ALVO: IRAQUE O que a imprensa não contou
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ALVO: IRAQUE O que a imprensa não contou
NORMAN SOLOMON E REESE ERLICH ALVO: IRAQUE O que a imprensa não contou NORMAN SOLOMON E REESE ERLICH ALVO: IRAQUE O que a imprensa não contou EXPRESSÃO POPULAR Copyright © 2004, by Expressão Popular Título original: Target Iraq: Wath The Midia Didn’t Tell You Tradução: Tatiana Carvalho de Azevedo e Maitê Carvalho Casacchi Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho Projeto gráfico, diagramação e capa: ZAP Design Impressão: Cromosete Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) (Biblioteca Central - UEM, Maringá – PR., Brasil) S689a Solomon, Norman Alvo: Iraque: o que a imprensa não contou / Norman Solomon e Reese Erlich ; tradução [de] Tatiana Carvalho de Azevedo e Maitê Carvalho Casacchi. --1.ed.-- São Paulo : Expressão Popular, 2005. 144 p. Título original: Target Iraq: wath mídia didri’t tell You. Livro indexado em GeoDados-http://www.geodados.uem.br 1. Iraque – Guerra – História. 2. Iraque – Política e governo. 3. Iraque – Relações exteriores – Estados Unidos. 4. Iraque – Guerra e imprensa. 5. Armas de destruição de massa – Iraque. 6. Iraque – Guerra – Motivos. 7. Iraque – Guerra – Geoge Bush. 8. Iraque – Recursos minerais. I. Erlich, Reese. II. Título. CDD 21.ed. 327.567073 956.70443 Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorização da editora. 1ª edição: dezembro de 2004 EDITORA EXPRESSÃO POPULAR LTDA Rua Abolição, 266 - Bela Vista CEP 01319-010 - São Paulo-SP Fone/Fax: (11) 3112-0941 Correio eletrônico: [email protected] www.expressaopopular.com.br SUMÁRIO O S C A D Á V E R E S D E F A L U J A A C U S A M G E O R G E B U S H ........................... 7 JOSÉ ARBEX JR. I R A Q U E N O P R E C I P Í C I O ..................................................................................................... 1 3 NORMAN SOLOMON C O B E R T U R A D A I M P R E N S A : U M A A B O R D A G E M P O R B A I X O .......... 2 3 REESE ERLICH A GUERRA DA IMPRENSA NORMAN SOLOMON .................................................................................................................. 3 5 V O Z E S D A S R U A S I R A Q U I A N A S .................................................................................. 5 1 REESE ERLICH P A S S A N D O P E L O 11 D E S E T E M B R O, T E R R O R I S M O E A R M A S D E D E S T R U I Ç Ã O E M M A S S A ..................................................................... 6 1 NORMAN SOLOMON U R Â N I O E N R I Q U E C I D O : O S E G R E D O S U J O D O S E U A ............................ 7 7 REESE ERLICH O U S O D E E U F E M I S M O S P A R A O T E R M O U N I L A T E R A L ...................... 8 9 NORMAN SOLOMON S A N Ç Õ E S ........................................................................................................................................... 1 0 9 RESSE ERLICH A C A M I N H O D A G U E R R A .................................................................................................. 1 2 1 NORMAN SOLOMON A Q U E S T Ã O D O P E T R Ó L E O .............................................................................................. 1 3 3 REESE ERLICH OS CADÁVERES DE FALUJA ACUSAM GEORGE BUSH J o s é A r b e x J r. O monstruoso ataque das tropas estadunidenses a Faluja, no Iraque, iniciado em 8 de novembro de 2004, foi a primeira grande demonstração do que o mundo pode esperar após a reeleição de George Bush ao cargo de presidente dos Estados Unidos. Conduzido à Casa Branca, no ano 2000, graças a um processo fraudulento, Bush interpretou sua vitória eleitoral, quatro anos depois, como um aval concedido pela opinião pública estadunidense aos ataques terroristas de suas tropas contra outros povos, em particular o iraquiano. Os cadáveres de Faluja, fortaleza da resistência iraquiana aos invasores, são os primeiros troféus da nova administração Bush. As grandes corporações da mídia estadunidense têm uma grande responsabilidade por isso, por uma simples razão: elas ocultam as dimensões reais do massacre, da N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H chacina, da crueldade que atinge, de preferência, crianças, mulheres, idosos, os cidadãos comuns, pacíficos e desarmados do Iraque. Certo: ficamos, eventualmente, sabendo que um soldado estadunidense dispara, a sangue frio e com covardia, contra um homem mortalmente ferido, desarmado e estendido indefeso no chão; sabemos também que mesquitas são profanadas e que iraquianos presos são torturados e humilhados por sorridentes oficiais de Tio Sam; aqui e ali escapam imagens de mães desesperadas, carregando no colo filhos pequenos esvaindo em sangue. Mas isso tudo, horrível como é, constitui apenas a ponta do iceberg, como indicam relatos de organizações humanitárias e de observadores independentes, incluindo a Cruz Vermelha, Anistia Internacional e vários outros. A julgar por esses testemunhos, amparados em fotos e documentos que circulam pela Internet, não é exagero afirmar que as tropas de Bush praticaram um genocídio de grandes proporções no Iraque e, particularmente, em Faluja. As corporações da mídia aprenderam a lição do Vietnã, e sabem que uma opinião pública bem informada dificilmente aceitaria a imposição de tais horrores a uma população inocente. Daí o pacto de cumplicidade com as Forças Armadas dos Estados Unidos, sintetizado pela figura do jornalista “embedded”, ou “acamado” em tradução livre do inglês. O jornalista embedded é aquele que aceitou se submeter a uma série de 50 normas estabelecidas pelo Pentágono, como condição para acompanhar as tropas. 8 A L V O : I R A Q U E As normas previam, entre outras coisas, que ele não poderia reportar nada que não fosse aprovado pelos chefes do regimento em que se encontra, o mesmo valendo para as transmissões de imagens. Tampouco poderia deslocar-se para áreas consideradas perigosas. Em resumo, não teria a menor independência, nem sequer para observar os fatos. Uma boa descrição do correspondente embedded foi feita pelo jornalista israelense Uri Avnery, durante a invasão do Iraque, em março de 2003: “Os médicos estão comprometidos pelo juramento de Hipócrates a salvar vidas na medida do possível. Os jornalistas estão forçados pela honra profissional a dizer a verdade, da maneira como a vêem. Nunca tantos jornalistas traíram tanto o seu dever como na cobertura. O pecado original deles foi aceitar o acordo de participar de unidades do exército. O termo estadunidense embedded soa como sendo posto a cama, e a isso corresponde na prática. Um jornalista que aceita a cama de uma unidade do exército se torna um escravo voluntário. É agregado aos subordinados, ao comandante, é levado para os lugares que interessam ao comandante, vê e escuta aquilo que o comandante deseja. É pior do que ser um porta-voz oficial do exército, por pretender ser um repórter independente. O problema não é que você só vê uma fração pequena do grande mosaico da guerra, mas sim transmitir uma visão falsa daquela pequena fração. Na guerra das Malvinas e na primeira do Golfo, foi vetado o acesso dos jornalistas às áreas de conflito. Parece que desta vez alguém brilhante no Pentágono teve uma idéia: “Para que afastá-los? Deixemos que entrem. Diremos o 9 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H que escrever e transmitir, e comerão em nossas mãos, como mascotes.” Desde os 19 anos, sou jornalista. Sempre tive orgulho de ser jornalista. Hoje, estou envergonhado, ao ver um grande grupo de jornalistas sentado diante de um general cheio de estrelas, escutando avidamente o que chamam de “informações”, sem formular nem a pergunta mais simples. E quando um repórter coloca alguma questão real, ninguém protesta quando o general responde com fórmulas de propaganda banais. Quase todos os relatos jornalísticos desta guerra formam um espelho deformado. Nele nós vemos um quadro manipulado, deformado e mentiroso”.1 A operação de falsificação das informações, como nota Avnery, é brilhante: aparentemente, concede-se ao jornalista total liberdade de presenciar os combates; seus movimentos são monitorados pelo Exército em nome de sua própria segurança, assim como a possibilidade de cobrir tal ou qual área é determinada unicamente por razões de estratégia militar. Oficialmente, portanto, não há censura, de forma alguma. Na prática, são aceitos apenas os correspondentes “bem comportados” que aceitam deitar-se na cama dos oficiais. Avnery observa, com amarga ironia: Júlio César, quando comandava suas tropas nos confins do império romano, integrava ao regimento prostitutas encarregadas de prestar serviço aos soldados; Bush integra correspondentes de guerra. Como diz Reese Erlich, co-autor do livro aqui apresentado: 1 Jornal Brasil de Fato no 6, de 13 a 19 de abril de 2003, p. 10. 10 A L V O : I R A Q U E “A maioria dos jornalistas enviados ao exterior já aceitou as condições do império. Eu não conheci sequer um correspondente internacional no Iraque que discordasse da idéia de que os Estados Unidos e a Inglaterra têm o direito de depor o governo iraquiano por meio da força. Eles discordavam apenas em relação ao momento, se a ação deveria ser unilateral e se uma ocupação de longo prazo seria o melhor a fazer”. Claro que não cabe a Bush o mérito de ter inventado a crueldade. Ele apenas prolonga, intensifica e aprofunda a tradição imperial dos Estados Unidos, sentida na pele pelos habitantes de Hiroshima e Nagasaqui, Vietnã, Laos e Cambodja – apenas para citar alguns exemplos de morticínios bem conhecidos, sem falar das ditaduras militares latino-americanas. Norman Solomon, o outro co-autor deste livro, lembra as responsabilidades do presidente Bill Clinton pela tragédia iraquiana. Clinton manteve a política de sanções econômicas e comerciais contra o Iraque, decretada por George Bush (pai), logo após o primeiro ataque a Bagdá, em 1991: “Os efeitos das sanções martelavam meu pensamento quando nossa delegação visitou, em Bagdá, o Hospital Pediátrico AlMansour, onde mães, sentadas em colchões finos, acompanhavam o sofrimento de seus filhos, vítimas de leucemia e câncer. Os jovens não estavam recebendo a quimioterapia adequada – resultado direto das sanções impostas pelos EUA. Ao andar pela ala do câncer, lembrei-me de uma resposta da então secretária de Estado, Madeleine Albright, durante uma entrevista no programa de TV ‘60 Minutes’ que foi ao ar em 6 11 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H de maio de 1996. Lesley Stahl, correspondente da CBS, afirmou: ‘Ouvimos dizer que meio milhão de crianças morreram’ e então perguntou: ‘É um preço que vale a pena pagar?’ Albright replicou: ‘Eu acho que é uma decisão muito difícil, mas o preço – acreditamos que vale a pena pagá-lo’.” Solomon e Erlich visitaram várias vezes o Iraque, nos meses que antecederam a invasão de 2003. Eles oferecem aqui um relato a um só tempo vívido e pungente daquilo que viram e ouviram quando soavam os tambores da guerra e a população se preparava para enfrentar mais um terrível pesadelo. O resultado é um livro doloroso, mas esclarecedor. É doloroso, por fazer enxergar as engrenagens implacáveis da máquina do império em movimento: como um pesadelo, o leitor revive, do ponto de vista dos iraquianos, as horas infinitamente longas que antecederam o ataque, ao mesmo tempo em que é chamado a refletir sobre as manobras falsificadoras da mídia; é esclarecedor, por recuperar a face profundamente humana das vítimas, constituir de corpo e alma aquilo que nos jornais aparece como números e estatísticas. Trata-se, infelizmente, de um livro atual e mais necessário do que nunca. Dezembro de 2004 12 A L V O : I R A Q U E IRAQUE NO PRECIPÍCIO Norman Solomon 13 de setembro de 2002. No Aeroporto Internacional de Saddam, um oficial iraquiano, com modos educados e firmes, confiscou meu telefone celular. Não foi uma grande surpresa. Eu acabara de entrar em um Estado totalitário, e as últimas experiências daquele país com a entrada de bombas guiadas por satélite haviam sido terríveis. Depois de tantos anos vivendo sob bloqueio, qualquer tecnologia relativa a satélites seria suspeita, especialmente nas mãos de um estadunidense. Não seria a última vez que o governo iraquiano agiria daquela maneira: com uma repressão estúpida e estranhamente justificável. Em menos de uma hora, nossa delegação se encontrava em frente do Hotel Al-Rashid. Equipes de televisão haviam ocupado a entrada. Era pouco mais de duas da manhã, e as luzes de suas câmeras banhavam o mosaico da entrada do hotel com uma estranha 13 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H luminescência. Na calçada, o congressista da delegação hesitou, preocupado com o que via na entrada. Nick Rahall, um democrata do Oeste da Virgínia, completando seu décimo terceiro turno na Câmara dos Deputados, estava bem longe de casa – ele era o primeiro membro do Congresso a pisar em solo iraquiano durante a presidência de George W. Bush. Rahall olhou as câmeras de TV e depois olhou novamente o mosaico de cores. Uma sinistra semelhança a um presidente anterior, George H. W. Bush, invadiu a entrada do hotel, junto a faixas que proclamavam em letras maiúsculas: “Bush é um criminoso”. Cuidadosamente, o congressista avançou pela lateral até o saguão do hotel, protegido de forma a evitar a inconveniência de ser fotografado. Com as tensões crescendo gradativamente, a propaganda do governo iraquiano parecia grosseira e fácil de ser esquecida. Por toda a capital, inúmeros retratos de Saddam Hussein vinham acompanhados de ridículas odes de adoração. Tudo era bastante precário. Mas, como se aproximava a guerra entre os Estados Unidos e o Iraque, muitos fatos cruciais dessa realidade poderiam ser facilmente ignorados, mal compreendidos ou mesmo evitados pelos estadunidenses. Depois do saguão, em um corredor nos fundos do primeiro andar do hotel, perto do bar de bebidas não alcoólicas, os convidados poderiam ganhar tempo nos vários computadores de uma pequena loja, administrada por um jovem bastante determinado e com uma limitada porém suficiente noção da língua inglesa, além de 14 A L V O : I R A Q U E um evidente desejo de servir. Dia após dia, ele ajudou a mim e a outros estrangeiros a utilizar sua rede de computadores e a navegar na Internet. Seu trabalho, sem dúvida, incluía o monitoramento de usuários para o governo; porém, sua honestidade era óbvia, e ele possuía uma espécie de estupidez que não poderia ser fingimento. Já no quarto dia, sentia-se confortável o suficiente para me contar sobre a igreja protestante que freqüentava aos domingos, e falar de sua fé em Jesus, o “Príncipe da Paz”. No mesmo dia, conversei com um repórter de um jornal britânico que havia se hospedado no Al-Rashid em 1991, durante a Guerra do Golfo, quando freqüentes ataques a bomba (do seu governo e do meu) causaram grandes estragos. Eu me surpreendi ao ouvir que, mesmo naquela situação, os iraquianos que ele conheceu não lhe foram hostis; de alguma forma, aquela sua cultura parecia evitar o ódio que deles se esperava. Tentei imaginar a situação inversa: se a força aérea do Iraque estivesse bombardeando cidades estadunidenses, os visitantes iraquianos com certeza seriam recebidos com fúria e ódio. À noite, nossa delegação foi a um restaurante ao ar livre às margens do rio Tigre. Uma brisa fresca soprava da água escura; mesas à luz de velas espalhavam-se ao longo da margem. Era uma noite adorável, com casais e grupos de amigos se divertindo enquanto o Sol dava lugar à noite sob a luz da Lua. O outono chegara. Em breve, aquele lugar idílico, um rio que era o berço da civilização, iria se tornar uma zona de guerra. Tariq Aziz nos recebeu em seu escritório. O vice-primeiro-ministro parecia um velho durão em sua farda. 15 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H Um clima pesado de pessimismo preencheu a sala. Aziz apresentou sua interpretação do que Washington havia meticulosamente reservado para o Iraque: “A destruição virá se cedermos ou se não cedermos”. A data era 14 de setembro de 2002. No escritório de Aziz estavam membros da delegação trazidos pelo Institute for Public Accuracy – o congressista Rahall, junto a James Abourezk, ex-senador dos EUA, James Jennings, presidente da Consciência Internacional e eu. Os estadunidenses se revezavam ao afirmar que a dinâmica fatal das últimas semanas poderia ser mudada se – como um primeiro passo – o Iraque concordasse em permitir inspeções irrestritas. Era difícil argumentar com Aziz quando ele dizia em um inglês formal: “Se os inspetores voltarem, não há garantia de que evitem a guerra. Eles podem ser usados, aliás, como um pretexto para se provocar uma nova crise”. Aziz não acreditava que as inspeções de armas fossem um meio de protelar o ataque, sugerindo que seria necessária uma fórmula compreensível para qualquer solução em longo prazo, presumidamente incluindo uma garantia de não-agressão da parte dos EUA e o fim das sanções econômicas. Dois dias depois, o Iraque mudou oficialmente a sua posição e anunciou a disposição de permitir que os inspetores de armas das Nações Unidas voltassem ao país. Avaliando as chances de se evitar a guerra, o governo de Bagdá adotou uma longa estratégia – ainda que muito arriscada, seria melhor do que nada. Vários anos antes, Washington havia usado inspetores da Unscom (Comição Especial das Nações Unidas) para propósitos de espio16 A L V O : I R A Q U E nagem, o que não tinha relação alguma com a missão autorizada das Nações Unidas. No final de 2002, novos grupos de inspeção no Iraque poderiam fornecer dados valiosos aos Estados Unidos, aumentando a probabilidade de um ataque militar subseqüente. “Agora somos um país que enfrenta a ameaça de uma guerra”, disse-nos Saadoun Hammadi, porta-voz da Assembléia Nacional do Iraque. “Temos de nos preparar para isso.” Homem grisalho e de aparência frágil, Hammadi estava melancólico: “O governo dos EUA agora está falando de guerra. Nós não daremos a outra face. Iremos lutar. Não apenas as nossas Forças Armadas irão lutar. O nosso povo irá lutar”. Enquanto essas palavras tornavam o ar mais pesado, aquele senhor magro fez uma pausa, e depois acrescentou: “Eu mesmo irei lutar”. Naquele momento, pensei ter visto a luz de seus olhos se apagar, como brasas consumidas pelo fogo. Os oficiais que conhecemos em Bagdá eram homens inteligentes, dotados de um discurso coerente. Mesmo assim, serviam ao regime de Saddam Hussein, sujeitando os cidadãos iraquianos a uma repressão severa. Sob a sua ditadura, na ausência total de um debate aberto, a sociedade civil não poderia de fato existir. Enquanto isso, fotos de Hussein em diversas poses – cerimoniais, pouco formais ou bastante pessoais, às vezes mesmo dando uma boa risada – apareciam diariamente nas primeiras páginas dos jornais do Iraque, apresentando-o como um cuidadoso guardião do povo, ainda que cruel. Seu comportamento era ao mesmo tempo caricato e atroz, farsesco e trágico. 17 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H Um paradoxo grotesco se desenrolava. Meu país, os Estados Unidos da América, um lugar de muitas liberdades democráticas, preparava-se para atacar, sem motivos, uma nação que se encontrava presa entre a tirania de seu líder e o governo dos EUA. A possibilidade de uma solução pacífica parecia terrivelmente remota; a dimensão do sofrimento por vir era difícil de ser apreendida. O céu sobre Bagdá parecia um prenúncio de novos horrores, incompreensíveis ainda que evitáveis. Ao contemplar a capital do Iraque, pensei em algo que Albert Camus certa vez escrevera: “E, de agora em diante, a única direção honrosa será arriscar tudo em uma grande aposta: palavras são mais poderosas que munições”. Do décimo segundo andar do Hotel Al-Rashid, a vista era parecida com o espetáculo de qualquer grande metrópole. Carros em constante movimento por largas avenidas, e o horizonte repleto de grandes edifícios que invadiam bairros residenciais. Não havia nada fora do comum – com exceção de que, se tudo corresse como planejado, o dinheiro que eu pago em impostos dentro em breve ajudaria a transformar grande parte desta cidade em um inferno. Com a chegada do outono, um importante artigo do New York Times citou a ansiedade do mais alto escalão do governo em esboçar um plano de guerra: “Oficiais disseram que qualquer ataque teria início com uma extensa campanha aérea conduzida por bombardeiros B-2, armados com mais de 900 quilos de bombas guiadas por satélite, para nocautear o comando iraquiano, 18 A L V O : I R A Q U E os postos de controle e a defesa aérea”. Esse tipo de linguagem vulgar facilita o entendimento. A questão da distância, que parece tornar menos grave a situação do Iraque, e as medidas do governo facilitaram para que Washington não fosse perturbada por causa das ruinosas sanções ao Iraque, durante os doze anos anteriores. Os efeitos das sanções martelavam meu pensamento quando nossa delegação visitou, em Bagdá, o Hospital Pediátrico Al-Mansour, onde mães, sentadas em colchões finos, acompanhavam o sofrimento de seus filhos, vítimas de leucemia e câncer. Os jovens não estavam recebendo a quimioterapia adequada – resultado direto das sanções impostas pelos EUA. Ao andar pela ala do câncer, lembrei-me de uma resposta da então secretária de Estado, Madeleine Albright, durante uma entrevista no programa de TV “60 Minutes” que foi ao ar em 6 de maio de 1996. Lesley Stahl, correspondente da CBS, afirmou: “Ouvimos dizer que meio milhão de crianças morreram” e então perguntou: “É um preço que vale a pena pagar?” Albright replicou: “Eu acho que é uma decisão muito difícil, mas o preço – acreditamos que vale a pena pagá-lo”. As conseqüências das sanções se mantinham. O Departamento de Estado dos EUA continuava a vetar alguns carregamentos cruciais de suprimentos médicos básicos ao Iraque, incluindo itens como centrífugas especiais para tratamento de sangue, refrigeradores de plasma e bombas de fusão. Após três visitas ao Sul do Iraque (mais recentemente em setembro de 2002), a Dra. Eva-Maria Hobiger, oncologista no Lainz Hospital, em 19 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H Viena, disse em um inglês imperfeito e sincero: “Com a ajuda dessas máquinas, a vida de muitas crianças doentes pode ser salva. Deve ser considerado crime quando crianças inocentes que estão sofrendo são o alvo da política”. Gostaria de levar todos os políticos de Washington para ver uma garota de 7 anos que sofria de leucemia, a quem fizemos uma visita no hospital. Talvez eles pudessem parar alguns instantes para assistir ao sangramento incontrolável de seus lábios, e à angústia nos olhos temerosos de sua mãe. Em outubro de 2002, uma resolução circulou pela Assembléia e pelo Senado para autorizar um intenso ataque do exército dos EUA contra o Iraque. Eu quase podia ouvir a voz áspera e profética do senador Wayne Morse gritando, em 1964, o ano em que ele votou contra a Resolução do Golfo de Tonkin: “Não sei porque pensamos, só por sermos poderosos, que temos o direito de tentar substituir o poder em nome do direito”. Mesmo com os anos de sanção e as mortes que causaram, os mais altos oficiais de Washington – tomando uma decisão muito difícil em relação à guerra – ainda consideraram que valia a pena pagar o preço com vidas humanas. Com a cobertura da imprensa dominada por discursos geopolíticos e análises estratégicas, a dimensão moral da guerra perdeu referência. Eu duvido que algum estadunidense se sentiria confortável em uma visita ao Hospital Pediátrico Al-Mansour. Só posso imaginar, horrorizado, estar naquele hospital com mísseis explodindo mais uma vez em Bagdá. 20 A L V O : I R A Q U E No final de 2002, era muito mais fácil aderir ao discurso oficial sobre “uma extensa campanha aérea conduzida por bombardeiros B-2, armados com 900 quilos de bombas guiadas por satélite”. 21 COBERTURA DA IMPRENSA: UMA ABORDAGEM POR BAIXO Reese Erlich Os repórteres fazem amizade de modo bastante rápido no Iraque. Divide-se uma série de experiências – desde telecomunicações de má qualidade a oficiais iraquianos desconfiados e editores irritados. Bert e eu então aproveitamos. Bert é o pseudônimo que escolhi para um repórter que trabalha para um dos principais veículos britânicos. Não estou usando seu nome verdadeiro pois não quero arrumar-lhe confusão. Os repórteres dizem coisas entre si que jamais diriam em público. Então convido o leitor a um bar metafórico onde, depois de algumas cervejas, os repórteres falam de tudo. Bert e eu dividimos um táxi para um passeio por Bagdá. Passamos pelas modernas avenidas da cidade, que remetem à época de bonança do país, antes das sanções. Comentei que Saddam Hussein estava reconstruindo os quartéis do partido Baath, que haviam sido destruídos por um míssil estadunidense. N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H “Ele tem muito dinheiro para isso”, percebi naturalmente. “Você se daria bem com os meus editores”, disse Bert jovialmente, com um sotaque entre Oxford e o Sul de Londres. “Eles adoram ouvir sobre a corrupção no Iraque e a má distribuição de recursos.” Bert é politicamente moderado e forte crítico do governo de Hussein, mas se sente pressionado por seus editores, muito mais conservadores que ele. “Sempre que eu proponho histórias mostrando o impacto das sanções nos cidadãos iraquianos”, disse ele, “os editores chamam de notícia fria.” Mas eles nunca se cansam de retrabalhar histórias antigas de corrupção e repressão no Iraque. Bert internalizou as preferências de seus editores e geralmente escreve matérias que sabe que irão gostar. A alternativa é escrever matérias que nunca serão publicadas ou que ficarão escondidas nas últimas páginas do jornal. O problema vai além de disputas entre repórteres e editores. A maioria dos jornalistas enviados ao exterior já aceitou as condições do império. Eu não conheci sequer um correspondente internacional no Iraque que discordasse da idéia de que os EUA e a Inglaterra têm o direito de depor o governo iraquiano por meio da força. Eles discordavam apenas em relação ao momento, se a ação deveria ser unilateral e se uma ocupação de longo prazo seria o melhor a fazer. A maioria das pessoas no mundo, e grande parte da imprensa fora dos EUA e da Inglaterra, ainda acredita em soberania nacional, a noção sagrada e fora de 24 A L V O : I R A Q U E moda da Carta de Direitos das Nações Unidas. Nenhum país tem o direito de depor um governo estrangeiro ou de ocupar uma nação, mesmo que esta seja terrivelmente repressora com seus próprios cidadãos. Se os EUA podem depor Hussein, o que impede a Rússia de ocupar a Geórgia ou outra das ex-repúblicas soviéticas e instalar regimes mais convenientes? As possibilidades são infinitas. Apesar dos vários discursos e dos documentos publicados, a administração Bush nunca conseguiu demonstrar de forma convincente que o Iraque apresenta uma ameaça imediata para seus vizinhos. Diferente de 1991, quando o Iraque ocupou o Kuwait, nenhum país vizinho afirmou temer uma invasão do Iraque. Os EUA nunca decidiriam atacar o Iraque antes de uma Assembléia Geral das Nações Unidas, pois seriam certamente derrotados. O país prefere negociações por baixo dos panos no Conselho de Segurança. Quando eu levanto a questão da soberania em conversas casuais com meus colegas de profissão, eles me olham como se eu tivesse vindo de Marte. Claro que os EUA têm o direito de depor Saddam Hussein, dizem eles, pois ele possui armas de destruição em massa e pode ser uma futura ameaça a outros países. A suposição implícita é de que os Estados Unidos – por serem a única superpotência no mundo – têm o direito de tomar tal decisão. Os EUA têm de lidar com a responsabilidade de depor ditaduras inimigas e instalar ditaduras amigáveis. A única questão é se sanções ou invasões são a maneira mais eficiente de fazê-lo. 25 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H Os governos de Bush e Blair [Tony Blair, primeiroministro inglês] lutam em 2 frentes de batalha: uma contra o Iraque, outra pela opinião pública em seus países. A grande imprensa é um campo de batalha como as fortificações em Bagdá. E, em sua maioria, Bush e Blair têm apoio dos soldados da imprensa que montam barricadas em seus países. Os EUA deveriam ter a melhor e mais livre imprensa do mundo, mas, pela minha experiência, tendo feito matéria em diversos países, percebo que, quanto mais alto se sobe na hierarquia jornalística, menos liberdade tem o repórter. O típico aspirante a correspondente internacional forma-se na universidade e começa a trabalhar em um jornal local ou em uma estação de rádio ou TV. O dinheiro é pouco e as horas são longas. (Repórteres de jornais de pequenas cidades podem receber, no início um salário menor que 18 mil dólares por ano.) Mas, talvez depois de 2 anos, eles sobem alguns degraus em direção a empresas maiores. Após cerca de 5 anos, alguns dos repórteres mais dedicados e mais talentosos conseguem emprego nos jornais diários das grandes cidades ou nas principais emissoras de rádio ou de televisão. Uns poucos começam a fazer trabalhos freelance [trabalho avulso, sem vínculo empregatício, por conta própria] no exterior e então se juntam à grande imprensa, mas são uma minoria. Os primeiros anos são de trabalho de campo. Mesmo os melhores cursos de jornalismo dão ao aluno apenas um esboço do que é a verdadeira reportagem. Eu sei. 26 A L V O : I R A Q U E Eu dei aula em faculdades de jornalismo por 10 anos. A universidade nunca ensina a encontrar fontes em uma notícia recente, ou como confirmar uma matéria de fora da redação quando os celulares não funcionam, ou como escrever uma história de 800 palavras em 30 minutos. A melhor educação que um jornalista pode receber é na prática. Além das habilidades jornalísticas, os jovens repórteres também aprendem sobre os parâmetros aceitáveis da reportagem. Há pouca censura formal na imprensa dos EUA. Mas se aprende quais são as fontes aceitáveis e quais as inaceitáveis. A maioria dos cargos oficiais e políticos é aceitável e, quanto mais alto seu cargo, melhor. Antes do colapso de Enron, por exemplo, CEO Ken Lay (sic) poderia ser citado como um especialista em assuntos relativos a energia e a economia – mas agora conhecemos sua visão tendenciosa dos fatos. Muitas outras fontes são consideradas além do aceitável e, então, são ignoradas ou ridicularizadas. Nacionalistas negros, marxistas ou advogados sindicais progressistas de questões trabalhistas entram nessa categoria. O mesmo se aplica aos conservadores fora da política tradicional de Washington, como muçulmanos conservadores e certos intelectuais de direita. No Iraque, eu vi tudo isso em primeira mão. Tomemos o Voices in the Wilderness como exemplo, um grupo pacifista com sede em Chicago. Alguns de seus líderes participaram de uma vigília no deserto iraquiano no momento exato em que os Estados Unidos começaram o bombardeio na Guerra do Golfo, em 1991. Voices in 27 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H the Wilderness levou centenas de estadunidenses ao Iraque, incluindo 3 congressistas em setembro de 2002. É responsável por projetos de ajuda comunitária em Bagdá e estabeleceu importantes contatos com Organizações Não Governamentais (ONGs). Pode-se concordar ou discordar da visão do Voices in the Wilderness. Eu discordo de sua abordagem pacifista, por exemplo. Porém, como jornalistas, devemos reconhecê-los como uma organização legítima, parte de um crescente movimento antiguerra, que mobilizou centenas de milhares de pessoas na Inglaterra e nos Estados Unidos em setembro e outubro de 2002. Mas não é este o tratamento que recebem da maior parte da grande imprensa. Ramzi Kysia, um dos organizadores do Voices in the Wilderness que morou em Bagdá, parou certo dia na central de imprensa para deixar um press release [comunicado, texto preparado para a imprensa]. Ele convidou correspondentes internacionais para cobrirem a visita de um professor estadunidense, que era contra a guerra, a uma escola iraquiana. Eu estava lá quando Kysia entregou o press release a uma equipe de televisão. Assim que ele se foi, a equipe nem se preocupou em lê-lo até o final antes de declarar que aquilo era propaganda. Eles não consideravam o Voices uma fonte legítima e, portanto, o grupo poderia ser ignorado. De fato, algumas semanas depois, quando o Voices organizou uma marcha contra a guerra em Bagdá, John Burns, do New York Times, falou do evento em tom de 28 A L V O : I R A Q U E sátira. Ele ressaltou de maneira depreciativa que Saddam Hussein proíbe todas as manifestações, com exceção daquelas contra os Estados Unidos (New York Times, 27/ 10/02). Enquanto Saddam certamente censura opiniões de oposição, os protestos de estadunidenses em Bagdá contra as políticas dos Estados Unidos são merecedores de divulgação direta. Não posso conceber um tom tão ridículo permeando a matéria do New York Times se dissidentes iraquianos marchassem em Washington em apoio às políticas dos EUA. O Wall Street Journal (4/11/02) tratou o Voices muito mais objetivamente, mas em contexto humorístico num artigo sobre 2 ocidentais malucos que visitam o Iraque como turistas. Em 1990, levei um grupo de alunos para visitar o San Francisco Chronicle. Eu fazia trabalhos freelances para o Chronicle desde 1989. E propus a seguinte pauta hipotética ao então editor do Serviço Internacional do Chronicle, David Hipschman: “E se eu quisesse publicar uma matéria sobre a amante de Saddam Hussein?” “Eu pediria 2 fontes que sustentassem a afirmação”, respondeu ele calmamente. Então, perguntei: “E se eu tivesse a mesma história dizendo que o presidente Bush tem uma amante?” Ele riu: “Então eu pediria fotos de ambos na cama.” Qualquer repórter mais experiente sabe que os editores podem exigir níveis de evidências com pouca substância ou impossíveis de serem alcançados. Se um repórter erra na citação de alguém ou faz uso de uma informação errada ao produzir um artigo crítico sobre Saddam 29 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H Hussein, os editores não levantam grandes objeções. Porém, se um artigo que critica a política dos EUA contém os mesmos erros, abrem-se as portas do inferno. No mínimo, alguém do Departamento de Estado ou do Pentágono liga para reclamar. Grupos conservadores da imprensa e apresentadores de talk show [programa de entrevistas] nas rádios também farão pressão. Raymond Booner, um repórter do New York Times que escreveu artigos precisos criticando a política estadunidense em El Salvador, foi retirado daquele país na década de 1980, justamente quando se fazia tal campanha conservadora. Quando os repórteres estão prontos para se tornarem correspondentes internacionais – um processo que pode levar 10 anos ou mais – eles entendem as regras do jogo. Tornar-se um correspondente internacional é um bom negócio. É interessante e desafiador. Viaja-se freqüentemente e se conhecem líderes internacionais. Você pode ver o seu crédito na primeira página do jornal. O trabalho gera reconhecimento. E existe a questão do dinheiro. Eu fiz uma pesquisa informal sobre os salários dos correspondentes internacionais nos países que visitei. (Lembre-se: repórteres dizem coisas uns aos outros que não diriam em público.) Salários de repórteres que conheci, que trabalham período integral na rádio ou em publicações impressas da grande imprensa, chegam de 90 a 125 mil dólares por ano. Esse valor não considera os correspondentes televisivos, que podem ganhar o dobro disso ou mais. Um repórter do New York Times em uma sucursal na África disse-me em uma noite de cerveja, que ser cor30 A L V O : I R A Q U E respondente internacional é um grande passo na carreira no Times. Depois de alguns anos na África, ele planejava mudar para um país de maior prestígio antes de trabalhar a sua promoção às mesas da editoria em Nova York. Os repórteres do Times são grandes conhecedores dos acordos internacionais, mas, se for para ganhar um Prêmio Pulitzer, devem fazer matéria em um país de maior importância. No momento, Iraque e Oriente Médio se encaixam no perfil. Dinheiro, prestígio, opções de carreira, predileções ideológicas – combinados à desilusão de não poder publicar uma história que desagrade o governo –, tudo isso influencia os correspondentes internacionais. Não se ganha um Pulitzer desafiando os princípios básicos do império. Oficiais do Iraque perceberam que não teriam uma cobertura justa de muitos dos correspondentes internacionais. Então, o que fizeram? Responderam com um dos comportamentos menos sofisticados e mais incompetentes de que eu já tive conhecimento. O processo tem início ao se solicitar um visto de jornalista no Iraque. Um telefonema à Iraqi Interest Section no final de 2002 revelou que obter um visto de jornalista pode levar 2 meses ou mais. Então, tentei contatar diversos altos oficiais em Bagdá, amigos de amigos jornalistas. Não deu certo. Os iraquianos são muito desconfiados de repórteres que eles não conhecem, e muito mais de quem escreve histórias que não lhes agradam. Nem pense em se infiltrar com um visto de turista como muitos correspondentes fazem em alguns países 31 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H repressores. (Conversa hipotética com um guarda de fronteira: sempre quis visitar a Babilônia. E, falando nisso, existe artilharia de defesa posicionada do lado de lá?) Por sorte, aprendi com a delegação do meu co-autor ao Iraque e coloquei o meu nome na lista dos repórteres que acompanhavam o congressista. Recebemos nossos vistos em 10 dias. Tecnicamente, os vistos só serviam para acompanhar a delegação, mas então percebi que poderíamos ficar mais tempo em Bagdá. Todos os repórteres tinham guias governamentais, popularmente chamados de inspetores. Eles ajudavam a agendar entrevistas e serviam como intérpretes. Eles também se certificavam de que você não fosse a determinados lugares ou falasse com determinadas pessoas. Para mostrar o nível de paranóia do Iraque, até mesmo ONGs como a Voices in the Wilderness possuíam inspetores. Eu criei uma boa relação com o meu inspetor; ele era ótimo para contornar a frustrante burocracia iraquiana e fazer as entrevistas acontecerem. Eu não estava tentando visitar lugares polêmicos. Mas nos foi recusada, entretanto, a permissão para visitar a Cidade de Saddan City, a parte mais pobre de Bagdá. No final de outubro, depois que aconteceram manifestações espontâneas exigindo informações sobre o paradeiro de prisioneiros políticos iraquianos, o governo ficou muito aborrecido com a cobertura da imprensa. Expulsou correspondentes internacionais da CNN e fez saber aos outros repórteres que seus vistos estariam limitados a 10 dias de permanência. Mas no final do ano, 32 A L V O : I R A Q U E o governo permitiu que os jornalistas ficassem por mais tempo para cobrir a inspeção de armas. Tais ações obviamente intimidaram os repórteres, que pensavam: será que o conteúdo da minha matéria determinará minha expulsão do país, ou a proibição de voltar? O governo iraquiano usa várias formas de intimidação, o que resulta na autocensura de alguns repórteres. É um método clássico usado pelos que estão no poder para intimidar repórteres. Se um presidente dos EUA não gosta de certa cobertura, o governo pode impedir que o repórter ofensor consiga entrevistas exclusivas, ou pode não retornar telefonemas. Correspondentes internacionais podem ser forçados a sair do país. Repórteres logo aprendem a se autocensurar, ou então estão fora da jogada. As políticas de imprensa dos EUA e do Iraque têm muito mais em comum do que seus respectivos líderes poderiam admitir. 33 A GUERRA DA IMPRENSA Norman Solomon Por muitas décadas, Helen Thomas cobriu a Casa Branca como repórter pela United Press International (UPI). Sua coluna passou a ser publicada em diversos veículos no começo do século 21 – e quando o espectro da guerra cresceu, em 2002, ela não se omitiu. “As bombas lançadas no Iraque também vão atingir os nossos direitos civis se Bush e seus parceiros se mantiverem nessa direção”, disse Thomas no início de novembro durante um discurso no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachucetts). Analisando sua carreira, falou: “Eu me censurei durante 50 anos quando eu era repórter”. Ainda que se queira que os jornalistas deixem suas opiniões pessoais fora da matéria, esperamos ter acesso a todos os fatos relevantes. Raramente é o caso. Muitas informações fundamentais são filtradas. O processo geralmente é sutil em uma sociedade com liberdades democráticas e pouca censura declarada. “Cães de circo N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H pulam quando seus treinadores estalam o chicote”, registrou George Orwell mais de meio século atrás, “mas o cão realmente bem treinado é aquele que consegue dar o salto mortal mesmo quando não há chicote”. Não há chicotes visíveis nas modernas salas de imprensa e nos estúdios de rádio e TV dos EUA. Editores, repórteres, produtores ou correspondentes não estão encoleirados. Mas, na grande imprensa, poucos jornalistas conseguem trilhar outros caminhos. “Na verdade, a força desse processo de controle reside justamente em sua ausência aparente”, observou o crítico de mídia Herbert Schiller. “O resultado sistêmico desejado é comumente alcançado por um processo institucional brando, porém efetivo”. Schiller continuou: “a educação de jornalistas e outros profissionais da mídia, moldados em um sistema de penalidades e recompensas por fazerem o que deles é esperado, com normas apresentadas como regras objetivas, e a ocasional mas definitiva intrusão que vem de cima. A alavanca principal é a internalização de valores”. O conformismo se torna habitual. Entre os resultados está uma dinâmica que Orwell descreveu como o reflexo condicionado de “uma parada brusca, como que por instinto, no momento em que surge um pensamento perigoso... e de se sentir desmotivado ou repelir qualquer linha de raciocínio que seja capaz de conduzir a uma direção herege”. Em contraste com a censura estatal, que geralmente é fácil de se reconhecer, a autocensura entre os jornalistas raramente é assumida. Jornalistas tendem a evitar falar em público sobre obstáculos que limitam seu 36 A L V O : I R A Q U E trabalho; eles praticamente fazem a autocensura da autocensura. No ambiente altamente competitivo da imprensa, não é necessário ser um cientista em ascensão, ou mesmo um cientista social, para saber que a discórdia não alavanca carreiras. Isso é verdade principalmente em tempos de guerra. As recompensas de cooperar para progredir são claras, assim como o risco de não suprir as expectativas. Verdades ocasionais de jornalistas de renome podem ser esclarecedoras. Oito meses depois do 11 de setembro, em uma entrevista com a rede de televisão BBC, Dan Rather disse que os jornalistas estadunidenses estavam intimidados devido aos ataques. Fazendo o que ele chamou de “comparação obscena”, o âncora da rede de notícias CBS considerou: “Houve um tempo na África do Sul em que se colocavam pneus em chamas ao redor do pescoço de dissidentes. E, de certa forma, o medo é que o pescoço seja o seu, que você tenha ao redor dele um pneu em chamas pela sua falta de patriotismo. Agora é esse medo que impede que os jornalistas façam a mais dura das perguntas”. Logo completou: “Eu não me isento dessa crítica. O que estamos falando aqui – ainda que se queira reconhecê-lo ou não, ou chamá-lo pelo próprio nome ou não – é de uma forma de autocensura. Eu temo que essa obsessão patriótica passe por cima dos valores que o país procura defender”. No dia 8 de novembro de 2002, o mesmo dia em que o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou sua principal resolução sobre o Iraque, o programa “All Things 37 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H Considered” da National Public Radio, levou ao ar uma matéria do experiente correspondente Tom Gjelten. “Uma guerra contra o Iraque começaria com uma campanha aérea, e os recursos para a fase de ação já estão definitivamente estruturados”, afirmou. O tom garantia: “Oficiais de defesa estão confiantes de que o programa das Nações Unidas não vai atrapalhar os seus planos. Por uma causa, eles continuam com as preparações de guerra. Um experiente oficial do exército disse: Quando a situação exigir, temos de estar prontos para botar para quebrar.” “Prontos para botar para quebrar”. Era uma frase notável para um oficial do alto escalão do Pentágono usar para se referir a ações que certamente matariam um grande número de pessoas. Não se respondeu com nenhuma crítica ao comentário; nenhuma das centenas de palavras dos repórteres ofereceu uma perspectiva contrária à linguagem eufemística que distanciou os ouvintes das catástrofes humanas da guerra de fato. Esse tipo de reportagem é seguro. São mínimas as chances de irritar fontes do governo, executivos da imprensa, donos de redes de comunicação, publicitários ou – no caso de “emissoras públicas” – grandes financiadores. Enquanto a National Public Radio está mais para “Rádio Nacional do Pentágono”, as reclamações dos ouvintes parecem pouco importar àqueles no comando. Isso não deveria ser surpresa. O presidente e CEO da National Public Radio, Kevin Klose, já foi diretor da International Broadcasting Bureau, a agência governamental estadunidense responsável pelo Voice of America, Radio Free Europe, Radio Liberty e Radio and Television Martí. 38 A L V O : I R A Q U E Quem planeja a guerra e quem a consuma sempre confiou nas enormes lacunas entre as horrendas realidades da guerra e suas respectivas coberturas pela imprensa profissional. Mesmo quando a carnificina chegou ao seu apogeu no Vietnã, mais tarde escreveu o correspondente freelance Michael Herr, a imprensa dos EUA “nunca encontrou uma maneira significativa de escrever sobre morte, do que certamente se tratava tudo aquilo. Os mais repulsivos e evidentes caminhos para a santidade nesse meio de mortes receberam um tratamento especial nos jornais e no ar”. Quando surge a possibilidade da guerra, e principalmente depois que ela começa, uma aflição maior ocupa a maioria dos veículos estadunidenses. O espetáculo da mídia torna-se mais do que a mera regurgitação dos fatos. A dieta da mídia é recheada de exageros moralistas. Âncoras, generais, oficiais de Washington, repórteres e especialistas preenchem as telas de TV com análises de táticas e estratégias. Os gráficos simulados por computador forçam os limites técnicos de dissimulação, enquanto o Pentágono testa a sua última tecnologia de guerra. Transmissões ao vivo via satélite parecem ter feito da guerra algo imediato, com espectadores sendo encorajados a admirar os mísseis atingindo Bagdá, como se fosse uma exibição de fogos de artifício. Os principais mecanismos para amenizar a situação são geralmente tidos como os mais esclarecedores. A televisão promete levar a guerra para dentro de nossas casas, mas mesmo quando o sangue escorre e as agonias se prolongam em 39 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H lugares distantes, a cobertura funciona para nos tornar mais emocionalmente obtusos do que nunca. Não somos apenas anestesiados; também podemos ser convencidos de que nosso conhecimento está se tornando mais preciso. Com a guerra, a televisão acentua os mitos de inter-relação, ainda que ela nos retire a verdadeira relação com os demais. “O que vemos”, pergunta o analista de mídia Mark Crispin Miller, “quando nos sentamos na sala e assistimos à guerra? Vivenciamos um evento real? Na verdade, essa ‘experiência’ é fundamentalmente absurda. Mais do que óbvia, há a incongruência da escala, a disjunção radical das locações. Enquanto uma guerra é uma das maiores coisas que podem acontecer a uma nação ou a um povo, devastando famílias, destruindo telhados e paredes, nós a vemos comprimida e miniaturizada em um imponente objeto que reluz bem no centro de nossos lares. E a TV contém guerras em formatos sutis. Enquanto ela nos confronta com histórias de morte, privação, mutilação, ela imediatamente cancela a memória daquele sofrimento, substituindo suas próprias imagens de desespero por um comercial – alegre e infinitamente iluminado”. Pretensões à parte, as redes de comunicação são fábricas de ilusão: “O repórter de TV nos conforta como John Wayne confortou nossos avós, parecendo deter toda a realidade nas mãos. ... Como ninguém parece viver na televisão, ninguém parece morrer nela. E a existência temporária do noticiário retira o peso de todos os momentos terminais”. 40 A L V O : I R A Q U E Os principais veículos de imprensa oferecem, sim, algum jornalismo de qualidade. Mas as desunidas ilhas da imprensa independente estão perdidas em um oceano de confiança nos relatórios de fontes oficiais. Como qualquer executivo de publicidade sabe, a essência da propaganda é a repetição. A menos que estejam repercutindo na câmara de eco da imprensa nacional, histórias e perspectivas particulares geralmente têm pouco efeito. Em teoria, qualquer pessoa nos Estados Unidos tem liberdade para falar o que pensa. Liberdade para ser escutado já é outra questão. Fontes de informação e a diversidade efetiva de pontos de vista deveriam alcançar o público de forma constante, mas não alcançam. Enquanto isso, todos os tipos de pronunciamentos oficiais de Washington ocupam os noticiários que raramente se submetem a um questionamento direto. A enorme distância entre liberdade de expressão e direito de ser escutado é uma explicação parcial de por que a crença fervorosa na benevolência mundial do “Tio Sam” continua tão disseminada entre os estadunidenses. Superestimada pelas vozes dominantes da comunicação de massa, a atual opinião pública que surge do discurso do Pentágono rapidamente se dissemina e se cristaliza. As grandes empresas de notícias estão saturadas de consciência corporativa. Já estamos tão acostumados aos efeitos que não costumamos refletir sobre eles. Enquanto assumimos que a cobertura reflete o julgamento de jornalistas profissionais, esses jornalistas estão envolvidos 41 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H com uma indústria de mídia dominada por corporações, com poder financeiro suficiente para redefinir o significado do profissionalismo funcional. Nunca podemos nos esquecer de que a guerra é um grande – muito grande negócio. William Hartung, experiente pesquisador no World Policy Institute, sediado em Manhattan, apontou no final de 2002 que “a estratégia de governo de Bush de guerra de prevenção no Iraque é o plano de um pequeno círculo conservador de grupos lobistas de tanques e armas, como o Project for a New American Century (PNAC), cujos membros têm forçado essa aproximação por mais de uma década”. Hartung acrescenta: Na corrida para a eleição presidencial de 2000, o PNAC publicou o relatório “Rebuilding America’s Defenses”, que serviu como base para a estratégia militar de Bush/ Rumsfeld no Pentágono, incluindo a criação de termos como “mudança de regime”. O documento de fundação do PNAC – um apelo unilateral ao retorno das políticas do início da época Reagan de “paz por meio da força” – foi assinado por Paul Wolfowitz, Dick Cheney, Donald Rumsfeld e muitos outros que se tornariam jogadores oficiais no time da segurança nacional de Bush. Assim como a Coalition for the Liberation of Iraqi, um grupo recém-formado por antigos e atuais membros de Washington e programado para promover a política administrativa de Bush no Iraque, o PNAC demonstrou o seu apoio com uma forte rede de ideologias conservadoras, fundações de direita e grandes empreiteiros de defesa. Bruce P. Jackson, um ex-vice-presidente da Lockheed 42 A L V O : I R A Q U E Martin, que é membro e fundador signatário do relatório da missão do PNAC, atua como presidente da Coalition for the Liberation of Iraqi. Ao adotar a estratégia promovida por essa rede de conservadores, a administração Bush conseguiu mais de 150 bilhões de dólares para gastos militares e subsídios à exportação de armas desde 11 de setembro de 2001, sendo que a maioria vai para as maiores produtoras de armas como Boeing, Lockheed Martin e Northrop Grumman. Tais interesses em comum por negócios militares são forças poderosas na indústria da mídia impulsionada por diretrizes corporativas a fim de maximizar os lucros. O problema principal da imprensa estadunidense é profundamente estrutural. As ondas de rádio e televisão supostamente pertencem ao público, mas são as grandes companhias que as controlam. Grande parte das empresas de comunicação de massa – como emissoras de rádio, TV a cabo, jornais, revistas, livros, filmes, a indústria da música e, num crescente, a Internet – são dominadas por grandes entidades corporativas. Cada vez mais, as “emissoras públicas” são também submetidas ao grande capital. Junto à comissão politicamente apontada da instituição sem fins lucrativos Corporation for Public Broadcasting, doadores corporativos exercem pesada influência em programas por meio do financiamento de programas específicos. E quando a guerra está nos planos de Washington, a cobertura da imprensa distorce os fatos ao máximo. Quando o governo dos Estados Unidos usou de forma imprópria os inspetores de armamentos das Nações 43 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H Unidas no Iraque para fins de espionagem, os principais fatos foram ampla e rapidamente retratados pela imprensa estadunidense no começo de 1999 – mas, durante os meses que se seguiram, os fatos fundamentais sobre a espionagem e os sérios danos que ela causou não foram muito publicados. Em 2002, as omissões e as distorções da imprensa sobre o assunto já eram lugar-comum. Muito da cobertura estava em sincronia com as mentiras repetidas pelos principais oficiais dos EUA, como o secretário de Defesa Donald Rumsfeld, que passou a insistir que Saddam Hussein havia expulsado os inspetores de armas das Nações Unidas quatro anos antes. Em uma coletiva de imprensa no Pentágono, em 3 de setembro de 2002, com a falta de consideração típica para com os assuntos inconvenientes, Rumsfeld disse: “Foram os iraquianos que acabaram com as inspeções, isso todos sabemos. Protestamos quando os iraquianos expulsaram os inspetores... Teria sido bom se eles não os tivessem expulsado? Sim, teria sido melhor”. Ambos os partidos repetiam essa mentira. Apenas um dos muitos exemplos: quando o senador democrata John Kerry, de Massachusetts, apareceu no Hardball da rede MSNBC, em meados de 2002, e afirmou categoricamente que Saddam Hussein “expulsou os inspetores” em 1998. O Iraque não expulsou os inspetores. O diretor da Unscom Richard Butler os retirou em dezembro de 1998 – pouco antes de um bombardeio dos EUA batizado de “Operação Raposa do Deserto”. Com novas inspeções sendo procedidas no final de 2002, a especialista em armas biológicas Susan Wright 44 A L V O : I R A Q U E levantou algo que não poderia ser compreendido no contexto criado pela cobertura evasiva da imprensa: “Se os iraquianos perceberem que a organização de inspeção das Nações Unidas está mais uma vez sendo usada para fins de espionagem, as inspeções colocam o Iraque em uma situação contraditória. Se o Iraque concordar, sabe que suas defesas serão minuciosamente examinadas. Se resistir, sua resistência pode ser usada como um gatilho para que o governo dos Estados Unidos dispare a guerra”. Mesmo quando jornalistas estadunidenses mencionaram a espionagem que ocorrera da última vez que os inspetores das Nações Unidas estiveram no Iraque, os fatos foram amenizados ou eufemizados. Buscando “uma cooperação legítima entre os inspetores e as agências de inteligência nacionais”, Bill Keller, do New York Times, escreveu um editorial no dia 16 de novembro de 2002 que, rápida e cautelosamente, tocou em registros históricos de espionagem dos EUA: “A operação anterior de inspeção da Unscom provavelmente ultrapassou os limites ao ajudar os EUA a acessarem informações, ainda que dando algum crédito aos apelos anti-EUA de Saddam”. Mais freqüentemente em 2002, ao se referir à espionagem, os noticiários transformavam os fatos em meras alegações. No New York Times do dia 3 de agosto, Barbara Crossette escreveu que a equipe da Unscom foi dissolvida “depois que o Sr. Hussein acusou a antiga comissão de ser uma operação estadunidense de espionagem e se recusou a discutir o assunto”. No dia 18 de 45 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H novembro, no programa “All Things Considered”, da emissora NPR, a correspondente Vicky O’Hara disse: “O último esforço dos inspetores de armas das Nações Unidas no Iraque teve seu fim em meio a acusações de Bagdá de que os inspetores estavam espionando para os Estados Unidos”. No dia seguinte, o Los Angeles Times publicou que, 4 anos antes, “Bagdá acusou a presença de espiões na equipe, e os Estados Unidos reclamaram dizendo que o Iraque estava usando a acusação como uma desculpa para obstruir o trabalho de inspeção”. Uma simples frase em uma matéria de John Diamond, no USA Today, publicada em 8 de agosto de 2002, foi duplamente manipuladora: “O Iraque expulsou os inspetores de armamentos das Nações Unidas quatro anos atrás e os acusou de serem espiões”. Enquanto a segunda parte da frase é extremamente dissimulada, a primeira parte é completamente falsa. Meses depois, o USA Today ainda se recusava a publicar uma retratação ou correção. Os principais veículos de notícias continuaram a repetir a mentira como um fato. Alguns exemplos: CBS Evening News, 9 de novembro de 2002: “Mas enquanto os inspetores de armas das Nações Unidas se preparam para voltar ao Iraque pela primeira vez desde que Saddam os expulsou em 1998, os EUA enfrentam uma delicada ação compensatória: transformar o consenso internacional a favor do desarmamento em um consenso a favor da guerra”. Washington Times, 14 de novembro de 2002: “O Iraque expulsou os inspetores das Nações Unidas quatro anos atrás”. 46 A L V O : I R A Q U E - Bob Woodward, no Washington Post, 17 de novembro de 2002: “O discurso criticou firmemente as Nações Unidas por não impor a inspeção de armas ao Iraque, especificamente durante os 4 últimos anos, desde que Saddam os expulsou”. Nenhum produto precisa de uma propaganda mais eficiente do que a do desperdício de uma enorme quantidade de recursos enquanto se massacra um grande número de pessoas. A onda de eufemismo sobre a guerra nos Estados Unidos começou muitas décadas atrás. Não é novidade que o governo federal não possui mais um departamento ou um plano orçamentário para a “guerra”. Agora, tudo é chamado de “defesa”, uma palavra com uma forte carga inerente de justificativa. O efeito sutil de mudar essa nomenclatura pode ser medido pelo fato de que mesmo quem se opõe aos irresponsáveis gastos militares constantemente se refere a eles como gastos de defesa. Desde a década de 1980, o cruzamento entre duas avenidas, Pennsylvania e Madison, aumentou a capacidade da imprensa de higienizar gradativamente a destruição em massa conhecida como guerra. A primeira administração de Bush promoveu as técnicas de relações públicas para as ações militares dos EUA ao “escolher nomes para as operações que eram pensados de maneira a moldar as percepções políticas”, como chama a atenção o lingüista Geoff Nunberg. A invasão ao Panamá, em dezembro de 1989, seguiu com o nome de “Operação Justa Causa”, sucesso imediato na imprensa. 47 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H “Um bom número de âncoras adotou a frase justa causa, o que incentivou os governos de Bush e Clinton a continuarem usando nomes tão tendenciosos.” Como aponta Nunberg, “é tudo questão de nomenclatura. E não é coincidência que nomes com esse ‘novo estilo’ foram introduzidos praticamente ao mesmo tempo em que os programas de televisão a cabo começaram a caracterizar sua cobertura das principais histórias com chamadas apelativas e logotipos”. O Pentágono passou a fornecer imagens como as de videogames dos ataques com mísseis estadunidenses, ao mesmo tempo em que exibia slogans escritos com letras garrafais nas telas da televisão. Desde a Guerra do Golfo, no início de 1991, políticos têm comumente se referido àquele paroxismo de morte violenta como “Operação Tempestade no Deserto” – ou, mais comumente, apenas “Tempestade no Deserto”. Para um ouvinte leigo, soa como um ato da natureza, ou talvez um ato de Deus. De qualquer maneira, de acordo com o vago espírito evocado pelo nome de “Tempestade no Deserto”, homens como Dick Cheney, Norman Schwarzkopf e Collin Powell podem muito bem ter dado uma força nas ocorrências divinamente naturais: fortes ventos e uma chuva de mais de 900 toneladas de bombas laser guiadas por satélite caindo dos céus. Como comentou o chefe de relações públicas do Exército, major-general Charles McClain, logo após o término da Guerra do Golfo: “O sucesso da aceitação de uma operação pode ser tão importante quanto o sucesso de sua execução”. 48 A L V O : I R A Q U E Em outubro de 2001, enquanto lançavam mísseis no Afeganistão, o time de Bush surgiu com o nome “Operação Justiça Infinita”, rapidamente mudado depois de perceberem que era ofensivo aos muçulmanos, devido à sua crença de que somente Alá pode oferecer justiça infinita. O substituto, “Liberdade Duradoura”, foi bem recebido pela grande imprensa estadunidense, uma zona livre de ironia em que o único inconveniente poderia sugerir que as pessoas não teriam outra opção senão a duradoura liberdade do Pentágono de lançar suas bombas. Ao planejar as ações militares dos EUA, os operadores da Casa Branca pensam como executivos de marketing. Foi um deslize significativo quando, em 2002, o chefe de gabinete do governo Bush, Andrew Card, disse ao New York Times: “De um ponto de vista publicitário, não se introduz novos produtos em agosto”. Não por coincidência, as justificativas da guerra por vir no Iraque não surgiram antes de setembro. Os líderes da mídia na Casa Branca sem dúvida gastaram energia considerável examinado as opções de como batizar o ataque tão esperado ao Iraque. E, mesmo quando a maioria dos estadunidenses soubesse o novo nome da missão, jamais saberíamos os nomes dos iraquianos mortos em nossos nomes. 49 VOZES DAS RUAS IRAQUIANAS Reese Erlich Cai a noite na poeirenta estrada de pista dupla no Leste do Iraque, quando o motorista do táxi comenta que sua família mora em uma cidadezinha próxima. Quando pergunto se ele se importaria que um visitante estadunidense conhecesse sua família, o motorista pisa nos freios e faz a volta com o carro. “Por que não?”, diz ele com um sorriso. Depois de dirigir por cerca de 30 minutos, o táxi derrapa e pára em frente de uma casa em um distrito de classe operária. A vila de pequenas casas abriga sua grande família de 20 pessoas: operários, motoristas de caminhão e um comerciante. E então começa uma das mais francas e honestas entrevistas que um repórter conseguiu no Iraque de Saddam Hussein. Os repórteres normalmente são acompanhados o tempo todo por um inspetor do governo, N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H sendo que sua simples presença pode inibir certas conversas. Mesmo sem inspetores, os iraquianos são cautelosos com discussões políticas quando há estranhos por perto. Um dos irmãos é fluente em inglês. É ele quem fala a maior parte do tempo e traduz a conversa para os outros membros da família. “Se houver guerra, ficaremos em casa”, disse francamente. “Aprendemos com a última guerra que ir para abrigos ou para o interior do país não adianta.” Durante a Guerra do Golfo Pérsico, em 1991, os EUA bombardearam o abrigo Ameriyah, em Bagdá, matando centenas de pessoas. Os EUA mais tarde afirmaram que o refúgio era um posto de comando e centro de controle do Exército de Hussein. Hoje, qualquer um pode visitar o local, transformado em museu, para ver provas de que os mortos eram civis. De maneira semelhante, os EUA bombardearam pontes em distantes áreas rurais, o que também resultou em baixas civis. Não é difícil entender por que tantos iraquianos chegaram à conclusão de que é melhor ficar em casa do que ir para abrigos ou para a casa dos parentes no interior. Enquanto, em público, praticamente todos os iraquianos manifestam seu apoio a Saddam Hussein, os membros desta família, como muitos iraquianos, enfatizaram reservadamente o seu desgosto pelo governo. “Saddam não trouxe nada além da guerra”, disse um dos membros da família, “mas também não queremos que os Estados Unidos invadam nosso país”. 52 A L V O : I R A Q U E Todo iraquiano entrevistado manifestou um sentimento parecido. Ódio a Saddam Hussein não significa que o povo queira a ocupação do Iraque pelos EUA. “Nós nos preocupamos com a fragmentação do país”, disse outro da família. “Quase aconteceu em 1991. Nosso amigo aqui é curdo e ele não pode nem visitar os seus parentes.” O amigo, um homem de cerca de 30 anos, de origem curda, explica que sua família vive no Norte do Iraque, agora controlado por grupos curdos sob proteção estadunidense. Ele desistiu de visitar os parentes devido às dificuldades criadas pelas autoridades curdas e iraquianas na fronteira estabelecida pelos EUA após a Guerra do Golfo. O medo de uma nação fragmentada é uma preocupação válida. Muitos iraquianos temem que, se os Estados Unidos invadirem, o país se dividirá em um Norte de controle curdo e um Sul controlado por muçulmanos Shia. Mesmo se não houver uma divisão formal, dizem eles, as diferenças étnicas e religiosas são uma ameaça de fragmentação do país, como aconteceu com o Afeganistão. O plano de Bush para uma “mudança de regime” também é uma questão que preocupa. Os iraquianos temem pensar em quem irá governar o Iraque pósHussein. “Nunca ouvimos falar da maioria desses líderes exilados”, diz o irmão, referindo-se aos líderes do Congresso Nacional do Iraque, citados pelos EUA como líderes em potencial de um governo pós-Hussein. “E o rei?”, continuou ele, referindo-se à possibilidade de os EUA trazerem de volta um parente do rei Faisal II, 53 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H deposto em 1958 durante a luta do país contra o colonialismo britânico. “Quem hoje em dia se lembra do rei ou sabe alguma coisa sobre monarquia? Quem os EUA irão nomear para governar o país – e como esse novo líder o fará?” Alguns ocidentais estão promovendo o retorno de um monarca ao Iraque, assim como os EUA promoveram Zahir Shah durante a guerra no Afeganistão. O rei, de 88 anos, foi largamente saudado por ser uma alternativa respeitosa e popular ao Talebã. Apenas mais tarde o povo estadunidense descobriria que Zahir Shah mal conseguia falar e não possuía base política dentro do Afeganistão. Hoje ele permanece protegido em seu palácio em Kabul, sem papel significativo no país. O governo Bush sabe que não será fácil substituir Saddam Hussein. Por meio de sua rígida ditadura, Hussein conseguiu manter o Iraque unido. Esta é uma das razões pelas quais os EUA e a Inglaterra apoiaram o ditador durante a década de 1980. Como a invasão do Afeganistão pelos EUA nos mostra, entretanto, é muito mais fácil depor um velho regime do que estabelecer um novo governo que funcione, sem se preocupar com o regime democrático. Talvez seja por isso que o governo considerou a possibilidade de instalar um general militar estadunidense para governar o Iraque até que líderes locais possam ser investigados e indicados. Com razão, o povo iraquiano não consegue entender por que um ditador militar dos EUA é melhor que um ditador local. 54 A L V O : I R A Q U E Ao final dessa improvisada entrevista em grupo, o patriarca da família diz: “Estamos cansados da guerra. Não queremos outra com os EUA, nem com mais ninguém”. Todos os iraquianos entrevistados disseram estar cansados da guerra, mas alguns estavam dispostos a lutar. Enquanto a maior parte de Bagdá apresenta edifícios de concreto construídos a partir da década de 1960, no centro velho da cidade existem ainda casas antigas e lojas de madeira. O café Al Zahawi parece ter saído de um filme da década de 1930. Alguns homens, estão sentados em bancos de madeiras, fumando cachimbos cheios com um tabaco perfumado. Outros jogam dominó em mesas rusticamente construídas. Há apenas homens aqui. Ibrahim Jaleel, clérigo de 40 anos, tem uma perspectiva diferente quanto às recentes guerras no Iraque. Jaleel diz que os iraquianos estão acostumados à guerra – e não sentirão medo se outra vier. Jaleel diz que resistirá à invasão dos EUA. “Até a última gota de nosso sangue iremos lutar e matar qualquer estrangeiro que tente ocupar esta terra”, diz ele. “De acordo com os ensinamentos islâmicos, devemos defender três coisas: nosso país, nossa honra e nossas propriedades. Defendê-las é o nosso martírio.” Ao dizer isso, Jaleel ecoa o discurso do governo de que iraquianos irão lutar com todas as suas forças para combater a invasão dos EUA. Para alguns, esta é a expressão de um sentimento sincero; muitos outros vão permanecer passivos. 55 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H O centro de Bagdá é um lugar barulhento e cheio de areia. Os motoristas tocam suas buzinas pelo menor problema no trânsito; finas camadas de areia cobrem as fachadas. A pequena loja de Fadhil Hider é um refúgio da desarmonia. Ele vende canetas, rosários e uma infinidade de bugigangas. Aos 61 anos de idade, Hider viveu a era do neocolonialismo britânico, quando a monarquia governava o Iraque. Na verdade, ele tem um pôster do rei Faisal II bastante visível no fundo de sua loja. Indagado se tal mostra evidente de simpatia com o velho regime teria lhe causado problemas políticos, ele dá de ombros e diz “Não”. Indagado se a família real possui algum apoio popular no Iraque hoje em dia, ele dá de ombros e diz “Não” mais uma vez. Hider não critica Saddam Hussein, mas também não elogia o líder. De forma impressionante, Hider não diz coisa alguma sobre resistir à invasão estadunidense. Ele expressa a desesperança sentida por muitos iraquianos. “O que podemos fazer? Eu vou fechar a minha loja. E muitos outros farão o mesmo. E iremos esperar pelo que vai acontecer depois. É uma guerra entre dois Estados. Um possui uma tecnologia altamente sofisticada. O outro, não.” Hider expressa um verdadeiro horror à idéia de uma invasão por parte dos EUA, e diz que “líderes estrangeiros não deveriam dizer ao povo iraquiano o que fazer”. “Se o povo iraquiano quer mudanças, as mudanças têm de ser trazidas pelo próprio povo, não de fora. Se há algum problema com o governo, ele tem de ser 56 A L V O : I R A Q U E mudado pelo próprio povo – não por Bush ou Blair ou Chirac.” A Universidade de Bagdá é um complexo de prédios sombrios de cimento cinza, ao que parece inspirados na grandiosidade arquitetônica de um prédio de apartamentos de Moscou. Os alunos têm aula em salas mobiliadas com simples e duras cadeiras de madeira, sem ar-condicionado para combater os inúmeros dias do extremo calor do deserto. Enfileirados do lado de fora da sala do professor, esperando por explicações sobre as aulas, alguns estudantes estavam ávidos para falar com um repórter estadunidense. De forma quase contemplativa, alguns deles reproduziram o esperado de iraquianos leais. Suas afirmações pareceriam absurdas em qualquer situação. “Nós gostamos do nosso presidente Saddam Hussein e temos orgulho dele”, diz Reem Al Baikuty, aluna do quarto ano do curso de inglês. “Temos orgulho de tudo o que ele faz e de tudo o que ele fala.” Ela então defende sua onipresença com pôsteres, pinturas, murais e estátuas de Saddam Hussein – um culto à personalidade que constrangeria Joseph Stalin. Outros estudantes são menos entusiastas, entretanto. Enquanto ninguém critica Hussein abertamente, alguns alunos indicam com balançar de ombros e confirmam com a cabeça que Hussein é criticado. Uma aluna da graduação, que pediu para não ter o nome citado, viveu nos Estados Unidos por 10 anos. Ela afirmou que realmente gostava do povo e do sistema de 57 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H governo dos EUA, mas então voltou ao Iraque com sua família e teve de viver a Guerra do Golfo Pérsico. “Quando vemos televisão, dizemos que o povo [estadunidense] tem de tudo. Eles possuem ótimas escolas, ótima educação, ótimo padrão de vida. Por que então atormentar um povo que está apenas começando no mundo? Eu vou ter um filho em abril e penso: “Esse bebê chegará mesmo? Em que mundo ele irá viver?” Essa universitária, que ainda tem amigos nos Estados Unidos, diz que ela e seu marido terão de fazer uma terrível escolha se as tropas estadunidenses invadirem Bagdá. “Meu marido e eu estávamos falando sobre isso outro dia”, disse ela. “Se um estadunidense vier à minha porta, ele disse ‘Eu o matarei’. Eu não sei o que faria.” Saad Hasani é o professor que esses alunos vieram ver. Ele estudou na Universidade de Leeds, na Inglaterra, e ensina teatro inglês moderno na Universidade de Bagdá. De certa maneira, ele é um homem de 2 mundos – com um pé na Europa ocidental e outro no Iraque. O professor Hasani afirma reservadamente que alguns iraquianos com influências ocidentais podem apoiar a deposição do presidente Hussein pelos EUA, mas que a maioria dos iraquianos se opõe a ela de fato. Ele cita um antigo ditado árabe: “Eu e meu irmão contra meu primo, mas eu, meu irmão e meu primo contra um estrangeiro”. Sempre é difícil para um repórter saber se as pessoas estão realmente falando o que sentem. Este repórter visitou o Afeganistão em janeiro de 2002 e entrevistou 58 A L V O : I R A Q U E dezenas de pessoas escolhidas ao acaso. Praticamente todas elas disseram que odiavam o regime Talebã e saudavam o exército estadunidense. Mesmo pessoas que haviam sido feridas ou que possuíam parentes mortos por bombas dos EUA expressavam tal sentimento. Se eu tivesse entrevistado essas mesmas pessoas seis meses antes, muitas teriam elogiado o Talebã e denunciado os EUA. Às vezes as pessoas dizem o que elas pensam que você quer ouvir – e o que é politicamente seguro. Os estadunidenses não deveriam se surpreender por tais atitudes. Imagine o que você faria se um repórter aparecesse em seu trabalho e pedisse uma opinião verdadeira do seu chefe e dos seus colegas. Mesmo que ele te prometesse completo anonimato, você ainda poderia ficar um pouco circunspecto. Você acharia que há muita coisa em jogo. Se um novo chefe estiver por vir, você pode se sentir mais à vontade para criticar o chefe antigo, mas ainda terá cuidado ao falar sobre o novo. Afegãos e iraquianos não são diferentes; mas não é apenas o seu trabalho que está em jogo. Depois da invasão e ocupação do Iraque, repórteres estadunidenses certamente irão encontrar pessoas com críticas ao regime de Saddam Hussein. Alguns iraquianos irão elogiar o exército estadunidense. Estarão falando a verdade? O que você diria sobre o seu novo chefe? 59 P A S S A N D O P E L O 11 D E S E T E M B R O, TERRORISMO E ARMAS DE DESTRUIÇÃO EM MASSA Norman Solomon “Aqueles a quem o mal é feito fazem o mal de volta” (W. H. Auden) Em meados de 2002, um pouco antes de o Congresso votar a autorização da guerra dos EUA contra o Iraque, uma pesquisa da CBS News constatou que 51% dos estadunidenses acreditavam que Saddam Hussein estava envolvido nos ataques de 11 de setembro de 2001. Logo depois, o Pew Research Center reportou que dois terços da população estadunidense concordava que “Saddam Hussein auxiliou os terroristas nos ataques de 11 de setembro”. Nesse meio tempo, um correspondente em Washington da Inter Press Service publicou que “As agências de espionagem dos EUA são unânimes em afirmar que as evidências que ligam Bagdá aos ataques de 11 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H de setembro, ou quaisquer ataques a alvos ocidentais desde 1993, simplesmente não existem”. Não havia base factual para assertivas de uma ligação do Iraque com essas recentes manifestações terroristas. Mas as pesquisas podem explicar como a Casa Branca foi capaz de conseguir apoio para transformar o Iraque em um alvo. A administração Bush nunca hesitou em explorar as ansiedades da opinião pública que surgiram com os eventos traumáticos de 11 de setembro de 2001. Testemunhando em Capitol Hill, exatamente 53 semanas mais tarde, Donald Rumsfeld não perdeu o jogo de cintura quando um membro do Comitê de Serviços Armados do Senado questionou a necessidade de os EUA atacarem o Iraque. Senador Mark Dayton: “O que nos move agora a tomar uma decisão precipitada e a agir precipitadamente?” Secretário de Defesa Rumsfeld: “O que nos move? O que nos move é que 3 mil pessoas foram mortas.” Como uma questão prática, era quase óbvio que alegações ligando Bagdá aos ataques de 11 de setembro careciam de evidências. Supostamente houve um encontro em Praga entre o seqüestrador de 11 de setembro, Mohammed Atta, e um oficial da inteligência do Iraque, mas depois de muitas reportagens nos principais veículos dos EUA, a declaração foi desmentida (com a ajuda do presidente tcheco, Vaclav Havel). Outra tentativa surgiu quando Rumsfeld acusou Saddam Hussein de dar abrigo a agentes da Al Qaeda. Como afirmou o jornal britânico Guardian, “eles realmente viajaram ao Curdistão iraquiano, o que é algo fora de seu controle”. 62 A L V O : I R A Q U E No entanto, tais mentiras geralmente ganham cada vez mais força. Como disse uma vez Mark Twain, “Uma mentira pode percorrer meio mundo antes que a verdade consiga ao menos calçar as botas”. Ex-analista da CIA, Kenneth Pollack teve uma enorme exposição na imprensa no final de 2002 com seu livro The Threatening Storm: The Case for Invading Iraq. A divulgação do livro de Pollack mais pareceu uma divulgação da guerra. Durante uma aparição típica com o âncora Wolf Blitzer, da CNN, que por 2 vezes usou a frase “um livro novo e importante”, Pollack explicou porque ele via a “invasão maciça” do Iraque como algo desejado e prático: “A diferença real foi a mudança em 11 de setembro. A idéia de que o pós-11 de setembro – que o povo estadunidense agora estaria disposto a fazer sacrifícios para prevenir que ameaças externas se consumem no interior do país – tornou possível pensar em uma grande força de invasão”. Correspondente no Oriente Médio, Robert Fisk estava no Independent de Londres quando, logo após a resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas em novembro de 2002, escreveu: “O Iraque não tem absolutamente nada a ver com o 11 de setembro. Se os Estados Unidos invadirem o Iraque, teremos de nos lembrar disso”. Em muitos níveis psicológicos, o time de Bush era capaz de manipular as emoções pós11 de setembro muito além da sombra do envolvimento iraquiano naquele crime contra a humanidade. As mudanças dramáticas no clima político depois de 11 de setembro incluíram um drástico 63 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H reforço nessa atitude – fervorosamente abastecida pelos gostos de Rumsfeld, Dick Cheney e do presidente – de que nosso Exército deveria atacar inimigos em potencial antes que eles “pudessem” nos atacar. Alguns políticos e especialistas desejavam confrontar a realidade de que esta seria uma fórmula para uma guerra perpétua, e para o surgimento de um grande número de novos adversários, que veriam como lógica recíproca a adoção de crença. O conselheiro de segurança nacional do Presidente Bush “sentiu que o governo não tinha muitas opções com Hussein”, relatou o repórter Bob Woodward em meados de novembro de 2002. Uma frase de Condoleezza Rice resumiu a situação: “Cuide logo das ameaças.” Determinar exatamente o que constitui uma ameaça – e como “cuidar” dela – seria uma tarefa para se resolver na Oval Office (Salão Oval). Certamente, a imprensa respondeu ao 11 de setembro com horror, aversão e condenação total. O desejo terrorista de destruir e matar era perverso. Ao mesmo tempo, o desejo do Pentágono de destruir e matar tornou-se mais e mais autojustificável nos últimos meses de 2002. Enquanto repórteres e especialistas repetiam as afirmações oficiais de Washington, a idéia de uma nova guerra no Iraque parecia mais aceitável. Havia uma escassa preocupação quanto aos civis iraquianos, cujos últimos momentos, antes de serem atacados por mísseis, se assemelhariam àqueles dos que padeceram nos ataques ao World Trade Center (WTC) e ao Pentágono. 64 A L V O : I R A Q U E “Os maiores triunfos da propaganda foram alcançados, não por se fazer algo, mas por evitá-lo”, observou há muito tempo Aldous Huxley. “Grande é a verdade, porém maior, de um ponto de vista prático, é o silêncio sobre a verdade.” Apesar do tumulto da imprensa sobre o 11 de setembro, um silêncio – rigorosamente seletivo – rondou a cobertura da grande imprensa. Para os homens da política em Washington, a utilidade prática desse silêncio é imensurável. Em resposta aos assassinatos em massa cometidos por seqüestradores, a ação moralista do Exército dos EUA permanece clara – contanto que os interesses permaneçam sem questionamento. Na manhã de 11 de setembro de 2001, enquanto equipes de resgate combatiam a densa fumaça e os destroços, o analista da ABC News, Vincent Cannistraro, ajudava a colocar os eventos descobertos em perspectiva para milhões de espectadores. Cannistraro é um exoficial do alto escalão da Central Intelligence Agency (CIA). Ele estava no comando dos trabalhos da CIA com os “contras” na Nicarágua no início da década de 1980. Depois de se mudar para o Conselho de Segurança Nacional, em 1984, tornou-se supervisor de ajuda secreta às guerrilhas afegãs. Em outras palavras, Cannistraro tem uma longa história de ajuda a terroristas – primeiro, aos “contras”, que rotineiramente mataram civis nicaragüenses; depois, aos rebeldes mujahedeen no Afeganistão, tais como Osama bin Laden. Como pode uma associação terrorista de longa data, apoiada pelo Estado, agora denunciar o terrorismo? É fácil. Tudo o que é necessário é que a cobertura da 65 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H imprensa faça uma abordagem, como de costume, não histórica, para não se utilizar de fatos inconvenientes. Em seu livro 1984, George Orwell descreve a dinâmica mental: “O processo tem de ser consciente, ou ele não será dotado de precisão suficiente; mas também deve ser inconsciente, senão ele terá uma sensação de falsidade e uma carga de culpa... Dizer mentiras deliberadas enquanto se acredita nelas piamente, esquecer qualquer fato que tenha se tornado inconveniente e, depois, quando se torna novamente necessário, trazê-lo de volta pelo tempo que for preciso, negar a existência de uma realidade objetiva e, por todo o tempo, dar-se conta da realidade que alguém nega – tudo isso é indispensavelmente necessário”. O secretário de Estado Collin Powell denunciou “aqueles que acham que, com a destruição de prédios, com o assassinato de pessoas podem de alguma maneira alcançar um objetivo político”. Powell descrevia os seqüestradores que haviam atingido seu país horas antes. Sem querer, também estava descrevendo vários dos principais oficiais em Washington. Certamente, políticos estadunidenses acreditaram que poderiam “alcançar objetivos políticos” com a “destruição de prédios, com o assassinato de pessoas”, quando optaram por lançar mísseis em Bagdá em 1991, ou em Belgrado em 1999. Mas é raro o questionamento da mídia estadunidense quanto às matanças perpetradas pelo governo dos EUA. Apenas algumas crueldades merecem destaque. Apenas algumas vítimas merecem empatia. Apenas certos crimes contra a humanidade merecem nossas lágrimas. 66 A L V O : I R A Q U E As mudanças de significado dependem geralmente de uma única palavra. No mundo das relações públicas, sucesso ou fracasso podem depender das respostas do povo a certos jogos de palavras. Desde os ataques de 11 de setembro, nenhuma palavra de efeito tem encontrado mais uso do que “terrorismo”. Durante os 2 primeiros dias de outubro de 2001, a página na Internet da CNN apresentava um pequeno e estranho anúncio. “Tem havido falsas acusações de que a CNN não usou a palavra ‘terrorista’ para se referir àqueles que atacaram o World Trade Center e o Pentágono”, dizia a notícia. “Na verdade, a CNN tem constante e repetidamente se referido aos atacantes e seqüestradores como terroristas, e continuará fazendo isso.” O repúdio da CNN era preciso – e reafirmado por padrões convencionais da imprensa. Mas ele contorna uma questão básica: exatamente, o que é terrorismo? Para os jornalistas tradicionais deste país, esta é uma não-questão sobre um não-assunto. Mais do que nunca, a própria função da marca terrorista parece óbvia. “Um grupo de pessoas se apoderou de companhias aéreas e as usou como mísseis guiados contra milhares de pessoas”, disse o executivo da NBC News, Bill Wheatley. “Se isso não cabe na definição de terrorismo, o que cabe?” Verdade. Ao mesmo tempo, é notável que os veículos de imprensa estadunidenses consideram grupos de terroristas usando os mesmo critérios que o governo dos EUA. Os editores geralmente declaram que os repórteres não precisam de nenhuma diretiva formal – o uso 67 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H apropriado é simplesmente compreendido. Por outro lado, a agência mundial de notícias Reuters assumiu a uma abordagem diferente durante décadas. “Como parte de uma política para evitar o uso de palavras emotivas”, diz a agência de notícias, “não usamos termos como ‘terrorista’ e ‘defensor da liberdade’ a menos que eles sejam uma menção direta ou sejam atribuíveis a terceiros. Nós não caracterizamos os sujeitos das notícias, mas retratamos suas ações, sua identidade e seu passado para que os leitores possam tomar suas próprias decisões baseadas nos fatos.” A Reuters cobre 60 países. A denominação de terrorista é uma constante em muitos deles. Por trás dos panos, muitos governos tentaram pressionar a Reuters para uma mudança na cobertura usando a palavra terrorista para falar de seus inimigos. Do ponto de vista dos líderes do governo de Ankara, de Jerusalém ou de Moscou, os noticiários deveriam denominar de “terroristas” seus violentos inimigos. Já para os curdos, palestinos ou tchetchênios, os noticiários deveriam denominar os líderes violentos de Ankara, de Jerusalém ou de Moscou como “terroristas” também. Em outubro de 1998, o intelectual e ativista Eqbal Ahmed fez algumas recomendações aos Estados Unidos. A primeira delas: “Evite extremismos. ... Não condene o terror israelense, o terror paquistanês, o terror nicaragüense, o terror salvadorenho, por um lado, e depois reclame do terror afegão ou do terror palestino. Não funciona. Tente ser razoável. Uma superpotência não pode promover o terror em um lugar e racionalmente 68 A L V O : I R A Q U E esperar desencorajar o terrorismo em outro. Não é assim que funciona neste mundo interligado”. Se os repórteres estadunidenses difundissem sua definição de terrorismo para incluir toda a violência cometida contra civis para com vistas a objetivos políticos, encontrariam forte oposição em diversos níveis. Durante os anos de 1980, se houvesse uma política bem definida para o terrorismo, a imprensa teria denominado as guerrilhas dos “contra” da Nicarágua – além dos governos salvadorenho e guatemalteco – como terroristas apoiados pelos EUA. No léxico político dos EUA, terrorismo – como usado para descrever, por exemplo, a morte de israelenses – não pode ser usado para descrever a morte de palestinos. Porém, em uma reportagem de outubro de 2002, o grupo israelense de direitos humanos B’Tselem documentou que 80% dos palestinos assassinados pela Força de Defesa Israelense durante a coerção do toque de recolher eram crianças. Doze pessoas com menos de dezesseis anos foram mortas, outras dezenas feridas por tiros israelenses em áreas ocupadas, durante um período de 4 meses. “Nenhum desses mortos oferecia perigo à vida dos soldados”, informa o B’Tselem. O professor de política George Monbiot ajudou a estabelecer o contexto para o procedimento moral da Casa Branca contra o Iraque, em uma coluna de agosto de 2002, no Guardian, quando ele avaliou “a perspectiva de George Bush em declarar guerra a outra nação porque aquela nação havia desafiado lei internacional”. 69 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H Monbiot apontou: “Desde que Bush subiu ao poder, o governo dos Estados Unidos quebrou mais alianças internacionais e ignorou mais tratados das Nações Unidas que todo o resto do mundo em 20 anos. Ele eliminou os tratados de armas biológicas ao experimentar, ilegalmente, suas próprias armas biológicas. Recusou a permissão de acesso total a inspetores de armas químicas a seus laboratórios, e sabotou tentativas de inspeções químicas no Iraque. Cancelou o acordo de mísseis antibalísticos, e parece estar pronto para violar o tratado de proibição aos testes nucleares. Permitiu que grupos da CIA recomeçassem operações secretas do tipo que incluiu, no passado, o assassinato de chefes de Estado estrangeiros. Sabotou o acordo de armas de pequeno porte, questionou a corte criminal internacional, recusou-se a assinar o protocolo de mudança climática e, mês passado, procurou imobilizar o tratado das Nações Unidas contra tortura”. Nenhuma dubiedade foi empregada mais deliberadamente no Oriente Médio que a política dos EUA relativa a “armas de destruição em massa”. De acordo com Washington e a maioria dos noticiários estadunidenses, os políticos dos EUA sempre desfrutaram de uma base moral inquestionável em confronto com o ditador do Iraque. Uma parte da imprensa diária britânica tem sido compreensivelmente mais cética. “Cientistas respeitáveis de ambos os lados do Atlântico avisaram ontem que os EUA estão desenvolvendo uma nova geração de armas que questionam e possivelmente violam acordos internacionais de guerras biológicas e químicas”, publicou o cor70 A L V O : I R A Q U E respondente do Guardian, Julian Borger, de Washington, em 29 de outubro de 2002. Os cientistas “também apontaram para o paradoxo de os EUA desenvolverem tais armas no momento em que propõem uma ação militar contra o Iraque, justificando-se no fato de Saddam Hussein estar quebrando acordos internacionais. Malcom Dando, professor de Segurança Nacional na Universidade de Bradford, e Mark Wheelis, palestrante em Microbiologia na Universidade da Califórnia, dizem que os EUA estão encorajando um colapso no controle de armas com sua pesquisa sobre armas biológicas, antraz e armas não letais usadas contra multidões hostis, e pelo caráter secreto como esses programas estão sendo conduzidos. O professor Dando avisa que os EUA “correm um sério risco de conduzir o mundo a uma redução drástica da segurança de todos”. “A segurança de todos” tem sido o argumento central para a guerra contra o Iraque – com o espectro de armas nucleares nas mãos de Saddam Hussein servindo de principal desculpa. Em agosto de 2002, o vice-presidente Cheney estava tão ansioso para dar a cartada da ameaça nuclear que disse que o Iraque iria adquirir armas nucleares “brevemente”, contradizendo relatórios da CIA que afirmavam que o Iraque não poderia fazêlo por no mínimo 5 anos. Durante uma entrevista para o livro de Willian Rivers Pitt, Guerra Contra o Iraque, em 2002, o ex-inspetor de armas das Nações Unidas, Scott Ritter, discutiu o programa de armas nucleares do Iraque: “Quando saí do Iraque, em 1998, quando terminou o programa de ins71 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H peção das Nações Unidas, a infra-estrutura e os meios de execução foram 100% eliminados. Não há dúvida quanto a isso. Todos os instrumentos e aparelhos foram destruídos. Os projetos de design de armas foram destruídos. Os equipamentos de produção foram encontrados e destruídos... Podemos dizer com certeza que a infra-estrutura industrial necessária ao Iraque para produzir armas nucleares foi eliminada”. Quando o inspetor-chefe da ONU (Organização das Nações Unidas), Hans Blix, chegou em Bagdá em 18 de novembro de 2002, seus comentários incluíam uma esperança expressa por “uma zona livre de armas de destruição em massa em todo o Oriente Médio”. Essa não é uma idéia que recebe muita cobertura na imprensa dos Estados Unidos e tal exemplo não foi uma exceção; uma procura, realizada nos principais jornais dos EUA no banco de dados Nexis, encontrou o depoimento de Blix mencionado apenas pelo Washington Post (e parafraseado pelo Atlanta Journal-Constitution). Porém, como publicou o jornal Scotsman no mesmo dia, Blix se referia às “medidas originais do Conselho de Segurança no que se tratava da Guerra do Golfo em 1991, que em teoria delineou uma zona livre de armas nucleares para proteger os vizinhos do Iraque: Irã e principalmente Israel”. Richard Butler – um dos predecessores de Blix na chefia da inspeção de armas das Nações Unidas – tem acumulado uma dose de generosidade para com o governo estadunidense, mas, depois de retornar à Austrália, fez algumas críticas sobre a abordagem da 72 A L V O : I R A Q U E superpotência quanto às armas nucleares: “Meus esforços para que os Estados Unidos entrem na discussão sobre dubiedades têm sido um desprezível fracasso mesmo com pessoas altamente educadas e engajadas”, disse Butler. A discordância tinha relação com os arsenais nucleares dos Estados Unidos e seus aliados – incluindo Israel. Quando apresentou a palestra “Templeton” na Universidade de Sydney, em meados de 2002, Butler recordou: “Uma das situações mais difíceis em que me encontrei em Bagdá foi quando os iraquianos exigiram que eu explicasse por que deveriam ser caçados por causa de suas armas de destruição em massa quando, do outro lado da rua, Israel não o era, mesmo se sabendo que este país possuía mais de 200 armas nucleares”. Grande parte do conhecimento público sobre as armas nucleares de Israel se deve aos corajosos esforços de um ex-técnico nuclear de Israel, Mordechai Vanunu. Na época da palestra universitária de Butler, o denunciante Vanunu completava seu décimo sexto ano atrás das grades (Muitos dos quais passados confinado na solitária). Vanunu tem sido uma pessoa ausente dos noticiários estadunidenses por razões que têm tudo a ver com o tipo de “dubiedades” citado por Butler. No dia 30 de setembro de 1986, o governo de Israel seqüestrou Vanunu em Roma e o colocou em um navio cargueiro. De volta a Israel, em um julgamento secreto, ele respondeu a acusações de espionagem e traição. Uma corte militar o sentenciou a 18 anos de prisão. Vanunu havia entregue a jornalistas do Sunday Times of London 73 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H informações detalhadas sobre o arsenal de bombas nucleares de Israel. Depois de crescer em uma família judia, Mordechai Vanunu tornou-se um funcionário da usina nuclear Dimona em 1976. Cerca de uma década mais tarde, um pouco antes de seu emprego terminar no afastado órgão nuclear, ele tirou fotografias dentro da Dimona, que sempre foi fechada à inspeção internacional. Usando o dinheiro de sua indenização para viajar para fora do país em 1986, Vanunu contatou a Insight, famosa unidade investigativa do Sunday Times. “Durante seu extensivo interrogatório pela nossa equipe da Insight”, relatou o jornal, “ele se ofereceu para entregar ao jornal suas fotografias e toda a informação que possuía sem pedir nada em troca, contanto que seu nome não fosse publicado, insistindo que seu único interesse era conter a proliferação nuclear no Oriente Médio.” O Sunday Times persuadiu Vanunu a permitir que seu nome fosse publicado. O jornal concordou em pagar Vanunu por uma publicação em série ou um livro baseado em suas informações, mas o dinheiro não parecia ser o que o motivava. “Minha impressão daquele homem era de alguém que tinha um sincero desejo de dizer ao mundo que o que Israel estava fazendo lhe parecia realmente errado”, disse Peter Hounam, o principal repórter da matéria do Sunday Times. “Ele achava errado que o povo e o Parlamento israelenses não recebessem informações sobre o que acontecia em Dimona.” No dia 5 de outubro de 1986, o Sunday Times deu um furo de matéria com o título de primeira página: 74 A L V O : I R A Q U E “Revelados: os segredos do arsenal nuclear de Israel”. Naquele momento, Vanunu já era um prisioneiro do governo israelense. Se você mencionar o nome de Mordechai Vanunu a um estadunidense, é possível que receba um olhar desentendido. A oeste do Atlântico, ele é um fantasma da imprensa. Mas imagine o que teria acontecido se outro país do Oriente Médio – o Iraque, por exemplo – tivesse seqüestrado um de seus cidadãos para penalizá-lo por revelar os segredos do programa de armas nucleares. Essa pessoa teria se tornado instantaneamente um herói da imprensa nos Estados Unidos. 75 URÂNIO ENRIQUECIDO: O SEGREDO SUJO DOS EUA Reese Erlich Durante a Guerra do Golfo Pérsico, o Exército dos EUA causou sérios estragos nos tanques e blindados do Iraque. Os iraquianos não tiveram chance porque os tanques estadunidenses estavam protegidos por um metal chamado urânio enriquecido. O urânio enriquecido (UE) na blindagem e na munição deu aos Estados Unidos uma vantagem decisiva. Seus tanques atiravam bombas de UE, e as armas Gattling de seus helicópteros disparavam munição UE.30 mm em uma chuva mortal que ainda pode matar veteranos estadunidenses e civis iraquianos anos depois do fim da guerra. Urânio enriquecido é o material restante do processo de combustão nuclear. O Exército dos EUA usa o UE como substituto do chumbo para preencher o núcleo da munição. O UE é 1,7 vez mais denso que o chumbo, penetrando a blindagem inimiga com relativa facilidade N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H quando comparado ao chumbo. O mesmo material é distribuído em camadas na blindagem dos tanques para evitar a entrada de balas inimigas. Quando o UE atinge um alvo muito denso, o impacto causa um calor intenso, e o UE pulverizado se espalha pelo ar. Soldados nos arredores o inalam. Ventos podem levá-lo a milhas de distância da área do impacto inicial, o que faz com que civis desafortunados também possam inalá-lo. O UE permanece radioativo por 4,5 bilhões de anos. Pode contaminar o solo e penetrar em lençóis freáticos. Especialistas se preocupam com o fato de que o UE esteja criando, em longo prazo, áreas de desastre ambiental no Iraque e na ex-Iugoslávia, onde os EUA também usaram UE. Médicos em ambas as regiões registraram grandes aumentos nas taxas de câncer, e os iraquianos também perceberam um grande número de defeitos de nascença. E os veteranos da Guerra do Golfo apresentam alguns desses sintomas. É quase certo que qualquer invasão estadunidense ou britânica no Iraque irá contar novamente com o uso extensivo de munição de urânio enriquecido. Além das muitas mortes de civis, causadas pelos impactos diretos, o material causará muitas mortes e sofrimento tempos depois do fim do conflito. Basra, Iraque Algo está muito, muito errado no Sul do Iraque. No Hospital Infantil e Maternidade de Basra, médicos exibem um enorme álbum de fotografias de centenas de crianças com terríveis defeitos de nascença. Um estudo 78 A L V O : I R A Q U E feito por médicos iraquianos indicou que 0,776% das crianças da área de Basra nasceram com defeitos em 1998, comparadas a apenas 0,304% em 1990, antes da Guerra do Golfo. Outro estudo mostrou um aumento de 384,2% no câncer e em outras malignidades infantis, de 1990 a 2000. De acordo com o Dr. Jinan Hassan, pediatra e professor assistente na Faculdade de Medicina da Universidade de Basra, “mulheres iraquianas do Sul têm medo de engravidar, pois receiam a malformação do feto... Na hora do parto, as mulheres costumavam perguntar se seu filho era menino ou menina. Agora elas perguntam ‘é normal ou não?’.” Médicos iraquianos, e um número crescente de cientistas ocidentais, atribuem o aumento de doenças e defeitos de nascimento ao uso do urânio enriquecido por parte dos EUA e da Inglaterra. Médicos iraquianos disseram ter encontrado elevados índices de câncer nas áreas de Basra, onde o urânio enriquecido foi utilizado. O Pentágono confirma ter disparado 320 toneladas de munição de UE durante a Guerra do Golfo. Veteranos de guerra da Inglaterra e dos EUA também suspeitam do UE como a causa das doenças da Guerra do Golfo. O Dr. Doug Rokke, major agora na reserva do Exército dos EUA, era o encarregado da manutenção de 24 tanques dos EUA atingidos por balas estadunidenses durante a Guerra do Golfo, balas disparadas por seus próprios tanques. Ele e sua equipe trabalharam durante 3 meses, enviando a blindagem de volta aos EUA para uma descontaminação especial. 79 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H A exposição à contaminação por UE foi tão intensa, disse-me Rokke, que “todos ficamos doentes em 72 horas”. Três anos mais tarde – falou – um exame de urina mostrou que ele tinha 5 mil vezes o nível tolerado de urânio em seu corpo. Veteranos da Guerra do Golfo que trabalharam nas zonas contaminadas por UE foram diagnosticados com o mesmo tipo de câncer encontrado nos civis de Basra, e que também geraram crianças com defeitos de nascença. O Dr. Doug Rokke, Ph.D. em Física e ex-diretor do Projeto de UE do Exército dos EUA, estudou documentos militares internos e preparou relatórios sobre como descontaminar áreas atingidas por UE. Baseado em suas experiências, ele diz: “Os líderes do Exército dos Estados Unidos sabiam que o uso de UE causaria problemas ambientais e de saúde”. O Pentágono argumenta, no entanto, que a munição de UE não apresenta perigo aos civis. Informativos do Departamento de Defesa afirmam que o urânio enriquecido é menos radioativo que o urânio encontrado naturalmente no ambiente, e atestam que mesmo os mineradores de urânio regularmente expostos a grandes doses de urânio natural não sofrem de problemas de saúde como conseqüência. O Departamento de Defesa admite que pequenas quantidades de urânio enriquecido são absorvidas pelo corpo quando inalados ou engolidos. Mas “não se esperam efeitos radiológicos de saúde, pois tanto a radioatividade do urânio quanto a do urânio enriquecido são bastante baixas”. (www.gulflink.osd.mil) 80 A L V O : I R A Q U E Pesquisas na área de saúde no Iraque e na ex-Iugoslávia indicam que o Pentágono pode estar completamente errado. A Dra. Eva-Maria Hobiger, oncologista austríaca, estudou a ligação entre urânio enriquecido, câncer e defeitos de nascimento. Nada se concluirá a menos que um extensivo estudo epidemiológico possa ser feito em Basra. Os estudos iraquianos de defeitos de nascença e taxas de câncer não foram verificados por cientistas de outros países. Hobiger nota, entretanto, que se o UE se deposita em partes sensíveis do corpo, como glândulas linfáticas e ossos, e produz uma baixa, porém constante corrente de radiação. Com o tempo, isso pode causar câncer, diz ela. A Dra. Hobiger e muitos outros notam que o Sul do Iraque vem sendo uma área de desastre ambiental há anos. Durante a Guerra entre Iraque e Irã, parte da população foi atingida por gás venenoso. Depois da Guerra do Golfo Pérsico, tropas iraquianas atearam fogo em poços de petróleo e poluíram toda a região por meses. Também há a questão da poluição do ar – causada principalmente por indústrias e olarias – no Sul do Iraque. Alguns cientistas afirmam que esses fatores ambientais podem ser a causa dos problemas de saúde em Basra. A Dra. Hobiger explica que esses fatores, ainda que perigosos, não explicam todos os problemas. Ao que se sabe, por exemplo, a poluição atmosférica não causa problemas de nascença. Mesmo que alguns gases venenosos possam fazer com que pessoas que os tenham inalado gerem filhos com defeitos de nascença, não se 81 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H têm registros de que eles causem má-formação tempos depois da exposição inicial. Ela teoriza que o UE, combinado à poluição atmosférica, pode ser a causa dos problemas de câncer. A toxicidade química do UE também pode ser relevante. Por ser um metal pesado, ele pode se infiltrar na água e no solo. Uma vez na cadeia alimentar, pode causar câncer de rim e uma série de outras doenças. Até pouco tempo atrás, porém, os cientistas não sabiam se o UE realmente aparecia nos corpos de moradores do Iraque e dos Bálcãs. Isso porque os cientistas precisam submeter a urina de cada paciente a uma análise muito sofisticada para encontrar o UE, e tais testes não eram possíveis no Iraque. O Pentágono e vários outros exércitos da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) fizeram tais testes nos soldados que lutaram nas guerras dos Bálcãs e declararam não ter encontrado traços de UE. Então, em 2001, a TV BBC na Escócia encarregou o professor Nick Priest de estudar o assunto. Ele leciona na Escola de Saúde, Ciências Biológicas e Ambientais da Universidade Middlesex, de Londres, e é um reconhecido perito em assuntos de radiação. Priest analisou amostras da urina de 12 pessoas da Bósnia e de Kosovo que moravam em áreas atingidas por cargas de UE. Algumas dessas pessoas eram pacientes com câncer; entre elas, uma criança nascida após a guerra na Bósnia. Todas mostraram traços de UE em seus organismos. O teste “parece indicar que o metal [UE] está agora presente na cadeia alimentar e/ou na água potável”, escre82 A L V O : I R A Q U E veu o professor Priest em um relatório para um jornal científico. Em entrevista em Londres, Priest disse que, quanto mais velha a pessoa, maior a quantidade de UE em seu organismo, indicando que a contaminação vem de partículas de UE no ambiente que são lentamente absorvidas com o tempo. Em outubro de 2002, o professor Priest e cientistas alemães conduziram uma pesquisa com um grande número de sérvios e bósnios para determinar se os resultados originais poderiam se repetir. A resposta seria publicada em 2003. O professor Priest não acredita que a quantidade de radiação emitida pelo urânio enriquecido apresente um sério perigo à saúde dos civis. A quantia de UE que ele encontrou, mesmo nos pacientes com câncer, estava abaixo do que poderia se esperar que fosse a causa de tais problemas de saúde. Ele notou que o UE contém menos radiação que o urânio natural. A controvérsia continua porque ninguém pode explicar o grande aumento de defeitos de nascença e câncer no Iraque desde a Guerra do Golfo. É extremamente difícil ligar uma doença individual a um fator ambiental específico. Cientistas precisam conduzir um estudo para relacionar os tipos de problemas de saúde e o local onde eles ocorrem. Com uma amostra grande o suficiente, poderiam determinar se o problema de saúde foi causado por exposição ao UE, por outros fatores ambientais, histórico familiar ou outro motivo qualquer. A Organização Mundial da Saúde (OMS) chegou a planejar tal estudo no Iraque, mas não conseguiu apoio 83 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H financeiro. Segundo a Dra. Hobiger, ele foi bloqueado pelos EUA e pela Inglaterra. Os trabalhos dos médicos na Bósnia também são prejudicados por relatórios médicos similares àqueles sobre Basra. De acordo com o Departamento de Defesa, aviões estadunidenses dispararam aproximadamente 3,3 toneladas de UE durante a guerra da Bósnia em 1994-1995, e 10,2 toneladas durante a guerra de Kosovo, em 1999. Em entrevistas com médicos da Sérvia e da Bósnia, que examinaram residentes de áreas onde a munição UE foi extensivamente lançada, eles disseram que notaram um grande aumento nos casos de câncer, apesar de ainda não ter havido aumento nos casos de defeitos de nascimento. A Dra. Nada Cicmil-Saric é uma oncologista que tratou de famílias de Foca-Srbinje, uma cidade da Bósnia. A ponte da cidade foi destruída por ataques dos EUA em 1994. A médica encontrou numerosos casos em que dois ou mais membros de famílias que moravam perto da ponte desenvolveram doenças fatais. Enquanto alguns casos podem ser atribuídos a fatores genéticos, em outros, maridos e esposas desenvolveram doenças fatais depois de 1994, ocorrência nada comum segundo a Dra. Cicmil-Saric. Em seu hospital, que trata de diversas pessoas expostas ao UE, ela relata um aumento de 5 vezes de câncer de pulmão e 3 vezes de câncer linfático desde 1994 – sendo que ambos podem ter sido causados por exposição ao UE. Ela também notou um crescimento de 5 a 6 vezes na taxa de câncer de mama, que não costuma 84 A L V O : I R A Q U E ser associado ao UE, o que indica que outros fatores também devem ser levados em conta. Na guerra da Bósnia, assim como nos bombardeios da OTAN na Sérvia durante a guerra de Kosovo, em 1998, os EUA atingiram fábricas e estações de energia, o que liberou fumaça cancerígena. Como resultado – muito parecido com a situação no Iraque – os médicos dizem ser difícil isolar o impacto de UE sem um estudo epidemiológico completo. As autoridades das repúblicas iugoslavas de Montenegro e Sérvia não esperaram por uma avaliação dos perigos do UE. Eles já começaram a limpar as áreas contaminadas. Cape Arza é um ponto de beleza espetacular a aproximadamente 50 quilômetros ao sul de Dubrovnik, em Montenegro, ao longo da costa Adriática. De acordo com um mito local, Deus transportava tesouros do Oriente Médio à Europa quando derrubou parte deles em Cape Arza. Durante o verão, os nativos nadam e pescam no mar azul-celeste. Nos dias 29 e 30 de maio de 1999 – os dias finais da guerra de Kosovo – 2 aviões estadunidenses Thunderbolt (Warthog) A-10 dispararam balas de UE em Cape Arza. O Exército iugoslavo construiu abrigos na região em 1968, usados durante a guerra com a Croácia no começo dos anos de 1990. Mas lá não havia tropas ou armas em 1999, de acordo com Tomislav Andelic, físico do Center for Toxicologicval Reserarch of Montenegro. “Os EUA cometeram um erro”, disse Andelic, “eles não têm um bom serviço de inteligência.” 85 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H Os aviões dos EUA atiraram cerca de 300 balas .30 mm de UE em Cape Arza, dispersando-as por mais de 20 mil metros quadrados pelo deserto. Nos 3 últimos anos, as balas de UE começaram a oxidar e a se desfazer. Autoridades de Montenegro preocupam-se com a poeira de UE que pode ser levada pelo vento ou se infiltrar no solo. Pessoas acompanhadas em barracas ou crianças brincando com as balas podem se contaminar. Além do mais, a existência de uma terra contaminada irá arruinar qualquer chance de turismo nessa bela porção da costa. O Exército iugoslavo interditou a área. O governo de Montenegro gastou 300 mil dólares e o governo da Iugoslávia, outros 100 mil para limpar Cape Arza. Soldados com monitores gama presos a longos pinos de madeira cobriram cuidadosamente toda a área à procura de balas de UE. Eles as retiravam com cuidado, como arqueólogos trabalhando em uma escavação ancestral. As balas contaminadas e o lixo radioativo eram enviados para Belgrado para serem armazenados junto a outros dejetos de baixo nível radioativo. O governo iugoslavo planeja limpar 5 áreas similares na Sérvia. Mas nem a Sérvia nem Montenegro conseguem encontrar um governo estrangeiro, uma agência internacional ou uma ONG que contribua financeiramente com a limpeza. “Se algum país reconhecer a necessidade de limpar o urânio enriquecido”, disse Andelic, “significaria automaticamente que eles reconhecem o perigo vindo do UE. Se isso acontecesse, poderíamos reivindicar com86 A L V O : I R A Q U E pensações pelos danos, e ninguém está pronto para aceitá-las.” Se médicos iraquianos e dos Bálcãs tivessem como provar que algumas de suas afirmações sobre UE estão corretas, então os EUA e a Inglaterra sofreriam tremenda pressão para parar de usar munições com UE e poderiam ser forçados a pagar bilhões de dólares em indenizações para compensar suas vítimas. De certa maneira, isso não corresponde aos planos dos EUA de permanecerem como a única superpotência mundial. Para concluir, vale a pena notar que tanto o Exército dos EUA quanto o da Inglaterra tomaram grandes precauções com os testes de UE em seus próprios países. Soldados usam roupas de proteção e respiradores quando disparam essas balas. As áreas de teste são interditadas e os soldados isolam a blindagem dos tanques e a munição, destruídas após os testes. 87 O USO DE EUFEMISMOS PARA O TERMO UNILATERAL Norman Solomon Quando o Conselho de Segurança das Nações Unidas adotou sua resolução com relação ao Iraque em 8 de novembro de 2002, jornalistas e políticos estadunidenses aclamaram o voto anônimo como um grande passo em prol da cooperação internacional e um marco que impediria a ação unilateral. Em Washington, legisladores pareciam entusiasmados, assim como os especialistas, ávidos por parabenizar a equipe de Bush pelo bom trabalho diplomático. Thomas Friedman, autoridade no New York Times, estava praticamente em estado de choque. “Por um breve e iluminado momento, sexta-feira passada,” declarava em sua coluna de 13 de novembro, “o mundo não parecia um lugar tão louco”. Para Friedman, bem como para tantos outros formadores de opinião da atual intelectualidade de Washington, as Nações Unidas se mostraram úteis ao provar para a Casa Branca seu valor. “Em um N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H mundo onde domina uma única superpotência, o Conselho de Segurança das Nações Unidas se torna ainda mais relevante”, escreveu Friedman. Entre as vantagens, “a equipe de Bush percebeu que a melhor maneira de legitimar seu incrível poder – em uma guerra opcional – não era simplesmente impondo-a, mas sim canalizando-a por meio da ONU”. Se as Nações Unidas funcionam como um canal para o poder estadunidense, ainda estamos falando de unilateralismo. Grandes forças geopolíticas, econômicas e militares fazem com que os Estados Unidos consigam não só votos para o Conselho de Segurança, mas também consentimentos internacionais e aliados em caso de guerra. Essa história é antiga: décadas atrás, o governo dos EUA alegou que a Guerra do Vietnã era um esforço “conjunto”, já que contava com a participação de tropas filipinas, australianas e sul-coreanas. Vasculhando a programação dos estrategistas de guerra dos EUA, o Conselho de Segurança da ONU conseguiu informações de fundamental importância. Nas palavras de Friedman: “O povo estadunidense disse a Karl Rove, e o povo britânico disse a Tony Blair, que a guerra contra o Iraque é opcional e, ainda que seja legítima, eles não querem lutar sem o apoio da ONU e de seus principais membros.” Para conseguir um “Selo de Aprovação de Guerra Válida das Nações Unidas”, a administração Bush distribuiu mamatas enquanto exercitava os músculos do “Tio Sam”. “Acordos feitos por baixo dos panos com a França e com a Rússia em relação ao petróleo no Iraque 90 A L V O : I R A Q U E pós-guerra eram parte importante da jogada”, como Phyllis Benni, analista da ONU, escreveu para o The Nation após a votação do Conselho de Segurança. “A empobrecida nação de Maurício é a mais recente garota-propaganda da pressão estadunidense sobre a ONU. O embaixador Jagdish Koonjul foi destituído pelo governo de Maurício por não apoiar o projeto original dos EUA em relação ao Iraque. Por quê? Porque as ilhas Maurício recebem expressiva ajuda dos EUA e a Lei de Crescimento e Oportunidades na África exige que os que recebem ajuda estadunidense não se envolvam em atividades que possam questionar a segurança nacional dos EUA ou interesses de política internacional.” Não foi diferente a evolução do caso das ilhas Maurício. O voto do Conselho de Segurança “foi uma demonstração da habilidade de Washington em manejar seu vasto poderio político e econômico”, relatou a Inter Press Service. As nações integrantes do Conselho “votaram sob forte pressão diplomática e econômica dos Estados Unidos”. A maioria dos países recebia ajuda de Washington e “aparentemente estavam conscientes de que, em 1990 (pouco antes da Guerra do Golfo), os Estados Unidos cortaram a ajuda de cerca de 70 milhões de dólares ao Iêmen praticamente da noite pro dia. Isso aconteceu logo após seu voto contra a decisão do Conselho de Segurança (apadrinhado pelos EUA) de retirada militar iraquiana do Kuwait.” Na revista inglesa New Statesman, John Pilger relembrou alguns detalhes sórdidos do troco dado pela superpotência. “Minutos após o Iêmen ter votado con91 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H tra a decisão de atacar o Iraque, um diplomata dos EUA falou ao embaixador do Iêmen: ‘Esse foi o voto negativo mais caro que você já deu’. Em 3 dias, o programa estadunidense de 70 milhões de dólares em assistência a um dos países mais pobres do mundo havia cessado. O Iêmen subitamente começou a ter problemas com o Banco Mundial e com o FMI (Fundo Monetário Internacional), e 800 mil de seus trabalhadores foram expulsos da Arábia Saudita... Quando os Estados Unidos buscaram outra medida para o bloqueio ao Iraque, dois novos membros do Conselho de Segurança foram prontamente coagidos. O embaixador estadunidense em Quito advertiu o Equador quanto às ‘devastadoras conseqüências econômicas’ de um voto negativo. O Zimbábue foi ameaçado com novas condições na sua dívida com o FMI.” Em 2002, contabilizando os impactos da assombrosa política externa de Washington de recompensa e punição, uma realidade desconhecida da dominação estadunidense veio à tona. Os Estados Unidos haviam categoricamente se reservado o direito de fazerem o que bem entendessem. Assim, enquanto os acordos que integraram a Resolução 1.441 tornaram menos alardeante a dominação vermelha-branca-e-azul, as concessões dos EUA tendiam a ser pouco significativas em longo prazo. O texto da resolução aprovado estava permeado de contradições e fraudes. “Vários parágrafos dessa nova resolução oscilam de maneira dúbia”, disse Denis Halliday, ex-secretário-geral assistente da ONU, responsável pelo programa das Nações Unidas no Iraque de 92 A L V O : I R A Q U E Petróleo por Comida. “Grande parte dessa resolução deveria se estender a todos os Estados que violavam as decisões do Conselho de Segurança e que possuem armas de destruição em massa.” Quarenta e oito horas após a vitória, por 15 a 0, da decisão do Conselho de Segurança, o chefe de gabinete da Casa Branca, Andrew Card, disse na NBC: “A ONU pode reunir-se e discutir, mas nós não precisamos de sua permissão” para iniciar um ataque militar. “Os EUA e seus aliados estão preparados para a ação”, explicou Card, concluindo com a frase “Se nós tivermos de ir à guerra, nós iremos”. Enquanto isso, na CNN, o secretário de Estado transmitia a mesma mensagem: “Se ele [Saddam Hussein] não ceder desta vez, pediremos à ONU autorização para todas as medidas necessárias; e se a ONU não estiver disposta a nos autorizar, os EUA, juntamente com os países aliados, irão desarmá-lo a força”. Nove dias depois, ao se dirigir a certos membros do Parlamento inglês, Richard Perle, subsecretário de Defesa do Pentágono, utilizou-se do pretexto de que a guerra dependeria do que acontecesse com os inspetores de armas da ONU. “O conselheiro de George Bush para a área de segurança admitiu ontem que os EUA atacarão o Iraque ainda que os inspetores da ONU não encontrem armas”, declarou o jornal Mirror de 20 de novembro. “Perle espantou os membros do Parlamento ao insistir que nem um atestado de aprovação do chefe da inspeção de armas da ONU, Hans Blix, deteria a máquina de guerra estadunidense. Evidências do pro93 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H grama de armas de Saddam Hussein vindas de uma única testemunha seriam suficientes para desencadear uma vigorosa investida militar, disse Perle durante um encontro sobre segurança global, que contou com a participação de todos os partidos.” O argumento de Perle era de que a inspeção da ONU não seria capaz de provar um resultado negativo. “Tudo o que ele [Blix] pode saber são os resultados de sua própria investigação. E isso não prova que Saddam não tenha armas de destruição em massa.” O limiar para que Perle desse início a uma guerra era consideravelmente baixo: “Suponhamos encontrar alguém envolvido com a fabricação de armas e ele afirme que há estoque de armas. Porém, não se consegue achá-lo, por estar bem escondido. Deve-se realmente estar de posse desse estoque para ser convincente?” Um ex-ministro da Defesa britânica, Peter Kilfoyle, declarou com franqueza: “Por Saddam ser tão odiado no Iraque, seria fácil encontrar alguém que dissesse ter testemunhado a fabricação de armas. Perle diz que os estadunidenses ficariam contentes com uma declaração como essa, mesmo que nenhuma evidência real fosse produzida [sic]. Tal perspectiva é aterrorizante”. Kilfoyle disse que “Os EUA estão induzindo o mundo a acreditar que todos estão a favor dessas inspeções. O presidente Bush pretende ir à guerra ainda que os inspetores não encontrem nada. Isso não só ridiculariza o processo, como expõe a real determinação dos EUA de bombardear o Iraque”. Em meados de novembro, oficiais envolvidos no processo de inspeção da ONU pronunciaram-se publicamente 94 A L V O : I R A Q U E sobre o fato de que uma pequena ofensiva iraquiana não deveria ser vista como uma “violação substancial” à resolução. O secretário-geral Kofi Annan disse que uma desculpa “frívola” não deveria ser suficiente para se ir à guerra. Mas tais declarações nada conseguiram fazer para mudar a situação já tendenciosa: em clara contraposição ao requisito do decreto da ONU de que “todos os membros devem, em suas relações internacionais, abster-se de ameaças ou do uso de força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado”, o governo dos EUA seria o árbitro definitivo entre aliança ou oposição. No Center for Constitucional Rights, em Nova York, o presidente da organização, Michael Ratner, foi duro: “O que está acontecendo aqui é impressionante. O Conselho de Segurança, um órgão que supostamente deveria tornar ilegal e impraticável a guerra sob o comando de um só país, está abrindo caminho para uma guerra ofensiva. E o pior de tudo é que os EUA poderão alegar que, de alguma maneira, eles receberam sua benção”. Era bastante irônica, e até consideravelmente hipócrita a declaração dos altos oficiais dos EUA de que eles proclamariam guerra ao Iraque – com ou sem o apoio da resolução do Conselho de Segurança da ONU – se, no entender deles, o Iraque não tivesse obedecido a uma resolução desse Conselho. Tais contradições são ingredientes típicos do novo discurso da visão estadunidense quanto às Nações Unidas. As notícias quanto às Nações Unidas às vezes se tornam confusas. A ONU é uma instituição vital ou uma 95 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H relíquia sem função? As decisões do Conselho de Segurança são de fundamental importância para as relações internacionais, ou elas perderam a vez já que agora a liderança mundial deve vir de uma única superpotência? Os estadunidenses ouviram por algum tempo que os EUA precisariam armar um ataque estratégico ao Iraque, uma vez que Saddam Hussein havia violado as decisões do Conselho de Segurança da ONU, ao mesmo tempo em que ouvíamos que o governo dos EUA deveria se reservar o direito de agir militarmente caso o Conselho de Segurança não conseguisse tomar decisões contundentes em relação ao Iraque. Para esclarecer a situação, aqui estão 3 diretrizes básicas para entender como raciocinar em sincronia com os políticos e especialistas estadunidenses: • Resoluções da ONU aprovadas pelo Conselho de Segurança são muito importantes, e devem ser enfatizadas com numerosa tropa militar, caso a Casa Branca assim deseje. Caso contrário, as resoluções têm pouca ou nenhuma relevância, e elas não podem, de maneira alguma, interferir no andamento econômico e militar dos EUA, tampouco no apoio diplomático dado a qualquer aliado de Washington. Vários países continuaram a ignorar grande número de decisões aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU desde o início da década de 1990. Marrocos continua violando mais de uma dúzia dessas resoluções – assim como Israel – e a Turquia também tem violado algumas tantas. Os oficiais desses países não aguardam tão cedo ultimatos de Washington. 96 A L V O : I R A Q U E • Algumas decisões da ONU são sagradas. Outras são supérfluas. Para passar por cima das besteiras da mídia quanto às decisões do Conselho de Segurança aprovadas nos últimos anos, basta recordar: no mundo de acordo com a mídia estadunidense, o presidente dos Estados Unidos possui o poder de Midas sobre as decisões da ONU. Quando ele confere seu toque real sobre uma delas, esta se transforma em uma regra de ouro, que deve ser imposta. Quando ele opta por não abençoar outras decisões da ONU, elas não têm valor. • As Nações Unidas podem ser extremamente “relevantes” ou “irrelevantes”, conforme as circunstâncias. Quando a ONU pode ser um instrumento útil da política internacional dos EUA, ela é uma instituição mundialmente vital, responsabilizando-se pelo futuro e reafirmando sua transcendente visão institucional. Quando a ONU deixa de ser um instrumento útil para a política internacional dos EUA, sua irrelevância se torna tão óbvia que ela corre o risco de ir parar na lata de lixo da história. Palavras bonitas servem de desculpa para a guerra. “Há uma retórica grandiloqüente sobre a ONU aqui em Washington”, disse Erik Leaver, um pesquisador do projeto Foreign Policy in Focus. Stephen Zunes, professor de Política na Universidade de San Francisco, citou alguns fatos importantes em meados de novembro de 2002: “Há mais de 100 resoluções do Conselho de Segurança da ONU sendo violadas por países membros. O Iraque está violando 16 delas, no máximo. Ironicamen- 97 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H te, Washington vetou a imposição das resoluções do Conselho de Segurança da ONU a países como Marrocos, Indonésia, Israel e Turquia, que são aliados dos EUA”. Leaver nem estava pensando nos alardes da imprensa quando formulou este importante questionamento: “Se os EUA agem militarmente com o apoio das Nações Unidas, o que garante que outros países não iniciem seus próprios ataques militares em nome de decisões da ONU – contra a Turquia em Chipre, ou Marrocos no Saara Ocidental, ou Israel na Palestina? Esse é precisamente o motivo que faz da doutrina da prevenção uma política perigosa de ser adotada pelos EUA”. Informações importantes a respeito de inspetores de armas da ONU no Iraque aparecem brevemente nas primeiras páginas dos jornais dos EUA no início de janeiro de 1999; e prontamente desaparecem. Aproximadamente 4 anos mais tarde, quando virtuosos tambores de guerra soavam em alto e bom som em Washington, retomar a história significava aprofundar-se nas notícias do “buraco da memória” de Orwell. “Os EUA espionaram o Iraque com apoio da ONU, dizem oficiais”, anunciava a capa do New York Times de 7 de janeiro de 1999. O artigo era claro: “Oficiais dos EUA dizem hoje que espiões estadunidenses trabalharam secretamente em equipes de inspetores de armas das Nações Unidas, investigando programas secretos de armas no Iraque.... Fazendo parte da equipe, os estadunidenses não só tiveram acesso a informações da investigação em primeira mão, como permaneciam seguros em sua estadia em Bagdá”. Um dia depois, uma maté98 A L V O : I R A Q U E ria do Times apontava: “Relatos de que os Estados Unidos se utilizaram dos inspetores de armas das Nações Unidas para espionar Saddam Hussein estão diminuindo as probabilidades de que o sistema de inspeção prospere”. Com sua credibilidade bastante abalada, o sistema de inspeção da ONU não perdurou. Outro fator para sua interrupção foi a declaração do governo dos EUA de que as severas sanções ao Iraque continuariam intactas com ou sem a cooperação de Bagdá ao regime de inspeções. Poucas foram as notícias estadunidenses a narrar tais fatos ou a opinar de forma divergente em uma mídia condicionada a culpar Saddam Hussein por tudo. Durante o segundo semestre de 2002, em vez de apresentar um resumo completo dos eventos recentes mais importantes, a grande mídia e os políticos dos Estados Unidos pareciam satisfeitos em, dia após dia, mostrar prós e contras táticos de variados e agressivos cenários militares. Enquanto alguns especialistas levantavam bandeiras de alerta, até mesmo os mais absurdos e contraditórios argumentos para uma violenta “mudança de regime” em Bagdá passavam praticamente despercebidos. Ao final de julho, o Wall Street Journal publicou um ensaio de dois ex-procuradores do Departamento de Justiça que alegavam que os EUA estariam “em seu pleno direito” em atacar o Iraque e derrubar o governo, baseados na “conhecida lei internacional da doutrina da legítima defesa preventiva”. Aqui nasce a contradição: se “legítima defesa preventiva” fosse uma justa razão para se iniciar uma guerra, o governo iraquiano poderia usar 99 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H a mesma desculpa para justificar um ataque aos EUA – mesmo se deixarmos de lado o fato de que o bombardeio estadunidense na “zona de vôo proibido” no Iraque (declarada unilateralmente) vem se estendendo há anos. Havia algo de patético – e perigoso – no uníssono dos críticos liberais “despejando” suas esperanças em Collin Powell em meados de 2002. Secretário de Estado, Powell era um “moderado” sagrado (comparado às inclinações de Dick Cheney e Donald Rumsfeld), cujas idas e vindas de suas batalhas dentro do governo eram exibidas nos noticiários. Ele foi louvado por ser um membro de Washington paciente e perspicaz, e um diplomata extremamente experiente. Na marcha para a guerra e na procura de uma base comum, ele foi um maestro soberbo e ovacionado na grande mídia. Alguns baluartes da imprensa direitista, tais como o editorial do Wall Street Journal, o condenaram por ser insuficientemente militarista. Mas, na realidade, mais do que cavar possibilidades de uma conflagração militar no Iraque, o extraordinário prestígio de Powell foi usado como um recurso útil aos estrategistas da guerra. O general aposentado “é visto, por muitos amigos de Washington e aliados estrangeiros, como parte essencial da credibilidade da política internacional de Bush”, apontou a agência francesa de notícias AFP, no início de setembro. Ele teve a sabedoria de, pacientemente, alinhar todos os “patos” diplomáticos antes que a caçada tivesse início. Em outubro, a coluna “Convencional Wisdom”, da Newsweek, trazia Powell com sua flecha apontada para o céu: “Brilhante diplomacia conquista França, Síria e falcões”. 100 A L V O : I R A Q U E Até mesmo os especialistas que reconheceram a pouca solidez de seu papel o lisonjearam. “Deveríamos nos orgulhar de Collin Powell ser secretário de Estado”, escreveu Mary McGrory ao final de 2002. “Se não fosse por ele, nossos soldados poderiam estar, agora mesmo, batendo de porta em porta no centro de Bagdá promovendo discussões intermináveis.” Porém, como observou a notável colunista do Washington Post, Powell “não disse ao presidente que não entrasse em guerra; disse como entrar em guerra de uma maneira politicamente correta”. Em vez de tentar evitar uma guerra, Powell “somente tentou adiá-la por algumas semanas e arranjou uma desculpa”. O mito Collin Powell, produto da mídia, celebra seu alcance, que vai além da realidade dos fatos. O histórico de Powell não é o de um homem consciencioso. Uma participação ativa em eventos deploráveis tem sido uma constante em sua carreira. Alguns exemplos: - Como delegado de alto escalão do secretário de Defesa Caspar Wlinberger, Powell supervisionou a transferência militar de 4.508 mísseis TOW para a CIA, em janeiro de 1986. Aproximadamente metade desses mísseis se tornou parte da troca de armas por reféns com o Irã, durante a administração Reagan. Powell ajudou a esconder do Congresso e da população essa transação. - Como conselheiro de Segurança Nacional de Reagan, Powell foi uma das pessoas-chave nos esforços dos EUA em depor o governo eleito da Nicarágua. Quando viajou para a América Central em janeiro de 101 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H 1988, Powell ameaçou cortar a ajuda estadunidense a qualquer país da região que se recusasse a cooperar com a luta travada pelos “contra”, então empenhados em matar milhares de civis nicaragüenses. Powell se esforçou em impedir o êxito de um processo de paz iniciado pelo presidente da Costa Rica, Oscar Arias. - Quando as tropas estadunidenses invadiram o Panamá em 20 de dezembro de 1989, Powell era presidente do Joint Chiefs of Staff. Ele havia “surgido como a figura crucial na decisão da invasão”, de acordo com o repórter britânico Martin Walker. Centenas de civis morreram nas primeiras horas da invasão. Powell declarou naquele dia: “Temos de colocar uma placa em nossas portas dizendo: ‘Aqui mora o superpoder’.” - No final de 2000, enquanto funcionários de Bush trabalhavam a todo vapor na recontagem dos votos na Flórida, um Estado onde milhares de afro-americanos legalmente qualificados foram impedidos de votar graças a esforços republicanos, Powell foi até a fazenda de Bush no Texas posar para fotos mostrando seu apoio à “investigação” presidencial. Porém, a Guerra do Golfo, em 1991, mais do que qualquer outro evento, lançou Powell para o estrelato político estadunidense. A incerteza das forças estadunidenses em tomar Bagdá e depor Saddam Hussein foi a principal questão da mídia envolvendo Powell e a guerra. Em 25 de setembro de 1995 – durante uma viagem a São Francisco, parte da turnê de promoção da bemsucedida autobiografia de Collin Powell – dúzias de re102 A L V O : I R A Q U E pórteres e fotógrafos se espremeram em uma sala, cozinhando sob os holofotes das câmeras de TV. Houve uma onda de euforia quando Powell chegou e subiu ao lugar reservado a ele. Ele era a imagem da autoridade segura, com seus óculos com aro de metal estilo executivo, terno preto risca de giz, camisa azul pastel e uma gravata deliciosamente borgonha. O prefeito apertou a mão de Powell e deu formais boas-vindas ao primeiro afro-americano a ser presidente do Joint Chiefs of Staff. Os repórteres se encarregaram de algumas perguntas corriqueiras, às quais o general aposentado respondeu de forma superficial. Uma questão tratava de raça; outra, da campanha presidencial de 1996, que estava por vir. Powell então começou a explicar por que os estadunidenses estavam mais uma vez fascinados pelas forças militares, um quarto de século após a malfadada Guerra do Vietnã. Powell enumerava recentes sucessos militares – “a soberba atuação das Forças Armadas dos EUA nos conflitos recentes, a começar, a meu ver, pela invasão do Panamá, e então pelas operações Escudo e Tempestade no Deserto” – quando uma voz despontou no fundo da sala. Falava um homem de meia-idade, em uma cadeira de rodas. Arqueado sobre seu aparato de metal, suas pernas inertes vestidas em jeans, ele gritou “Você não falou a verdade sobre a guerra no Golfo, general”. Powell tentou ignorar a interrupção, mas o homem persistiu, intimidando-o quanto aos civis mortos no Panamá e no Iraque, conflitos que concederam a Powell sua fama nacional. Finalmente, Powell respondeu em tom protetor, chamando o dissidente pelo nome. 103 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H “Oi, Ron, como vai? Com licença, deixe-me responder uma pergunta antes.” “Mas por que você não diz a eles o motivo?” “De fato, eu penso que o povo estadunidense está dirigindo a mim a glória que é, na verdade, daquelas tropas”, continuou Powell, deixando a interrupção de lado. “O que vocês estão vendo é uma transferência para mim do que aqueles jovens fizeram no Panamá, na Operação Tempestade no Deserto e em tantos outros lugares...” “Cento e cinqüenta mil pessoas, um bombardeio”, a voz de Ron Kovic só podia ser ouvida nos intervalos das palavras amplificadas de Powell. “... é muito gratificante observar essa mudança de atitude quanto às forças militares. Não é somente Collin Powell, uma estrela do rock. São todos aqueles homens e mulheres brilhantes que fizeram um trabalho maravilhoso.” Naquela tarde, Ron Kovic, veterano da Guerra do Vietnã e autor da autobiografia Nascido em 4 de julho, não parou de falar. Da sua cadeira de rodas, ele fez de tudo para ser ouvido. “Eu quero que os estadunidenses saibam o que o general escondeu do povo dos EUA durante a Guerra do Golfo”, disse Kovic. “Ele escondeu as vítimas. Ele escondeu o horror. Ele escondeu a violência. Não precisamos de mais violência neste país. Precisamos de líderes que representem cooperação. Precisamos de líderes que representem paz. Precisamos de líderes que entendam a tragédia de usar a violência para resolver nossos problemas.” 104 A L V O : I R A Q U E De fato, quantos iraquianos morreram durante a Guerra do Golfo em 1991? Powell e outras personalidades da guerra estadunidense não pareciam minimamente interessados nessa questão. Porém, o erudito Stephen Zunes escreveu, em 2002, em seu livro Tinderbox: “A maioria das estimativas põem o número de mortos no Iraque na faixa dos 100 mil. Devido à crescente precisão dos armamentos aéreos, a proporção dos civis iraquianos mortos foi bem menor que em ataques aéreos anteriores... Ainda assim, os números absolutos foram bastante altos. A maioria das estimativas fala em aproximadamente 15 mil civis mortos.” Durante os últimos meses de 2002, jornalistas declararam que a mais recente manifestação “moderada” de Collin Powell havia sido sua postura quanto ao Iraque durante a administração Bush. Mas a determinação do secretário de Estado em alinhar os que estavam do seu lado e a aprovação do Conselho de Segurança da ONU podia ser entendida como parte de uma preparação metódica para a guerra que estava por vir. Powell estava raciocinando, em um contexto global, de modo muito pragmático. Assim, durante um enfadonho jantar de apresentação a Bush, em 5 de agosto, ele fez forte apelo às coalizões. Algum tempo depois, parafraseado pelo repórter Bob Woodward, do Washington Post, Powell enfatizou ao presidente a praticabilidade de entrar em guerra com o Iraque: “Um plano militar bem-sucedido necessitaria do acesso a bases e recursos na região, além de permissão de vôo. Eles precisariam de aliados”. 105 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H No início de setembro, 4 semanas depois de Powell se pronunciar a Bush, o Wall Street Journal observou que “o acesso à base aérea al Udeid, do Qatar, seria essencial para uma invasão ao Iraque”. Longe dos holofotes da publicidade, importantes acordos estavam sendo feitos. “Oficiais do Qatar disseram a oficiais estadunidenses que eles queriam uma garantia de que a presença militar dos EUA no Qatar fosse permanente”, relatou o jornal. “Além disso, querem que os Estados Unidos assumam grande parte do custo de 400 milhões de dólares para modernizar a base aérea al Udeid para a Força Aérea dos EUA.” Para os renitentes membros do Conselho de Segurança da ONU, enormes problemas despontavam no horizonte. Nas palavras do Wall Street Journal, “espera-se que Moscou entre em acordo com os EUA quanto a uma maior autonomia para conter a rebelião na Tchetchênia e quanto a contratos de reconstrução do Iraque do pós-guerra”. Uma nova onda de atrocidades do Exército russo na Tchetchênia estava por vir. Em assuntos diplomáticos, Fareed Zakaria, ex-editor chefe da revista Foreign Affairs, compartilhava com Powell a ânsia em fazer retornar ao Iraque os inspetores de armas da ONU, uma questão importante nas relações públicas dos embates que antecedem a guerra. “Mesmo que as inspeções não provoquem uma crise”, Zakaria escreveu na coluna de 2 de setembro do Newsweek, “Washington ainda estará em vantagem pela tentativa, o que seria visto como um grande esforço para evitar a guerra”. Com pensamento similar, a CNN relatou que Powell estava “se esforçando em convencer o 106 A L V O : I R A Q U E presidente da necessidade de se formar uma coalizão forte, similar à formada em 1991, durante a Guerra do Golfo, e assim conseguir o apoio do Conselho de Segurança da ONU através de uma nova resolução”. Há falcões assassinos de diversos estilos; alguns têm garras afiadas. Armar o palco para a guerra contra o Iraque exigiu a elaboração de palavras refinadas, da mesma maneira que, por mais de 10 anos, o termo “sanções” foi usado para mascarar enorme sofrimento e grande número de mortos no Iraque. Exceto por algumas poucas notícias, a grande mídia nos EUA ignorou as sanções ou sarcasticamente atribuiu seus terríveis impactos à perfídia de Saddam Hussein. Outra passagem jornalística marcante foi um artigo de Bagdá, publicado pelo New York Times em 18 de novembro de 2002, no qual o jornal precipitadamente se referiu ao “empobrecimento de muitos dos 22 milhões de iraquianos como punição pela resistência a se submeter às inspeções irrestritas de armas”. Talvez uma investigação a fundo da situação do Iraque sob sanções fosse extremamente problemática para os EUA. 107 SANÇÕES Resse Erlich Basra teve, no passado, reputação duvidável. Xeiques do mundo árabe iam ao Basra Sheraton para desfrutar do álcool, das mulheres e de outros prazeres formalmente proibidos em seus países de origem. Hoje em dia, estrangeiros podem se hospedar no melhor quarto desse mesmo hotel por 40 dólares a diária. Para os iraquianos, o preço é de 10 dólares. Ao final de 2002, andando pelas ruas de Basra tinhase a sensação de que a Guerra do Golfo havia acabado de terminar. A Basra com medo de bombas e cheia de estilhaços estava em estado de choque após 2 guerras. Entre 1980 e 1988, Irã e Iraque lutaram intensamente. A região sofreu novamente graves danos com os ataques dos EUA durante a Guerra do Golfo em 1991. A famosa “estrada da morte”, que se estendia por 60 milhas, de Mutlaa, no Kuwait, até os subúrbios de Basra, foi incansavelmente bombardeada por aviões estaduni- N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H denses quando as tropas iraquianas se retiraram do Kuwait no último dia da Guerra do Golfo. Durante a Guerra do Golfo, o presidente George W. Bush inflamou os iraquianos a se levantarem contra Saddam Hussein. As Shias muçulmanas em Basra cometeram o erro de dar crédito às palavras de Bush. Ao final da guerra, as Shias – que eram a maioria no Iraque – se rebelaram contra o exército iraquiano. Um soldado iraquiano entrevistado, veterano tanto da Guerra Irã/Iraque quanto da Guerra do Golfo, havia sido transferido para o Kuwait e deixou o país quando os EUA atacaram. Em Basra, ele foi subitamente surpreendido pela milícia Shia, que o ameaçava de morte caso ele não baixasse sua AK-47. “Eu lutei em 2 guerras”, disse o veterano, “e nunca senti tanto medo. Aquelas pessoas iam me matar”. Ele deu-lhes a arma, arrancou seu uniforme e foi para casa, no Iraque Central. O veterano faz parte da Sunni, minoria muçulmana no Iraque. Ele estava certo de que o levante não seria apenas contra Saddam Hussein, mas sim o início do conflito Shia/Sunni. Por trás desse relato está uma questão crucial com a qual os Estados Unidos agora se deparam. Ao final da Guerra do Golfo, os EUA poderiam ter deposto Saddam Hussein do poder, porém temeram que sua queda pudesse dividir o país. Iranianos pró-Shia muçulmana tomariam o sul do Iraque. Os curdos tomariam o poder no Norte, levantando possivelmente uma revolta curda na Turquia. Corre-se os mesmos riscos ainda hoje. Em 1991, Muhammad Bakr al Hakin, religioso fundamentalista do 110 A L V O : I R A Q U E Shia, levou milhares de homens de sua milícia do seu santuário no Irã até o Sul do Iraque. A brigada de Bakr lutou contra tropas de Saddam Hussein e fundou uma república islâmica em Basra. Os EUA voltaram mais uma vez a dialogar com Bakr, que aparentemente contava com significativo apoio no Sul do Iraque. No entanto, em 1991 a administração Bush decidiu deixar Saddam no poder, enfraquecer seu regime com sanções econômicas, e então derrubá-lo dentro de algum tempo. Como sabemos, as coisas não funcionaram dessa maneira. Saddam Hussein permaneceu no poder apelando ao patriotismo iraquiano e a uma forte repressão. As pessoas próximas a ele lucraram muito com o contrabando de produtos do embargo. Mercedes e BMWs desfilavam pelas ruas e mansões milionárias eram construídas nas margens do rio Tigre. As sanções impostas pelos EUA foram extremamente eficientes em atingir civis iraquianos. Por 5 anos, a economia doméstica esteve próxima ao colapso. O sistema de saúde estava arruinado pela falta de equipamentos e remédios. Os sistemas públicos de água e de esgotos foram se deteriorando a ponto de crianças sofrerem regularmente de doenças gastrointestinais. A subnutrição se tornou um sério problema nacional. Em 1990, o Iraque ficou em 50o lugar – entre 130 países – pelo Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, que examina o desenvolvimento geral das nações. Em 2000, o Iraque havia caído para o 126o lugar – entre 174 países. Estimativas do UNICEF (Fundo das Nações 111 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H Unidas para a Infância) dizem que 500 mil crianças morreram de causas diretamente relacionadas às sanções. Como resultado de programas de agências internacionais e do governo iraquiano, a taxa de subnutrição infantil diminuiu. Em 1996, 11% das crianças estavam subnutridas. Em 2002, a taxa era de 4%. Mas um milhão de crianças – um quarto das crianças com menos de 5 anos – ainda estavam gravemente mal nutridas. “Isso é inaceitável”, disse Carel de Rooy, representante da UNICEF no Iraque. “Muito mais deve ser feito para acabar com o sofrimento de uma geração de crianças.” Ainda que os EUA enfatizem constantemente que as sanções eram ordem das Nações Unidas, na realidade as sanções teriam sido suspensas há bastante tempo se não fosse pela pressão britânica e estadunidense em mantêlas. As sanções foram promovidas com a mesma intensidade nas administrações republicanas e democráticas, as quais culpavam Saddam Hussein pelo sofrimento do povo iraquiano. Após 1996, o programa Petróleo por Comida melhorou até certo ponto a economia. Ele permitiu ao Iraque vender petróleo e utilizar 59% da renda na compra de produtos para ajuda humanitária às áreas do país controladas por Saddam. Os 41% restantes iam para a reparação de danos da Guerra do Golfo, para programas apoiados pela ONU na zona curda autônoma do Norte e para o pagamento pela administração dos assuntos iraquianos, incluindo a inspeção de armas, feita pela ONU. O programa Petróleo por Comida permitiu a importação de alimentos, remédios e outros artigos vitais, 112 A L V O : I R A Q U E porém os EUA ainda se esforçaram em desmantelar a vida de civis, na esperança de que isso gerasse raiva contra Saddam. Hospital Infantil, Basra A Maternidade e Hospital Infantil de Basra é um prédio térreo com alas distribuídas pelos corredores que se cruzam. Foi, um dia, uma estrutura moderna e higiênica. No final de 2002, algumas áreas do hospital estavam desmoronando por falta de manutenção. As paredes necessitavam de pintura e às vezes não havia desinfetante para que os funcionários pudessem limpar o chão. O Dr. Asad Eesa, chefe residente do hospital, explicou que a ala do câncer estava vazia porque o hospital não tinha remédios de quimioterapia suficientes. Os pacientes vêm, são diagnosticados e mandados de volta para casa até que haja remédio. Eman Shater não conseguiu medicamentos para sua filha Khanasa, de 8 anos, que sofria de um tumor abdominal. Khanasa sentou-se apática no chão do hospital. Ela estava prestes a receber uma transfusão de sangue que aliviaria seu sofrimento, mas o que realmente precisava era quimioterapia. O Dr. Eesa reclamou que, sob sanções, o hospital recebia alguns remédios de quimioterapia em um mês e remédios diferentes no mês seguinte. O tratamento é interrompido tantas vezes que não são raras as recaídas. Uma vez interrompido um tratamento com um remédio, mesmo que ele seja usado novamente mais tarde, não há muitos resultados. Dessa maneira, Khanasa tem 113 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H um “prognóstico ruim”, segundo o Dr. Eesa, que acredita serem as sanções diretamente responsáveis pela morte certa dessa criança. A realidade é bem diferente nos escritórios do edifício da ONU em Nova York. Lá foi montada uma complexa burocracia para administrar a ajuda humanitária e as sanções ao Iraque. Um porta-voz da ONU no Iraque, o departamento que inspecionou a compra de mercadorias sob o programa Petróleo por Comida, admitiu que o suprimento de remédios vitais era irregular, mas a assessora de imprensa Hasmik Egian culpou o governo de Saddam Hussein. Ela disse que a burocracia e o histórico de pobreza são as raízes do problema. “O governo do Iraque é inteiramente responsável pela compra de suprimentos de forma adequada e sem atrasos”, ela disse. “O governo vem inspecionando o setor de saúde de modo vergonhoso.” Barbara Lubin, diretora da Aliança das Crianças do Oriente Médio, sediada em Berkeley, disse que em sua opinião a burocracia iraquiana pode estar indo longe demais em sua obstinação. Ela sabe. Ela visitou o Iraque inúmeras vezes desde 1990. Lubin diz que, antes da imposição das sanções, o governo de Saddam conseguia arranjar remédios prontamente e disponibilizava um dos melhores sistemas públicos de saúde do Oriente Médio. Ela diz não ter dúvidas de que as sanções apoiadas pelos EUA foram responsáveis pelos problemas nos hospitais iraquianos e, portanto, pelas tantas crianças iraquianas mortas por negligência. 114 A L V O : I R A Q U E O estranho caso dos biscoitos vitaminados A UNICEF se orgulha de seu programa de combate à subnutrição no Iraque. A instituição aprendeu a combater a subnutrição através da experiência com outros países em condições bem piores, e, assim, desenvolveu um leite terapêutico e biscoitos vitaminados que contribuem na alimentação infantil. A UNICEF produz o leite e os biscoitos e planeja uma distribuição eqüitativa. É simples – exceto no Iraque. Nos subúrbios de Saddam City, a miserável favela que abriga aproximadamente 3 milhões de iraquianos, os planos eram de que o jardim de infância Al Borouj fosse exemplo do sucesso da UNICEF na guerra contra a fome. Na escola, uma parceria entre a UNICEF e o Ministério da Saúde iraquiano viabilizou um programa de combate à subnutrição infantil. A voluntária na área de saúde Sameera Al Orfali se utiliza de uma escala para determinar a gravidade de cada caso, de acordo com o peso da criança. Orfali mantém detalhados registros de cada uma delas. Os casos mais graves são encaminhados ao hospital. Os outros são colocados em uma lista de espera por leite terapêutico e biscoitos vitaminados que nunca chegarão. Os biscoitos desapareceram em 2000, segundo Orfali, e o leite parou de chegar em 2001. A UNICEF instituiu 2.800 centros de proteção em escolas e creches por todo o Iraque, e sabe exatamente quantas crianças subnutridas são examinadas. Mas não consegue fornecer os suprimentos necessários. 115 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H Alguns voluntários internacionais ofereceram uma explicação, caso fossem mantidos no anonimato. Não é a ONU que produz, na prática, os suplementos alimentares. Eles são produzidos por companhias alimentícias fora do Iraque. A ONU desenvolve especificações rígidas para assegurar que os suplementos contenham todos os ingredientes essenciais. O governo iraquiano compra do fabricante e gerencia a distribuição. Sob as práticas usuais de comércio internacional, o comprador e o produtor assinam um contrato. O comprador paga uma parcela, leva uma amostragem do produto, se certifica de que as especificações foram respeitadas, e então paga mais uma parcela, e assim por diante, até que o contrato seja cumprido. Porém, no programa Petróleo por Comida, o Iraque paga todo o montante de uma só vez. De acordo com um voluntário internacional, os biscoitos vitaminados que o Iraque recebeu não seguiam as especificações da ONU. A companhia soube do problema, segundo o voluntário, mas protestou afirmando que os biscoitos seguiam as exigências nutricionais. O Iraque insistiu em se ater às especificações da ONU. “O programa Petróleo por Comida permite aos fornecedores tirarem vantagem do Iraque oferecendo mercadorias de baixa qualidade”, disse o voluntário. “Se todo o dinheiro já foi pago pelo produto, que garantia o governo tem?” Um ano depois, o fornecedor em questão cancelou o contrato. O governo iraquiano assinou contrato com outro fornecedor, mas este também foi cancelado após 116 A L V O : I R A Q U E um ano. Do mesmo modo, os iraquianos afirmaram que o leite terapêutico fornecido por outra companhia estava contaminado. A companhia quis fazer seus próprios testes e a disputa não foi resolvida. E, nesse meio tempo, nada de leite, nada de biscoitos. Os voluntários não absolvem o governo iraquiano de toda culpa nessas disputas. “Mas as sanções tornaram tudo ainda pior”, disse um deles. Como água potável se tornou um instrumento de guerra Durante as décadas de 1970 e 1980 o Iraque assinou contratos com companhias européias para construir sofisticados sistemas de abastecimento de água em áreas urbanas, porém as centrais de tratamento dependiam de resíduos e produtos químicos estrangeiros. Novamente, as sanções tornaram a manutenção impossível. Já em 1991, o governo dos EUA tinha consciência da vulnerabilidade do sistema de irrigação do Iraque e bem como do impacto que as sanções causariam nele. Thomas J. Nagy, professor da Universidade George Washington, colaborador da revista The Progressive, descobriu documentos reveladores na página da Internet da Defense Intelligence Agency (DIA). Um documento da DIA datado de 22 de janeiro de 1991 dizia que as centrais de tratamento de água no Iraque dependiam da “importação de equipamentos especializados ... para purificar a água que forneciam”. Sem os equipamentos e certos produtos, “aumenta a probabilidade de doenças, incluindo possíveis epidemias, a 117 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H menos que a população seja cautelosa o suficiente para ferver a água”. O porta-voz para assuntos públicos Jim Brooks, contactado no escritório da DIA em Virgínia, disse que os documentos são descritivos, e não são partidários de nenhuma política em particular. “A acusação é de que queríamos que as sanções fossem prejudiciais.” Brooks disse que a DIA havia sido questionada quanto aos resultados, e essa era a resposta. Ele disse: “Foi uma declaração inteligente”. “Quando se entra em guerra, há a preocupação com uma crise humanitária”, disse Brooks. Ele esclareceu que um bom serviço de inteligência alerta os planejadores quanto a possíveis problemas. Durante 12 anos, principalmente por insistência dos EUA, não foi permitido ao Iraque importar peças para reposição e químicos fundamentais no tratamento de água e esgotos. Um documento confidencial do Grupo de Desenvolvimento das Nações Unidas, de 7 de setembro de 2002, apontou que, entre 1990 e 2000, a distribuição diária per capita de água potável no Iraque caiu em 60% nas cidades e em 63% nas áreas rurais. Um quinto da população do Iraque corre o “risco de não ter acesso a água pura e ao saneamento básico”, de acordo com o relatório. Assumindo que os oficiais leram seus próprios relatórios da DIA, as administrações Bush e Clinton estavam cientes do impacto que as sanções teriam no fornecimento de água no Iraque. De 1991 a 1999, a central de tratamento de água 118 A L V O : I R A Q U E Shatt Al Arab operou com 20% de sua capacidade, segundo o engenheiro Mehmood Wahad. Os EUA vetaram a importação de produtos químicos e peças para reposição, alegando que elas poderiam ser usadas também para fins militares. O cloro, vital para a purificação da água, pode também ser usado na fabricação de gás cloro, por exemplo. Críticos afirmam que os EUA bloquearam ou atrasaram intencionalmente até mesmo a importação de peças vitais para reposições que não tinham uso militar. “É uma maneira sádica de inflamar o povo iraquiano”, disse Fábio Alberti, presidente da Pontes para Bagdá, uma organização não governamental italiana que atua na renovação das centrais iraquianas de tratamento de água. “Eu realmente não entendo que tipo de uso militar podem ter clorinadores e bombas de água.” O Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PDNU) confirma os longos atrasos na aquisição desse material. O programa reequipou várias centrais de tratamento de água e esgotos em Bagdá. Mas o comitê de sanções da ONU atrasou de 6 meses a um ano a entrega de equipamentos, de acordo com Ruth Arias, representante residente do PDNU. Em conseqüência disso, ela falou em uma entrevista, os iraquianos estão impossibilitados de restaurar suas instalações de tratamento de água. A falta de peças para reposição significa também que o esgoto não tratado é despejado nos rios contra a corrente das centrais de tratamento de água – tornando ainda mais difícil a purificação da água. 119 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H Com a ajuda do Pontes para Bagdá, engenheiros da Central de Tratamento de Água Shatt Al Arab encontraram peças para reposição no Iraque, conseguindo restabelecer a central em 1999. Ao final de 2002, essa instalação trabalhava com 70% de sua capacidade, segundo o engenheiro Wahad. Ele diz que, tecnicamente, a água pode ser bebida seguramente, mas os moradores de Basra não gostam de seu sabor salgado, além de continuarem contraindo doenças. Questionado se ele toma seu próprio produto, responde acanhadamente: “Não. Eu bebo água de fornecedores de água privados”. 120 A CAMINHO DA GUERRA Norman Solomon Em 14 de novembro de 2002, poucos dias antes dos primeiros membros da nova equipe de inspeção da ONU chegarem a Bagdá, o Secretário de Defesa dos EUA concedeu uma entrevista ao vivo na Rede Infinity Broadcasting. Um dos presentes perguntou o que aconteceria caso os inspetores da ONU não encontrassem armas de destruição em massa no Iraque. “Isso provaria que o processo de inspeção foi vencido pelos iraquianos”, respondeu Donald Rumsfeld. Na realidade, ele estava dizendo que a ausência de evidências incriminadoras seria por si só incriminadora. “Não há como negar que o regime iraquiano é esperto”, adicionou Rumsfeld, “por muito tempo eles vêm escondendo e maquiando coisas.” Poucos dias depois, é lançada resolução da ONU que estabelecia 8 de dezembro como prazo para que Bagdá entregasse, em um detalhado inventário, uma declaração completa de seu programa de armas. Alegando “pressão N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H sobre o Iraque para se obter um relatório honesto”, o New York Times noticiou em 16 de novembro: “Os EUA anunciam que provas de que o Iraque mentiu serão consideradas razão suficiente para ir à guerra e depor o governo”. Da mesma maneira, se o Iraque admitisse possuir qualquer arma de destruição em massa, essa confissão poderia ser considerada suficiente para justificar a guerra ao Iraque. Para evitar a guerra, o governo iraquiano teria de provar o oposto. O presidente Bush seria o juiz. Depois de um intervalo de 4 anos, as inspeções no Iraque foram realizadas em 5 semanas, antes do final de 2002. Vistas pela luz da esperança de eliminar armas de destruição em massa do arsenal iraquiano, as novas inspeções – com tecnologia extremamente sofisticada, e impertinentes como nunca – foram favoráveis. Para aqueles em Washington que esperavam abrir caminho para uma guerra no Iraque, o novo regime de inspeções era um obstáculo que devia ser vencido. “Tentativas de dar início às inspeções permaneceram intrincadas ontem pelo que os iraquianos, publicamente, e os oficiais da ONU, às escondidas, dizem ser uma tentativa da administração Bush de solapar a missão logo de início”, declarou o Independent londrino em 20 de novembro. Constantes críticas ao inspetor Hans Blix levou Mark Gwozdecky, porta-voz da equipe da ONU no Iraque, a declarar: “Os responsáveis por essas críticas parecem não entender o mal que estão fazendo às tentativas internacionais de conter a proliferação de armas de destruição em massa, não apenas no Iraque, mas em qualquer outro lugar”. 122 A L V O : I R A Q U E Porém, aguardar a inspeção de Blix transformou-se prioridade para os entusiastas de guerra da equipe de Bush. Eles planejavam pressionar Blix a se confrontar mais intensamente com o governo iraquiano e a buscar alicerces que justificassem seus futuros relatórios ao Conselho de Segurança. A imprensa direitista seguia o mesmo compasso. “Esperamos que, com o passar dos dias, o Sr. Blix entenda que sua própria credibilidade está em jogo, tal qual a de Saddam Hussein”, publicou o Wall Street Journal em 22 de novembro, acrescentando que “o Sr. Blix caminha com seus próprios pés no Iraque, e nada indica que ele lutará para desarmar o ditador. A dúvida agora é se o diplomata sueco deixará que Saddam o faça de bobo, a ele e à ONU, novamente”. Esse era o início de uma campanha nas páginas do editorial do Journal, freqüentemente fonte de declarações que rapidamente ecoam pela mídia nacional. Duas edições mais tarde, a agressão aparecia sob a manchete “Hans, o Acanhado”. Para explicitar graficamente o caráter dúbio de Blix, o desenho que acompanhava um artigo de primeira página mostrava-o usando uma gravata com o símbolo da paz. Tanto o editorial quanto o artigo traziam à tona os méritos de outro inspetor de armas, Rolf Ekeus, e discordavam do fato de não ter sido ele o escolhido para o posto no lugar de Blix. O editorial dizia que Ekeus era “muito mais obstinado” e o artigo o descrevia como “o líder altamente competente da comissão especial da ONU que inspecionou o Iraque nos anos de 1990”, porém nenhum dos dois textos mencionava que Ekeus estava denun123 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H ciando na Justiça o papel do governo estadunidense nas inspeções da ONU no Iraque. Quatro meses antes, em 30 de julho, o Financial Times havia publicado uma matéria que não interessou à mídia estadunidense: “Rolf Ekeus, chefe das inspeções de armas da ONU no Iraque de 1991 a 1997, acusou os EUA e outros membros do Conselho de Segurança de manipularem as equipes de inspeção da ONU para seus próprios propósitos políticos”. Essa manipulação sempre fez parte da relação de Washington com as inspeções da ONU no Iraque. Agora, com o Pentágono se mobilizando a todo vapor para um ataque, os políticos estadunidenses estavam ansiosos por denegrir o novo processo de inspeção tocando nos pontos nos quais eles não têm controle. A imprensa algumas vezes era prestativa. No Dia de Ação de Graças em 2002, a Casa Branca deve ter ficado muito satisfeita em ver a matéria de capa do Washington Post, iniciada com a frase: “As Nações Unidas iniciaram ontem a inspeção de armas, possivelmente a mais importante de todos os tempos, com uma equipe que inclui um homem de 53 anos, de Virgínia, sem nenhuma especialização científica, e outro com experiência em casas de sexo sadomasoquista”. Entre os cem especialistas em armas escolhidos para integrar a equipe de inspeção da ONU no Iraque, o Washington Post encontrou um (“em Nova York, esperando para ser enviado ao Iraque”) com experiência sadomasoquista. A história ganhou grande destaque na mídia estadunidense, danificando a imagem pública do trabalho de inspeção da ONU, ainda que o adepto a práticas sadomasoquistas em questão, um ex-integrante da Ma124 A L V O : I R A Q U E rinha dos EUA e ex-membro do Serviço Secreto, tenha sido integrado à equipe de inspeção da ONU por sugestão do Departamento de Estado dos EUA. A deturpação envolvendo o sadomasoquismo proporcionou uma brecha conveniente para as críticas ao novo projeto de inspeção. Conforme um subseqüente artigo do Post, que levava à frente a paranóia sadomasoquista do jornal de 2 dias antes, especialistas em armamentos com qualificações melhores e experiência no Iraque durante os anos de 1990 foram “considerados agressivos demais em suas buscas desarmamentistas” e foram deixados de fora da atual equipe de inspeção da ONU. Entre as objeções dos “antigos inspetores” estava a de que “a nova política da ONU de não compartilhar as informações com os serviços de inteligência poderia dificultar ainda mais a capacidade da equipe de encontrar armamentos”. Como a transferência de informações da equipe de inspeção da ONU para a CIA poderia auxiliar a equipe da ONU foi algo deixado sem explicação, ainda que não haja dúvidas de que isso ajudaria o governo dos EUA a selecionar com mais precisão os alvos no Iraque. Durante os primeiros meses de 2002, com as tropas estadunidenses se dirigindo para a região do Golfo Pérsico, acirravam-se os ataques aéreos no Norte e no Sul do Iraque. Um noticiário tipicamente estadunidense sobre os ataques cruzados foi o de 15 de novembro, quando a Headline News da CNN citou o “mandato da ONU de zonas de vôo proibido”. O problema aqui era de que 125 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H as Nações Unidas nunca emitiram nenhum “mandato” em tais áreas. Mas isso parece não ter importância no “império da mídia”. “Aviões de guerra estadunidenses e britânicos já começaram a adotar uma postura mais agressiva para reforçar a proibição de vôo em certas áreas do Iraque, as regiões Norte e Sul, das quais os aviões iraquianos foram banidos”, noticiou a revista Time em sua edição de 2 de dezembro. O uso que a revista fez da voz passiva (“foram banidos”) facilitou a omissão do fato de os bombardeios estadunidenses e britânicos terem sido autorizados somente por suas próprias autoridades. Os ataques aéreos eram, claramente, parte de uma preparação para a guerra, e a brigada iraquiana antibombardeio aéreo permitiu ao Pentágono acesso a informações úteis de combate, bem como a questões de propaganda doméstica. Havia ainda a possibilidade da derrubada de um avião servir de evento, como aconteceu no Golfo de Tonkin. “É sempre um grave incidente quando alguém ataca um avião estadunidense”, disse o porta-voz da Casa Branca, Ari Fleischer, em 19 de novembro, classificando o ocorrido como uma “substancial violação às resoluções das Nações Unidas”, embora oficiais estadunidenses tenham voltado atrás nessa declaração após uma pronta resistência do secretário-geral da ONU, Kofi Annan. Ainda assim, jogar bombas no Norte e no Sul do Iraque certamente iria ajudar os planos de guerra de Washington. “Ataques aéreos estadunidenses e britânicos aos alvos de defesa aérea iraquianos estão começando a exibir um padrão que se encaixa primorosamente no plano de guerra projetado 126 A L V O : I R A Q U E pelos EUA para derrubar o presidente Saddam Hussein”, relatou o Times londrino em meados de novembro. Na mesma época, um expediente da Reuters no U. S. S. Abraham Lincoln explicou que os vôos agressivos “se tornaram um ensaio para a guerra e uma chance de enfraquecer a força militar de Bagdá a caminho da batalha”. Enquanto o Pentágono preparava um ataque monstro ao Iraque, muitos noticiários estadunidenses pintavam como benéfico o que estava por vir. Ao final de novembro, uma cobertura das inspeções feita ao longo de 4 páginas da Time terminava com uma consideração quanto a antigos problemas feita pelo porta-voz de uma agência de energia atômica: “Algumas vezes chegamos a um edifício e os iraquianos estavam escapando pelas portas dos fundos. Não queremos que isso aconteça desta vez”. À qual a revista acrescentou: “A melhor notícia para os inspetores pode ser a de que, desta vez, os EUA estão preparados para punir Saddam Hussein caso isso ocorra”. Geralmente, esse resumo da guerra que estava por vir – uma maneira de “punir Saddam” – despreza as pessoas na linha de fogo e as torna invisíveis. Ostentando o poder bélico do “Tio Sam”, uma reportagem do USA Today aderiu à desculpa da grande mídia de que um homem seria o alvo de todo esse ofuscante poder: “Em Whiteman [base da Força Aérea], o Pentágono se esforça para advertir, mencionando seu B-2, o mortal poder de fogo que usará contra Saddam em caso de guerra”. A linguagem do jornal era fluente e de exaltação: “Visto de praticamente qualquer ângulo, o B-2 é uma 127 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H maravilha tecnológica. Ele é capaz de lançar, em uma única missão, dezesseis bombas de uma tonelada guiadas por satélite. Os aviões de bombardeio, que custam 1,5 bilhão de dólares cada um, são capazes de carregar também oito bombas localizadoras de abrigos, pesando 2 toneladas, projetadas para penetrar em reforçados abrigos subterrâneos”. O texto mencionava por alto que o armamento de 2 toneladas era “conhecido na Força Aérea como a diversão da multidão”. Grande quantidade de tinta, papel de imprensa e papel cuchê passaram batidos pelo real poder de morte desse arsenal; bem como muitas horas de transmissão nacional de televisão, já entregue ao jogo-de-guerra, com simulações gráficas em cores e imagens majestosas de porta-aviões, aviões a jato, aviões de bombardeio e mísseis. Tal cobertura antecipada, com sua implícita idolatria ao armamento estadunidense, era uma prévia do que se poderia esperar da maioria dos veículos de comunicação dos EUA após o início da conflagração. Para tornar aceitável a próxima guerra, era necessário o usual disfarce da anterior. (Orwell: “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”.) As diretrizes para compreender a próxima guerra contra o Iraque têm suas bases nas manobras bem-sucedidas durante a Guerra do Golfo. “O incansável apetite das emissoras fez com que o Pentágono controlasse uma questão simples”, relembra Patrick J. Sloyan, dez anos após ter ganho o Prêmio Pulitzer por sua cobertura da Guerra do Golfo como correspondente do Newsday. “Todo sistema estaduni128 A L V O : I R A Q U E dense de armas é monitorado por câmeras de televisão na lateral dos aviões de guerra e dos helicópteros ou nas mãos de soldados ou câmeras militares. Essas imagens de ‘câmeras-arma’ podem ser liberadas ou retidas dependendo das decisões dos chefes políticos das forças militares. Assim, quando a guerra aérea teve início, em janeiro de 1991, a mídia foi alimentada com imagens cuidadosamente selecionadas por Schwarzkopf na Arábia Saudita e por Powell em Washington, D.C. A maioria dessas imagens era completamente mal-intencionada.” É simbólico que o homem que foi secretário da Defesa e presidente da Junta dos Chefes de Estado doze anos antes seria também primordial para a nova guerra, agora como vice-presidente e secretário de Estado. Em um ensaio escrito em 2002, quando Sloyan estava na Fundação Alicia Patterson, a descrição que ele fez das “limitações impostas sobre os repórteres no campo de batalha”, em 1991, soava prenunciadora: “Sob regras elaboradas por Cheney e Powell, os jornalistas não podiam dar um passo sem escolta militar. Todas as entrevistas tinham de ser monitoradas pelo relações-públicas militar. Toda linha escrita, toda fotografia e toda tira de filme tinha de ser aprovadas – censuradas – antes de serem registradas. E essas regras eram reforçadas impiedosamente. No início de dezembro de 2002, o crítico de imprensa do Los Angeles Times, David Shaw, dividiu com os leitores sua previsão: “Baseado em desempenhos passados, tanto da atual administração Bush quanto de seus imediatos predecessores republicanos, há 129 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H todos os motivos para pensar que, se formos à guerra com o Iraque, Washington exercerá mais controle sobre a imprensa do que nunca, usando todas as táticas, da manipulação à fraude e à desinformação”. As críticas retrospectivas de imprensa abordavam o tema do desempenho técnico apoiadas em falsas alegações: Quantas “bombas inteligentes” havia de fato? A maioria dos mísseis marítimos Tomahawk não foi extraviada? Na verdade, os EUA não falharam na destruição dos lançadores de mísseis iraquianos Scud? Porém, a Casa Branca e o Pentágono já haviam respondido essas questões – as armas são melhores agora, e nós faremos um trabalho ainda melhor da próxima vez. “A tecnologia tornou o militarismo ainda mais eficiente”, vangloriou-se a edição de 2 de dezembro de 2002 da Time. A maior decepção da Guerra do Golfo foi – e presumivelmente a maior decepção da guerra contra o Iraque em 2003 seria – psicológica e não técnica. Independentemente das tensões entre imprensa e Estado, a mídia estadunidense e oficiais de Washington trabalhavam como co-produtores de ilusão. “Na manipulação da imprensa” escreveu Sloyan, “e, conseqüentemente, da opinião pública sobre a ‘Operação Tempestade no Deserto’, “a administração Bush não produziu uma única foto ou um único vídeo de alguém sendo morto. Essa imagem higiênica e sem sangue feita por militares fez com que o mundo presumisse que a ‘Operação Tempestade no Deserto’ fosse uma guerra sem mortos.” 130 A L V O : I R A Q U E Tal suposição certamente assustaria os parentes e amigos dos estimados 100 mil iraquianos mortos na “Operação Tempestade no Deserto”. (Reduzidos a números redondos, torna-se difícil a qualquer vítima de guerra parecer um ser humano real. “A morte de um homem é uma tragédia”, falou Stalin, em Potsdam, em 1945. “A morte de milhões é uma estatística.”) Porém, uma pergunta fundamental é por que, com pesquisas indicando apoio majoritário a uma guerra contra o Iraque, se considerou necessário proteger os partidários da guerra de suas realidades mais básicas? Uma razão plausível é a de que o apoio pudesse ruir com o peso da informação real, especialmente se veiculada em termos intelectuais e emocionais. “A intenção manifesta dos EUA de mudar o regime iraquiano indica que qualquer novo conflito será muito mais intenso e destrutivo que a Guerra do Golfo de 1991, e envolverá mais armas letais desenvolvidas nesse ínterim”, dizia um relato publicado em meados de novembro de 2002 por profissionais da saúde ligados à organização Medact e à International Physicians for the Prevencion of Nuclear War. “Além do mais”, eles avisaram, “a saúde mental e física dos iraquianos em geral está muito pior do que estava em 1991, o que os faz muito mais vulneráveis desta vez.” O relato, examinando “o impacto provável de uma nova guerra no Iraque pela perspectiva da saúde pública”, descobriu que “estimativas confiáveis do total de mortes durante o conflito e nos 3 meses subseqüentes variam de 48 mil a mais de 260 mil. A guerra civil no Iraque poderia adicionar 131 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H outros 20 mil mortos. As mortes tardias causadas por adversidades de saúde no pós-guerra poderiam atingir 200 mil. Caso armas nucleares fossem utilizadas, o número de mortes poderia atingir 3,9 milhões. Em todos os casos, a maioria das ocorrências seria entre os civis.” Mesmo quando baseadas nas melhores perícias médicas, tais estimativas não poderiam ser mais que suposições. A real dimensão do desastre humano pode se revelar menor ou maior. Mas para milhões de pessoas, os riscos eram enormes. Os responsáveis pelas decisões em Washington estavam esperando ansiosamente para jogar os dados. 132 A QUESTÃO DO PETRÓLEO Reese Erlich Em grandes protestos contra a intervenção estadunidense no Iraque pode-se ver cartazes de “Não à guerra por petróleo”. Muitas pessoas acreditam que o petróleo teve e continua tendo um papel primordial nas decisões militares estadunidenses quanto ao Iraque. Afinal de contas, o Iraque provou ter reservas de 112 bilhões de barris, a segunda maior reserva do mundo, perdendo apenas para a Arábia Saudita. Se os EUA invadirem e ocuparem o Iraque, como as companhias de petróleo estadunidenses não iriam fazer negócio e tirar seu lucro? Um regime pró-EUA em Bagdá também daria às companhias estadunidenses de petróleo controle muito maior sobre o mercado de petróleo no mundo. Portanto, o interesse no petróleo é uma parte significante na determinação da política estadunidense. De fato, 22% dos estadunidenses acreditam ser o petróleo a maior explicação do motivo de os EUA usa- N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H rem de força militar contra o Iraque, segundo uma pesquisa de dezembro de 2002. (New York Times, 5/12/02) Porém, esse ponto-de-vista está sujeito à gozação em Washington e em grande parte da mídia estadunidense. David Ignatius, editor da International Herald Tribune, escreveu que “oficiais seniores da administração Bush estão tão ocupados se preocupando com armas de destruição em massa que quase não prestaram atenção às políticas do petróleo no Iraque. Na realidade, diz-se que as companhias de petróleo estadunidenses temem ser excluídas dos contratos pós-guerra”. (Washington Post, 18/10/02) Repórteres, especialistas no assunto e comentaristas de Internet estadunidenses desdenham a idéia de que o petróleo poderia influenciar planos políticos e militares dos Estados Unidos. Porém, escondida nos cadernos de economia de jornais dos EUA e da Europa, vem a público, ocasionalmente, uma visão divergente. Vamos dar uma olhada nas principais hipóteses. O petróleo tem um papel fundamental nas decisões políticas e militares de outros países, mas não na dos EUA. Conforme diversas pesquisas feitas pela grande imprensa nos EUA, o petróleo auxilia na determinação da política de outros países com relação ao Iraque. A companhia de petróleo francesa Total Fina Elf negociou os direitos de trabalhar em campos iraquianos com total estimado de reservas de mais de 10 bilhões de barris. A França ostentou 1,5 bilhão de dólares em negócios com o Iraque durante 2001. Menciona-se cor134 A L V O : I R A Q U E rentemente que esses fatores são a principal razão pela qual a França quis tão veementemente modificar as resoluções do Conselho de Segurança, apoiadas pelos EUA, quanto ao Iraque. O Iraque deve à Rússia cerca de 8 bilhões de dólares em dívida externa. A companhia russa Lukoil tinha acordos de 3,8 bilhões de dólares para reabilitar e desenvolver campos de petróleo iraquianos. Em 12 de dezembro de 2002, o Iraque anunciou ter cancelado o contrato, aparentemente por desgosto da cooperação russa com os EUA. É possível que oficiais estadunidenses tenham se utilizado de promessas de futuros contratos de negociação de petróleo como uma barganha para que Putin visse a invasão estadunidense com bons olhos. Com referência aos laços da Rússia com o Iraque quanto ao petróleo, o Presidente Bush falou à TV russa: “Sem dúvida esses interesses serão levados em consideração”. “Eram óbvios os interesses dos russos no Iraque”, James Colin, ex-embaixador dos EUA em Moscou, falou ao Washington Post: “A questão, para nós, é de que modo esses interesses serão reconhecidos e protegidos. Caso se deseje que a Rússia se envolva [com a guerra estadunidense no Iraque] ... é necessária uma fórmula que proteja esses interesses”. (Washington Post, 13/10/ 02) Considerações quanto ao petróleo podem certamente guiar decisões políticas de quaisquer outros governos, mas, de acordo com a mídia internacional, os laços da administração Bush com a indústria do petróleo são irrelevantes. 135 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H Isso é ainda mais curioso quando temos em mente que George W. Bush administrou uma companhia de petróleo, que o vice-presidente Dick Cheney foi o CEO da corporação de equipamentos para exploração de petróleo Halliburton, e que a conselheira de Segurança Nacional Condoleezza Rice foi uma das diretoras da Chevron. Se as companhias de petróleo estadunidenses quisessem o petróleo do Iraque, elas o comprariam simplesmente. Não há necessidade de se ir à guerra Algumas pessoas que apóiam a administração Bush argumentam que, se o petróleo fosse tão importante, por que as corporações estadunidenses de petróleo não o comprariam do Iraque? Realmente, se as companhias de petróleo controlassem de fato a política dos EUA, elas seguiriam as ordens de seus escritórios europeus e exigiriam o fim das sanções ao Iraque para facilitar o comércio. Em resumo, é exatamente isso o que as companhias estadunidenses fizeram até os anos 1980. Companhias estadunidenses e européias se desapontaram quando o Iraque nacionalizou holdings* estrangeiras de petróleo, em 1972, mas aprenderam a lidar com suas frustrações. Elas compraram petróleo das petrolíferas nacionalizadas iraquianas sem se preocuparem muito com a repressão de Saddam Hussein sobre seu próprio povo ou com seu uso militar de gás venenoso contra tropas iranianas e curdos iraquianos. Negócio é negócio. Mas após 1991, como parte * Holdings - empresas que não produzam bens e serviços e se destinam apenas ao controle de outras empresas. 136 A L V O : I R A Q U E dos esforços estadunidenses de fazer cair o governo de Saddam Hussein por meio de sanções, as companhias de petróleo dos EUA foram proibidas de investir ou comprar petróleo iraquiano, exceto quando aprovado pelo programa das Nações Unidas Petróleo por Comida. Isso provavelmente frustrou executivos do petróleo nos EUA, que viam contratos lucrativos indo para companhias fixadas em países cujo governo não tinha conflitos políticos com o Iraque. Por exemplo, Dick Cheney, como presidente da Halliburton, pediu o fim das sanções contra o Iraque antes de ingressar na corrida presidencial em 2000. Com a guerra parecendo iminente, as companhias estadunidenses de petróleo podem, sem dúvida, avistar grandes possibilidades para além do lucro limitado que conseguiam comprando petróleo de uma companhia nacionalizada. Se um regime pró-EUA privatizasse o petróleo iraquiano, as companhias estadunidenses, então, poderiam lucrar bilhões de dólares dividindo a indústria. Isso também daria a essas corporações controle de parte substancial da produção de petróleo iraquiano, estimada em 10 milhões de barris por dia, assim que o país se reerguesse após a guerra. Atualmente, a Arábia Saudita fornece apenas 17% do petróleo estadunidense, porém representa um papel fundamental no mercado mundial do petróleo. Pelo fato de aproximadamente 25% das reservas mundiais de petróleo se situarem na Arábia Saudita, a decisão desse país de aumentar ou diminuir a produção afeta diretamente os lucros das companhias estadunidenses de 137 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H petróleo. A Arábia Saudita tem sido um forte aliado dos EUA, porém vem sofrendo muitas críticas após os ataques em Nova York e em Washington, D.C., em 11 de setembro de 2001. Se os EUA instaurarem um regime aliado em Bagdá, as petrolíferas estadunidenses terão, potencialmente, muito mais influência nos preços mundiais. A OPEP – da qual a Arábia Saudita é membro líder – terá muito menos. “Caso se consiga uma mudança de regime e um governo mais amigável” no Iraque, disse ao New York Times Philip J. Flynn, analista da questão do petróleo, “as torneiras serão abertas e será muito mais difícil para a OPEP controlar os preços” (New York Times, 24/11/ 2002). A maioria das companhias de petróleo não está interessada somente em um lucro justo; elas precisam controlar o mercado mundial o máximo possível para maximizar seus ganhos. Isso significa controlar o petróleo na fonte, na refinaria, nos pontos de distribuição e na venda. Isso significa também esmagar a concorrência. Mark Flannery, um analista do petróleo para o Credit Suisse First Boston, falou à MSNBC de que maneira uma ocupação do Iraque pelos EUA beneficiaria corporações estadunidenses de petróleo. “[Se] são os seus tanques que derrubam o regime e você tem 50 mil tropas no país ... então você conseguirá o melhor negócio. É assim que funciona. Os franceses terão alguns homens e um tanque dos anos de 1950. Isso não vai adiantar.” (MSNBC, 11/11/02) 138 A L V O : I R A Q U E Mesmo que as companhias petrolíferas estadunidenses esperem lucrar com a invasão, não lhes foi prometido nenhum acordo especial Um colunista do Washington Post cita os grupos iraquianos de oposição dizendo que eles revisarão contratos de petróleo iraquiano já existentes depois da queda de Saddam Hussein, mas que “eles tomarão o cuidado para que não haja nenhum vestígio das companhias estadunidenses”. “Estamos em 2002, não nos anos 1930 ou 1940”, disse Salah al-Shaikhly, um oficial senior do Iraqi National Accord. “Nenhum governo iraquiano duraria 24 horas se eles permitissem algo assim.” (Washington Post, 18/10/02). Aparentemente, esse não é o ponto-de-vista de Ahmed Chalabi, líder do Congresso Nacional Iraquiano – algumas pessoas no Ocidente querem fazê-lo novo presidente do país: em outubro de 2002, ele se encontrou com executivos das 3 maiores companhias estadunidenses de petróleo “para negociar a escavação das imensas reservas de petróleo do Iraque pós-Saddam”, segundo o londrino Observer (3/11/02). O artigo observava que as companhias de petróleo chinesas, russas e francesas temiam ser “excluídas da indústria de petróleo do Iraque pós-Saddam ... Chalabi deixou claro que iria recompensar os EUA, pela retirada de Saddam, por meio de lucrativos contratos de petróleo”. O artigo do Observer divulgou as reuniões por causa da preocupação da British Petroleum com a sua também possível exclusão de contratos lucrativos. 139 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H Chalabi disse ao Washington Post que “companhias estadunidenses terão uma boa dose do petróleo iraquiano.” (Washington Post, 15/9/02). Independentemente de quem acabar possuindo os poços de petróleo e as refinarias, companhias estadunidenses de equipamentos para exploração do petróleo se mostram prontas para se apropriar de contratos para reconstruir a indústria do petróleo. As sanções e a guerra reduziram significativamente a produção de petróleo do Iraque. As petrolíferas estadunidenses Schlumberger e Halliburton estão engatilhadas para se apoderarem de contratos de 1,5 bilhão de dólares para reconstruir a indústria do petróleo, segundo um relatório do Deutsche Bank (New York Times, 26/10/02). É tudo teoria da conspiração O argumento “não à guerra por petróleo” é refutado às vezes como sendo simples teoria da conspiração. Não afirmaríamos que executivos gananciosos de companhias petrolíferas telefonem à Casa Branca todos os dias pedindo guerra. Não temos conhecimentos de encontros, se é que houve algum, entre executivos das companhias de petróleo e a Casa Branca. Mas, se há discussões, elas estão certamente sendo mantidas em segredo. O vice-presidente Cheney não obedecerá a uma intimação G.A.O. (sic) de listar os executivos das companhias de energia com os quais ele discutiu a política energética em 2001; logo, pode-se presumir que o desfecho da presente situação será guardado com muito cuidado. 140 A L V O : I R A Q U E Não há necessidade de nenhuma trama secreta, entretanto. O governo dos EUA – sob administrações republicanas e democratas – promove claramente o controle de fontes estrangeiras de petróleo como parte integral dos “interesses nacionais” dos EUA. De alguma maneira, o contínuo lucro das companhias estadunidenses de petróleo se tornou equivalente às necessidades do povo em relação a energia e transporte. Os estadunidenses não tiram proveito do controle corporativo que os EUA fazem do mercado mundial de petróleo. Poderíamos ter uma qualidade de vida melhor se usássemos menos combustíveis fósseis. Poderíamos facilmente reduzir o consumo de gasolina aumentando a quilometragem por litro de combustível nos carros novos e encorajando o uso do transporte público. Muitas fontes de energia não agressivas ao meio-ambiente se tornaram economicamente viáveis (energia eólica, projetos de pequenas hidrelétricas, sistemas geotérmicos). Outras, como a energia solar e a biomassa, são caras ainda, porém poderiam se desenvolver rapidamente com apoio governamental. Os impostos subsidiaram companhias de petróleo e de carvão durante anos. Parece no mínimo plausível que o governo subsidie essas fontes alternativas até elas se tornarem economicamente mais competitivas em relação ao combustível fóssil. Petróleo não é a única razão para a guerra Como ficou demonstrado no capítulo anterior, o petróleo é um fator de forte motivação em políticas de longo prazo em relação ao Iraque. Mas não é o único. 141 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H Geopolítica: o presidente Bush anunciou a oposição estadunidense a um “eixo do mal”, formado pelo Iraque, Irã e Coréia do Norte. O resto do mundo – e muitos estadunidenses – coçou a cabeça associando dois inimigos históricos (o secular Iraque e a República Islâmica do Irã) e um Estado marxista-leninista linha-dura. Mas agora a estratégia aparentemente volúvel de Bush está ficando mais clara. Ainda que os 3 dificilmente se aliem, a administração Bush seria claramente beneficiada se conseguisse a destituição de seus líderes. Se os EUA invadirem e ocuparem o Iraque, todos os outros Estados da região estarão sob pressão. O Irã se confrontará com dezenas de milhares de tropas hostis em suas fronteiras e terá de se preocupar com uma possível invasão estadunidense. O Iraque é um grande aliado da intifada palestina. Oficiais israelenses se fortalecerão e isso ainda criará o risco de futuros ataques a palestinos que buscam autodeterminação. Expansão militar: lembra-se da divisão de paz? Ao fim da Guerra Fria, os estadunidenses se beneficiariam com o fechamento de bases militares no exterior e em seu próprio país. Se algum ataque tivesse sido evitado por essa divisão de paz, a situação iria explodir. A cada nova guerra, os EUA abrem novas bases militares “temporárias”, que se tornam permanentes bem rapidamente. Desde a guerra do Afeganistão, os EUA instalaram bases militares ou direito de pouso em seis novos países da região. Enquanto os EUA planejavam entrar em guerra com o Iraque, eles abriram ou planejaram abrir novas instalações no Qatar, na Jordânia, Iêmen e 142 A L V O : I R A Q U E Djibouti. Além disso, modernizaram instalações ou aumentaram o número de tropas na Turquia, Arábia Saudita, Kuwait, Oman e Bahrain. Ainda que bases militares e enormes porta-aviões não sejam particularmente apropriados para combater pequenos grupos terroristas, eles esboçam os planos políticos e econômicos estadunidenses em cada pedaço do globo. Executivos das companhias estadunidenses de petróleo não estariam conversando sobre a exploração de petróleo nos campos iraquianos caso os militares estadunidenses não estivessem com os aparatos de exploração nas mãos. Camuflando a situação: muitas pessoas pensam que a administração Bush propagou uma febre de guerra para que as pessoas desviassem a atenção de seus problemas domésticos e para ajudar na eleição dos republicanos. Sem dúvida, a política doméstica tem o seu papel na política estadunidense em relação ao Iraque. É por isso que Karl Rove, antigo conselheiro político de Bush, tem um papel importante nas discussões de política internacional. Manter linha dura contra Saddam Hussein parecia ser bem visto nas pesquisas de novembro de 2002, em parte porque a maioria dos líderes democráticos se recusava a apresentar grandes objeções aos planos de guerra. Já que o petróleo, questões geopolíticas e de expansão militar ordenavam uma política agressiva em relação ao Iraque, então os privilégios da política doméstica seriam uma bela porção a ser dividida. 143 N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H O que esperar do futuro Enquanto este livro estava sendo escrito, os EUA ainda não haviam invadido o Iraque. A administração Bush e a parcela da mídia que o ovacionava ignoraram ou subestimaram a questão do petróleo. Acontecerá o mesmo, provavelmente, quando os EUA conseguirem a “mudança de regime”. Atente para estas questões e considere responsáveis a mídia e os políticos. 1. Quais companhias internacionais assinam contratos para reconstruir a indústria iraquiana de petróleo? Quantas são estadunidenses, britânicas e européias? Quantas são de países que não apoiaram a invasão estadunidense? 2. A indústria de petróleo iraquiana está privatizada? Quem compra e qual é o preço? De que países são os novos donos? Seus governos apoiaram a guerra liderada pelos EUA? 3. Se a indústria de petróleo não está privatizada, quais companhias internacionais assinam contratos para ajudar a produzir petróleo iraquiano? São contratos de serviço, pelos quais se paga uma taxa à companhia, porém os lucros são dos iraquianos? Ou são contratos baseados na “divisão de produção”, nos quais as companhias internacionais repartem os lucros? (Dica: companhias de petróleo ganham menos com contratos de serviço) 4. O que aconteceu aos contratos com as companhias de petróleo russas, francesas e chinesas? 144