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Urdimento: s.m. 1) urdume;
2) parte superior da caixa do palco,
onde se acomodam as roldanas,
molinetes, gornos e ganchos
destinados às manobras cênicas;
fig. urdidura, ideação, concepção.
etm. urdir + mento.
ISSN 1414-5731
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Número 11
Programa de Pós-Graduação em Teatro do CEART
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
URDIMENTO é uma publicação anual do Programa de Pós-Graduação em
Teatro do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina. As
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Esta publicação foi realizada com o apoio da CAPES
Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas /
Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de
Pós-Graduação em Teatro. - Vol 1, n.11 (Dez 2008) Florianópolis: UDESC/CEART
Anual
ISSN 1414-5731
I. Teatro - periódicos.
II. Artes Cênicas - periódicos.
III. Programa de Pós-Graduação em Teatro.
Universidade do Estado de Santa Catarina
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U rdimento
O ESPÍRITO TRAVESSO NA MÍMICA CORPORAL
DRAMÁTICA DE ETIENNE DECROUX
George Mascarenhas1
Resumo
Abstract
Este artigo tem como propósito
abordar os princípios técnicos e estéticos
da mímica corporal dramática com relação
à utilização de procedimentos cômicos em
sua criação artística. Através de uma análise
histórica, o texto destaca as características
principais da mímica corporal dramática
de Etienne Decroux e da pantomima, para
mostrar os diferentes percursos dos dois
estilos com relação à comicidade. Utilizando
como base os conceitos de Bergson de
mecanicidade e inadaptabilidade, o artigo
discute a presença da comédia na técnica
e repertório da mímica corporal dramática
decrouxiana.
The purpose of this article is to
approach the technical and aesthetical
principles of dramatic corporeal mime
in relation to the comic procedures
in its artistic creation. Through a
historical analysis, the text highlights
the main characteristics of Etienne
Decroux’s corporeal mime and classical
pantomime to show the distinct ways
in which both styles deal with comedy.
Based on Bergson’s principles of
mechanical rigidity and inadaptability,
the article discusses the presence of
comic procedures in the technique and
repertoire of corporeal mime.
Palavras-chave: mímica
dramática,
procedimentos
mecanicidade, inadaptabilidade.
Keywords: dramatic corporeal
mime, comic procedures, mechanical
rigidity, inadaptability.
corporal
cômicos,
Em muitas situações, ao me apresentar como mímico, escuto o
comentário cheio de surpresa, seguido, freqüentemente, de uma solicitação:
“Você é mímico? Oh, faça aí uma mímica!”. A solicitação do interlocutor se refere,
em geral, a uma ação de natureza supostamente espetacular, surpreendente ou
cômica, associada à manipulação de objetos invisíveis, típica da pantomima,
como tomar chá em uma xícara “invisível” ou fazer algo que possa servir de
jogo de adivinhação.
Dezembro 2008 - N° 11
1
George Mascarenhas
é ator e diretor teatral
formado pela École
de Mime Corporel
Dramatique (Londres),
Mestre em Artes,
Doutorando em Artes
Cênicas (PPGAC/
UFBa), professor
do Curso de Artes
Cênicas da Faculdade
Social da Bahia.
E-mail:
georgemascarenhas
@hotmail.com
O espírito travesso na mímica corporal dramática... George Mascarenhas.
79
U rdimento
Para evitar uma longa explicação de natureza teórica que aborde a
distinção entre a mímica corporal dramática de Etienne Decroux (MCD),
técnica que pratico, e a pantomima, apenas dou um sorriso amarelo, na maioria
das vezes... Outras vezes, digo sucintamente: “não, não é esse tipo de mímica...”
Raramente, nessas circunstâncias, é possível explicar que, com a mímica
corporal dramática, não posso retirar um coelho invisível de uma cartola
invisível, porque o estilo, o direcionamento artístico e estético apontam para
outro caminho, seguramente oposto àquele identificado com a pantomima.
2
Todas as citações
em língua estrangeira
têm tradução nossa.
No original: "And
this pantomime
seemed to me to be
systematically comic,
even before one knew
what the subject was.
And there we have it.
That said, I’ve let you
see my tastes a bit,
even before getting
on to the stage"
(DECROUX, 1978: 9)
3
Os termos drama
e dramático são
aqui utilizados como
designação do gênero
poético. As formas
dramáticas históricas
são indicadas
neste artigo por
adjetivação. Drama
sério refere-se aqui à
forma dramática que
trata de temas sérios
de modo sério.
A idéia deste tipo de número parece estar bem distante dos princípios da
MCD, o que torna a reação do interlocutor, quase invariavelmente, uma expressão
de frustração. Afinal, de que serve a mímica que não possa nos fazer rir entre
um salgadinho e outro? E, de outro modo, como o caminho estético da mímica
corporal dramática de Etienne Decroux dialoga com a perspectiva do cômico?
Em primeiro lugar, é preciso notar que o desejo daquele interlocutor
caracteriza uma das principais objeções de Etienne Decroux à pantomima,
técnica que declaradamente abominava:
E esta pantomima me parecia ser sistematicamente cômica,
mesmo antes de se saber qual era o tema. E era assim que ela existia.
Era como se ela dissesse ‘eu deixo vocês sentirem um pouco do meu
sabor’, mesmo antes de entrar no palco. (DECROUX,1978: 9)2
Na concepção de Etienne Decroux, uma arte deve ser “séria” antes de
ser divertida, ou seja, deve conter a possibilidade de tratar de temas graves,
de atingir a emoção do espectador em diversos níveis, de abordar conteúdos
humanos complexos como em um drama sério3 ou com um tratamento épico ou
mesmo através da comédia, mas nunca a priori com procedimentos exclusiva
ou predominantemente cômicos, como ele acredita ser o caso da pantomima.
Para Decroux, a pantomima “não tinha necessidade de tratar de um assunto
cômico; ela já era cômica por si só”. (DECROUX, 2003: 59)4
De fato, um olhar sobre a história da mímica, como gênero teatral, e
especialmente da pantomima, como estilo, desde sua origem na antigüidade
clássica, mostra o quanto esta arte é associada ao divertimento, ao jogo cômico
ou ao alívio da tensão no entreato de um melodrama ou por outro lado, ao
lirismo sentimental, mantendo, de todo modo, o espírito popular que a manteve
presente, durante muito tempo, nas feiras e praças públicas.
4
"Il n’avait pas besoin
de traiter un sujet
comique, il était déjà
comique."(DECROUX,
2003: 59)
Em sua origem na antiga Roma, enquanto o termo mímica era utilizado
para designar quase todos os tipos de drama diferentes dos gêneros clássicos
(tragédias, comédias, dramas satíricos) e não necessariamente implicava em
O espírito travesso na mímica corporal dramática... George Mascarenhas.
80
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U rdimento
atuação silenciosa, a pantomima era um estilo voltado para a encenação de
fábulas nas quais o pantomimus representava sem palavras as ações que eram
narradas pelo coro, acompanhado por músicos, versando em geral sobre
temas morais, como o adultério, ou ridicularizando situações políticas, sociais
e religiosas (MASCARENHAS, 2007).
Muitas vezes, os temas eram tratados com fortes cores obscenas e
grotescas, o que contribuiu para o surgimento de grandes antagonismos de
natureza moralista. Nos primeiros séculos da dominação cristã no império romano,
Os cristãos tinham dificuldade em entender porque os mímicos
satirizavam seus próprios deuses pagãos e se sentiram ultrajados
quando o Cristianismo começou a ser atacado. Ouvimos, por exemplo,
sobre uma peça de mímica que mimicava o batismo de um moribundo
em pânico com a salvação. (WILES, 1997: 63)5
O contexto de obscenidade, explorado pelo viés cômico, ainda segundo
Wiles, era um modo de manter uma certa liberdade no discurso, permitindo a
expressão de idéias e sentimentos contrários ao regime instituído, já que essas
peças centradas no ator, total ou parcialmente improvisadas, podiam escapar
mais facilmente da censura do que as formas de teatro com texto escrito.
Ao longo da história, o cômico manteve-se como o traço predominante
do estilo, embora nem sempre com esse caráter de transgressão. A pantomima
absorveu também características de um lirismo ingênuo sobretudo a partir
do trabalho de Jean-Gaspard Deburau (1796-1846), mímico francês que
se consagrou na figura do Pierrot e iniciou a tradição da pantomima branca
moderna, com os artistas de rosto pintado. Deburau, imortalizado no filme
“Les enfants du paradis” (O boulevard do crime), de Marcel Carné (1945), “mudou
o Pierrot [originalmente Pedrolino, zanni da Commedia dell’Arte] de um
velhaco cínico e grotesco em um camarada poético e trouxe uma expressão
pessoal para a fantasia, acrobacia, melodrama e encenações espetaculares que
caracterizavam as pantomimas do século XIX” (LUST, 2001)6.
De acordo com Innes (1997), foi a imagem farsesca e macabra do Pierrot
pálido de Deburau, interpretado por Jean-Louis Barrault no filme de Carné,
que se tornou a base para a criação do Bip de Marcel Marceau, responsável pela
popularização do estilo no mundo no século XX, com sua camiseta listrada e o
rosto melancólico pintado de branco. Explorando a tradição lírica de Deburau
e, mais freqüentemente, o caráter cômico despertado pelo ilusionismo a partir
da manipulação de objetos “invisíveis”, encontramos no trabalho de Marceau
poucas experiências com números que abordam temáticas mais densas ou de
Dezembro 2008 - N° 11
5
"Christians found it
hard to understand
why mime actors
made fun of their
own pagan gods, and
were outraged when
Christianity came in
for attack. We hear,
for example, of a
mime play which
mimicked the baptism
of a dying man panicked
about salvation".
(WILES, 1997: 63)
5
"He changed Pierrot
from a cynical,
grotesque rogue into
a poetic fellow and
brought a personal
expression to the
fantasy, acrobatics,
melodrama, and
spectacular staging
that characterized
nineteenth-century
pantomimes"
(LUST, 2001)
O espírito travesso na mímica corporal dramática... George Mascarenhas.
81
U rdimento
forma aproximada ao drama sério, dentre os quais se destaca Jeunesse, Maturité,
Vieillesse et Mort (Juventude, Maturidade, Velhice e Morte), na qual o mímico
representa as diferentes fases da vida em uma marche sur place (caminhada no
mesmo lugar, sem deslocamento).
Em oposição declarada e radical a essa tendência, muito em virtude
da visão de mundo e arte e das aptidões e desejos do seu criador, bem como
do momento histórico do seu surgimento, encontra-se a mímica corporal
dramática de Etienne Decroux.
O início da construção da mímica corporal dramática na primeira
metade do século XX, acontece em um período marcado pelos grandes
movimentos e manifestos modernistas e pela utilização de mímica e máscaras
como suporte de preparação para o teatro dito de texto - centrado na literatura
dramática -, a exemplo das experiências de Jacques Copeau na École du Vieux
Colombier, onde Decroux estudou.
7
"Tranquille dans
mon fauteuil, je vis
un spectacle inouï.
C’était du mime et
des sons. Le tout
sans une parole, sans
un maquillage, sans
un costume, sans
un jeu de lumière,
sans accessoires,
sans meubles et sans
décor."(DECROUX,
1994: 18)
8
"Le mime, pensaije, a mieux à faire
que de compléter un
autre art." (DECROUX,
1994 : 34)
Em 1923, o jovem anarquista que desejava se tornar orador
político, começou a freqüentar a École du Vieux Colombier que oferecia cursos
gratuitamente para quem se dispusesse a trabalhar como figurante nas peças
realizadas no teatro de mesmo nome. Apesar de seu firme propósito políticoideológico, Decroux acabou seduzido por uma experiência determinante em
sua trajetória: uma demonstração de máscara neutra, na qual descobriu o
princípio gerador de sua mímica corporal. “Tranqüilo em minha poltrona, eu
vi um espetá¬culo prodigioso. Era mímica e sons. Tudo sem uma palavra, sem
maquiagem, sem um figurino, sem um jogo de luz, sem acessórios, sem móveis
e sem cenário.” (DECROUX, 1994: 18)7
Cansado das formas de teatro convencionais do seu tempo, Etienne
Decroux começou a dialogar com a proposição da supermarionete de Edward
Gordon Craig e investigar uma forma de teatro centrada no trabalho corporal
do ator: “A mímica, eu pensava, tem mais a fazer do que completar uma outra
arte” (DECROUX, 1994: 34)8.
A técnica decrouxiana nasce então com uma vocação anti-naturalista,
um desejo de ser mais do que uma técnica de base para o teatro de texto e uma
clara distinção de outros estilos de mímica, particularmente, da pantomima.
Esses princípios de algum modo o levaram a radicalizar a lógica da arte séria,
dedicando-se muito pouco à exploração do cômico em seu repertório. O
conceito de arte séria, vale ressaltar, não é uma oposição ao gênero cômico
- até porque Decroux era um grande apreciador da comédia e de nomes
como Molière e Chaplin -, mas uma atitude contrária ao desejo exclusivo da
provocação ou da expectativa do riso a priori, ou da ilustração característica
do lirismo pantomímico.
O espírito travesso na mímica corporal dramática... George Mascarenhas.
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U rdimento
Segundo Corinne Soum, última assistente do mestre francês, ao
lado de Steven Wasson, em conferência proferida no ECUM-2002, em Belo
Horizonte, por esse traço distintivo em seu trabalho, Decroux tirou a mímica
da rua para dar-lhe o tratamento de um drama sério ou com influência épica,
eliminando sua natureza de comicidade a priori. O desejo de tratar do homem
em sua essência prometeica, grandiosa, mítica é talvez a principal razão pela
qual encontram-se poucas situações de exploração da comicidade no repertório
de peças e figuras (exercícios cênicos de curtíssima duração) criadas por ele.
Para Decroux (1978), um homem que se levanta é emblema da
humanidade inteira, no que ela tem de luta, paixão e sofrimento – daí a imagem
do caráter prometeico. Não à toa, encontramos em sua obra referências à
mitologia e a atos heróicos ou de grande valor moral, a exemplo das peças
Le combat antique (O Combate Antigo) e La vie primitive (A vida primitiva) e das
figuras de estilo La caresse sur le dos de Venus (A Carícia nas Costas de Vênus) e Le
fils prodigue (O Filho Pródigo).
A busca de Decroux volta-se para o homem em essência, cuja luta,
expressa corporalmente através da exposição do conflito com a gravidade
terrestre, é resultado das diversas lutas internas do pensamento. Ao dirigir
sua técnica para a fisicalização do pensamento, Decroux oferece à mímica um
caráter fortemente abstrato, radicalizado em peças como La Meditation (A
Meditação), Le Prophète (O Profeta) ou La Femme Oiseau (A Mulher Passarinho),
afastando-se ainda mais da exploração da comicidade.
Interessa, em primeiro lugar, a transposição cênica denominada por
ele de “retrato do invisível”, a criação de imagens visíveis do pensamento,
das lutas e aspirações humanas presentes no cotidiano mais prosaico ou
nas molduras mais míticas, em oposição a uma perspectiva ilustrativa ou
representativa.
Do ponto de vista da técnica propriamente, Decroux brinca com a
lógica aparente ou contraditória das linhas, do peso e do volume corporal,
em uma estrutura muitas vezes fragmentada, afastando-se dos princípios
neo-aristotélicos de construção dramatúrgica, para criar sequências de ação
interrompida, e, poderíamos dizer, editada: ao escorregar em um pedaço de
sabão, a Lavadeira (La Lessive, 1931), que acabou de estender suas roupas em
um varal, desliza para o fim do seu dia e retira as roupas já secas.
A preocupação com a fábula desaparece, permanecendo apenas como
fonte de inspiração para a criação artística. A “historinha” contada em cena
está em segundo plano, ofuscada pelo desejo de expressar o mundo invisível,
imaterial, o pensamento e o sonho de um homem em luta, restando, em alguns
casos, poucos pontos de referência identificáveis de fábula unívoca.
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O espírito travesso na mímica corporal dramática... George Mascarenhas.
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U rdimento
Na MCD, é a ação física que gera novas ações. Sai a causalidade da ação
e reação psicológica ou factual para entrar em cena a causalidade corporal:
assim como o “peso decisivo” faz a balança pender para um lado, o “peso
decisivo” de um braço pode fazer todo o corpo inclinar-se naquela direção.
De fato, esta ênfase sobre o corpo é determinante na construção artística
na MCD, não importa o tratamento dado à ação ou o gênero escolhido. Assim,
comédia ou drama sério se dão no corpo, não necessariamente em silêncio, pela
causalidade física. Pode-se observar no entanto uma tendência não-cômica em
sua origem, tanto no que se refere aos princípios fundamentais de natureza
filosófica quanto no uso dos procedimentos técnicos propriamente ditos.
Guy Benhaim (2003) fala da imobilidade presente na técnica como sendo
o ponto de deslize da MCD em direção ao drama sério. A imobilidade, como
procedimento artístico marcante do estilo da mímica corporal dramática reportase à expressão de uma reflexão, um pesar, uma luta interna do homem: no ato da
meditação, da hesitação, da memória, do devaneio, há uma parada, uma suspensão
interna. Essa parada mental é expressa corporalmente, na MCD, através da
imobilidade, da interrupção da ação física, de uma parada literal no movimento.
9
"Les mauvaises
nouvelles, les bonnes
nouvelles provoquent
dans le corps des
manifestations
différentes, ce sont
des dynamo-rythmes.
La passion c’est d’abord
le dynamo-rythme.
C’est un luxe qu’un
animal puisse se
déplacer et il y a
des animaux qui ne
se déplacent pas du
tout. Comme seules
manifestations ils ont
la contraction et le
relâchement: c’est du
dynamo-rhytme. Oui,
le dynamo-rythme,
c’est ce qui exprime
le plus inténsement la
passion". (DECROUX,
2003: 129)
No entanto, embora o princípio da imobilidade seja inegável e de
máxima importância na técnica, o próprio Decroux privilegia o dínamo-ritmo
(conjunto de combinações específicas na MCD de força e velocidade da ação),
como sendo a alma do movimento.
As más notícias, as boas notícias provocam no corpo
manifestações diferentes: são os dínamo-ritmos. A paixão é, antes de
tudo, dínamo-ritmo. É um luxo que um animal possa se deslocar e
há animais que não se deslocam de modo algum. Como manifestações
únicas eles têm a contração e o relaxamento: isso é dínamo-ritmo.
Sim, o dínamo-ritmo é o que exprime mais intensamente a paixão.
(DECROUX, 2003: 129)9
Neste sentido, o tempo, o ritmo e a dinâmica em que uma ação acontece
a empurram em direção ao drama sério ou à comédia. Assim, o movimento de
um único dedo, através da causalidade corporal, pode levar o corpo inteiro ao
chão, mas o efeito (cômico ou sério) dependerá em grande parte do dínamoritmo em que for realizada a queda. Não é, portanto, apenas a imobilidade o
procedimento técnico que mais aproxima a MCD do drama sério, mas o dínamoritmo aplicado à situação. A própria imobilidade pode ser um procedimento
cômico, na medida em que seja criada uma incongruência entre a situação e o
tempo em que se permanece imóvel.
O espírito travesso na mímica corporal dramática... George Mascarenhas.
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Dezembro 2008 - Nº 11
U rdimento
Ao refletir sobre o cômico, Decroux entende que a comicidade se
encontra na mecanização com a qual uma ação é desempenhada: “O homem é
cômico quando é mecânico. O que caracteriza a mecanicidade, é que ela não se
adapta e o homem é cômico quando é inadaptado” (DECROUX, 2003: 193)10.
Esta reflexão tem um forte ponto de aproximação com o pensamento
de Henri Bergson, para quem o riso advém, justamente, do automatismo e da
inadaptabilidade, já que, nas situações cômicas, se tem “a impressão de estar,
simultaneamente, diante de uma pessoa e de um mecanismo” (MENDES, 2006: 90).
Em O Riso - Ensaio sobre a Significação do Cômico, texto publicado
pela primeira vez em 1900, Bergson ilustra a noção de automatismo cômico
utilizando-se de dois exemplos: a queda na rua e a “pegadinha” do escritório.
10
"L’homme est
comique quand il
est mécanique. Ce
qui caractérise la
mécanique, c’est
qu’elle ne s’adapte
pas et l’homme est
comique quand il est
inadapté." (DECROUX,
2003: 193).
No primeiro caso, um homem que corre na rua tropeça em uma pedra
que estava no meio da calçada e cai, sendo objeto de riso de passantes. Segundo
Bergson (2005), o riso acontece não porque houve uma mudança brusca de
atitude, mas porque esta mudança aconteceu involuntariamente. É provável
que ninguém risse se o sujeito tivesse a intenção de sentar-se na calçada. E
para evitar a queda, bastaria que o corpo se desviasse, se adaptasse à situação
drummondiana de que no meio do caminho havia uma pedra, havia uma pedra
no meio do caminho.
No segundo caso, um brincalhão altera os objetos de alguém que se dedica
a suas ocupações com uma “regularidade matemática” e o faz colocar sua pena em
um pote de lama, sentar-se no vazio e, portanto, cair no chão, porque a posição
da cadeira foi alterada, etc. Bastaria uma interrupção por parte da vítima da
“pegadinha”, um momento de imobilidade, uma parada, para que as ações fossem
reorientadas para o percurso desejado originalmente. Todavia, a imobilidade
que corrigiria o desvio poderia se tornar o próprio procedimento cômico, caso a
personagem se mantivesse em seu trajeto matemático, sem os necessários ajustes,
mesmo após o tempo de reflexão. E ainda assim, tudo dependeria do dínamoritmo com o qual a parada fosse realizada e a ação retomada.
Nos dois casos, de acordo com Bergson, é a obstinação corporal, o
automatismo, que faz com que o sujeito mantenha uma linha reta na corrida
ou continue trabalhando com objetos truncados. “As atitudes, gestos e
movimentos do corpo humano são risíveis na exata medida em que este corpo
nos faz pensar em uma simples mecânica.” (BERGSON, 2005: 28)11
Mesmo considerando a importância do aspecto do automatismo na
construção cômica, encontramos no repertório da MCD um exemplo que parece
contradizer o pensamento de Bergson e a própria reflexão de Decroux.
Dezembro 2008 - N° 11
11
"Les attitudes, gestes et mouvements
du corps humain sont
risibles dans l’exacte
mesure où ce corps
nous fait penser à
une simple mécanique".
(BERGSON, 1924 : 28)
O espírito travesso na mímica corporal dramática... George Mascarenhas.
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U rdimento
Em L’usine (A fábrica), peça decrouxiana de 1946, homens estão
trabalhando. Ouvem-se o apito e sons mecânicos. As ações humanas são
desempenhadas com o máximo de automatismo. O efeito estético é sempre
mais impressionante quanto mais precisamente forem desempenhadas as
ações pelo grupo. O mímico não representa uma máquina. O mímico é a
imagem do homem que trabalha na fábrica e cujas ações repetitivas em série o
fazem fundir-se com a máquina, pela natureza do seu trabalho. O automatismo
de A Fábrica revela uma espécie de crítica - reflexo da ideologia política de
Etienne Decroux - às longas jornadas de trabalho massacrante dos operários
nas fábricas das décadas de 30/40.
Apesar disso, diferentemente do tratamento dado ao tema, por
exemplo, por Chaplin em Tempos Modernos (1936), o resultado estético de A
Fábrica não tem um efeito cômico. Falta-lhe ainda o traço de inadaptabilidade,
observado aqui como um aspecto distinto da mecanicidade.
O homem de A Fábrica, embora concentrado no automatismo de suas
ações, é integralmente adaptado a elas e as desempenha com uma precisão
matemática. No único momento lírico da peça, alusão ao intervalo entre as
jornadas, o homem descansa e devaneia, ao contrário da personagem chapliniana
que continua apertando parafusos nos botões da saia de uma funcionária da
fábrica, sem conseguir despregar-se do automatismo imposto pelo trabalho. Na
peça decrouxiana, ao fim do tempo de descanso, o trabalho é retomado com as
ações em série. O desvio em Chaplin é a continuidade do automatismo quando
ele não seria mais necessário. Em A Fábrica, não há desvios e, portanto, mesmo
na presença do automatismo mais absoluto, não há comédia.
Mecanicidade e inadaptabilidade aparecem juntas, no entanto, em outra
peça de mímica corporal dramática, L’esprit malin (O espírito travesso), criada
em 1946 por Maximilien Decroux e Eliane Guyon, sob a orientação do mestre
Decroux. Na peça, um homem é assombrado por um espírito. Sentado em sua
cadeira, vê, com surpresa, que seus braços (são os do “espírito travesso”) fazem
movimentos involuntários complexos. Pára, como se se perguntasse como ou
porquê sua mão está fazendo isso, mas continua o seu trajeto de ações. Um
terceiro braço surge e as situações construídas são acompanhadas com um ar
de espanto investigativo, um olhar absoluto sobre a situação. O homem acende
um cigarro e vê surgirem outros três e, ainda assim, busca uma explicação. Na
lógica da cena, o “Esprit Malin” se esconde e se revela como e quando deseja e
o “assombrado”, apesar de um pouco intrigado, continua agindo como se nada
estivesse acontecendo.
O tema, tantas vezes abordado pelo cinema, bem poderia ser tratado
em O espírito travesso com uma atmosfera sombria, como uma peça de terror.
Mas, no caso da peça decrouxiana, o dínamo-ritmo que determina a alma
O espírito travesso na mímica corporal dramática... George Mascarenhas.
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Dezembro 2008 - Nº 11
U rdimento
interpretativa do movimento confere à situação um sentido de jogo. O
fantasma não está ali para acertar pesadas contas cármicas passadas, nem para
aterrorizar o homem. Ele volta para brincar.
O espírito travesso constitui-se, assim, em uma peça exemplar de
comicidade na mímica corporal dramática de Etienne Decroux, na medida
em que investe na combinação do automatismo e da inadaptabilidade, calcada
na elaboração das ações e do dínamo-ritmo, oferecendo uma personagem que
mantém uma relação continuada com seu “cotidiano”, mesmo diante de uma
situação inusitada.
Como procedimento cômico, O espírito travesso joga com uma “lógica
trapaceira e auto-suficiente” (MENDES, 2006: 90), assim como um Chaplin que,
disfarçado de abajur, consegue esconder-se do policial. O espectador é levado
para o lugar de uma outra realidade na qual tudo parece ser possível, sendo o
jogo corporal dos atores o elemento determinante para deflagração do riso.
Qual riso? O riso que lembra um jogo infantil, na lógica do cômico
inocente ou do “cômico absoluto” de Baudelaire, aquele das crianças que é
“como um desmaio de flor. É a alegria de receber, a alegria de respirar, a
alegria de se abrir, a alegria de contemplar, de viver, de crescer. É uma alegria
de planta.” (BAUDELAIRE, 2005: 22)
No estilo decrouxiano, a comédia está muito mais vinculada ao tipo
de riso que acontece diante de situações que contrariam os padrões lógicos e
o bom-senso (MENDES, 2005). Ao contrário do que sugere Bergson, o riso
na MCD não é aquele implicado pela noção de superioridade daquele que ri,
nem de degradação do objeto, mas é aquele que se traduz pelo inusitado –
lembrando mais uma vez Chaplin e Molière – de um espírito travesso.
Referências bibliográficas
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artes plásticas. Repertório Teatro & Dança. Salvador : UFBa/PPGAC, ano 8,
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O espírito travesso na mímica corporal dramática... George Mascarenhas.
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O espírito travesso na mímica corporal dramática... George Mascarenhas.
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