Banana Yoshimoto Arco íris

Transcrição

Banana Yoshimoto Arco íris
Arcoíris
Banana Yoshimoto
Arcoíris
Tradução do italiano
José J. C. Serra
Arcoíris / Niji
Autor: Banana Yoshimoto
Copyright © 2002 by Banana Yoshimoto
Edição original japonesa de Gentosha Inc., Tokyo.
Direitos de tradução portuguesa acordados com Banana Yoshimoto
através de Japan ForeignRights Centre & Ute Körner Literary Agent, S.L.
www.uklitag.com
Tradução: José J. C. Serra
Revisão: Helder Guégués
Capa: Gangster Graphik
Paginação: Gabinete Gráfico Cavalo de Ferro
1.ª edição, Julho de 2006
Impressão e Acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda.
Depósito Legal: 244 366/06
ISBN: 9896230218
ISBN: 9789896230210
Todos os direitos para publicação
em língua portuguesa reservados por:
© Cavalo de Ferro Editores, Lda.
Travessa dos Fiéis de Deus, 113
1200188 Lisboa
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Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida
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sem a autorização prévia e por escrito do editor,
com excepção de excertos breves
usados para apresentação e crítica da obra.
NOTA DOS EDITORES
Devido à escassez de tradutores de japonês no nosso país e ao
facto do tradutor habitual, António Barrento, estar envolvido
noutro projecto de tradução, esta tradução foi feita a partir da
tradução italiana da obra (aprovada pela autora).
«Durante a visita turística à laguna podese nadar ao lado de
tartarugas marinhas, raias e tubarões em cativeiro no interior
de uma reserva natural marinha.»
Haviamse inscrito nesta visita muitos turistas provenientes
de todos os hotéis de Bora Bora; eu, porém, era a única que ia
sozinha. Por mais que olhasse em meu redor, os outros eram
todos franceses e italianos reunidos em pequenas comitivas
formadas nos respectivos hotéis. Japoneses nem um. A coisa
não me preocupava por aí além, todavia — pequena de estatura
como sou — o facto de estar na fila no meio daquela confusão
faziame sentir um pouco deslocada. Depois de todos terem
sido distribuídos pelos vários grupos, chegou finalmente a
minha vez.
Fiquei com uma família de franceses.
Como a mulher estava grávida, só o marido e o filho de
cerca de dez anos é que decidiram entrar na água. Disseram
lhe em coro qualquer coisa como: «Já voltamos!» ou «Eh, espera
por nós!» e desceram em direcção à praia.
Isto sim é felicidade! Como os invejo, pensei.
Depois, a senhora abriu um pequeno chapéudesol e, sob
os raios transparentes, sentouse lentamente na areia prestando
atenção à barriga.
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Ao ver a cena, evoquei a nítida recordação de quando era
pequena e corria para longe da minha mãe, sabendo que em
tudo o que me pudesse acontecer ela estaria sempre pronta
para me socorrer. Revivi com intensidade aquela sensação tão
especial, imaginando que por baixo do seu párasol se escon
dia um rosto sorridente.
Aquela sensação divertida, intensa como o mel escuro, que
amiúde experimentara em criança, quando brincava tranquila
numa concentração quase excessiva, experimenteia de novo
em todo o corpo ao ponto de sentir uma ligeira sensação de
angústia. Estou realmente muito longe…
Não que eu quisesse voltar para trás ou que a minha vida
tivesse sido apenas uma sequência contínua de dificuldades.
No entanto, de todas as vezes que me virava e via os pés cân
didos a despontarem por baixo da saia comprida daquela mamã
desconhecida com chapelinho, mais aquela cena de sombras que
se projectavam na areia branquíssima, apertavaseme o coração.
Uma vez no mar, na reserva, parecia que nós seres huma
nos, para dizer a verdade, é que estávamos em exposição. Os
peixes movimentavamse tranquilos, completamente alheados
de nós, alienígenas, que, ao invés, nadávamos com afã.
De olhos arregalados de espanto tive um estranho pensa
mento.
Um grupo de extraterrestres que se pusesse a observar a Terra
a partir do espaço pensaria que também nós, tal como aqueles
peixes, somos seres maravilhosos que flutuam na atmosfera.
E, naquele momento, vi um pequeno tubarão de cor ama
relalimão despontar impávido; nadava de um modo diferente
do dos outros peixes.
Ah, incrível! É amarelo! E arregalei ainda mais os olhos.
Sempre que mudava de direcção com a barbatana posterior, eu
verificava, com algum incómodo, se porventura ele se detinha
a observar os meus pés. Lembravame ao pormenor daquelas
histórias que dizem que o olfacto dos tubarões é dezenas de
milhares de vezes superior ao dos seres humanos e que no
momento em que atacam os homens reviram os olhos.
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Apesar de ser tão pequeno tem uma aura diferente da dos
outros peixes. Mete mesmo medo! E sobretudo é incrivelmente
amarelo!
Morria de vontade de o dizer a alguém e dei por mim a
apontar para ele com a minha mãozinha decididamente mais
pequena do que o normal. Que, de resto, debaixo de água pare
cia ainda mais pequena.
O casal de idosos que nadava a meu lado acenoume afir
mativamente. Intui que eles também estavam excitados com
aquele encontro. Eram dois simpáticos franceses que estavam
hospedados no mesmo hotel que eu e havíamos conversado um
pouco no barco que nos trouxera até ali.
Naquele instante, instintivamente, e enquanto observáva
mos o tubarão, demonos as mãos.
Que as mãos de estranhos pudessem transmitir tanta felici
dade, ultrapassando a barreira das nacionalidades, dependia do
facto daquelas duas pessoas serem idosas. Duas grandes mãos
cheias de rugas que haviam abraçado uma infinidade de vezes
os seus filhos e netos.
Logo que nos certificámos que o tubarão estava calmo
e que não tinha qualquer intenção de nos atacar, tirámos
a cabeça fora de água e falámos um pouco. Depois, sorrimos
e cada qual seguiu o seu caminho atrás dos peixes que pre
feria.
Eu gostaria de continuar a observar eternamente aquele
raríssimo tubarão.
Mas olha que amarelo tão transparente! Era realmente de
um amarelolimão muito intenso. Exactamente como mo haviam
descrito. E, no entanto, era incrível que existissem seres vivos
daquela cor, que existissem peixes coloridos como a fruta.
Imaginei os meus olhos, que fitavam os seus movimentos, a
brilhar como os de uma rapariga apaixonada.
A água do mar, que no início estava limpa e transparente,
lentamente tornouse turva por causa da areia levantada pelos
movimentos dos turistas. E tal como numa tempestade de areia
no deserto, como nos dias de vento forte com nuvens que
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repentinamente povoam o céu, o mundo dos peixes ofuscouse
como numa ilusão.
Naquele mar que, a intervalos, se turvava e depois regres
sava à limpidez inicial, os meus olhos viam peixes de várias
cores, raias ágeis que deslizavam rente ao fundo marinho,
enquanto na minha boca sentia um sabor de sal carregado de
nostalgia. O coral mudava de cor sempre que era iluminado
pelos raios de sol, e debaixo de água tudo brilhava levemente.
Pensei que fosse um sonho, como se estivesse a ver o arco
íris. As sete cores estavam todas presentes naquele mundo. E ao
esbateremse, transformavamse lentamente em raios tremelu
zentes e finos que davam vida a esplendorosos laços coloridos.
Era um mundo silencioso em que o tempo parecia ter parado.
Não obstante tudo o que me tem acontecido até agora na
vida, eisme aqui a usufruir desta magnífica cena… Na minha
vida terei certamente de enfrentar outras adversidades, mas
tenho a certeza que, de todas as vezes que isso acontecer, terei,
no fim, um espectáculo como este em frente aos meus olhos.
Tenho a certeza disso.
Ocorreramme estes pensamentos e estranhamente senti
brotar dentro de mim uma força incrível.
E, no entanto, pelo menos naquele momento, gostaria de
voltar a ser criança e partir em busca de uma dimensão desco
nhecida.
Armada apenas com o meu pequeno e frágil corpo de mor
tal, como um astronauta num belíssimo universo desconhecido
sem gravidade, sozinha apesar das multidões presentes, escu
tando somente o som da minha respiração.
Desde que chegara ao Taiti estava sempre com sono.
Por mais que dormisse não conseguia sacudir o cansaço que
trazia, mesmo depois de me ter mudado de Moorea para Bora
Bora. Apesar de ter concedido a mim mesma o luxo de um hotel
fabuloso e de a minha casa construída sobre a água estar com
pletamente envolta pelo pavoroso mugido do mar, acordava por
um instante, mas de imediato voltava a adormecer. De noite o
vento soprava ruidoso abanando a casa de cima a baixo, e o
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mar com a sua presença sufocante parecia encher o quarto todo,
fazendo crer que a manhã jamais despontaria. Todavia, a vio
lência daqueles ruídos era para mim uma doce canção de emba
lar que me isolava do mundo exterior e do passado.
Quando acordava, por vezes ia dar uma volta sem meta defi
nida, outras vezes nadava um pouco, ou então, faziame ao car
reiro que levava à distante recepção e ia comer qualquer coisa.
Antes de mais, tinha de percorrer um compridíssimo desem
barcadouro de madeira rangente, depois passar pelo meio das
plantas e das flores de um enorme parque pejado de bungalows,
atravessar uma ponte que dava para uma faixa de mar onde
nadava uma infinidade de peixes, fazer um pedaço longo de
praia para, finalmente, chegar ao edifício da recepção.
Sem nada para fazer e ensonada como andava, aquele per
curso era um óptimo meio para matar o tempo.
Caminhava recolhida no meu silêncio e como o cenário em
frente aos meus olhos mudava em continuação, ficava exta
siada, como se estivesse num sonho. Tinha a impressão de não
pertencer àquele espectáculo. E que a beleza do panorama mais
não fosse que o seguimento dos meus sonhos. De dia todas as
coisas estavam envolvidas por uma luz muito intensa, de noite,
ao invés, pelo breu mais escuro.
Todavia, daquela vez debaixo de água estava desperta. Cir
cundada por aqueles seres vivos, via claramente tudo o que me
rodeava e sentia na pele a agradável tepidez do mar. Era como se
de repente um pano se levantado e eu subisse ao palco do mundo.
Quando me faltava o fôlego, fincava as pontas dos pés na
areia do fundo, tirava a cabeça fora de água, respirava e logo
de seguida mergulhava de novo. Tinha os cabelos despentea
dos quando uma tartaruga me passou a um palmo do nariz.
Cada momento era igual aos que, de manhã, se seguem ao des
pertar, sentia tudo num modo claro e fresco com um deslum
bramento que aumentava de intensidade.
A luz mudava a cada instante, iluminando aquele mundo sub
merso, a areia levantavase lentamente, os seres humanos e os
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peixes iam para a frente e para trás, tal como poderiam fazer pelas
ruas de uma cidade. Ao meu lado continuava a ver — nem muito
próximo nem muito distante — aquele casal de idosos que conhe
cera pouco antes e a quem dera a mão durante alguns instantes.
O encantamento não se dissolveu nem mesmo quando,
agora, próxima da praia, emergi com a cabeça fora de água e
tirei a máscara. Nada tinha mudado desde que eu mergulhara,
nem os fortes raios que choviam do céu, nem a densa vegeta
ção, nem o panorama daquela laguna serena.
Ao longe vi o rapazito de antes a correr a toda a velocidade
para a mãe.
Saí da água e pusme a secar ao sol. O meu fato de banho
azul, todo molhado, resplandecia como uma criatura marinha.
O brilho, o corpo coberto de areia, as gotas transparentes que
pingavam dos cabelos… Uma sensação muito delicada, frágil,
enchiame a alma com o seu encanto.
Havia sempre pensado que só raramente é que a felicidade
ganhava forma nas pessoas. Aprenderao observando os clien
tes no restaurante onde crescera, vendoos por vezes chorar
lágrimas intensas. Mas ali, perante os meus olhos, as incom
preensões, a tristeza e as pequenas alegrias apareciam simples
mente como ondas que vão e vêm, uma após outra, despeda
çandose na praia antes de se formarem novamente ao largo.
Também é verdade que no contacto com os outros, por
vezes, se vivem instantes semelhantes ao mel. Instantes impreg
nados de doçura intensa, cingidos eternamente por uma aura
cor de âmbar, instantes puros e ao mesmo tempo violentos
como as brincadeiras das crianças.
Enquanto me dirigia do aeroporto para o hotel no barco a
motor que viera buscar os recémchegados, havia reparado num
casal feliz. Uma cena esplêndida que poderia durar pela eterni
dade, dois amantes que observam o mar um ao lado do outro.
Infelizmente, porém, aqueles momentos não são eternos
para ninguém, sem excepções. E até o instante mais maravi
lhoso acaba por mudar.
ARCOÍRIS
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Foi por isso que fiquei impressionada com aquele casal. No
nosso barco a motor já não havia lugares vagos e os dois viram
se obrigados a ir para o barquinho dos empregados. E ali iam
eles bem apertadinhos e de mãos dadas, com uma expressão
radiante e de cabelos ao vento, envolvidos pela luz delicada do
entardecer. A embarcação em que iam abria caminho deslizando
pela superfície da água e desenhando um belo rasto direito.
Talvez eu também tivesse feito parte daquele panorama.
Veiome de o pensar assim, espontaneamente, pela primeira vez.
E a causa daquele pensamento tinha sido o facto de ter
visto nadar em frente aos meus olhos o tubarão amarelolimão.
Sob aqueles esplêndidos raios de sol, compreendi que os
meus pensamentos se tinham enferrujado e que muito prova
velmente cada coisa não era mais que o fruto do banal curso
dos acontecimentos. Tive a vaga sensação de que o encanta
mento se havia quebrado.
Precisava de muito tempo, muitíssimo tempo, o que quer
que fizesse. Naquele lugar, a luz iluminavame com o seu calor
sem fazer distinções, dandome a sensação de estar disposta a
esperar por mim pela eternidade.
Eu quisera vir ao Taiti a todo o custo.
Achava vergonhoso trabalhar há tantos anos num restau
rante de comida taitiana sem lá ter ido uma única vez. No
entanto, quer porque nunca pudera gozar de um período de
férias longo, quer porque o trabalho que fazia era muito diver
tido, tinhamse passado num abrir e fechar de olhos quase dez
anos e, agora, já estava no limiar dos trinta.
Nos primeiros dias estivera em Moorea num bungalow onde
tinha de cozinhar as minhas refeições; na segunda parte da
viagem, ao invés, havia decidido hospedarme num hotel muito
luxuoso construído num ilhéu em frente a Bora Bora.
Para dizer a verdade, inicialmente havia pensado em apro
veitar a ocasião para visitar mais lugares, mas agora que estava
realmente no Taiti, havia perdido aquela necessidade frenética
de ter de ver tudo e sentiame contente assim.
Contemplava o mar, com a cabeça no meio das nuvens, e o
tempo corria veloz. E ao observar o grande mar após tantos
anos vierame à memória aquele período que havia passado
nas suas margens, uma sensação que me enchia de felicidade.
Os meus pais haviamse divorciado quando eu tinha onze
anos.
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YOSHIMOTO
O meu pai encontrara outra mulher e saíra de casa. Até a
esse momento havia trabalhado no duro como cozinheiro e era
o alicerce da família. Vivíamos sem grandes problemas gerindo
um pequeno restaurante numa localidade turística à beiramar.
Fora um golpe de teatro que havia deixado todos sem pala
vras, nós, porém, ficámos mais boquiabertas do que ninguém,
pois tínhamos sido abandonadas. A respeito do meu pai nunca
mais tivera notícias, motivo pelo qual não sei bem o que dizer,
mas imagino que também ele não conseguisse acreditar naquilo
que havia feito, pois os desenvolvimentos daquela situação
tinham sido muito rápidos. Em suma, o assombro tinha sido tal
que nem sequer houvera tempo para nos entristecermos.
A minha mãe, por seu lado, não era mulher para ir atrás
dele ou de ficar à espera que voltasse para casa. Pelo contrário,
para começar uma nova vida, havia pedido à minha avó — que
era viúva — que viesse connosco para o casebre onde sempre
havíamos vivido. E apesar do papá já lá não estar, decidira
continuar a gerir o restaurante nas traseiras da casa. Depois, na
época baixa trabalhava numa pensão, que era propriedade de
alguns parentes.
Talvez graças àquela reacção tão imediata, a nossa vida tor
narase ainda mais regular: dávamonos bem, ajudávamonos
reciprocamente e vivíamos lado a lado como se fôssemos pas
sarinhos num ninho.
Passei a adolescência a trabalhar no restaurante e nas lides
domésticas com a minha avó.
Tinha uma boa relação com ela e com a minha mãe e, por
isso, a situação nunca me incomodara, mas a minha realidade
não ia mais além. Depois, no Verão, quase todos os dias con
seguia arranjar tempo para dar um mergulho ou para pescar,
para fazer amizade com os turistas e para viver com eles tris
tes histórias de amor que regularmente se concluíam no fim
da estação balnear. Nas aulas não fazia mais do que dormir,
motivo pelo qual apanhava sempre notas péssimas. Por outro
lado, tinha amigos que vinham ajudarme nos momentos de
maior aperto no trabalho. Ou seja, entre uma coisa e outra
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vivia os meus dias de um modo intenso e, ao mesmo tempo,
divertido.
E fazendo aquela vida, de repente, dei por mim a ter a idade
considerada «adulta».
O meu desejo era irme embora de casa, experimentar viver
sozinha noutra cidade longe da minha família, e assim, pouco
depois de ter terminado o liceu, em simultâneo à decisão que a
minha mãe tomou de fechar o restaurante, mudarame para
Tóquio.
Encontrara trabalho no restaurante taitiano logo a seguir à
minha chegada à capital.
Situavase num bairro residencial onde não havia nada,
não estava perto de nenhuma estação e chamavase Arcoíris.
Era um edifício de dois andares construído a uma notável
— e, portanto, vantajosa — distância das casas limítrofes, num
terreno pertencente ao dono do restaurante. A tabuleta apre
sentava umas letras muito pequenas e era dominada por um
arcoíris pintado. À primeira vista podia parecer uma simples
casa de habitação; mas uma vez lá dentro, ao invés, davase
com um espaço muito amplo e tinhase a impressão de entrar
num outro mundo.
Logo a seguir ao vestíbulo havia um bar com um enorme
balcão, que à noite se enchia com inúmeros clientes que
vinham apenas para beber qualquer coisa. Serviamse cocktails
tropicais, todo o tipo de vinhos franceses e também cerveja
Hinano de copo.
No que respeita à cozinha, por vezes vinham chefes do Taiti,
outras vezes, eram os nossos chefes que iam ao Taiti, ao res
taurante da casamãe, aprender como se confeccionavam
alguns pratos. A qualidade era mantida a um nível muito ele
vado graças ao peixe comprado diariamente no mercado de
Tsukiji [1] e os pratos eram mesmo os autênticos da cozinha tra
dicional taitiana, difíceis de encontrar noutro local. Pampo
godinho cozido em folhas de taro, caril delicado servido com
[1] Bairro de Tóquio onde se situa o mais importante mercado de peixe da capital. (N. do T.)
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YOSHIMOTO
molho de camarão, filetes de atum cru condimentados com
lima e leite de coco. Como aperitivo podiase pedir Croque
monsieur e Croquemadame, mas também simplesmente bata
tas fritas. A gama de doces era claramente muito variada: ia
desde as sobremesas europeias até à fruta frita.
De vez em quando, exibiamse no restaurante bailarinos tai
tianos, realizavamse concertos de música tradicional, davam
se aulas de culinária… em suma, o Arcoíris era um restaurante
envolvido de várias maneiras na difusão da cultura taitiana.
A variedade do menu, por outro lado, tornavao acessível a
todas as bolsas, tanto que se transformou num estabelecimento
da moda para as bocas mais refinadas, mas também para os
clientes menos exigentes, que moravam nas proximidades. Era
frequentado por uma clientela muito variada: representantes
do governo polinésio de visita turística, músicos, estudantes de
dança taitiana ou gente que no passado vivera no Taiti.
No restaurante, para além do dono, também havia um
director, um homem de cerca de cinquenta anos de idade que
— parecia de propósito — vivera no Taiti alguns anos antes.
Com efeito, fora aí que os dois se haviam conhecido. Eu depen
dia directamente dele: era um homem à antiga, muito sério e
leal, de maneiras refinadas e apaixonadíssimo pela mulher.
Estava sempre no restaurante, era capaz de se ocupar do que
quer que fosse. E eu sentia uma grandíssima admiração por ele.
O dono do Arcoíris mudarase para o Taiti quando tinha
apenas vinte anos, mas não com a intenção de aprender como
abrir um restaurante. Tinha ido assim, sem nenhum motivo
em particular, e quando deu por ela estava a trabalhar no
estabelecimento onde todos os dias ia comer. Só lá mais para
o fim da sua estada, e depois de se ter tornado amigo dos
donos, é que havia decidido abrir um restaurante só seu.
Como eu estava a dizer, ele e o meu director conheciamse
desde esse tempo e eram bons amigos. Fora aquela naturali
dade com que os acontecimentos se tinham sucedido um dos
motivos principais por que eu havia começado a trabalhar no
Arcoíris.
ARCOÍRIS
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Havia descoberto este estabelecimento ao ler numa revista
um artigo dedicado ao dono do restaurante, quando ainda
vivia na minha terra.
Nas fotografias o dono do restaurante era ainda jovem e
cheio de vitalidade. A entrevista versava sobre os métodos pes
soais de relaxamento: ele respondia às perguntas com uma
expressão alegre, quase brilhante. Em vez dos entusiasmos
exasperados ou dos fanatismos entediantes dos aficionados do
Taiti, das suas palavras transparecia uma felicidade equilibrada.
— Quando me sinto cansado, vou até ao Taiti, encontrome
com os meus amigos e dou umas valentes braçadas em santa
paz. Depois penso: ah, se em Tóquio conseguisse recriar um
pouco desta atmosfera, e assim, encontro motivação para con
tinuar com o meu restaurante.
No artigo também havia fotografias do restaurante. Um
espaço muito confortável com grandes janelas nas paredes e no
tecto, poucos lugares sentados e mesas de madeira maciça.
Depois, na esplanada, em fila como se fossem flores, havia cha
péusdesol robustos feitos num tecido muito espesso. O centro
do restaurante, ao invés, estava cheio de plantas viçosas e de
flores cuidadosamente tratadas.
Durante as minhas visitas a Tóquio ia comer amiúde ao
Arcoíris, e fuime apaixonando por aquela «criação» natural,
apesar de estudada, completamente diferente de qualquer outro
restaurante da capital.
Erame deveras impossível perceber os habitantes da metró
pole com os seus comportamentos cheios de afã e de avidez e
alheados do curso natural do tempo, onde tudo deve ser forço
samente remunerado. No início observavaos, curiosa, com os
olhos de quem vem da província, pensando que fosse uma
reacção normal num lugar onde o custo dos terrenos atinge
cifras exorbitantes.
A gente de Tóquio pareciame complicada e, talvez porque
ao nosso restaurante vinham quase exclusivamente turistas da
capital, a mamã e a avó, de um modo geral, concordavam
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YOSHIMOTO
comigo. Complicam as coisas de propósito e parecem obceca
dos com a busca de divertimento, comentávamos entre nós.
Observávamos os vários dramas inventados como se não nos
dissessem respeito, dando a nós mesmas explicações do tipo:
deve ser porque vivem longe da natureza e têm uma grande
necessidade de dinheiro.
Chegava mesmo a desconfiar que, em Tóquio, algumas gen
tilezas, como por exemplo levantarse e ter a cortesia de ir bus
car algo para alguém, só eram feitas após uma avaliação atenta
da possibilidade de obter algum benefício.
Pelo menos na minha aldeia, por mais rica que uma pessoa
fosse, não era possível aquecer a água gélida do mar ou fazer
que os turistas viessem visitarnos também nos Verões em que
o frio se fazia sentir.
Até os novos e reluzentes complexos turísticos, construídos
com grandes capitais para atrair multidões de turistas, rapida
mente abririam falência se não fossem administrados com pru
dência e com o objectivo de dar lucro, em vez de «serem geri
dos» com amor. Sem uma força capaz de se opor à força da
natureza, a terra acabava por os corromper e esmagar a pouco
e pouco. Do meu posto de observação aperceberame que não
eram os seres humanos que os levavam à falência. Ainda que
no início os negócios corressem às mil maravilhas, de repente,
aqueles hotéis transformavamse em locais que mantinham os
turistas à distância. Era a terra que se aborrecia com os pro
prietários de que não gostava, emanando uma luz que afastava
os clientes. Todavia, se nesses mesmos hotéis houvesse uma só
pessoa com energia tal que impressionava a terra e os clientes,
então, o resultado era deveras surpreendente, ao ponto de ultra
passar dificuldades como o mau tempo e a recessão económica.
Ao longo dos anos havia testemunhado estes fenómenos e,
de todas as vezes, pensava que, no fundo, as nossas acções de
homens dos tempos modernos não tinham mudado assim tanto
relativamente às dos homens primitivos.
Se o primeiro ocupante de uma terra instaura — por exem
plo, através da oração — uma relação de harmonia com os espí
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ritos do lugar, então, estes começam a chamar outras pessoas
que, fascinadas com o seu antecessor, dão início a uma cola
boração que só dá bons frutos. Até a terra se alegra e benefi
cia com isso. Se pelo contrário falta a força da terra ou dos
humanos, não é possível ter sucesso. Era minha convicção que
nós homens modernos repetíamos as mesmas coisas do pas
sado. Só não tínhamos consciência disso porque não era pos
sível ver os seus resultados, que chegavam cem anos depois, e
porque os espaços a gerir se tinham tornado muito maiores.
Mas nada mudara, tinha a certeza disso.
Com frequência havia visto construir edifícios novos em lugar
dos velhos. Primeiro, aparecia o entulho, depois a área era toda
limpa, a terra voltava a ver a luz e sobre ela era edificada a cons
trução sucessiva. Era a sequência que se repetia sempre. E era por
isso que a paisagem urbana das zonas turísticas, em que se sobre
punham, como pátina, as várias imagens do passado, adquiria
uma estranha consistência, cada vez mais sugestiva.
Aprendera com a minha mãe e a minha avó que naquele
mundo era importante procurar manter um estilo da vida parco
e respeitador dos limites do próprio corpo, onde — abando
nandose à natureza — se encontra sempre a maneira de se
desenrascar, onde se aperta o cinto ou se vive à larga conforme
as circunstâncias, mas sobretudo, onde se transcorrem momen
tos à medida do homem.
O restaurante fora originariamente aberto pelos meus avós.
A minha mãe, depois, pegou nele e, mais tarde, o meu pai, após
a ter auxiliado durante algum tempo, passou a ser o cozinheiro
do restaurante… Naquela aldeia à beiramar, até ao dia em que
a minha mãe decidiu encerrálo, o nosso pequeno restaurante,
mesmo sem dar um lucro exorbitante, ficou aberto ao público
durante quase cinquenta anos.
Tínhamos clientes que diziam que bastava o sorriso da
minha avó para os satisfazer, havia outros que eram loucos
pelo peixe cozido da minha mãe, outros ainda que vinham de
propósito ao restaurante para comerem a nossa cavala crua
acabada de pescar, e um ou outro interessado em mim, a «rapa
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YOSHIMOTO
riga imagem» do restaurante. Apesar do edifício não estar em
boas condições, o interior era muito limpo e acolhedor. Alguns
clientes nostálgicos diziam que se conseguiam esquecer do
stress e algumas famílias tinham por hábito visitarnos pelo
menos uma vez durante as férias do Verão. Uma noite apre
sentouse mesmo um jovem casal que disse que tinha vindo
porque o falecido avô de um deles havia falado muito bem da
nossa comida. Progressivamente, a pátina do tempo depositou
se em camadas finas sobre o restaurante, conferindolhe uma
certa consistência.
Para uma pessoa como eu, habituada a relaxar contem
plando o mar sempre que me sentia sobrecarregada, a vida em
Tóquio, sem uma praia nas proximidades, não era simples, mas
graças ao meu trabalho conseguia manterme serena.
Na minha simplicidade, desde que me mudara para a capital
e havia começado a trabalhar no Arcoíris, nunca me sentira
deprimida. Até aquelas questões infantis que no início me inco
modavam (Será que não estamos a poupar demasiado nas com
pras por atacado? Será que os clientes não acham que ostenta
mos demasiado luxo?) haviam desaparecido assim que comprovei
a variedade da clientela que frequentava o restaurante e conferi
pessoalmente as facturas das compras. Pois é, estamos em Tóquio,
a província é outra coisa, tivera eu de tomar consciência. Chegara
mesmo a pensar que, apesar de aqui se agir segundo uma escala
de grandes proporções, o método de gestão em si não era muito
diferente do da minha mãe e da minha avó. Trabalhando naquele
restaurante, gerido pelo dono com paixão e com grande atenção
à qualidade, havia percebido que nada acontecia por acaso.
Seguindo a ordem justa das coisas, por vezes nasciam pro
blemas e era belo suavizar, juntos, os atritos mais ou menos
fortes que, por vezes, se criavam. Para mim, aquele restaurante
era uma escola de vida e tinha a impressão que os meus cole
gas eram companheiros de sala de aulas. Pareciame que o
tempo corria lento naquele espaço limpo, aberto e arejado,
onde trabalhar no duro não era de todo pesado.
ARCOÍRIS
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À noite, já tarde, o luar entrava pelas janelas do tecto e o
ambiente tornavase ainda mais belo devido ao reflexo das
velas acesas sobre as mesas da esplanada. E desfrutavase a
brisa nocturna, que soprava impetuosa fazendo pensar que não
se estava na cidade.
Todas as noites, quando chegava aquela hora mágica, eu
sentia uma emoção nova e, regularmente, sussurrava: ah, que
belo! Adoro isto!
À atmosfera limpa dos dias serenos, pálida dos dias de
chuva e pacata dos dias nublados, juntavase aquela luz difusa
que fazia brilhar todas as coisas de um modo especial. E o inte
rior do Arcoíris parecia um céu estrelado.
Habituarame, logo, ao novo trabalho, até porque havia
sempre ajudado no restaurante da minha família. Depois, em
poucos anos, fora promovida ao serviço às mesas, coisa em que
me tornei realmente boa. Muitos dos colegas haviam deixado
o trabalho por vários motivos. Eu tinha ficado.
A minha avó morrera devido a uma hemorragia cerebral
quando eu tinha vinte e dois anos de idade, de modo que a
mamã ficou sozinha. Depois, há um ano, também ela se foi,
repentinamente, por culpa de um enfarte.
No seu tempo livre, que aumentou de maneira evidente
após o encerramento do restaurante, havia conhecido um
homem que lhe fora apresentado por uma conhecida. Mas infe
lizmente morrera logo a seguir a se ter espalhado o boato do
seu, provável, novo casamento.
No último período da sua vida parecia rejuvenescida, a pele
havia recuperado o brilho, cuidava muito da imagem e pedia
me, com frequência, que lhe comprasse roupa da moda em
Tóquio. Para mim era uma alegria vêla a gozar a vida, reflo
rescida passados tantos anos e sem pesos nos ombros, ainda
que brincasse com ela dizendolhe que, agora, tinha um ar
demasiado malicioso para o meu gosto.
O que mais me entristeceu não foi tanto têla visto deitada
no caixão, mas ter encontrado nas costas de uma cadeira — no
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YOSHIMOTO
seu quarto, agora vazio —, uma saia e uma camisola que eu
acabara de lhe comprar nos grandes armazéns, numa tarde de
uns dias antes. A escolha fora difícil e só se concluiu depois de
lhe ter ligado uma infinidade de vezes para o telemóvel.
«Querelas roxas ou pretas?» «Preferelas às riscas ou de uma
só cor?» E assim, telefonema após telefonema, havíamos tro
cado algumas palavras espirituosas.
Antes da sua morte, não me apercebera da alegria que havia
experimentado, nessa tarde, na secção de roupa de mulher, não
reparara no quanto fossem importantes coisas tão frívolas.
«És tão exigente! Não deves estar a julgar que te vou encon
trar exactamente aquilo que tens na cabeça, pois não? Confia
em mim, levote a saia e a camisola mais parecidas com a tua
descrição. Agora vou desligar, adeus!» O luxo de ter concluído
a conversa com um sorriso nos lábios, quando vi aquela cami
sola abandonada na casa vazia, oprimiume com força o peito
impedindome de respirar.
Tentei aproximarme e senti que a camisola ainda estava
impregnada com a fragrância do seu perfume comprado em
promoção.
Naquele momento, a camisola bem embrulhada com que
viajara no Shinkansen [2] e graças à qual havia recebido sorri
sos, alegria e palavras de agradecimento, apareceume inerte
como um cão morto.
Agora, nunca mais poderei rir daquela maneira. E nunca
mais poderei telefonar a alguém de quem me fio cegamente,
alguém que me aceita em toda e qualquer circunstância. Em
meu redor não há mais do que estranhos.
Disseo a mim mesma, resoluta como se tomasse uma deci
são. E toda aquela circunstância pareceume que pertencia a
outra pessoa.
Conservava, todavia, recordações felizes. Uma infinidade de
momentos dolorosos, que, porém, com o tempo, viriam a ama
durecer dentro de mim com grande delicadeza. Até o episódio
[2] Comboio japonês de alta velocidade, mais conhecido por comboio bala. (N. do T.)
ARCOÍRIS
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da compra da saia e da camisola, que desde a ocasião do seu
falecimento se tornara angustiante, mais tarde ou mais cedo
iria emanar um fulgor precioso, pálido como o brilho de uma
pérola. Cheguei a esta conclusão e, pela primeira vez, o meu
rosto ficou riscado de lágrimas.
Sabese lá quando acontecerá? Virá alguma vez esse dia?
Receava que ainda estivesse longe, que faltasse uma eternidade.
Naquela ocasião, a empregada havia embrulhado com todo
o requinte a camisola e a saia que eu comprara e, de sorriso nos
lábios, havia comentado: «Verá que a sua mãe vai adorar o
embrulho!»
O significado daquele presente confeccionado com um
belíssimo laço não era certamente material. Era a vontade de
impregnar cuidadosamente aquele objecto com a recordação de
um momento de felicidade. Era um pedido para continuar a
acreditar que aquela relação jamais terminaria.
Atormentada por estes pensamentos, mergulhei o rosto na
camisola e continuei a chorar.
Bem sei que o elogio fica melhor na boca dos outros, mas
o meu serviço à mesa era impecável e eu era uma óptima chefe
de sala. Todavia, algum tempo após a morte da mamã, senti
quebrarse, inesperadamente, a motivação que me havia per
mitido labutar durante a minha longa permanência em Tóquio.
Tinha consciência de ter perdido o entusiasmo, de noite já
não conseguia dormir e cheguei mesmo a sentirme mal no res
taurante. E não foi uma vez só, foram três. Quando o ritmo do
trabalho era mais intenso e tinha de estar de pé durante horas
sem comer nada, aconteciame perder os sentidos durante
alguns instantes.
Da primeira vez, haviamme levado ao hospital, onde fiquei
a soro. O diagnóstico tinha sido: «esgotamento por excesso de
trabalho», e, no entanto, eu sabia que era tudo uma questão
psicológica. Andava preocupada porque estes episódios ocor
riam inesperadamente: estava a trabalhar e, de repente, a
minha vista turvavase e eu caía no chão. O médico haviame
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YOSHIMOTO
prescrito alguns medicamentos, aconselhandome que repou
sasse, e durante algum tempo estive mesmo em análise.
O director do restaurante, depois de ter falado com o dono,
haviame proposto que fosse trabalhar durante algum tempo
na nova empresa de fornecimento que daí a pouco iria abrir.
Tratavase de uma actividade iniciada pela mulher do dono
do restaurante, uma gerente cheia de iniciativa. A empresa iria
fornecer comida taitiana — com um toque à francesa — e cock
tails tropicais ao domicílio e a festas ou reuniões de média
grandeza. A sua oferta não previa, é claro, que fosse eu a
transportar a comida; pelo contrário, propunhame que fizesse
trabalho de escritório, organizando o trabalho consoante o
calendário dos compromissos. A proposta, conforme o ponto
de vista, podia ser interpretada como uma promoção.
Imaginei que o director, estando eu cansada física e psico
logicamente, tivesse suposto que eu pretendia deixar o serviço
da sala e, portanto, achei a proposta um gesto deveras gentil.
Todavia, o que eu preferia era continuar a trabalhar no res
taurante. Talvez não fosse a empregada de mesa mais afável de
todas, mas adorava o contacto com as pessoas, não via a hora
que chegassem os clientes, e alguns deles, agora, eram clientes
habituais com quem havia instaurado uma relação cordial.
— Se fosse possível, preferia não mudar — respondera eu
com toda a sinceridade ao director. Com o carácter sério e obs
tinado que tenho, em mais de uma ocasião, no passado, lhe
havia exprimido a minha opinião sobre questões relacionadas
com o trabalho, mas aquela era a primeira vez que lhe batia o
pé numa coisa que me dizia directamente respeito, tanto é que
suei frio. Não consegui ficar calada, cerrei os punhos com força
e, como se estivesse a recitar, disse num fio de voz: — Lamento
muito não poder aceitar. A sua proposta não me atrai porque
eu sei que no escritório de uma empresa de fornecimento não
conseguiria fazer render tudo o que aprendi até agora. E sobre
tudo, é um tipo de trabalho que não me interessa. Por isso, se
não houver alternativas, creio que provavelmente apresentarei
a minha demissão.
ARCOÍRIS
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As muitas emoções que me atravancavam o espírito fize
ramme falar de um modo realmente brusco. Naquele momento,
zangueime comigo mesma, com o meu péssimo carácter.
Apesar de existirem variados pontos que eu poderia ter
tocado — desde o prazer que sentia a fazer aquele trabalho, à
gratidão que nutria para com a sua pessoa, passando pela
minha ligação ao restaurante —, não tinha conseguido dizer
nada do género.
O director haviame escutado em silêncio, atónito, e eu, ali
viada pelo simples facto de ter conseguido falar, esperava uma
reacção dele.
A resposta chegou alguns dias mais tarde quando ele me
disse:
— Falei com o dono do restaurante e, vistas as coisas, deci
dimos prescindir da tua transferência para a empresa de forne
cimento. De um modo geral, aqui no restaurante, os caprichos
dos nossos empregados não são tidos em conta; desta vez,
porém, tanto eu como ele te compreendemos porque ambos
sabemos com quanta dedicação te entregaste ao trabalho. Por
isso, se porventura gostas de animais, não estarias interessada
em te ocupares durante um certo tempo dos animais do dono
do restaurante e, eventualmente, fazeres alguns trabalhos em
casa dele? Em poucas palavras, não gostarias de ser a gover
nanta daquela casa durante algum tempo?
Estava preparada para toda uma série de possibilidades,
mas quando senti aquela proposta fiquei sem palavras. Era um
desenvolvimento deveras inimaginável.
Em casa do dono do restaurante, a mulher dele estava prestes
a chegar ao fim da sua primeira gravidez. E logo nessas circuns
tâncias, a governanta que durante anos havia trabalhado para
eles decidiu despedirse. A substituta, uma governanta idosa
recomendada pela anterior, já tinha sido assumida, mas tendolhe
nascido um neto havia pedido um período de férias e agora
encontravase no estrangeiro. O director disseme, portanto, que
eu apenas devia cobrir aquele breve período de transição e que
seria suficiente que me ocupasse da casa conforme pudesse.
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YOSHIMOTO
Tinha o dinheiro que a minha mãe me havia deixado e tam
bém as poupanças que, pouco a pouco, havia posto de parte, e
estava segura que, se conseguisse descansar o corpo e a mente
durante um mês, depois estaria em condições para regressar ao
trabalho em perfeita forma. É certo que me assustava o facto de
o período de descanso poder prolongarse para além do pre
visto, pois eu sabia que, se porventura fossem substituídos todos
os empregados de mesa, depois seria bem mais duro recomeçar.
Dentro de mim fiz um cálculo veloz.
Se fosse trabalhar para casa do dono do restaurante, a opi
nião dele e da mulher a meu respeito seguramente melhoraria,
também poderia corresponder à gentileza do director e, por
fim, o meu físico iria restabelecerse. Tudo somado, se queria
continuar a trabalhar no Arcoíris, não tinha outras alternati
vas. Por outro lado, eu gostava de animais e também era com
petente nas lides domésticas, por isso, a factura a pagar não era
assim tão elevada.
— Aceito com todo o prazer — respondi.
Cinco dias por semana, limpeza da casa e tratar dos animais,
manutenção do jardim e ir às compras, eram estas as incum
bências do meu novo cargo. Pedi ao director que me deixasse
regressar ao restaurante assim que a nova governanta estivesse
pronta para retomar o serviço e ele aceitou de bom grado.
Prometi a mim mesma que trabalharia no duro e que volta
ria rapidamente ao meu verdadeiro trabalho. E de sorriso nos
lábios prepareime para dar início à minha inesperada carreira
de colaboradora doméstica.

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