Nº3 | 2012 - Escola Secundária de Peniche

Transcrição

Nº3 | 2012 - Escola Secundária de Peniche
Nº3 | 2012
PAIDEIA. Revista da Escola Secundária de Peniche
N.º 3/2012
Ficha Técnica:
Editor: Escola Secundária de Peniche
Diretor: José António Diniz
Coordenador: Miguel Dias Santos
Capa: Joana Sebastião
Impressão: GTO 2000, Lda - Bombarral
Depósito Legal: 311254/10
ISSN: 1647-6042
Periodicidade: Anual
Notas: Foi respeitada a grafia original dos textos; as afirmações e opiniões são da exclusiva responsabilidade dos seus autores.
Paideia, revista da escola secundária de
Peniche
Identidade(s)
N.º 3 | 2012
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
APRESENTAÇÃO
A escola secundária de Peniche é uma construção histórica, evolui como o
próprio conceito de identidade, fluído e dúctil, ajustando-se às circunstâncias de
tempo e de espaço. Essa identidade resulta por isso da consciência assumida na sua
relação com a comunidade de Peniche, sua região natural, com a sua psicologia
coletiva, com as suas dinâmicas sociais, vivendo as suas crises e experimentando os
sinais da sua vitalidade e criatividade. Esse diálogo contextualizado consigo própria
e com o(s) outro(s) – que determina, afinal, a essência da identidade – exprime-se
no quadro de valores com que interage, fazendo eco dos jogos de forças políticas,
sociais e culturais que lhe cerzem o modelo.
Por um lado, o capitalismo financeiro global, em irmandade submissa com
os poderes da Cidade, exige-lhe o primado do económico, pede-lhe consumidores
ávidos e vorazes, eles próprios empreendedores, e impõe-lhe o modelo de gestão
empresarial, racional e contabilístico. A escola secundária de Peniche arrisca assim
regressar à sua matriz identitária genética, de produtora de técnicos e de espíritos
empreendedores que transformem a economia e a sociedade. Por outro, acenam-lhe
alguns, esclarecidos pelas letras, com uma profunda crise espiritual que ameaça a
cultura ocidental, o humanismo e a matriz judaico-cristã, onde se ancorava a europa
dos valores absolutos do espírito, a liberdade, a probidade, a tolerância, a moral e a
sensibilidade estética. Afirmam esses que só a escola poderá elevar o homem atual
da sua superficialidade, do seu niilismo materialista e hedonista, até às alturas do
espírito, vivendo na verdade e criando beleza.
Como classificar hoje a cultura ocidental das identidades individuais e soberanas, se o individualismo se estilhaçou em mil (milhões!) fragmentos iguais (isto
é, idênticos, do latim identis, os mesmos), vivendo alienados no desejo e no medo?
Pensamos que só a humanização da cultura técnica e científica hoje reinante nas escolas e universidades, fazendo-as regressar às humanidades, permitirá a recuperação
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desse modelo de educação ideal, na presunção de que só o espírito pode transformar
o Homem.
Serão o idealismo e o humanismo parte essencial da identidade cultural e social da escola pública? Nós acreditamos que sim.
Miguel Dias Santos
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ARTIGOS
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
FILOSOFIAS DA REPÚBLICA
Paulo Archer de Carvalho1
Neste texto discute-se sumariamente as «filosofias da república», termo que,
no singular, Blandine Kriegel utiliza num livro conhecido (1998). Talvez se deva
atar o conceito a teorias da república que Serge Audier explora em obra recente
(2004), para melhor se evidenciar o carácter conflitual e não-acabado que o republicanismo usa, na diacronia dos discursos, para decifrar a complexa gramática do
tempo. De qualquer modo, filosofias da República é um modo suficientemente largo
para evidenciar a dialogia dos discursos republicanos.
Sabe-se que o conceito clássico de res publica, coisa pública, aponta para a
origem patriarcal da Roma clássica e distingue-se da res familiares, res patria, patrimonium, aplicada aos bens patrimoniais ou seja, do pater familias. Res patria é
privativo ou exclusivo, identifica certos bens, certos privilégios, de certas pessoas.
Enquanto res publica, tomou a semântica de inclusividade, com a abolição da monarquia em Roma (509 a. C.), numa longa temporalidade na qual as classes populares, a Plebe, através de plebiscitos, do concilium plebis e da indicação de Tribunos
e Edis, exigiu maior participação na administração pública (R. Ferreira, 2006). De
resto, ad ministrare a res publica é por-se ao serviço, servir a causa pública. Daí a
abrangente semiologia de pátria, que passou a assinalar quer a comunidade local
(patria loci) quer a comunidade de cidadãos (patria communis) no sentido histórico,
invocando o comum signo de herança cultural e política mas também os conteúdos
jurídicos do pacto, direitos e deveres da cidadania. Na célebre asserção de Cícero,
Res publica id est res populi, a coisa pública é coisa do povo, objecto da participação
e – na versão mais ousada – do governo popular. Sob a vasta influência grega dos
Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Coimbra. Investigador no Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, da Universidade de Coimbra.
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conceitos de nomos e eunomia (lei e bem comum, iustificando a noção contratualista
do pacto) e de constituição escrita (a politeia dos gregos) plasmada na Lei das Doze
Tábuas, a República institui-se como plataforma de estabilidade possível, «constituição mista», no dizer de Políbio, equilíbrio que aspirava à síntese superadora dos
modelos monárquico, aristocrático e democrático da politeia e, sobretudo das suas
perversões (a tirania, podridão monárquica; a oligarquia, perversão aristocrática; e
a demagogia corruptela da Democracia).
Na imo do conceito de República instala-se assim a) a noção dos direitos e
liberdades civis, b) de não interferência na esfera jurídica do cidadão (o que goza
de direitos, à revelia de uma multidão de excluídos dos direitos de cidade, i. e., de
cidadania, como as mulheres, os escravos, os não-romanos) que c) consubstanciam
a «liberdade dos antigos», basicamente negativa e cautelar. Contudo, serão na queda
da República e na fixação consular e imperial, os direitos civis calcados pelo ius
imperium e a auctoritas do pontífice máximo, o imperador. O ideal de auto-governo
e da procura das leis justas para a Cidade submerge-se na potestas, poder discricionário de um só sobre muitos, não como uma ditadura republicana temporária,
mas como decisivo facto inscrito na estrutura política da monarquia centralista que
Roma passou a ser.
O conceito de res publica christiana afirmado na Idade Média, primitivamente
atendia mais ao conteúdo espiritualista e agostianiano do que à afirmação do poder
temporal da Igreja, mas, como se sabe, mais tarde iria afirmar-se com o cesaropapismo e o crescente poder mundano de Roma. Os dois gládios irmanavam-se num
só corpo.
No ocaso medieval, com o Humanismo renascente nas Repúblicas italianas,
o primitivo conceito será retomado de modo novo, mormente no humanismo cívico
do «momento maquiavélico». O republicanismo ressurge como afirmação duma vita
activa contra o primado medievo da vita contemplativa, na versão da chancelaria
republicana florentina do século XV (Coluccio Salutati, Leonardo Bruni), em busca
da harmonia e da paz entre os cidadãos, reanimando o conceito ciceriano de virtus e
integrando-o na noção aristotélica de «animal político», em já clara antropologia da
pólis e numa “teoria política na sua forma original mais pura” (Pocock, 2002,159).
Mas será Maquiavel (Discursos sobre a I Década de Tito Lívio, 1513-20, Arte da
Guerra, 1521 e Histórias florentinas, 1525), na perspectiva conflitualista e Moderna
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e superando o comparativismo acerca do «melhor regime» e o temor da cisão conflitual exarado pelos Antigos, quem alegará a eficácia da República na estatuição do
bem comum e da liberdade dos cidadãos. A sua visão, contra a apologia da Concórdia de Cícero, leva-o a ressalvar a República como o lugar não do consenso absoluto
mas palco dos conflitos sociais e políticos que, nas suas metamorfoses, permitem a
emergência de soluções novas. Em suma: contra a prudência e o recato dos Antigos,
os Modernos situam a República como o limiar possível de um novo mundo. Com
Maquiavel, República e republicanismo passam a ser sintagmas de uma filosofia da
acção e, até, de uma filosofia prática, no sentido da virtù, não só elaboração ética do
bem comum, mas filosofia política da regulação e manutenção do poder (Archer,
2010).
Esta atitude nova seria particularmente visível com a divulgação na Europa
ilustrada do termo «república». Ela aplica-se nos séculos XVII e XVIII, em particular, à «república das letras» como Fernando Catroga recentemente analisou
(Biblos, 2010), ideia universalista que a elite instruída persegue sobre diferenças
religiosas, linguísticas ou políticas. Na República das Letras sobreleva o espaço do
diálogo e da confrontação sã das ideias. A crescente recentração do Homem no seu
mundo, a revolução copernicana e antropotélica, i.e., antropocrítica (M. Baptista
Pereira, 1990;1999), o impacto das Luzes na procura da harmonia e felicidade comuns, bem espelhada nas teses kantianas sobre a Paz universal ou nas Declarações
dos Direitos do Homem que acompanham as etapas da Revolução francesa, a subversiva mãe da conservadora Europa dos nossos dias. O progresso, como ideologia,
com Vico e Condorcet, triunfara. O homem afirmava-se como o seu próprio destino.
E a ideia de República ganhava novos conteúdos, na mente daqueles que a projectavam numa Res publica universalis, pátria comum da Humanidade que Victor Hugo
e com ele os republicanos de 1848, iriam entoar em cânticos nem sempre claros ao
mundo novo. O conceito da liberdade civil, passados os tempos jacobinos de um
vanguardismo prematuro, restava como base conceptual.
II. O republicanismo estrutura assim fragmentos de uma filosofia da história.
À visão republicana da história não são estranhos os últimos desenvolvimentos do
romantismo, mormente profetismos e evangelismos sociais. Não se esqueça do aceso debate intelectual hegemonizado pelas filosofias da história (Vico, Herder, Kant,
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Hegel, Marx) e, depois, pelo sociologismo (Comte, Durkheim; Duguit). Reformulada no último quartel do século XIX sob alanco do positivismo, evolucionismo e
cientismo e, em geral, sob o giro intelectual que a III República francesa faculta, essa
visão, muito activa na propaganda doutrinária do republicanismo português nesse
período e na transição para o novo século (Teófilo Braga, Consiglieri Pedroso, Basílio Teles), assenta numa dúplice operação mental que recria ou mimetiza as grandes
narrativas míticas da criação do mundo. Assim, a História, como praxis republicana
da memória, basicamente estrutura uma cosmogonia e uma antropogonia.
Em primeiro lugar, uma cosmogonia, de acordo com a passagem sucessiva
da invariável lei comtiana dos três estados: porque do velho Kaos (teológico ou
metafísico) o historicismo republicano elegia a dimensão positiva, ordenadora, regeneradora e redentora da temporalidade, que a Anunciação (e Enunciação) deveria
cumprir. O triunfo da República parecia o inevitável corolário, inscrito numa inexorável evolução cósmica, que evolucionismo e cientismo fundavam. Assim, na
lógica triádica radicava uma evidente dimensão messiânica. Daí que, em segundo
lugar, a (re)criação do mundo confluísse numa antropogonia, permita-se o termo: do
informe Kaos brotava uma antropologia exageradamente optimista sobre a bondade
natural do homem que no limite abstraía da sua própria historicidade: dessa refundação, secularizada a velha mensagem das Escrituras e laicizado o ethos, nasceria o
homem novo republicano (Archer, DRR, 2010; PHVR, 2010).
A história seria o simultâneo processo ontogénico e filogénico encontrado para
reatar o homem com o seu destino, inscrevendo-o num futuro harmonioso. O legado
positivista de Comte era subscrito pelos ideólogos do republicanismo português,
mas com uma capital alteração: o papel destinado ao sociocrata, analista da Física
ou Estática Social, destinava-se aqui ao estudiosos da dinâmica social, o historiador. A crença na perfectível natureza humana, herdada do Iluminismo, mantinha-se
intacta. Repare-se no paradoxo «natureza humana» que parece abstrair da histórica
rebelião que as comunidades humanas vêm escavando contra a Mãe-Natureza. Mas
é a expressão mais adequada ao republicanismo que não só intentou uma pedagogia
política como pensou toda a actividade política como pedagogia. Em síntese, tal
como os Iluministas de Setecentos, também os republicanos do final do século XIX,
estavam “empenhados em nos fazer crer que somos felizes” – como escrevera Diderot, em 1751, num dos artigos matriciais da Enciclopédia («Art»). Árdua tarefa,
essa crença.
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III. Mas a ilusão redentorista, épica e «heróica» que a República em si própria
nutriu e susteve, em grande parte explica a desilusão que expressivos vultos republicanos irão manifestar após 5 de Outubro de 1910. Releva este aspecto, sobretudo
porque – contra a ciceriana Prudência dos antigos e o «ponto de equilíbrio» que o
republicanismo não pode perder sob pena de degradar a poliarquia (Ph. Pettit) em
demonstrações abusivas e intolerantes da tolerância – o modelo laicizador prosseguido, sobretudo na fase ofensiva até 1917, iria expor as debilidades da concepção
jacobina e a ausência da funda revolução demopédica que, afinal, continuava por
fazer. Não tem outro sentido, elegendo exemplos maiores, a dissenção pública de
Raul Proença ou mesmo da Seara Nova e o seu apelo à virtù da livre consciência
pactual, ao arrepio dos que normativizaram (e intentaram normalizar) a consciência
própria omitindo o fundamento dialógico do pacto, assente na diversa e díspar onticidade dos sujeitos. O resultado foi o achatamento da racionalidade do sujeito numa
primária ontologia com numerus clausus que, na prática, descriminava os cidadãos
entre descrentes, crentes e indiferentes.
Decerto, o discurso normalizador não era inédito na diacronia da sociedade
portuguesa se projectarmos o tempo-instante (do speach-act) na média duração das
práticas políticas; e, por maioria de razão, na longa temporalidade das representações sociais e mentais da intolerância como ideologia unificadora. O que (hoje é
demasiado óbvio), conduziu a resultados contraproducentes, ampliando as fracturas
sociais.
Neste comentário sobre a República e as suas filosofias, atendendo aos difíceis
dias que correm, para não me alongar mais, acrescentaria o enunciado que alguém
sabiamente deixou, acentuando o carácter pragmático e equilibrado que a República
(re)faz: “deixemos o pessimismo para tempos melhores”.
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IDENTIDADE TERRESTRE: UM CONSTRUCTO QUE TEM POR
BASE A CULTURA CIENTÍFICA
Orlando Figueiredo2
Globalização! O chavão da nossa Era! O desenvolvimento científico do Iluminismo Europeu iniciou uma revolução epistémica sem precedentes. Para o bem
e para o mal as sociedades industriais desenvolveram-se e, no final do século XX,
a tecnologia reduziu o planeta ao intervalo de tempo infinitesimal. O século XXI
coloca os nossos semelhantes do outro lado do mundo à distância de um clique e o
consumo de produtos exóticos a, apenas, algumas semanas de viagem. Sustentadas
por uma economia termodinâmica, as sociedades transacionam bens físicos e culturais a uma velocidade que não tem precedentes na antropohistória e, ainda menos,
na geohistória. Esta é, talvez, a faceta mais conhecida da Globalização; contudo,
nesta aldeia global (perdoem-me o lugar-comum) e multicultural novos problemas
emergem e assumem, eles próprios, uma dimensão universal. A mesma tecnociência
que assegura o desenvolvimento desta relação universal, simultaneamente, constrói
saberes — diagnósticos e prognósticos — que questionam a sua possibilidade, pelo
menos nos moldes em que se tem vindo a desenvolver.
Tendo por pano de fundo o mundo do final do século XX, a UNESCO, pela
mão de Gustavo López Ospina, então diretor do projeto “Educação para um futuro
Sustentável”, pediu ao filósofo francês Edgar Morin que elaborasse um conjunto
de propostas para a educação do século XXI. Desse desafio resultou o livro Os sete
saberes para a educação do futuro (Morin, 2002), saberes esses que passo a enumerar: (1) As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão; (2) Os princípios de um
Doutorando. Docente do Departamento de Matemática e Ciências Experimentais da Escola Secundária de Peniche..
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conhecimento pertinente; (3) Ensinar a condição humana; (4) Ensinar a identidade
terrestre; (5) Afrontar as incertezas; (6) Ensinar a compreensão e (7) A ética do género humano. Não é minha intenção discutir os sete saberes propostos; somente irei
discutir o saber número quatro porque se enquadra na temática “Identidades” deste
número da Paideia. Para discutir a Identidade Terrestre irei, à semelhança do autor,
centrar-me no conhecimento científico para discernir acerca da condição humana
(que o autor considera como o terceiro dos saberes) e nas relações internas e externas da nossa espécie.
Como referi no início desta reflexão, a história hodierna testemunha a dimensão planetária da nossa época. Dimensão planetária que se iniciou no século XVI
com a expansão marítima das nações ibéricas; contudo é na segunda metade do
século XX que o desenvolvimento tecnológico amplifica os efeitos da ação humana
ao nível planetário e faz emergir a possibilidade de um destino global. Gosto de ver
na ciência a maior lição de humildade a que a espécie humana já alguma vez se submeteu. Reconheço que, numa primeira análise, esta lição está de tal forma obstruída
pelo deslumbramento do que fomos capazes de construir e desenvolver, que pode
tornar quase grotesca a afirmação; contudo, ao longo deste texto, procurarei mostrarvos precisamente o contrário, senão vejamos. Situamo-nos num contexto Europeu,
onde o antropocentrismo, sustentado pelos monoteísmos abraâmicos atingiu o seu
auge, com o tomismo3 cristão. Escolhemos este contexto geohistórico, não por um
chauvinismo eurocêntrico; mas porque foi no contexto da Europa renascentista que
se começou a construir a cultura da racionalidade científica que viria a disseminarse por (quase) todas as sociedades do planeta. Pergunte-se então: de que forma a
ciência pode ser uma lição de humildade para os humanos?
No antropocentrismo tomista, a humanidade, ou melhor dizendo o homem
Designação atribuída à mundividência cristã medieval construída por Tomás de Aquino (1225 –
1274) no século XIII e que esteve subjacente à sociedade Europeia durante vários séculos. Frequentemente refere-se que durante a idade média, até as ideias de Nicolau Copérnico (1473 –1543) e Galileu Galilei (1564 – 1642) emergirem no século XVI e XVII, que o aristotelismo dominava as ideias
e constituía as bases da mundividência na Europa. É sabido que as ideias de Aristóteles (384 a.e.c.
– 322 a.e.c.) tiveram uma forte influência na construção da mundividência medieval; mas parecenos mais justo atribuir essa tarefa a Tomás de Aquino. O frade dominicano adaptou a mundividência
aristotélica ao monoteísmo da Europa cristã. De facto, são muitas as diferenças entre o aristotelismo
e o tomismo a começar pelo papel preponderante que o criador tem no primeiro e a abordagem não
teísta preferida por Aristóteles. Também me parece pertinente salientar a ideia aristotélica de continuidade biológica entre os humanos e os outros animais (ainda que Aristóteles veja nos humanos o
pináculo da existência, como está bem patente na sua obra Política) que é, simplesmente, ignorada,
no contexto do tomismo.
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cristão, criado à imagem e semelhança do único deus verdadeiro, é tido como o
grande e único propósito da criação; tudo o resto — mundo natural, animais, plantas, rios e montanhas... — é somente o setting, divinamente criado, para servir os
humanos. Esta ideia está bem patente no primeiro dos cinco livros do Antigo Testamento como testemunha o versículo “Então Deus os abençoou e lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar,
sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra” (Génesis 1:28). Outras interpretações são possíveis; mas o direito de intendência sobre o
mundo não humano que é atribuído pelo deus de Abraão à humanidade, não é inócuo na construção da mundividência antropocêntrica. Por outro lado, a cosmologia
tomista, inspirada nas esferas concêntricas de Aristóteles onde a Terra ocupa o lugar
privilegiado de centro do Universo, constrói um Universo onde a simetria celeste e
Terrestre se complementam. Na esfera celeste é deus quem governa os seus exércitos de criaturas celestiais; no mundo terreno o papa, seu nomeado, governa toda a
terra exigindo favores e vassalagem aos reis cristãos.
Quando Galileu refuta as ideias tomistas, refuta, simultaneamente, a simetria
terrestre-celeste que garantia a ordem na Europa (e no mundo, segundo a convicção
cristã), elabora primeira lição de humildade que a ciência nos deu: o nosso mundo
não é o centro do Universo; é somente uma pequena esfera, ligeiramente achatada,
que, à semelhança de outros planetas, revoluciona em torno de uma estrela. A casa
da humanidade perde a centralidade divinamente concedida e torna-se em mais uma
estrela vagabunda, um planeta4. A cosmologia de Copérnico e Galileu acaba por se
impregnar, mesmo nas mentes mais cristianizadas; porém, apesar da perda dramática da centralidade cósmica, mantém-se a crença de uma descontinuidade evolutiva
entre a espécie humana e as outras espécies. Precisamos esperar pelo século XIX e
pelo génio de Charles Darwin (1998) para que fosse lançada alguma luz acerca da
Origem das Espécies. O darwinismo, tal como o heliocentrismo, revelou-se polémico e pouco consensual; não é fácil abdicar da primazia atribuída pelo criador em
pessoa. As ideias de Darwin e dos que se lhe seguiram, sobretudo os neodarwinistas,
deitam por terra a presunção de descontinuidade biológica entre a espécie humana
e as outras espécies; a ciência faz do Homo sapiens sapiens, à semelhança das outras espécies, uma criatura natural fruto de um processo evolutivo com milhares de
milhões de anos.
O termo planeta deriva da palavra grega πλανήτης (planētēs) cujo significado é estrela vagabunda.
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As lições de humildade da ciência são os contributos da ciência para a emergência de uma Identidade Terrestre, na medida em que unem a espécie humana
interna e externamente. A genética confirma o que o senso comum já sabia, mas a
presunção europeia não permitia reconhecer: não há cisão da espécie; africanos, asiáticos, europeus, aborígenes, maoris ou ameríndios partilham todos o mesmo genoma
e a expressão “o que importa é o que está por dentro” ganha um novo significado. O
desenvolvimento tecnológico e a capacidade que conquistámos de, aparentemente,
controlar o mundo não humano e dominar o mundo natural colocando-o ao nosso
serviço, atribuem um novo sentido ao direito de intendência divinamente concedido;
contudo, no final do século XX a mundialização dos problemas ecológicos dá a machadada final nesta presunção e as necessidades de harmonizar a existência humana
com o mundo não humano emerge com todas as dificuldades de implementação que
lhe estão associadas.
A globalização não é mais que a exportação da cultura científica da modernidade europeia (com alguns clandestinos à boleia) para culturas não europeias. As
vias de exportação são, essencialmente duas e não são mutuamente exclusivas: colonialismo (e.g. Índia) e importação voluntária (e.g. Japão, China e América Latina).
Em simultâneo com esta exportação cultural dá-se um fenómeno de planetarização
cultural que conduz à possibilidade da emergência de um sentido de Identidade Terrestre. Numa espantosa consecução da metáfora da Rede de Indra5, particularmente
acarinhada pelos cientistas sistémicos dos anos 70 do século XX, o mundo, nas suas
partes, olha-se a si mesmo como um todo e este olhar reflete o mundo em cada um
dos seus constituintes. A planetarização tem duplo sentido visto que as sociedades,
que ainda há um século eram relativamente estanques, ainda que comunicantes,
organizam-se numa estrutura global emergente; porém, dado que se transformam
e evoluem influenciadas pela realidade globalizada, cada uma dessas sociedades é
também o reflexo da planetarização.
A possibilidade da Identidade Terrestre está intimamente ligada à ciência não
só porque o desenvolvimento tecnocientífico o possibilita, mas porque a perspetiva
A rede de Indra é uma metáfora, patente num texto da cultura indo-tibetana chamado Avatamsaka
Sutra, que procura, de uma forma poética e metafórica, realçar as conexões íntimas e a interdependência de tudo o que existe no Universo. O sutra descreve o universo que surge pelo desejo de Indra,
uma divindade hindu, como uma rede infinita e complexa; em cada nódulo dessa rede existe uma
joia infinitamente multifacetada que reflete, em cada face, todas as outras joias. Quando uma das
joias do universo é alterada, essa alteração reflete-se em todas as outra joias que compõem a rede
de Indra.
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(ou perspetivas) científica(s) se torna(m) no denominador comum da planetarização.
Não defendo que a globalização construiu uma monocultura universal e, certamente, não considero desejável essa possibilidade. É precisamente o contrário. As ciências físicas e naturais (em particular as ciências biológicas) reconhecem o valor da
biodiversidade na mesma ótica em que as ciências sociais valorizam a diversidade
cultural. Diferentes espécies e ecossistemas são, à semelhança de diferentes culturas, respostas diversificadas ao problema de uma sobrevivência, desejavelmente,
resiliente. Se nas ciências naturais a defesa da biodiversidade é um facto (ainda que
com eficácia dubitável) que se traduz nas múltiplas campanhas de proteção da biodiversidade e dos ecossistemas, as ciências sociais apelam ao desenvolvimento de uma
consciência crítica e criativa geradora de uma cidadania interventiva e multicultural
e bate-se contra as tentativas de proselitismo de formas culturais hegemónicas como
o capitalismo predatório. De facto, a globalização permitiu a (re)definição de ideias
e acentuou a demarcação cultural. Prova disso são as sociedades multiculturais que
emergem numa urbanidade, frequentemente, conturbada e a adoção de ideias e perspetivas exógenas e, num certo grau, adventícias às culturas onde se desenvolvem.
À ciência não é estranha esta difusão multicultural que está, simultaneamente, patente nos aspetos metodológicos e nos saberes construídos. A adoção de processos
e metodologias interpretativos, a multidisciplinaridade na investigação, a produção
de saberes holísticos e a construção de perspetivas sistémicas são disso testemunha.
Apenas a título ilustrativo irei indicar dois exemplos que ilustram o que acabei de
dizer acerca das metodologias da ciência e do cânone epistémico em construção.
Alguns geólogos têm avançado a possibilidade que rochas do leito marinho
que se encontram em elevações com mais de 130 m de altura junto à linha costeira
australiana, tenham sido arrastadas por um megatsunami cosmogénico. Numa abordagem metodológica tradicional, os cientistas iriam procurar evidências geológicas
que justifiquem os factos; contudo, além das pesquisas no domínio da geologia, os
cientistas optaram por usar as lendas dos aborígenes australianos e dos maori neozelandeses como evidências culturais do fenómeno em estudo (Bryant, Walsh, &
Abbott, 2007). As lendas destes povos, que nalguns casos se referem a serpentes de
fogo que cruzaram os céus, sugerem que a determinada altura da sua história, um
meteorito de dimensões consideráveis se inflamou na atmosfera e se despenhou no
oceano no local onde os cientistas esperavam que isso tivesse sucedido. O interessante acerca desta investigação é a valorização de uma cultura, que se desenvolve
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fora do contexto da racionalidade científica, atribuindo valor científico às suas interpretações. Outra leitura que me parece incontornável é a pluralidade multidisciplinar
que vemos nesta interpretação geoantropológica e que testemunha a possibilidade
de colaboração entre disciplinas com objetos de estudo e metodologias de indagação, aparentemente, diferenciados.
No campo dos saberes científicos produzidos, o final do século XX é caracterizado pelo viés do linear para o circular numa construção mimética dos processos
naturais. No paradigma linear a produção de artefactos para uso humano, alimentada
pelo carvão da revolução industrial e pelo petróleo do século XX, situa-se numa lógica de extração (dos recursos naturais), transformação, uso e descarte (dos artefactos). Contudo, nas últimas três décadas do século passado, devido ao esgotamento
dos recursos e ao acumular de detritos, esta lógica foi posta em causa e diferentes
ações foram postas em jogo das quais destaco a crítica ao consumismo e à obsoletização programada e a política dos 3R (reduzir, reutilizar e reciclar) que, mais
recentemente viu adicionado mais um R relativo ao restauro. Contudo, também no
domínio do desenvolvimento tecnológico de ponta o paradigma circular mimético
se faz sentir. Prova disso é o recentemente publicado artigo sobre “nanoárvores”
solares capazes de retirar o dióxido carbono da atmosfera e de o transformar em hidrocarbonetos passíveis de serem utilizados como combustíveis (Sun et al., 2012).
Poderia prosseguir com uma lista exaustiva e maçuda de exemplos, contudo
não é esse o propósito desta reflexão. As duas instâncias que acabei de apontar visam, somente, ilustrar até que grau o conhecimento científico atual é influenciado
por culturas tradicionalmente distantes do racionalismo da modernidade europeia.
As implicações filosóficas dos artefactos científicos teóricos construídos na segunda
metade do século XX foram fortemente influenciadas por perspetivas circulares e
holísticas provenientes do oriente e de culturas tradicionais — como os povos ameríndios ou as sociedades tribais africanas — como o testemunham as reflexões de
diversos cientistas de que destaco os físicos David Bohm (2005) e Erwin Schrödinger (Schrödinger, 1964; 1999; 2007) o ambientalista James Lovelock (2001) e o
filósofo Arne Naess (Naess, 2001; 2005). Também na ciência vemos o duplo sentido
da planetarização; a cultura que transforma o mundo vê refletida nas suas práticas e
na sua produção a transformação que implementou.
Os estados-nações, invenção da modernidade oitocentista, por força da mul20
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
ticulturalidade das sociedades atuais e da dimensão global dos problemas económicos, ecológicos e sociais, tendem a integrar-se (diluir-se?) em organizações transnacionais que procuram responder às necessidades dos países que as integram; a
Zona Euro, a União Europeia, a OCDE ou o MerCoSul são exemplos desse tipo
de organizações no contexto ocidental. As sociedades miscigenam-se, tornam-se
interdependentes e ligam-nos “à nossa Terra considerada como primeira e última
Pátria” (Morin, 2002, p. 80). A Identidade Terrestre há de emergir a partir dessa
“identidade mestiça (cultural ou racial)” (Morin, 2002, p. 83) comum que é a nova
“Terra-Pátria” (Morin, 2002, p. 80). Trata-se de um processo de quase colonização
em que todos são, simultaneamente e de livre vontade, colonizador e colonizado
chamando a si “o duplo imperativo antropológico [... de] salvar a unidade humana e
salvar a diversidade humana” (Morin, 2002, p. 83). Em síntese, construir a Identidade Terrestre é possibilitar o desenvolvimento de uma Consciência Terrestre através
da denotação das relações de interdependência e da valorização da multiculturalidade; mas também através do estabelecimento de ligações que transcendam a espécie
humana e a tornem humanitária, através da atribuição de estatuto moral6, em relação
aos seres sencientes e ao ecossistema planetário.
Antes de passar à discussão do papel da escola no desenvolvimento da Identidade Terrestre, gostaria ainda de referir a importância que as contracorrentes têm na
construção da cidadania planetária (Morin, 2002; 2009; Solon & Morin, 2011). No
livro que nos tem servido de mote, Morin (2002) sublinha seis contracorrentes: (1) a
ecológica, (2) a qualitativa — por oposição ao quantitativo; (3) a resistência à vida
prosaica e utilitária; (4) a resistência ao primado do consumo; (5) a emancipação à
tirania do dinheiro e (6) a reação contra a violência que procura pacificar também
as almas. Estas seis contracorrentes sugerem que “as aspirações que alimentaram as
grandes esperanças revolucionárias do século XX, mas que foram enganadas, poderão renascer sob a forma de uma nova busca de solidariedade e responsabilidade”
(Morin, 2002, p. 78) e dão um contributo determinante na construção da Identidade
Terrestre.
Também a escola pública é fruto da modernidade ainda que da sua época mais
tardia. É nos finais do século XIX que a possibilidade de uma educação alargada
emerge das sociedades industrializadas. De acordo com Godin (2012), a ideia de esA entidade X assume Estatuto Moral quando os seus interesses, ainda que X não os possa defender,
são tidos em conta na tomada de decisão feita por Y, K e Z... .
6
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colarizar uma população a partir de tenra idade, sofreu a oposição da burguesia que
detinha o capital e que empregava, sem grande oposição social, crianças nas suas
indústrias; contudo o argumento, utilizado pelos defensores da escolarização, que
uma população alfabetizada possibilitaria um melhor desempenho do proletariado
foi, talvez, a principal razão, que convenceu os empregadores a abdicarem de, pelo
menos parte, da sua mão-de-obra infantil. Ainda de acordo com o mesmo autor, a
escola que emerge deste setting social é uma escola que visa preparar jovens para
integrarem uma estrutura hierarquizada com forte pendor mecanicista e com papéis
definidos numa lógica top-down. O proletário, alfabetizado ou não, nada tinha a dizer sobre o seu papel no contexto da indústria/fábrica onde iria exercer as suas funções. A escola devia assim formar pessoas disciplinadas capazes de seguir, incontestavelmente, as ordens dos seus capatazes e empregadores. Não se pretendia que
os trabalhadores fossem criativos ou sequer pensantes capazes de provir sugestões.
Na escola, emerge, assim, uma lógica da sala de aula de filas sucessivas de cadeiras,
onde os mais “dotados” se sentavam na fila da frente; mas onde todos, indiscriminadamente, deveriam estar sentados, quietos, calados e virados para a frente, que
ainda hoje, mais de um século depois, ainda está patente nas conceções educativas
de muitos professores. Em Portugal, fruto da sua parca industrialização oitocentista,
a escola para todos só se concretiza com a democratização de abril. É certo que a
implantação da república em 1910 tem uma série de boas intenções em relação à
educação e este é um dos argumentos utilizados pelos seus defensores, mas o projeto
acaba por falhar. Também o Estado Novo usa o argumento da escolarização para se
implementar; contudo o país tem de aguardar por mais meio século até que a sua
população veja este direito oficialmente reconhecido.
A escola tradicional teve o seu papel social e produziu várias gerações de trabalhadores que cumpriram a sua função, como o testemunha o desenvolvimento das
sociedades industrializadas durante os dois últimos séculos; contudo no contexto
do século XXI, esta escola já não faz sentido. A complexidade da planetarização e
dos problemas que lhe estão associados — a transformação e democratização das
sociedades, a necessidade de encontrar soluções criativas e inovadoras e as exigências de participação democrática dos diversos agentes sociais — não se compadece
com uma escola como a do século XIX, cujas características se perpetuaram até ao
novo século. De facto, e voltando ao contexto da reflexão que aqui quero deixar, é
impossível ensinar a Identidade Terrestre sem promover a reflexão acerca do agente
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
ecológico/social e sujeito biológico/social7 sem promover uma reflexão sobre os
seus papéis nos contextos local e global, ou simplificando, no contexto glocal.
Para ensinar a Identidade Terrestre é necessário desenvolver a Consciência
Terrestre. A única consciência que uma escola autocrática, tecnocrática, hierarquizada e diretiva desenvolve é a consciência de que o pensamento e a opinião do aluno
são irrelevantes; e se o são na escola, por que razão serão diferentes no contexto da
sua ação social?! Não me parece estar longe da realidade se afirmar que sem reflexão, fundamentada nos saberes da ciência, não há desenvolvimento da Consciência
Terrestre que possibilite o desenvolvimento da mesma Identidade. Para promover
o desenvolvimento da Consciência Terrestre Morin (2002) refere que devemos dedicarmo-nos, não a dominar mas sim a regular, melhorar, compreender. Devemos
inscrever em nós [itálicos conforme original]:
•A consciência antropológica, que reconhece a
nossa unidade dentro da diversidade.
•A consciência ecológica, isto é a consciência de
habitar, com todos os seres mortais, uma mesma esfera
viva (biosfera) [...].
•A consciência cívica terrestre, isto é a da
responsabilidade e a da solidariedade para com as crianças
da Terra.
•A consciência espiritual da humana condição que
vem do exercício complexo do pensamento e que nos
permite, ao mesmo tempo, entrecriticar, autocriticar, e
entrecompreender (p. 81).
Trata-se de reconhecer o absurdo da hegemonia de ideias que opõe o universal
A aparente dualidade do ser humano enquanto agente ecológico e sujeito biológico no contexto da
sua cultura/sociedade deve ser discutida tendo por pano de fundo a ideia de continuidade naturalista
entre o mundo humano e o mundo não humano. Quando evito a terminologia de mundo humano e
mundo natural faço-o de forma consciente procurando denotar a referida continuidade naturalista. A
conceção de um mundo natural em oposição a um mundo humano ou social é portadora de uma falsa
dualidade (cujas origens remontam algumas materializações do pensamento da Grécia Helénica,
mas que se enraízam nas sociedades cristianizadas que emergem após a queda do império romano)
que separa a espécie humana do mundo natural. Uma consecução da metáfora bíblica de um mundo
criado por deus para que o Homem (que se confunde com o homem) possa viver, dominar e explorar.
Cada indivíduo da nossa espécie é sem dúvida único (sujeito) cuja ação (agente) se faz sentir no ecossistema global; ecossistema este que, na consagração da continuidade naturalista, inclui sociedades e
estruturas físicas e imateriais construídas por essas sociedades.
7
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
ao local/cultural; de abandonar as perspetivas etnocêntricas e antropocêntricas e de
construir, numa circularidade concêntrica e, sucessivamente, alargada, a perceção
de um mundo que, sendo subjetiva, tem o sujeito no centro e que se estende incluindo o local, o regional, o continental e o universal; propõe-se a construção da Pátria
Terrestre.
Resta discutir qual o papel da escola no ensino da Identidade Terrestre. Não
é, certamente, possível ensinar a Identidade Terrestre na escola do século XIX. A
escola deste início de século é uma escola de retóricas incapaz de ensinar os saberes que o novo século exige. A retórica assume aqui um duplo sentido. O primeiro
prende-se com a tradição pedagógica que ainda toma muitas características da escola tradicional. Os saberes são transmitidos sem apelo ao pensamento crítico, a organização disciplinar dificulta a integração dos saberes e as necessidades de classificar,
recorrendo a métodos de avaliação pouco criativos que não promovem a reflexão e a
crítica, conduzem a que as aprendizagens feitas pelos alunos sejam superficiais, valorizando a memorização em detrimento da compreensão. Este é o primeiro sentido;
a pedagogia não assume os contornos construtivistas e fica-se por uma retórica de
saberes de que o professor é o suposto detentor. Entra-se na falácia do discurso do
desenvolvimento de competências e da educação para uma cidadania crítica e ativa,
que adquiriu caráter oficial a partir do momento em que foi incluído no currículo;
mas por via da pedagogia da retórica falha-se a sua consecução. Este é o segundo
sentido a que me refiro: A implementação dos currículos oficiais do século XXI nunca passou de uma construção retórica; as competências de autonomia e pensamento
crítico raramente são desenvolvidas, apesar de estarem presentes no discurso oficial
e da classe docente. Ironicamente, a escola parece querer formar alunos que sejam
pensadores críticos, autónomos, independentes e inovadores que façam exatamente
o que a escola e os professores lhes mandam.
A escola em Portugal, e um pouco por todo o mundo, vive esta crise de identidade. Por um lado recusa-se a cortar o cordão umbilical com a Cultura Positivista
(Giroux, 2011) oitocentista que está na sua génese e que é testemunhada, entre outras
situações, pela organização disciplinar, pela pedagogia da retórica e pelas formas estéreis e discriminatórias de avaliação interna e externa. Ao procurar dar resposta à
crescente necessidade de se adaptar a um novo mundo onde a Identidade Terrestre
precisa ser ensinada e a planetarização se faz sentir, a escola contradiz-se opondo a
sua ação àquela que é a sua intenção. É impossível educar para a competitividade e o
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sucesso económico de uma região (ou nação) e, simultaneamente, para a construção
da Identidade Terrena simbiótica e colaborativa. A escola tem de se repensar a si
mesma e os agentes privilegiados para repensar essa escola são os professores.
O professor, no contexto da escola tradicional, é visto como o detentor dos saberes — o que lhe confere estatuto social; mas também como um mero transmissor
desses mesmos saberes o que torna proletária a ação no sentido em que as ferramentas que usa (saberes e metodologias) não são propriedade sua. A profissionalização
docente, entendida como classe profissional que possui um conjunto de ferramentas
teóricas específicas que orientam a sua ação, é recente e pode ser rasteada somente
à segunda metade do século XX (Roldão, 2003; Roldão, 2009) quando se começa
a desenvolver uma nova área académica que fica conhecida como ciências da educação. Recorrendo aos saberes específicos da sua profissão, o professor abandona a
proletarização e abraça a profissionalidade da sua ação. Contudo este passo parece
não ser ainda suficiente. A profissionalidade é importante; mas não menos importante é que o professor, enquanto agente social e construtor de futuros, assuma um
papel crítico em relação às forças hegemónicas que balizam a sua ação. O docente
deve reclamar a localidade do currículo. A escola, num processo colaborativo com
a comunidade local, deve assumir-se como um espaço público de troca de saberes
onde os alunos mais, do que ouvir, possam fazer-se ouvir e onde as suas necessidades e expectativas sejam tomadas em conta. A escola é, por excelência, o depositário
e o construtor desse bem público que é o conhecimento.
Esta revolução só é possível fazer se os professores se tornarem no que querem que os seus alunos sejam: pensadores críticos, autónomos, independentes e inovadores que reclamem dos espaços hegemónicos de governação a autoridade (não
o autoritarismo) de educar democraticamente. O professor tem de se tornar num
intelectual (Giroux, 1990) capaz de reconhecer e educar para a crítica das hegemonias que procuram crescer e impor-se recusando reconhecer a legitimidade das
populações na decisão do que é importante para si. O professor é, por excelência,
o agente da construção de uma Pedagogia Crítica (Giroux, 2011) com um forte
pendor ecológico, no sentido em que ensinar a Identidade Terrena é ensinar a interdependência do ecossistema global. O professor, para promover o desenvolvimento
de uma ecoliteracia (Orr, 2004; Orr, 2010), deve socorrer-se de uma ecopedagogia
(Kahn, 2009) crítica dos movimentos e intenções hegemónicas do capitalismo predatório, capaz de educar para a construção de culturas da em-patia e da com-paixão
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e, sabendo que sujeito e objeto não existem isoladamente, fazer cognoscer a ideia da
Identidade Terrena e simultaneamente o mundo da sua possibilidade.
É uma tarefa quase hercúlea, mas se vivemos na sociedade do conhecimento,
então os professores deverão assumir plenamente a missão de o dar a conhecer de
forma crítica criando a possibilidade da democracia e garantir um futuro para as
espécies e, em particular, para o Homo, que sendo sapiens de nome, se mostra, demasiadas vezes, demens na ação.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
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EM TORNO DO CONCEITO DE IDENTIDADE ESTREMENHA
António Valério Maduro 8
Começamos por nos interrogar sobre o conceito de identidade ou será mais
legítimo falar de identidades corporizadas no substrato regional, municipal e local.
Aquilo que se designa vulgarmente por matriz identitária incorpora uma categoria
diferenciadora que nos opõe aos outros ou nos torna particular de alguma forma. Os
outros aqui nomeados não são os estrangeiros, mas os naturais de outros espaços
regionais ou provinciais. Então onde se alicerça e estrutura a nossa identidade como
estremenhos.
A Estremadura sabemos bem, é um conceito físico e cultural flutuante, demasiado volátil. Historicamente temos tido muitas estremaduras em virtude do processo da reconquista e das reformulações políticas e administrativas do território nacional. No século XV, as fronteiras estremenhas principiavam em Gaia prolongando-se
até Abrantes e finalizando em Lisboa. Já no século XVIII a Estremadura invade o
Alentejo e vai fechar a Sul em Setúbal…
A Estremadura é então um corredor de povos que vai emagrecendo ou engordando consoante as camadas do tempo, a ocupação física, as delimitações geográficas e administrativas, a sedimentação das populações no território. É certo que a
Estremadura tem como definidores primaciais o oceano atlântico, limite espacial e
fronteira física, mas também rede de contactos e trocas comerciais, casa de pescaDoutor em História Contemporânea pela Universidade de Coimbra e investigador do Centro de
Estudos do Desenvolvimento e Turismo, do Instituto Superior da Maia.
8
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dores e mariscadores que buscam o sustento nas águas. Frente ao mar outra barreira,
esta de pedra nua e crua e falamos do Maciço Calcário Estremenho, roto de águas,
repulsivo às populações, mas que a necessidade dos homens enfeitou de olivais, de
rebanhos transumantes, numa luta perene entre nómadas e sedentários. A Estremadura é também, como já referenciámos, um construído, razão de decisores políticos
que alteram o seu mapeamento físico e cultural.
Mas o que é hoje a Estremadura. Terra de mosteiros, castelos e praias, de um
universo atlântico bordejado de verdes pinhais, que ocupam as dunas e servem de
anteparo cultural aos milhos, arrozais e pomares, para não falar do horto e leguminosas. Que marcas definem a sua identidade feita de tantas e singulares fronteiras?
Os mosteiros sem qualquer dúvida pois constituem projectos nacionais, produzidos
pelo poder político e religioso, que se tornaram monumentos e âncoras identitárias
(nomeadamente a rede de edificado que integra a lista de património mundial reconhecida pela Unesco, caso do Mosteiro da Batalha e do Convento de Cristo de
Tomar - 1983 - e a abadia cisterciense de Alcobaça -1989); a floresta de pinhal pela
sua expressão física e económica; as belas praias que atraem e sustentam grande
parte dos fluxos turísticos.
Este jogo reflexivo conduz-nos naturalmente a outra interrogação que consiste
em saber quantas estremaduras coexistem na Estremadura, a dos antigos Coutos
de Alcobaça de que o erudito Leite de Vasconcelos não se cansava de propagar a
singularidade, graças ao profícuo labor, capacidade de ordenação e administração
dos “monges agrónomos” sobre o território (os coutos cistercienses de Alcobaça na
concepção deste autor destacavam-se como unidade no seio da Estremadura Cistagana), a das comunidades marítimas que arrancam as pescarias ao oceano, a das
gentes do interior que labutam nas serranias chantando oliveiras e pão, a das comunidades urbanas e de outros mundos mais recentes em que emerge Fátima, capital
e essência do catolicismo, do culto mariano em Portugal e rede de peregrinação
transcontinental.
A Estremadura afirma-se dialecticamente pela diversidade, uma unidade na
diversidade dirão alguns e talvez com razão.
A Estremadura não é pois um bloco estável como o Alentejo que se revê na
planura e nos campos de trigo ou Trás-os-Montes marcado pela altitude com tudo
o que isso sociologicamente comporta, mas isso não a empobrece, saibam os actu30
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
ais locatários explorar as suas oportunidades habituar-se à sua fluidez aprazível de
matas e mar, de serranias áridas e campos verdes de arrozais e milheirais, do verde
horto que desafia a impetuosidade salina dos ventos atlânticos.
A falta de homogeneidade física contribuiu para a definição do carácter do seu
povo, da sua cultura material e simbólica, do seu cancioneiro do trabalho e do lazer.
Mas o importante é perscrutar nestas diferenças a tecelagem da sua alma, marcada
pelas influências do oceano, da costa e campos de praias, da rede de serras e dos
vales graciosos, da floresta e dos vegetais.
O que nos resta em tempos caracterizados pela uniformização cultural e globalização e em que os traços identitários se desvanecem aceleradamente em virtude
das mudanças do paradigma social, económico e cultural, em suma da nossa maneira de viver. De facto, a erosão dos usos e costumes quebram as especificidades e particularidades, fenómeno que o Estado-Nação promoveu e que os tempos modernos
consolidaram. Na realidade muitas das manifestações tidas e achadas por genuínas
e credíveis quedam-se ao nível da recriação folclórica porque perderam a relação
com as vivências reais, o mesmo se passa com as ditas aldeias históricas que hoje
se promovem como cogumelos e não passam de facto de uma mercadoria vendável
para o ideário turístico. E podíamos continuar com as chamadas feiras medievais ou
oitocentistas que teoricamente alicerçadas no que se designa por projectos de história viva revelam uma falta de qualidade gritante destacando-se cronologicamente
por mais ou menos sujidade.
O caminho a seguir para salvar as marcas da identidade passa sem dúvida pela
preservação possível da paisagem, tanto ao nível da paisagem humanizada como
dos nichos geológicos e florestais que escaparam incólumes à acção da sociedade.
Outra via consiste na aposta da patrimonialização e musealização do edificado. É no
entanto necessário dotar os espaços de articulação e interpretação, torná-los compreensíveis ao visitante e estimular a segunda visita e a recomendação. Para isso, os
monumentos urbanos e rurais, os conjuntos ou peças singulares têm de ser tratados
com dignidade (recuperados ou mantidos em ruína) inserindo-se em roteiros culturais que os tornem inteligíveis nos seus diferentes contextos espácio-temporais. Só
assim é possível a adesão de um turismo que valorize e traga mais-valias à região,
dando sustentabilidade a projectos de restauração de qualidade, a toda uma indústria
e serviços que desperta para as potencialidades abertas pelo património e ambien31
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te… Para além da malha patrimonial tomada em sentido amplo, a gastronomia pode
constituir um referente e um atractivo que também justifique o alargamento da temporalidade por parte do visitante.
Mas de que maneira é que o turismo age sobre a identidade ou identidades
regionais? Não nos podemos esquecer que a legitimidade do produto depende da
sua autenticidade, da consciencialização intrínseca de um valor que nos é próprio e
são estas marcas singulares que podem ser mercantilizadas sem que isto as rebaixe,
antes pelo contrário um bom turismo contribui inegavelmente para a preservação e
conservação dos espaços e edificados e para a melhoria da oferta. Daí que ao ofertarmos aos outros aquilo que nos singulariza estamos também a contribuir para uma
interiorização da noção de pertença e identidade.
As identidades não são claramente um construído imutável, embora se alimentem do passado e da memória, elas vão-se reconstruindo ao sabor das gerações,
vão adquirindo novos sentidos e rumos. O que é a Estremadura e qual a sua identidade fica para reflectirmos.
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O PROBLEMA DA IDENTIDADE ECONÓMICA
Júlio Coelho 9
O presente artigo irá debruçar-se sobre a questão da identidade nacional, numa
época de crise económica. É lugar-comum ouvir-se que a sociedade contemporânea
passa por uma época de perda das identidades nacionais. Sem entrar na discussão
da origem e semântica da expressão “identidade” verificamos que esta é aplicada
a diferentes realidades, desde a visual, à do género e passando pela nacional, a social e a cultural de entre muitas outras. Na verdade já entrou no discurso corrente
de académicos, políticos, pensadores e outros agentes, a importância da procura
da identidade ou identidades, como forma de cada indivíduo ou organização poder diferenciar-se das restantes. Esta matriz de raciocínio está suportada no facto
de estarmos a passar por uma época onde prevalece o conceito da concorrência e
competição entre as partes. Se estes conceitos se aplicam a toda a realidade humana,
por maioria de razão aplicar-se-á à realidade económica. Contudo, é curioso que a
questão da “identidade” não tem sido aplicada à economia.
Vivemos períodos conturbados em termos de perda de valores identitários,
em relação às gerações passadas (talvez isto faça parte da própria evolução da sociedade humana!) e, por isso, assistimos a discursos onde prevalece a tentativa de
recuperação ou obtenção de identidades passadas, existentes ou ainda por descobrir.
Esta preocupação centra-se primordialmente ao nível da “identidade nacional de natureza cultural”. A perda de identidade, normalmente resulta do facto de alguém ou
alguma entidade a estar a absorver e, por conseguinte, pode-se perder uma variável
de diferenciação determinante nos dias de hoje, e a procura de identidade, normalmente resulta da constatação de que falta essa variável de diferenciação. Mas, há um
9
Professor e Investigador da ESTM/GITUR/IPL
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aspeto que não tem sido devidamente considerado, num e noutro caso, que é o facto
de se procurar encontrar a “verdadeira identidade económica” das regiões, onde seja
possível haver diferenciação por essa via, na prossecução do fim último da ação
humana, a procura do “bem-estar” social.
As crises que, ao longo da história da humanidade, têm ocasionado conflitos
mais ou menos graves entre diferentes partes, têm tido a sua origem, na maioria dos
casos, na economia. Esta teoria, não tem sido capaz de evitar e até mesmo ultrapassar, de forma eficaz, as fases de perturbação que ocorrem no seu normal funcionamento.
No essencial podemos dizer que existem duas grandes escolas teóricas económicas, a clássica e a neoclássica, com naturais variantes e dispersões. Essa diferenciação assenta, no fundamental, na diferente abordagem que é dada às relações
económicos, pois, no primeiro caso trata-se de uma abordagem microeconómica e,
no segundo, de uma abordagem macroeconómica. Estas duas teorias, têm pautado as
diferentes abordagens aos problemas económicos e servem de suporte às diferentes
soluções apresentadas. Hoje, assistimos a intervenções mitigadas entre estas duas
abordagens e, por consequência, os problemas acabam por não ficar devidamente
resolvidos, devido à generalização das suas aplicações. Ou seja, se aceitamos que
existam especificidades em matéria cultural, social, de género, etc., porque razão
não podemos admitir a existência de especificidades em matéria económica.
Os fenómenos de globalização vão conquistando espaço em diferentes matérias, contudo, há áreas onde se procura blindar esse efeito. A teoria (económica),
enquanto “raciocínio racional baseado em factos” e, segundo Stephen William Hawking, capaz de “explicar o passado e prever o futuro”, tem servido para aplicações
generalizadas, no pressuposto da existência de contextos homogéneos. Contudo,
verificamos que, tal como em matéria de outra natureza, também a economia possui
especificidades regionais que são, predominantemente causadas por especificidades
culturais, logo, devem ser tratadas dentro dessas especificidades.
Não podemos esperar que os resultados a obter com determinadas decisões
(instrumentos ou medidas) de política económica, independentemente da sua influência ideológica, sejam iguais em todo o lado, pois cada espaço (nação ou região)
possui identidades culturais próprias, que determinam os resultados dessas intervenções. Assim, podemos dizer que a teoria económica passa por uma fase de necessi34
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
dade de reformulação de alguns dos seus modelos, de modo a que estes possam ser
aplicados de forma diferenciada e não de forma generalizada. As metas de política
económica devem ser diferentes consoante os contextos e essa diferenciação deve
ser aceite e entendida por todos, para que, em conjunto, se contribua para o tal “bemestar” social.
Como sabemos, os modelos são simplificações do sistema, e quanto mais
complexo este for, maior a dificuldade em criar modelos apropriados. Agora, querer
generalizar a aplicação de modelos, quando estes não são suficientemente fiáveis, é
promover o surgimento de problemas onde, supostamente, não deveriam existir.
O modelo económico clássico assenta o crescimento económico na iniciativa
privada (variável microeconómica), onde as produtividades do trabalho determinam
o nível de salários e estes promovem a criação de emprego. Aqui, dá-se relevância,
em situações de crise, à redução do salário real, pois acredita-se (em teoria) que isso
leva à redução dos preços, por consequência, fica “barato” empregar mais pessoas, logo, com isso promove-se a criação de emprego. Por outras palavras, a renda
depende da produção, pois “a oferta cria a sua própria procura”. Mas, já a teoria
neoclássica, sugere que o crescimento económico assenta em variáveis macroeconómicas, essencialmente no consumo (privado e público), no investimento e nas
exportações. Só por aqui podemos verificar que identificadas que estão as grandes
variáveis, torna-se necessário especificar cada uma delas de acordo com os diferentes contextos, pois, os graus de aplicação dos instrumentos e medidas não podem ser
todas iguais. Hoje assistimos a diversas intervenções de diferentes quadrantes, que
sugerem medidas clássicas, sem que tenham a preocupação de saber se a sua matriz
ainda se aplica. Por outro lado, há quem sugira aplicações de medidas neoclássicas,
mas de forma geral, sem atender às diferentes situações de partida e de contexto.
Há estudos que apontam no sentido dos diferentes comportamentos económicos do “homo economicus”, logo, é expectável que essa diferenciação justifique
diferentes intervenções, ainda que dentro de uma matriz comum e esta, deve ser
respeitada, ainda que discordante.
Os países do sul da Europa sempre foram considerados diferentes pelos povos
do norte, a história assim o confirma, mas agora, nós, os do sul, forçados ou não pelos do norte, andamos atrás de medidas económicas que funcionaram nesses países,
esperando que as ditas diferenças se tenham esbatido, do nada. Assim, é difícil evo35
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
luir, pois, para problemas diferentes devem-se aplicar soluções diferentes, nunca em
matéria alguma se conseguiu resolver problemas diferentes com soluções iguais.
Afinal a especificidade económica tem espaço para evoluir e deve começar a
servir de orientação em novos estudos e abordagens económicas.
36
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
NA COMIDA E NA BEBIDA
O MAR TEM UMA OUTRA VIDA…
MEMÓRIA DO PATRIMÓNIO GASTRONÓMICO PENICHEIRO
Para os Amigos Ana Batalha e José Lóios
Mariano Calado10
… Sim, não apenas o mar que, num abraço de profunda amizade, nos envolve, poeta de infinito, em azul cobalto e verde esmeralda, mas o mar que esparge,
pelo céu olímpico, salpicos coleantes e perfumados de maresia e nos transforma em
míticos e poéticos tritões…
Na verdade, isto de gastronomia tem mesmo que se lhe diga… Mas, enfim,
se para além de ser a prática e os conhecimentos relacionados com a arte culinária,
coisa que, a alguns iluminados, até leva a que lhes chamem chefes, por do ofício
saberem como gente grande, o facto é que, aqui para nós, sempre fica reservado para
outros, sem faculdades especiais, vulgaríssimos de Lineu, como eu, pelo menos o
direito, creio que constitucionalmente permitido, de terem, com gosto e com razão,
o prazer de poderem apreciar o comer e o beber e de, acerca da acepipada matéria,
poderem até tentar o alinhavo de algumas, ainda que breves, considerações…
10
Historiador.
37
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Assim, falando de gastronomia, estaremos todos mais ou menos de acordo se
nos lembrarmos que parece que é à volta da mesa que, habitualmente, se sucedem
os grandes acontecimentos. Por exemplo, já nos textos sagrados do cristianismo se
conta que, à mesa das Bodas de Caná da Galileia, foi Jesus Cristo, a pedido de Sua
Mãe, levado a transformar a água no vinho, que já faltava no ágape, e que, ao depois,
surgiu com fartura e da melhor cepa. E foi também na mesa da Última Ceia que
Jesus Cristo escreveu uma das mais profundas páginas do seu magistério. E quando
os antigos companheiros de escola primária ou cursos posteriores, camaradas de tropa, ou qualquer outro grupo de amigos, se juntam, é, normalmente, à volta de uma
mesa, de um almoço, merenda ou jantar, de confraternização ou comemoração, que
todos se encontram em feliz convivência… Pois, então, parece que é à mesa que se
constrói o futuro, que é, à mesa, que se reforçam os laços da convivialidade, que é,
à mesa, que se robustece a consciência da própria identidade. Até porque o comer
e o beber costumam andar muito de braço dado com os mais nobres sentimentos,
especialmente o da ternura, como observamos pelos ditos da sabedoria popular:
«comer com beijos»…, «beber à saúde»…, «beber os ares por alguém»…, «beber
as palavras»…
É óbvio que a expressão «à mesa» se utiliza em sentido literal, pois que, se é
verdade que a gastronomia é, segundo o próprio testemunho dos dicionários, o prazer de apreciar, com razão e gosto, os pratos mais variados, também é verdade que
podemos ter tais apetites e gostos na placidez de uma paisagem campestre, sentados
no chão e com a companhia de uma larga toalha estendida sobre um tufo de alfazema, ou à beira de um outro de malmequeres ou de giestas, ou também na infinidade
paisagística do mar, a bordo de uma traineira, assentados sobre um monte de redes
ou em cima de uma das tampas dos porões, onde nos juntamos para um convívio
aprazível e para podermos digerir uns porventura especiais pitéus de se lhes tirar o
chapéu...
Mas, falando mais objectivamente do que se passa na nossa região, fortemente
banhada pelo oceano, vem-me à lembrança um pequeno texto do grande amigo de
Peniche que foi Pedro Cervantes de Carvalho Figueira, ao escrever, num interessante livrinho de reduzido formato, publicado em 1865 e há muito esgotado11, sobre os
tempos dos primeiros séculos da nossa Era, quando as tropas romanas de Júlio César
terão caminhado por estas paragens oestinas, pisando os campos litorâneos com o
11
Pedro Cervantes de Carvalho Figueira, A indústria de Peniche, Lisboa, Imprensa Nacional, 1865.
38
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poder das sua cáligas conquistadoras na perseguição das gentes lusitanas vindas,
perseguidas, das bandas dos Montes Hermínios. E lembro-o porque, nesse pequeno
e saboroso texto (entre parêntesis, é oportuno dizer que os textos literários também
se «comem» e «bebem», e até, por vezes, com um apetite, ou sede, devoradores…),
Pedro Cervantes começa por tratar de culinária, e culinária exactamente no meio do
mar, repito, especialmente saborosa, no mar, onde a comida e a bebida são mesmo
uma outra vida…Diz ele o seguinte, citando o autor da Academia dos Humildes e Ignorantes12 e referindo-se à antiga ilha de Peniche, que, «quando nela foram cercados
os hermínios por Júlio César, alguns homens e mulheres se esconderam com seus
filhos nas covas dos rochedos (junto à igreja de Nossa Senhora do Livramento, hoje
Senhora dos Remédios); que ali mudaram pouco a pouco de costumes e alimentos;
que polvos, caranguejos, e outros peixes e mais mariscos crus foram os primeiros
guisados; depois foram nadadores tão insignes que à maneira de peixes grandes, se
sustentavam de outros peixes, colhendo-os com as mãos e com os dentes, passando
no mar a maior parte dos dias e noites, e fugindo das embarcações como os peixes,
de sorte que todo o gentilismo os teve sempre por deuses do mar, oferecendo-lhes
até sacrifícios os navegantes, para os livrarem das tempestades; e que no ano 37
da era cristã, um dos tais deuses, que era já velho, quando tinha fome tocava num
búzio para que seus netos e bisnetos, que andavam pelo mar, ao longe, comendo
lagostas e peixes, lhe trouxessem o mesmo alimento para ele…». Claro que, de lendário trecho se tratando, só nos resta lamentar, desportivamente, que tal coisa se não
passe no nosso tempo, pois que, se tal fosse, não haveria decerto quem vencesse os
penicheiros nos olímpicos jogos de natação em que viessem a participar…
Mas, citando mais uma vez o escrito de Pedro Cervantes, diz ele, transcrevendo a prosa do inspirado autor da Academia dos Humildes e Ignorantes, que as refeições dos homens-peixes foram os primeiros guisados dos avoengos penicheiros.
Ora, não sei bem se o tal autor saberia exactamente o que era um guisado que, afinal,
segundo rezam os dicionários e confirmam os cozinheiros mestres do assunto, parece que é um prato que se prepara com um refogado, ou preparação culinária do tipo
do ensopado, confecção de alimentos salteados em gordura, com um picadinho de
carne fresca ou salgada e, depois, cozinhados em lume brando, lentamente… Todavia, a verdade é que esses nossos longínquos conterrâneos – os tais que, perseguidos
pelos romanos, terão vindo das bandas dos Montes Hermínios– parece que não pre12
Academia dos Humildes e Ignorantes, vol. 2º., p. 197 , 1758.
39
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
cisavam de refogado, ou de ensopado, ou de picadinho de carne, nem de temperos
passados por água fervente, nem mesmo lume, visto que o mar, afinal, teria tudo do
que eles necessitavam para o preparo de grandes petiscos, como parece depreenderse da transcrição que Pedro Cervantes faz da tal Academia, descrição, diga-se de
passagem, de começar a fazer crescer água na boca !…
Entretanto, os tempos voaram. O certo, porém, é que na região de Peniche
(afora os tristes períodos em que, por falta de pescado, se vivia paredes meias com
a fome) se deveria comer bem. Comida especial. Como hoje se diria, comida regional, a preceito. Original. É que, no início da Nacionalidade, quando a actual cidade
era uma ilha, pouco povoada e por aqui passaram, e aportaram, por uma só noite, os
cruzados do exército que, em auxílio de D. Afonso Henriques, se dirigiam a Lisboa
com a intenção de a conquistarem, toda a área da antiga ilha era arborizada e decerto
com árvores de algum porte. Isto, de acordo com a famosa crónica de Ranulfo de
Granville (e não Osberno, como durante muito tempo se supôs), em que se atesta
que a antiga ilha abundava em veados e sobretudo em coelhos e, falando de botânica, embelezada com a planta de alcaçuz, planta esta que, depois, viria, exactamente,
a fazer uma líquida e tentadora parte das mais refinadas receitas de milagrosas poções! Pode-se então imaginar o que seriam, nesses remotos tempos, não apenas as
dionísiacas bebidas mas os cozinhados certamente à base de carne de veado (que,
por ser –penso–, bastante dura, necessitaria de se sujeitar a uma grande marinada),
ou então, de carne de coelho, este, porventura (talvez possível, como hoje…) à caçadora, ou à marinheira, ou em tacho de barro, sei lá!…
Mais tarde, nos tempos de D. Afonso V, é verdade que os coelhos existiam
ainda, com fartura, mas sujeitos a especial protecção real, isto porque os simpáticos roedores da família dos leporídeos já não seriam tantos como dantes e assim se
poderem evitar possíveis abusos gastronómicos! E foi por isso que os moradores
da Atouguia da Baleia, ainda cabeça de concelho, em face de não encontrarem para
as suas bandas caça que lhes bastasse, resolveram pedir ao rei se os autorizava a
caçar coelhos na Berlenga (onde também avonde eles se reproduziam), o que lhes
foi concedido, ainda que apenas em dia de bodas de casamento ou de Pentecostes.
E assim foi. Caça de coelhos, limitada no tempo, mas com fartura, na Berlenga, no
meio do mar…
Mas também deveriam ser interessantes, à época, outros gostos dos penichei40
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
ros, isto a avaliar por uma proibição publicada no chamado Livro Vermelho13 do mesmo rei D. Afonso V, onde se diz que qualquer pessoa que, sem prévia autorização,
matasse porco, ou porca, ou bácaro, ou veado, ou cisne, na lagoa que se formara
na foz do rio de Atouguia (sensivelmente onde hoje se expande a Quinta dos Salgados), pagaria, conforme a gravidade do caso, mil ou dois mil réis de multa por cada
cabeça que matasse e, o que é mais grave, seria degredado durante um ano para
o norte de África! Mas porque, afora as situações de caça fortuita, haveria também
autorização para caçar tais espécimes sem paga de qualquer multa, então era porque
os pratos à base da família dos porcos, porcas e bácoros, de veados e cisnes, seriam
pitéus habitual e naturalmente apreciados pelos penicheiros!…
Claro que, no interior da região, a alimentação não andaria muito longe dos
acepipes à base do que no terreno se produziria; mas, sem dúvida, era do mar que vinha uma outra vida. Porque não era apenas para Peniche, mas para toda a região, que
se esparralhavam os frutos marítimos como uma bênção. Basta trazer à lembrança
a riqueza da caça da baleia no que foi a zona piscatória de um dos mais importantes
portos medievais portugueses, e da qual se aproveitava, para além da gordura, com a
qual se produzia óleo, e ainda dos ossos, dos quais se extraia cola, «da baleia se fazia também largo uso culinário pois que a sua carne, cortada em grandes talhadas,
era certamente iguaria cobiçada pelo comércio das regateiras que se dedicavam ao
negócio do peixe de que em Portugal se fazia tão largo consumo»14; e que iguarias
seriam, santo Deus!
E também nos antigos cardápios que por aqui ainda se conhecem, verdadeiras relíquias de família, onde as bisavós, as avós e as mães, foram, pacientemente,
tomando nota das suas receitas e resguardando, ao longo dos tempos, algumas das
delícias gastronómicas do burgo, onde emergem, para além da água, o azeite, o
alho, a cebola, o cebolinho, o colorau, a farinha, o limão, o louro, a noz moscada, os
orégãos, os ovos, o pão ralado, a pimenta, o pimentão, o queijo, a salsa, o toucinho,
o vinagre, o vinho branco – e sei lá que mais !... – vão aparecendo, com algum destaque, como delícia de anjos e a fazer crescer, cada vez mais, água na boca, as bolas
de peixe, os pastelinhos de peixe, a omeleta de peixe e o picado de peixe, tal como
o molho de peixe frito, o besugo na grelha, as lulas recheadas, as enguias assadas, as
ostras na casca, os pratinhos de mexilhões, as sardinhas de tigelada…
13
14
Inéditos da História Portuguesa, Livro Vermelho do Senhor Rey D. Afonso V, p.496.
Américo Cortez Pinto, Dionisos Poeta e Rey, 1982, pp. 131-132.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
E quem é que, uma vez só que fosse, não saboreou já uma mais que deliciosa
caldeirada à moda de Peniche, onde, à mistura com água (muito pouca), cebola
(bastante) tomate, dentes de alho, pimentos, salsa, louro, azeite, pimenta, colorau e
rodelas de batata (tudo quanto baste), se esparralham magníficas postas de tamboril,
de safio, de raia, de cancarro, de alfaquique, de patarroxa ou de enguia, alguns alaranjados camarões e ainda berbigões e também algumas sardinhas, como rainhas,
para adornar o tacho? E, também, quem jamais provou e se deliciou com uma mais
do que saborosa lagosta suada, como aquela, de tanta fama e proveito, que era timbre ser preparada por duas senhoras (já falecidas), especialistas, de seu nome Emília
Labiza e Conceição da Cerca, aquela lagosta que, por mal dos nossos pecados de
humanos predadores, vai para o tacho ainda viva, sem nunca se poder dar qualquer
volta ao dito recipiente, onde muita cebola picada, bastante salsa, alho, louro, colorau e azeite, coexistem numa harmonia voluptuosa?
E a sardinha assada? Ai, a sardinha assada de Peniche! A sardinha que, de
acordo com uma cantiga popular muito em voga aqui há uns anos, se dizia que
«…não tem rival:
com pão e vinho
põe a caminho
qualquer mortal…
A sardinha assada e comida à mão, sobre o pão, ainda que correndo o risco de
tal costume poder vir a ser considerado, por eventuais puristas do turismo de elite,
como testemunho do terceiro mundo, teima em continuar a ser assada à porta de
muitas habitações, rechinando, fumegante e saborosa, em muitas das ruas da cidade
e a ser um dos mais apreciados pratos da culinária penicheira; e então, pelo S. João,
quando pinga no pão, que ninguém se atreva a dizer que não é mesmo de comer e de
até fazer os olímpicos deuses chorar por mais… Em casa como na rua. De manhã,
de tarde e, de um modo especial, por uma alegre noitada adentro. E se acompanhada
de uma pinga de vinho tinto, nem se fala! Que, por aqui, na região oestina, há tinto
42
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
do bom e tentador como o diabo! É só procurá-lo em Torres Vedras, na Lourinhã, no
Bombarral, no Cadaval ou nas Gaeiras. Servido com peso e medida, é bom de ver!
Que, em verdade, também aqui mesmo em Peniche, de vinho já nós fomos
fartos, de um vinho branco, de areia, com um razoável grau de alcoolização e um
pouco adocicado. E de tal maneira bom –tão bom, tão bom!– , que o historiador Pinho Leal, ao findar do século XIX e, porventura, com algum santo exagero, chegou
a escrever estas espantosas palavras15: «se os proprietários das vinhas de Peniche,
tivessem mais cuidado nas vindimas e escolha das uvas, o seu vinho seria um dos
melhores (senão o melhor) do sul do Reino, e mesmo muito superior ao da Bairrada, pois tem maior grau de alcoolização e é mais odorífero». Quer dizer: se, à
falta do tradicional e saboroso vinho de Peniche, que a progressiva urbanização da
península fez praticamente ficar como uma saudosa recordação, a verdade é que,
para a História, ficou que o vinho de Peniche (só branco) seria quase como o melhor
vinho de Portugal!
E a sarda, a sarda que tão apreciada ainda é, que faz parte integrante dos nossos hábitos alimentares e que, em tempos de porventura mais brandos costumes, era
apregoada pelas ruas e avenidas de Lisboa como autêntica vedeta: «Olha a sarda de
Peniche! Cá está a boa sarda de Peniche!»? Sarda que, de gostinho tão especial, até
chegou a perpetuar-se num curioso adágio popular, riquíssimo de sabedoria, rifão
saboroso que proclama três coisas excelentes, as melhores entre iguais: «Mulher, de
Leiria; doce, de freira; sarda, de Peniche». E aqui está, como as coisas são, que até,
por vezes, desconhecemos o que fomos, perdemos a memória da nossa identidade
e esquecemos as riquezas que podemos legar!
E o peixe seco? Sobretudo quando a pesca rareava, pelas invernias ou em resultado do antigo defeso, ou pela má sorte em que as lufadas de peixe rareavam, as
pessoas sabiam socorrer-se do fruto que, em tempos de mais fartura, haviam oportunamente amanhado, aberto, enchido de salmoura e posto ao sol, a secar, costume
que ainda se dá por ele, pois que não raras vezes, em certos recantos mais abertos
da cidade, topamos com autênticos estendais de comedia em típicas grades onde
os peixes se aninham, como que de asas abertas, a apanhar banhos de sol… E não
escapavam, ou escapam, os carapaus, a raia, o ruivo, o cação e outros peixes, que
eram sempre, ou são, uma delícia, entremeados com batatas cozidas, azeite e acom15
Pinho Leal, Portugal antigo e moderno, 1873-90, vol. 6, p.619.
43
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
panhados e bem regados com o tal vinho tinto da região… Que, fique claro que isto
de gastronomia não é só o prazer de comer, é também o de beber!
Porque também lá diz o povo, na sua sabedoria, que «comer sem beber é
cegar e não ver»; ou então, «comida sem caldo, papo seco»; ou ainda, «a bebida
quere-se comida e a comida bebida»…
*
Também, até não há mito tempo, o dia 15 de Agosto era especialmente celebrado em honra de Nossa Senhora da Ajuda, era de grande regozijo entre os pescadores de Peniche, pois nesse dia se deitavam especialmente contas às pescarias que
haviam feito, seguindo-se aturada e lauta refeição, na qual se não dispensavam os
figos passados e a aguardente ou o pão com azeitonas, sendo certo não ficar algum,
por mais pobre ou doente, que não tomasse parte da alegria e da fartura colectivas.
O costume como que se modificou. E o que passámos a presenciar com frequência,
posto que prejudicado pelos costumes que as transformações da indústria da pesca
têm rasgado na nossa vida, é a companha de cada traineira mandar celebrar, pelo
menos uma vez por ano, na capela de Nossa senhora dos Remédios (ou nas igrejas
de S.Pedro e de Nossa Senhora da Ajuda) uma missa cantada por intenção dos camaradas vivos e pela alma dos já falecidos, a que se segue, num escolhido restaurante
ou retiro castiço, com o contributo de todos, a chamada função –tradicional caldeirada, bem comida e bebida, rematada com uma série burlesca de números recreativos
interpretados ao som da concertina, da gaita de beiços ou da guitarra, tocados por
gente conhecedora do ofício, e de vozes animadas de camaradas com algum jeito
para as cantigas em voga o para os fados de maior sabor popular. E como nenhum
gosta de ficar atrás, é sempre ocasião, tenha-se ou não se tenha especial jeito, de provocar uma anedótica desgarrada ou entoar o famigerado leva-leva, cântico ritmado,
monótono mas excitante, de letra ao sabor do momento e da inspiração, com que os
improvisados poetas-cantadores costumam apressar e amenizar a sempre demorada
e fatigante operação do recolher das redes.
Ah!, mas nem só de pratos fortes a nossa gastronomia foi e é geradora de particulares acepipes. Também na doçaria marcamos original presença! É que, para além
de variados mas forasteiros doces, aí estão, penicheiros, os pastéis de Peniche, os
esses e os amigos de Peniche, com fama há muito conquistada; e, mais antigos e
infelizmente um pouco esquecidos, os quase divinos canudos, e também, mais re44
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
centemente, as ondas, as dunas e os ossos. E lá vêm os ovos, e o açúcar, e a água,
e a amêndoa ralada, e a canela, e a farinha, e o limão…
E já agora, a propósito de ovos, não deixa de me brotar à memória o facto de
ter feito parte dos cardápios locais o uso do consumo de ovos de gaivota! Embora,
talvez por algum preconceito, nos faça uma certa confusão, os pescadores e outros
aventureiros pesquisadores de alturas, iam, com risco de vida, apanhar os ovos de
gaivota a sítios quase inacessíveis, para seu alimento ou também para os venderem
para alimento de outros, ou como objecto de arte e curiosidade, dada a graciosidade,
a cor e o pintalgado da sua casca. Os meses de Maio e Junho eram próprios para esse
género de colheita e, durante eles, nas tabernas de Peniche –que as havia às dezenas,
espalhadas por todas as ruas, como local de convívio e distracção, hoje substituídas
por cafés e pastelarias– e junto à Ribeira velha vendiam-se destes ovos, cozidos,
acompanhados de inseparável copito de três…Em 1864, por exemplo, vendiamse estes ovos a dez réis cada um! E, a propósito, recordados os preços de alguns
pescados naquela mesma data, não deixa de ser curioso comparar que, se: um ovo
se vendia por dez réis, uma lagosta era mercadejada por vinte ou trinta! Caído em
desuso esse costume de comer, cozidos, os ovos de gaivota (dado que, pelo progresso técnico da indústria piscatória, os hábitos gastronómicos das poéticas voadoras
também se modificaram, não se recomendando hoje, pelo conspurco do seu alimento, o desagradável resultado digestivo da sua comedia…) estamos em crer que, se
alimentadas de diferente maneira e se a tal tradição da iguaria de ovos viesse a ser
recuperada, talvez que pudesse ficar a dever-se à gastronomia penicheira a solução
do terrível problema da super-população de tão simpáticas –mas, por vezes, de algum modo inconvenientes…– palmípedes marinhas que, nos últimos tempos, tanta
preocupação têm vindo a lançar no dia-a-dia penicheiro…
*
A globalização, que parece querer fazer todos iguais, desrespeitando as diferenças, força-nos a encarar com coragem o interesse e a sensibilidade que devemos
ter para com a defesa da genuinidade dos nossos valores tradicionais. Não que tal
corresponda a uma egoísta demarcação do universal, mas antes a uma legítima defesa do valor do singular na constituição do plural. Mas também é fundamental termos
a humildade suficiente para saber entrosar o que é dos outros com o que nosso é, o
que não temos com o que temos, na certeza de que, de tal entrosamento, o que foi
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
e é nosso não deixará de o ser por isso. É que, para produzir pastéis, ou esses, de
Peniche, necessitamos de amêndoa –que terá de vir, por exemplo, do Algarve; ou de
açúcar –que talvez tenha de vir de Cuba; ou de canela –que, provavelmente, terá de
vir da Índia ou do Sri Lanka... Que, para a produção dos nossos cozinhados, necessitamos, entre outras coisas, de óregãos –que, por não os termos por aqui, teremos de
os mandar vir, talvez, do Alentejo. E tudo isto não parece verdadeiramente nenhum
crime de lesa-paternidade… Isto é, a nossa gastronomia tradicional não deixará, por
isso, de ser profundamente de Peniche. Pela utilização, nas nossas caldeiradas ou
nos nossos doces, de condimentos vindos de outro lado, não perderemos por isso a
nossa originalidade. Quero crer, até, que, pelo bem que especialmente sabem, não se
ficará a dever nada aos ambrosíacos manjares dos deuses do Olimpo nem deixaremos de suscitar a soberana e sôfrega inveja de Baco, o deus do vinho…
Porque, também na comida e na bebida se poderá apreciar a complementaridade, o cruzamento das culturas, o respeito pela diferença, a certeza da afirmação da
nossa própria individualidade; enfim, testemunhar a riqueza do relacionamento humano e da convivialidade, sem esquecer a memória e a génese da nossa identidade.
Até porque, de facto, e naquilo que a Peniche diz respeito, na comida e na
bebida o mar tem uma outra vida…
Nota: foi respeitada a grafia anterior ao recente Acordo Ortográfico.
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PATRIMÓNIO, IDENTIDADE E RELIGIOSIDADE NO
CONCELHO DE PENICHE
Rui Venâncio 16
Raquel Janeirinho 17
Jorge Martins 18
Sinopse
O concelho de Peniche possui um vasto património cultural de índole religiosa,
que se reflete tanto na interessante arquitetura da maioria dos seus templos católicos e no
precioso espólio escultórico e pictórico patente no seu interior, como nos rituais sagrados e
festivos ou no variado património oral local.
O presente artigo debruça-se sobre esta relação entre as gentes de Peniche, a
religiosidade e as suas manifestações materiais e imateriais. Aborda, ainda, o projeto Rota
das Igrejas do concelho de Peniche promovido pelo Município com vista à promoção e
valorização deste património local.
Palavras-chave: Património Cultural; Património Religioso; Identidade e Memória Coletiva; Peniche (concelho)
Técnico Superior de Arqueologia da Câmara Municipal de Peniche, desempenha funções de Coordenador para a Cultura da Câmara Municipal de Peniche.
17
Técnica Superior de Antropologia da Câmara Municipal de Peniche.
18
Técnico Superior de Conservação e Restauro da Câmara Municipal de Peniche.
16
47
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
1. PATRIMÓNIO
PENICHE
HISTÓRICO-RELIGIOSO
DO
CONCELHO
DE
A história trágico-marítima de Peniche está recheada de dramáticos episódios que
envolvendo esta comunidade piscatória, reafirmam a duradoura e contraditória relação
estabelecida entre o Homem e o Mar. Daí resultou uma vivência humana profundamente
marcada pela Fé e por uma extrema religiosidade, visível nos cultos e festas religiosas
associados ao mar, dos quais as venerações de Nossa Senhora da Ajuda, de Nossa Senhora
da Boa Viagem e de Nossa Senhora dos Remédios constituem expoentes máximos. A
religiosidade desta comunidade piscatória é igualmente perpetuada na magnificência dos
seus templos. Destes o santuário de Nossa Senhora dos Remédios e as igrejas de Nossa
Senhora da Ajuda, S. Pedro e da Misericórdia de Peniche, constituem pela sua relevância
histórica e beleza artística os mais significativos monumentos evocativos desta arreigada
devoção coletiva existentes na península de Peniche.
Nesta terra de gentes igualmente conhecedoras das agruras da prática agrícola,
destacam-se com particular relevo o rol do património disperso pelas freguesias rurais
do concelho, com templos como as igrejas de S. Leonardo, Nossa Senhora da Conceição,
Misericórdia de Atouguia da Baleia, na Vila de Atouguia da Baleia, e de S. Sebastião, na
Serra d’ El-Rei.
A par do património edificado de matriz religiosa, uma pluralidade de rituais,
cerimónias e lendas subjazem à matriz identitária dos habitantes do concelho de Peniche.
2. ARQUITETURA RELIGIOSA NO CONCELHO DE PENICHE
No concelho de Peniche é bem visível a marca de fé, igrejas, capelas, ermidas,
cruzeiros, espalham-se pela paisagem urbana e rural. Num número aproximado de 50 edificações de caráter religioso disseminadas pelo longo do concelho, com diferentes características – umas de maiores dimensões, outras mais decorados, medievais, maneiristas,
barrocas, modernas –, constituem fachadas esculpidas que representam a riqueza histórica
e artística deste concelho.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
2.1 O Românico em Peniche
Durante a Idade Média, na época da reconquista para sul e após a independência do
Condado Portucalense em 1143, surge a arquitetura românica em Portugal, que teve início
no princípio do século XII e se prolongou até meados do século XIV. Caracteriza-se por
uma arquitetura de cariz militar e defensiva e uma decoração que pretendia transmitir o ambiente fechado e introspetivo do culto religioso muito subjugado pelas diretrizes da Igreja.
Em Peniche, encontra-se um templo de transição do românico para o gótico – a Igreja de S.
Leonardo – a qual afloraremos no subcapítulo seguinte.
2.2 O Gótico em Peniche
Do final do século XII, prolongando-se até ao século XV, surge também a arquitetura gótica em Portugal, movimento artístico que se centrou no desenvolvimento da arquitetura e artes plásticas, marcada pela abundância de claridade e pela verticalidade focada
sobretudo em construções religiosas, manifestando-se como uma arte muito assinalada pelo
poder económico da expansão burguesa.
É durante este período que é construída a mais antiga referência religiosa do concelho, a Igreja de São Leonardo em Atouguia da Baleia, um conjunto edificado de referência
na transição do românico para o gótico que ilustra a importância histórica da Vila na época
medieval, edificada provavelmente durante o início do século XIV, durante a donataria da
rainha D. Isabel. Apresenta alguns apontamentos de matriz românica, nomeadamente na
decoração dos capitéis das colunas e no portal, onde figura a representação de seres mitológicos, no entanto a sua arquitetura e decoração é claramente gótica, como patenteia o uso
intensivo do arco ogival nos belíssimos portais - principal e lateral - nas diversas aberturas
verticalizadas ou a implementação de rosácea na fachada - óculo - que exponenciam a iluminação no interior. A nave dividida em três é separada por uma grandiosa arcaria também
ela ogival e apresenta uma abside em abóbada de cruzaria de ogivas.
Do final deste período destaca-se ainda o início da construção do conjunto monumental do Convento de São Bernardino, fundado nos meados do século XV pela Ordem
dos Frades Franciscanos19. Coexistem, numa única propriedade, edificações de cronologias
distintas, correspondentes a momentos específicos de expansão e renovação do conjunto, as
Esta, também conhecida como Ordem Terceira, está igualmente na origem de outros templos concelhios, como é o caso da igreja de S. José, na Atouguia da Baleia.
19
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últimas durante o século XX - Colónia Correcional de São Bernardino e Centro Educativo
de São Bernardino. O núcleo residencial, o mais antigo do conjunto, corresponde ao primitivo convento dos frades franciscanos, mantendo grande parte da sua planimetria original.
Destaca-se o claustro, preservando no andar térreo uma colunata clássica, em redor do qual
se distribuíam as celas monásticas, o refeitório, com painéis de azulejos azuis e brancos
do século XVIII, a horta e o jardim com os seus tanques e fontes, e a igreja do convento,
abobadada, e ricamente decorada com pinturas e azulejaria do século XVII, como também
toda a primitiva cerca. Existe ainda uma pequena capela junto à falésia, a Capela de Santo
António, de planta circular precedida por caminho pedestre.
1.3 O Manuelino em Peniche
No final do século XV, início do XVI, surge em Portugal, durante o reinado de D.
Manuel I, o estilo manuelino, tipo artístico português que tem como base o gótico final. A
característica dominante do manuelino é a exuberância de formas e uma forte interpretação
naturalista-simbólica muito associada aos descobrimentos.
Exemplos desta arte decorativa podem ser encontrados pontualmente no concelho,
o pelourinho de Atouguia da Baleia de caráter civil, mas talvez a manifestação artística e
religiosa mais importante será o Cruzeiro Manuelino na Coimbrã ou, como também é conhecido da Senhora da Boa Memória. Data de 1525 e consiste num capitel do qual irrompe
uma cruz de braços flor-de-lizados, rematada pela representação de um pelicano, e em cujas
faces figuram um Cristo Crucificado e uma Nossa Senhora da Piedade.
2.4 O Maneirismo em Peniche
Paralelamente ao renascimento clássico desenvolveu-se no séc. XVI, um movimento artístico afastado conscientemente do modelo da antiguidade clássica, o maneirismo.
Este surge em Portugal em meados do século XVI e durou até meados do século XVII. A
sua arquitetura apresenta grande sobriedade nas construções e dá prioridade à edificação de
igrejas de plano longitudinal com linhas muito geométricas com pouca penetração de luz
para o interior. Na decoração interior são utilizados azulejos de padrão policromados a azul
e amarelo, altares forrados com talha dourada e pinturas a óleo sobre madeira e tela, contrapondo a sua austeridade com elementos decorativos como grinaldas de flores e volutas
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extrapolando assim as rígidas linhas dos cânones clássicos.
Neste período surge a grande disseminação de templos no concelho, numa época de
afirmação de território cristão doutrinado pelas ideias principais do movimento e difusão do
modelo da igreja jesuíta, funcional e de linhas simples. É durante esta proliferação que se
edifica a maior parte dos templos do concelho.
Em Peniche, ergue-se a Igreja de Nossa Senhora da Ajuda - templo mais antigo da
cidade cuja construção teve início em 1500 -, o Convento do Bom Jesus - só perduram as
ruínas da antiga igreja -, a Igreja de São Pedro, a Igreja da Misericórdia, a Igreja de Nossa
Senhora da Conceição, a Capela de Nossa Senhora dos Remédios, a Capela do Calvário,
a Capela de Santa Ana, a Capela de Santa Barbara, na Fortaleza, e muitos outros templos
entretanto desaparecidos ou destruídos, exemplos disso são a Ermida do Bom Jesus Pequeno próxima do Convento do Bom Jesus, ou a Capela de Nossa Senhora da Vitória que se
situava junto ao Farol do Cabo Carvoeiro.
No restante concelho edifica-se a Igreja da Misericórdia de Atouguia da Baleia,
a Capela de São Sebastião e Santa Luzia em Geraldes, a Igreja de São Sebastião de Serra
d’El-Rei e a Ermida de Santo Estêvão, no Baleal. Todos estes templos, inclusive os que
foram modificados após este período, como a Capela de Nossa Senhora dos Remédios, a
Capela do Calvário, a Capela de Santa Ana, a Capela de Santa Bárbara, em Peniche, e a
Ermida de Santo Estêvão, no Baleal, apresentam características comuns da arquitetura e
decoração maneirista tais como naves de plano longitudinal e fachadas com linhas muito
sóbrias e geométricas normalmente com empena e frontão triangular e poucas aberturas.
Encontramos como expoente máximo desta arquitetura no concelho três templos:
• A Igreja Nossa Senhora da Ajuda de planta longitudinal, configurando um interior
de uma só nave e teto da capela-mor coberto por caixotões pintados com cenas
religiosas, admirando-se ainda na mesma capela as paredes forradas com azulejos
tipo padrão azul e amarelo.
• A Igreja da Misericórdia de Peniche de inícios do século XVII, integrada no casario
da antiga vila, fachada pombalina terminada em frontão triangular, com fogaréus,
marcada por cunhais em cantaria e rasgada por portal de vão retangular encimado
por um janelão e frontão contracurvado com o escudo nacional no tímpano. Na
nave, um teto pintado, com 55 caixotões, ilustrando cenas da Vida e Paixão de
Cristo e as paredes revestidas de azulejos do tipo padrão azul e amarelo e um vasto
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
conjunto de pinturas de Josefa d´Óbidos da mesma época. De salientar a existência
de um retábulo flamengo nesta igreja, da Escola de Bruxelas, do século XV, uma
peça de inigualável qualidade artística no panorama mundial.
• A Igreja de São Pedro, cuja construção remonta ao séc. XVI20, constituindo o mais
imponente templo do concelho, possui uma planta longitudinal composta, fachada
principal em empena triangular, rasgada por exonártex ladeada por 2 torres, uma
delas com sineira coberta e outra sem remate, óculo no corpo central e molduras
divisórias dos andares em cantaria.
2.5 O Barroco em Peniche
No final do século XVII, prolongando-se por todo o XVIII, imerge em Portugal um
novo estilo arquitetónico e decorativo, o barroco. Este, ao contrário da simplicidade e serenidade do maneirismo, caracteriza-se pelo movimento, pelo dramatismo e pelo exagero na
decoração, com a finalidade de impressionar os fiéis da Igreja. A arte da talha dourada em
estilo nacional (século XVII/XVIII) e estilo joanino (século XVIII) e os painéis azulejares
figurativos em tons de azul e branco vieram-se a revelar importantíssimos numa linguagem
elaborada mas ao mesmo tempo simples que atraía e conduzia o olhar do crente para uma
auspiciosa decoração.
Com apontamentos arquiteturais barrocos encontramos muitos exemplos desta arte
no concelho, nomeadamente na arquitetura exterior dos templos construídos durante este
período. A Ermida de Santa Cruz em Peniche - sem referências arquiteturais -, a Capela de
Nossa Senhora da Guia, em Ferrel, a Igreja de Nossa Senhora da Consolação21, na Praia
da Consolação, a Igreja de S. José, em Atouguia da Baleia, a Capela de Santa Bárbara, em
Reinaldes, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, na Bufarda, e a Igreja Nossa Senhora da
Nazaré, da Ribafria, apresentam-se vários registos barrocos, nave única, capela-mor profunda e na fachada maioritariamente, empena marcadamente contracurvada, portal e janelas
simples e cúpulas bulbosas. A Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Atouguia da Baleia
é, marcadamente na sua totalidade, o expoente máximo de arquitetura barroca no concelho.
Trata-se de uma igreja de peregrinação de planta longitudinal com fachada assinalada por
empena extraordinariamente contracurva e grandes torreões bulbosos, expressando movimento a todo o conjunto. O interior, de uma só nave abobadada, sobressai a beleza da capeAproximadamente na mesma localização, haveria um templo em honra do Espírito Santo.
Este templo, não obstante ter sido construído no século XVIII e o seu interior ser inequivocamente
barroco, apresenta uma fachada de transição, com apontamentos maneiristas.
20
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la-mor revestida de mármore de diversas tonalidades, desde a colunata torça do retábulo até
aos medalhões das paredes laterais e do teto com embutidos recortados.
A grande transformação da arte barroca dá-se na decoração interior dos templos,
através da talha dourada, da pintura e dos painéis de azulejos figurativos em tons de azul e
branco como encontramos em grande parte dos templos de volumetria maneirista mas com
decoração interior exuberantemente barroca. Pode-se afirmar que o concelho tem dos melhores exemplos em Portugal, o retábulo-mor e sacrário em talha dourada da Igreja de São
Pedro com as suas colunas salomónicas, de fuste espiralado e decoração com conchas, grinaldas de flores, palmas, parras, cachos de uvas, volutas, folhas de acanto, atlantes, cartelas
e arrendados, o retábulo-mor da Igreja da Misericórdia de Atouguia da Baleia e os retábulos
da Igreja de São Sebastião na Serra d’ El-Rei, de menores dimensões mas de qualidade
muito assinável. Os painéis de azulejos figurativos azul e branco são outra das manifestações barrocas de grande relevância espalhadas no concelho, encontram-se painéis de grande
qualidade artística e de grandes mestres de azulejaria nacional. Estes revestem as paredes
da Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, da Capela de Nossa Senhora dos Remédios, da Igreja
Nossa Senhora da Consolação e da Igreja de São Sebastião, de Serra d’ El-Rei.
2.6 O século XX e a arquitetura religiosa em Peniche
Durante o século XIX a edificação de templos no concelho é desvalorizada, havendo algumas reformulações pontuais nos diversos templos existentes. Apenas durante o
século XX se retoma a edificação de templos religiosos, na fase tardia do século. À imagem
dos templos mais antigos do concelho, embora estes construídos no final do século XX
estes também refletem a arquitetura vigente no seu tempo. Apresentam-se assim com linhas
construtivas modernas, simples e geométricas com numerosos volumes articulados entre si
e vastos alpendres. Na decoração interior surgem revestimentos de materiais modernos sem
o cunho artístico de outros tempos, mas pautada com arte sacra contemporânea. Ergue-se a
Igreja de Santo António, nos Bolhos, a Igreja de São João Baptista, no Alto do Veríssimo, a
Igreja de Santo António, nos Casais Brancos, a Igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso,
nos Casais de Mestre Mendo, a Igreja de Santo António, em Casais do Júlio, a Igreja do
Imaculado Coração de Maria, no Casal Moinho, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição,
em Geraldes, a Igreja de Nossa Senhora da Esperança22, no Lugar da Estrada, e a Capela de
Santa Filomena, em São Bernardino. 22
Construída sobre uma antiga capela existente no local.
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2. PATRIMÓNIO CULTURAL IMATERIAL, DE PENDOR RELIGIOSO,
DO CONCELHO DE PENICHE
A 17 de outubro de 2003, a UNESCO aprovou a Convenção para a Salvaguarda
do Património Cultural Imaterial (doravante PCI), ratificada por Portugal a 26 de março
de 200823. Nesta, o PCI é entendido como o conjunto de “práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões – bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços
culturais que lhes estão associados – que as comunidades, os grupos e, sendo o caso, os
indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante do seu património cultural”.
Esse património é transmitido de geração em geração, sendo “constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função do seu meio, da sua interacção com a natureza e da sua história, incutindo-lhes um sentimento de identidade e de continuidade,
contribuindo, desse modo, para a promoção do respeito pela diversidade cultural e pela
criatividade humana.”
Estas manifestações podem ser enquadradas em cinco domínios, por sua vez subdivididos em diversas categorias. Os domínios do PCI são:
1. Tradições e expressões orais, incluindo a língua como vetor do património cultural
imaterial;
2. Expressões artísticas e manifestações de caráter performativo;
3. Práticas sociais, rituais e eventos festivos;
4. Conhecimentos e práticas relacionados com a natureza e o universo;
5. Competências no âmbito de processos e técnicas tradicionais.
São várias as manifestações de património imaterial detetáveis no concelho de Peniche, que o tornam único, plural e que constroem a sua identidade e dos seus habitantes.
Entre outros possíveis, salientamos neste capítulo patrimónios de dois tipos: por um lado
as principais tradições festivas do concelho associadas à religiosidade; por outro a tradição
oral patente nas diversas lendas que estão nos mitos de origem de maior parte.
Veja-se a Resolução de Assembleia da República nº 12/2008. Em Portugal, existem dois instrumentos legais principais com vista ao estudo, preservação, valorização e divulgação do PCI: o DecretoLei nº 139/2009, de 15 de junho, que “estabelece o regime jurídico de salvaguarda do património
cultural imaterial” e a Portaria nº 196/2010, de 9 de abril, onde é apresentado o “procedimento de
inventariação do património cultural imaterial” visto como “instrumento indispensável da respectiva política de protecção e valorização” instituídos no decreto supra referido.
23
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3.1 Festividades Religiosas
As cerimónias comemorativas estão tendencialmente associadas a uma comensalidade, partilha e renascimento coletivos. A festa é essencial à manutenção de um grupo e à
reprodução da sua memória, que lhe confere garantias de continuidade. Na festa, associamse aspetos religiosos com os celebratórios e rituais e, inclusivamente, com os desviantes ou
subversivos. O calendário – particularmente pela sua associação ao ciclo agrícola – verificase como relevante para o entendimento dos diferentes rituais festivos existentes24.
Não obstante a existência de festas essencialmente religiosas, as chamadas “Festas
de Igreja”, as festas mistas apresentam-se como a maioria das existentes. Muitas das vezes,
a tentativa de articulação do sagrado com o profano verifica-se na pluralidade de atos festivos repartidos entre estes dois grupos, os religiosos (celebração eucarística, procissão); e
os lúdico-recreativos (fogo de artifício, foguetes, bandas), etnográfico-desportivos (jogos
populares, feiras de artesanato) e económico-sociais (feiras, convívios e bodos)25. Assim,
juntamente com o arraial, as feiras são, muitas das vezes, elementos de complementaridade
das romarias e festas.
Uma ampla variedade de festividades transcorre o concelho, das festas patronais
estritamente locais – normalmente com uma vertente ritual sagrada e festa profana - às
romarias.
Vasconcelos (1996), que procedeu a um inventário das romarias em Portugal, refere-se a estas como
Pais de Brito fala-nos da influência do calendário e da dicotomia verão / inverno nos rituais agrícolas, onde o primeiro corresponde a uma época de maior trabalho, inter-relacionamento e comensalidade e o segundo a um recolhimento associado a um período de defeso do emprego agrícola.
24
“[O calendário é] o primeiro quadro ideológico de referência de uma sociedade rural
tradicional que, funcionando como guia orientador, ao ser correctamente seguido,
é também vivido e agido como condição e primeiro instrumento para a protecção
desejada. (…) os tempos festivos balizam fases diferenciadas para as operações agropastoris. (…) Os complexos rituais do Inverno, que os magustos do final de Outubro (e
sobretudo do dia de Todos-os-Santos e de São Martinho) inauguram, correspondem à
conclusão das sementeiras e a um tempo expectante que, a partir de Janeiro, é insistentemente marcado pela inquietação manifesta quanto às condições meteorológicas.
(…) A este recolhimento crítico e intensa ritualidade do grupo em confronto consigo
próprio, contrapõe-se, com o Verão, a abertura da comunidade ao seu exterior, a
activação de uma sociabilidade interaldeã bem patente nas mútuas frequentações das
festas dos santos padroeiros e nas deslocações e encontros no espaço comum do santuário das romarias.” (Brito, 1996, pp. 219-221)
25
Seguindo proposta de divisão avançada por Geraldo Coelho Dias (1987, pp. 221-252.)
55
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
“festas que congregam num santuário pessoas vindas de diversas localidades
mais ou menos distantes e que podem compreender cerimónias, práticas,
motivações e estados de alma tão diversos como o pagamento de promessas,
a celebração da missa, a procissão, a oração, a caminhada, a penitência, a
diversão, a dança, o comércio, o consumo, a mendicidade, a prodigalidade, o
descanso, a competição pelo prestígio, o ajuste de contas (hoje raro), o namoro,
a comensalidade, o reencontro de conhecidos, o encontros de desconhecidos
ou simplesmente o estar ali” (Vasconcelos, 1996, p. 14)
Os círios, romarias ou peregrinações, são fenómenos de fé popular muito evidentes
na região estremenha, com particular enfoque no culto mariano. Destas, destacamos, naturalmente, os círios ao Santuário de Nossa Senhora dos Remédios, e as peregrinações por
parte de populações do concelho a santuários exteriores aos limites deste, como os círios ao
Senhor Jesus do Carvalhal (Bombarral) por parte da população de Ferrel e Bolhos, ou ao de
Nossa Senhora da Piedade, na Merceana (Alenquer), por peregrinos de Geraldes.
Também as festividades associadas aos patronos locais ou a eventos do calendário
litúrgico se celebram durante todo o ano, com particular enfoque, nas últimas décadas, na
época estival – as chamadas “Festas de Verão” ou “Festas dos Emigrantes”26. No levantamento associado ao projeto “Inventário Participativo do Património Cultural”, identificaram-se
cerca de quatro dezenas de festividades de índole religiosa, ainda praticadas, no concelho
de Peniche. Sublinhamos, em particular, a festa de novembro em honra de S. Leonardo, em
Atouguia da Baleia. Também nesta vila, a procissão do Senhor dos Passos (Quaresma), e
as festas em honra de Nossa Senhora da Assunção (agosto) e Nossa Senhora da Conceição
(dezembro). No restante concelho, as festividades em honra de Nossa Senhora da Guia,
em Ferrel, apresentam grande magnificência com destaque para os festejos profanos e suas
atracões. Na Serra d’ El-Rei, destacam-se as festas em honra do padroeiro S. Sebastião (anteriormente também em honra de Santo Antão), em janeiro; a de Nossa Senhora do Amparo
(no Santuário de Nossa Senhora do Amparo, pertencente à Freguesia de Olho Marinho mas
cultuado pelo povo serrano), em maio; e a de Nossa Senhora da Piedade, em Agosto. Nas
diversas localidades, realizam-se as festividades em honra do Santo Padroeiro, como por
exemplo: a festa de Santo António, nos Bolhos, a festa de Santo Antão e de Nossa Senhora
A partir, essencialmente, da década de 1970 do séc. XX, as festas em honra dos patronos locais que
têm lugar no verão viram o seu número crescer a sua importância desenvolver-se, devido ao fenómeno da emigração das populações e o seu regresso cíclico, mas temporário, nesta época do ano.
26
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
do Rosário, na Bufarda, a festa de Nossa Senhora do Bom Sucesso, em Casais de Mestre
Mendo; no Casal Moinho, a festa em honra do Imaculado Coração; em Casais Brancos, a
Festa em honra de Nossa Senhora da Conceição; as festas dedicadas a Santo António, em
Casais do Júlio; os festejos em honra de Nossa Senhora da Conceição, na Coimbrã; as de
S. Sebastião, Nossa Senhora da Conceição e Santa Luzia, em Geraldes; Nossa Senhora da
Esperança e S. Sebastião, no Lugar da Estrada, e ainda a de Nossa Senhora da Consolação;
as festas de S. Brás e do Santíssimo Sacramento, no Paço; os festejos em honra de Santo António, Santa Bárbara e Todos os Santos, em Reinaldes; a festa de Nossa Senhora da Nazaré,
em Ribafria; ou a festa em honra de S. Bernardino de Senna e a designada Festa de Verão,
também na localidade de S. Bernardino.
Debruçamo-nos seguidamente sobre duas das festas que têm lugar na cidade de
Peniche. No entanto, há que sublinhar a relevância não só das outras festividades como
também do culto associado a estas imagens, que se pratica mais pessoal e intimamente,
durante todo o ano.
3.1.1 Círios ao Santuário de Nossa Senhora dos Remédios
Este Santuário de âmbito regional, próximo do Cabo Carvoeiro, recebe círios de
vários concelhos vizinhos tais como Mafra, Torres Vedras, Lourinhã, Peniche, Bombarral, Óbidos, Caldas da Rainha e Nazaré27, a par dos muitos peregrinos a título individual,
contabilizando milhares de romeiros. O culto a Nossa Senhora dos Remédios verifica-se
essencialmente de Julho a Novembro, mas tem especial incidência no mês de Outubro (3º
Domingo). Os círios ao Santuário virão “pelo menos, do século XVII” (Calado, 1996, p.
197).
Embora com algumas alterações ao longo das décadas, são diversos os atos de culto
A par dos muitos peregrinos a título individual, acorrem ao Santuário os seguintes círios: A-dosCunhados, Atalaia, Areia Branca, Carvoeira, Famalicão da Nazaré, Fonte Grande, Miragaia, Moledo,
Peniche, Póvoa de Penafirme, Serra d’ El-Rei, Serra de S. Julião, Silveira, Sobreiro Curvo, Toledo e
Valado de Frades (Nascimento, 1997). Pinho Leal, em 1875 (cit. em Calado, 1996, p. 200), referia a
existência dos seguintes: do concelho de Alcobaça – círios de Alfeizerão, Famalicão, S. Martinho do
Porto, Nazaré, Valado e Vimeiro; do concelho de Caldas da Rainha – Fonte Grada e Foz do Arelho;
do concelho de Óbidos – Amoreira, Gaeiras e Óbidos; do concelho da Lourinhã – Atalaia de Cima,
Atalaia de Baixo, Moledo, Reguengo Grande, Reguengo Pequeno e Vimeiro; do concelho de Torres
Vedras – Carvoeira, A-dos-Cunhados, Encarnação, Panasqueira e Rendide; do concelho de Peniche
– Peniche e Serra d’El-Rei.
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praticados pelos romeiros28, dos quais destacamos, a par da cerimónia eucarística e da procissão em honra de Nossa Senhora dos Remédios e da oferta de círios, ou velas, para “pagar
promessas”, as três voltas ao Santuário e as loas (hinos de louvor a Maria)29, cantadas pelos
anjos (crianças) que acompanham os diversos círios.
Nos dias em que o Santuário recebe os romeiros, uma feira é montada, na qual,
às tradicionais bancas de frutos secos, se juntam mais recentemente o vestuário e material
vário.
Fora do período de mais intensa celebração festiva, de destacar que o Santuário dos
Remédios e a sua Capela é uma das mais visitadas do concelho, por turistas e crentes, como
confirmam os dados sobre entradas de visitantes recolhidos no âmbito do projeto Rota das
Igrejas do Concelho de Peniche.
3.1.2 Festa de Nossa Senhora da Boa Viagem
Pela sua grandeza e importância para o município, também de referir a festa de
Nossa Senhora da Boa Viagem, em Peniche. Esta festa popular consagrada à padroeira dos
pescadores tem lugar no início de agosto30. A par dos atos litúrgicos – dos quais se sublinha
a procissão marítima noturna com a bênção dos barcos enfeitados para a ocasião, mas também a missa e a procissão em terra – são diversos os festejos cívicos, como os espetáculos,
campeonatos ou a feira (mercado e feira de diversões).
O culto a Nossa Senhora da Boa Viagem datará do século XIX; no entanto, a procissão do mar ter-se-á iniciado sob orientação do Monsenhor Bastos em 194831.
Os dias de festa são alturas nas quais “la vie religieuse atteint à un degré d’excepPor questões de espaço disponíveis, não é este o local para uma descrição detalhada dos ritos subjacentes a esta festividade. Calado (1996) e Nascimento (1997) fazem, nas publicações respetivas,
descrições vivas dos círios ao Santuário de Nossa Senhora dos Remédios, pelo que se aconselha a
consulta.
29
Para um melhor conhecimento dos versos de algumas das loas, veja-se Nascimento, 1997, pp. 87101 e Calado, 1996, p. 198.
30
O Dia do Município celebra-se na primeira segunda-feira de agosto. A procissão noturna tem lugar
no sábado anterior.
31
Para um conhecimento mais extensivo, veja-se “Subsídios para a História da Padroeira dos Pescadores de Peniche”, com a lista detalhada das festividades em honra de Nossa Senhora da Boa Viagem,
redigidas por Fernando Engenheiro em Setembro de 1998 e publicadas no jornal A Voz do Mar.
28
58
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tionnelle intensité” (Durkheim, 1912, p. 439). Não obstante, há que destacar os restantes
dias do calendário, nos quais, sem esta efervescência festiva, o culto a Nossa Senhora da
Boa Viagem é constante: a imagem encontra-se patente num dos altares laterais, na igreja de
S. Pedro32, sendo ainda devocionada junto à estátua de Nossa Senhora existente à entrada de
Peniche, na chamada “Rotunda da Santa”, onde, durante todo o ano, é feita a evocação dos
que partiram e pedida proteção para aqueles que diariamente labutam no mar.
3.2 Lendas
Ao concelho de Peniche encontram-se associadas várias lendas, tais como as lendas
da Senhora dos Remédios e da Senhora da Ajuda. Estas referem-se à descoberta das referidas imagens marianas em grutas, após um longo período de ocultação, habitualmente explicado pela presença muçulmana no território, ícones religiosos que terão estado na origem
da edificação de templos consagrados à Virgem.
Conhecem-se também algumas lendas alusivas à realidade histórica local, como
a lenda de S. Leonardo, alusiva à origem francófona da vila medieval de Atouguia da Baleia, ou ainda a lenda da Senhora das Mercês, memória de um passado não muito distante
marcado pelo temor das gentes deste território perante as frequentes investidas da pirataria
muçulmana norte-africana33.
3.2.1 Lenda de Nossa Senhora da Ajuda
A origem da adoração a Nossa Senhora da Ajuda remete para uma lenda segundo
a qual a imagem da Virgem terá sido encontrada numa pequena gruta, situada na península
da Papoa. Esta imagem foi objeto de culto na antiga igreja de S. Vicente (de que ainda eram
conhecidos vestígios no séc. XIX) até à edificação do seu próprio santuário no séc. XVI – a
atual igreja de Nossa Senhora da Ajuda.
Onde é cultuada também a imagem de S. Pedro Gonçalves Telmo, ele próprio padroeiro dos pescadores.
33
As lendas que se seguem reportam-se à tradição oral penichense, tendo sido consultadas as seguintes publicações: Calado, Mariano (1991 [1962]) Peniche na História e na Lenda, Ed. Autor; Nascimento, José Manuel (1997) Santuário de Nossa Senhora dos Remédios, Peniche, C. M. de Peniche;
e Fr. Agostinho de Santa Maria (edição de início do século XVIII), citado em Franco, L. F. Farinha,
“Anotações para o estudo da Ermida de Nossa Senhora das Mercês do Baleal” in Novidades, nº 402,
de 1 de Novembro de 1973.
32
59
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
3.2.2 Lenda da Senhora das Mercês
Segundo esta lenda, por volta de 1590, a costa de Peniche teria sido saqueada pela
pirataria muçulmana que, tendo aprisionado vários cristãos, furtou, entre outros objetos, a
imagem de Nossa Senhora das Mercês, venerada na ermida do Baleal.
Conta-se que alguns anos mais tarde, um dos cristãos de Peniche que havia estado
sob cativeiro muçulmano, indo no seu barco até Argel, reconheceu em casa de um indígena
a referida imagem da Virgem das Mercês. No intuito de resgatar a imagem, e apesar da sua
pobreza, negociou pagar o exato peso da imagem em prata.
Pouco confiante em reaver a dita imagem, o cristão viu-a ser colocada num dos pratos de uma balança e miraculosamente assumir um peso de tal forma diminuto que uma ínfima quantidade de prata foi suficiente para resgatar a imagem da santa das mãos do infiel.
Cumprindo-se o acordado, pôde a imagem de Nossa Senhora das Mercês regressar
à ermida do Baleal.
3.2.3 Lenda da Senhora dos Remédios
Conta esta lenda que, tendo os muçulmanos ocupado este território no séc. VIII, os
cristãos aqui instalados receosos que a imagem da Virgem, muito venerada, fosse profanada
pelos ditos infiéis, a procuraram esconder numa gruta junto ao atual Cabo Carvoeiro, tendo
esta aí ficado guardada durante muitos anos.
Entretanto, durante o séc. XII, no reinado de D. Afonso Henriques, um criminoso,
fugido à justiça, procurava refúgio nas cavidades rochosas da vertente ocidental da então
ilha de Peniche, quando de forma providencial encontra numa pequena gruta a imagem da
Virgem.
Maravilhado com a descoberta, não se atreveu porém de imediato a dela dar notícia
aos habitantes locais, devido à sua situação de foragido. Todavia não se conseguindo conter
revela este segredo a um grupo de crianças, que brincavam junto aos rochedos vizinhos, e
que surpreendidas correram para casa informando do magnífico achado. Em breve, toda a
povoação se deslocou à dita gruta para admirar a imagem da Virgem.
Receando que naquele sítio a imagem estivesse sujeita a roubo ou profanação, tra60
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
taram os habitantes de a levar para a então existente igreja de S. Vicente, em Peniche de
Cima. Porém, de todas as vezes que o tentaram a imagem misteriosamente desaparecia do
seu altar, voltando a ser encontrada na mesma gruta onde havia sido descoberta. Certos de
que tal fenómeno correspondia à vontade da Santa, ergueram sobre a dita cavidade uma pequena capelinha, antecessora da atual Capela de Nossa Senhora dos Remédios, onde ainda
hoje se conserva a sagrada imagem.
3.2.4 Lenda de S. Leonardo
Conta-se que, certo dia, uma nau vinda do sul de França transportando vários prisioneiros terá naufragado no então porto de Atouguia da Baleia. Os sobreviventes, em sinal
de agradecimento, mandaram edificar um templo consagrado a S. Leonardo, seu patrono,
oferecendo a imagem que ainda hoje se venera na referida igreja.
Porém, alguns desses francos não desejavam abdicar da imagem, esperando apenas
um pouco de vento de feição para zarpar do porto de Atouguia rumo à sua pátria. Todavia
passaram-se meses sem que o mar possibilitasse o encetar da viagem de regresso. Algo que
só veio a suceder quando estes cederam definitivamente a imagem de S. Leonardo, reconhecendo que seria desejo do santo permanecer nesta vila.
3. O PROJETO “ROTA DAS IGREJAS DO CONCELHO DE PENICHE”
Com vista à promoção e valorização deste relevante ativo patrimonial local, o
Município de Peniche avançou, em 2009, com o projeto Rota das Igrejas do concelho de
Peniche, que permite a visitação orientada de dez templos do concelho34.
Os dez templos abrangidos neste projeto – que já tiveram oportunidade de ser
apresentados neste artigo, anteriormente – são, por critério geográfico:
De julho de 2009 a abril de 2010, eram onze os templos integrados na Rota; a partir da segunda
temporada, preteriu-se a igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Peniche, cuja prática de cerimónias fúnebres colidia com uma fruição da mesma por parte dos visitantes.
34
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
1. Igreja de Nossa Senhora da Ajuda: séc. XVI. Imóvel de Interesse Público.
Peniche, freguesia da Ajuda.
2. Igreja de S. Pedro: séc. XVI. Imóvel de Interesse Público. Peniche, freguesia de
S. Pedro.
3. Santuário de Nossa Senhora dos Remédios: séc. XVII (?). Imóvel de Interesse
Público. Peniche, freguesia de S. Pedro.
4. Igreja da Misericórdia de Peniche: séc. XVII. Imóvel de Interesse Público.
Peniche, freguesia da Conceição.
5. Igreja de S. Leonardo: séc. XIV. Monumento Nacional. Atouguia da Baleia,
freguesia de Atouguia da Baleia.
6. Igreja de Nossa Senhora da Conceição: séc. XVII. Imóvel de Interesse Público.
Atouguia da Baleia, freguesia de Atouguia da Baleia.
7. Igreja da Misericórdia de Atouguia da Baleia: séc. XVI. Atouguia da Baleia,
freguesia de Atouguia da Baleia.
8. Igreja de Nossa Senhora da Consolação: séc. XVIII. Consolação, freguesia de
Atouguia da Baleia.
9. Ermida de Santo Estêvão: séc. XVI-XVII. Baleal, freguesia de Ferrel.
10. Igreja de S. Sebastião: séc. XVII. Serra d’ El-Rei, freguesia de Serra d’ El-Rei.
Este itinerário pelo património religioso do concelho de Peniche tem como objetivos
a valorização do património histórico-religioso e o desenvolvimento do turismo de índole
cultural no concelho. Para tal, propõe-se assegurar a abertura ao público das igrejas integradas
na Rota e potenciar a visitação orientada deste património cultural.
Estabeleceram-se, então, Acordos de Parceria entre o Município e as cinco entidades
proprietárias dos imóveis que integram a Rota: Paróquia de Peniche, Fábrica da Igreja
Paroquial da Freguesia de São Leonardo de Atouguia da Baleia, Fábrica da Igreja Paroquial
da Freguesia de Serra d’ El-Rei, Santa Casa da Misericórdia de Atouguia da Baleia e Santa
Casa da Misericórdia de Peniche. Este projeto conta igualmente com a colaboração das
Juntas de Freguesia do concelho.
Em articulação com o Centro de Emprego, primeiramente através dos programas de
Estágios de Qualificação-Emprego e, mais recentemente, através de Contratos de Emprego
Inserção, são contratados colaboradores que assumem funções de guias e vigilantes dos
diversos templos. A Junta de Freguesia de Atouguia da Baleia também disponibiliza um
elemento para estas funções e, em regime de voluntariado, algumas pessoas normalmente
62
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
associadas às Comissões Fabriqueiras das diversas igrejas, assistem na abertura e vigilância
dos espaços.
A qualificação dos recursos humanos é uma das linhas deste projeto, desenvolvendo
uma educação patrimonial que permite a formação de atitudes cidadãs mais ativas,
esclarecidas e com futuro. Como se costuma dizer “Só se ama o que se conhece”, pelo que
para incentivar atitudes preservacionistas é necessário uma forte divulgação e valorização
destes ativos patrimoniais. No início de cada temporada, tem lugar uma ação de formação
alargada aos novos membros, providenciada pela equipa da Cultura da CMP, em articulação
com as Paróquias e Misericórdias do concelho. Este período formativo engloba as seguintes
temáticas35:
1. Enquadramento do Projeto
2. O Património Histórico-Cultural do Concelho de Peniche
3. O Património Religioso do Concelho de Peniche
4. História da Arte – Breve Enquadramento
5. Conservação e Restauro de Bens Culturais
6. Relacionamento Interpessoal e Contacto com o Público
7. Visita de Estudo pelo Património Histórico-Religioso do Concelho
As dez igrejas e capelas da Rota encontram-se abertas ao público em horários
predefinidos36. Para uma melhor divulgação da Rota e dos seus templos, produziu-se
uma brochura agora para venda. Nesta apresenta-se uma breve memória descritiva de
cada um dos templos, sublinhando os aspetos mais relevantes do ponto de vista histórico
e arquitetónico, acompanhada de uma fotografia exterior. Dela constam, ainda, mapas,
moradas e coordenadas GPS, que facilitam o encaminhamento e circulação de visitantes
entre as várias capelas e igrejas. Também no site do Município de Peniche existe divulgação
deste projeto, com informações e horários de abertura dos vários templos.
Ainda durante a 1ª temporada, em 2009, produziram-se e colocaram-se painéis informativos nos diversos templos abrangidos pela Rota, que permitem um conhecimento in
loco do templo a visitar.
Depois do primeiro período de formação mais teórica, o apoio e acompanhamento dos colaboradores em contexto de trabalho são permanentes.
36
Disponíveis em www.cm-peniche.pt/RotaIgrejas_concelhopeniche, bem como no Posto de Turismo, nas igrejas e nos polos da Rede Museológica concelhia.
35
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Avança-se, no verão de 2012, para a 4ª temporada da Rota das Igrejas do Concelho
de Peniche. Entre 2009 e 2011, verificou-se um número total de entradas contabilizadas
superior a 140 mil visitantes, com predomínio dos visitantes nacionais (68%), o que demonstra o forte interesse e afluência de um recurso como este. É um património de todos,
com forte interesse turístico, histórico, pedagógico e identitário.
4. PATRIMÓNIO RELIGIOSO: TURISMO E IDENTIDADE
O património cultural religioso, na sua vertente tangível e intangível, assume-se
enquanto testemunho da identidade de uma comunidade. Simultaneamente, constitui um
importante ativo de valorização territorial com uma forte componente de diferenciação turística. Numa era em que a busca de uma experiência autêntica parece servir de mote à
programação turística, por parte de agentes públicos e privados, a matriz religiosa da comunidade de Peniche, por fundir-se com a identidade coletiva desta, apresenta-se enquanto
veículo privilegiado de promoção do território. Neste sentido, o património religioso do
concelho de Peniche, em particular no que concerne ao património imóvel, com a sua historicidade única e relevância artística, inscreve-se com óbvia facilidade e interesse num amplo turismo de fundo cultural e religioso, assente na valorização e divulgação dos templos,
numa óptica de correlação entre a esfera material e imaterial. Tradições, ritos e festas religiosas interagem e são vivenciadas em espaços cultuados pela comunidade, que constituem
testemunhos tangíveis da religiosidade coletiva.
O concelho de Peniche ostenta um significante património cultural de índole religiosa, testemunho, em particular, de uma longa e diacrónica relação do ser humano com o
mar. A vocação marítima desta comunidade moldou indelevelmente as gentes deste território, introduzindo uma arreigada religiosidade popular que ainda hoje se vivencia, perpetuando esta memória coletiva.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Referências Bibliográficas:
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BRITO, J. P., BAPTISTA, F. O. & PEREIRA, B. (coords.) O Voo do Arado, Lisboa,
Museu Nacional de Etnologia, pp. 216-229
CALADO, Mariano (1991 [1962]) Peniche na História e na Lenda, Edição de Autor
CALADO, Mariano (1996) Peniche no século XVIII (As Memórias Paroquiais), Edição de
Autor
CALADO, Mariano (2006) “Os círios de Nossa Senhora dos Remédios (Peniche)” in SILVA, Carlos Guardado (coord.) Histórias das Festas. Turres Vedras VIII, Torres Vedras, Edições Colibri, Câmara Municipal de Torres Vedras e Instituto de Estudos
Regionais e do Municipalismo Alexandre Herculano, pp. 195-201
CÂMARA MUNICIPAL DE PENICHE (2010) Rota das Igrejas do Concelho de Peniche.
Itinerário pelo Património Religioso [Brochura], Peniche, Câmara Municipal de Peniche
DIAS, G. J. Coelho (1987) “A devoção do povo português a Nossa Senhora nos tempos
modernos”, Revista da Faculdade de Letras, II Série, IV, pp. 227-253
DURKHEIM, Émile (1912) Les formes élémentaires de la vie religieuse, Paris, Librairie
Félix Alcan
ENGENHEIRO, Fernando (2010) Peniche, Pelos caminhos do passado. Vida Religiosa,
Edição de Autor
NASCIMENTO, José M. (1997) Santuário de Nossa Senhora dos Remédios, Peniche, Câmara Municipal de Peniche
SEQUEIRA, G. de Matos (1968) Inventário Artístico de Portugal, Distrito de Leiria
SILVA, Manuel Ferreira da (1995) Os Conventos também se convertem, Porto, Asa
SIPA / IHRU, Fichas de Inventário do Património Arquitetónico do Concelho de Peniche.
Acedidas a 15 de junho de 2010 em www.monumentos.pt
UNESCO (2003) Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial. Acedido a 28 de janeiro de 2011 em http://www.unesco.pt
VASCONCELOS, João (1996) Romarias I - Um Inventário dos Santuários de Portugal,
Lisboa, Olhapim Edições
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Anexos:
Fig. 1 – A Igreja de S. Leonardo data do séc. XIV,
sendo o templo mais antigo do concelho de Peniche e o único classificado como Monumento Nacional. Em primeiro plano, destaca-se o Pelourinho de
Atouguia da Baleia. (Fotografia: Raquel Janeirinho,
Junho de 2009)
Fig. 2 – Círio ao Santuário de Nossa Senhora dos Remédios, 1922. (Fotografia: Museu Municipal de Peniche;
nº inv. MP.006116.FTG)
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Fig. 3 – Procissão marítima noturna - Festa de Nossa Senhora da Boa Viagem. Perspetiva dos barcos decorados
e do fogo-de-artifício, na saída do porto. (Fotografia: Rodrigo Lopes, 31 de Julho de 2010)
Fig. 4 – Capa da brochura “Rota das Igrejas: Itinerário pelo Património Religioso”, publicada pela Câmara
Municipal de Peniche.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
O MARKETING – UMA FERRAMENTA NA DECISÃO DA
OFERTA FORMATIVA DOS CURSOS PROFISSIONAIS
José Victor Silva37
1.
INTRODUÇÃO
A educação de excelência está a ocupar um lugar cada vez mais importante
numa globalização que obriga que a competição dos locais de trabalho seja igualmente global. Contudo, questiona-se qual hoje o papel da escola: limitar-se a cumprir
a missão constitucional em atingir metas satisfatórias de escolaridade ou facilitar a
inclusão do aluno no mercado de trabalho, dotando-o das competências cognitivas e
metodológicas numa determinada área de formação com valor social e económico.
A mera assunção de que a escola seja unicamente um veículo de inclusão
social, despreocupando-se de metas de excelência e de aceitação social, coloca-a
numa posição de subalternidade relativamente às necessidades sociais e económicas
da sociedade, arrastando-a para padrões onde a mediocridade estatística é valorizada
relativamente à necessidade da excelência.
A escola existe para responder a necessidades humanas que se permeabilizam
com necessidades sociais e económicas. Com a obrigatoriedade de frequência a escola responde a uma proteção social. A ausência de uma educação escolar é fator
de risco de exclusão social, com elevados custos económicos, algo que a economia
deseja evitar. Contudo, se a escola não se revelar como um antídoto essencial na resposta às necessidades de uma sociedade e às expetativas de um cidadão, ela revelarse-á como algo obrigatório, mas de utilidade duvidosa.
37
Professor do Departamento de Ciências Sociais e Humanas da Escola Secundária de Peniche.
69
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Atualmente, reequaciona-se a missão das escolas e das estratégias de posicionamento na sociedade. Esta introspeção está a ser desenvolvida em países como
os EUA, Reino Unido e Suécia, assim como em economias emergentes, exemplos
da Coreia do Sul ou a Índia. A escola está a transformar-se num espaço de conhecimento e de excelência para responder às necessidades crescentes de mão-de-obra de
qualidade e de criatividade.
As políticas educativas, desde há pelo menos meio século, têm tido como
objetivo proporcionar a todos os jovens portugueses o maior número de anos de
escolaridade, democratizando-se o acesso à escola dos jovens portugueses. Os pressupostos desta política educativa assentam no reconhecimento da centralidade da
escola como motor da modernização social, económica e política do país e como
instrumento de mobilidade social. Desde a escolaridade obrigatória até aos dez anos,
decretada em 1960, até à recente alteração para dezoito anos, teve sempre presente
a ambição política de construir um país rico em recursos humanos, tendente à crescente modernização dos tecidos económicos.
A exigência de uma maior procura, resultado, por um lado da obrigatoriedade
legal, mas também pela necessidade social, obrigou a um elevado esforço de investimento na construção de novos espaços escolares, no recrutamento e formação de
docentes, na definição de novos currículos e programas disciplinares, bem como a
produção de novos manuais e de outros instrumentos de ensino.
Requereu, ainda, o diálogo e a participação de novos atores da sociedade portuguesa, como os sindicatos, as associações empresariais, as autarquias, as instituições particulares de solidariedade social, bem como múltiplos setores da sociedade
ativa.
Este esforço de desenvolvimento no campo da educação possibilitou que a
taxa de escolarização do ensino secundário saltasse dos 9% em 1974 para 60% em
2007 (AMARAL, 2010: p. 76). Contudo, Portugal continua a ser um dos países da
OCDE com menor taxa de mão-de-obra com formação secundária ou superior, além
de ser um dos países com maior taxa de abandono escolar, segundo os dados internacionais do Projeto PISA.
O abandono escolar precoce foi um dos fundamentos da opção política (2006)
em alargar às escolas públicas a modalidade de cursos profissionais, até então uma
70
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
exclusividade das escolas profissionais de gestão privada ou cooperativa.
A possibilidade de as escolas públicas poderem lecionar cursos profissionais
colocou um grande desafio à missão destes estabelecimentos de ensino: tentar compatibilizar a obrigatoriedade de conclusão do ensino secundário com a oferta de um
ensino de excelência na preparação de alunos para um mercado trabalho em crescente exigência.
2.
A ORIENTAÇÃO DE MARKETING
Uma orientação de marketing pressupõe que uma organização se obrigue a
determinar as necessidades do seu público-alvo, para que desenvolva atividades
para a sua melhor satisfação (KOTLER, 1994: p. 27). Uma escola de sucesso deve
concentrar-se na satisfação das necessidades dos seus públicos.
A escola pública deve assegurar aos cidadãos (alunos e sociedade em geral)
uma educação e formação que garanta aos alunos que possam ser produtivos e que
respondam às suas responsabilidades cívicas. Há quem reclame que uma escola
deve ter uma orientação social de marketing (KOTLER, 1994: p. 28), satisfazendo
necessidades a longo prazo dos alunos e interesses da sociedade.
Estas necessidades a longo prazo dos alunos centram-se fundamentalmente
na sua empregabilidade, que lhes garanta um rendimento disponível de acordo com
as suas expetativas e anseios. Os interesses da sociedade alocam-se na exigência da
escola «produzir» cidadãos produtivos e com responsabilidade cívica e social.
Alunos
Empresas
Necessidades
ESCOLA
Estado
Sociedade civil
71
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
O nível de empregabilidade pós-curso monitoriza o sucesso no atendimento
da missão da escola. A escola deve orientar a sua ação na determinação prospetiva
de quais as ofertas curriculares que possibilitam responder às necessidades dos alunos (empregabilidade) e da sociedade (responsabilidade cívica). Por outro lado, a
escola deve organizar-se para garantir uma excelência formativa, para que garanta
que a necessidade dos empregadores seja satisfeita com profissionais qualificados e
excelente formação cívica.
3.
MISSÃO, OBJETIVOS E ESTRATÉGIA
O Projeto Educativo da Escola (PEE) define o pensamento estratégico da organização. No respeitante ao ensino profissional, a escola deverá explicitar a sua
missão, ou seja, traduzir os ideais e orientações globais da instituição (FREIRE,
1997: p.171). A importância desta assunção escrita vai espelhar o desenvolvimento
de objetivos específicos para esta oferta de ensino, assim como difundir perante a
comunidade educativa do grau de importância da modalidade formativa para a sustentabilidade da instituição e da região.
A definição da missão da escola deverá atender às exigências das necessidades
dos atores (alunos, professores, empresas e sociedade em geral), definindo quais as
orientações políticas a seguir, como, por exemplo, salientando a exigência formativa, em detrimento, de taxas conclusão, ou, dando maior importância à conclusão do
ensino secundário, baixando o grau de exigência.
72
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Os objetivos definidos no projeto educativo são indicadores de monitorização
em sintonia com a missão definida. No que diz respeito aos cursos profissionais, não
obstante outros objetivos mais restritos, devem passar por indicadores de nível de
empregabilidade e de taxa de conclusão, medindo assim a satisfação de necessidades dos formandos, como a responsabilidade social da escola na execução de metas
políticas de realização curricular.
Para alcançar os objetivos fixados, a escola deverá delinear uma estratégia que
indique em que onde competir e como o fazer.
A estratégia para o ensino profissional deverá passar numa análise cuidada do
público-alvo (alunos com o ensino básico), escolha de uma posição competitiva (ex:
especialização de oferta formativa) e desenvolvimento de um composto de marketing capaz de responder às necessidades dos públicos.
A formulação de uma estratégia de marketing institucional para uma escola
deverá, assim, incluir decisões sobre (KOTLER, 1994: p. 158)
1. Manutenção, eliminação ou alargamento da oferta formativa;
2. Avaliação das oportunidades de empregabilidade a médio prazo;
3. Análise da oferta formativa regional;
4. Análise do posicionamento da escola;
5. Desenvolvimento de um composto de marketing.
A avaliação dos cursos deve centrar-se em três eixos essenciais: a centralidade
da missão definida no projeto educativo, a qualidade da formação desenvolvida e as
necessidades de empregabilidade.
A centralidade da missão definida no projeto educativo define se o curso está
relacionado com a descrição da missão. Por exemplo, a escola poderá ter optado por
uma especialização em cursos ligados às novas tecnologias, relegando, assim, os
cursos ligados ao turismo.
Na qualidade da formação, avaliar se os resultados de opinião das entidades
empregadoras são positivos relativamente aos conhecimentos cognitivos e experi73
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
mentais dos alunos e se os recursos existentes são expetáveis de um nível de formação razoável.
A volatilidade das necessidades de recursos humanos em áreas de empregabilidade obriga a que as instituições sejam flexíveis nas respostas às necessidades.
Qualidade
Coerência
Modelo de portfólio académico (adaptado de KOTLER, 1994: p.160)
A Boston Consulting Group (BCG) desenvolveu uma matriz que pode ser
adaptada a instituições educacionais, fixando-se, no caso, dos cursos profissionais
os seguintes parâmetros: 1) uma taxa de crescimento da empregabilidade na área de
formação e 2) nível de empregabilidade dos alunos da escola nessa área de empregabilidade.
Assim, poderemos definir quatro quadrantes:
•Estrelas – Cursos em áreas de empregabilidade elevada em que a
escola tem excelentes níveis de colocação de formandos; cursos que deverão
manter-se;
•Vacas leiteiras - Cursos em áreas de empregabilidade elevada,
mas em que os formandos da escola têm pouca recetividade nas empresas;
melhorar a qualidade da formação desses cursos;
•Pontos de interrogação – Cursos em que a taxa de empregabilidade a
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
médio prazo é baixa, mas que a escola ainda tem um nível de empregabilidade
elevado; avaliar a médio prazo a sua substituição ou adaptabilidade às novas
necessidades empresariais;
•Coelhos – Cursos que não têm qualquer aceitação no mercado a
médio prazo e o nível de empregabilidade dos alunos já e baixo; cursos a
extinguir.
Nível de emprebabilidade
Taxa de crescimento da
Matriz BCG de análise do portfólio académico (adaptado de NEWBOULD,
1980: p. 39-45)
Após a análise da carteira formativa, a escola deve identificar oportunidades
de novas áreas de formação. Uma leitura atenta de fontes externas, que passam pela
análise de relatórios governamentais sobre prospetiva formativa e a auscultação dos
stakeholders da área da empregabilidade podem ajudar a um planeamento da oferta
formativa.
A matriz de oportunidades cursos/áreas de formação pode ser um instrumento
útil na identificação de ofertas formativas.
Especialização formativa – Aqui a escola opta na manutenção dos cursos, ten75
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
do em conta que ainda não existe saturação do mercado de empregabilidade e que os
cursos oferecidos garantem um valor percebido pelos empregadores e alunos;
Inovação curricular – A escola possui condições logísticas numa determinada
área de formação, apostando na inovação com novos cursos nessa área; é o caso de
escolas de especialização artística ou agrícola;
Desenvolvimento formativo – A escola aproveita os recursos e adapta os cursos existentes a novas áreas de formação; caso de cursos da área de informática
alargado a áreas de formação novas, como a artística ou laboratorial;
Inovação total – A escola decide «romper» com a oferta formativa e cria novos cursos em novas áreas de formação; esta opção implica novos investimentos em
recursos educativos.
Área de Formação
Cursos
Matriz de oportunidades cursos/áreas de formação (matriz do autor)
No contexto do ensino profissional e dado a oportunidade de subsidiarização
dos custos de transporte, os alunos não se limitam a uma avaliação da oferta formativa local, estendendo as suas alternativas a um mercado geográfico mais abrangente.
A política da livre escolha das famílias/alunos irá obrigar as instituições a uma análise mais rigorosa da concorrência para que haja um maior encorajamento de cursos
mais atraentes e qualidade percetível mais visível. A reputação das escolas será no
futuro um fator vital na escolha das famílias e na sua sobrevivência. Assim, é imperioso que a gestão das escolas se oriente por critérios sustentáveis assentes em vantagens competitivas diferenciadoras da oferta de outros operadores de formação.
76
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Finalmente, a instituição terá que formar no mercado um determinado posicionamento, uma imagem facilmente detetável pelos seus stakeholders. «A melhor
escola do Oeste na formação de técnicos de eletricidade» ou o conhecimento da
instituição como uma das que coloca mais alunos no ensino superior, são dois exemplos de posicionamento.
O desenvolvimento de uma estratégia de posicionamento envolve quatro etapas (KOTLER: 1994: p. 172)
A avaliação da posição atual é um processo de autodiagnóstico da instituição,
baseado nos relatórios de avaliação interna e externa, sinalizando os seus pontos
fortes e fracos e quais as suas vantagens competitivas relativamente à concorrência
mais pertinente.
A escolha da posição desejada é uma decisão de política de gestão escolar,
fundamentada na análise das suas forças e fraquezas. A definição da missão e visão
da escola, através dos projetos educativos, são um forte contributo para a construção
do desejado posicionamento. Este posicionamento deverá ser comunicado, percebido e valorizado por todos os agentes que, de qualquer forma, tenham interesses na
instituição.
Finalmente, a instituição deverá desenvolver uma estratégia que lhe permitirá
alcançar a posição desejada, assente num posicionamento que mostre as suas vantagens competitivas em relação às instituições concorrentes.
77
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Bibliografia:
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FREIRE, Estratégia, VERBO, 1997
KOTLER, Marketing estratégico para instituições educacionais, Atlas,
1994
LAMBIN, Marketing estratégico, McGRAW HILL, 2000
MOWEN, Consumer behavior, PRENTICE, 1995
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
PERTURBAÇÃO DE HIPERATIVIDADE
COM DÉFICE DE ATENÇÃO
Alexandra Ribeiro38
A hiperatividade é uma desordem comportamental em que a criança não consegue controlar o seu comportamento. A esta problemática está, em grande parte dos
casos, associado o défice de atenção.
Segundo a Associação Portuguesa de Pessoas com Perturbação de Hiperatividade, esta designa-se por:
“Uma perturbação de desenvolvimento com carácter crónico, com base genética
e neurológica. Esta perturbação interfere com a capacidade do indivíduo em regular
e inibir o nível de actividade (hiperactividade), inibir comportamentos (impulsividade) e prestar atenção às tarefas. Estas alterações do comportamento são inapropriadas para o nível de desenvolvimento geral do indivíduo. As manifestações
surgem em vários contextos (casa, escola, trabalho, actividades dos tempos livres) e
interferem com o seu funcionamento adequado. As crianças experimentam as consequências negativas desses comportamentos em casa, nas relações com os colegas,
no rendimento escolar e têm maior propensão para acidentes e comportamentos de
risco. Se não houver tratamento apropriado, muitos destes problemas mantêm-se até
à vida adulta podendo levar a uma maior frequência de conflitos conjugais, familiares e profissionais”.
Jones (2004) refere que “a verdadeira hiperatividade é um padrão de comportamento agitado, desatento e impulsivo, no qual a criança não consegue ficar parada,
nem prestar atenção por mais do que um breve período de tempo, e não se concentra
38
Mestranda. Professora da Educação Especial da Escola Secundária de Peniche.
79
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
em jogos, brinquedos ou atividades, bem como em outras crianças da mesma idade. As crianças hiperativas muitas vezes não conseguem um bom desempenho na
escola”.
As crianças com PHDA normalmente apresentam uma grande agitação motora,
baixa auto-estima, teimosia, humor instável, baixa tolerância à frustração, tendência
para o isolamento e desatenção. Estes comportamentos fazem com que a criança/
jovem se destaque, pela negativa dentro da sala de aula. Todas as características
desta síndrome contribuem para a frustração, o isolamento bem como o descontrolo
emocional que levam ao insucesso escolar e à incompreensão familiar e social.
Parker (2006) menciona que a desordem por défice de atenção “caracteriza-se
pelo inadequado desenvolvimento das capacidades de atenção e, em alguns casos,
por impulsividade e/ ou hiperactividade”.
Existem diferentes tipos de desordem visto algumas pessoas serem muito hiperativas e impulsivas, enquanto que outros indivíduos se caraterizam essencialmente
pela desatenção. Segundo Parker (2006) a DMS-IV divide esta desordem em três
tipos diferentes:
- “Desordem por défice de atenção/ hiperatividade, tipo predominantemente caraterizado pela desatenção;
- Desordem por défice de atenção/ hiperatividade, tipo predominantemente caraterizado pela hiperatividade – impulsividade;
- Desordem por défice de atenção/ hiperatividade, tipo misto.”
Défice de Atenção
Este sintoma implica grandes problemas em sala de aula visto a falta de atenção
ser responsável por grande parte das dificuldades de aprendizagem. Os alunos com
esta problemática não conseguem estar concentrados em determinadas tarefas por
muito tempo e, mesmo que estejam presentes fisicamente na sala, o seu pensamento
está noutro lugar e não concentrado na atividade a realizar.
80
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
A falta de atenção tanto está presente no trabalho como em tarefas lúdicas, como
por exemplo nas brincadeiras entre crianças onde andam sempre a mudar de brincadeira, de brinquedo ou de atividade. Estas crianças, quando têm de realizar tarefas
mais aborrecidas ou menos interessantes para elas, agravam este sintoma pois não
se conseguem concentrar.
O défice de atenção carateriza-se por diversos sintomas:
- Não prestar atenção aos pormenores ou cometer erros por descuido nas
tarefas escolares, no trabalho ou noutras atividades lúdicas;
- Ter dificuldade em manter a atenção em tarefas ou atividades;
- Parecer não ouvir o que lhe dizem diretamente;
- Não seguir as instruções e não terminar os trabalhos escolares ou outras
tarefas;
- Ter dificuldade em organizar-se;
- Evitar as tarefas que requerem esforço mental persistente;
- Perder objetos necessários a tarefas ou atividades que terá de realizar;
- Distrair-se facilmente com estímulos irrelevantes;
nas.
- Esquecer-se com frequência de atividades do dia-a-dia ou de algumas roti-
Hiperatividade
“Normalmente as crianças com Perturbações de Hiperactividade com Défice de
Atenção têm dificuldade em ficar sentadas e parecem estar sempre a mexer-se”.
(Sosin, David & Myra, 2006 citado por Barros, 2010).
Safer e Allen, 1979, indicados por Bautista (1997) consideram a hiperatividade
como uma norma de atividade excessiva em situações que requerem inibição motora
81
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
e que é persistente ou contínua ano após ano.
De acordo com os mesmos autores as principais caraterísticas associadas à hiperatividade são: falta de atenção, dificuldades de aprendizagem, problemas de comportamento e falta de maturidade. Além destas, existem outras com menos importância: impulsividade, ansiedade e dificuldade de relacionamento com os colegas.
Velasco Fernández (1980), citado por Bautista esclarece que quando se fala nesta
perturbação, não se trata apenas de hiperatividade motora, pode ser também verbal
e podem ainda aparecer perturbações do sono e tendência para a destruição e agressividade. Este autor assinala também caraterísticas como: repetição do erro, incompreensão de ordens bem como perante o castigo.
A hiperatividade acaba por criar dificuldades de aprendizagem no meio escolar e
falta de adaptação do indivíduo ao meio em que se insere.
Como refere Parker, estas crianças podem apresentar caraterísticas como:
tado;
- Movimentar excessivamente as mãos e os pés e mover-se quando está sen-
- Levantar-se na sala de aula ou noutras situações em que se espera que esteja sentado;
- Correr de um lado para o outro de forma excessiva em situações onde essas
atitudes são inadequadas (nos adolescentes ou em adultos estes comportamentos
podem limitar-se a sentimentos de impaciência);
- Ter dificuldades para se dedicar tranquilamente a um jogo ou a uma atividade lúdica;
- Agir como se estivesse sempre “de saída”;
- Falar em excesso.
Impulsividade
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Lopes (2005) refere que a desinibição comportamental é uma incapacidade do
indivíduo se controlar pessoalmente em resposta às exigências do momento em que
se desenrola a ação. O fracasso na inibição de comportamentos tem sido descrito
com a denominação de impulsividade.
Investigadores do desenvolvimento infantil defendem que a impulsividade é uma
das caraterísticas psicológicas mais relevantes do período pré-escolar, mudando progressivamente para um controlo dos impulsos e capacidades de reflexão em diversas
situações.
Cruz (1987) citado por Lopes define impulsividade como um “estilo cognitivo”,
isto é, o processamento da informação e da realização cognitiva determina como o
indivíduo apreende, armazena e utiliza a informação no ambiente onde está inserido,
independentemente do conteúdo específico dessa mesma informação.
Para estas crianças torna-se muito difícil controlar os impulsos, parecendo que
não conseguem pensar nas suas ações antes de as realizarem.
Os sintomas que uma criança impulsiva apresenta são (Parker, 2006):
- Precipitar as respostas antes que as perguntas tenham acabado;
- Ter dificuldade em esperar pela sua vez;
- Interromper os outros ou incomodá-los.
O aluno com défice de atenção que frequenta o 3º ciclo e o ensino secundário
Estes sintomas não passam quando a criança entra na adolescência e os alunos
continuam a lutar contra estes comportamentos tanto no 3º ciclo como no ensino
secundário.
Estes comportamentos vão-se alterando ao longo dos anos mas os alunos continuam a ter dificuldades de atenção, organização e autocontrolo.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Parker (2006) salienta que “os adolescentes do DDA (défice de atenção) realizam
apressadamente o seu trabalho, dando muito pouca importância à boa apresentação,
à precisão ou à conclusão de trabalhos na escola. O aborrecimento instala-se rapidamente e as tarefas, que eram mal toleradas nos anos de escolaridade iniciais, tornamse dolorosamente aborrecidas e irrelevantes nas mentes dos adolescentes com DDA,
que se sentem seduzidos por coisas mais interessantes para fazerem, como namorar,
conduzir, etc.”
Tanto o 3º ciclo como o ensino secundário são muito exigentes para os alunos e
requerem mais estudo, esforço, concentração e persistência. Estes alunos têm tendência a sobrepor o “estado de espírito” da altura aos trabalhos escolares.
Segundo o mesmo autor “os adolescentes aos quais foi diagnosticada DDA quando eram mais jovens rejeitam o diagnóstico na altura em que entram no 3º ciclo e no
ensino secundário. De forma idêntica ao que acontece a adolescentes com diabetes,
com asma, ou com outras condições de saúde crónicas, pode desenvolver-se uma
sensação de invulnerabilidade e negam estar doentes ou terem um problema. Alguns
tornam-se mais resistentes à toma de medicamentos para tratamento das suas condições e rejeitam a ajuda dos pais ou dos professores.”
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Bibliografia:
Barros, T. (2010). A influência do jogo educativo/didáctico em alunos com PHDA
e dificuldades de aprendizagem associadas. Odivelas.
Bautista, R. (coordenação) (1997). Necessidades Educativas Especiais. Colecção
Saber Mais, Lisboa, Dinalivro.
Jones, M. (2004). Hiperatividade – Como ajudar seu filho. São Paulo, Plexus
Editora.
Kirk, S. & Gallagher, J. (2000). A Educação da Criança Excepcional. 3ª Edição,
2º tiragem, livraria Martins Fontes, São Paulo.
Lopes, J. (2005). Dificuldades de aprendizagem da leitura e da escrita – Perspectivas de avaliação e intervenção. Edições Asa.
Parker, H. (2006). Desordem por Défice de Atenção e Hiperactividade – Um guia
para pais, educadores e professores. Colecção Necessidades Educativas Especiais,
Porto, Porto Editora.
Sites consultados:
http://blog.comunidades.net/dah-psicomotricidade/index
php?op=arquivo&idtopico=3152143
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS:
LITERATURA E IDENTIDADE em
REVOLUÇÃO NECESSÁRIA, DE JOSÉ GOMES FERREIRA
João Luís Moreira39
39
Mestrando. Professor do Departamento de Línguas da Escola Secundária de Peniche.
87
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
O repto lançado, aquando do anúncio da temática que serviria de coluna vertebral
ao número 3 da revista Paideia – abordar a Identidade, fez surgir várias hipóteses de
trabalho, algumas das quais tiveram de ser postas de lado por se afigurarem demasiado ambiciosas e exigirem outro tipo de abordagem. Ainda assim, este artigo precisa de ser devidamente enquadrado, dado que, a fazermo-nos valer do título, poderá
o leitor ser levado a assumir que encontrará, nas páginas que se seguem, uma visão
de conjunto acerca da forma como a literatura portuguesa de meados da década de
70 do século XX viveu e disse a revolução. Guardemos esse trabalho – que terá de
ser sempre parcelar – para depois. Vêm aí os 40 anos de Abril e justificar-se-á, nessa
altura, ver de que modo “A poesia saiu à Rua” ou de que forma o romance tratou o
período pós-revolucionário.
Por agora, trabalhemos com um género que tem sofrido, ao longo dos séculos, um tratamento diferente. Associada à historiografia, na Idade Média, a crónica,
juntamente com relações, cartas e relatos de viagens, foi perdendo sentido com o
desenvolvimento da historiografia contemporânea.40 Já no século XIX, com o desenvolvimento da imprensa periódica, a crónica conheceu um período de florescimento,
mas, definitivamente, afastou-se do simples relato histórico, passando a uma forma
ambígua de escrita, “oscilando entre o registo literário e jornalístico”41. Apesar disto, se foram os periódicos que, de alguma forma, a elevaram, foram estes também
que a perderam, pois mais direccionados, hoje, para o imediatismo e para o registo
puramente informativo.
No caso do presente artigo, aquilo que nos interessa explorar é algo para que
Maria Helena Santana chama a atenção no verbete que temos vindo a citar e que faz
Maria Helena Santana, “Crónica – I”, in Biblos, Enciplopédia das Literaturas de Língua Portuguesa, Verbo, Lisboa, 1995, p. 1386.
41
Idem, p. 1387.
40
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
parte do 1º volume da enciclopédia Biblos. Diz a autora, referindo-se à crónica:
Ora, é justamente esta versatilidade enunciativa, temática e estilística que
constitui motivo de atracção, permitindo ao escritor a livre expressão reflexiva, analítica, argumentativa (ou ainda, se bem que cada vez menos, didáctica),
sem os constrangimentos dos géneros ficcionais. Permite, por outro lado, o
comentário pessoalizado em relação ao real quotidiano, ao evento político, ao
faitdivers, e por isso datada, vinculada a um espaço-tempo determinados, e
sujeita à efemeridade.42
É esta a perspectiva que nos interessa explorar em Revolução Necessária, de
José Gomes Ferreira. Não se tratará de rastrear a mentira ou a verdade, o exagero
ou a justa medida, trata-se, sim, de perceber como um autor que atravessou várias
e diferentes gerações, dono de uma sensibilidade artística que deixou uma pegada
indelével ao longo da produção literária portuguesa do século XX, regista aquilo
que, à vista desarmada, e de forma pessoal, vai observando e sentindo em relação
a um período que exigiu dos portugueses uma revisão da sua identidade e postura
colectivas.
A revista Colóquio Letras há muito conquistou, entre nós, o lugar de destaque
que os especialistas da área da literatura lhe reconhecem. O número 78, que saiu em
Março de 1984, é um daqueles que poderemos considerar chave para o assunto que
aqui abordamos, dado que é o número em que se faz o balanço da produção literária
da década que se seguiu ao 25 de Abril de 1974. O artigo de abertura é da autoria
de Eduardo Lourenço e intitula-se, oportunamente, “Literatura e Revolução” e, se
contém aspectos de que poderemos partir para trabalhar a forma como a literatura
do período pós-25 de Abril abordou a revolução e a forma como a problemática da
identidade pôde ser equacionada de novo.
Eduardo Lourenço observa o seguinte:
Fracassadas ou vitoriosas, as revoluções são grandes consumidoras de imaginário activo. Não é o que mobiliza o eu profundo ou por ele é mobilizado.
Surge assim uma espécie de contradição entre a vertigem secreta do imaginário e o fulgor da sua urgência histórica. O nosso momento revolucionário teve,
contudo, uma singularidade: a de ter convocado, ao mesmo tempo, as duas
42
Idem, p. 1388.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
formas do imaginário. Mais que uma revolução vivida, a nossa foi logo, desde
o início, revolução sonhada.43
A primeira parte da nota do autor de Labirinto da Saudade é observável através
do suporte confortável que a História nos lega. A “espécie de contradição” a que,
em cima, se faz referência aconteceu com a Revolução Francesa, aconteceu com a
nossa Implantação da República e voltou a ser válida com a chamada Revolução
dos Cravos. Mas há outros dois aspectos a que poderemos fazer alusão e de que nos
poderemos servir como ponto de partida. Diz ainda Eduardo Lourenço que “durante
um ano – pois mais não durou o momento revolucionário -, o País viveu em estado
onírico”44, o que poderá explicar que “a Revolução, em sentido estrito, estava mais
destinada a ser o lugar vazio de uma escrita digna desse nome que o seu manancial
de sonho”45.
Concordamos com Eduardo Lourenço no que diz respeito a algum vazio, mas
esse, quanto a nós, parece ter sido mais editorial do que produtivo. Como justificar
então que obras como Revolução Necessária, de José Gomes Ferreira ou Cravo, de
Maria velho da Costa, publicadas, respectivamente, em 1975 e 1976, tenham surgido nestas datas? Não se publicou, de facto, nada de relevante no ano que se seguiu
à revolução de Abril, mas os autores não estiveram, por assim, dizer, calados. Facto
que se confirmará se se elaborar uma listagem da ficção publicada entre 1974 e 1984
e nos surpreendermos com a abundância e relevância dessa produção. Compreendese, no entanto, o argumento de Eduardo Lourenço; segundo ele, não houve, nos anos
imediatamente consecutivos ao 25 de Abril, uma chamada literatura da revolução,
ou pelo menos o manancial esperado. Não foi, sem dúvida, esta convulsão política o
centro temático, mas sim aquilo que, de novo, ela trouxe. Aliás, Eduardo Lourenço
dá conta de uma dupla perspectiva que é facilmente observável quando tomamos
contacto com os romances publicados entre 1974 e 1984: por um lado, temos a revisitação dos tempos anteriores ao 25 de Abril de 1974, agora sem constrangimentos;
por outro, assistimos à tentativa de construção do sonho que Abril veio permitir, mas
que, em alguma medida, se sentia pertencer apenas à esfera do onírico. Disso, aliás,
já dá conta a obra que aqui tomamos como referência.
Eduardo Lourenço, “Literatura e Revolução”, Colóquio Letras, nº 78, Março de 1984, p. 7.
Op. Cit., p. 7.
45
Idem, p. 7.
43
44
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Revolução Necessária abre com uma dedicatória do autor ao realizador, dramaturgo e jornalista Eduardo Chianca de Garcia, nascido em Lisboa em 1898, portanto, dois anos mais velho que José Gomes Ferreira, que a justifica assim:
Porque este livro fala em parte da nossa Lisboa que, de súbito, reapareceu tal
como ambos a conhecemos, heróica e resplandecente, nos dias das multidões da
Primeira República. Agora, porventura, mas reflectidas, determinadas e profundas porque se trata de construir com o nosso sangue e imaginação de coragem
diária, uma pátria de civilizador, socialista, com acento de originalidade portuguesa – a única que nos pode tornar dignos de pertencer à Europa.46
Como em relação a qualquer paratexto que sirva de subsídio a uma obra, esta não
pode deixar de ser observada mais de perto. Em primeiro lugar, poderemos aludir
ao percurso biográfico do autor, que, tendo nascido em 1900 e tendo passado por
três das grandes convulsões políticas – implantação da República, instauração do
Estado Novo e 25 de Abril – nos oferece uma visão de conjunto do século XX político e, sobretudo, social que se torna enriquecedora pela forma atenta como, depois,
esses acontecimentos entram em nossa casa através dos livros (aconselha-se, por
exemplo, a leitura de O Mundo dos Outros, para se perceber a afirmação anterior).
Além disto, o autor de As Aventuras de João Sem Medo, fornece-nos outras pistas;
“construção” de uma “pátria de civilização”, “socialista”, elementos que nos dão a
ideia de um projecto ainda a ser desenhado, ou que vem na linha daquilo que uma
“revolução sonhada” pede de um povo. Dois outros pormenores importantes são: a
matéria que serve de cenário a esta construção, ou seja, o “acento de originalidade
portuguesa”, reclamada em relação a muitos outros aspectos e a viragem em direcção à Europa. Em termos identitários, a originalidade do projecto cultural português
tem sido sobejamente reclamada: descobrimentos e expansão, saudosismo, modernismo português, só para avançar alguns exemplos, no sentido de justificar a forma
como Portugal, enquanto nação, tem lidado com algumas fases da sua História ou
com algumas das suas manifestações artísticas e culturais. Além disto, há ainda a
mudança de direcção dos horizontes do país, tendo este, após a Revolução de Abril e
a consequente descolonização, alterado o seu centro de gravidade do Atlântico para
a Europa, facto que até hoje se mantém, vermos por quanto tempo e à custa de quê,
pois este capítulo ainda não está fechado…
46
José Gomes Ferreira, Revolução Necessária, Diabril, Lisboa, 1975, 1.ª edição, p. 8.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Revolução Necessária, não sendo um testemunho histórico e seguindo a linha de raciocínio definida no início - a oscilação entre o jornalismo e a literatura - afigura-se-nos como um sincero e comovido testemunho dos instantes que se
seguiram à revolução. Basta que atentemos, desde logo, no título da primeira crónica, para ficarmos conscientes do carácter pessoal destes textos. “O MEU 25 DE
ABRIL”, além do poder do determinante possessivo, que transforma esta revolução
numa coisa íntima e estas crónicas em testemunhos sólidos, assentes na força retórica da primeira pessoa verbal e do acto de “ver”:
Sinto os olhos a desfazerem-se em lágrimas. Ainda assisti, assisti à morte
deste maldito meio século de opressão imbecil. Ao mesmo tempo, nunca vivi
horas mais aborrecidas de espera, de frigorífico, ao som de baladas medíocres,
semlances dramáticos. E não serão assim sempre as verdadeiras revoluções? –
interrogo-me. Em silêncio. Sem teatro por fora. Em segredo. Com pantufas.47
O juízo de valor dispensa comentários. Além da comoção expressa, temos o
exemplo daquilo para que Eduardo Lourenço chamava a atenção na citação acima
transcrita: o tal paradoxo entre a urgência histórica do acto revolucionário e a forma
como ele decorre. Parece haver aqui um desajuste entre aquilo que, semanticamente,
significa “revolução” e a quietude que pauta a emergência dessa mesma revolução.
Um outro aspecto que faz desta colectânea uma obra interessante prende-se
com os dois tons que marcam os vários andamentos. Tudo oscila entre dois tons: o
eufórico e o disfórico, sem que um anule, necessariamente o outro. Antes pelo contrário:
Que bom!, cantarmos em coro “o povo unido jamais será vencido” e darmos as mãos e abraçarmos os amigos e beijarmos as camaradas e escrevermos
nas paredes “Abaixo o pesadelo!” e rir, rir, rir, para meter inveja ao futuro e
irritar os tiranos.48
Mas:
A vida só principia a morder quando descobrimos que, afinal, o Sonho
chamado Revolução apenas torna mais visível a realidade e nos mostra como
47
48
Op. Cit., pp. 18 e 19.
Idem, p. 20.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
o mundo é.49
E, enfim, aquilo que, no início nos parecia a sublimação de algo ansiado e finalmente conseguido, vem encontrar como pano de fundo, um cenário que se abre aos
olhos dos portugueses e que vem desmascarar anos e anos de propaganda salazarista:
Ena!, senhores, cidadãos, companheiros, amigos e camaradas. Tantos bairros de lata, tantas aldeias sem esgotos em que a porcaria corre nos rios, onde,
às vezes em vão, as mulheres procuram charcos exíguos menos sujos, para
fingir que lavam a roupa e assim proporcionarem aos turistas o prazer de servir
de modelos para fotografias pitorescas.50
E o desânimo surge:
Nesta altura, muitos senhores, cidadãos, companheiros, amigos e camaradas principiam a desanimar. (…) Então foi para isto que se fez a Revolução?
Para nos abrirem de alto a baixo a pátria e nos revelarem sem véus mentirosos,
as terríveis entranhas da realidade portuguesa? Afinal o pitoresco não passa da
máscara do atraso, com casas de pedra negra e escolas (…).51
Certeiro como um dardo, o “poeta militante” põe tudo a nu, servindo-se da ironia
mordaz que o caracteriza e recorrendo, assim, a uma estratégia discursiva que tem
tanto de eficaz como de estético. Ironizando, ainda, em relação aos pessimistas, os
que principiavam a desanimar:
Mas nós pensávamos que as Revoluções, como se lê nas linhas breves dos
resumos de História, tudo transformavam magicamente com dois ou três cortejos, discursos e alguns tiros. Não, assim, não nos agrada.
E os mais débeis principiam a choramingar: “Os homens não tiraram
cá para fora os anjos que traziam escondidos nos corações. Assim não brincamos! Assim não queremos! Preferimos que nos iludam!52
Idem, p. 20.
Op. Cit., p. 21.
51
Idem, p. 21.
52
Idem, p. 21.
49
50
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Apesar do sentimento de urgência que se vinha fazendo sentir em alterar o estado
de coisas em relação à política portuguesa e da ansiedade com que algumas camadas da sociedade a desejavam, o que é um facto é que, depois da sua ocorrência, os
mais apressados ou menos esclarecidos, não viram mudar nem o país nem o povo,
pelo menos não tão rapidamente quanto seria desejável. E este conjunto de crónicas
transforma-se, assim, em algo pedagógico, função igualmente importante quando
estes textos provêm da pena de um escritor que atravessara, biograficamente falando, sete décadas do século XX. As lições são óbvias: a eclosão de uma revolução
não garante, como por artes mágicas, as mudanças que ela preconiza; além disso,
havia um país real que precisava de ser conhecido para que se soubesse o que fazer
com ele, acontecendo o mesmo em relação à recém-conquistada liberdade e, por
fim, havia que saber o que era uma revolução e o que ela implicava:
Defino: a revolução é a coragem de ver bem de frente as coisas feias que
nos envergonham e colar-lhes asas de anjos terrestres. O contrário é a covardia
dos que não levarão muito tempo a murmurinhar como outrora os desistentes
da 1.ª República: “Não foi este o 25 de Abril que sonhámos!”
Mas sabem lá eles o que é o sonho.53
A forma como o autor remata a observação traz para aqui o factor “sonho” que,
de alguma forma, se foi o motor da revolução, foi, em certa medida, o que a perdeu.
Aliás, como lembra Eduardo Lourenço no artigo já citado: “Surgida como um milagre, como um milagre se prolongou, até passar, quase sem transição, à palinódia
interminável do seu êxtase, deplorável para uns, exaltante e exaltado para outros”54.
Ainda assim, no período que se lhe seguiu, a revolução incitava também à revisitação de velhos fantasmas. Na crónica intitulada “Entre dois medos”, quanto a nós,
um dos melhores momentos para equacionarmos a questão do consciente colectivo,
José Gomes Ferreira alude a algo que coloca o momento revolucionário como momento-chave entre a visão de um passado analisado com ironia e sarcasmo, temperada por um presente ainda a ocorrer e um futuro – sonhado – a construir. “O Medo
governou o nosso país durante meio século. O regime de opressão, banido com dois
safanões em 25 de Abril, deve-lhe o gozo de ter durado tanto tempo injusto”55.
Op. Cit., pp. 21-22.
Op. Cit., p. 7.
55
Op. Cit, p. 27.
53
54
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Voltando à tónica dominante nestes primeiros textos que constituem a colectânea, o autor, bem ao seu estilo, continua a denunciar o modo como, durante
décadas, o Medo, a Censura e a Propaganda actuaram de forma perniciosa, de modo
a que conseguissem vendar os olhos aos portugueses, pelo menos aos que nunca
quiseram ver.
Entre os dois medos, o do passado e o do futuro, só havia uma solução:
aceitar a dádiva providencial do presente com sabor a anjos de remijes cortadas, para não fugirem da Terra. Graças à Censura, tão impostora de vida doce,
ninguém se suicidava (só havia mortes súbitas), os crimes rareavam, tudo que
prejudicava o apetite dos ricos desaparecia do noticiário, quem ousava fazer
greve?, o mundo era uma delícia de violinos, levemente desafinados, mas violinos.56
E esta desafinação era tal que a limpeza do país era subtilmente encomendada a
quem de direito:
Escondia-se tudo o que era feio. Quando uma Rainha veio um dia a Lisboa,
prenderam-se os mendigos e mandaram-nos para Mitra, como em certas casas
empurram o lixo à pressa para debaixo dos móveis, para as visitas não perceberem o chavascal em que os donos vivem normalmente. Claro que existiam
alguns desordeiros que lutavam contra esse mundo miserável com coragem e
teimosia só digna de cérebros broncos. E os intelectuais assinavam papéis de
protesto.
Mas o medo acabava por meter tudo na Ordem, na indispensável
Ordem do musgo e do bafio (…).57
E assim as coisas foram acontecendo desde 28 de Maio de 1926 e surgimos
assim, do ponto de vista de José Gomes Ferreira, como um povo, além de pacífico,
ou de “brandos costumes”, como gostamos de nos referir a nós próprios, por vezes
com alguma ironia, paciente. Esta suposta virtude – à qual o autor se refere como
tendo sido a sua “única raiva passiva de combate nesse período de pesadelo”58- se
serviu para termos, como povo, conseguido lidar com a Ditadura durante quase
Op. Cit., p, 28.
Op. Cit., p. 28.
58
Idem, p. 52.
56
57
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meio século, vai ser também necessária “como arma de defesa durante a construção
do Sonho comum”59. Mas voltamos depois a encontrar a tónica dominante de algumas das crónicas reunidas em Revolução Necessária:
O facto da paciência me parecer hoje necessária e a impaciência, despropositada, não significa que exageremos esses sentimentos até ao ponto de servirem de álibis à inoperância e justificarem a demora pachorrenta da solução de
alguns problemas que, em coro intimativo, todos os portugueses consideram
prioritários do novo Portugal Europeu, tais como a construção de casas decentes, jardins de infância, escolas, postos médicos, esgotos – tudo o que os
senhores sabem melhor do que eu, srs. ministros, srs. Arquitectos, srs. técnicos
de coisa nenhuma!60
Enfim, pacientes, passivos, sonhadores, inoperantes, incapazes de odiar, poderão ser alguns dos atributos aplicáveis ao ser pátrio, que poderemos depreender da
leitura das palavras de José Gomes Ferreira. Mas a grande questão mantém-se e o
autor acaba por não dar resposta. Estas crónicas dão, de facto, conta de uma nova
ordem, de uma nova realidade, mas não de um Português novo. Aliás, José Gil – e
colocando agora o foco na questão da identidade - retoma mesmo uma famosa afirmação de Eduardo Lourenço: “Não foi Eduardo Lourenço que afirmou que, longe de
sofrermos de um défice, sofremos sim de um excesso de identidade?”61.
Não será aqui oportuno dar conta de onde nos vem este problema; a questão
seria profunda demais para resolver num breve artigo, mas o facto é que, segundo
o mesmo, o nosso mal, como povo e como nação é a identidade62 e explica por que
razão:
Fizemos da identidade o território da subjectividade, território da subjectividade, territorializámo-nos na identidade. E com ela, hoje, esforçamo-nos
por resistir ao «fora» que aí vem, do exterior e do interior, e que ameaça destruir as nossas velhas subjectividades mal reconquistadas.63
Idem, p. 53.
Idem, p. 53.
61
José Gil, Em Busca da Identidade – o desnorte, Relógio d’Água, Lisboa, 2009, p. 20.
62
Idem, p. 20.
63
Idem, p.20.
59
60
96
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
E vai mesmo mais longe ao afirmar:
O maior obstáculo, a raiz da paralisia do desassossego que nos impede de
avançar, é esse território absorvente que nos habita como uma obsessão inconsciente, a nossa identidade (de egos portugueses, num «país» que se chama
cada vez menos Portugal).64
Terá sido, talvez, este desassossego que conduziu à eclosão do 25 de Abril de
1974, mas ele ter-se-á, depois, diluído. José Gomes Ferreira, ao insistir na questão
de o País ter muitos problemas a resolver e de chamar a atenção a quem de direito
para a necessidade de os resolver com alguma urgência, mas de forma consciente,
estava, de algum modo, já, a adivinhar algo que se viria a tornar uma realidade mais
tarde e de que José Gil dá conta de forma bastante perspicaz:
Repare-se: o que, no período imediatamente após o 25 de Abril, surgiu
como ameaça de dessubjectivação, de dissolução e estilhaçamento do «eu»
- através da participação intensa de toda a gente no movimento violento de
transformação do espaço público -, com a emergência de múltiplas forças heterogéneas e impessoais brotando de cada indivíduo e grupo – essa ameaça de
morte do «eu» não foi levada ao seu fim, não se concretizou, nenhum «homem
novo» se formou e apareceu como resultado como resultado desse processo.65
José Gomes Ferreira ainda recua até ao tempo heróico das nossas descobertas, um dos grandes bastiões de construção da nossa identidade, servindo-se desse
lastro para avançar uma solução: desafiar o mundo com a arma da inocência, da
liberdade e da fraternidade:
Desde que Portugal se engrandeceu, depois de semear novos Brasis na
África, para regressar ao seu destino de parecer enganosamente mais pequeno
no seu quadrilátero da Europa, resta-nos desafiar o mundo com o tamanho
puro da nossa orgulhosa realidade de pequenez aparente. Empunhando uma
arma imbatível. A única que queremos manejar, na alegria de construir um
destino sem raiva nem sangue, exactamente com aquela inocência dura (agora
vigilante) dos presos de Caxias, que, quando libertos pelas Forças Armadas,
não traziam bandeiras de ódio nos olhos nem vingança nos corações de com64
65
Idem, p. 20-21.
Op. Cit., p. 12.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
batentes tenazes.66
Seguindo a leitura, verificamos que a cautela do autor em relação a esta “inocência dura” recai na construção de um ser colectivo exigente consigo e com os outros,
especialmente com aqueles que tinham - e têm, por que não? -nas mãos os destinos
do país que na altura se abria perante os olhos de todos:
Mas esse problema pertence aos políticos e aos técnicos (e pertencer-lhes-á
inteiramente?) despidos de manias de grandeza parvas, incomportáveis numa
pátria que recomeça.67
E a agulha certeira do autor, depois de reclamar em alta voz, em bom estilo ferreiriano, “A VERGONHA AO PODER!”68, termina esta crónica, intitulada “Vamos
arregaçar as mangas”, título, aliás, deveras sugestivo no contexto já sugerido de
construção de um Portugal livre, europeu e socialista (do ponto de vista de 1975,
entenda-se), deixando um recado aos governantes e restantes decisores, assumindo
uma voz colectiva:
E, por favor, não venham agora esses senhores dar-nos lições. E, quando
escrevo dar-nos, incluo neste nos todos os portugueses dos mais variados credos e ideologias. Porque no actual momento a Verdade, embora distinta de
poço para poço, é apenas uma: a verdade do trabalho, a autêntica cor da liberdade – repito – do homem português neste Outubro viril de 1974.69
Situada, assim, no tempo e no espaço, a crónica adquire toda a sua faceta de texto
de intervenção. Quer revisitando os tempos da 1.ª República, os amigos mortos, Camões (o de carne e osso, não o que lhe diziam ter apenas escrito “a Bíblia da raça”70
ou centrando a sua atenção no “Dramático Quotidiano”71, o tom é o da denúncia e da
indignação. Mas que nunca se entenda, com isto, que o autor pretende fazer passar a
ideia de que a Revolução de Abril foi um erro político e social, antes pelo contrário.
O comprometimento do autor para com o país que agora lhe era mostrado continuava sem uma beliscadura; a diferença era que, em pleno período pós-revolucionário,
Op. Cit., p. 68.
Idem, p. 68.
68
Idem, p. 68.
69
Op. Cit., p. 69.
70
Idem., p. 138.
71
Idem, p. 228.
66
67
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
a denúncia não era punida com a prisão ou com a tortura. Além de que esta era a
melhor forma de o próprio intervir na construção do “paraíso” prometido pela revolução dos Cravos.
De facto, com esta colectânea de crónicas, tal como Maria Velho da Costa
com Cravo, livro publicado em 1976, e que, pela sua complexidade pede um trabalho à parte, José Gomes Ferreira cumpre algo a que Eduardo Lourenço, no seu
célebre Labirinto da Saudade faz referência, embora em relação a Garrett e ao modo
como, a partir dele a literatura portuguesa tem encontrado como motivação, ou seja,
“problematizar a relação do escritor, ou mais genericamente, de cada consciência
individual, com a realidade específica e autónoma que é a pátria”.72
Eduardo Lourenço está também certo quando aponta a escrita como ponto de
união entre si e a pátria73, daí que a literatura seja uma forma multímoda de a dizer,
não só de dizer a pátria, mas de dizer, também, essa união. Em relação a José Gomes
Ferreira e à sua Revolução Necessária, poderemos dizer, em tom de conclusão, que
a crónica não pretende fazer História, mas também nos parece óbvio que se poderá
fazer História com ela. O sonho que Abril permitiu está aqui expresso com todas as
suas letras e este livro parece ter sido escrito “Com as lágrimas do entusiasmo dos
primeiros dias…”74. Quanto a nós, resta-nos, no momento que atravessamos, continuar, como o autor, simbólica e persistentemente, a regar os cravos:
“É preciso que não sequem! É preciso que não sequem!”75.
Eduardo Lourenço, “Da Literatura como interpretação de Portugal”, in Labirinto da Saudade, Gradiva, Lisboa, 2012, p. 81 (Itálico do autor).
73
Idem, p. 81.
74
Op. Cit, p. 228.
75
Idem, p. 228.
72
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
BIBLIOGRAFIA
Costa, Maria Velho da, Cravo, Moraes Editores, Lisboa, 1976, 1ª Edição.
Ferreira, José Gomes, Revolução Necessária, Diabril, Lisboa, 1975.
Gil, José, Em busca da identidade – o desnorte, Relógio d’Água, Lisboa,
2009.
Lopes, Fernão, Chronica de El-Rei D. João I, Biblioteca de Clássicos Portugueses, Escriptorio, Lisboa, 1897-1898.
Lourenço, Eduardo, “Literatura e revolução”, Colóquio Letras, n.º 78, Março
de 1984.
Lourenço, Eduardo, “Da literatura como interpretação de Portugal”, O Labirinto da Saudade, Gradiva, Lisboa, 8.ª edição, 2012.
Santana, Maria Helena, “Crónica - I”, in Biblos – Enciclopédia das Literaturas de Língua Portuguesa, Vol. I, direcção de José Augusto Cardoso Bernardes... et
al., Verbo, Lisboa, 1995.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
A BIBLIOTECA DA ESCOLA INDUSTRIAL E COMERCIAL
DE PENICHE: HISTÓRIA, IDEOLOGIA E CULTURA76
Miguel Dias Santos77
1. A história da leitura e das bibliotecas públicas tem concitado, nos últimos
tempos, o interesse de diferentes campos da historiografia. Por um lado, ocupa-se
da evolução da leitura pública, procurando aferir o seu contributo para o progresso
da alfabetização da sociedade ao longo do século XX e para o conhecimento dos
seus hábitos de leitura (Melo, 2004); por outro, procura analisar o papel do livro e
das bibliotecas enquanto instrumento cultural e de inculcação ideológica (Ó, 1999;
Melo, 1997). A historiografia do século XX, em especial a historiografia do Estado
Novo e, mais recentemente, da primeira república, tem sido fértil em estudos sobre
a educação e a sua relação com a ideologia e a cultura (Pintassilgo, 2008). É um
campo analítico que pode sair enriquecido com o estudo das bibliotecas escolares,
a exemplo do que sucede com as instituições corporativas, como é caso das casas
do povo durante o Estado Novo (Torgal e Homem, 1982). O estudo da biblioteca
da Escola Industrial e Comercial de Peniche é mais um contributo para fixar o lugar
das bibliotecas escolares no contexto da história da política cultural e educativa e da
própria história do livro e da leitura.
Agradeço às assistentes operacionais da ESP, Marcelina Figueira e Raquel Mendes, a preciosa
colaboração na digitalização do espólio bibliográfico para formato Excel.
77
Professor da Escola Secundária de Peniche. Doutorado em História Contemporânea pela Universidade de Coimbra. Investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, da Universidade de Coimbra, e colaborador do Centro de Estudos do Desenvolvimento e Turismo, do Instituto
Superior da Maia.
76
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
2. Ao contrário do ensino liceal, que teve legislação própria, em 1926, a
definir os princípios organizativos da biblioteca liceal, o ensino técnico teve a sua
reforma em 1948, com a promulgação do decreto-lei nº 37029, de 25 de Agosto,
que estabelece o Estatuto do Ensino Profissional Industrial e Comercial. Este
normativo determinava a existência de atividades “circum-escolares” ou de “meios
educativos” alternativos às atividades de sala de aula e de oficina. Mas qual o lugar
das bibliotecas no contexto do ensino técnico? Que livros deviam preencher as
estantes de uma biblioteca especializada em formação técnica, como era a biblioteca
da escola industrial e comercial de Peniche?
O Estatuto consignava expressamente que “em cada escola deve organizarse uma biblioteca composta de obras que interessem ao aperfeiçoamento técnico
e pedagógico dos professores e mestres e à educação geral e profissional dos alunos” (artº 524 do decreto-lei nº 37029, de 25-08). O mesmo normativo definia as
regras que deviam presidir à organização das bibliotecas escolares, nomeadamente
a catalogação e aquisição de livros. Quanto à aquisição, o legislador, ávido de salvaguardar a natureza e a missão das instituições, e reconhecendo a importância do
livro na educação dos espíritos, determinava que a “aquisição de livros, revistas ou
outras publicações que não tratem de assuntos de carácter profissional depende de
autorização superior” (artº 526). Uma circular de 10-01-1951 (14/209) reforçou o
normativo anterior, determinando que a responsabilidade da biblioteca escolar fosse
atribuída a docentes dos 8º, 9º ou 10º grupos, isto é, a docentes de português, línguas
e história. Ficava expressamente vedada a responsabilidade das bibliotecas a pessoal
“menor”. Por outro lado, determinava-se que competia ao Conselho Escolar (presidido pelo diretor, incluía os docente e mestres em exercício) elaborar o regulamento
do serviço de consultas. Mais do que controlar a leitura, a direcção-geral do ensino
profissional preocupava-se também com a emergência de atender à “necessidade de
orientar os alunos, de maneira a incutir-lhes o hábito de leitura”.
Desconhecemos, por falta de estudos, a dinâmica introduzida então por este
normativo na criação/desenvolvimento de bibliotecas especializadas para o ensino
profissional. No I Congresso Nacional do Ensino Técnico Profissional, que decorreu
em Dezembro de 1958, no décimo aniversário do Estatuto do Ensino Profissional,
a questão das bibliotecas foi objecto de reflexão. Nas intervenções de Maria Teresa
de Moura Torres, os hábitos de leitura reforçavam o desenvolvimento cognitivo e a
qualidade das aprendizagens. Se para o aluno constituía um precioso instrumento de
102
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
construção do próprio conhecimento, numa lógica de auto-aprendizagem, António
Henriques, autor de manuais de história para o ensino profissional, entendia que a
biblioteca devia assumir-se como sala de estudo para os alunos e de complemento
técnico-pedagógico para professores e mestres (I Congresso, Sumário das Comunicações, 30-31).
Duas questões preocupavam os congressistas, como aliás os responsáveis
educativos: por um lado, o problema do apetrechamento e, por outro, o problema
da organização e funcionamento das bibliotecas. Os orçamentos das escolas não
facilitavam a aquisição de livros, problema que muitas instituições resolviam através da quotização dos alunos e das “dádivas” de particulares. E se o Estado, através
das suas instituições corporativas, fornecia, no contexto de diferentes campanhas
educativas e ideológicas, múltiplas coleções de livros, como aconteceu em Peniche,
eram as dinâmicas criadas pela organização escolar das bibliotecas quem resolvia
as carências financeiras. Com efeito, e considerando informações específicas de algumas bibliotecas, a mobilização das populações e a organização dos leitores em
sistema de quotas, pagando uma jóia de inscrição ou fazendo entregas regulares de
donativos, permitiram a muitas escolas preencher as suas bibliotecas de livros. Foi
o que aconteceu na Escola Técnica Elementar de Gomes Teixeira, no Porto, onde
esta metodologia permitiu dotar a sua biblioteca, em dois anos, com 851 volumes
(Escolas Técnicas, 1955, 116). Esta metodologia de organização funcionava na Escola Industrial e Comercial de Peniche, em 1970, num período de revitalização da
biblioteca, que contava com 122 alunos/sócios (Alador, 48).
A responsabilidade pela organização das bibliotecas tinha sido entregue, pelo
Estatuto, a docentes dos grupos de Português, Línguas ou História. Mas o Congresso do Ensino Profissional prescrevia mesmo a criação do “professor-bibliotecário”,
com funções equiparadas a serviço docente. A este docente competia, muitas vezes
auxiliado por alunos, organizar a biblioteca, catalogando obras e registando entradas
e saídas de livros. Quanto à aquisição de novos livros, cabia às estruturas de gestão,
em especial ao diretor, selecionar os livros necessários para a formação cultural ou
técnica. Na escola Gomes Teixeira, no Porto, o diretor selecionava “cuidadosamente” os livros a adquirir, “escolhendo para o 1º ano, de preferência, obras de histórias
simples, ingénuas e atraentes, quanto possível de intenções moralizadoras, destinadas sobretudo a despertar o gosto pela leitura; e para o 2º ano procurou já obras
mais sérias, tendo em vista a formação moral e cultural dos educandos” (Escolas
103
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Técnicas, 1955, 117).
3. O estudo, meramente embrionário, da biblioteca da escola industrial e
comercial de Peniche poderá tomar-se como exemplo das dificuldades que as
escolas técnicas encontraram para organizar a sua biblioteca escolar. Tendo como
referência o ano de 1959, data em que se inaugurou o novo edifício (Santos, 2009),
a biblioteca viveu até então com os constrangimentos da inexistência de espaço
próprio e adequado à leitura. Em 1958, era ainda uma biblioteca “em formação”,
e apesar de não possuir espaço próprio, criado apenas no novo edifício, era uma
biblioteca “devidamente organizada”, o que justificava, segundo a sua diretora, a
necessidade de nomear um “professor-bibliotecário” (ESP, doc. 444, 11-11-58). A
leitura decorria apenas no período diurno, às terças e quartas-feiras, entre as 18 e 19
horas, com empréstimo gratuito, que funcionava apenas entre 5ª e 2ª feiras e só para
a população escolar. Não funcionava portanto como leitura pública, ao contrário do
que pretendem alguns estudos (Melo, 2004) como aconteceria, aliás, na maioria das
bibliotecas escolares, cuja leitura ficava reservada aos alunos quotizados.
Na nova biblioteca, inaugurada em 1959, as estantes possuíam uma chave que
impedia o acesso livre aos livros. Isso não significa que o impacto do livro chegasse
apenas aos alunos. Na escola técnica Gomes Teixeira, no Porto, os livros distribuídos
eram lidos pelos alunos e pelos pais e irmãos, aumentando assim o possível impacto
cultural do livro. Nesta biblioteca, no ano letivo de 1953-54, foram requisitados 14
325 livros, numa escola que tinha uma população escolar de 500 alunos.
Desconhecemos o movimento de leitores da biblioteca de Peniche, mas, em
1958, a diretora propunha à tutela a nomeação de uma docente para dirigir a biblioteca,
argumentando que “o movimento” da mesma o justificava (ESP, doc. 444, 11-1158), numa época em que a população escolar se resumia a 263 alunos (Santos, 27).
Tratava-se, muito provavelmente, de alargar o período em que a biblioteca estava
disponível para consulta, leitura e requisição, até aqui limitado a uma hora, dois dias
por semana.
O espólio bibliográfico da biblioteca de Peniche possuía, em 1956, cerca de
685 livros (ESP, Inventário, 1956), e em 1960, data que serve de indicador para este
estudo, tinha 899 títulos, que correspondiam, com os volumes repetidos, a 2195
exemplares (ESP, Inventário, 1960?). Quer dizer, se considerarmos as reflexões
apresentadas no I Congresso Nacional do Ensino Técnico Profissional, segundo as
104
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
quais uma biblioteca de ciclo deveria ter cerca de 600 livros, a escola de Peniche
estaria, em princípio apetrechada para prover às planturosas necessidades de alunos
e professores.
4. A biblioteca da Escola Comercial e Industrial de Peniche é, como muitas
outras, um constructo que resulta da sua história, já antiga, datada de 1887. A
ideologia laicizante do século XIX estabelece as consignas programáticas de uma
política cultural ancorada nas bibliotecas, assumindo papel central na edificação do
próprio liberalismo. Essa marca ideológica distintiva tornou-se visível na gestão
do património bibliográfico que ficou disponível depois da supressão forçada dos
mosteiros e conventos. É o período de transição das bibliotecas privadas para
as bibliotecas públicas, no decorrer do processo de secularização da leitura e da
institucionalização do ensino público em Portugal (Barata, 2005).
Os livros mais antigos encontrados na biblioteca da escola industrial e comercial de Peniche, ainda hoje existentes, versam temáticas religiosas, são o Officio da
Semana Santa em Latim, e Portugez, com as Rubricas do Missal e Breviario Romano (Lisboa, Regia Officina Typografica, 1786) e o Prologo Doutrinal ou Instrucção
Prévia para se empregarem com virtuoso culto os Sagrados Dias da Semana Santa
(s/a, s/n). Existe ainda um Vocabulario Orthographico da Lingua Portugueza ou
Methodo Seguro de Escrever Correctamente Todas as Palavras do Nosso Idioma,
de Gaspar Alves Marques (1866).
O corpus bibliográfico começou a desenhar-se com a criação da escola de
desenho industrial, em 1887, o que explica o predomínio de livros e manuais sobre
desenho ornamental, disciplina que era nuclear na formação técnica ministrada nos
cursos de formação feminina e masculina, e nas tradicionais rendas e costuras e
bordados (Santos, 2009). Eram sobretudo manuais para uso da professora de desenho, produzidos por autores estrangeiros, franceses e italianos, como Fabrique de
Dentelles, La Dentelle, La lingerie et la modiste e Lavori Femminili, entre outros.
O livro traité pratique de la broderie et de la tapisserie, de Dufaux de la Jonchère
(Paris, c. 1885) desenvolve conceitos práticos para o ensino feminino de rendas e
tapetes, incluindo diálogos e gravuras ilustrativas.
Outros livros estrangeiros versavam temas não estudados na escola, como Le
meuble (Alfred de Champeaux, 1885) e La Faïence (Théodore Deck, 1887), onde se
fazia a história dos móveis e da porcelana. Eram provavelmente adquiridos, como
105
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
os anteriores, por Maria da Conceição Bordalo Pinheiro, sua primeira professora e
diretora e membro de uma família com profundas tradições culturais e artísticas. A
exceção ao predomínio de literatura estrangeira, nesta fase inicial, encontra-se no
famoso Diccionario Historico e Documental dos Architetos, Engenheiros e Constructores Portuguezes, de Sousa Viterbo (vol. 1, 1899; vol. 2, 1904), ainda hoje uma
referência bibliográfica incontornável para os historiadores da arquitetura civil e
militar e para os biógrafos.
No início do século XX, entre o final da monarquia e a república, o espólio
bibliográfico foi acrescentado com duas coleções de livros geradas no contexto da
família Bordalo Pinheiro. A primeira coleção, de que existem 56 livros, é a Bibliotheca de Instrucção Profissional, conhecida como “Manual do Operario”, e constitui a única coleção especializada em temáticas sobre educação e formação técnica
e profissional. Iniciada por Tomás Bordalo Pinheiro, professor de desenho de máquinas e diretor das oficinas da Escola Industrial Afonso Domingos, em Leiria, teve
a colaboração, para além de docentes do ensino profissional, de Henrique Lopes
de Mendonça (historiador), Guilherme Ivens Ferraz (oficial da armada), Henrique
Francem da Silveira (técnico industrial) e L. Andrade Folhas (desenhador mecânico).
A bibliotheca de instrucção profissional facultava aos alunos “noções gerais”
sobre conteúdos técnicos e científicos que, de certa forma, refletiam o estado das
artes em Portugal e na Europa. A coleção dividia-se em seis grandes áreas temáticas: “Elementos Gerais” (de várias disciplinas técnicas), “Mecanica”, “Construcção
Civil”, “Construcção Naval”, “Manuaes de Offícios” e “Conhecimentos geraes de
industrias”. Iniciada em 1900, constituía uma espécie de enciclopédia sobre quase
todas as áreas da indústria e terá sido adquirida, na totalidade, pela escola de desenho industrial da época. Considerando a oferta formativa e o perfil do público escolar existente em 1910 (Santos, 6-9), a sua utilidade seria praticamente estéril.
A segunda coleção, intitulada Os livros do Povo, de que existem ainda 8 títulos, foi publicada pela “Livraria Profissional” e editada por Pedro Bordalo Pinheiro,
caldeando assuntos técnicos com matérias de natureza ideológica. A coleção incluía
16 secções: Educação Infantil, Educação Geral, Educação Cívica, Educação Profissional, Educação Física, Higiene Prática, Domínio de Portugal, Arte e Literatura,
Portugal na História, Vida Social, Vida no Campo, Vida Comercial, Vida Marítima,
106
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Vida Industrial, Vida Colonial e Vida Militar. A secção “Educação profissional” tinha a responsabilidade de Tomás Bordalo Pinheiro e seguia de perto, nos temas e
conteúdos, a coleção da Bibliotheca de Instrucção Profissional.
A coleção Os livros do Povo era, como se comprova, um projeto editorial ambicioso que vinha ao encontro, por um lado, da necessidade de contribuir para a alfabetização do povo, aprofundando a sua formação cultural; por outro, o projeto de
elevar a qualidade do ensino técnico e transformá-lo em motor de desenvolvimento
e progresso. Não pode esquecer-se que o republicanismo, filiado na ideia iluminista
de progresso, pregava o papel transformador da educação. Enquanto “fábrica” de
cidadãos, a escola devia educar o povo para servir a pátria e contribuir para o progresso coletivo. Para muitos republicanos, como António Sérgio, a escola libertava
a sociedade dos atavismos e constrangimentos culturais e aprofundava os valores
democráticos em Portugal. Não espanta, por isso, que ao lado de matérias técnicas
como O que deve ser o serralheiro e serração de madeiras, a coleção incluísse
temas como Educação e Democracia, Como se Estuda, Todos devem ler, A Boa
Educação e Educação Física. Para os autores, empenhados na formação cultural
dos portugueses, os Livros do Povo deviam ser comprados e distribuídos “pela gente
da cidade e pela gente dos campos, pelas crianças e pelos adultos, nas escolas e nos
lares, em toda a parte em que haja uma consciência a desabrochar, um cérebro a formar, um espírito a conduzir” (H. Lopes de Mendonça, Portugal contra a Alemanha,
1916, 64).
O conhecimento histórico, enquanto memória e identidade, assumia então,
como aconteceria no Estado Novo, o seu papel nuclear na reforma cultural e mental
dos portugueses. A república não pretendia romper com a tradição gloriosa da história nacional, ambicionava, pelo contrário, aumentar a grandeza da pátria, escrever
novas páginas de glória coletiva, inspirando-se na memória histórica. Havia, por
outro lado, a questão da legitimidade da nova ordem política, que a conjuntura da
guerra favorecia. O livro Portugal contra a Alemanha, contextualizando e legitimando a opção, muito contestada, de levar Portugal ao braseiro da I Guerra Mundial, levantava a questão do confronto ideológico, já que a Alemanha representava
“um regime anacrónico”. A beligerância impunha-se por razões morais e culturais,
em defesa da democracia e da civilização latina (Santos, 2010). Portugal recuperava, na visão de políticos e intelectuais republicanos (Santos, 2010b), o sentido
da sua missão histórica, engrandecia-se aos olhos da humanidade na defesa moral
107
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
da “justiça e do direito”, ameaçados pela força e violência: “Estamos na lógica da
nossa missão histórica. Através da guerra que nos impuseram, o sangue português
continua a derramar-se pela obra de paz e de fraternidade humana, que os nossos
antepassados encetaram pela comunicação das raças, desconhecidas entre si” (Portugal contra a Alemanha, p. 55).
5. Nas décadas de 30 e 40, a biblioteca terá sido enriquecida com livros
enquadrados ideologicamente nas grandes opções políticas do Estado Novo.
A política imperial do regime e o reforço dos valores nacionalistas e patrióticos,
assumindo a tradição histórica como exemplo de um destino glorioso a perseguir,
espelha-se em duas coleções da biblioteca escolar. No campo ultramarino, a
Agência Geral das Colónias promoveu um conjunto de textos que confirmavam a
grandeza da pátria, espalhada por um vasto território, e a sua missão civilizadora.
Títulos como Roteiro da mocidade do império (Silva Tavares, 1938), Fronteiras
do território nacional no ultramar (Moura Brás, 1943), Do conselho ultramarino
ao conselho do império (Marcelo Caetano, 1943) cumprem o programa educativo
do salazarismo, empenhado em ajustar os mecanismos de produção ideológica ao
desenho de uma consciência imperial, com que se moldavam os espíritos na crença
das virtudes da raça e da existência de um destino coletivo que se expressava na
atividade colonial.
Os valores patrióticos encontram-se plasmados numa coleção patrocinada pelo
“Secretariado de Propaganda Nacional”, de António Ferro, e incluía títulos como
Historiazinha de Portugal (Adolfo Simöes Müller, 1943), História do soldado raso
que era príncipe dos poetas (Virgínia de Castro e Almeida, 1942) História das correntes quebradas (Virgínia de Castro e Almeida, 1943) e História triste do diabo
à solta (Virgínia de Castro e Almeida, 1943). As duas coleções, como aliás tantas
outras, privilegiam o discurso historiográfico, muitas vezes romanceado, permeável
à intencionalidade moralizante e morigeradora. Entre os autores consagrados, contam-se escritores que comungavam com os valores nacionalistas do Estado Novo.
Adolfo Simöes Müller (1909-1989), que foi jornalista e escritor, produziu livros
para crianças e jovens, adaptando episódios históricos, como a travessia do atlântico
por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, e romanceando biografias, como Edison.
Adaptou vários clássicos da literatura nacional, como os Lusíadas, a Peregrinação
e as Pupilas do Senhor Reitor, entre outros. A sua Historiazinha de Portugal narra
episódios da história de Portugal, em linguagem acessível, com que procurava aço108
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
dar a vis patriótica dos jovens portugueses.
A década de 60 reforçou a componente ideológica da biblioteca escolar de Peniche. Antes de prosseguir nessa análise, demonstrando a validade desta asserção,
observe-se graficamente a divisão temática do espólio bibliográfico da escola industrial e comercial de Peniche:
Categorias Temáticas
Política/Doutrina
Ciências sociais e Humanas
1%
8%
14%
25%
Ciências exactas
Ficção/literatura
21%
Pedagogia/Ensino Profissional
26%
Formação Técnica e
Profissional
2% 2% 1%
Revistas/P.Periódicas
Manuais
Religião/Moral
Gráfico 1 – Fonte: Inventário do Arquivo da Escola Secundária de Peniche
A primeira conclusão a retirar deste gráfico prende-se com o predomínio das
ciências sociais e humanas, logo seguido de obras de carácter político-ideológico.
Mas se considerarmos que muitos dos livros integrados na categoria de ciências
sociais e humanas ocupam um lugar central nos mecanismos de (re)produção e inculcação ideológica, rapidamente se evidencia o lugar da política e da ideologia no
contexto da biblioteca da escola técnica de Peniche (51% do total), no período em
análise (Vide quadro 1). Com efeito, dentro das ciências sociais e humanas considera-se um conjunto de ciências e áreas sociais que, como a História, a Geografia ou a
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Biografia são facilmente instrumentalizados pela ideologia. O campo historiográfico
constitui exemplo paradigmático das investidas manipuladoras do Poder e das elites
intelectuais, como aconteceu durante o Estado Novo.
Na biblioteca da escola de Peniche predominam, em primeiro lugar, as fontes
históricas: as fontes medievais, com as crónicas dos reis das primeiras dinastias; e
fontes modernas, com destaque para a “epopeia” dos descobrimentos e a expansão
ultramarina. As biografias, úteis para fixar os heróis do passado a servir de farol aos
aprendizes do presente, revelam os feitos “heroicos” de cavaleiros, conquistadores,
poetas e santos, ocupando o Panteão dos heróis da “Raça”. Nas 41 biografias existentes na biblioteca de Peniche predomina a categoria de história infantil. A maioria
pertence à coleção do SNI, “Grandes Portugueses”, sob direção de Virgínia de Castro de Almeida, José Estêvão Pinto e Teresa Leitão de Barros, e “Grandes Portuguesas”, dirigida por Teresa Leitão de Barros. Contava com títulos sobre D. Afonso
Henriques, Nuno Álvares Pereira, Luís de Camões, Vasco da Gama, D. Francisco de
Almeida, S. João de Brito, Marquês de Pombal e, no campo feminino, a Rainha D.
Leonor, Filipa de Vilhena e D. Maria I, entre outros. Quer dizer, o discurso histórico,
incluindo a biografia, produzido por escritores e não por especialistas, contribuía
para a elaboração ideológica da memória coletiva, modelando a identidade nacional através da “política do espírito”. Forjava-se essa memória, em primeiro lugar,
selecionando criteriosamente os períodos históricos e as personagens que marcaram
a época de ouro da história nacional, ou que, como Pombal e D. Maria, refletiam a
ideologia dominante. Ficavam no silêncio os períodos recentes, considerados decadentes pela historiografia nacionalista do Estado Novo, nomeadamente o século
XIX e a I República, vistos como períodos de anarquia e violência (Santos, 2010).
A proximidade entre a ideologia e a história pode vislumbrar-se na coleção
“Henriquina”, doze volumes integrados nas comemorações do centenário da morte
do Infante D. Henrique. O Infante simbolizava a gesta dos descobrimentos e os
valores tradicionalistas da portugalidade (e da própria luso-tropicalidade), numa
época em que os ventos da História ameaçavam o património colonial português.
O centenário do Infante desenhou-se numa época em que a ameaça independentista
obrigava ao reforço da ideologia imperialista, afirmando a nação multicultural e
multiterritorial como um dos mitos coloniais mais fortes do Estado Novo.
O predomínio de títulos de cariz político-ideológico e doutrinário, mesmo sob
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
a capa de um discurso cientificamente rigoroso, é consistente com o papel nuclear
que a escola e a “política do espírito” tinham na política do Estado Novo. Neste grupo
incluímos os textos político-ideológicos, como os discursos e textos de intervenção
de Salazar, os livros sobre problemas corporativos ou questões da candente política
ultramarina. Predominava nesta categoria a coleção de livros incluída na Campanha
Nacional de Educação de Adultos, iniciada em 1954, com 161 títulos, ainda que
muitos estivessem repetidos (a coleção tinha, em 1960, 70 volumes publicados e até
à década de 70, a série educativa chegou aos 147 volumes) (Melo, 155). Esta campanha visava combater o analfabetismo e encontrava no livro um dos instrumentos
mais significativos. A coleção tinha igualmente uma função ideológica, contribuindo para a consagração dos valores político-ideológicos, onde predominava a matriz
tradicionalista-católica, ruralista e moralizante. Ancorada nestes valores, a campanha nacional de adultos e a sua coleção de livros devia contribuir para a modelação
de uma sociedade marcada pela humildade, submissão, resignação e trabalho. Pobre
e sofredor, temente a Deus, o português ordeiro e trabalhador impunha-se como uma
espécie de “Homem novo” (Fernando Rosas, 2001) que afinal era velho de séculos,
dentro das “Virtudes que vêm de Longe” (Série Educativa H, n.º 4).
A sublimação do ruralismo e da humildade como marca ideológica encontrase em muitos dos livros da coleção como A gente canta na aldeia, Serões rurais,
O nosso lar ou Quem casa quer casa. Paradoxalmente, a mesma visão ideológica
reforça o idealismo nacional através da promoção das ambições espirituais da raça,
no contexto da tradição histórica e da sua pretensa missão civilizadora, espalhando a
fé e o progresso. Quais eram as “virtudes” da raça portuguesa? “Mas o que importa
não esquecer é o facto dessas virtudes serem as próprias virtudes do povo português:
fé, amor ao trabalho, espírito de sacrifício, culto apaixonado da honra e do dever,
coragem inquebrantável, um grande amor à Pátria e aquela antevisão do futuro que é
o génio da nossa Raça e nos deu sempre o primeiro lugar entre as nações quando se
trata de começar uma nova era para a Humanidade. O génio de Sagres e do Infante
D. Henrique, com que descobrimos novos mundos” (Honra de Ser Português, coleção Educativa, série H, n.º 1, 142)
O plano de publicações desta Campanha de Adultos estava dividido, numa
primeira fase, em séries de A a O, sendo a série A para obras que versavam sobre
“Doutrina” e a B sobre “Informação e Propaganda”. As restantes séries, integradas
na subcategoria de “coleção educativa”, incluíam a “Educação supletiva de adultos”,
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
“História Pátria”, “Geografia de Portugal”, “Arte Portuguesa. Etnografia e Folclore”, “Literatura e Pensamento Português”, “Educação Moral e Cívica”, “Educação
familiar”, “Educação Sanitária”, Educação Física e Desportos”, Aperfeiçoamento
Profissional”, “Organização Corporativa. Previdência Social. Segurança no Trabalho”, “Agricultura. Pecuária. Indústrias Caseiras. Artesanato” e “Livros Recreativos”. Todos os livros da coleção abriam com uma citação de Salazar, que assim se
assumia como mentor e guia ideológico da nação, aspirando igualmente, apesar da
“humildade” pressurosamente reinvindidada, a figurar no Panteão da hagiografia
nacional.
Este era, portanto, um projeto educativo ambicioso, vocacionado para crianças e adultos que frequentavam a escola com vista à conclusão do ensino primário. Mas o seu alcance programático estendeu-se a outras instituições educativas e
corporativas, sendo oferecido a casas do povo (Homem, Torgal, 1982) e a escolas
profissionais, como a escola industrial e comercial de Peniche. O Quadro 1 mostra a
divisão dos títulos em subcategorias, sendo útil para compreender a metodologia e
os critérios de divisão e organização temática do espólio bibliográfico de Peniche.
Política e Doutrina
Ciências Sociais
e Humanas
Ciências Exatas
Ficção e Literatura
Pedagogia e Ensino
Profissional
Campanha Nacional de Educação
Política
SPN/SNI
Centenário Henriquino
Os Livros do Povo
Geografia e Turismo
História
História da Arte e Património
Biografia
Ensaios
Religião e Moral
Etnografia e Cultura Popular
Ciências Exatas
Ficção e Literatura
Revistas e Publicações Periódicas
Manuais
Biblioteca de Instrução Profissional
Legislação, Regulamentos e Programas
Catálogos, Relatórios e Roteiros
Dicionários e Enciclopédias
Total
Quadro 1 – Fonte: Inventário do Arquivo da Escola Secundária de Peniche.
112
161
41
14
11
8
78
71
21
15
11
7
6
6
18
125
75
56
35
22
16
899
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
A análise do quadro permite, para concluir, outras leituras. Por um lado, a
importância modesta da secção de formação técnica e profissional, apesar de ocupar
cerca de 37% do total de volumes, com 323 títulos. Os dados desta secção impressionam pela sua dispersão e eclectismo temático e bibliográfico. A secção inclui
56 livros da Bibliotheca de Instrucção Profissional, ou “Manual do Operario”, datada do início do século XX, 35 referentes a legislação e programas, 22 catálogos
e relatórios e 16 correspondendo a dicionários e enciclopédias. A estes dados deve
ainda acrescentar-se os 75 manuais, equivalendo 8% do total. A maioria dos títulos
pertence, porém, à categoria de Publicações Periódicas (18%), que abarcam temas
como pedagogia, ensino, formação profissional, contabilidade pública, comércio,
indústria, agricultura, etc.
Não deve estranhar-se esta evidência. A predominância de cursos de formação
feminina, desde a sua origem, em 1887, explica a ausência de uma biblioteca especializada. Não pode esquecer-se que muitas das alunas da escola entravam para os
cursos de rendas e costuras e bordados tendo apenas a frequência do ensino básico.
Por outro lado, apesar das mudanças operadas em 1947, com a sua transformação
em escola comercial e industrial, só no final da década de 50 e depois 60, e já no
novo edifício, se alarga a oferta formativa profissionalizante, com os cursos nas áreas da serralharia, comércio, electromecânica, etc. (Santos, 2009).
O caso da literatura terá, em princípio, uma explicação análoga, isto é, definida pelo público escolar. Ao contrário de outras bibliotecas, como a biblioteca da
casa de povo de Souselas, que tinha algumas dezenas de títulos (Torgal e Homem,
1982), a biblioteca escolar de Peniche tinha apenas 18 volumes (numa catalogação
naturalmente subjetiva, especialmente em alguma história romanceada). Registese, em primeiro lugar, os clássicos da literatura universal A Odisseia, de Homero, a
Eneida, de Virgílio, e os Lusíadas. A épica ajustava-se à visão de grandeza universal
que o salazarismo reivindicava para Portugal. No campo do romance, o mais relevante, em termos nacionais, são dois clássicos de Júlio Dinis: Os Fidalgos da Casa
Mourisca e a Morgadinha dos Canaviais. O romantismo e o naturalismo, cultivando
o ruralismo idealizado do século XIX português, favoreciam o programa ideológico
salazarista, também identificado noutras bibliotecas (Melo, 2005; Torgal e Homem,
1982), sublimando o mundo rural e agrícola em detrimento da cidade e do mundo
industrial.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
No drama, regista-se a Morgadinha de Valflor, drama em cinco actos, de sabor ultra-romântico, de Pinheiro Chagas. No campo da literatura juvenil, para além
do clássico de Mark Twain, As Aventuras de Tom Sawyer, encontra-se o livro de
Virgínia de Castro e Almeida (1876-1945), Em Pleno Azul (1907). A autora, que foi
também cineasta, tinha uma vasta carreira no campo da literatura infantil, tendo dirigido, em 1907, a coleção “Biblioteca para meus Filhos”, onde publicou Céu Aberto
(1907), Pela Terra e pelo Ar (1911) e As Lições de André (1913). Conotada com os
valores nacionalistas, foi grande colaboradora do SNP, criando uma literatura de
intenções moralizantes e com muitas informações sobre história, geografia, mitologia, ciências, patriotismo e boas maneiras. Os seus livros tinham muito púbico (Ana
Maria Magalhães e Isabel Alçada, 1990), como prova a edição recente de Em Pleno
Azul (1988). Uma última referência deve fazer-se aos Apólogos Dialogais, de D.
Francisco Manuel de Melo (1608-1666). O volume 1 inclui os textos “Os relógios
falantes” e a “visita das fontes”, espécie de ficção dialógica em que a crítica social e
a sátira anatemizante refletem o sentido crítico e satírico do autor face à sua época,
visando os homens e as instituições coevas.
O quadro de relativa pobreza da biblioteca em matéria literária – não encontrámos um livro de poesia - parece confirmar a orientação doutrinária do ensino
profissional, empenhada em reforçar a componente instrumental do ensino técnico
e controlar a leitura. Não pode por isso falar-se em esquecimentos para caracterizar
as escolhas literárias da biblioteca escolar de Peniche, porque falta muita literatura.
É evidente, através dos livros da “coleção Educativa”, nomeadamente Os Grandes
Escritores Portugueses (Série G, nº 7), de José Gonçalo Chorão de Carvalho, e Os
Grandes Romances Portugueses (Série G, nº 3), de Maria Isabel de Paiva Saraiva,
que a educação popular privilegiava os autores clássicos, incluindo o século XIX,
e desprezava o século XX, apesar das referências ao Fernando Pessoa da Mensagem. A leitura, que não resistimos a transcrever, de um texto sobre Eça de Queirós
é elucidativa do sentido ideológico da educação cultural do povo e das crianças,
separando o trigo do joio, isto é, a boa literatura queirosiana daquela que a moral
mandava desprezar: “Saberás agora que Eça de Queirós se conta entre os maiores
escritores da língua portuguesa e é sem dúvida o seu maior romancista. E no entanto,
a maior parte dos seus romances peca por um defeito muito grave: o de nos mostrar
o Portugal da sua época apenas por um lado e justamente pelo lado pior. No Crime
do Padre Amaro, em que descreve a vida de uma pequena cidade da província, no
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Primo Basílio e nos Maias, que pintam a vida de Lisboa, que admiráveis páginas
nos deixou este escritor! Mas quanta podridão, quanta estupidez, quanta maldade
pintada nesses romances, realmente magníficos como romances, mas tão pouco próprios para elevar o espírito e o coração! […] A dado momento o nosso romancista
compreendeu que andava por caminho desviado. Compreendeu que o nosso Portugal, mesmo nessa época de triste decadência, havia sempre muito de belo e de são.
É nessa altura que escreve esses romances admiráveis que são A cidade e as serras e
A ilustre Casa de Ramires” (p. 200). A chegada de Jacinto, criado em Paris, no meio
de conforto e tecnologia, à aldeia serrana de Tormes, a mudança de espírito provocada “pela beleza incomparável da serra e pela paz e simplicidade daquele viver”
significavam afinal a vitória do campo sobre o mundo urbano: “As serras vencem a
cidade” (p. 201).
Conclusão
“As serras vencem a cidade” pode ficar como estandarte ou súmula interpretativa da biblioteca da escola técnica de Peniche, existente em 1960. Isto é, a ideologia
predominava nas estantes, indiferente afinal às necessidades de formação técnica da
sua população estudantil. A política do espírito, envolvendo as diferentes ciências
sociais e os manuais (que carecem de um estudo específico), ajustava a leitura, pelas
escolhas e pelas omissões, à vontade unificadora do regime, à sua ambição de modelar os portugueses ao seu quadro de valores marcado pela tradição histórica, pela
religião e por essa visão de um destino providencial a civilizar povos e continentes.
Esse mito identitário era essencial para a existência da “raça” como povo independente (Santos, 2003) e legitima o investimento bibliográfico do Estado Novo. É por
isso nas origens, e depois na república, que a biblioteca escolar de Peniche mais se
ajusta às necessidades do projeto formativo, com a aquisição de literatura estrangeira que serviria durante décadas as necessidades da professora de desenho industrial
e, eventualmente, alguma mestra. Os livros adquiridos neste período constituíram,
tudo aponta nesse sentido, um legado das sua primeira directora, Maria da Conceição Bordalo Pinheiro. Durante o salazarismo, pelo contrário, foi o Estado e as
instituições corporativas que apetrecharam as prateleiras, o que é consentâneo como
os seus propósitos de propaganda e controlo ideológico. Contribuiu a biblioteca
da escola comercial e industrial de Peniche para a diminuição do analfabetismo?
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Ou, ao contrário, o seu desenvolvimento acompanhou o crescimento da população
escolarizada (Melo, 2004)? Não é possível responder ainda de forma cabal a estas
questões, mas existem informações (Revista ALADOR) que apontam noutro sentido,
considerando a inatividade do início da década de 70. Mas uma avaliação rigorosa
do impacto eventual deste sistema de (in)informação (como hoje se diz) na educação e na formação da população escolar de Peniche exige que comparemos o estudo
atual com o espólio bibliográfico existente em 1974.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Referências Bibliográficas:
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1958;
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CÂNDIDO, Ludovico Morgado, A evolução recente da estrutura escolar portuguesa, in Análise Social, Vol. II, 1964 (n.º 7-8), pp. 671-698;
Escolas Técnicas, Boletim de Acção Educativa, vol. V, n.º 19, 1955;
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Ó, Jorge Ramos do, Os anos de ferro: o dispositivo cultural durante a “política
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PINTASSILGO, J., República e formação de cidadãos. A educação cívica nas escolas primárias da 1ª República portuguesa, Lisboa, Edições Colibri, 2008;
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SANTOS, Miguel Dias, A Contra-Revolução na I República [1910-1919], Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010;
SANTOS, Miguel Dias, “Patriotismo e Propaganda na Acção da Elite Intelectual
117
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Republicana Durante a Grande Guerra”, in Biblos, Coimbra, Faculdade de
Letras, s. VIII, 2010, pp. 157-174;
SANTOS, Miguel Dias, Contributos para a história do ensino técnico-profissional
em Peniche, Peniche, Escola Secundária de Peniche, 2009, pp. 1-50;
SANTOS, Miguel Dias, “O Mito da Atlântida nas leituras historiográficas do
Nacionalismo Monárquico”, in Estudos do Século XX, n.º 8, Coimbra, Centro
de Estudos Interdisciplinares do Século XX, 2008, pp. 277-291;
SANTOS, Miguel Dias, “Imperialismo e Ressurgimento Nacional. O Contributo
dos Monárquicos Africanistas”, in Estudos do Século XX, n.º 3, Coimbra, Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, 2003, pp. 83-112;
TORGAL, Luís Reis, HOMEM, Amadeu Carvalho, Ideologia salazarista e “cultura
popular” — análise da biblioteca de uma casa do povo, in Análise Social, vol.
XVIII (72-73-74), 1982-3.°-4.°-5.°, 1437-1464;
TORGAL, Luís Reis, CATROGA, Fernando, MENDES, José Amado, História da
História em Portugal séculos XIX-XX, 2 vol., Lisboa, Temas e Debates, 1998;
TORGAL, Luís Reis, Estados Novos Estado Novo, 2 vol., Coimbra, 2ª ed., Imprensa
da Universidade de Coimbra, 2009.
118
POESIA
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Jorge Danado
PONTES
Entre a vida e a morte
Fios suspensos de magna ilusão
Passagem irremediavelmente estendida
Que se oferece em angustiante incompletude
Ao poder ontológico dos teus passos.
Entre o ódio e o amor
Suspiros de prazer e horror
O oscilar intermitente da menina dos teus olhos.
Palavras mães de gestos
O beijo que trai
E tudo o que não sabemos
Entre a virtude e o pecado
A hipocrisia disfarçada de saltimbanco
A algema que prende
A atracção do vício ao querer puritano.
Instintos artífices da sedução da morte
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Doutrinas senhoras da destreza do entendimento
Promessas de salvação
Entre a luz e as trevas
O olhar que tende à cegueira
Voga livre ao sabor do acaso,
Repousa na magnificência das proezas da cor
Inquieta-se ao despertar do peso da sombra.
Ao poder do Verbo
Responde em murmúrio poético
A sedução do oculto.
Entre o eu e o outro
O infinito como essência da real impossibilidade
Clamores de tragédia no fracasso da tentativa de transcendência.
Encontros de costas voltadas
Marcados a ferro incandescente
Pela brutal condenação
À escravidão do egoísmo
Entre o saber e a ignorância
A celebração da certeza no mar morto da inconsciência
A mutilação implacável do saber que não se sabe.
Guerra e paz
A distracção do insensato cozinha felicidade
A nuvem de fumo irrespirável paira sobre a visão indomável
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Entre o céu e a terra
O cume verde em sisífica demanda
Aspira às estrelas
Desiste em pó de volta às entranhas.
A incansável gravidade
Aniquila o despertar das asas
Voa impune a liberdade
A imaginação emprestou-lhe o azul.
Espaço e tempo,
Entre o aqui e o ali
O passado e o futuro
A constatação da precariedade
E a ousadia destemperada do eterno.
Pontes,
Linhas rectas de mãos nas pontas
A fúria da verdade em gritos vivos
O retorno à perfeição do simples
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
ADRO
Ainda é noite nos meus olhos,
O sol teima em arrancar-me à morte
A que me entrego em esperança fingida.
A indiferença das vontades prisioneiras do conteúdo dos sacos de plástico
Que o corpo carrega contente
Como extensões com que a natureza o dotou
Castiga as tentativas de me arrancar ao degredo.
Acabou a missa,
As almas benzidas fundiram-se com o bafo a álcool,
Eu assisto ao arraial consciente da minha transparência.
Não pequei menos na renúncia ao copo de vinho
Que na altivez com que selei o chamamento do altar.
Misturei-me à espera de um puxão na manga do casaco,
Cheguei a roçar-me descaradamente nas cascas enfeitadas.
Com a sabedoria do tempo
O pelourinho assistia ao triunfo do pecado
Murmurando as confissões de traição que a dor deixou escapar.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Só faltava o que não cabia nas promessas
Que os moços imberbes não conseguiam calar
Ao anúncio do cio das máscaras ciosas da alva pureza.
O adro estava cheio
As possibilidades do olhar eram infinitas,
O meu estava preso à faísca da inquietação
Parecia esperar traindo o espírito de viajante
Que incapaz de reconhecer o destino
Nega pertencer a uma errância completamente estrangeira.
Numa matemática qualquer eu estava a mais
Como um algarismo neutro em todas as operações
Mas que teima em existir em nome da harmonia da escala
Impondo a sua necessidade ao escárnio dos pares e dos ímpares.
Preferia ser feio,
Poder responder obscenidades aos risos mal disfarçados
Como se a fealdade me elevasse acima de qualquer censura
E depois rir-me do incómodo da minha presença
Na festa dos abençoados.
O adro continua cheio.
Talvez seja só de gente
O calor que fez descer os nós das gravatas a meio do peito
E sela em suor o que ainda não aconteceu.
Todos parecem doentes das intenções
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
E eu irremediavelmente lúcido,
Espectador por desprezo,
Abafo o grito da salvação
E afasto-me carregando o peso de uma ausência.
Fujo de mim empoleirado no sarcasmo da ingratidão,
Não soube ser o que devia
Desisti ainda pequeno
Quando me neguei a sujar as mãos na terra
E percebi que tinha rompido com a minha verdade.
Instaurei a agonia no meu respirar
Quis misturar-me com a ingenuidade do vulgar
E sem crença continuo a visitar o adro,
Esperando pacientemente pelo puxão na manga do casaco
(ou então pela centelha de um olhar de raspão)
Que me resgate da solidão a que me condenou a consciência.
Os olhos do puto de sapatos rotos
Dizem-me que sou a existência do nada
Tal é o modo estridente como o seu olhar me atravessa,
Algures no vazio, incapaz de acolher o doce de uma carícia
Pressinto a presença ruminante de um desejo
Que reclama a minha negação no jogo da confiança
Em que quis entrar sem licença
Para seduzir o lento ondular
Que emana do perfume dos corpos descaradamente disponíveis.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Quem sou eu?
O que julgo esbarra nas contradições que inocentemente me fulminam,
Julgo tanta coisa e desemboco sempre em coisa nenhuma.
Sou um fantasma,
Assim me diz o frenesim das conversas no adro
Assim me diz o nevoeiro com que me confundo
Assim me diz o cinzento neutro das minhas emoções.
Decidi copiar a renúncia do corpo daquele velho
Na expectativa de encontrar uma história onde me aconchegue.
Desisti.
Se alguém der por que morri
Escreva na terra da minha cova
‘Este não valeu a pena’
A água da chuva lavará as palavras,
Consumar-se-á o casamento entre a escuridão e o nada.
O adro espera ansioso pelo fim da missa.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Juliette Van d’Eau78
Estás fria, minha querida
Será que choras pelas noites frias, sozinha?
Querida, perdi horas assim,
Engoli o pão de um Diabo que inventei, cozinha
Dias e dias inteiros para sustentar a minha loucura,
Por mim...
Tanto me faz o que me dá de comer, desde que alimente
Mesmo sendo tortura
Porque haveria de negar, querida, o seu pão,
Com farpas que magoam a boca?
Não estarei eu louco? Não?
Porque é só nestas noites frias, que choro,
Que este meu Diabo me vem alimentar,
Que me faz comer até não mais respirar?
Querida, porque não falas hoje? Estás fria
Acorda desse sono e vem-me consolar.
Confesso que não aguento, nem mais um dia,
Sem ouvir essa tua voz, minha querida...
Deitaste-te comigo, e não lembraste mais de levantar
E agora, não terei mais ninguém a quem perguntar
Se chora nas noites frias...como tu choraste certamente,
Sozinha...
78
Pseudónimo de uma Aluna da Escola Secundária de Peniche.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Dias Negros
Há dias negros, e dias negros,
Dias chuvosos, melancólicos,
Tenebrosos, caóticos.
Negros, esses dias em que acordo
De noites mal passadas,
Ouvindo a escuridão se aproximar,
Sentido a multidão sussurrar,
Que será mais um dia negro,
No pessimismo de uma alma de igual modo
Negra, Triste.
E tristes são dias negros,
Escuros como os olhos que tenho hoje.
Negros.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Autodecadência
São os rios por onde passo que me afogam em memórias,
Eternas recaídas em fragmentos desnecessários à minha existência,
Na ruína que a minha pele significa,
Destruída pela minha própria decadência.
Governada pela minha estúpida indecência.
E passo horas a tentar ignorar a minha néscia.
Ao rubro de um segundo e outro, onde ideias se espalham,
E as correias dos relógios atrapalham,
Invertem-se os membros digitados entre espaços,
Não entendo como eles preferem viver de enlaços,
Controlados apenas por tictac’s constantes
Tictac’s que dão dores de cabeça, instantes
Momentâneos de uma geração absorvida de ideias cruéis,
Rotinas permanecem inertes,
Entre casas de senhoras, e senhoras em hotéis.
Não são eles que falam, contadores de histórias,
Sou eu que recito cada ponto das minhas memórias,
Afogadas por rios onde, entre recaídas, passo,
Fragmentos de um relógio cujo tempo é escasso.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Ao som do meu respirar
É quando fecho os olhos e sinto este trémulo silêncio,
É quando fecho a alma e me estremece a mente,
Que procuro por fim, num pesaroso frio
Algo que me dê brilho, uma luz quente.
É quando fecho os olhos que tudo fica nítido,
Paro a busca a certas respostas, para as encontrar
E danço, ao som de um silêncio enfraquecido,
Danço ao som do meu respirar.
É quando fecho os olhos para um dia belo,
E percorro as noites do meu âmago enegrecido,
Que arranco fios do meu próprio cabelo,
E encontro-me viva num estado adormecido.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Incógnita
Não quero saber quantos dias tenho contados,
Quantas mais noites poderei eu dormir,
Não quero saber quantos segredos terei guardados
Quantas mais dores terei de sentir...
Não quero saber...
Se vai ser muito tempo ou pouco,
Se sou sano ou louco,
Se é amor ou ódio,
Se é escolha ou ópio...
Eu...
Não sei nem quero saber,
Se chego mesmo a ser,
E se vou durar para o saber.
Não tenciono encontrar as respostas certas,
Tampouco as erradas...
Não tenciono entrar por portas abertas...
E jamais escolheria as que estão fechadas.
E este estado de espírito? Será doença?
Pouco me importa certamente...
Nem sequer me sinto doente,
Apenas descontente...
O motivo... mantenho incógnita
Dentro de mim
Prefiro assim...
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Prometo, Querida
Querida,
Prometo não contar infortúnios do meu passado,
Ignorar, quiçá, devaneios do antigo tempo e espaço,
Prometo, não vingar os maldizeres alheios,
E até, esquecer os fins, inícios e meios.
Prometo, querida,
Que entendas, então, que és o que importa,
E por isso, então, deixo tudo pelo que és,
E que, de cada vez que choras, fechas a porta,
Eu fico à tua espera, do lado de fora.
Prometo, querida,
Que no mundo nada mais vou pedir,
Enquanto tiver o teu sorriso a brilhar,
Contar, com certeza, palavras bonitas de se ouvir,
Escrever, é certo, em soneto, amor a ti,
Prometo, querida, prometo.
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ATIVIDADES
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
PELOS DIREITOS HUMANOS
Por Manuel de Azevedo Coutinho79
A Amnistia Internacional é uma organização não-governamental fundada em
1961 pelo advogado inglês Peter Benenson sobretudo motivado pela prisão de dois
estudantes portugueses que, por ocasião da revolta académica, brindaram em público pela liberdade. Impressionado pelo caso, Benenson publicou um artigo no jornal
The Observer intitulado Os Prisioneiros Esquecidos, onde aproveitou o pretexto
para chamar a atenção da opinião pública para estes casos de ofensa à liberdade de
pensamento. Este apelo teve eco em muitos outros jornais da Europa e do Mundo,
desencadeando um movimento que esteve na origem da constituição da Amnistia
Internacional.
Nesse mesmo ano, em Julho, teve lugar uma reunião internacional com delegados de diversos países que aderiram à iniciativa. Ficou aí estabelecido criar
um movimento permanente em defesa da liberdade de opinião, de acordo com os
Direitos Humanos.
Esta rede alargou-se e, em 1981, chegou a Portugal.
Entre as diversas actividades desenvolvidas pela Amnistia Internacional Portugal contam-se os denominados Campos de Trabalho.
Entre 29 de Outubro e 1 de Novembro de 2011, pelo 12.º ano consecutivo, a
organização promoveu um destes Campos, destinado a jovens entre os 15 e os 18
anos, com o objectivo de iniciação dos mesmos à luta pelos Direitos Humanos.
Estando a minha irmã Filipa integrada na Amnistia Internacional, ela sensibilizou-me para a participação neste Campo de Trabalho.
Assim, cheguei à Pousada da Juventude de Almada, cenário da actividade.
Aí encontrei outros jovens, na sua maioria proveninetes de grupos de estudantes
da Amnistia Internacional, desde os Açores até ao Porto e a Albufeira, cobrindo
portanto todo o País. Eu era o único que não tivera qualquer contacto anterior com
79
Aluno da Escola Secundária de Peniche e secretário da Secção da Amnistia Internacional da ESP.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
a organização.
O primeiro dia começou pela recepção aos participantes. Reunidos numa sala,
e naturalmente curiosos e expectantes, aí recebemos as indicações preliminares.
Fiquei integrado num dos 7 grupos que se formaram, cada um contando com
a orientação de monitores da Amnistia.
A actividade inicial constou da realização de alguns jogos que visaram “quebrar o gelo”, característico do primeiro dia, e permitir um melhor conhecimento
recíproco dos participantes. Depois, chegou o momento de trocar impressões sobre a
temática que ali nos reunia, sendo divulgados o historial e os objectivos da Amnistia
Interncional, através de uma apresentação em PowerPoint que suscitou um animado
diálogo.
Ao serão ficaria claramente demonstrado que aquele Campo de Trabalho não
se limitaria à divulgação e debate sobre a Amnistia e os Direitos Humanos, mas
também contaria com espaço para a animação. A noite, de jogos, seria preenchida
com perguntas e mímicas, entre outras actividades similares.
O dia seguinte começou cedo. A sessão inicial integrou o visionamento de
alguns filmes que apresentavam dilemas sobre direitos humanos, o que suscitou um
animado debate acerca da liberdade de expressão, da privacidade e da igualdade.
Em boa verdade, da discussão não resultou uma conclusão definitiva mas uma abertura mais esclarecida para a aceitação de diversas opiniões.
Ainda se reflectiu sobre a pena de morte, novamente tendo sido trocadas posições e argumentos, que até lembraram alguns momentos semelhantes decorridos em
ambiente escolar, sobretudo nos domínios da Filosofia.
A tarde começou com o grupo circulando por três workshops com uma comum
temática: “Não à Discriminação”. O que despertou mais curiosidade foi o dedicado à orientação sexual, onde nos eram apresentadas algumas questões simples nas
quais, no entanto, nunca tínhamos pensado. Uma das conclusões a que chegámos foi
a de que esta temática, em diversos meios, era ainda tabu...
A discriminação com base no género integrou uma espécie de jogo, simples,
com intervenção duma bola, cuja posse implicava a revelação de uma característica
física ou psicológica do sexo feminino ou masculino, em função da ocasião. No
final, compararam-se esses atributos, conduzindo à conclusão de que as diferenças
eram mais físicas do que psicológicas. O terceiro pretexto associava tolerância e
diálogo intercultural, onde se contabilizaram, mais uma vez, certezas e incertezas.
No final, cansados de tanta reflexão, veio a pausa para jantar... e descontrair.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
A noite contou com uma animada sessão de karaoke e dança. Mas ainda houve
tempo para lembrar e festejar os 50 anos, completados a 28 de Maio, da Amnistia
Internacional, bem como os 30 da secção portuguesa. Tivemos brindes e bolo de
aniversário.
Novo dia, 31 de Outubro, começou com com um jogo: a cada um de nós foi
atribuída uma personagem e a sua história. Depois, os monitores/animadores desenvolveram a partir daí uma simulação onde éramos convidados a dar um passo ou a
ficarmos imóveis, conforme a nossa “personalidade” pudesse, ou não, responder às
questões colocadas. Esta dinâmica revelou, no final, o resultado prático das desigualdades sociais e das limitações que afectam os cidadãos na sua vida de relação.
A “provocação” seguinte foi motivada por uma anterior promessa não cumprida: a de um bolo para aquele dia. O desenvolvimento desta dramatização conduziu a
uma séria reflexão sobre a mais recente campanha da Amnistia Internacional: Exija
Dignidade. Isto passa pela ilusão criada pelas promessa e decisões erradas por parte
dos responsáveis políticos, Governos e poderosas organizações supra-nacionais.
Ainda antes do almoço, os participantes puderam conhecer o valor e o papel
da fotografia como instrumento de inclusão social, pelo testemunho de uma qualificada profissional.
Pela tarde, foi posto em prática este desafio, sendo os grupos convidados a
percorrer a cidade de Almada, num jogo de orientação que incluía a captação de
fotografias sobre três temáticas: emprego, conflito, comunidade e pobreza.
A verdade é que este pretexto nos levou a ver a realidade envolvente com outros olhos, descobrindo pormenores decisivos que quase sempre nos escapam.
Chegámos ao final do dia cansados mas convictos das aquisições feitas. Um
grupo musical da Escola Secundária da Trafaria, “Vai de Caja”, empenhado na luta
contra a exclusão social, animou o nosso serão.
Atingimos o último dia. Foi tempo de balanço e despedidas. Nessa avaliação,
reflectimos sobre os temas que nos tinham sido propostos e concluímos sobre o que
mais tínhamos apreciado. Por mim, apreciei em particular os workshops sobre a
tolerância e o diálogo intercultural.
Por fim, pensámos sobre o que poderíamos fazer como contributo pessoal para
não perdermos as aquisições feitas e para lutarmos contra a violação dos direitos
humanos. Após esta reflexão, fiz a promessa de criar uma secção da Amnistia Internacional na Escola Secundária de Peniche, visto que todos participantes daquele
Campo de Trabalho eram provenientes de um grupo ou secção desta organização.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 3 (2012)
Porque a minha Escola tem uma prática solidária para com a comunidade,
esta criação acrescenta um capítulo ao seu digno passado ao serviço de Peniche. A
secção da Amnistia Internacional, neste momento já em actividade, levou a efeito
projecções cinematográficas com temática alusiva à violação dos direitos humanos,
sessões de esclarecimento e de sensibilização acerca da Amnistia Internacional, tendo contado com a participação do seu Coordenador nacional de Activismo e Formação, diversas actividades de campo, como no Dia da Mulher, etc.
Neste momento, o maior desejo pessoal neste domínio é o de participar numa
próxima iniciativa da Amnistia Internacional Portugal com uma representação da
Escola Secundária de Peniche.
140
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO
5
ARTIGOS
7
CARVALHO, Paulo Archer de, Filosofias da república
FIGUEIREDO, Orlando, Identidade terrestre: um constructo que tem por base
a cultura científica
MADURO, António Valério, Em torno do conceito de identidade estremenha
COELHO, Júlio, O problema da identidade económica
CALADO, Mariano, Na comida e na bebida o mar tem uma outra vida…memória do património gastronómico penicheiro
VENÂNCIO, Rui, JANEIRINHO, Raquel, MARTINS, Jorge, Património,
identidade e religiosidade no concelho de Peniche
SILVA, José Victor, O marketing – uma ferramenta na decisão da oferta formativa dos cursos profissionais
RIBEIRO, Alexandra, Perturbação de hiperatividade com défice de atenção
MOREIRA, João Luís, A revolução dos cravos: literatura e identidade em revolução necessária, de josé gomes ferreira
SANTOS, Miguel Dias, A biblioteca da escola industrial e comercial de Peniche: história, ideologia e cultura
POESIA
DANADO, Jorge,
Juliette Van d’Eau
ATIVIDADES
119
135

Documentos relacionados