magna raça dos homens de prata,
Feitos aos moldes daquilo que ele firmou como belo,
Formas serenas e equilibradas em suas essências,
Às quais cabia um lote semelho de bens e de males,
Para que assim aprendessem na dor e também na alegria.
Mas o que Ápeiron, lorde do éter, jamais esperava
Foi que os titãs, conscientes da força que neles havia,
Sublevassem-se contra o mais velho e pai deles todos,
Eliminando a magna raça dos homens de prata,
E destronando o lorde do éter, de modo a restar-lhe
XXXII
35 Não mais que o plano do éter em que exercer seu domínio.
Stratos, o lorde dos ventos, do caos e das artes arcanas,
Fez que nascessem os dragos, os elfos, e os devonianos,
Para habitarem o gélido reino ao norte de Sênnyl.
Pyros, o lorde do fogo e flagelo de tudo que é vivo,
40 A seu modelo criou os ciclopes, os orcs, e os monstros
Que nos desertos de Sênnyl do Sul reverberam o caos.
Lithos, senhor da montanha, da ordem, da morte sem fuga,
Fez que da pedra surgissem gnomos, anões, e os homens
Que nos altíssimos montes de Sênnyl Oeste demoram.
45 E Hydros, senhora dos mares, beldade de grácil nadar,
Na orla do mar fez nascerem sereias, tritões, e os homens
Que pelos mares de Sênnyl do Leste navegam altivos.
Somos a última raça de homens, chamada de bronze.
E nesta vida sofremos os males da guerra e da morte,
50 Mas desfrutamos da ajuda de nossos titãs protetores,
E estes, no entanto, se ralam na lida dos planos supremos,
Ao elemento oposto à ruína buscando levar,
Sempre cuidando de oferecer ao amigo assistência.
E desta arte cruel alcançamos o grato equilíbrio,
55 Ápeiron, lorde do éter, titã protetor dos destinos.
Origem dos povos de Lithos
Quando tomou para si o terreno de Sênnyl Oeste
E, em seu ventre, firmou os recursos de todas as pedras,
Lithos, senhor da montanha, criou, para que o habitasse,
Raças diversas de homens, nas quais infundiu em seus peitos
5 Ânimos tais que se aparentassem com seu ambiente,
E, desta arte, nasceram no solo sagrado de Adámantos
XXXIII
10
15
20
25
30
Os valorosos anões, cujo ímpeto empreendedor
Não se compara a nenhum outro povo que existe em Trinômia.
E eles na glória de Lithos criaram a sua acrópole,
Sob a qual escavaram, em meio às pedras preciosas,
Sua cidade e túneis que ligam o subterrâneo,
Dando passagem a todos os cantos da terra de Lithos.
Por sua vez, os gnomos nasceram na brônzea Khalca,
Onde ergueram ingente de bronze o seu baluarte,
Para que lá eles dessem início ao estudo científico,
Causa que foi de inventarem engenhos de todos os tipos.
E, ainda que muitos pareçam a nós sem propósito algum,
Sempre lembremos que neles reside o engenho de Lithos.
Já coroada por todos os montes, os quais a protegem,
Surge a cidade afamada dos homens que em Fláurin nasceram,
Eles a quem o senhor da montanha confere a graça
De ostentarem o aspecto mais orgulhoso das rochas,
E altos, com suas madeixas douradas e olhos azuis
São do seu pai o motivo de glória e símbolo dela.
E, finalmente, criou-nos, a raça de Lithokhthôn,
Nós, que lutamos e sobre seus montes a terra guardamos,
Somos de Lithos o braço massivo, a força das pedras,
Feitos aos moldes da honra e de tudo que nela impera,
Deu-nos o pai proteger seus domínios no vale do Nyr,
E em sua honra lutamos até a terra um dia voltarmos.
Titanomakhia
Morta mãe Gaia e a magna raça dos homens de prata,
XXXIV
5
10
15
20
25
30
Esta que fora criada por Ápeiron, Lorde do Éter,
Feita das cinzas deixadas dos corpos dos homens de ouro,
Os que de Gaia eram prole e habitaram Trinômia primeiro,
Eis que se viram os quatro titãs com um mundo a gerir.
De forma alguma chegavam os quatro a consenso qualquer,
E, cada qual se exilando num canto da vasta Trinômia,
Eles criaram as raças de homens que hoje ainda vivem,
Bem como toda a sorte de monstros que aos homens odeiam.
Mas a cobiça dos lordes dos quatro elementos primevos
Era maior que o quinhão que a cada um deles cabia,
Pois desejavam, ao signo oposto, inglório dar fim,
Dele usurpando as terras e os povos que lá habitavam.
Mas, sendo eles progênie de Ápeiron e partes do mesmo,
Arquitetaram semelho um plano a fim de dar cabo
De seus intentos terríveis: criaram os dragos titânicos;
Mors, a progênie das pedras e ícone puro da morte;
Pélagos, vindo de antros profundos, potência equórea;
Nêphelai, filho das brumas, draco de espírito diáfano;
Kháos, que do magma bruto plasmou-se qual ígneo demo.
Estes os dragos criados então pelos quatro titãs;
Cada um deles buscava dar morte ao imigo do pai.
E por mui pouco assim não se deu, pois dos dragos a força
Era sem dúvida muito maior que a dos pais que os criaram.
Mas, percebendo seu erro, em conselho, os titãs se encontraram,
Para que assim se firmassem as leis pelas quais viveriam,
E, na arcada ancestral onde todos se unem, convieram
Que nunca mais agiriam a fim de dar morte ao irmão,
E cada qual no mais fundo abismo enfurnou seu dragão,
Pois que estruí-los não era possível a quem os criara,
Sendo eles próprios parte ainda viva de seu criador,
E para que os guardassem um bom guardião nomeou
Cada um deles, ficando até hoje guardados da luz.
XV
Desta arte aos homens restou o combate em nome dos quatro,
35 Dando-se início às guerras e a toda a sorte de males.
L Trocando palavras afáveis, adentramos a estalagem de
Lithokhthôn, um edifício não muito diferente das demais sólidas
construções rochosas da cidade, entalhado na pedra em tempos
ancestrais, e em cujas paredes algumas hortaliças despontam seus
ramos e folhas brancos, amenizando assim a sisudez pétrea de sua
figura.
LI Sentamo-nos frente ao balcão em pedra escura, e à nossa
frente logo foram postas duas canecas de cerveja. Dando-me conta,
XXXII
então, de que havia anos que bebera minha última cerveja,
tomei um gole generoso do áureo líquido, o qual não era de forma
alguma conseguido em Fláurin, onde as vinhas de Cádvan produzem
o mais fino vinho de todo nosso país e, como vim a confirmar mais
tarde, também de toda Trinômia.
XXXII. A cerveja é uma
bebida de cor amarelada e
aspecto espumante, cujo gosto
se assemelha a pão devoniano
envelhecido e molhado. É feita
a partir da fermentação do
trigo e tem como objetivo, assim
como o vinho e todas as outras
bebidas entorpecentes, dar
algum sentido temporário, por
meio do embevecimento, à vida
dos homens rudes do ocidente.
LII Após algum tempo de conversa, pus querida Lana a par
de tudo que me acontecera na cidade de ferro, de minha estadia no
amplo castelo de rei Äschnor e de como vira a ser escolhido para a
missão de encontrar Pantagnosko de Telogaia, o mais sábio homem a
jamais pisar o solo de Lithos. Contei-lhe ainda a respeito de minha
busca por Phéron, o homem que, segundo Jahnor, me auxiliaria a
alcançar o escopo de minha empresa.
LIII Oferecendo-me mais um de seus gentis sorrisos, Lady
Lana me disse que, para minha sorte, ela mesma conhecia o tal
homem que eu procurava, Phéron, o guia, uma vez que este prestava
XXXVI
serviços a seu irmão e regente de Lithokhthôn, Árkhon IX. Segundo
ela, Phéron era também um exímio cartógrafo, e fora contratado por
Árkhon para que mapeasse o país de Lithos, seguindo as antigas
referências de Báinon, o explorador. Desta forma, não seria de forma
alguma difícil encontrá-lo. Pediu-me que a acompanhasse até o
castelo, para que tivesse com o rei e assim me informasse do atual
paradeiro de Phéron, o que fiz, tendo terminado minha tão apreciada
cerveja.
LIV Adianto-te, senhor, que não há cidade como a nossa.
Se há algo acerca do qual posso palestrar, certamente é disto. De
todos os países em que estive, de todas as cidades de homens que
visitei, nenhuma pode ser medir com Lithokhthôn, mesmo as belas
cidades dos homens do leste. Enquanto caminhava naquele dia por
tuas ruas amplas e planejadas com siso e simplicidade, dava-me
conta de teu esplendor, ó cidade amada! Passamos pela praça
principal, onde alguns dos guardas envergavam suas armaduras
escuras e capas vermelhas e faziam sua ronda. Dei-me conta, então,
de que, ao contrário do que ocorre em Fláurin, não tive minha
tranqüilidade auditiva perturbada pelos inúmeros comerciantes
apregoando suas mercadorias. E, assim, com um sorriso, continuei
meu caminho ao lado de Lady Lana, que oferecia aos passantes um
gentil gesto de cabeça enquanto andava. Todos a conheciam e
respeitavam, sem exceção.
LV Passamos pelas casas dos cidadãos mais ilustres, elas
todas altas e austeras. Passamos pelo prédio da guarda, bastião da
cidade, pelo imponente templo de Lithos, e desta arte chegamos ao
castelo de Árkhon IX, o mesmo castelo que há nove gerações se
ergue majestoso do cume de Sênnyl Oeste em glória a seu titã e
XXXVII
protetor.
LVI Saudando os guardas reais, entramos. Acima de nós, as
arcadas de pedra escura, esculpidas na própria montanha,
inspiravam o mais profundo respeito e solenidade. Nossos passos
ecoavam em profundidade no que íamos andando sobre o chão que,
apesar de escuro como o restante do edifício, ostentava um aspecto
azulado em seu brilho austero.
LVII “Salve, Árkhon IX, discípulo de Lithos e regente da
amada cidade de Lithokhtôn.” Com uma profunda reverência,
saudei o senhor de minha cidade, ao que fui respondido com um
largo sorriso e um inesperado aperto de mão assim que se me
aproximou o alto regente. Cabelos grisalhos presos num rabo de
cavalo, um cavanhaque sobre o amplo queixo em que se refletia o
aspecto das cãs, e olhos claros e sinceros faziam de Árkhon IX um
homem venerando, mas que certamente possuía a simplicidade de
um guerreiro e a honestidade encontrada apenas nos mais devotos
paladinos. Já me olvidara de como era agradável e honrado um rei
que, olhos nos olhos, palestra com os seus como iguais. Jamais te
esqueças disto, jovem Árkhon, para que também os teus te respeitem
como rei e irmão.
LVIII “Caro Clióphoros, voltas à terra de teus pais e aos
teus. Sê bem-vindo, e que em teu caminho Lithos te acompanhe
sempre, aonde quer que tu vás.” Sorri-lhe em grande respeito e
agradeci suas palavras com outras igualmente votivas. Fui breve em
minhas narrativas quanto ao que vivenciei em Fláurin, sabendo que
o tempo de minha missão era curto, com o que prontamente Árkhon
XXXVIII
IX concordou após ouvir meu relato. De bom grado, apontou-me ao
lugar onde eu havia de encontrar Phéron: além de Lithokhtôn, a
poucos quilômetros da divisa com Telogaia.
LIX Ainda naquele tempo tínhamos o costume de referirnos a tudo o quanto existia além de Sênnyl Oeste, todo o
desconhecido, como Telogaia, malgrado já tivéssemos, há algumas
gerações, conhecimento dos homens que povoam os cantões de
Sênnyl Leste.
LX Despedi-me de Árkhon IX e Lady Lana, tendo ambos
me acompanhado através da cidade de meus ancestrais até o portão
norte, e assim dei início à minha travessia do passo de Nyr.
LXI No que eu andava, mais afastados ficavam os portões
de pedra escura da amada cidade de Lithos, e sobre minha cabeça se
erguiam os montes imortais, como mãos imponentes, resguardando
o caminho que levava ao final de nossa pátria. De fato, Lithokhthôn
é o último porto-seguro de quem viaja pelos reinos. Além de seus
picos, só nos resta o incerto.
LXII Uma guarnição considerável de homens armadurados
saldou-me ao passar pelas torres finais do passo, três dias depois de
deixar Lithokhthôn, e a mim desejaram a melhor das sorte e os mais
profundos votos de sucesso em minha jornada. Olhando para cima,
agradeci-lhes e acenei ao passar por baixo da arcada pétrea que une
as torres de vigia.
XXXIX
Livro Segundo - Sênnyl Leste
“A imagem do outro é o espelho
mais acurado de nós mesmos.”
XL
I Saindo do reino de Lithos, à minha frente o horizonte se
abriu com novidades alvissareiras no verde que inundava as
campinas. Um sorriso se me abriu no rosto enquanto pisava surpreso
a estrada de terra que dividia o gramado sobre esta nova plaga.
Quanta alegria não havia em meu íntimo enquanto caminhava por
aqueles pastos! Meu olhar, incerto acerca do que mirar primeiro
tamanha era a beleza à minha volta e meus pés, famintos por trilhar
cada novo espaço daqueles reinos!
II Com ânimo renovado, atravessei uma pequena ponte
sobre um riacho, do qual mais tarde vim a saber o nome: Okhýresis,
apelido angariado pela surpreendente velocidade de suas águas.
Também soube ainda que, mais à frente, ele desaguava no coração de
Sênnyl Norte, o que muito me surpreendeu, dado que sua nascente
ainda é na terra de Lithos.
III Atualmente, já velho e livre das tarefas as quais me
foram confiadas, posso dar-me ao luxo de despender meu tempo na
análise de tais fatos, e, por conseguinte, pude vir a compreender que
isto, a ligação de Sênnyl Oeste e Sênnyl Norte por meio das águas de
Okhýresis, se dava devido à natureza dos elementos patronos de
cada país e suas relações entre si. Com efeito, sendo Sênnyl Oeste o
lar de Lithos, titã das pedras, e Sênnyl Norte o de Stratos, senhor dos
ventos, seus elementos interagem em harmonia apenas na aliança
comum com fogo e água, e desta forma se aceitam mesmo em seu
antagonismo.
I.“Correr-rápido”.
IV Continuei minha caminhada por mais algumas dezenas
de metros em direção a uma rocha sobre a qual estava devidamente
XLI
sentado um senhor de meia idade e barba mal-aparada, que
desenhava, movendo o olhar de seu pergaminho à cadeia de
montanhas às minhas costas. A ele me apresentei e minhas suspeitas
então se confirmaram no que Phéron desceu do rochedo para
saudar-me com um forte aperto de mão.
V A noite já chegava e por isso buscamos uma elevação um
tanto afastada da estrada principal para lá passarmos a noite.
Juntamos alguns gravetos e com eles fizemos uma pequena fogueira,
de proporções apenas suficientes para que pudéssemos acalentar
nossos corpos e a refeição que então comemos enquanto
conversávamos.
VI Dei-me por feliz pois, como se já podia esperar, Phéron
era um homem vário, conhecedor de inúmeras histórias e cidades.
Com efeito, não poderia ter me desejado um companheiro mais
adequado para a viagem a que daríamos início na manhã seguinte.
VII Ainda naquela noite, passei longo tempo, no que ouvia
meu companheiro palestrar acerca de suas andanças, admirando-lhe
as vestes, as quais ele me disse terem sido presente do senhor dos
gnomos, o que certamente justificava os detalhes bem trabalhados e
coloridos. Ele se riu de minha curiosidade, coçando a barba grisalha e
espantando alguns insetos que lhe sobrevoavam a cabeça calva.
VIII Dormimos alternando a vigília, e ao acordar fui
presenteado com um nascer de sol como nenhum outro; das plagas
orientais ele se erguia, magno astro, áureo como o trigo na campina,
XLII
aos poucos iluminando as terras que se erguiam levemente no
horizonte com seus lagos e florestas, ao que era respondido pelo
despertar dos animais que ali viviam. Pássaros cruzavam os céus em
arcos, coroando as matas e cantando vividamente; coelhos, corsas,
flamingos e toda a sorte de animais a mim desconhecidos se dirigiam
ao riacho perto de nós ou a algum dos lagos, ignorando nossa
presença, ou talvez até felizes com ela. Sem dúvida, foi este um dos
momentos mais gratificantes de minha viagem.
IX Caminhávamos novamente, o desjejum já tendo feito, e
Phéron me ensinava o nome de tudo que víamos à nossa volta, de
tanto flora e fauna quanto aspectos geográficos. A estrada de terra
nos levou floresta adentro durante uma semana, mas suas árvores
esparsas e de flores purpúreas não ofereciam nenhuma dificuldade a
nós viandantes. E, desta forma, dois dias mais tarde, chegávamos ao
II
coração da floresta de Lýon, tendo deixado a trilha principal para,
sob conselho de meu guia, passarmos pelo lago que lá existia, em cujo
centro uma pequena ilha se dava a ver, cercada por peixes de cores e
formas verdadeiramente indizíveis.
II. “Dissolvente”.
III. “Selvagem”.
X E assim o era. No entanto, o que mais me chamou a
atenção foi a pequena formação rochosa que havia sobre a ilha, a
qual dava mostras de ter uma entrada de caverna. Aconselhado por
Phéron, porém, logo deixei de lado minha curiosidade ao saber que
;III
ali morava uma criatura conhecida como Ágria uma medusa posta
à luz da vida por mãe Gaia para proteger um de seus santuários.
Muito me intrigou e ainda me intriga o fato de nenhum titã haver
aniquilado Ágria após ou durante a contenda que travaram contra
Gaia. Mas agora não me há meios de saber mais sobre o assunto.
Algumas oportunidades simplesmente não se nos apresentam mais
XLIII
que uma vez, e, tendo passado o tempo em que podíamos arrebatálas, só nos resta indicar aos que depois de nós vieram para que não
incorram no mesmo erro.
XI Durante mais duas semanas nossos pés deixaram suas
marcas sobre a estrada de Hydros em meio às florestas e lagos que
ornamentam a bela terra dos orientais, até que, finalmente, num fim
de tarde ensolarado, avistamos as primeiras construções de bambu e
madeira que se erguiam ao longe, rodeadas pelos bambuzais que
lentamente se moviam com a ação do vento.. A península em que se
IV
situa Kámnon é separada, de norte a sul, por dois canais vindos do
lago de Kyô, os quais foram abertos pelos habitantes desta cidade
com o duplo propósito de irrigar as terras às suas margens,
proporcionando, assim, um terreno adequado para o plantio de
arroz, e de isolar seu território do restante de Trinômia, fazendo com
que só se possa ter acesso a sua cidade pelas pontes norte e sul,
construídas, em seguida, sobre estes dois canais, os quais são
comumente chamados de rios do dragão também em homenagem a
Kyô.
IV.“Que trabalha”.
XII Com efeito, parece-me que a figura mais conhecida em
Sênnyl Leste seja este lendário Kyô. De acordo com a tradição, teria
ele nascido da união de Gaia com Oceano, e, assim que nasceu do
ventre materno, já sentindo a potência incomensurável herdada de
seus pais, num grito altissonante, Kyô impeliu-se para fora do
oceano, como que pronto para explodir em toda sua energia
criadora. O jovem dragão titânico então lançou-se aos ares em raios
de luz e, de seu abismo dentário, foi expelida uma torrente de água
que atingiu o cerne de Sênnyl Leste, dando origem a Okhýresis e seus
afluentes.
XLIV
XIII Consumido em seu impulso primordial, Kyô deitou-se
na orla do Mar Glauco e, em sua placidez titânica, ele cantou a
criação dos homens. Da mistura de seu sangue com a luz dos três Sóis
de Trinômia, nasceram os primeiros seres humanos de Sênnyl, pois,
com efeito, todos os outros reinos dos homens teriam sido criados
V
tardiamente.
XIV Durante quinhentos anos, Kyô viveu entre os de
Sênnyl Leste e ensinou-lhes tudo o que era preciso para que
vivessem em paz no reino marinho. Estabeleceu-lhes costumes e leis,
de acordo com os quais até hoje vivem.VI
V. Na verdade, como
sabemos, os homens orientais
foram criados do sopro de vida
que Kyô lançou à terra. A
imagem de que eles teriam
nascido da canção do dragão
titânico, portanto, é apenas
uma meia verdade. Quanto a
terem nascido de seu sangue e
da luz dos sóis, parece-me
muito improvável, afinal
quando teria Kyô sangrado? É
preciso lembrar que, para a
mente dos homens incultos, são
mais agradáveis as imagens
apelativas, mesmo que essas
não tragam consigo qualquer
sentido.
VI. Muito pouco
provável. Se Kyô realmente
tivesse vivido entre os
orientais, por quê então não
impediu que os filhos de
Ápeiron destronassem Gaia?
Sem dúvida alguma, é apenas o
tipo de lenda de que uma
cultura gosta de se jactar,
esquecendo-se de verificar sua
veracidade.
VII. “Tesouro”
XV A compleição deste povo é, de todo, adversa à nossa, os
de Sênnyl Oeste, por terem eles olhos puxados e a pele num tom mais
amarelado. Em estatura são bastante inferiores mesmo aos homens
de Lithokhthôn, sendo entre eles os de KeimélionVII os mais baixos e
os de Kámnon, os mais altos. Estes últimos são também os que mais
se dedicam às práticas esportivas e ao estudo das artes da guerra.
XVI E, no que andava pelas ruas de sua cidade, elas
assentadas em pedras medianas, pude perceber que apesar de serem
bastante diminutas quando comparadas às estradas de nosso povo,
possuem uma graça que não se pode encontrar nas construções dos
homens da terra de Lithos. O aparente descuido com que foram
dispostas as pedras de suas veredas confere uma harmonia idílica
junto à natureza em que vivem, havendo canteiros de flores a cada
centena de metros, onde também algum pequeno lago, fonte, ou
praça com bancos pode ser encontrado. Lá costumam eles se sentar
quando cansados de suas caminhadas, ou quando desejam ensinar as
XLV
histórias de seus antepassados às crianças.
XVII Quanto às suas tradições, muito me espantou o fato
de não as guardarem em canções, mas sim gravadas em pedras, as
quais dispuseram, na extensão de seu país, em bosques sagrados, ao
lado de altares em que, após refletirem sobre os provérbios de
sabedoria ancestral lá entalhados, oferecem preces de
agradecimento a Hydros e a Kyô pelas graças que lhes conferem
diariamente em suas vidas.VIII
Provérbios de Kyô
A água é una e nela tudo é equilíbrio.
Mesmo a mais pura gota d'água pode trazer morte se não
empregada com sabedoria.
VIII. Devem-se louvar
os orientais por conta de sua
sabedoria, uma vez que, em
seus provérbios, são ensinados
que, sem o vento, a água não se
pode mover, não tem vida. De
fato, a humildade que
demonstram é tão grande que
lhes faz perceber o quão menos
importante sua titã é no
engenho do mundo. O
Iniciando deve se recordar de
que a origem da palavra
“humildade”, ela mesma, na
antiga língua de Ápeiron,
confunde-se com a origem de
“humilhação”, ambas
derivadas de “humilitas”.
O riacho que passa por teus pés é antigo como os montes e
renovado como o orvalho.
Se te fias sempre numa única água com que te banhar, logo
estarás a sujar-te.
O dormir e o despertar se encontram no enfeixo do ciclo
eterno, assim como, saído da nascente, deságua o rio no mar.
Não chore a morte de teu irmão, pois o que está findo
novamente se inicia no ciclo eterno.
Sê como o riacho na juventude; o mar, na vida adulta; o
XLVI
lago, na senilidade.
A água que derramas hoje levianamente por estares saciado
é a mesma pela qual ainda chorarás amanhã em tua sede.
Controla tuas paixões, pois nelas arde incógnita a chama da
destruição.
O homem que domina suas paixões é senhor de si mesmo e
ícone do equilíbrio a seus irmãos.
Aquele que age de uma forma e pensa de outra é um aquário
limpo apenas por fora.
O trabalho rejuvenesce o corpo, assim como as ondas, o mar.
A maior das barcas ficará presa no mais singelo dos canais.
A água nutre a terra. O vento movimenta a água.
XVIII São considerados, entre os orientais, tendo eles uma
sociedade de castas, de maior status os samurais e os monges, acima
dos quais encontram-se apenas aqueles pertencentes à família real.
IX. Os homens ocidentais
e orientais, por encontrarem-se
em um estado de
desenvolvimento ainda tão
anterior, fazem uso de
verdadeiras carapaças para se
defender da selvageria de seus
adversários.
XIX Os primeiros em muito se assemelham aos paladinos de
Lithokhthôn por colocarem, acima de todos os outros valores, a
honra como o ideal a ser defendido, lutando por seus senhores, pela
glória de sua família, e por Hydros Soberana. Armam-se com
armaduras confeccionadas em bambu, as quais ostentam os brasões
IX
das famílias pelas quais eles lutam, além das insígnias de sua titã.
XLVII
XX Quanto aos monges, apenas os encontrei em
Keimélion, e são eles detentores de toda a sabedoria de seu povo,
sendo responsáveis pelo ensinamento dos ideais de Hydros à família
real, trabalhando como tutores dos jovens príncipes e princesas. Dão
grande valor ao que vem do corpo e do espírito, cuidando de igual
modo de ambos. Com efeito, são exímios lutadores, precisando de
pouco mais que seus próprios punhos para se medir com qualquer
adversário. Costumam tonsurar seus cabelos, deixando deles apenas
um rabo de cavalo que lhes pende, à beirada anterior do topo de suas
cabeças, em uma grande trança negra. Vestem-se com simplicidade,
trajando mantos compridos e de tonalidades claras, mas que lhes
conferem graça em todos os movimentos.
X. “Separado”, “Duplo”.
Ao que me parece, a montanha
recebeu tal nome por conta do
rio que lhe corta em duas.
XI. “Contínuo”.
XII. Ao que parece, o
bambu é uma espécie de
madeira flexível, a partir da
qual os orientais constroem
grande parte de seus utensílios.
A qualidade e dureza de tais
objetos é certamente duvidosa.
Mais uma vez, o Iniciando
deve agradecer a Stratos por
não precisar de mais do que seu
conhecimento para sobreviver.
XXI Noutra coisa também se diferem os homens do oriente
em relação a nós ocidentais: possuem apenas uma única família real,
a qual rege todas as cidades de seu reino, estabelecendo-se em cada
uma delas um príncipe, e cabendo ao rei administrar a maior. Esta,
em meu tempo, era Kámnon, a qual também se destacava pelo
cultivo de arroz e por seus contingentes militares. No centro da
X
península de Kámnon, existe uma alta montanha, Diamphídios, da
XI
qual nasce o rio Pámmenos, famoso por, durante todo o tempo em
que moraram os orientais em sua cidade, jamais haverem secado suas
águas. De Diamphídios, extraem os homens de Kámnon os minérios
com que confeccionam suas armas. Talvez por não existir em seu país
quantidade suficiente de recursos minerais com que forjar
armaduras e outros utensílios, tenham os de Sênnyl Leste criado a
XII
arte de lidar com o bambu.
XXII Abaixo dos monges e samurais na hierarquia de seu
país, encontram-se os clérigos de Hydros, os quais, devido às bênçãos
XLVII
concedidas por sua titã, possuem o dom de curar ferimentos, sejam
eles psíquicos ou somáticos. Seu maior templo, como vim a aprender,
se situa no centro do terceiro grande lago, conhecido como de
Hydros. Dele apenas pude ver a silhueta veneranda num pôr-do-sol
XIII
enquanto caminhávamos em direção a Parathálassa, para que lá
conseguíssemos uma embarcação que nos pudesse levar até a Ilha
dos Mortos, lugar onde, segundo meu guia, encontraríamos
Pantagnosko de Telogaia. Como era de conhecimento comum em
Sênnyl Oeste, para tal ilha havia Phéron guiado o ancião alguns anos
antes, quando este decidiu que chegara a hora de isolar-se da
companhia dos homens mortais, consagrando o restante de seus dias
à proteção do mais puro solo de Lithos, a Montanha do Anoitecer.
XXIII Ainda na primeira cidade em que chegamos,
visitamos o palácio real, situado junto ao monte Kámnon, nome pelo
qual Diamphídios é comumente chamado. De lá, tem-se uma visão
privilegiada da geografia da cidade, com suas veredas estreitas
dispersando-se por sua extensão como nervuras numa graciosa folha
primaveril, e as muralhas de bambu protegendo sua face ocidental,
frente aos rios do dragão, nascidos do primeiro dos três grandes lagos,
o de Kyô.
XXIV O grande lago central, do qual ainda não vos falei,
caro príncipe, se trata de um lugar sagrado, com o peculiar formato
de uma fechadura, em que são enterrados os senhores de Sênnyl
Leste. A constituição da ilha se deve a uma simbologia que
representa a saída deste mundo para o retorno ao éter, onde se
encontrarão com Ápeiron pai.
XIII. “Junto-ao-mar”.
XLIX
XXV Mais do que nós, é preciso saber que os de Sênnyl
Leste tem respeito pelo titã do éter, dirigindo a ele orações de
agradecimento antes de deitarem-se à noite. Tendo-se em mente a
ligação intrínseca entre sono e morte, poder-se-ia dizer que, ao
dormir, estariam também adentrando o reino do éter. Mais tarde,
esta minha teoria veio a se confirmar, quando estive entre os magos
de Sênnyl Norte e com eles aprendi sobre as formas de magia e a
constituição do reino do éter.
XXVI Era uma tarde de bons augúrios, pois os pássaros
cruzavam os céus à nossa direita enquanto subíamos os últimos
degraus da escadaria de madeira que nos conduziria ao palácio de
XIV
Náukles, um senhor venerando de meia-idade e regente do reino
de Hydros.
XXVII Fomos por ele muito bem recepcionados, tendo suas
concubinas nos servido saquê e algumas especiarias feitas de arroz e
de sabor suave e agradável de se provar.
XIV. “Glória-das-naus”.
É peculiarmente estranho o
fato de que o rei dos orientais
não use um nome de origem na
língua de Kyô, e, sim, na
titânica. Talvez, tenha
Clióphoros dado-lhe este nome
por não conseguir reproduzir
corretamente os sons da língua
oriental.
XXVIII Respondendo-lhe ao pedido de que lhe narrasse
algo sobre os homens de meu país, acompanhado de minha lira eu
lhe cantei os Costumes do povo de Lithos e a Ode a Lady Lana.
Muito lhe aprouveram minhas peças, e, em agradecimento a elas, o
magnânimo Náukles ofertou-me uma capa de seda azul com a
insígnia de Hydros, a qual, segundo me explanou, haveria de me
proteger contra os perigos do mar.
L
Costumes dos povos de Lithos
Na época em que viscejam as folhas nutridas do Sôndyr,
Canta em honra aos titãs e a Ápeiron e a mãe Gaia,
Pois a colheita com que alimentas teus filhos queridos
Vem das potências que nutrem o imo de nossa Trinômia.
5 Canta em honra aos três sóis quando à terra a semente lançares,
Para que a vida concedam ao fruto que hás de colher.
Se, por acaso, um parente, ou amigo querido, perderes,
Roga a Lithos que o reino dos mortos encontre teu par,
E, na montanha, descanse seu corpo em paz junto aos teus.
10 Mas, se tiveres a graça bendita de à luz te trazerem
Um descendente querido, a ele ensina os ditos
E as façanhas de Árkhon, o príncipe nosso primeiro,
Para que aprenda a ser varonil e honrado em seus atos,
Sempre lutando em defesa da pátria terra querida,
15 Dos teus parentes e nunca faltando com nosso rei Lithos.
Ode a Lady Lana
Entre os varões valorosos que guardam a pátria querida,
Luta ombro-a-ombro e excele nas artes da paz e da guerra,
Lana guerreira, orgulho da estirpe de magnos príncipes
Que sobre a terra de Lithos exerce o comando
5 Há gerações incontáveis, nascidos de Árkhon Primeiro,
Nobre senhor de guerreiros e filho querido de Lithos.
muitos por tua espada prateada já foram vencidos,
Sempre em defesa da pátria, do rei, e dos filhos de Lithos.
Mas muitos mais já ganhaste com todos teus gráceis sorrisos,
10 Puros no cenho perfeito em que assoma o nariz pequenino.
E quantos mais os teus olhos alvíssimos não conquistaram?
LI
Quantos as tranças escuras, e quantos as curvas opimas
Sob a negra armadura de guerra mui bem protegidas?
Muitos, por certo, mas posso afirmar com certeza que foram
15 Menos do que os que amam o teu coração majestoso.
XXIX Agradeci-lhe o presente com a promessa de que lhe
comporia um encômio antes de deixar sua cidade. O rei de Sênnyl
Leste riu-se de minha bondade, e disse-nos que então passaríamos a
noite em seu palácio, onde eu teria a paz necessária para que pudesse
escrever o poema. E assim o fizemos, partindo no dia seguinte após
lhe ter presenteado com o Encômio a Náukles.
Encômio a Náukles
Salve, altivo senhor do Oriente,
Náukles, discípulo de Hydros Augusta!
Caiba em teu peito a glória, pois vem-te
Ela não só de tua pátria venusta,
Mas de teus filhos também, venerandos,
Os quais labutam no dorso do mar,
Para que a ti, quanto a pátria voltando,
Dádivas tragam com que te agradar!
Pois que és o ícone magno, dentre
Os que aqui vivem, da nobre virtude
De Hydros. Que nunca, tornando, do ventre
De tua terra, a sorte te mude!
XXX Para guiar-nos até Parathálassa, o gentil rei de Sênnyl
LII
Leste pediu que nos acompanhasse Yanon, seu guarda-costas,
monge e campeão do reino, um jovem esbelto e de longos cabelos
negros, em cujas costas havia uma larga marca de nascença na forma
de um dragão alçando vôo. Não vestia nada que lhe cobrisse o
tronco, apenas calças escuras e sandálias de madeira. Era um homem
sábio e extremamente taciturno, de forma que sua presença era
quase que olvidada conforme caminhávamos.
XXXI Entretanto, soube ele nos conduzir não apenas em
segurança até a próxima cidade, Keimélion, a qual se localizava a sul
de Kámnon, além da ponte que dava travessia sobre o Mar Glauco,
para que se pudesse alcançar a ilha em que esta cidade de monges
estava localizada, mas também pôde nos apontar todos os sete
bosques sagrados de seu povo, a fim de que eu compilasse os
provérbios que lá se encontravam, fonte de todo seu saber, leis, e
costumes.
XXXII A nós, homens de Lithos e acostumados com a
XV
grandeza ctônica das cidades do ocidente, parecia-nos deveras
pequena Keimélion, a vila em que habitavam os monges orientais.
Suas casas eram de aspecto ainda mais simples que as de Kámnon.
Todavia, Gaia havia sido incrivelmente generosa nos dotes naturais
que conferira àquele lugar, visto que, em todos os cantos, flores de
formas e tamanhos diferentes ornamentavam as construções de
bambu em que viviam os homens locais. No centro de sua cidade,
haviam construído um amplo tablado em que treinavam seus corpos
nas artes marciais, protegidos da intempérie por um telhado de
madeira de compleição peculiar, pois suas pontas se erguiam
ligeiramente após haverem descendido até seu fim.
XV. “Terrestre”.
LIII
XXXIII Lá treinando, conhecemos o príncipe Bao, um
sorridente e agradável jovem, sem sombra de dúvida.
Cumprimentou-nos com respeito e ofereceu-nos um almoço de
frutos do mar e peixes, ao que me pareceu, um prato típico local, e
contou-nos a Lenda de Yuritsu, o primeiro dos monges.
XXXIV No ano trezentos e cinqüenta de Kyô, os homens
orientais viam nascer a sétima geração de homens. Sua economia
prosperava, as colheitas eram fartas, os homens tinha toda sorte de
alegrias na vida e não havia doenças conhecidas entre eles. Excelia a
todos os de sua época um jovem de feições duras e que se cria senhor
de seus próprios apetites. Chamava-se Matsen e contava pouco mais
que vinte verões.
XXXV No último dia da colheita de primavera, quando as
flores purpúreas das árvores se abriram ao redor de Kámnon, Matsen
deixou sua fazenda para ter com Kyô, o dragão titânico e pai de todos
os homens. Em sua jactância, o jovem oriental apresentou-se a Kyô
como “o melhor de todos os homens” e “o mais apto a liderar sua
nação”. Nada expressou Kyô, apenas mantendo seus olhos de
serpente firmados no homem. Vendo que não havia obtido sucesso
ainda, Matsen acrescentou que também era “senhor de seus apetites
e paixões”.
XXXVI Segundo meu anfitrião, Kyô jamais falou com
nenhum homem depois daquele dia, nem se deixou ver até o dia em
que retornou às profundezas do Mar Glauco, uma centena e meia de
anos depois.
LIV
XXXVII Matsen, por sua vez, só foi visto três anos depois
daquele dia, quando pôde, por fim, deixar a caverna de Kyô. Não
parecia, nem de longe, o mesmo homem que entrara naquele lugar.
Durante três anos ele fora obrigado a aprender as virtudes de Kyô,
principalmente a da humildade. Foi Matsen quem grafou para os
orientais os provérbios do dragão, por este criados para evitar que
jamais se criasse outro ego como o daquele. Quando saiu da caverna,
carregava nas costas as sete pedras proverbiais, as quais assentou,
como estabelecido por Kyô, numa meia-lua ao redor das cidades
orientais. Durante seis anos, então, ele trabalhou de mal grado na
ornamentação dos bosques sagrados, construindo seus altares e
lâmpadas de incenso com suas próprias mãos. Ao encontro dele,
quando de volta à luz, veio Yuritsu, que o ajudou tão fraternalmente
como o mais devoto dos irmãos o ajudaria, e juntos executaram a
tarefa com a qual o antigo dragão titânico havia incumbido
XVI
Matsen.
XVI. É triste pensar que
exista um povo no qual, se
alguém se mostra corajoso e
apto a governar, acaba sendo
humilhado pela autoridade
máxima, punido de múltiplas
formas e, por fim, exilado. Às
vezes, custo a entender como os
orientais veneram a titã
patrona do bem.
XXXVIII Ao que parece, Yuritsu, que ao contrário de
Matsen era de todo um homem comum, a tal ponto se devotou às leis
de Kyô que desvendou a arte de curar pelas mãos e de usar a energia
do plano astral em combinação com as técnicas de luta centenárias,
também legadas pelo dragão titânico, para criar as artes marciais tais
quais hoje são ensinadas em Keimélion por Horin, discípulo de
Suriô, último descendente direto de Yuritsu e venerando mestre nos
ensinamentos de Kyô.
XXXIX Todos pareciam relutantes a falar acerca de Suriô.
Tudo que pude saber foi que o ancião habitava o monte Gaia,
localizado entre o lago de Hydros e o chamado sagrado, já que seu
nome não é por ninguém pronunciado desde que Matsen deixou a
LV
terra dos orientais, amaldiçoado por Gaia devido a suas tantas faltas
e à inveja que passou a nutrir por seu irmão, Yuritsu, agora prodígio.
XL Ainda mais intrigante, garanto-te, é o restante do relato
de Bao, pois, cento e cinqüenta anos após ter deixado a terra de seus
pais, Matsen voltou a caminhar as veredas de Keimélion, em seu
peito um ódio como nenhum outro nutrido ao extremo. Trazia
consigo insígnias incomuns. Vestia um traje de batalha oriental
manchado da cabeça aos pés em sangue fresco que jamais parecia
coagular. Discursou em praça pública para os habitantes de sua
cidade natal, e, em seus corações, ele teve o poder de incitar as
paixões mais fortes em cada um deles. Convocou-os à guerra. E eles o
seguiram.
XLI E, então, no ano quinhentos de Kyô, o dragão titânico
ele mesmo deixou a terra dos orientais. Em seu vôo, ele assistiu a seus
filhos lutando uns contra os outros, seu próprio sangue manchando
as águas puras do Mar Glauco. Para o fundo do oceano ele se foi, e de
lá nunca mais voltou. Em meio aos homens, por outro lado, surgiram
as doenças, a fome e a desgraça que a tudo consome, restando-lhes
apenas a memória dos tempos passados em que viviam em harmonia
com as forças primordiais.
XLII E esta foi também a época em que nasceram os titãs. A
guerra entre os clãs do oriente coincidiu, de forma intrigante, com o
surgimento dos filhos de Ápeiron em Trinômia e a contenda entre
estes e Gaia.
LVI
XLIII A terra tremeu, os oceanos sublevaram-se, e o
magma do seio do mundo pulsou em gêiseres funéreos, ribombando
os céus em cores sangüíneas. Matsen ergueu-se como Senhor da
Discórdia, nutrido por todos os vícios que ajuntou no plano astral.
De fato, a história também me pareceu absurda e neste ponto
confesso ter perdido até o fio da meada, mas, segundo meu anfitrião,
ele havia, assim como seu irmão, aprendido a utilizar-se das formas e
energias do plano do éter, e, com os pensamentos e vícios que
despertou em seus seguidores, ele ergueu-se como potência
destrutiva.
XLIV Apesar de todos estes relatos, nunca mais se soube de
Matsen. Conta-se que Gaia o destruiu pouco antes de proteger o
povo dos orientais, escondendo-os em seu ventre por toda uma
geração, para que os filhos de Ápeiron não os aniquilassem, como
sempre era feito a cada mudança de era. A simbologia me pareceu
deveras interessante.
XLV Deves estar te indagando o mesmo que me pus a
indagar naquele dia em que meu anfitrião me narrava tão
inquietantes contos, ó príncipe, e, com efeito, os orientais se
mostram seguros de que Gaia, mãe-terra, ainda está viva e ativa em
Trinômia, ao contrário do acreditado em nosso país.
XLVI Por fim, como um todo, de tal modo perturbou-me tal
relato, ainda que belo em suas imagens e ensinamentos, que, uma vez
tendo o tempo para tanto, compus um pequeno canto, entitulado
apenas como Canto Primeiro, em que narro algumas das imagens
que me vieram em sonho na noite em que vim a conhecer a história
LVII
de Matsen. Não me pareceu agradável terminá-lo em completa
tragédia assim como o vi, uma vez que a história do mundo continua,
e por isto mesmo eu o deixarei para sempre incompleto, para que
desta forma alguma geração posterior possa grafar algo de bom na
alvura frígida das páginas restantes.
Ser, Tempo, Vontade
Canto Primeiro e Único
I - Lembranças do Fim
Como urrasse a tormenta ao ensaio de um gesto,
E do mar avançasse - qual fera - o futuro;
As montanhas fundiam-se em gêiseres rubros,
Pela noite seus bárbaros sons retumbando.
Bufando, em vagalhões, do ventre intumescido
O mar surdia excelso, espedaçando abrolhos,
Fragas... Do Equóreo reino o centro se assomara,
Sustido num trabalho, aos demais, agravoso.
Dá-se lume à contenda entre os notos poderes;
Um grito horríssono propaga-se no ar.
E mesmo ao imo a lide intende amplexar-se,
Ringindo o magma, açulando o intramar.
De que força sem par a vontade cumpriu-se,
Culminando na faina que agora me brota?
Do filho desregrado, ereto-caminhante,
E sua jactância sempefunérea.
LVIII
II - Uma Invocação na Noite
O ego canta-me, ó Musa, que mudou
Destinos tantos, inumeráveis, de povos.
Ora ultrajando, ora os enaltecendo,
E que, entanto, se foram nas brumas do oblívio.
Toma início por onde lhe mais aprouver,
Pois que o encanto, oriundo de teus dons beatos,
Possa melifluir, como sói da revoada
O cantar ressonante de brio impareável.
Que caminhos seguiram errados os homens?
Aonde se foram os grandes varões preclaros?
Onde mora o famoso herói ensandecido,
Matsen, que os guiou para o escuro mortal?
Nas montanhas de seu próprio ser, enfurnado,
Egressou-se o herói, mas seu corpo ainda vaga
Pelos vales ao longo, umbrosos, morada
Do ímpio Terror, companheiro infesto.
III - Indícios do Ser, seu Tempo e sua Vontade
Pelos anos dolevos, armíssona, a terra,
Em tragédias sangüíneas, chorou longamente.
Foram anos de Guerra - é o tempo em que os pais,
De seus filhos, assistem aos enterros, premortos.
Por conflitos cindidos, irmãos se estraçalham,
Se atalham com tramas, tingindo-se em culpa.
E seus corpos ingentes se apequenecem
LIX
Aos poucos, sem que os olhos se possam dar conta.
Resta às mães dar à terra o que, um dia, lhes fora.
Demoram-se à noite, a juntarem nos campos
Os egros frutos da guerra, e, ao fragor de um pranto
Furente, se lhe incensa o fogo da morte.
Resta à terra a penúria de um povo acabado.
Ao povo, apenas dor; mas, da dor, a esperança
Acaba a nascer, sempre, esparsando consigo
Os caminhos possíveis a todos os Fins.
IV - Tempos Passados
De um vale cristalino no berço, à luz
Deu o filho, e, alçando-lhe coisas venustas,
Libertou-o; o orbe lhe afaga em tesouros,
Entrementes, a opimos ofícios o impele.
E Gaia, que o gerara, a Mãe-Terra, o amava,
E seus entes que tudo mantinham em Ordem.
O céu resplandecia o horizonte em inúmeras
Vias multifloridas, bem orientadas.
Musa, diz-me o fado de um filho que volve,
Ingratamente, as costas às graças maternas,
Usurpando-lhe as rédeas do engenho do mundo,
Ufanando-se em tantos ardis façanhosos!
Caos lhe há de embalar seus apegos chorosos,
Quando, inerme, por terra cair, aferrado
Em suas Leis, pisoteado por irmãos
LX
Sobre a terra, que lhe há de negar um indulto.
XLVII No dia seguinte, partimos em direção a Parathálassa,
cidade portuária localizada na maior das três ilhas costeiras. A
primeira, como vos narrei anteriormente, é a em que se encontra
Keimélion, tendo um formato ligeiramente redondo e tamanho
mediano. A ilha de Parathálassa, por sua vez, surpreendeu meus
olhos ocidentais ao surgir em meio às brumas do oceano conforme
percorríamos a ponte liga a cidade dos monges à dos navegantes.
XLVIII Sem dúvida, não só seu tamanho é impressionante,
mas também as construções de madeira lá encontradas. Naquele dia,
as muralhas nebulosas de Parathálassa pareciam atingir os céus,
embora, mais tarde, tenha descoberto que não são em tamanho
superiores às de Fláurin.
XLIX Há uma floresta no coração da ilha, cortada por um
rio chamado Amphis, devido à dupla correnteza de suas águas.
Explicou-me Yanon que Amphis era na verdade um pedaço do mar
que seccionava em dois a ilha de Parathálassa.
L Cruzamos uma pequena ponte de madeira, e, à nossa
esquerda pude ver um monte de tamanho respeitável, de onde os
orientais extraem sal e carvão. Seu nome, todavia, falha-me à
memória.
LI
Não precisamos andar muito mais para avistar as
LXI
primeiras moradias de pescadores, assentadas ao redor da muralha.
Disse-me Yanon que aquela se tratava da parte pobre da cidade,
oposta à parte rica, localizada face às muralhas oeste e sul. O interior,
restrito apenas à família real e à casta de monges e samurais,
continha alguns palacetes e templos sagrados. Infelizmente, não me
houve tempo de conhecer tais lugares, uma vez que o tempo de
XVI
minha busca urgia. Desta arte, dirigimo-nos sem mais demora para
o porto de Parathálassa, erguido face à muralha oeste.
LII Despedimo-nos de Yanon cortesmente, agradecendolhe todo o trabalho que tivera em nos guiar nos últimos dias. Com
efeito, cumprira seu trabalho, uma vez que Phéron conhecera, na
fronteira entre nossos países, um mercador oriental de grande
renome e capitão da Serpente Marinha, a mais bela barca já vista por
esses olhos meus, eu te digo, caro príncipe.XVII
XVI. É triste pensar que
exista um povo no qual, se
alguém se mostra corajoso e
apto a governar, acaba sendo
humilhado pela autoridade
máxima, punido de múltiplas
formas e, por fim, exilado. Às
vezes, custo a entender como os
orientais veneram a titã
patrona do bem.
XVII. É célebre o
episódio em que Clióphoros,
passeando pela terra dos elfos
azuis, encontrou-se
boquiaberto perante suas
jangadas, confessando que
mesmo a mais simples dela era
superior à Serpente Marinha.
No entanto, o orgulho
certamente o impediu de narrar
tal episódio em seus diários.
LIII Passamos a noite em uma estalagem do porto, pois já
era tarde e também por termos sido, pouco depois de nossa chegada,
informados de que Kato e a Serpente Marinha só chegariam na
manhã seguinte.
LXII
Livro Terceiro - Telogaia
“É preciso viver o saber.”
LXIII
I Kato era um homem único, daqueles que, uma vez
conhecidos, deixam para sempre sua presença marcada nos campos
de nossa memória. Trajava-se com roupas leves e de cores claras,
tendo à cabeça um chapéu que lhe protegia da irradiação dos três
sóis. Não era, de forma alguma, como os outros orientais que conheci
em Sênnyl Leste, mas, sim, fazia-me lembrar dos tempos em que
Kragûn Kreionkheir, capitão da guarda de Adámantos e melhor
anão que já conheci, passou entre nós em Fláurin, tendo trazido
notícias dos reinos subterrâneos. Certamente, a semelhança entre os
dois não era na estatura, mas em serem ambos extremamente
bonachões. Durante o mês que navegamos as águas límpidas do Mar
Glauco, meu rosto chegava a doer de tanto que Kato me levava a rir
com suas anedotas e peças juvenis.
II O mar é um lugar fascinante. Especialmente para nós do
Oeste, creio eu, que não estamos de forma alguma acostumados a ver
a grandeza plácida das águas em seu movimento undíssono. A
extensão que viajamos provavelmente se equipararia a uma jornada
de ida e volta de Fláurin a Adámantos, e isto em apenas um mês.
Com efeito, a navegação é uma das maiores artes já criadas.
I. Esta lenda servirá de
exemplo ao Iniciando da
maneira pela qual os povos
menos desenvolvidos se valem
de experiências empíricas para
substituir a ciência quando se
vêem na necessidade de fazer
uso de seus intelectos de forma
criadora
III E, por sinal, este foi um dos tópicos que mais me
interessou nas conversas que tive com o capitão da Serpente
Marinha, já que era ele um homem sabedor de muitas histórias e
lendas. Por isso mesmo, então, pedi-lhe que me contasse a origem
dos barcos e como haviam os povos do Leste adquirido a ciência de
I
tão profusa arte. Por conseguinte, narrou-me Kato a lenda de Jiro.
IV
Segundo a lenda, Jiro era pescador e nativo de
LXIV
Parathálassa. Passava seus dias na orla do Mar Glauco, mesmo
quando não estava trabalhando, e mais do que ninguém gostava ele
de contemplar as águas no silêncio do isolamento.
V Numa noite primaveril, surgiu-lhe em meio à bruma
marítima a imagem de uma ninfa envolta em sedas azuis. Sobre sua
pele clara refulgia o orvalho com o brilho dos astros sidéreos, e
pequenas escamas se davam a ver em toda sua extensão até a cauda
fina que serpenteava ao seu redor. Por um lapso de segundo, pôde Jiro
ver-lhe os olhos de opala e os fios diáfanos dos cabelos que pareciam
se estender até além de sua cintura. Então sumiu, deixando ao
pescador não mais que um devaneio.
VI Arrebatado por aquela imagem sobre-humana de
beleza, Jiro lançou-se ao mar e nadou tanto quando pôde, até perder
o fôlego. Enquanto nadava, parecia-lhe que a figura o chamava em
voz maviosa para que a alcançasse no coração do oceano. E, no dia
seguinte, acordava o pobre Jiro em meio à areia na praia de
Parathálassa.
VII A cada noite que se seguiu, a ninfa se lhe aparecia, e o
mesmo triste processo se repetia. Até que ao pescador lhe veio um
expediente engenhoso, algo que lhe permitiria alcançar a ninfa em
meio às ondas oceânicas.
VIII Por duas semanas ele trabalhou, juntando lenho com
lenho, amarrando com esmero cada feixe de madeira, até que estava
construída sua pequena jangada. E, com ela, foi-se Jiro na mesma
LXV
noite até onde a ninfa o levou.
IX Pressionado por seus concidadãos mais tarde a revelar
onde estivera, Jiro apenas disse que Hydros o presenteara, criando
nele o anseio pelas artes náuticas, de que agora era o pai. E, depois
disto, em muito evoluíram os orientais as técnicas de construção de
suas naus, delas fazendo uso na pesca e na defesa de suas terras, até a
perfeição, materializada na Serpente Marinha, a mais bela barca já
construída, como jamais se cansava de dizer nosso capitão.
X Após uma noite turbulenta em que a fúria do mar e do
céu se abateu sobre nós na forma da mais terrível borrasca, o
amanhecer trouxe-nos a tão esperada imagem de Telogaia. Uma
maciça formação rochosa se erguia do interior das brumas,
assomando seu cume plúmbeo até as vaporosas nuvens do céu de
Trinômia. Nuvens no céu e bruma no mar. Telogaia nos saudou com
sua austeridade pétrea, guardadora de segredos além da imaginação
dos homens mortais.
XI Com o trabalho impecável de seus marinheiros, Kato fez
com que baixássemos âncora a uma distância passível de ser
transposta pelo pequeno barco a remos que levávamos conosco na
Serpente Marinha. A cada braçada, a Montanha do Anoitecer se
avolumava à nossa frente, e, sob sua sombra monumental, nossas
almas se encolhiam em temor e respeito. Aportamos em meio às
pedras da encosta, olhando à nossa volta a maneira pela qual se
dispunham as rochas, como uma assombrosa floresta de pedras,
guardando a entrada para a montanha, onde, segundo uma lenda
antiga e já quase de todo apagada da memória dos homens, dorme
LXVI
Mors, o dragão símile da morte. Um calafrio desceu-nos a espinha
conforme caminhávamos sobre aquela ilha sacra em busca do único
homem capaz de impedir a calamidade próxima, Pantagnosko, o
ancião.
XII De acordo com os mais antigos entre nós, Pantagnosko
convivera com Árkhon Primeiro no Tempo das Guerras,
aconselhera Anaxândron em seu governo, visitara todos os cantos
de Trinômia e dos habitantes dela se isolara há poucos anos,
buscando morada numa ilha distante e à qual poucos homens sabiam
II
chegar.
XIII Phéron era um destes poucos. E não por acaso do
destino, mas por ter ele próprio guiado Pantagnosko, em sua velhice,
até tal retiro. Agora, trazia-nos até a pequena caverna na encosta da
Montanha do Anoitecer, humilde e singela. Nenhum adorno se
mostrava à entrada. Apenas a runa que identificava Pantagnosko
podia ser vista sobre uma grande pedra que certamente servia para
vedar o ambiente em dias de chuva. Estava recostada e, no chão, não
vimos nenhum sinal de que havia sido usada na noite anterior.
II. Segundo consta em
nossos registros, Pantagnosko
dificilmente contava mais de
cento e dez anos.
XIV Um vento gélido nos cortou a alma conforme
esboçamos o primeiro passo para dentro da caverna. Em seu interior,
sentado contra a parede, a figura de um velho pôde ser vista. Estava
coberto por um manto e seu rosto não se dava a ver. Respirando
fundo, saudei-o tão bem quanto pude: “Salve, sábio e venerando
Pantagnosko, a quem Lithos concedeu o saber de tudo quanto há na
vasta Trinômia. A ti viemos da terra do senhor da montanha, eu,
Clióphoros Lithokhthônio, o afamado bardo, e Phéron, teu guia, a
LXVII
mando do glorioso rei Äschnor III, por conta de um terrível
presságio: viu, em sonhos, que sobre nós um dos sóis se apagaria,
nosso mago real, Wildegan.”
XV Apesar de todos meus esforços, do ancião ouviu-se um
som de escárnio. Franzi o cenho e calei-me, aguardando que falasse.
Phéron deixou-me a sós com ele, soltando um suspiro entristecido ao
sair.
XVI “Meu tempo é findo, bardo. Ao contrário do que te
informaram as lendas, sou apenas um homem, e, sendo homem,
como homem porto-me. A mim não é dado mover montanhas. O
trabalho de titãs, aos titãs eu relego. Se vivi muito, a eles todo o
mérito é cabido. Agora, os teus deveriam saber também disto. Entre
eles vivi e a eles ensinei tudo o que sabia. Preferiram cultuar uma
lenda a aprender a vida de um mortal. Saiba, Clióphoros, que,
quando um estranho se aproxima e, apertando-lhe a mão,
cumprimenta seu senhor, um cão crê que lhe faz uma ofensa. Se vós,
cães, sois tão cegos a ponto de dar abrigo a um verme traidor e
permitir que ele, cão que é, destrua o lar de seus senhores enquanto
estes dormem, que sofram também a surra a ele destinada. Volta para
tua casa e dize aos teus que uma parte do sol certamente há de cair
sobre suas cabeças infandas. Agora, deixa-me só. Se sobrevivi ao
III
embate de ontem, foi para morrer hoje na paz de Lithos.”
III. Com efeito, o único
fato digno de ser louvado em
Pantagnosko é de que ele sabia
a respeito do cão traidor. No
entanto, preferiu tornar-se um
ermitão a prestar ajuda a seus
concidadãos.
XVII Incapaz de pronunciar uma palavra sequer, fui como
que lançado para fora da caverna, tão rápido pus-me a andar tendo
ouvido a ordem do ancião. Decepcionado e perdido, fitei meus
companheiros que, apesar de tudo, estavam ainda alegres e
LXVIII
inscientes do ocorrido. Forcei-lhes um sorriso e disse que estava tudo
acabado. Alegraram-se em seu íntimo, crendo o oposto do que
tentava lhes informar, e, no intuito de voltar ao lar, se puseram a
preparar a embarcação. Com um suspiro de desesperança, segui-os
em silêncio.
XVIII Havia tanto em minha cabeça... O rei de Fláurin me
incumbira com uma grande missão e agora, quando finalmente
chegara ao fim dela, via-me como um joguete nas mãos de algum ser
vil. Conspirações se criavam no território fértil de minha mente
numa velocidade inquietante. Passava a indagar se Jahnor não teria
uma parte nisso tudo, ou mesmo Phéron, já que Pantagnosko sequer
pronunciara-lhe uma palavra, tendo o mesmo ainda deixado o
recinto tão cedo quanto pôde...
XIX Naquela época, muito pouco dos planos do traidor de
que Pantagnosko falara eram de meu conhecimento. De fato, mais
ainda me era obscura sua identidade. Logo, cheio de
questionamentos estéreis e tristezas incuráveis, subi a bordo da
IV
Serpente Marinha.
IV. Creio que, mesmo se
Pantagnosko gritasse-lhe o
nome do traidor, Clióphoros
não compreenderia. Somente
com um esforço vindo de dentro
é que se consegue abrir os olhos
e enxergar além do véu
enganador da opinião.
XX Quão enfadonhos não me foram os gracejos de Kato nos
três dias seguintes de viagem. Com efeito, precisei de um esforço
sobre-humano para não deixar que meus companheiros notassem a
diferença em meu estado de espírito. Dissimulei estar enjoado com a
viagem e mantive-me em meus aposentos até a terceira noite,
quando novamente os céus de Trinômia reverberaram em coriscos
vibrantes, e, açulando o furor da maré, as ondas fremiram e os ventos
cantaram, com seu sopro gélido e incessante, a morte insepulta de
nossos homens.
LXIX
Livro Quarto - Sennyl Sul
“Navega consciente neste mar.
Faz do íntimo o teu leme e
das paixões a tua vela.”
LXX
I Meus olhos se abriram lentamente; as pálpebras, pesadas
com a areia que senti cobrir-me a face. Com dificuldade, pus-me de
pé, incrédulo de haver sobrevivido. Ajeitei minhas vestes, as quais
agora se encontravam em farrapos. Todas, à exceção de uma: a longa
capa de seda azul com que me agraciara o benevolente rei Náukles,
desejoso de que o presente me concedesse a proteção de Hydros. E
eu a tive. Sem dúvida que a tive... Mas não meus companheiros,
capitão Kato, seus marujos, e Phéron, pois que a tempestade da
terceira noite da viagem de volta os lançara a uma morte insepulta
no fundo do oceano, onde jamais encontrariam a paz no reino dos
mortos.
II Havia grande tristeza em meu coração. Todavia, mais do
que nunca, o íntimo me dizia que mister era que algo fosse feito para
impedir a catástrofe que viria, para impedir o traidor incógnito e seus
engenhos traiçoeiros. E, com estes pensamentos dando-me as forças
necessárias, segui em frente, deixando para trás não mais que minhas
pegadas incertas sobre a cálida areia da praia.
I. Por algum motivo, ou
talvez ignorância, Clióphoros
furtou-se a mencionar que o
Deserto de Nara tem tal nome
devido à lenda de uma bela
mulher que, impedida de ter
aquele por quem nutria uma
paixão desmedida, lançou-se
dentro da Mão Negra, muito
antes de Ôlethros fazer de lá
sua morada, sacrificando-se a
Pyros. Ela ficou para sempre
presa no submundo, e suas
lágrimas ácidas corromperam
todos os rios subterrâneos, de
modo que vegetação alguma
pode vicejar naquela área,
valendo-se do lençol freático.
III Caminhei o que me pareceu um dia inteiro sob a fúria
incessante dos três sóis. Maior do que em qualquer outro lugar que
I
estive, no Deserto de Nara, brilham com poder os astros régios que,
na tríplice lei de seus raios, moldam o mundo, nossa querida
Trinômia.
IV Em meio a uma cortina de areia que se erguia das dunas
com o sopro do vento, vislumbrei a imagem de um homem que se me
aproximava conforme andávamos. Cada vez mais perto, enquanto
eu progressivamente ficava cada vez mais cansado. O calor parecia
LXXI
consumir-me as energias de forma assombrosa. Por meus lábios
ressacados, a respiração arfante deixava-me o encerro da boca em
frágeis suspiros. Cada vez mais fracos, e meus olhos já não viam e os
ouvidos se taparam...
V Uma comoção de gritos apressados invadiu-me os
sonhos, trazendo-me de volta ao reino material num despertar
súbito e ofegante. O quarto em que me encontrava era diferente de
tudo que até então havia visto, pois havia sido construído com barro
alaranjado preenchendo a estruturação de madeira.II Algumas
estantes podiam ser vistas nas paredes, guardando toda a sorte de
pequenas figuras de barro, as quais representavam, segundo mais
tarde vim a saber, os guardiões do deserto, os filhos de Pyros, pois eu
me achava em Sênnyl Sul.
VI Levantei-me, buscando ajuda no apoio de uma cadeira
que se encontrava ao lado da cama e em frente a uma pequena mesa,
cujas ferramentas que se encontravam em sua superfície eram
banhadas pela iluminação rubra do fim de tarde, projetada
quadrangularmente pela forma da janela pouco acima.
II. O tipo de construção a
que o autor se refere chama-se
adobe e não só é extremamente
mundana como também pouco
eficaz.
III. Por mais que isso
pudesse chocar o bardo, o
líquido lá encontrado deveria
ser puro sangue, mas não
necessariamente se tratava de
uma bebida.
VII Encontrei os poucos bens que ainda me restavam, o
bastão imantado, a capa de seda e minha mochila impermeável junto
aos grandes vasos em que descobri, para minha surpresa, uma bebida
avermelhada, tal qual o vinho, mas da qual subia-me às narinas um
olor semelhante ao de sangue fresco...III
VIII Cada vez mais surpreso e aterrorizado, juntei o que
LXXII
restava de meus pertences e minha coragem para deixar o único
recinto da casa em que me encontrava. Do lado de fora,
surpreendeu-me uma cena em muito parecida com as que vi em
minha terra natal: as pessoas do lugar se reuniam numa espécie de
praça, sentados ao redor de um pequeno palanque, de onde aquele
que me parecia ser seu líder tentava pô-los em ordem.
IX No que nossos olhos se encontraram, ele cessou sua
própria gritaria, e os demais, como que pressentindo perigo, também
se calaram.
X “Forasteiro, se és amigo, toma um lugar junto aos nossos e
atenta ao que tenho a dizer. Do contrário, deixa agora nosso povo e
agradece a Pyros por salvar-te a vida, já que a guerra com que nos
agracia impede-nos de dar-te atenção.”
IV. É triste dizer, mas
Clióphoros também não era
exatamente asseado também.
Inclusive, tinha fama entre os
nossos devido a seu odor
peculiar.
V. “Terrível”.
XI Algo em meu íntimo se gelou ao ouvir aquelas palavras,
talvez por temor do homem barbado e feito em puro músculo à
minha frente, talvez da desgraça que me acompanhara e se abatera
sobre todos que comigo se encontraram nas últimas semanas. Ainda
assim, sentei-me junto àqueles homens brutos, vestidos em peles
curtidas de animais e adornados com troféus de guerra que variavam
desde anéis de metal forjados a partir de armas inimigas, a até
pedaços dos próprios inimigos. Cada um deles era muito singular em
seus modos e idumentária, mas, sem exceção, todos fediam mais do
IV
que qualquer antro em que eu jamais estive.
XII Na hora que se seguiu, Deinôs,V o líder dos bárbaros,
LXXIII
pôs-nos a par da situação em que se encontrava seu povo. Segundo
soube então, as tribos de goblinóides e orcs que com eles dividiam o
deserto viviam em constante guerra, de acordo com o resultado da
qual eles decidiriam a supremacia sobre o território. E tal guerra
entre os clãs goblins e orcs era o que até aquele dia salvara do ocaso
aquela tribo de homens que vivia às margens do oásis de Nara, um
límpido espelho d'água cuja nascente se encontra nas cordilheiras
que limitam o reino do Sul e principiam o cantão do Oeste.
XIII Tal era a situação daquele povo até então. Viviam em
constante luta, sempre cuidando em atacar o clã de monstros que
estivesse se sobressaindo na contenda, para assim garantir que
jamais houvesse um vencedor naquela guerra sem fim. No entanto,
naquele mesmo dia um mensageiro cruzara as altas dunas de Nara,
VI
chegando por fim até Termôkhora, a cidade em que me encontrava.
Trazia consigo a mensagem de um rei ocidental, de Äschnor III,
senhor de Fláurin. A carta se lia da seguinte forma: “Bárbaros, é de
nosso conhecimento que sois responsáveis, por conta de vossa
adoração e rituais nefandos, da decomposição de Hélios Oriental.
Meu bom conselheiro me explanou a forma pela qual cultuam Pyros,
e, segundo o que me assegura, quereis trazer os sóis para nosso
mundo, aumentando, por conseguinte, a potência do senhor das
chamas. Sabei que não permitiremos tamanha aberração! Os filhos
de Lithos hão de encontrá-los no campo de batalha dentro de um
mês, e então poremos um fim nessa heresia!”.
VI. “Terra-do-calor”.
VII. “Serpente-de-fogo”.
VIII. Espécie de
sacerdote tribal incumbido de
trazer alguma espécie de
iluminação espiritual e mesmo
proteção mística aos homens
mais simples.
XIV
Num coro infernal, os homens da tribo se
manifestaram, juntamente a seu líder, para que se preparassem os
machados e os demais instrumentos de guerra, mas silenciou-os
VII
VIII
Drakópyros, o venerando xamã que, sendo um dos poucos
LXXIV
letrados presentes, acabara de ler-lhes em voz alta a carta que acima
reproduzi-vos, leitores.IX
XV O simples ato de haver erguido seu cajado, no intuito de
falar-lhes, fez com que, em poucos segundos, todos lhe concedessem
a atenção que demandava. E, então, fechando os olhos em
concentração, a eles proclamou em ágora: “Intenções ruins a mim
são claras como a luz do fogo eterno... Esta carta não nos veio do rei
flaurino, mas sim de um mago de Sênnyl Norte!...”
XVI Tomei coragem e pronunciei-me, então, pondo-lhes a
par de minha missão e das desgraças que me acompanhavam em
minha viagem. Contei-lhes, detalhadamente, a forma pela qual,
durante a noite, fomos, eu e meus companheiros de viagem,
atacados por uma tempestade descomunal em duas ocasiões
distintas. Narrei o que vi em Telogaia e o fim de Pantagnosko, que,
numa das noites de borrasca, havia combatido algum adversário
terrível que lhe arrancara todas as forças enquanto para sua caverna
nós nos dirigíamos a bordo da Serpente Marinha. E, por fim, como
vim a naufragar por ação de um novo temporal, chegando, então, à
cidade de Termôkhora de uma maneira que a mim era desconhecida.
IX. É deveras
interessante o fato de que
Clióphoros não se tenha
pronunciado em defesa do rei de
Fláurin em primeiro lugar.
Inclusive, ele não demonstra,
em momento algum,
preocupação para com o
mesmo. Sem dúvida alguma,
suas viagens acabaram por
torná-lo um tanto insensível,
ou talvez por demais
paranóico.
XVII Um homem forte e esguio ergueu-se em meio à
multidão. Mantinha parte de seu cabelo num rabo de cavalo que lhe
pendia às costas junto ao restante de seus cachos negros. Suas feições
eram duras e bronzeadas pelo sol do deserto, mas havia em seu
semblante algo que inspiraria a confiança na maioria dos mortais,
certamente devido à justeza com que se comportava. Disse-me que
fora ele quem me encontrara nas proximidades do mar e carregara
LXXV
até sua cidade para que lá me recuperasse. Agradeci-lhe
brevemente, pois que a ocasião não me permitia expressar toda a
gratidão que por ele tinha. Seu nome, como mais tarde vim a saber,
era Dikaiólykos,X e era responsável pela patrulha das redondezas da
cidade.
XIX “Forasteiro,” continuou Drakópyros, “se o que dizes é
verdade e creio que o é , mais certo ainda me parece o presságio que
tive quanto a esta carta. Os magos, sem dúvida, enviaram-na com a
esperança de que, atiçados por suas mentiras, déssemos guerra aos
homens ocidentais. Tolos que são, subestimaram-nos!... Deverão,
agora, pagar por isso, e não pouco. E tu, Clióphoros, terás parte nisto,
pois vejo que tens o dom da palavra, talento necessário para pôr em
prática o plano que agora tenho em mente...”.
XX Desta arte, fui levado à casa de Deinôs, a qual, para
minha surpresa, não era, em tamanho, de forma alguma maior do
que as demais. Lá, Drakópyros nos contou o que planejara. Eu,
homem vário que era, deveria adentrar o terreno proibido de Sênnyl
Norte e alcançar a alta torre do Lycaeum, onde haveria de encontrar
o traidor. Para tanto, fazendo uso de seus chocalhos e de uma cantiga
ancestral, o velho xamã preparou um ritual que faria com que a carta
retornasse àquele que a escrevera tão logo estivesse em suas
proximidades. Uma vez revelado o culpado, eu deveria expô-lo a
Fatus, o arquimago, e este certamente tomaria as medidas
necessárias para puni-lo.
X. “Lobo-justo”.
XXII Agradou-me, de certo modo, a simplicidade e a forma
direta pela qual se expressam os homens de Termôkhora, pois que a
LXXVI
reunião que tivemos naquele dia não durou mais do que meia hora,
tempo suficiente para que Drakópyros me expusesse seu plano e
diretrizes básicas.
XXIII Desta forma, os três deixamos a casa do líder dos
bárbaros de Termôkhora, Deinôs, o qual, prontamente, pôs-se no
intento de acalmar seus homens, no que teve pouco sucesso
infelizmente.
XXIV
Contudo, uma dádiva de Pyros, como a
denominaram, logo alcançou aqueles homens bronzeados e sua
cidade à beira do oásis: despontando acima das altas dunas que nos
delimitavam o horizonte, uma legião de criaturas se nos aproximava.
Um grito de júbilo alcançou os céus de Trinômia enquanto os
homens percorriam as vielas em direção às suas casas, trazendo, ao
voltarem, seu armamento de guerra, o qual era constituído,
basicamente, de grandes machados adornados com pequenos ossos
presos por fios de cabelo. À minha volta, o movimento incessante
paralisou-me, de modo que pouco pude fazer além de observar-lhes
os modos peculiares.
XXV Chamou-me, sem dúvida, a atenção mais do que
qualquer outro um homem ingente, feito todo em músculo, cujo
corpo semi-nu estava coberto por tintura de guerra em desenhos
ameaçadores. Ao redor dele, os outros se organizaram, e, logo, pude
XI
constatar que deveria ser seu general. Ktêinon era seu nome.
Faltam-me palavras para descrever o terror que seus olhos
inspiravam. Com efeito, era um homem sem igual.
XI. “Que mata”.
LXXVII
XXVI Dando-me um tapinha encorajador às costas,
Deinôs demandou-me se era conhecedor das artes da guerra, ao que
lhe respondi não serem elas a mim, de forma alguma, estranhas.
Porém, expliquei-lhe que minha participação no combate não se
dava no brandir de armas, mas no insuflar de ânimo e coragem no
coração dos homens!... Riu-se de mim, Deinôs, dizendo-me que, de
todos os povos de Trinômia, o dele, certamente, não era o que
necessitava de tal tipo de encorajamento quando na guerra.
XXVII Sorri-lhe um tanto envergonhado, mas, então,
nossa conversa foi interrompida pelo silêncio cortante dos homens,
cujos olhos estavam fixados nas dunas do leste. No ápice destas,
coroado por um pôr-do-sol sangüíneo, um cavaleiro negro podia ser
visto. Às suas costas, esvoaçava uma capa rubra e flamejante. De seu
elmo escuro, nas laterais erguiam-se duas pequenas asas, tangendolhe as aberturas da orelhas. Sua placa peitoral trazia uma insígnia
conhecida e temida em toda Trinômia: uma chama cujo interior era
vazio, negro como a armadura em que estava estampada. Havia um
sentido duplo para tal simbologia. O primeiro dizia respeito ao fato
de Mórdax, quando morto, ter deixado a Chama Eterna, artefato
ancestral e dádiva de Pyros, longe de sua terra natal. O segundo e
mais terrível sentido da chama vazia era o de anunciar aos que o viam
a falta de sentimento, de âmago, daquele que ostentava o ícone
máximo do mal, para que soubessem que ele, Ôlethros, era o arauto
de Pyros.
XXVIII Naquele momento, malgrado as palavras de
Deinôs, senti que minha lira seria, por fim, uma necessidade, pois
que o povo a meu redor quedava mudo e desesperançoso conforme a
horda de anões do fogo marchava lentamente duna abaixo, movidos
LXXVIII
pelo ritmo fúnebre de tambores de guerra que faziam os próprios
céus, prenunciadores da matança em seu vermelho vivo, tremessem
em medo e horror.
XXIX Voltando a si, o líder de Termôkhora principiou a dar
suas ordens, fazendo com que os seus se organizassem ao redor da
cidade, tal qual uma barreira humana, enquanto eu animava o
coração dos homens com a canção A guerra no momento em que
esperamos, a mim ensinada pelo antigo bardo Áidokles,XII
conterrâneo e tutor querido.
A guerra no momento em que esperamos
A guerra no momento em que esperamos,
Os pés plantados firmes sobre o solo,
Os olhos no inimigo;
Da guerra a batida dos tambores
É una com o sangue que nos move,
Que em nossas veias ferve.
À frente, aquele que há de nos dar glória
Quando o aço em fúria expor seu sangue ao mundo
E ao chão tombar inerme.
Atrás, o povo que em nós se fia,
Imaculado está como há de estar
Se bravos nós lutarmos.
XII. “Glória-do-canto”.
LXXIX
XXX Nosso esforço combinado logo surtiu efeito e os
valorosos homens de Termôkhora tornaram ínfimos os tambores dos
anões vermelhos conforme vibravam seus machados contra os
escudos, o alto alarido aos céus subindo.
XXXI Com um urro desmedido, lançaram-se os dois lados
quando a distância que os separavam podia ser percorrida em um
minuto de corrida. Um minuto que separava vida e morte para
muitos. Um minuto que significava o último minuto para aqueles
que naquele dia tombaram. Alguns dizem que pressentimos nossa
morte quando a enfrentamos frente-a-frente. Os que a pressentiram
naquele dia deram tudo de si em seus gritos de guerra, fazendo
daquele minuto, num coro horríssono, seu canto de morte e seu
próprio encômio na glória vindoura.
XXXII Chocaram-se num espetáculo ensurdecedor, metal
contra metal, carne contra carne, sangue banhando a cálida areia de
Nara. O som de ossos se partindo podia ser ouvido de longe, seguido
pelo grito de terror daqueles que perdiam suas vidas. Os que
tombavam cobriam o chão tal qual um horrendo tapete, sobre o qual
se erguiam os sobreviventes, e, ainda que sem se aperceberem,
enviavam a Lithos, ao pisotearem-nos, aqueles que se encontravam,
no chão, incapacitados de se levantarem.
XXXIII Deinôs e Ktêinon lutavam lado a lado como que
possuídos pelo espírito da guerra. Suas armas cortavam ar e carne
com a mesma facilidade com que seus movimentos rápidos e precisos
eram desempenhados. Ao redor de cada um deles, tendo passado
menos de cinco minutos, havia ao menos uma dúzia dos temidos
LXXX
anões vermelhos, os legionários de Ôlethros e protetores de sua
torre. Ele, por sua vez, o soberano do deserto, descia em trote sereno
e inabalável, dirigindo-se ao lugar em que lutava Ktêinon.
XXXIV Os dois se encontraram pouco depois, quando já
batiam em retirada os anões vermelhos, perseguidos por aqueles de
Termôkhora que ainda tinha energias para tanto. O Senhor da
Destruição puxou as rédeas de Nyx,XIII sua égua negra, cujos olhos
vermelhos amedrontam até o mais corajoso dos homens.
XXXV Ktêinon, ofegante e banhado em sangue, manteve
seus pés firmes no solo, o machado de duas mãos, pelo qual era
conhecido, seguro firme em suas mãos. Lutava não apenas com o
ímpeto daquele que protege os seus do inimigo, mas no frenesi dos
que amam o combate e dele fazem sua existência.
XXXVI Lento como a própria Morte ao se aproximar da
vítima, Ôlethros desceu de sua montaria, desviando do caminho a
longa capa flamejante enquanto o fazia. Já de pé, desferiu um golpe
inverso com o punho esquerdo para derrubar um infeliz que o tentara
surpreender pelas costas, e, com a mesma placidez de movimentos,
desembainhou Thanásimos,XIV o machado negro que trazia às costas
e, então, aproximou-se lentamente...
XIII. “Noite”.
XIV. “Que traz a morte”.
O machado de Ôlethros foi
forjado a partir de uma costela
de Mórdax. É-me, no entanto,
desconhecida a maneira pela
qual ele foi capaz de remover a
costela de uma estátua.
XXXVII Ktêinon rasgou os ares na fúria com que se lançou
sobre o Senhor da Destruição. Seu machado, num meio arco que
traçou de baixo acima, partiu a chama vazia de Ôlethros em dois,
incutindo-lhe um corte profundo na carne e lançando-o uma dezena
LXXXI
de metros para longe.
XXXVIII Em alívio, surpresa e júbilo, as mulheres e
crianças gritaram, rindo-se daquele que, com toda sua empáfia,
havia sido derrubado por um bárbaro.
XXXIX Ktêinon já examinava, com um amplo sorriso, seu
suposto troféu de guerra, a égua negra, quando Ôlethros voltou a se
mover. Levantava-se tão lentamente como andava.
XL O bárbaro, incrédulo e furioso, gritou de ódio conforme
lançou-se uma vez mais sobre o homem armadurado.
XLI Foi recebido, ainda de joelhos, por Ôlethros, que
desferiu um golpe à frente com sua manopla, cravando-lhe as garras
no peito. Por Lithos, juro-te, príncipe, que vi Ktêinon fenecer ali
mesmo, ficando pálido e fraco conforme sua energia era transferida,
no sangue que jorrava sobre a armadura, para Ôlethros, o arauto do
mal.
XLII Deinôs tentou ainda impedi-lo, com um berro
desesperado, mas foi jogado para longe com outro golpe inverso de
Ôlethros.
XLIII Quedamos imóveis enquanto o cavaleiro negro,
tardonho como sempre, montava novamente e partia solitário. E,
LXXXII
mesmo que todo seu batalhão de anões vermelhos tivesse sido
aniquilado pelos valorosos homens de Termôkhora, ainda assim, a
tristeza reinava suprema sobre os bárbaros do oásis de Nara.
XLIV Em silêncio, separamos os cadáveres, preparando os
nossos para o funeral costumeiro em Sênnyl Sul. Durante os dois dias
que se seguiram, as mulheres choraram suas mortes. Ao final da
segunda noite, Deinôs fez um breve discurso acerca da honra dos que
morreram, e, conforme me havia requisitado pouco antes, eu canteilhes a Oração Fúnebre enquanto seus corpos eram incensados na
glória de Pyros, para, só então, encontrarem o descanso junto ao solo
onde Lithos demora.
Oração Fúnebre
Vós que lutastes no campo de guerra onde Pyros demora,
Eu vos saúdo, pois glória eterna alcançastes em morte.
Estes de que hoje nós nos despedimos viver hão de sempre,
E não por terem aqui perecidos em prol de nós todos,
Mas por se terem dispostos no íntimo, bravos que eram,
A abraçarem a morte se isto forçoso assim fosse.
Hoje, aqui, não daremos à terra o corpo de homens,
E, sim, daremos de nós uma parte nos nossos premortos.
Que nós possamos viver à altura de vosso exemplo,
Nossos heróis, protetores guerreiros da sacra Termôkhora.
LXXXIII
XLV Durante os dois dias de luto, pude assimilar alguns dos
costumes daqueles homens. Soube que, ao atingirem a maioridade,
devem deixar a cidade e desafiar para um duelo, no qual se podem
valer apenas de seus punhos, algum dos trolls que vivem, além do
oásis, a noroeste de Termôkhora. Se sobreviverem, devem trazer de
volta as garras da criatura, e estas lhe adornarão o machado que
receberá de seus pais para brandi-lo na glória de Pyros.
XLVI Quando crianças, vivem como animais. Com efeito,
os lobos do deserto nutrem grande simpatia por aqueles homens e
lhes toleram a companhia, ficando, mesmo, gratos por ela.
Drakópyros disse-me que com os lobos aprendem os jovens tudo de
que necessitam na vida adulta: a caçar, a respeitar o líder, a proteger a
matilha acima de tudo, e a dividir o que descobrem.
XLVII Pareceram-me deveras sábias estas lições, de modo
que passei a olhar com outros olhos aqueles homens incomuns e sua
sociedade.
XLVIII As mulheres são consideradas sagradas em
Termôkhora e são protegidas como tais. Ao contrário do que
acontece em meu país, onde as mulheres têm direitos iguais e
possibilidade de lutar, em Sênnyl Sul elas são reservadas ao âmbito
do lar. Apesar de terem muitos filhos, a grande maioria deles acaba,
durante os muitos combates, perecendo, de modo que os de
Termôkhora contam pouco mais do que quinhentos habitantes.
XLIX
Na primeira noite que passei em Nara, pedi a
LXXXIV
Drakópyros que me contasse alguma das histórias de seu povo. Em
resposta, narrou-me diversas lendas, das quais uma pareceu-me
fenomenal. Por isto mesmo, passei-a em verso, a fim de que não se
perdesse, a história que conta a Origem de Ôlethros.XV
Origem de Ôlethros
5
10
15
20
XV. A origem de Ôlethros
segundo documentada por
Clióphoros é, no mínimo,
romântica e simplista. Pareceme que foi forjada pelo xamã de
Termôkhora para que a culpa
pela existência de um novo
conquistador recaísse sobre os
orientais, na figura de Matsen.
25
Musa, reconta-me a época infanda que outrora viveram
Os nossos antepassados quando Ôlethros ímpio nasceu.
Diz-me quem foram seus pais e a história dos dois me inspira.
Dentro do templo de Pyros na sacra cidade, Termôkhora,
Alta e esbelta, uma sacerdotisa belíssima havia,
Sempre vestida em sedas vermelhas que ao vento esvoaçavam,
Como se o corpo perfeito estivesse-lhe em chamas ardentes.
Era chamada de Kháris, pois fora uma graça de Pyros
Que lhe salvara a vida ainda no ventre materno.
Quando voltava sua mãe para casa ao final de uma tarde,
Eis que lhe surge, saída das dunas de areia, uma serpe,
Dorso sangüíneo e vil como todas as crias da noite.
Dando-lhe o bote, lançou-se em rumo à mãe e a Kháris,
Mas, antes que ela pudesse erguer-se do solo de Nara,
Fê-la em chamas o magno Pyros, titã irrepreensível,
Desta arte, à mãe e a Kháris salvando de morte inglória.
No ano em que a jovem completa seu décimo nono verão,
Apaixonou-se por ela um homem que há pouco chegara
De muito longe no Oriente, e abrigo hospital recebera,
Tendo cabido a Kháris prover-lhe do que carecesse.
Por três semanas trocaram os dois as palavras afáveis
Que aos corações dos amantes somente se dão a surgir.
Olhos nos olhos se olhavam com grande ternura e respeito,
E, ainda que Kháris sentisse o peso da culpa no outro,
O íntimo lhe inspirava paixões sobre-humanas por ele,
Este valente e heróico varão do Oriente, Matsen.
LXXXV
30
35
40
45
50
E eles se amaram de forma jamais vista antes no mundo,
Pois que era um misto de irrefreável paixão e calor
E o mais puro enlace de almas no amor comedidas.
Força era que isto jamais agradasse ao lorde das chamas,
O qual, ao ver em sua filha o rebento de um homem do Oriente,
Muito se enfureceu em seu íntimo avassalador.
Manifestando-se, então, aos amantes lhes disse em cólera:
"Amaldiçôo-te, Kháris, por tu te unires com cães,
E as crianças que trazes no ventre eu tomo de ti.
Só lhe as devolverei quando o cão que tu chamas de esposo
Instituir as virtudes de Pyros no povo de Hydros,
Desta maneira, fazendo-se digno para meus olhos."
E, assim, Matsen retornou ao país em que ele nascera,
Para trazer-lhes a guerra e a discórdia que a todos aparta.
E, então, teria a todos do Oriente Matsen corrompido,
Não lhes houvesse ocultado no ventre materno mãe Gaia,
Que aguardava, cuidosa, o ataque dos filhos de Ápeiron.
Volta Matsen à cidade sagrada no solo de Nara,
Entristecido com sua derrota e a falha com Pyros,
Que lhe surgiu logo em meio às chamas dizendo em cólera:
"Tu me falhaste, Matsen, e por isso mesmo devolvo-te os filhos,
Para que vivam inglórios no mundo que tu me criaste.
São teus os filhos, mas levam no íntimo a cólera minha
E dar-te-ão mais vergonha do que já as tem em teu peito."
L Quando nasceu o terceiro dia após o combate, prepareime para partir em direção a Sênnyl Norte, assim como havia
planejado Drakópyros, o xamã da cidade de Termôkhora.
LI
Com certo pesar, deixei aqueles homens com cuja
LXXXVI
companhia já começara a me habituar, para dirigir-me a norte e além
do Deserto de Nara. A fim de guiar-me, por sugestão de Deinôs,
Dikaiólykos viajou comigo em meio as dunas que separam o Oásis de
Nara do final do deserto.
LII Nossa jornada durou uma semana, longa, sedenta,
escaldante... No terceiro dia de viagem, após subirmos até o cume de
uma duna gigantesca, pudemos avistar a Mão Negra, o palácio de
Ôlethros, todo ele erguido em rocha magmática, no formato de um
punho semi-aberto, e de cujo cume lava ardente pulsa eternamente,
escorrendo em sua extensão e criando um círculo de fogo que
delimita sua fortaleza. Ao sopé de seu castelo, vivem as tribos de
anões vermelhos e homens-lagarto que o protegem. Mais acima,
sobrevoando as cinco torres, tivemos a terrível visão de pesadelos
alados, criaturas que se assemelham a cavalos, mas em cujas patas e
crina a chama de Pyros pode ser vista.
LIII Mais que depressa deixamos o lugar, cuidando de não
nos avistarem seus guardiões.
LIV Algo de extraordinário, com efeito, ocorreu na manhã
seguinte, quando acordamos e demos conta de que, sob o solo
arenoso em que havíamos montado acampamento, uma estrutura
repleta de runas se escondia. No intento de descobrir a natureza da
construção perdida, removemos parte da areia que a cobria, mas meu
guia, tendo visto um certo signo, pediu que me ajudasse a desfazer o
que havíamos acabado de concluir. Ainda que um tanto com dúvida,
auxiliei-o a recobrir a estrutura.
LXXXVII
LV Mais tarde, quando já nos encontrávamos longe do
lugar, contou-me Dikaiólykos a Lenda de Klauma e Guélos,XVI a qual
me espantou de tal modo que soube que deveria transformá-la em
verso.
Lenda de Klauma e Guélos
Sobre a cálida areia de Nara,
Houve um tempo em que Klauma errara.
Sempre que alguém a cidade deixava,
Eis que de um vulto o choro se ouvia.
E, se partisse a buscar quem chorava,
Nunca este alguém para os seus voltaria.
Pela cidade o rumor se ouvia
De que um monstro ali perto vivia.
Muito espantado com este relato,
Guélos se pôs a verdade a buscar
Pois ele cria que atrás destes fatos,
Outros ainda ele iria encontrar.
XVI. Respectivamente,
“Choro” e “Sorriso”. Sabendose a origem desses nomes, podese ver como a lenda deixa de ser
um conto sem propósito para
tornar-se uma história
modelar, cuja moral servia para
dar alguma educação aos
jovens de Termôkhora.
Desta arte, então, ele parte a explorar.
E, logo mais, pôde um choro escutar,
Que parecia advir do horizonte,
Vento e areia turvando a visão.
Aproximou-se cuidoso do monte,
Onde, chorando, viu uma aberração.
Ah, que ao contrário de tudo até então
Guélos sorriu-lhe em consideração.
A criatura, em raios e gritos,
LXXXVIII
Se transmudou na donzela que antes
Fora forçada num hórrido rito
A dar seu corpo em troca humilhante.
Foram-se, então, tendo rumo ao distante,
Pois eram um ao tornarem-se amantes.
Estando o feitiço do monstro quebrado,
Vítima foi do que ele inventara.
E há de ficar para sempre trancado
Sob a cálida areia de Nara.
LVI Ao final do sétimo dia, chegamos ao limite do deserto,
onde, por detrás de uma duna, voltavam a florescer as campinas.
Todavia, mais do que em Sênnyl Leste, era aqui fechada a mata, de
forma a semelhar-se a uma parede verde, separando o deserto do
restante do mundo.
LVII
Despedi-me de Dikaiólykos e agradeci-lhe
imensamente, tanto por ter-me salvo a vida depois do naufrágio,
quanto por ter-me guiado em segurança e impedido que minha
curiosidade me levasse à ruína.
XVII. Quando
interrogado a esse respeito,
Clióphoros confessou que, na
verdade, se esquecera de
demandar o nome da floresta a
seus habitantes. No entanto,
para não ter de fazer tal
confissão ao rei, ele mascara o
fato com mais uma de suas
histórias apelativas.
LVIII Deste modo, após ter volvido o olhar para ver meu
guia aguardando que eu partisse, respirei fundo e comecei a explorar
a Floresta de Gaia, como assim proponho chamá-la, já que seus
XVII
habitantes apenas a chamam de “lar”.
LXXXIX
Livro Quinto - Floresta de Gaia
“A voz de dentro é a voz primeva.”
XC
I Meus primeiros passos sobre aquele solo recoberto por
folhas secas e raízes foram tão incertos quanto minha própria
vontade de seguir adiante. Através da cúpula majestosa perfeita nas
copas das árvores, os raios de sol fluíam áureos e vibrantes,
produzindo feixes de luz cá e lá, revestindo de ouro as samambaias e
as hortaliças que se espraiavam ao longo da trilha num festival de
cores e tons.
II Aos poucos, fui reganhando minha coragem, já tão
abalada pela perda de amigos queridos e pelos muitos insucessos de
minha missão, e, portanto, continuei minha caminhada. Sob meus
pés alguns galhos velhos estalavam e, no verdejante véu acima, as
folhas se moviam reticentes com o vento, tal qual as ondas e a maré,
num farfalhar uníssono.
III A trilha me levou floresta adentro, serpenteando entre
grandes rochas e árvores tão magnas e antigas quanto a própria terra
que as suportava. Um pequeno riacho que brotava acima de uma
gruta cruzou meu caminho em seu leito cristalino, onde pequenas
pedras preciosas cintilavam com os raios fúlgidos do sol.
IV Resolvi que, antes de atravessar o riacho, descansaria
um pouco, recostado nas pedras do exterior da gruta. Aliviei-me as
costas e os ombros, dispondo minha mochila sobre as pedras e
acamando-me a cabeça nela própria.
V Um longo suspiro meu se foi ao vento junto ao som do
córrego e a luz serena dos astros régios. Fechei os olhos com um
XCI
sorriso, pois que a beleza do lugar aos poucos conferia-me uma paz
nunca antes alcançada.
VI Um rosto redondo e curioso se encontrava à minha
frente quando abri meus olhos uma vez mais e, por muito pouco, não
me uni a Lithos, premorto de espanto. A criatura à minha frente,
conforme percebi nos segundos seguintes, em que me acalmava, era
incrivelmente baixa, mesmo quando comparada aos anões de minha
terra pátria. Todavia, ao contrário dos anões, ele não era de forma
alguma atarracado, e, sim, parecia viver numa eterna juventude.I
VII Esbocei algumas palavras de saudação, ao que fui
respondido em uma língua há muito esquecida e perdida da memória
de quase todos os homens: a língua primeva da era em que Gaia
reinava suprema no solo de Sênnyl.II Agradeci, silenciosamente, a
meu mestre Áidokles por me haver treinado nas artes e linguagens
ancestrais.
I. Uma criatura baixa
como uma criança
provavelmente é uma criança.
Contudo, todo este livro quinto
é de teor extremamente dúbio.
II. Durante sua vida,
Clióphoros jamais se
manifestou a respeito desta
língua primeva. Segundo
Fatus, mesmo quando lhe
perguntou a este respeito, ele se
negou a pronunciar-se.
VIII Ainda que um tanto perplexo, conversei com o
pequenino durante longo tempo, em que ele me explicou, sempre
sorrindo e amistoso, que havia anos que não via alguém das gentes
grandes. Segundo o que me disse, seu povo jamais se mostrava a
quem quer que adentrasse a floresta, vindo do lado de fora. Todavia,
de longe avistara-me a lira que trazia acoplada à mochila de viagem.
Animadíssimo com o instrumento, Miro, como se me apresentou,
instou-me que lhe tocasse uma canção de amor acompanhado da
lira. Ri-me de seu pedido, no que ele prontamente se riu também, e
confessou-me estar apaixonado por uma pequenina de seu povo.
Atendi-lhe o pedido, cantando e tocando o Soneto de amor
XCII
bucólico.
Soneto de amor bucólico
Em meio à relva há muito adormecida,
A minha amada, em visos de amor,
Suspira em seu leito todo em flor
E, na floresta dorme esquecida.
Os faunos, logo após o sol se pôr,
À sua fronte lânguida e abatida,
Com sonhos e grinaldas mui floridas,
Lhe hão de conferir o antigo ardor.
Mas mesmo que a vistam de princesa,
Tal qual um dia ela se mostrou,
Ainda falta vida em seu peito.
E o beijo que lhe deito é frio. Acesa
A vela estava até que apagou
Um vento sem destino nem respeito.
IX
Meu pequeno amigo mostrou-se ainda mais
entusiasmado, e, quando terminei a canção, Miro insistiu, tomandome a mão, que eu o acompanhasse até a Grande Árvore.
X Assim como vim a saber durante nossa caminhada por
demais informativa, os habitantes da Floresta de Gaia não buscam só
um tipo de morada, e, sim, espalham-se pela floresta, ora sobre as
árvores, ora dentro delas, ora em uma gruta, ora em algum buraco em
XCIII
meio às raízes, e em tantos outros e fascinantes lugares que a floresta
lhes oferta.
XI Após alguns minutos seguindo uma trilha escondida,
alcançamos, removendo algumas trepadeiras que nos impediam a
passagem, um lugar como nenhum outro que meus olhos haviam
visto até então: no centro de um jardim florido, rodeada por grandes
cogumelos que serviam de bancos, uma árvore antiqüíssima se erguia
majestosa, e, ao seu redor, pude ver algumas crianças dos pequeninos
correndo alegres ao longo dos ladrilhos azuis que, como pontes sobre
aquele mar verdejante, serviam de caminho para quem ali trilhava.
XII Sorri um tanto pasmo e segui em frente sem muito
pensar. Logo quando dei meu primeiro passo, à minha frente saltou
um ingente e fortíssimo ser carregando uma lança que inspirava
grande respeito e temor. Da cintura para cima, era homem assim
como eu, ainda que muito mais forte e belo, diga-se de passagem.
III
Para baixo, era feito à semelhança de um cavalo de batalha.
XIII Enquanto eu quedava mudo em espanto e admiração,
meu pequeno amigo acalmou a sentinela, dizendo-lhe que eu era
diferente das outras gentes grandes, pois a voz de Gaia saía de minha
“caixa de cordas mágica”, forma pela qual ele intitulou a lira que me
acompanhava nas viagens pelos reinos.
III. A criatura
mencionada é o mitológico
centauro, cujas origens
remontariam a uma época
anterior ainda a dos humanos
criados por Gaia.
XIV A expressão do centauro logo transmudou-se num
sorriso de boas-vindas, e ele saudou-me com um gesto amigável, ao
que eu prontamente lhe retribuí de igual maneira.
XCIV
XV Limpando o suor de meu semblante perturbado mas
ainda maravilhado com a beleza da floresta , sentei-me com Miro nos
grandes cogumelos que cercavam a árvore central. Uma vez mais,
meu amiguinho pediu-me que tocasse algo para eles. Aquiesci com
um sorriso e, tomando da lira, improvisei a canção De Gaia os filhos
mais venustos.
De Gaia os filhos mais venustos
De Gaia os filhos mais venustos
Um dia eu vi dançarem;
Da lira quis a todo custo
As cordas ver vibrarem
O nobre Miro, pequenino.
E em coro então cantamos
A Gaia-mãe um belo hino
E até tarde dançamos.
Canta e dança e bebe o vinho!
Ergue a taça até o vizinho!
Logo o dia vai raiar!
Não podemos parar!
XVI Conforme eu tecia meu canto, surgiam-me ao redor,
saídas das flores e samambaias, pequenas fadinhas aéreas que,
dançando diáfanas pelo ar, moviam-se no ritmo da música.
Igualmente graciosas, ninfas ergueram-se do pequeno lago da face
leste e juntaram-se às pequenas fadas. Sátiros cantavam em coro e
acompanhavam-me com suas flautas. Nos céus os pássaros cantaram
e todos os pequenos e grandes animais da floresta para lá correram
ávidos por ouvir aquilo que, como então compreendi, para eles era a
XCV
voz de Gaia.
XVII Ao final de minha canção, Miro exclamou a todos que
eu havia de ser o escolhido de Gaia, aquele que traria vida
novamente à Grande Árvore e convocaria Nédyme, com o que, para
meu total espanto, todos os outros presentes concordaram.IV
XVIII Naquele momento, como que por mágica, à mente
me veio uma canção que, depois de incorporada nas lições de
Áidokles, eu jamais cantara. Algo que ele me dissera não ser para os
ouvidos dos mortais e que eu só haveria de cantá-la uma vez antes de
completamente esquecê-la de minha mente, pois suas palavras
reverberariam através dos planos e se haveriam de confundir com o
próprio movimento do engenho do mundo a Canção do Ciclo Eterno,
a qual, por conta disto mesmo que, tristemente, acabo de explicar-te,
meu caro príncipe, não me foi possível transcrever em meus diários,
pois há muito se apagou dos campos de minha memória.
XIX Numa orquestra celeste, todos os pequeninos, as
ninfas, os centauros, os sátiros, as fadas, e mais uma infinidade de
seres aos quais eu não saberia denominar, cantamos então em honra
a Gaia com um ímpeto jamais visto antes.
IV. A jactância de
Clióphoros parece não ter fim, a
ponto de ele se crer o escolhido
para reverter a condição de
torpor de forças tão antigas.os.
XX Foi então que algo de extraordinário aconteceu:
conforme a terra fremia, movida por nossa canção no prenúncio do
renascimento de uma força ancestral, a Grande Árvore aos poucos
se abriu, tal qual um casulo, e dela um pássaro ingente irrompeu,
feito todo em cores rubras e vivas, como a terra de que nascera,
XCVI
dando a nós a impressão de que estava em chamas. E, assim,
ressurgiu Nédyme,V filha de Gaia, a fênix titânica. E, em seu dorso
flamejante, eu voei através dos céus de Trinômia e em meio às
nuvens, por sobre a terra e ao lado dos três sóis no último dos dias em
que se encontravam presentes no céu, mantendo o que restava da
ordem e da harmonia em sua tríplice lei.VI
XXI Para Sênnyl Norte, então eu fui, acreditando no íntimo
que poderia mudar o curso do destino e salvar a todos da desgraça
que se abateria sobre nós. Quando se é jovem, o coração fala alto e
parece-nos exigir ações de igual mesura. Felizes são aqueles a quem
os eternos concedem, ao nascerem, um ânimo semelho a sua
capacidade de ação, pois jamais estes se encontram empreendendo
tarefas maiores do que aquelas encontradas no quinhão que lhes
coubera.
XXII A mim, entretanto, sobrepujavam-me os ombros o
peso do mundo e o destino de tantos quantos nele vivem.
XXIII Despedi-me de meus novos amigos, tendo vindo
deles a sugestão de que, no dorso de Nédyme, cruzasse os céus rumo a
Sênnyl Norte quando lhes expus minha missão na manhã seguinte.
V. “Agradável”, “Doce”.
VI. Aqueles que se
encontravam dentro da torre
principal no dia de sua
chegada, dentre os quais eu me
incluo, viram o bardo alcançar
a terra de Stratos montado
sobre um grilo gigante.
XXIV Mal sabia eu que as alegrias daquele dia precederiam
tristezas jamais sentidas por meu íntimo sofredor. Portanto, lembrate sempre, jovem príncipe, de que a inconstância da sorte é comum a
todos os homens, e que cada alegria deve ser vivida como a última.
XCVII
Livro Sexto - Sennyl Norte
“Olha a tua volta e aprende.
Deixa teus olhos verem o mundo
sempre como se pela primeira vez.”
XCVIII
I Em meio às nuvens gélidas que transladam, feito anéis de
treva vaporosa, os montes GnôramonI vi surgirem as torres magnas
em que habitam os nativos de Sênnyl Norte, ao longo do complexo
de pontes que as interligam num reforçado anel de metal e gelo. Com
efeito, por toda a extensão de suas construções, o acúmulo de neve
formara sólidas dentições, conferindo uma atmosfera ainda mais
imponente à compleição marfínea dos montes.
II Conforme Nédyme aterrissava junto a uma área afastada,
eu me deleitava com os detalhes arquitetônicos de cada uma
daquelas estruturas, pois que, dentre elas, nenhuma era semelhante
a qualquer das outras, sendo sempre única e excêntrica em sua
singularidade. No entanto, tinham em comum as cores azuladas,
brancas e os tons purpúreos com que haviam sido ornamentadas, em
detalhes de curvas surpreendentes, ao longo das vértebras que lhes
sustentavam as imensas estaturas. Em seus ápices, eu podia ver como
se revolviam, saídos das brumas de plúmbeo intenso encontradas
mais acima, finos coriscos, serpenteando pelas formas retorcidas das
várias torres.II
I. O estranho nome pelo
qual Clióphoros, por algum
motivo, insistia em apelidar a
cordilheira de Lúnula é de
origem obscura, mas creio
significar “Vista-sapiente”.
II. Ao contrário do que
Clióphoros afirma, no dia de
sua chegada havia uma
temperatura agradável e os sóis
brilhavam no céu sem que
nuvem alguma os perturbasse.
III. “Nuvens”.
III Os céus, então, se turvaram e as nuvens ganharam vida
no que relâmpagos se manifestavam sobre as torres de Gnôramon.
Minha montaria apressou sua partida ao ouvir-se o estrondo
desmedido que escapara dos gélidos pulmões de Nêphelai,III o imenso
dragão branco que rondava os céus tenebrosos de Sênnyl Norte,
pronunciando, em seu retorno, o caos que reinaria nesta nova era.
IV Sob meus pés fremia a terra a cada urro da criatura, e as
brumas a meu redor se avultavam num torvelinho escomunal que se
XCIX
erguia até o cume do mundo. A neve sobre as torres aos poucos
despencava e mesmo os montes se esfaziam à medida que o tremor se
intensificava, forçando-me a prostrar-me de joelhos para louvar o
poder titânico que naquele momento demonstrava toda sua força,
erguendo do solo de Trinômia um país inteiro e dando ao mundo a
última visão de Sênnyl Norte antes que ela desaparecesse por
completo em meio às brumas celestes mais distantes.
V Acordei algum tempo depois quase que completamente
soterrado pela neve. Minha mão ergueu-se solitária de dentro do
palor infértil da neve, puxando-me para fora daquela cova frígida e
inglória. Sentei-me junto ao monte, recompondo-me lentamente,
enquanto buscava em minha mochila um frasco de vinho com que
me presentearam os habitantes da Floresta de Gaia. Bendita bebida,
sem dúvida, pois graças a ela meus pés voltaram à vida, levando-me
montanha acima.
VI Malgrado o terrível tremor se haver dissipado, mais do
que antes as nuvens sobre mim se concentravam como garras negras
buscando dilacerar o mais íntimo de meu ser. Sem ter coragem para
enfrentá-las com o olhar, eu simplesmente continuei em meu
intento, aos poucos escalando os montes, cuja constituição abalada
pelos tremores facilitou-me a empresa.
VII Senti novamente a terra fremir e, num movimento
rápido, lancei-me para dentro de uma fenda na montanha. Logo
atrás de mim, uma enorme avalanche desceu os montes, por muito
pouco não me levando consigo em seu ventre.
C
VIII Agradeci a Lithos pela ajuda enquanto retomava o
fôlego. Minhas preces foram interrompidas por uma voz calma e
dona de grande sabedoria que me saudava. Volvi o olhar para trás de
mim e lá encontrei uma criatura de que há muito tempo não ouvia
falar. Seu aspecto era sereno como a montanha onde Lithos demora.
Sua pele era plúmbea como a rocha e seus olhos claros como o céu.
Era um devoniano, a raça mais devota aos titãs e ao estudo dos
elementos. São, com efeito, os únicos seres a venerar todos as forças
primordiais de Trinômia.
IX Fiz-lhe uma grande reverência ao que ele prontamente
respondeu de igual maneira. Examinei-o cuidadosamente, curioso
com a aparência incomum que sua pele frondosa lhe conferia.
X “Bem que gostaria de ficar e conversar contigo, a fim de
aprender a cultura de teu povo, bom devoniano. Mas o tempo de
minha missão urge e devo enfrentar perigos para os quais sem dúvida
não estou preparado...”.
XI Ele sorriu novamente e me disse, ajudando-me a voltar
para o dorso dos montes: “Olha a tua volta e aprende. A crença de
um povo é a fundação de seu castelo. A natureza que lhe cerca molda
seu ânimo.”
XII Agradeci-lhe com um sorriso e um gesto de cabeça,
pondo-me novamente a escalar a montanha que se erguia na
imensidão de neve, tentando compreender o que dizia com tais
palavras.
CI
XIII Com muito esforço, atingi a primeira ponte e ao longo
de sua extensão caminhei rapidamente em rumo à maior das torres,
localizada no centro do anel e circundada por todas suas irmãs.
Vitrais de cores claras espelhavam os raios celestes em meio aos
símbolos de Stratos enquanto eu me punha em frente à gigantesca
porta dupla que dava acesso ao Lycaeum, a escola dos magos de
Sênnyl Norte.
XIV Como um uivo lançado ao vento, uma voz se
manifestou ao meu redor, ecoando através dos montes em um tom
grave e profundo: “Tu que ousas erguer-te frente ao lar de Stratos
convence-me de que és digno, ou para longe serás bufado como paga
de tua afronta. O que te faz crer que estas portas se abrirão perante
ti?”.
IV. Na verdade, ao
avistarmos o bardo que se nos
aproximava, abrimos os
portões pois que já temíamos
que começaria a bater
desesperado em nossos
umbrais.
XV Fechei meus olhos por um instante, pensando ainda no
que o devoniano havia me dito. Conforme abri meus olhos,
lentamente olhei a minha volta, atentando aos detalhes daquele
lugar novo e misterioso. Avistei a neve que cobria as montanhas, as
dentições de gelo, as fendas que adentravam as entranhas dos
montes, e a imensidão de chumbo que me cobria o horizonte.
Novamente, então, vi as cinco torres, todas altas e únicas em seus
detalhes. Como uma luz irrompendo do íntimo de meu ser e
desvendando um mundo novo, tudo fez-se claro para mim. Respirei
fundo e, então, desta forma respondi: “Jamais se abriram estas portas
a ninguém. Então, eu ouso vir da terra de Lithos até o território
inimigo. Sou único em meu intento e empreendo o que jamais foi
tentado. Que Stratos me abençoe com o sopro de gênio que envolve
todos aqueles que desbravam terras pelas quais ninguém jamais
IV
ousou trilhar.”
CII
XVI Agradeci em silêncio aos ensinamentos do devoniano
acerca da filosofia de vida de seu povo no que eu via, com um suspiro
de alívio, as grandes portas abrirem-se à minha frente.
XVII Meus passos ecoaram no recinto amplo, feito à
semelhança de uma gigantesca caverna congelada, em cujo redor
uma escadaria se estendia, dando acesso aos andares superiores. No
centro do lugar, pude ver um conclave de magos reunidos, de
joelhos, em torno de um elfo de aspecto venerando. Assim como os
demais, vestia-se com um manto tons purpúreos. Suas orelhas
pontiagudas erguiam-se além dos longos cabelos prateados e seus
olhos eram claros e profundos como a noite eterna. Em suas mãos,
ele segurava uma esfera mística em cujo interior podia-se ver a forma
diáfana do Sopro dos Ventos, o artefato ancestral cuja guarda Stratos
conferira a Fatus, o arquimago. Ligando estes fatos, apresentei-me a
ele com uma breve reverência.
XVIII
“Saudações, nobre Fatus. Sou Clióphoros
Lithokhthônio e venho ter contigo por conta de um traidor que se
encontra entre os teus. Trago aqui uma carta escrita por algum dos
magos de Stratos, forjada por magia para que se assemelhasse à
caligrafia do rei Äschnor III de Fláurin, carta esta destinada declarar
guerra aos os habitantes de Termôkhora, culpando-os pela morte de
Hélios Oriental. Que a força de Drakópyros revele aquele que a
produziu!”.
XIX Para minha atônita surpresa, após flutuar através do
recinto, a carta susteve seu movimento frente a Fatus. Balbuciei
algumas palavras de puro espanto, até que, tomando forma frente ao
CIII
arquimago, a imagem ilusória de um homem de queixo pontiagudo e
volumoso nariz se mostrou, trajando um longo manto
aureopurpúreo que trazia as insígnias de Fláurin.
XX Tudo fez-se claro então a mim, ainda que tarde demais
para que pudesse mudar o curso dos eventos. Como não pudera
suspeitar do mago estrangeiro quando Pantagnosko me falara de um
traidor? Amaldiçoei minha própria ingenuidade enquanto ouvia o
discurso de Wildegan.
XXI “Tolo Fatus! Como podes ser o arquimago, sempre foi o
que me questionei. Nunca tiveste percepção o bastante para
distinguir aquilo que se apresenta à sua volta. Não sabes dizer o falso
do verdadeiro, nem o bom do ruim. Se me tivesses dado o devido
valor, ao invés de banir-me da terra pátria, não estarias agora nesta
posição humilhante, tendo sido completamente forçado por mim a
utilizar o poder do Sopro dos Ventos para erguer Sênnyl Norte da
face de Trinômia, sob a previsão de que Hélios Oriental tombaria
sobre tua cabeça. Agora és prisioneiro de teu próprio artifício.
Nêphelai teve de ser solto para cumprir tua ordem e agora não pode
mais ser controlado, pois deve fazer aquilo para que foi criado em
primeiro lugar: destruir Lithos. E eu, na terra do Rei da Montanha,
farei com que isto se cumpra!”.
XXII Com isto, sua imagem desapareceu, e todos os olhos
miravam Fatus desesperadamente. O venerando elfo ainda tinha seu
olhar fixo onde a ilusão de Wildegan aparecera quando pronunciounos: “Não vos preocupais, meus filhos, pois nem Nêphelai não terá
força sobre a terra enquanto Sênnyl Norte encontrar-se nos ares,
CIV
nem Wildegan encontrará paz quando a fúria de Hélios se abater
sobre o solo de Trinômia. Aqui estamos a salvo e nada nos impedirá
de assim continuar para o resto dos dias. No entanto, agora percebo
meu erro em subestimar Wildegan. Jamais imaginei que ele estivesse
por detrás de algo tão colossal quanto a morte de um Sol. Sem
dúvidas não está sozinho nisto.”
XXIII Novamente a terra tremeu e todos corremos em
direção à janela mais próxima para ver o mais aterrador dos
espetáculos: consumindo-se em suas próprias chamas, Hélios
Oriental se decompusera, e dele um fragmento agora rasgava
fumegante os céus de Trinômia, deixando atrás de si um rastro de
fogo e destruição. De cima do mundo, pudemos apenas vê-lo, em
princípio, trespassar as nuvens em direção à terra. Logo depois, no
entanto, as brumas se espalharam como se sopradas para longe, e um
jorro de magma e areia ergueu-se aos céus quando o fragmento de
Hélios Oriental atingiu o cerne do Deserto de Nara.
XXIV Mais tarde, compreendemos a maneira pela qual
Wildegan conseguira ter sucesso em sua empresa conforme uma
legião infernal se erguia do ventre do mundo para estabelecer-se ao
redor da torre de Ôlethros. Havíamos entrado em uma nova era na
história de nosso mundo. Uma era em que as forças primordiais se
erguiam para terminar o combate iniciado há tantos séculos. Uma
era em que os homens tomariam as rédeas do engenho do mundo,
desfazendo as maravilhas criadas pelos eternos.
XXV Este é teu mundo, meu príncipe. Força é que tu lutes
novamente a guerra de teu ancestral, pois as forças destrutivas
CV
novamente se alastram junto ao magma sangüíneo que nutre um
ódio mais furente que o de Pyros. Somente com o conhecimento dos
ensinamentos de todos os titãs, poderás trazer o equilíbrio
novamente a Trinômia e restabelecer a vida tal qual um dia a
conhecemos. Deves entender aqueles a tua volta, aqueles que
vieram antes de ti, pois são teus iguais e tua sina não há de diferir em
muito da deles. Estuda minhas palavras com cuidado e lembra
daquilo que te contei. Que minha história te tenha servido de aviso,
V
senhor, pois temo que seja tudo para que jamais servirá...
V. Apesar de todos seus
esforços, a carta para o rei
jamais deixou os montes de
Sênnyl Norte, tendo cinqüenta
anos de poeira se acumulado em
suas páginas até o dia de hoje.
Muitas das informações nele
contidas foram consideradas
subversivas pelo alto círculo
dos magos, e, por conseguinte,
foram devidamente
censuradas. Ademais, a visão
errônea de que nosso arquimago
seria culpado pela libertação de
Nêphelai certamente faria com
que nos declarassem guerra
todos os reinos dos homens.
Obviamente, Sua Excelência
não teve parte nenhuma nisso,
tendo sido Wildegan, com o
apoio do rei de Fláurin, quem
empreendeu tal empresa. Aqui
termino minhas anotações. Que
Stratos conceda o sopro de
gênio a todos os Iniciandos em
seus mistérios.
Clióphoros Lithokhthônio
CVI

Documentos relacionados