ALVO: IRAQUE O que a imprensa não contou

Transcrição

ALVO: IRAQUE O que a imprensa não contou
NORMAN SOLOMON E REESE ERLICH
ALVO: IRAQUE
O que a imprensa não contou
NORMAN SOLOMON E REESE ERLICH
ALVO: IRAQUE
O que a imprensa não contou
EXPRESSÃO
POPULAR
Copyright © 2004, by Expressão Popular
Título original: Target Iraq: Wath The Midia Didn’t Tell You
Tradução: Tatiana Carvalho de Azevedo e Maitê Carvalho Casacchi
Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho
Projeto gráfico, diagramação e capa: ZAP Design
Impressão: Cromosete
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
(Biblioteca Central - UEM, Maringá – PR., Brasil)
S689a
Solomon, Norman
Alvo: Iraque: o que a imprensa não contou / Norman
Solomon e Reese Erlich ; tradução [de] Tatiana Carvalho
de Azevedo e Maitê Carvalho Casacchi. --1.ed.-- São Paulo
: Expressão Popular, 2005.
144 p.
Título original: Target Iraq: wath mídia didri’t tell
You.
Livro indexado em GeoDados-http://www.geodados.uem.br
1. Iraque – Guerra – História. 2. Iraque – Política e
governo. 3. Iraque – Relações exteriores – Estados
Unidos. 4. Iraque – Guerra e imprensa. 5. Armas de
destruição de massa – Iraque. 6. Iraque – Guerra –
Motivos. 7. Iraque – Guerra – Geoge Bush. 8. Iraque –
Recursos minerais. I. Erlich, Reese. II. Título.
CDD 21.ed. 327.567073
956.70443
Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada
ou reproduzida sem a autorização da editora.
1ª edição: dezembro de 2004
EDITORA EXPRESSÃO POPULAR LTDA
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SUMÁRIO
O S C A D Á V E R E S D E F A L U J A A C U S A M G E O R G E B U S H ........................... 7
JOSÉ ARBEX JR.
I R A Q U E N O P R E C I P Í C I O ..................................................................................................... 1 3
NORMAN SOLOMON
C O B E R T U R A D A I M P R E N S A : U M A A B O R D A G E M P O R B A I X O .......... 2 3
REESE ERLICH
A GUERRA DA IMPRENSA
NORMAN SOLOMON .................................................................................................................. 3 5
V O Z E S D A S R U A S I R A Q U I A N A S .................................................................................. 5 1
REESE ERLICH
P A S S A N D O P E L O 11 D E S E T E M B R O, T E R R O R I S M O E
A R M A S D E D E S T R U I Ç Ã O E M M A S S A ..................................................................... 6 1
NORMAN SOLOMON
U R Â N I O E N R I Q U E C I D O : O S E G R E D O S U J O D O S E U A ............................ 7 7
REESE ERLICH
O U S O D E E U F E M I S M O S P A R A O T E R M O U N I L A T E R A L ...................... 8 9
NORMAN SOLOMON
S A N Ç Õ E S ........................................................................................................................................... 1 0 9
RESSE ERLICH
A C A M I N H O D A G U E R R A .................................................................................................. 1 2 1
NORMAN SOLOMON
A Q U E S T Ã O D O P E T R Ó L E O .............................................................................................. 1 3 3
REESE ERLICH
OS CADÁVERES DE FALUJA
ACUSAM GEORGE BUSH
J o s é A r b e x J r.
O monstruoso ataque das tropas estadunidenses a
Faluja, no Iraque, iniciado em 8 de novembro de 2004,
foi a primeira grande demonstração do que o mundo
pode esperar após a reeleição de George Bush ao cargo
de presidente dos Estados Unidos. Conduzido à Casa
Branca, no ano 2000, graças a um processo fraudulento, Bush interpretou sua vitória eleitoral, quatro anos
depois, como um aval concedido pela opinião pública
estadunidense aos ataques terroristas de suas tropas
contra outros povos, em particular o iraquiano. Os cadáveres de Faluja, fortaleza da resistência iraquiana aos
invasores, são os primeiros troféus da nova administração Bush.
As grandes corporações da mídia estadunidense têm
uma grande responsabilidade por isso, por uma simples
razão: elas ocultam as dimensões reais do massacre, da
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chacina, da crueldade que atinge, de preferência, crianças, mulheres, idosos, os cidadãos comuns, pacíficos e
desarmados do Iraque.
Certo: ficamos, eventualmente, sabendo que um soldado estadunidense dispara, a sangue frio e com covardia, contra um homem mortalmente ferido, desarmado
e estendido indefeso no chão; sabemos também que
mesquitas são profanadas e que iraquianos presos são
torturados e humilhados por sorridentes oficiais de Tio
Sam; aqui e ali escapam imagens de mães desesperadas,
carregando no colo filhos pequenos esvaindo em sangue. Mas isso tudo, horrível como é, constitui apenas a
ponta do iceberg, como indicam relatos de organizações
humanitárias e de observadores independentes, incluindo a Cruz Vermelha, Anistia Internacional e vários outros. A julgar por esses testemunhos, amparados em fotos
e documentos que circulam pela Internet, não é exagero afirmar que as tropas de Bush praticaram um
genocídio de grandes proporções no Iraque e, particularmente, em Faluja.
As corporações da mídia aprenderam a lição do
Vietnã, e sabem que uma opinião pública bem informada
dificilmente aceitaria a imposição de tais horrores a uma
população inocente. Daí o pacto de cumplicidade com
as Forças Armadas dos Estados Unidos, sintetizado pela
figura do jornalista “embedded”, ou “acamado” em tradução livre do inglês. O jornalista embedded é aquele que
aceitou se submeter a uma série de 50 normas estabelecidas pelo Pentágono, como condição para acompanhar as tropas.
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As normas previam, entre outras coisas, que ele não
poderia reportar nada que não fosse aprovado pelos
chefes do regimento em que se encontra, o mesmo valendo para as transmissões de imagens. Tampouco poderia deslocar-se para áreas consideradas perigosas. Em
resumo, não teria a menor independência, nem sequer
para observar os fatos. Uma boa descrição do correspondente embedded foi feita pelo jornalista israelense Uri
Avnery, durante a invasão do Iraque, em março de 2003:
“Os médicos estão comprometidos pelo juramento de Hipócrates
a salvar vidas na medida do possível. Os jornalistas estão forçados pela honra profissional a dizer a verdade, da maneira como
a vêem. Nunca tantos jornalistas traíram tanto o seu dever como
na cobertura. O pecado original deles foi aceitar o acordo de
participar de unidades do exército. O termo estadunidense
embedded soa como sendo posto a cama, e a isso corresponde
na prática.
Um jornalista que aceita a cama de uma unidade do exército se
torna um escravo voluntário. É agregado aos subordinados, ao
comandante, é levado para os lugares que interessam ao comandante, vê e escuta aquilo que o comandante deseja. É pior do
que ser um porta-voz oficial do exército, por pretender ser um
repórter independente.
O problema não é que você só vê uma fração pequena do grande
mosaico da guerra, mas sim transmitir uma visão falsa daquela pequena fração. Na guerra das Malvinas e na primeira do
Golfo, foi vetado o acesso dos jornalistas às áreas de conflito.
Parece que desta vez alguém brilhante no Pentágono teve uma
idéia: “Para que afastá-los? Deixemos que entrem. Diremos o
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que escrever e transmitir, e comerão em nossas mãos, como
mascotes.”
Desde os 19 anos, sou jornalista. Sempre tive orgulho de ser jornalista. Hoje, estou envergonhado, ao ver um grande grupo de
jornalistas sentado diante de um general cheio de estrelas, escutando avidamente o que chamam de “informações”, sem formular nem a pergunta mais simples. E quando um repórter coloca
alguma questão real, ninguém protesta quando o general responde
com fórmulas de propaganda banais. Quase todos os relatos
jornalísticos desta guerra formam um espelho deformado. Nele
nós vemos um quadro manipulado, deformado e mentiroso”.1
A operação de falsificação das informações, como
nota Avnery, é brilhante: aparentemente, concede-se ao
jornalista total liberdade de presenciar os combates; seus
movimentos são monitorados pelo Exército em nome de
sua própria segurança, assim como a possibilidade de
cobrir tal ou qual área é determinada unicamente por
razões de estratégia militar. Oficialmente, portanto, não
há censura, de forma alguma. Na prática, são aceitos
apenas os correspondentes “bem comportados” que aceitam deitar-se na cama dos oficiais. Avnery observa, com
amarga ironia: Júlio César, quando comandava suas
tropas nos confins do império romano, integrava ao
regimento prostitutas encarregadas de prestar serviço aos
soldados; Bush integra correspondentes de guerra. Como
diz Reese Erlich, co-autor do livro aqui apresentado:
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Jornal Brasil de Fato no 6, de 13 a 19 de abril de 2003, p. 10.
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“A maioria dos jornalistas enviados ao exterior já aceitou as
condições do império. Eu não conheci sequer um correspondente
internacional no Iraque que discordasse da idéia de que os Estados Unidos e a Inglaterra têm o direito de depor o governo
iraquiano por meio da força. Eles discordavam apenas em relação ao momento, se a ação deveria ser unilateral e se uma ocupação de longo prazo seria o melhor a fazer”.
Claro que não cabe a Bush o mérito de ter inventado
a crueldade. Ele apenas prolonga, intensifica e aprofunda
a tradição imperial dos Estados Unidos, sentida na pele
pelos habitantes de Hiroshima e Nagasaqui, Vietnã, Laos
e Cambodja – apenas para citar alguns exemplos de
morticínios bem conhecidos, sem falar das ditaduras
militares latino-americanas. Norman Solomon, o outro
co-autor deste livro, lembra as responsabilidades do
presidente Bill Clinton pela tragédia iraquiana. Clinton
manteve a política de sanções econômicas e comerciais
contra o Iraque, decretada por George Bush (pai), logo
após o primeiro ataque a Bagdá, em 1991:
“Os efeitos das sanções martelavam meu pensamento quando
nossa delegação visitou, em Bagdá, o Hospital Pediátrico AlMansour, onde mães, sentadas em colchões finos, acompanhavam o sofrimento de seus filhos, vítimas de leucemia e câncer.
Os jovens não estavam recebendo a quimioterapia adequada –
resultado direto das sanções impostas pelos EUA.
Ao andar pela ala do câncer, lembrei-me de uma resposta da
então secretária de Estado, Madeleine Albright, durante uma
entrevista no programa de TV ‘60 Minutes’ que foi ao ar em 6
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de maio de 1996. Lesley Stahl, correspondente da CBS, afirmou:
‘Ouvimos dizer que meio milhão de crianças morreram’ e então
perguntou: ‘É um preço que vale a pena pagar?’ Albright replicou: ‘Eu acho que é uma decisão muito difícil, mas o preço –
acreditamos que vale a pena pagá-lo’.”
Solomon e Erlich visitaram várias vezes o Iraque, nos
meses que antecederam a invasão de 2003. Eles oferecem aqui um relato a um só tempo vívido e pungente
daquilo que viram e ouviram quando soavam os tambores da guerra e a população se preparava para enfrentar mais um terrível pesadelo. O resultado é um livro
doloroso, mas esclarecedor. É doloroso, por fazer enxergar as engrenagens implacáveis da máquina do império em movimento: como um pesadelo, o leitor revive,
do ponto de vista dos iraquianos, as horas infinitamente longas que antecederam o ataque, ao mesmo tempo
em que é chamado a refletir sobre as manobras falsificadoras da mídia; é esclarecedor, por recuperar a face
profundamente humana das vítimas, constituir de corpo e alma aquilo que nos jornais aparece como números e estatísticas.
Trata-se, infelizmente, de um livro atual e mais necessário do que nunca.
Dezembro de 2004
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IRAQUE NO PRECIPÍCIO
Norman Solomon
13 de setembro de 2002. No Aeroporto Internacional de Saddam, um oficial iraquiano, com modos educados e firmes, confiscou meu telefone celular. Não foi
uma grande surpresa. Eu acabara de entrar em um Estado totalitário, e as últimas experiências daquele país
com a entrada de bombas guiadas por satélite haviam
sido terríveis. Depois de tantos anos vivendo sob bloqueio, qualquer tecnologia relativa a satélites seria suspeita, especialmente nas mãos de um estadunidense. Não
seria a última vez que o governo iraquiano agiria
daquela maneira: com uma repressão estúpida e
estranhamente justificável.
Em menos de uma hora, nossa delegação se encontrava em frente do Hotel Al-Rashid. Equipes de televisão haviam ocupado a entrada. Era pouco mais de duas
da manhã, e as luzes de suas câmeras banhavam o
mosaico da entrada do hotel com uma estranha
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luminescência. Na calçada, o congressista da delegação
hesitou, preocupado com o que via na entrada. Nick
Rahall, um democrata do Oeste da Virgínia, completando
seu décimo terceiro turno na Câmara dos Deputados,
estava bem longe de casa – ele era o primeiro membro
do Congresso a pisar em solo iraquiano durante a presidência de George W. Bush.
Rahall olhou as câmeras de TV e depois olhou novamente o mosaico de cores. Uma sinistra semelhança
a um presidente anterior, George H. W. Bush, invadiu a
entrada do hotel, junto a faixas que proclamavam em
letras maiúsculas: “Bush é um criminoso”. Cuidadosamente, o congressista avançou pela lateral até o saguão
do hotel, protegido de forma a evitar a inconveniência
de ser fotografado.
Com as tensões crescendo gradativamente, a propaganda do governo iraquiano parecia grosseira e fácil de
ser esquecida. Por toda a capital, inúmeros retratos de
Saddam Hussein vinham acompanhados de ridículas
odes de adoração. Tudo era bastante precário. Mas, como
se aproximava a guerra entre os Estados Unidos e o
Iraque, muitos fatos cruciais dessa realidade poderiam
ser facilmente ignorados, mal compreendidos ou mesmo evitados pelos estadunidenses.
Depois do saguão, em um corredor nos fundos do
primeiro andar do hotel, perto do bar de bebidas não
alcoólicas, os convidados poderiam ganhar tempo nos
vários computadores de uma pequena loja, administrada por um jovem bastante determinado e com uma limitada porém suficiente noção da língua inglesa, além de
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um evidente desejo de servir. Dia após dia, ele ajudou a
mim e a outros estrangeiros a utilizar sua rede de computadores e a navegar na Internet. Seu trabalho, sem
dúvida, incluía o monitoramento de usuários para o governo; porém, sua honestidade era óbvia, e ele possuía
uma espécie de estupidez que não poderia ser fingimento. Já no quarto dia, sentia-se confortável o suficiente para
me contar sobre a igreja protestante que freqüentava aos
domingos, e falar de sua fé em Jesus, o “Príncipe da Paz”.
No mesmo dia, conversei com um repórter de um jornal
britânico que havia se hospedado no Al-Rashid em 1991,
durante a Guerra do Golfo, quando freqüentes ataques a
bomba (do seu governo e do meu) causaram grandes
estragos. Eu me surpreendi ao ouvir que, mesmo naquela situação, os iraquianos que ele conheceu não lhe foram hostis; de alguma forma, aquela sua cultura parecia
evitar o ódio que deles se esperava. Tentei imaginar a
situação inversa: se a força aérea do Iraque estivesse
bombardeando cidades estadunidenses, os visitantes
iraquianos com certeza seriam recebidos com fúria e ódio.
À noite, nossa delegação foi a um restaurante ao ar
livre às margens do rio Tigre. Uma brisa fresca soprava
da água escura; mesas à luz de velas espalhavam-se ao
longo da margem. Era uma noite adorável, com casais
e grupos de amigos se divertindo enquanto o Sol dava
lugar à noite sob a luz da Lua. O outono chegara. Em
breve, aquele lugar idílico, um rio que era o berço da
civilização, iria se tornar uma zona de guerra.
Tariq Aziz nos recebeu em seu escritório. O vice-primeiro-ministro parecia um velho durão em sua farda.
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Um clima pesado de pessimismo preencheu a sala. Aziz
apresentou sua interpretação do que Washington havia
meticulosamente reservado para o Iraque: “A destruição
virá se cedermos ou se não cedermos”.
A data era 14 de setembro de 2002. No escritório de
Aziz estavam membros da delegação trazidos pelo
Institute for Public Accuracy – o congressista Rahall,
junto a James Abourezk, ex-senador dos EUA, James
Jennings, presidente da Consciência Internacional e eu.
Os estadunidenses se revezavam ao afirmar que a dinâmica fatal das últimas semanas poderia ser mudada se
– como um primeiro passo – o Iraque concordasse em
permitir inspeções irrestritas. Era difícil argumentar com
Aziz quando ele dizia em um inglês formal: “Se os inspetores voltarem, não há garantia de que evitem a guerra. Eles podem ser usados, aliás, como um pretexto para
se provocar uma nova crise”. Aziz não acreditava que
as inspeções de armas fossem um meio de protelar o
ataque, sugerindo que seria necessária uma fórmula
compreensível para qualquer solução em longo prazo,
presumidamente incluindo uma garantia de não-agressão da parte dos EUA e o fim das sanções econômicas.
Dois dias depois, o Iraque mudou oficialmente a sua
posição e anunciou a disposição de permitir que os inspetores de armas das Nações Unidas voltassem ao país.
Avaliando as chances de se evitar a guerra, o governo
de Bagdá adotou uma longa estratégia – ainda que muito
arriscada, seria melhor do que nada. Vários anos antes,
Washington havia usado inspetores da Unscom (Comição
Especial das Nações Unidas) para propósitos de espio16
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nagem, o que não tinha relação alguma com a missão
autorizada das Nações Unidas. No final de 2002, novos
grupos de inspeção no Iraque poderiam fornecer dados
valiosos aos Estados Unidos, aumentando a probabilidade de um ataque militar subseqüente.
“Agora somos um país que enfrenta a ameaça de uma
guerra”, disse-nos Saadoun Hammadi, porta-voz da Assembléia Nacional do Iraque. “Temos de nos preparar para
isso.” Homem grisalho e de aparência frágil, Hammadi
estava melancólico: “O governo dos EUA agora está falando de guerra. Nós não daremos a outra face. Iremos
lutar. Não apenas as nossas Forças Armadas irão lutar. O
nosso povo irá lutar”. Enquanto essas palavras tornavam
o ar mais pesado, aquele senhor magro fez uma pausa, e
depois acrescentou: “Eu mesmo irei lutar”. Naquele momento, pensei ter visto a luz de seus olhos se apagar, como
brasas consumidas pelo fogo.
Os oficiais que conhecemos em Bagdá eram homens
inteligentes, dotados de um discurso coerente. Mesmo
assim, serviam ao regime de Saddam Hussein, sujeitando os cidadãos iraquianos a uma repressão severa. Sob
a sua ditadura, na ausência total de um debate aberto, a
sociedade civil não poderia de fato existir. Enquanto isso,
fotos de Hussein em diversas poses – cerimoniais, pouco formais ou bastante pessoais, às vezes mesmo dando
uma boa risada – apareciam diariamente nas primeiras
páginas dos jornais do Iraque, apresentando-o como um
cuidadoso guardião do povo, ainda que cruel. Seu comportamento era ao mesmo tempo caricato e atroz,
farsesco e trágico.
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Um paradoxo grotesco se desenrolava. Meu país, os
Estados Unidos da América, um lugar de muitas liberdades democráticas, preparava-se para atacar, sem
motivos, uma nação que se encontrava presa entre a
tirania de seu líder e o governo dos EUA. A possibilidade de uma solução pacífica parecia terrivelmente remota;
a dimensão do sofrimento por vir era difícil de ser
apreendida.
O céu sobre Bagdá parecia um prenúncio de novos
horrores, incompreensíveis ainda que evitáveis. Ao contemplar a capital do Iraque, pensei em algo que Albert
Camus certa vez escrevera: “E, de agora em diante, a
única direção honrosa será arriscar tudo em uma grande aposta: palavras são mais poderosas que munições”.
Do décimo segundo andar do Hotel Al-Rashid, a vista
era parecida com o espetáculo de qualquer grande metrópole. Carros em constante movimento por largas
avenidas, e o horizonte repleto de grandes edifícios que
invadiam bairros residenciais. Não havia nada fora do
comum – com exceção de que, se tudo corresse como
planejado, o dinheiro que eu pago em impostos dentro
em breve ajudaria a transformar grande parte desta cidade em um inferno.
Com a chegada do outono, um importante artigo do
New York Times citou a ansiedade do mais alto escalão
do governo em esboçar um plano de guerra: “Oficiais
disseram que qualquer ataque teria início com uma
extensa campanha aérea conduzida por bombardeiros
B-2, armados com mais de 900 quilos de bombas guiadas por satélite, para nocautear o comando iraquiano,
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os postos de controle e a defesa aérea”. Esse tipo de linguagem vulgar facilita o entendimento.
A questão da distância, que parece tornar menos
grave a situação do Iraque, e as medidas do governo
facilitaram para que Washington não fosse perturbada
por causa das ruinosas sanções ao Iraque, durante os
doze anos anteriores. Os efeitos das sanções martelavam
meu pensamento quando nossa delegação visitou, em
Bagdá, o Hospital Pediátrico Al-Mansour, onde mães,
sentadas em colchões finos, acompanhavam o sofrimento de seus filhos, vítimas de leucemia e câncer. Os jovens não estavam recebendo a quimioterapia adequada
– resultado direto das sanções impostas pelos EUA.
Ao andar pela ala do câncer, lembrei-me de uma
resposta da então secretária de Estado, Madeleine
Albright, durante uma entrevista no programa de TV “60
Minutes” que foi ao ar em 6 de maio de 1996. Lesley
Stahl, correspondente da CBS, afirmou: “Ouvimos dizer
que meio milhão de crianças morreram” e então perguntou: “É um preço que vale a pena pagar?” Albright replicou: “Eu acho que é uma decisão muito difícil, mas o
preço – acreditamos que vale a pena pagá-lo”.
As conseqüências das sanções se mantinham. O Departamento de Estado dos EUA continuava a vetar alguns carregamentos cruciais de suprimentos médicos
básicos ao Iraque, incluindo itens como centrífugas especiais para tratamento de sangue, refrigeradores de
plasma e bombas de fusão. Após três visitas ao Sul do
Iraque (mais recentemente em setembro de 2002), a Dra.
Eva-Maria Hobiger, oncologista no Lainz Hospital, em
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Viena, disse em um inglês imperfeito e sincero: “Com a
ajuda dessas máquinas, a vida de muitas crianças doentes pode ser salva. Deve ser considerado crime quando
crianças inocentes que estão sofrendo são o alvo da
política”.
Gostaria de levar todos os políticos de Washington
para ver uma garota de 7 anos que sofria de leucemia,
a quem fizemos uma visita no hospital. Talvez eles pudessem parar alguns instantes para assistir ao
sangramento incontrolável de seus lábios, e à angústia
nos olhos temerosos de sua mãe.
Em outubro de 2002, uma resolução circulou pela
Assembléia e pelo Senado para autorizar um intenso
ataque do exército dos EUA contra o Iraque. Eu quase
podia ouvir a voz áspera e profética do senador Wayne
Morse gritando, em 1964, o ano em que ele votou contra a Resolução do Golfo de Tonkin: “Não sei porque
pensamos, só por sermos poderosos, que temos o direito
de tentar substituir o poder em nome do direito”.
Mesmo com os anos de sanção e as mortes que causaram, os mais altos oficiais de Washington – tomando
uma decisão muito difícil em relação à guerra – ainda
consideraram que valia a pena pagar o preço com vidas
humanas. Com a cobertura da imprensa dominada por
discursos geopolíticos e análises estratégicas, a dimensão moral da guerra perdeu referência.
Eu duvido que algum estadunidense se sentiria confortável em uma visita ao Hospital Pediátrico Al-Mansour.
Só posso imaginar, horrorizado, estar naquele hospital
com mísseis explodindo mais uma vez em Bagdá.
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No final de 2002, era muito mais fácil aderir ao discurso oficial sobre “uma extensa campanha aérea
conduzida por bombardeiros B-2, armados com 900
quilos de bombas guiadas por satélite”.
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COBERTURA DA IMPRENSA:
UMA ABORDAGEM POR BAIXO
Reese Erlich
Os repórteres fazem amizade de modo bastante rápido no Iraque. Divide-se uma série de experiências –
desde telecomunicações de má qualidade a oficiais
iraquianos desconfiados e editores irritados.
Bert e eu então aproveitamos. Bert é o pseudônimo
que escolhi para um repórter que trabalha para um dos
principais veículos britânicos. Não estou usando seu nome
verdadeiro pois não quero arrumar-lhe confusão. Os repórteres dizem coisas entre si que jamais diriam em público. Então convido o leitor a um bar metafórico onde,
depois de algumas cervejas, os repórteres falam de tudo.
Bert e eu dividimos um táxi para um passeio por Bagdá.
Passamos pelas modernas avenidas da cidade, que remetem à época de bonança do país, antes das sanções.
Comentei que Saddam Hussein estava reconstruindo
os quartéis do partido Baath, que haviam sido destruídos
por um míssil estadunidense.
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“Ele tem muito dinheiro para isso”, percebi naturalmente.
“Você se daria bem com os meus editores”, disse Bert
jovialmente, com um sotaque entre Oxford e o Sul de
Londres. “Eles adoram ouvir sobre a corrupção no Iraque
e a má distribuição de recursos.”
Bert é politicamente moderado e forte crítico do governo de Hussein, mas se sente pressionado por seus
editores, muito mais conservadores que ele. “Sempre
que eu proponho histórias mostrando o impacto das
sanções nos cidadãos iraquianos”, disse ele, “os editores chamam de notícia fria.” Mas eles nunca se cansam de retrabalhar histórias antigas de corrupção e
repressão no Iraque. Bert internalizou as preferências
de seus editores e geralmente escreve matérias que sabe
que irão gostar. A alternativa é escrever matérias que
nunca serão publicadas ou que ficarão escondidas nas
últimas páginas do jornal.
O problema vai além de disputas entre repórteres e
editores. A maioria dos jornalistas enviados ao exterior
já aceitou as condições do império. Eu não conheci sequer um correspondente internacional no Iraque que discordasse da idéia de que os EUA e a Inglaterra têm o
direito de depor o governo iraquiano por meio da força. Eles discordavam apenas em relação ao momento,
se a ação deveria ser unilateral e se uma ocupação de
longo prazo seria o melhor a fazer.
A maioria das pessoas no mundo, e grande parte
da imprensa fora dos EUA e da Inglaterra, ainda acredita em soberania nacional, a noção sagrada e fora de
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moda da Carta de Direitos das Nações Unidas. Nenhum
país tem o direito de depor um governo estrangeiro
ou de ocupar uma nação, mesmo que esta seja terrivelmente repressora com seus próprios cidadãos. Se
os EUA podem depor Hussein, o que impede a Rússia
de ocupar a Geórgia ou outra das ex-repúblicas soviéticas e instalar regimes mais convenientes? As possibilidades são infinitas.
Apesar dos vários discursos e dos documentos publicados, a administração Bush nunca conseguiu demonstrar de forma convincente que o Iraque apresenta
uma ameaça imediata para seus vizinhos. Diferente de
1991, quando o Iraque ocupou o Kuwait, nenhum país
vizinho afirmou temer uma invasão do Iraque. Os EUA
nunca decidiriam atacar o Iraque antes de uma Assembléia Geral das Nações Unidas, pois seriam certamente
derrotados. O país prefere negociações por baixo dos
panos no Conselho de Segurança.
Quando eu levanto a questão da soberania em conversas casuais com meus colegas de profissão, eles me
olham como se eu tivesse vindo de Marte. Claro que os
EUA têm o direito de depor Saddam Hussein, dizem eles,
pois ele possui armas de destruição em massa e pode ser
uma futura ameaça a outros países. A suposição implícita é de que os Estados Unidos – por serem a única
superpotência no mundo – têm o direito de tomar tal
decisão. Os EUA têm de lidar com a responsabilidade de
depor ditaduras inimigas e instalar ditaduras amigáveis.
A única questão é se sanções ou invasões são a maneira
mais eficiente de fazê-lo.
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Os governos de Bush e Blair [Tony Blair, primeiroministro inglês] lutam em 2 frentes de batalha: uma contra o Iraque, outra pela opinião pública em seus países.
A grande imprensa é um campo de batalha como as
fortificações em Bagdá. E, em sua maioria, Bush e Blair
têm apoio dos soldados da imprensa que montam barricadas em seus países.
Os EUA deveriam ter a melhor e mais livre imprensa
do mundo, mas, pela minha experiência, tendo feito matéria em diversos países, percebo que, quanto mais alto
se sobe na hierarquia jornalística, menos liberdade tem
o repórter.
O típico aspirante a correspondente internacional
forma-se na universidade e começa a trabalhar em um
jornal local ou em uma estação de rádio ou TV. O dinheiro é pouco e as horas são longas. (Repórteres de
jornais de pequenas cidades podem receber, no início um
salário menor que 18 mil dólares por ano.) Mas, talvez
depois de 2 anos, eles sobem alguns degraus em direção a empresas maiores. Após cerca de 5 anos, alguns
dos repórteres mais dedicados e mais talentosos conseguem emprego nos jornais diários das grandes cidades
ou nas principais emissoras de rádio ou de televisão. Uns
poucos começam a fazer trabalhos freelance [trabalho
avulso, sem vínculo empregatício, por conta própria] no
exterior e então se juntam à grande imprensa, mas são
uma minoria.
Os primeiros anos são de trabalho de campo. Mesmo os melhores cursos de jornalismo dão ao aluno apenas um esboço do que é a verdadeira reportagem. Eu sei.
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Eu dei aula em faculdades de jornalismo por 10 anos. A
universidade nunca ensina a encontrar fontes em uma
notícia recente, ou como confirmar uma matéria de fora
da redação quando os celulares não funcionam, ou como
escrever uma história de 800 palavras em 30 minutos.
A melhor educação que um jornalista pode receber é na
prática.
Além das habilidades jornalísticas, os jovens repórteres também aprendem sobre os parâmetros aceitáveis
da reportagem. Há pouca censura formal na imprensa
dos EUA. Mas se aprende quais são as fontes aceitáveis
e quais as inaceitáveis. A maioria dos cargos oficiais e
políticos é aceitável e, quanto mais alto seu cargo, melhor. Antes do colapso de Enron, por exemplo, CEO Ken
Lay (sic) poderia ser citado como um especialista em assuntos relativos a energia e a economia – mas agora conhecemos sua visão tendenciosa dos fatos.
Muitas outras fontes são consideradas além do aceitável e, então, são ignoradas ou ridicularizadas. Nacionalistas negros, marxistas ou advogados sindicais
progressistas de questões trabalhistas entram nessa categoria. O mesmo se aplica aos conservadores fora da
política tradicional de Washington, como muçulmanos
conservadores e certos intelectuais de direita.
No Iraque, eu vi tudo isso em primeira mão. Tomemos o Voices in the Wilderness como exemplo, um grupo
pacifista com sede em Chicago. Alguns de seus líderes
participaram de uma vigília no deserto iraquiano no
momento exato em que os Estados Unidos começaram
o bombardeio na Guerra do Golfo, em 1991. Voices in
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the Wilderness levou centenas de estadunidenses ao
Iraque, incluindo 3 congressistas em setembro de 2002.
É responsável por projetos de ajuda comunitária em
Bagdá e estabeleceu importantes contatos com Organizações Não Governamentais (ONGs).
Pode-se concordar ou discordar da visão do Voices
in the Wilderness. Eu discordo de sua abordagem pacifista, por exemplo. Porém, como jornalistas, devemos
reconhecê-los como uma organização legítima, parte de
um crescente movimento antiguerra, que mobilizou
centenas de milhares de pessoas na Inglaterra e nos
Estados Unidos em setembro e outubro de 2002.
Mas não é este o tratamento que recebem da maior
parte da grande imprensa. Ramzi Kysia, um dos
organizadores do Voices in the Wilderness que morou
em Bagdá, parou certo dia na central de imprensa para
deixar um press release [comunicado, texto preparado
para a imprensa]. Ele convidou correspondentes internacionais para cobrirem a visita de um professor
estadunidense, que era contra a guerra, a uma escola
iraquiana.
Eu estava lá quando Kysia entregou o press release
a uma equipe de televisão. Assim que ele se foi, a equipe nem se preocupou em lê-lo até o final antes de declarar que aquilo era propaganda. Eles não consideravam
o Voices uma fonte legítima e, portanto, o grupo poderia ser ignorado.
De fato, algumas semanas depois, quando o Voices
organizou uma marcha contra a guerra em Bagdá, John
Burns, do New York Times, falou do evento em tom de
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sátira. Ele ressaltou de maneira depreciativa que Saddam
Hussein proíbe todas as manifestações, com exceção
daquelas contra os Estados Unidos (New York Times, 27/
10/02). Enquanto Saddam certamente censura opiniões
de oposição, os protestos de estadunidenses em Bagdá
contra as políticas dos Estados Unidos são merecedores
de divulgação direta. Não posso conceber um tom tão
ridículo permeando a matéria do New York Times se
dissidentes iraquianos marchassem em Washington em
apoio às políticas dos EUA.
O Wall Street Journal (4/11/02) tratou o Voices muito mais objetivamente, mas em contexto humorístico
num artigo sobre 2 ocidentais malucos que visitam o
Iraque como turistas.
Em 1990, levei um grupo de alunos para visitar o San
Francisco Chronicle. Eu fazia trabalhos freelances para
o Chronicle desde 1989. E propus a seguinte pauta hipotética ao então editor do Serviço Internacional do
Chronicle, David Hipschman: “E se eu quisesse publicar
uma matéria sobre a amante de Saddam Hussein?” “Eu
pediria 2 fontes que sustentassem a afirmação”, respondeu ele calmamente. Então, perguntei: “E se eu tivesse
a mesma história dizendo que o presidente Bush tem uma
amante?” Ele riu: “Então eu pediria fotos de ambos na
cama.”
Qualquer repórter mais experiente sabe que os editores podem exigir níveis de evidências com pouca substância ou impossíveis de serem alcançados. Se um repórter
erra na citação de alguém ou faz uso de uma informação
errada ao produzir um artigo crítico sobre Saddam
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Hussein, os editores não levantam grandes objeções.
Porém, se um artigo que critica a política dos EUA contém os mesmos erros, abrem-se as portas do inferno. No
mínimo, alguém do Departamento de Estado ou do
Pentágono liga para reclamar. Grupos conservadores da
imprensa e apresentadores de talk show [programa de
entrevistas] nas rádios também farão pressão. Raymond
Booner, um repórter do New York Times que escreveu
artigos precisos criticando a política estadunidense em
El Salvador, foi retirado daquele país na década de 1980,
justamente quando se fazia tal campanha conservadora.
Quando os repórteres estão prontos para se tornarem
correspondentes internacionais – um processo que pode
levar 10 anos ou mais – eles entendem as regras do jogo.
Tornar-se um correspondente internacional é um bom
negócio. É interessante e desafiador. Viaja-se freqüentemente e se conhecem líderes internacionais. Você pode
ver o seu crédito na primeira página do jornal. O trabalho gera reconhecimento.
E existe a questão do dinheiro. Eu fiz uma pesquisa
informal sobre os salários dos correspondentes internacionais nos países que visitei. (Lembre-se: repórteres
dizem coisas uns aos outros que não diriam em público.) Salários de repórteres que conheci, que trabalham
período integral na rádio ou em publicações impressas
da grande imprensa, chegam de 90 a 125 mil dólares por
ano. Esse valor não considera os correspondentes
televisivos, que podem ganhar o dobro disso ou mais.
Um repórter do New York Times em uma sucursal na
África disse-me em uma noite de cerveja, que ser cor30
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respondente internacional é um grande passo na carreira
no Times. Depois de alguns anos na África, ele planejava mudar para um país de maior prestígio antes de trabalhar a sua promoção às mesas da editoria em Nova
York. Os repórteres do Times são grandes conhecedores
dos acordos internacionais, mas, se for para ganhar um
Prêmio Pulitzer, devem fazer matéria em um país de
maior importância. No momento, Iraque e Oriente Médio se encaixam no perfil.
Dinheiro, prestígio, opções de carreira, predileções
ideológicas – combinados à desilusão de não poder
publicar uma história que desagrade o governo –, tudo
isso influencia os correspondentes internacionais. Não
se ganha um Pulitzer desafiando os princípios básicos
do império.
Oficiais do Iraque perceberam que não teriam uma
cobertura justa de muitos dos correspondentes internacionais. Então, o que fizeram? Responderam com um dos
comportamentos menos sofisticados e mais incompetentes de que eu já tive conhecimento.
O processo tem início ao se solicitar um visto de jornalista no Iraque. Um telefonema à Iraqi Interest Section
no final de 2002 revelou que obter um visto de jornalista pode levar 2 meses ou mais. Então, tentei contatar diversos altos oficiais em Bagdá, amigos de amigos
jornalistas. Não deu certo. Os iraquianos são muito desconfiados de repórteres que eles não conhecem, e muito
mais de quem escreve histórias que não lhes agradam.
Nem pense em se infiltrar com um visto de turista
como muitos correspondentes fazem em alguns países
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repressores. (Conversa hipotética com um guarda de fronteira: sempre quis visitar a Babilônia. E, falando nisso,
existe artilharia de defesa posicionada do lado de lá?)
Por sorte, aprendi com a delegação do meu co-autor
ao Iraque e coloquei o meu nome na lista dos repórteres que acompanhavam o congressista. Recebemos nossos vistos em 10 dias. Tecnicamente, os vistos só serviam
para acompanhar a delegação, mas então percebi que
poderíamos ficar mais tempo em Bagdá.
Todos os repórteres tinham guias governamentais,
popularmente chamados de inspetores. Eles ajudavam
a agendar entrevistas e serviam como intérpretes. Eles
também se certificavam de que você não fosse a determinados lugares ou falasse com determinadas pessoas.
Para mostrar o nível de paranóia do Iraque, até mesmo
ONGs como a Voices in the Wilderness possuíam inspetores.
Eu criei uma boa relação com o meu inspetor; ele era
ótimo para contornar a frustrante burocracia iraquiana
e fazer as entrevistas acontecerem. Eu não estava tentando visitar lugares polêmicos. Mas nos foi recusada,
entretanto, a permissão para visitar a Cidade de Saddan
City, a parte mais pobre de Bagdá.
No final de outubro, depois que aconteceram manifestações espontâneas exigindo informações sobre o
paradeiro de prisioneiros políticos iraquianos, o governo ficou muito aborrecido com a cobertura da imprensa. Expulsou correspondentes internacionais da CNN e
fez saber aos outros repórteres que seus vistos estariam
limitados a 10 dias de permanência. Mas no final do ano,
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o governo permitiu que os jornalistas ficassem por mais
tempo para cobrir a inspeção de armas.
Tais ações obviamente intimidaram os repórteres, que
pensavam: será que o conteúdo da minha matéria determinará minha expulsão do país, ou a proibição de
voltar? O governo iraquiano usa várias formas de intimidação, o que resulta na autocensura de alguns repórteres.
É um método clássico usado pelos que estão no poder para intimidar repórteres. Se um presidente dos EUA
não gosta de certa cobertura, o governo pode impedir
que o repórter ofensor consiga entrevistas exclusivas,
ou pode não retornar telefonemas. Correspondentes internacionais podem ser forçados a sair do país. Repórteres logo aprendem a se autocensurar, ou então estão
fora da jogada.
As políticas de imprensa dos EUA e do Iraque têm
muito mais em comum do que seus respectivos líderes
poderiam admitir.
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A GUERRA DA IMPRENSA
Norman Solomon
Por muitas décadas, Helen Thomas cobriu a Casa
Branca como repórter pela United Press International
(UPI). Sua coluna passou a ser publicada em diversos veículos no começo do século 21 – e quando o espectro da
guerra cresceu, em 2002, ela não se omitiu. “As bombas
lançadas no Iraque também vão atingir os nossos direitos civis se Bush e seus parceiros se mantiverem nessa
direção”, disse Thomas no início de novembro durante
um discurso no MIT (Instituto de Tecnologia de
Massachucetts). Analisando sua carreira, falou: “Eu me
censurei durante 50 anos quando eu era repórter”.
Ainda que se queira que os jornalistas deixem suas
opiniões pessoais fora da matéria, esperamos ter acesso
a todos os fatos relevantes. Raramente é o caso. Muitas
informações fundamentais são filtradas. O processo
geralmente é sutil em uma sociedade com liberdades
democráticas e pouca censura declarada. “Cães de circo
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pulam quando seus treinadores estalam o chicote”, registrou George Orwell mais de meio século atrás, “mas
o cão realmente bem treinado é aquele que consegue dar
o salto mortal mesmo quando não há chicote”. Não há
chicotes visíveis nas modernas salas de imprensa e nos
estúdios de rádio e TV dos EUA. Editores, repórteres,
produtores ou correspondentes não estão encoleirados.
Mas, na grande imprensa, poucos jornalistas conseguem
trilhar outros caminhos.
“Na verdade, a força desse processo de controle reside justamente em sua ausência aparente”, observou o
crítico de mídia Herbert Schiller. “O resultado sistêmico
desejado é comumente alcançado por um processo
institucional brando, porém efetivo”. Schiller continuou:
“a educação de jornalistas e outros profissionais da
mídia, moldados em um sistema de penalidades e recompensas por fazerem o que deles é esperado, com normas
apresentadas como regras objetivas, e a ocasional mas
definitiva intrusão que vem de cima. A alavanca principal é a internalização de valores”. O conformismo se
torna habitual. Entre os resultados está uma dinâmica
que Orwell descreveu como o reflexo condicionado de
“uma parada brusca, como que por instinto, no momento
em que surge um pensamento perigoso... e de se sentir
desmotivado ou repelir qualquer linha de raciocínio que
seja capaz de conduzir a uma direção herege”.
Em contraste com a censura estatal, que geralmente
é fácil de se reconhecer, a autocensura entre os jornalistas raramente é assumida. Jornalistas tendem a evitar falar em público sobre obstáculos que limitam seu
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trabalho; eles praticamente fazem a autocensura da
autocensura. No ambiente altamente competitivo da
imprensa, não é necessário ser um cientista em ascensão, ou mesmo um cientista social, para saber que a
discórdia não alavanca carreiras. Isso é verdade principalmente em tempos de guerra. As recompensas de
cooperar para progredir são claras, assim como o risco
de não suprir as expectativas.
Verdades ocasionais de jornalistas de renome podem
ser esclarecedoras. Oito meses depois do 11 de setembro, em uma entrevista com a rede de televisão BBC, Dan
Rather disse que os jornalistas estadunidenses estavam
intimidados devido aos ataques. Fazendo o que ele chamou de “comparação obscena”, o âncora da rede de
notícias CBS considerou: “Houve um tempo na África
do Sul em que se colocavam pneus em chamas ao redor
do pescoço de dissidentes. E, de certa forma, o medo é
que o pescoço seja o seu, que você tenha ao redor dele
um pneu em chamas pela sua falta de patriotismo. Agora
é esse medo que impede que os jornalistas façam a mais
dura das perguntas”. Logo completou: “Eu não me isento dessa crítica. O que estamos falando aqui – ainda que
se queira reconhecê-lo ou não, ou chamá-lo pelo próprio nome ou não – é de uma forma de autocensura. Eu
temo que essa obsessão patriótica passe por cima dos
valores que o país procura defender”.
No dia 8 de novembro de 2002, o mesmo dia em que
o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou sua
principal resolução sobre o Iraque, o programa “All Things
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Considered” da National Public Radio, levou ao ar uma
matéria do experiente correspondente Tom Gjelten. “Uma
guerra contra o Iraque começaria com uma campanha
aérea, e os recursos para a fase de ação já estão definitivamente estruturados”, afirmou. O tom garantia: “Oficiais
de defesa estão confiantes de que o programa das Nações
Unidas não vai atrapalhar os seus planos. Por uma causa, eles continuam com as preparações de guerra. Um
experiente oficial do exército disse: Quando a situação
exigir, temos de estar prontos para botar para quebrar.”
“Prontos para botar para quebrar”. Era uma frase
notável para um oficial do alto escalão do Pentágono
usar para se referir a ações que certamente matariam um
grande número de pessoas. Não se respondeu com nenhuma crítica ao comentário; nenhuma das centenas de
palavras dos repórteres ofereceu uma perspectiva contrária à linguagem eufemística que distanciou os ouvintes das catástrofes humanas da guerra de fato. Esse tipo
de reportagem é seguro. São mínimas as chances de irritar fontes do governo, executivos da imprensa, donos
de redes de comunicação, publicitários ou – no caso de
“emissoras públicas” – grandes financiadores. Enquanto a National Public Radio está mais para “Rádio Nacional do Pentágono”, as reclamações dos ouvintes parecem
pouco importar àqueles no comando. Isso não deveria
ser surpresa. O presidente e CEO da National Public
Radio, Kevin Klose, já foi diretor da International
Broadcasting Bureau, a agência governamental
estadunidense responsável pelo Voice of America, Radio
Free Europe, Radio Liberty e Radio and Television Martí.
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Quem planeja a guerra e quem a consuma sempre
confiou nas enormes lacunas entre as horrendas realidades da guerra e suas respectivas coberturas pela imprensa profissional. Mesmo quando a carnificina chegou
ao seu apogeu no Vietnã, mais tarde escreveu o correspondente freelance Michael Herr, a imprensa dos EUA
“nunca encontrou uma maneira significativa de escrever sobre morte, do que certamente se tratava tudo aquilo. Os mais repulsivos e evidentes caminhos para a
santidade nesse meio de mortes receberam um tratamento especial nos jornais e no ar”.
Quando surge a possibilidade da guerra, e principalmente depois que ela começa, uma aflição maior ocupa
a maioria dos veículos estadunidenses. O espetáculo da
mídia torna-se mais do que a mera regurgitação dos
fatos. A dieta da mídia é recheada de exageros moralistas. Âncoras, generais, oficiais de Washington, repórteres e especialistas preenchem as telas de TV com análises
de táticas e estratégias. Os gráficos simulados por computador forçam os limites técnicos de dissimulação,
enquanto o Pentágono testa a sua última tecnologia de
guerra.
Transmissões ao vivo via satélite parecem ter feito
da guerra algo imediato, com espectadores sendo encorajados a admirar os mísseis atingindo Bagdá, como se
fosse uma exibição de fogos de artifício. Os principais
mecanismos para amenizar a situação são geralmente
tidos como os mais esclarecedores. A televisão promete
levar a guerra para dentro de nossas casas, mas mesmo
quando o sangue escorre e as agonias se prolongam em
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lugares distantes, a cobertura funciona para nos tornar
mais emocionalmente obtusos do que nunca. Não somos apenas anestesiados; também podemos ser convencidos de que nosso conhecimento está se tornando mais
preciso. Com a guerra, a televisão acentua os mitos de
inter-relação, ainda que ela nos retire a verdadeira relação com os demais.
“O que vemos”, pergunta o analista de mídia Mark
Crispin Miller, “quando nos sentamos na sala e assistimos à guerra? Vivenciamos um evento real? Na verdade, essa ‘experiência’ é fundamentalmente absurda.
Mais do que óbvia, há a incongruência da escala, a
disjunção radical das locações. Enquanto uma guerra
é uma das maiores coisas que podem acontecer a uma
nação ou a um povo, devastando famílias, destruindo
telhados e paredes, nós a vemos comprimida e
miniaturizada em um imponente objeto que reluz bem
no centro de nossos lares. E a TV contém guerras em
formatos sutis. Enquanto ela nos confronta com histórias de morte, privação, mutilação, ela imediatamente
cancela a memória daquele sofrimento, substituindo
suas próprias imagens de desespero por um comercial
– alegre e infinitamente iluminado”. Pretensões à parte, as redes de comunicação são fábricas de ilusão: “O
repórter de TV nos conforta como John Wayne confortou nossos avós, parecendo deter toda a realidade
nas mãos. ... Como ninguém parece viver na televisão,
ninguém parece morrer nela. E a existência temporária do noticiário retira o peso de todos os momentos
terminais”.
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Os principais veículos de imprensa oferecem, sim,
algum jornalismo de qualidade. Mas as desunidas ilhas
da imprensa independente estão perdidas em um oceano
de confiança nos relatórios de fontes oficiais.
Como qualquer executivo de publicidade sabe, a essência da propaganda é a repetição. A menos que estejam repercutindo na câmara de eco da imprensa
nacional, histórias e perspectivas particulares geralmente
têm pouco efeito.
Em teoria, qualquer pessoa nos Estados Unidos tem
liberdade para falar o que pensa. Liberdade para ser
escutado já é outra questão. Fontes de informação e a
diversidade efetiva de pontos de vista deveriam alcançar o público de forma constante, mas não alcançam.
Enquanto isso, todos os tipos de pronunciamentos oficiais de Washington ocupam os noticiários que raramente se submetem a um questionamento direto. A enorme
distância entre liberdade de expressão e direito de ser
escutado é uma explicação parcial de por que a crença
fervorosa na benevolência mundial do “Tio Sam” continua tão disseminada entre os estadunidenses. Superestimada pelas vozes dominantes da comunicação de
massa, a atual opinião pública que surge do discurso do
Pentágono rapidamente se dissemina e se cristaliza. As
grandes empresas de notícias estão saturadas de consciência corporativa. Já estamos tão acostumados aos
efeitos que não costumamos refletir sobre eles. Enquanto
assumimos que a cobertura reflete o julgamento de jornalistas profissionais, esses jornalistas estão envolvidos
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com uma indústria de mídia dominada por corporações,
com poder financeiro suficiente para redefinir o significado do profissionalismo funcional.
Nunca podemos nos esquecer de que a guerra é um
grande – muito grande negócio.
William Hartung, experiente pesquisador no World
Policy Institute, sediado em Manhattan, apontou no final de 2002 que “a estratégia de governo de Bush de
guerra de prevenção no Iraque é o plano de um pequeno círculo conservador de grupos lobistas de tanques e
armas, como o Project for a New American Century
(PNAC), cujos membros têm forçado essa aproximação
por mais de uma década”. Hartung acrescenta:
Na corrida para a eleição presidencial de 2000, o PNAC
publicou o relatório “Rebuilding America’s Defenses”, que
serviu como base para a estratégia militar de Bush/
Rumsfeld no Pentágono, incluindo a criação de termos
como “mudança de regime”. O documento de fundação
do PNAC – um apelo unilateral ao retorno das políticas
do início da época Reagan de “paz por meio da força” –
foi assinado por Paul Wolfowitz, Dick Cheney, Donald
Rumsfeld e muitos outros que se tornariam jogadores
oficiais no time da segurança nacional de Bush. Assim
como a Coalition for the Liberation of Iraqi, um grupo
recém-formado por antigos e atuais membros de
Washington e programado para promover a política administrativa de Bush no Iraque, o PNAC demonstrou o seu
apoio com uma forte rede de ideologias conservadoras,
fundações de direita e grandes empreiteiros de defesa.
Bruce P. Jackson, um ex-vice-presidente da Lockheed
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Martin, que é membro e fundador signatário do relatório
da missão do PNAC, atua como presidente da Coalition
for the Liberation of Iraqi. Ao adotar a estratégia promovida por essa rede de conservadores, a administração Bush
conseguiu mais de 150 bilhões de dólares para gastos
militares e subsídios à exportação de armas desde 11 de
setembro de 2001, sendo que a maioria vai para as maiores
produtoras de armas como Boeing, Lockheed Martin e
Northrop Grumman.
Tais interesses em comum por negócios militares são
forças poderosas na indústria da mídia impulsionada por
diretrizes corporativas a fim de maximizar os lucros. O
problema principal da imprensa estadunidense é profundamente estrutural. As ondas de rádio e televisão supostamente pertencem ao público, mas são as grandes
companhias que as controlam. Grande parte das empresas de comunicação de massa – como emissoras de rádio, TV a cabo, jornais, revistas, livros, filmes, a indústria
da música e, num crescente, a Internet – são dominadas por grandes entidades corporativas. Cada vez mais,
as “emissoras públicas” são também submetidas ao grande capital. Junto à comissão politicamente apontada da
instituição sem fins lucrativos Corporation for Public
Broadcasting, doadores corporativos exercem pesada
influência em programas por meio do financiamento de
programas específicos.
E quando a guerra está nos planos de Washington, a
cobertura da imprensa distorce os fatos ao máximo.
Quando o governo dos Estados Unidos usou de forma imprópria os inspetores de armamentos das Nações
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Unidas no Iraque para fins de espionagem, os principais
fatos foram ampla e rapidamente retratados pela imprensa
estadunidense no começo de 1999 – mas, durante os
meses que se seguiram, os fatos fundamentais sobre a
espionagem e os sérios danos que ela causou não foram
muito publicados. Em 2002, as omissões e as distorções
da imprensa sobre o assunto já eram lugar-comum.
Muito da cobertura estava em sincronia com as mentiras repetidas pelos principais oficiais dos EUA, como
o secretário de Defesa Donald Rumsfeld, que passou a
insistir que Saddam Hussein havia expulsado os inspetores de armas das Nações Unidas quatro anos antes. Em
uma coletiva de imprensa no Pentágono, em 3 de setembro de 2002, com a falta de consideração típica para
com os assuntos inconvenientes, Rumsfeld disse: “Foram os iraquianos que acabaram com as inspeções, isso
todos sabemos. Protestamos quando os iraquianos expulsaram os inspetores... Teria sido bom se eles não os
tivessem expulsado? Sim, teria sido melhor”. Ambos os
partidos repetiam essa mentira. Apenas um dos muitos
exemplos: quando o senador democrata John Kerry, de
Massachusetts, apareceu no Hardball da rede MSNBC,
em meados de 2002, e afirmou categoricamente que
Saddam Hussein “expulsou os inspetores” em 1998.
O Iraque não expulsou os inspetores. O diretor da
Unscom Richard Butler os retirou em dezembro de 1998
– pouco antes de um bombardeio dos EUA batizado de
“Operação Raposa do Deserto”.
Com novas inspeções sendo procedidas no final de
2002, a especialista em armas biológicas Susan Wright
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levantou algo que não poderia ser compreendido no
contexto criado pela cobertura evasiva da imprensa: “Se
os iraquianos perceberem que a organização de inspeção das Nações Unidas está mais uma vez sendo usada
para fins de espionagem, as inspeções colocam o Iraque
em uma situação contraditória. Se o Iraque concordar,
sabe que suas defesas serão minuciosamente examinadas. Se resistir, sua resistência pode ser usada como um
gatilho para que o governo dos Estados Unidos dispare
a guerra”.
Mesmo quando jornalistas estadunidenses mencionaram a espionagem que ocorrera da última vez que os
inspetores das Nações Unidas estiveram no Iraque, os
fatos foram amenizados ou eufemizados. Buscando “uma
cooperação legítima entre os inspetores e as agências de
inteligência nacionais”, Bill Keller, do New York Times,
escreveu um editorial no dia 16 de novembro de 2002
que, rápida e cautelosamente, tocou em registros históricos de espionagem dos EUA: “A operação anterior de
inspeção da Unscom provavelmente ultrapassou os limites ao ajudar os EUA a acessarem informações, ainda que dando algum crédito aos apelos anti-EUA de
Saddam”.
Mais freqüentemente em 2002, ao se referir à espionagem, os noticiários transformavam os fatos em meras alegações. No New York Times do dia 3 de agosto,
Barbara Crossette escreveu que a equipe da Unscom foi
dissolvida “depois que o Sr. Hussein acusou a antiga
comissão de ser uma operação estadunidense de espionagem e se recusou a discutir o assunto”. No dia 18 de
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novembro, no programa “All Things Considered”, da
emissora NPR, a correspondente Vicky O’Hara disse: “O
último esforço dos inspetores de armas das Nações Unidas no Iraque teve seu fim em meio a acusações de Bagdá
de que os inspetores estavam espionando para os Estados Unidos”. No dia seguinte, o Los Angeles Times publicou que, 4 anos antes, “Bagdá acusou a presença de
espiões na equipe, e os Estados Unidos reclamaram dizendo que o Iraque estava usando a acusação como uma
desculpa para obstruir o trabalho de inspeção”.
Uma simples frase em uma matéria de John Diamond,
no USA Today, publicada em 8 de agosto de 2002, foi
duplamente manipuladora: “O Iraque expulsou os inspetores de armamentos das Nações Unidas quatro anos atrás
e os acusou de serem espiões”. Enquanto a segunda parte
da frase é extremamente dissimulada, a primeira parte é
completamente falsa. Meses depois, o USA Today ainda
se recusava a publicar uma retratação ou correção.
Os principais veículos de notícias continuaram a
repetir a mentira como um fato. Alguns exemplos:
CBS Evening News, 9 de novembro de 2002: “Mas
enquanto os inspetores de armas das Nações Unidas se
preparam para voltar ao Iraque pela primeira vez desde
que Saddam os expulsou em 1998, os EUA enfrentam
uma delicada ação compensatória: transformar o consenso internacional a favor do desarmamento em um
consenso a favor da guerra”.
Washington Times, 14 de novembro de 2002: “O
Iraque expulsou os inspetores das Nações Unidas quatro anos atrás”.
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- Bob Woodward, no Washington Post, 17 de novembro de 2002: “O discurso criticou firmemente as Nações
Unidas por não impor a inspeção de armas ao Iraque,
especificamente durante os 4 últimos anos, desde que
Saddam os expulsou”.
Nenhum produto precisa de uma propaganda mais
eficiente do que a do desperdício de uma enorme quantidade de recursos enquanto se massacra um grande
número de pessoas.
A onda de eufemismo sobre a guerra nos Estados
Unidos começou muitas décadas atrás. Não é novidade
que o governo federal não possui mais um departamento
ou um plano orçamentário para a “guerra”. Agora, tudo
é chamado de “defesa”, uma palavra com uma forte
carga inerente de justificativa. O efeito sutil de mudar
essa nomenclatura pode ser medido pelo fato de que
mesmo quem se opõe aos irresponsáveis gastos militares constantemente se refere a eles como gastos de defesa.
Desde a década de 1980, o cruzamento entre duas
avenidas, Pennsylvania e Madison, aumentou a capacidade da imprensa de higienizar gradativamente a destruição em massa conhecida como guerra. A primeira
administração de Bush promoveu as técnicas de relações públicas para as ações militares dos EUA ao “escolher nomes para as operações que eram pensados de
maneira a moldar as percepções políticas”, como chama a atenção o lingüista Geoff Nunberg. A invasão ao
Panamá, em dezembro de 1989, seguiu com o nome de
“Operação Justa Causa”, sucesso imediato na imprensa.
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“Um bom número de âncoras adotou a frase justa causa, o que incentivou os governos de Bush e Clinton a
continuarem usando nomes tão tendenciosos.” Como
aponta Nunberg, “é tudo questão de nomenclatura. E não
é coincidência que nomes com esse ‘novo estilo’ foram
introduzidos praticamente ao mesmo tempo em que os
programas de televisão a cabo começaram a caracterizar sua cobertura das principais histórias com chamadas apelativas e logotipos”. O Pentágono passou a
fornecer imagens como as de videogames dos ataques
com mísseis estadunidenses, ao mesmo tempo em que
exibia slogans escritos com letras garrafais nas telas da
televisão.
Desde a Guerra do Golfo, no início de 1991, políticos têm comumente se referido àquele paroxismo de
morte violenta como “Operação Tempestade no Deserto” – ou, mais comumente, apenas “Tempestade no Deserto”. Para um ouvinte leigo, soa como um ato da
natureza, ou talvez um ato de Deus. De qualquer maneira, de acordo com o vago espírito evocado pelo nome
de “Tempestade no Deserto”, homens como Dick Cheney,
Norman Schwarzkopf e Collin Powell podem muito bem
ter dado uma força nas ocorrências divinamente naturais: fortes ventos e uma chuva de mais de 900 toneladas de bombas laser guiadas por satélite caindo dos céus.
Como comentou o chefe de relações públicas do Exército, major-general Charles McClain, logo após o término
da Guerra do Golfo: “O sucesso da aceitação de uma
operação pode ser tão importante quanto o sucesso de
sua execução”.
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Em outubro de 2001, enquanto lançavam mísseis no
Afeganistão, o time de Bush surgiu com o nome “Operação Justiça Infinita”, rapidamente mudado depois de
perceberem que era ofensivo aos muçulmanos, devido
à sua crença de que somente Alá pode oferecer justiça
infinita. O substituto, “Liberdade Duradoura”, foi bem
recebido pela grande imprensa estadunidense, uma
zona livre de ironia em que o único inconveniente
poderia sugerir que as pessoas não teriam outra opção
senão a duradoura liberdade do Pentágono de lançar
suas bombas.
Ao planejar as ações militares dos EUA, os operadores da Casa Branca pensam como executivos de
marketing. Foi um deslize significativo quando, em 2002,
o chefe de gabinete do governo Bush, Andrew Card, disse
ao New York Times: “De um ponto de vista publicitário,
não se introduz novos produtos em agosto”. Não por
coincidência, as justificativas da guerra por vir no Iraque
não surgiram antes de setembro.
Os líderes da mídia na Casa Branca sem dúvida gastaram energia considerável examinado as opções de
como batizar o ataque tão esperado ao Iraque. E, mesmo quando a maioria dos estadunidenses soubesse o
novo nome da missão, jamais saberíamos os nomes dos
iraquianos mortos em nossos nomes.
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VOZES DAS RUAS IRAQUIANAS
Reese Erlich
Cai a noite na poeirenta estrada de pista dupla no
Leste do Iraque, quando o motorista do táxi comenta que
sua família mora em uma cidadezinha próxima. Quando pergunto se ele se importaria que um visitante
estadunidense conhecesse sua família, o motorista pisa
nos freios e faz a volta com o carro.
“Por que não?”, diz ele com um sorriso.
Depois de dirigir por cerca de 30 minutos, o táxi derrapa e pára em frente de uma casa em um distrito de
classe operária. A vila de pequenas casas abriga sua
grande família de 20 pessoas: operários, motoristas de
caminhão e um comerciante.
E então começa uma das mais francas e honestas
entrevistas que um repórter conseguiu no Iraque de
Saddam Hussein. Os repórteres normalmente são acompanhados o tempo todo por um inspetor do governo,
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sendo que sua simples presença pode inibir certas conversas. Mesmo sem inspetores, os iraquianos são cautelosos com discussões políticas quando há estranhos
por perto.
Um dos irmãos é fluente em inglês. É ele quem fala
a maior parte do tempo e traduz a conversa para os
outros membros da família.
“Se houver guerra, ficaremos em casa”, disse francamente. “Aprendemos com a última guerra que ir para
abrigos ou para o interior do país não adianta.”
Durante a Guerra do Golfo Pérsico, em 1991, os
EUA bombardearam o abrigo Ameriyah, em Bagdá,
matando centenas de pessoas. Os EUA mais tarde afirmaram que o refúgio era um posto de comando e centro de controle do Exército de Hussein. Hoje, qualquer
um pode visitar o local, transformado em museu, para
ver provas de que os mortos eram civis. De maneira
semelhante, os EUA bombardearam pontes em distantes áreas rurais, o que também resultou em baixas
civis.
Não é difícil entender por que tantos iraquianos chegaram à conclusão de que é melhor ficar em casa do que
ir para abrigos ou para a casa dos parentes no interior.
Enquanto, em público, praticamente todos os
iraquianos manifestam seu apoio a Saddam Hussein, os
membros desta família, como muitos iraquianos,
enfatizaram reservadamente o seu desgosto pelo governo. “Saddam não trouxe nada além da guerra”, disse um
dos membros da família, “mas também não queremos
que os Estados Unidos invadam nosso país”.
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Todo iraquiano entrevistado manifestou um sentimento parecido. Ódio a Saddam Hussein não significa
que o povo queira a ocupação do Iraque pelos EUA.
“Nós nos preocupamos com a fragmentação do país”,
disse outro da família. “Quase aconteceu em 1991. Nosso
amigo aqui é curdo e ele não pode nem visitar os seus
parentes.”
O amigo, um homem de cerca de 30 anos, de origem
curda, explica que sua família vive no Norte do Iraque,
agora controlado por grupos curdos sob proteção
estadunidense. Ele desistiu de visitar os parentes devido às dificuldades criadas pelas autoridades curdas e
iraquianas na fronteira estabelecida pelos EUA após a
Guerra do Golfo.
O medo de uma nação fragmentada é uma preocupação válida. Muitos iraquianos temem que, se os Estados
Unidos invadirem, o país se dividirá em um Norte de
controle curdo e um Sul controlado por muçulmanos Shia.
Mesmo se não houver uma divisão formal, dizem eles,
as diferenças étnicas e religiosas são uma ameaça de fragmentação do país, como aconteceu com o Afeganistão.
O plano de Bush para uma “mudança de regime”
também é uma questão que preocupa. Os iraquianos
temem pensar em quem irá governar o Iraque pósHussein. “Nunca ouvimos falar da maioria desses líderes exilados”, diz o irmão, referindo-se aos líderes do
Congresso Nacional do Iraque, citados pelos EUA como
líderes em potencial de um governo pós-Hussein.
“E o rei?”, continuou ele, referindo-se à possibilidade
de os EUA trazerem de volta um parente do rei Faisal II,
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deposto em 1958 durante a luta do país contra o
colonialismo britânico. “Quem hoje em dia se lembra do
rei ou sabe alguma coisa sobre monarquia? Quem os
EUA irão nomear para governar o país – e como esse
novo líder o fará?”
Alguns ocidentais estão promovendo o retorno de
um monarca ao Iraque, assim como os EUA promoveram Zahir Shah durante a guerra no Afeganistão.
O rei, de 88 anos, foi largamente saudado por ser uma
alternativa respeitosa e popular ao Talebã. Apenas
mais tarde o povo estadunidense descobriria que Zahir
Shah mal conseguia falar e não possuía base política
dentro do Afeganistão. Hoje ele permanece protegido
em seu palácio em Kabul, sem papel significativo no
país.
O governo Bush sabe que não será fácil substituir
Saddam Hussein. Por meio de sua rígida ditadura,
Hussein conseguiu manter o Iraque unido. Esta é uma
das razões pelas quais os EUA e a Inglaterra apoiaram
o ditador durante a década de 1980.
Como a invasão do Afeganistão pelos EUA nos mostra, entretanto, é muito mais fácil depor um velho regime do que estabelecer um novo governo que funcione,
sem se preocupar com o regime democrático. Talvez seja
por isso que o governo considerou a possibilidade de
instalar um general militar estadunidense para governar o Iraque até que líderes locais possam ser investigados e indicados. Com razão, o povo iraquiano não
consegue entender por que um ditador militar dos EUA
é melhor que um ditador local.
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Ao final dessa improvisada entrevista em grupo, o
patriarca da família diz: “Estamos cansados da guerra.
Não queremos outra com os EUA, nem com mais ninguém”.
Todos os iraquianos entrevistados disseram estar cansados da guerra, mas alguns estavam dispostos a lutar.
Enquanto a maior parte de Bagdá apresenta edifícios
de concreto construídos a partir da década de 1960, no
centro velho da cidade existem ainda casas antigas e lojas
de madeira. O café Al Zahawi parece ter saído de um filme
da década de 1930. Alguns homens, estão sentados em
bancos de madeiras, fumando cachimbos cheios com um
tabaco perfumado. Outros jogam dominó em mesas rusticamente construídas. Há apenas homens aqui.
Ibrahim Jaleel, clérigo de 40 anos, tem uma perspectiva diferente quanto às recentes guerras no Iraque. Jaleel
diz que os iraquianos estão acostumados à guerra – e
não sentirão medo se outra vier. Jaleel diz que resistirá
à invasão dos EUA.
“Até a última gota de nosso sangue iremos lutar e
matar qualquer estrangeiro que tente ocupar esta terra”, diz ele. “De acordo com os ensinamentos islâmicos,
devemos defender três coisas: nosso país, nossa honra
e nossas propriedades. Defendê-las é o nosso martírio.”
Ao dizer isso, Jaleel ecoa o discurso do governo de
que iraquianos irão lutar com todas as suas forças para
combater a invasão dos EUA. Para alguns, esta é a expressão de um sentimento sincero; muitos outros vão
permanecer passivos.
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O centro de Bagdá é um lugar barulhento e cheio de
areia. Os motoristas tocam suas buzinas pelo menor
problema no trânsito; finas camadas de areia cobrem as
fachadas. A pequena loja de Fadhil Hider é um refúgio
da desarmonia. Ele vende canetas, rosários e uma infinidade de bugigangas.
Aos 61 anos de idade, Hider viveu a era do
neocolonialismo britânico, quando a monarquia governava o Iraque. Na verdade, ele tem um pôster do rei
Faisal II bastante visível no fundo de sua loja. Indagado se tal mostra evidente de simpatia com o velho regime teria lhe causado problemas políticos, ele dá de
ombros e diz “Não”. Indagado se a família real possui
algum apoio popular no Iraque hoje em dia, ele dá de
ombros e diz “Não” mais uma vez.
Hider não critica Saddam Hussein, mas também não
elogia o líder. De forma impressionante, Hider não diz
coisa alguma sobre resistir à invasão estadunidense. Ele
expressa a desesperança sentida por muitos iraquianos.
“O que podemos fazer? Eu vou fechar a minha loja.
E muitos outros farão o mesmo. E iremos esperar pelo
que vai acontecer depois. É uma guerra entre dois Estados. Um possui uma tecnologia altamente sofisticada.
O outro, não.” Hider expressa um verdadeiro horror à
idéia de uma invasão por parte dos EUA, e diz que “líderes estrangeiros não deveriam dizer ao povo iraquiano
o que fazer”.
“Se o povo iraquiano quer mudanças, as mudanças
têm de ser trazidas pelo próprio povo, não de fora. Se
há algum problema com o governo, ele tem de ser
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mudado pelo próprio povo – não por Bush ou Blair ou
Chirac.”
A Universidade de Bagdá é um complexo de prédios
sombrios de cimento cinza, ao que parece inspirados na
grandiosidade arquitetônica de um prédio de apartamentos de Moscou. Os alunos têm aula em salas mobiliadas
com simples e duras cadeiras de madeira, sem ar-condicionado para combater os inúmeros dias do extremo
calor do deserto.
Enfileirados do lado de fora da sala do professor,
esperando por explicações sobre as aulas, alguns estudantes estavam ávidos para falar com um repórter
estadunidense. De forma quase contemplativa, alguns
deles reproduziram o esperado de iraquianos leais. Suas
afirmações pareceriam absurdas em qualquer situação.
“Nós gostamos do nosso presidente Saddam Hussein
e temos orgulho dele”, diz Reem Al Baikuty, aluna do
quarto ano do curso de inglês. “Temos orgulho de tudo
o que ele faz e de tudo o que ele fala.” Ela então defende sua onipresença com pôsteres, pinturas, murais e
estátuas de Saddam Hussein – um culto à personalidade que constrangeria Joseph Stalin.
Outros estudantes são menos entusiastas, entretanto. Enquanto ninguém critica Hussein abertamente, alguns alunos indicam com balançar de ombros e
confirmam com a cabeça que Hussein é criticado.
Uma aluna da graduação, que pediu para não ter o
nome citado, viveu nos Estados Unidos por 10 anos. Ela
afirmou que realmente gostava do povo e do sistema de
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governo dos EUA, mas então voltou ao Iraque com sua
família e teve de viver a Guerra do Golfo Pérsico.
“Quando vemos televisão, dizemos que o povo
[estadunidense] tem de tudo. Eles possuem ótimas escolas, ótima educação, ótimo padrão de vida. Por que
então atormentar um povo que está apenas começando
no mundo? Eu vou ter um filho em abril e penso: “Esse
bebê chegará mesmo? Em que mundo ele irá viver?”
Essa universitária, que ainda tem amigos nos Estados Unidos, diz que ela e seu marido terão de fazer uma
terrível escolha se as tropas estadunidenses invadirem
Bagdá.
“Meu marido e eu estávamos falando sobre isso outro dia”, disse ela. “Se um estadunidense vier à minha
porta, ele disse ‘Eu o matarei’. Eu não sei o que faria.”
Saad Hasani é o professor que esses alunos vieram
ver. Ele estudou na Universidade de Leeds, na Inglaterra, e ensina teatro inglês moderno na Universidade de
Bagdá. De certa maneira, ele é um homem de 2 mundos
– com um pé na Europa ocidental e outro no Iraque.
O professor Hasani afirma reservadamente que alguns
iraquianos com influências ocidentais podem apoiar a
deposição do presidente Hussein pelos EUA, mas que a
maioria dos iraquianos se opõe a ela de fato. Ele cita um
antigo ditado árabe: “Eu e meu irmão contra meu primo, mas eu, meu irmão e meu primo contra um estrangeiro”.
Sempre é difícil para um repórter saber se as pessoas
estão realmente falando o que sentem. Este repórter
visitou o Afeganistão em janeiro de 2002 e entrevistou
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dezenas de pessoas escolhidas ao acaso. Praticamente
todas elas disseram que odiavam o regime Talebã e saudavam o exército estadunidense. Mesmo pessoas que
haviam sido feridas ou que possuíam parentes mortos
por bombas dos EUA expressavam tal sentimento.
Se eu tivesse entrevistado essas mesmas pessoas seis
meses antes, muitas teriam elogiado o Talebã e denunciado os EUA. Às vezes as pessoas dizem o que elas
pensam que você quer ouvir – e o que é politicamente
seguro.
Os estadunidenses não deveriam se surpreender por
tais atitudes. Imagine o que você faria se um repórter
aparecesse em seu trabalho e pedisse uma opinião verdadeira do seu chefe e dos seus colegas. Mesmo que ele
te prometesse completo anonimato, você ainda poderia
ficar um pouco circunspecto. Você acharia que há muita coisa em jogo. Se um novo chefe estiver por vir, você
pode se sentir mais à vontade para criticar o chefe antigo, mas ainda terá cuidado ao falar sobre o novo.
Afegãos e iraquianos não são diferentes; mas não é
apenas o seu trabalho que está em jogo.
Depois da invasão e ocupação do Iraque, repórteres
estadunidenses certamente irão encontrar pessoas com
críticas ao regime de Saddam Hussein. Alguns iraquianos
irão elogiar o exército estadunidense. Estarão falando
a verdade?
O que você diria sobre o seu novo chefe?
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P A S S A N D O P E L O 11 D E S E T E M B R O,
TERRORISMO E ARMAS DE
DESTRUIÇÃO EM MASSA
Norman Solomon
“Aqueles a quem o mal é feito fazem o mal de volta”
(W. H. Auden)
Em meados de 2002, um pouco antes de o Congresso votar a autorização da guerra dos EUA contra o
Iraque, uma pesquisa da CBS News constatou que 51%
dos estadunidenses acreditavam que Saddam Hussein
estava envolvido nos ataques de 11 de setembro de 2001.
Logo depois, o Pew Research Center reportou que dois
terços da população estadunidense concordava que
“Saddam Hussein auxiliou os terroristas nos ataques de
11 de setembro”.
Nesse meio tempo, um correspondente em Washington da Inter Press Service publicou que “As agências de espionagem dos EUA são unânimes em afirmar
que as evidências que ligam Bagdá aos ataques de 11
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de setembro, ou quaisquer ataques a alvos ocidentais
desde 1993, simplesmente não existem”. Não havia base
factual para assertivas de uma ligação do Iraque com
essas recentes manifestações terroristas. Mas as pesquisas podem explicar como a Casa Branca foi capaz de
conseguir apoio para transformar o Iraque em um alvo.
A administração Bush nunca hesitou em explorar as
ansiedades da opinião pública que surgiram com os
eventos traumáticos de 11 de setembro de 2001. Testemunhando em Capitol Hill, exatamente 53 semanas mais
tarde, Donald Rumsfeld não perdeu o jogo de cintura
quando um membro do Comitê de Serviços Armados do
Senado questionou a necessidade de os EUA atacarem
o Iraque.
Senador Mark Dayton: “O que nos move agora a tomar uma decisão precipitada e a agir precipitadamente?”
Secretário de Defesa Rumsfeld: “O que nos move? O
que nos move é que 3 mil pessoas foram mortas.”
Como uma questão prática, era quase óbvio que alegações ligando Bagdá aos ataques de 11 de setembro
careciam de evidências. Supostamente houve um encontro em Praga entre o seqüestrador de 11 de setembro,
Mohammed Atta, e um oficial da inteligência do Iraque,
mas depois de muitas reportagens nos principais veículos dos EUA, a declaração foi desmentida (com a ajuda
do presidente tcheco, Vaclav Havel). Outra tentativa
surgiu quando Rumsfeld acusou Saddam Hussein de dar
abrigo a agentes da Al Qaeda. Como afirmou o jornal
britânico Guardian, “eles realmente viajaram ao
Curdistão iraquiano, o que é algo fora de seu controle”.
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No entanto, tais mentiras geralmente ganham cada vez
mais força. Como disse uma vez Mark Twain, “Uma
mentira pode percorrer meio mundo antes que a verdade
consiga ao menos calçar as botas”.
Ex-analista da CIA, Kenneth Pollack teve uma enorme exposição na imprensa no final de 2002 com seu
livro The Threatening Storm: The Case for Invading Iraq.
A divulgação do livro de Pollack mais pareceu uma divulgação da guerra. Durante uma aparição típica com
o âncora Wolf Blitzer, da CNN, que por 2 vezes usou a
frase “um livro novo e importante”, Pollack explicou
porque ele via a “invasão maciça” do Iraque como algo
desejado e prático: “A diferença real foi a mudança em
11 de setembro. A idéia de que o pós-11 de setembro –
que o povo estadunidense agora estaria disposto a fazer
sacrifícios para prevenir que ameaças externas se consumem no interior do país – tornou possível pensar em
uma grande força de invasão”.
Correspondente no Oriente Médio, Robert Fisk estava no Independent de Londres quando, logo após a
resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas em novembro de 2002, escreveu: “O Iraque não
tem absolutamente nada a ver com o 11 de setembro.
Se os Estados Unidos invadirem o Iraque, teremos de
nos lembrar disso”. Em muitos níveis psicológicos, o
time de Bush era capaz de manipular as emoções pós11 de setembro muito além da sombra do
envolvimento iraquiano naquele crime contra a humanidade. As mudanças dramáticas no clima político depois de 11 de setembro incluíram um drástico
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reforço nessa atitude – fervorosamente abastecida
pelos gostos de Rumsfeld, Dick Cheney e do presidente
– de que nosso Exército deveria atacar inimigos em
potencial antes que eles “pudessem” nos atacar. Alguns políticos e especialistas desejavam confrontar a
realidade de que esta seria uma fórmula para uma
guerra perpétua, e para o surgimento de um grande
número de novos adversários, que veriam como lógica
recíproca a adoção de crença.
O conselheiro de segurança nacional do Presidente
Bush “sentiu que o governo não tinha muitas opções com
Hussein”, relatou o repórter Bob Woodward em meados
de novembro de 2002. Uma frase de Condoleezza Rice
resumiu a situação: “Cuide logo das ameaças.”
Determinar exatamente o que constitui uma ameaça
– e como “cuidar” dela – seria uma tarefa para se resolver na Oval Office (Salão Oval).
Certamente, a imprensa respondeu ao 11 de setembro com horror, aversão e condenação total. O desejo
terrorista de destruir e matar era perverso. Ao mesmo
tempo, o desejo do Pentágono de destruir e matar tornou-se mais e mais autojustificável nos últimos meses
de 2002. Enquanto repórteres e especialistas repetiam
as afirmações oficiais de Washington, a idéia de uma
nova guerra no Iraque parecia mais aceitável. Havia uma
escassa preocupação quanto aos civis iraquianos, cujos
últimos momentos, antes de serem atacados por mísseis,
se assemelhariam àqueles dos que padeceram nos ataques ao World Trade Center (WTC) e ao Pentágono.
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“Os maiores triunfos da propaganda foram alcançados, não por se fazer algo, mas por evitá-lo”, observou
há muito tempo Aldous Huxley. “Grande é a verdade,
porém maior, de um ponto de vista prático, é o silêncio
sobre a verdade.” Apesar do tumulto da imprensa sobre
o 11 de setembro, um silêncio – rigorosamente seletivo –
rondou a cobertura da grande imprensa. Para os homens
da política em Washington, a utilidade prática desse silêncio é imensurável. Em resposta aos assassinatos em
massa cometidos por seqüestradores, a ação moralista do
Exército dos EUA permanece clara – contanto que os
interesses permaneçam sem questionamento.
Na manhã de 11 de setembro de 2001, enquanto equipes de resgate combatiam a densa fumaça e os destroços, o analista da ABC News, Vincent Cannistraro,
ajudava a colocar os eventos descobertos em perspectiva para milhões de espectadores. Cannistraro é um exoficial do alto escalão da Central Intelligence Agency
(CIA). Ele estava no comando dos trabalhos da CIA com
os “contras” na Nicarágua no início da década de 1980.
Depois de se mudar para o Conselho de Segurança Nacional, em 1984, tornou-se supervisor de ajuda secreta às
guerrilhas afegãs. Em outras palavras, Cannistraro tem
uma longa história de ajuda a terroristas – primeiro, aos
“contras”, que rotineiramente mataram civis nicaragüenses; depois, aos rebeldes mujahedeen no Afeganistão, tais
como Osama bin Laden.
Como pode uma associação terrorista de longa data,
apoiada pelo Estado, agora denunciar o terrorismo? É
fácil. Tudo o que é necessário é que a cobertura da
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imprensa faça uma abordagem, como de costume, não
histórica, para não se utilizar de fatos inconvenientes.
Em seu livro 1984, George Orwell descreve a dinâmica
mental: “O processo tem de ser consciente, ou ele não
será dotado de precisão suficiente; mas também deve ser
inconsciente, senão ele terá uma sensação de falsidade
e uma carga de culpa... Dizer mentiras deliberadas enquanto se acredita nelas piamente, esquecer qualquer
fato que tenha se tornado inconveniente e, depois, quando se torna novamente necessário, trazê-lo de volta pelo
tempo que for preciso, negar a existência de uma realidade objetiva e, por todo o tempo, dar-se conta da realidade que alguém nega – tudo isso é indispensavelmente
necessário”.
O secretário de Estado Collin Powell denunciou “aqueles que acham que, com a destruição de prédios, com o
assassinato de pessoas podem de alguma maneira alcançar um objetivo político”. Powell descrevia os seqüestradores que haviam atingido seu país horas antes. Sem
querer, também estava descrevendo vários dos principais
oficiais em Washington. Certamente, políticos estadunidenses acreditaram que poderiam “alcançar objetivos
políticos” com a “destruição de prédios, com o assassinato de pessoas”, quando optaram por lançar mísseis em
Bagdá em 1991, ou em Belgrado em 1999. Mas é raro o
questionamento da mídia estadunidense quanto às matanças perpetradas pelo governo dos EUA. Apenas algumas crueldades merecem destaque. Apenas algumas
vítimas merecem empatia. Apenas certos crimes contra
a humanidade merecem nossas lágrimas.
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As mudanças de significado dependem geralmente
de uma única palavra. No mundo das relações públicas,
sucesso ou fracasso podem depender das respostas do
povo a certos jogos de palavras. Desde os ataques de 11
de setembro, nenhuma palavra de efeito tem encontrado mais uso do que “terrorismo”. Durante os 2 primeiros dias de outubro de 2001, a página na Internet da CNN
apresentava um pequeno e estranho anúncio. “Tem havido falsas acusações de que a CNN não usou a palavra
‘terrorista’ para se referir àqueles que atacaram o World
Trade Center e o Pentágono”, dizia a notícia. “Na verdade, a CNN tem constante e repetidamente se referido
aos atacantes e seqüestradores como terroristas, e continuará fazendo isso.”
O repúdio da CNN era preciso – e reafirmado por
padrões convencionais da imprensa. Mas ele contorna
uma questão básica: exatamente, o que é terrorismo?
Para os jornalistas tradicionais deste país, esta é uma
não-questão sobre um não-assunto. Mais do que nunca, a própria função da marca terrorista parece óbvia.
“Um grupo de pessoas se apoderou de companhias aéreas
e as usou como mísseis guiados contra milhares de
pessoas”, disse o executivo da NBC News, Bill Wheatley.
“Se isso não cabe na definição de terrorismo, o que
cabe?”
Verdade. Ao mesmo tempo, é notável que os veículos de imprensa estadunidenses consideram grupos de
terroristas usando os mesmo critérios que o governo dos
EUA. Os editores geralmente declaram que os repórteres não precisam de nenhuma diretiva formal – o uso
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apropriado é simplesmente compreendido. Por outro
lado, a agência mundial de notícias Reuters assumiu a
uma abordagem diferente durante décadas. “Como parte
de uma política para evitar o uso de palavras emotivas”,
diz a agência de notícias, “não usamos termos como
‘terrorista’ e ‘defensor da liberdade’ a menos que eles
sejam uma menção direta ou sejam atribuíveis a terceiros. Nós não caracterizamos os sujeitos das notícias, mas
retratamos suas ações, sua identidade e seu passado para
que os leitores possam tomar suas próprias decisões
baseadas nos fatos.”
A Reuters cobre 60 países. A denominação de terrorista é uma constante em muitos deles. Por trás dos
panos, muitos governos tentaram pressionar a Reuters
para uma mudança na cobertura usando a palavra terrorista para falar de seus inimigos. Do ponto de vista
dos líderes do governo de Ankara, de Jerusalém ou de
Moscou, os noticiários deveriam denominar de “terroristas” seus violentos inimigos. Já para os curdos, palestinos ou tchetchênios, os noticiários deveriam
denominar os líderes violentos de Ankara, de Jerusalém
ou de Moscou como “terroristas” também.
Em outubro de 1998, o intelectual e ativista Eqbal
Ahmed fez algumas recomendações aos Estados Unidos.
A primeira delas: “Evite extremismos. ... Não condene
o terror israelense, o terror paquistanês, o terror nicaragüense, o terror salvadorenho, por um lado, e depois
reclame do terror afegão ou do terror palestino. Não
funciona. Tente ser razoável. Uma superpotência não
pode promover o terror em um lugar e racionalmente
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esperar desencorajar o terrorismo em outro. Não é assim que funciona neste mundo interligado”.
Se os repórteres estadunidenses difundissem sua
definição de terrorismo para incluir toda a violência
cometida contra civis para com vistas a objetivos políticos, encontrariam forte oposição em diversos níveis.
Durante os anos de 1980, se houvesse uma política bem
definida para o terrorismo, a imprensa teria denominado as guerrilhas dos “contra” da Nicarágua – além dos
governos salvadorenho e guatemalteco – como terroristas apoiados pelos EUA.
No léxico político dos EUA, terrorismo – como usado para descrever, por exemplo, a morte de israelenses
– não pode ser usado para descrever a morte de palestinos. Porém, em uma reportagem de outubro de 2002,
o grupo israelense de direitos humanos B’Tselem documentou que 80% dos palestinos assassinados pela Força de Defesa Israelense durante a coerção do toque de
recolher eram crianças. Doze pessoas com menos de
dezesseis anos foram mortas, outras dezenas feridas por
tiros israelenses em áreas ocupadas, durante um período de 4 meses. “Nenhum desses mortos oferecia perigo
à vida dos soldados”, informa o B’Tselem.
O professor de política George Monbiot ajudou a
estabelecer o contexto para o procedimento moral da
Casa Branca contra o Iraque, em uma coluna de agosto
de 2002, no Guardian, quando ele avaliou “a perspectiva de George Bush em declarar guerra a outra nação
porque aquela nação havia desafiado lei internacional”.
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Monbiot apontou: “Desde que Bush subiu ao poder, o
governo dos Estados Unidos quebrou mais alianças internacionais e ignorou mais tratados das Nações Unidas que todo o resto do mundo em 20 anos. Ele eliminou
os tratados de armas biológicas ao experimentar, ilegalmente, suas próprias armas biológicas. Recusou a permissão de acesso total a inspetores de armas químicas a
seus laboratórios, e sabotou tentativas de inspeções
químicas no Iraque. Cancelou o acordo de mísseis
antibalísticos, e parece estar pronto para violar o tratado de proibição aos testes nucleares. Permitiu que grupos da CIA recomeçassem operações secretas do tipo que
incluiu, no passado, o assassinato de chefes de Estado
estrangeiros. Sabotou o acordo de armas de pequeno
porte, questionou a corte criminal internacional, recusou-se a assinar o protocolo de mudança climática e, mês
passado, procurou imobilizar o tratado das Nações Unidas contra tortura”.
Nenhuma dubiedade foi empregada mais deliberadamente no Oriente Médio que a política dos EUA relativa
a “armas de destruição em massa”. De acordo com
Washington e a maioria dos noticiários estadunidenses,
os políticos dos EUA sempre desfrutaram de uma base moral inquestionável em confronto com o ditador do Iraque.
Uma parte da imprensa diária britânica tem sido compreensivelmente mais cética. “Cientistas respeitáveis de
ambos os lados do Atlântico avisaram ontem que os EUA
estão desenvolvendo uma nova geração de armas que
questionam e possivelmente violam acordos internacionais de guerras biológicas e químicas”, publicou o cor70
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respondente do Guardian, Julian Borger, de Washington,
em 29 de outubro de 2002. Os cientistas “também apontaram para o paradoxo de os EUA desenvolverem tais
armas no momento em que propõem uma ação militar
contra o Iraque, justificando-se no fato de Saddam
Hussein estar quebrando acordos internacionais. Malcom
Dando, professor de Segurança Nacional na Universidade de Bradford, e Mark Wheelis, palestrante em
Microbiologia na Universidade da Califórnia, dizem que
os EUA estão encorajando um colapso no controle de
armas com sua pesquisa sobre armas biológicas, antraz
e armas não letais usadas contra multidões hostis, e pelo
caráter secreto como esses programas estão sendo conduzidos. O professor Dando avisa que os EUA “correm um
sério risco de conduzir o mundo a uma redução drástica
da segurança de todos”.
“A segurança de todos” tem sido o argumento central para a guerra contra o Iraque – com o espectro de
armas nucleares nas mãos de Saddam Hussein servindo
de principal desculpa. Em agosto de 2002, o vice-presidente Cheney estava tão ansioso para dar a cartada da
ameaça nuclear que disse que o Iraque iria adquirir armas nucleares “brevemente”, contradizendo relatórios
da CIA que afirmavam que o Iraque não poderia fazêlo por no mínimo 5 anos.
Durante uma entrevista para o livro de Willian Rivers
Pitt, Guerra Contra o Iraque, em 2002, o ex-inspetor de
armas das Nações Unidas, Scott Ritter, discutiu o programa de armas nucleares do Iraque: “Quando saí do
Iraque, em 1998, quando terminou o programa de ins71
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peção das Nações Unidas, a infra-estrutura e os meios
de execução foram 100% eliminados. Não há dúvida
quanto a isso. Todos os instrumentos e aparelhos foram
destruídos. Os projetos de design de armas foram
destruídos. Os equipamentos de produção foram encontrados e destruídos... Podemos dizer com certeza que a
infra-estrutura industrial necessária ao Iraque para produzir armas nucleares foi eliminada”.
Quando o inspetor-chefe da ONU (Organização das
Nações Unidas), Hans Blix, chegou em Bagdá em 18 de
novembro de 2002, seus comentários incluíam uma esperança expressa por “uma zona livre de armas de destruição em massa em todo o Oriente Médio”. Essa não é
uma idéia que recebe muita cobertura na imprensa dos
Estados Unidos e tal exemplo não foi uma exceção; uma
procura, realizada nos principais jornais dos EUA no
banco de dados Nexis, encontrou o depoimento de Blix
mencionado apenas pelo Washington Post (e parafraseado pelo Atlanta Journal-Constitution). Porém, como publicou o jornal Scotsman no mesmo dia, Blix se referia
às “medidas originais do Conselho de Segurança no que
se tratava da Guerra do Golfo em 1991, que em teoria
delineou uma zona livre de armas nucleares para proteger os vizinhos do Iraque: Irã e principalmente Israel”.
Richard Butler – um dos predecessores de Blix na
chefia da inspeção de armas das Nações Unidas – tem
acumulado uma dose de generosidade para com o governo estadunidense, mas, depois de retornar à Austrália, fez algumas críticas sobre a abordagem da
72
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superpotência quanto às armas nucleares: “Meus esforços para que os Estados Unidos entrem na discussão
sobre dubiedades têm sido um desprezível fracasso
mesmo com pessoas altamente educadas e engajadas”,
disse Butler. A discordância tinha relação com os arsenais nucleares dos Estados Unidos e seus aliados –
incluindo Israel. Quando apresentou a palestra
“Templeton” na Universidade de Sydney, em meados
de 2002, Butler recordou: “Uma das situações mais difíceis em que me encontrei em Bagdá foi quando os
iraquianos exigiram que eu explicasse por que deveriam
ser caçados por causa de suas armas de destruição em
massa quando, do outro lado da rua, Israel não o era,
mesmo se sabendo que este país possuía mais de 200
armas nucleares”.
Grande parte do conhecimento público sobre as armas nucleares de Israel se deve aos corajosos esforços
de um ex-técnico nuclear de Israel, Mordechai Vanunu.
Na época da palestra universitária de Butler, o denunciante Vanunu completava seu décimo sexto ano atrás
das grades (Muitos dos quais passados confinado na
solitária). Vanunu tem sido uma pessoa ausente dos
noticiários estadunidenses por razões que têm tudo a ver
com o tipo de “dubiedades” citado por Butler.
No dia 30 de setembro de 1986, o governo de Israel
seqüestrou Vanunu em Roma e o colocou em um navio
cargueiro. De volta a Israel, em um julgamento secreto,
ele respondeu a acusações de espionagem e traição. Uma
corte militar o sentenciou a 18 anos de prisão. Vanunu
havia entregue a jornalistas do Sunday Times of London
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informações detalhadas sobre o arsenal de bombas nucleares de Israel.
Depois de crescer em uma família judia, Mordechai
Vanunu tornou-se um funcionário da usina nuclear
Dimona em 1976. Cerca de uma década mais tarde, um
pouco antes de seu emprego terminar no afastado órgão nuclear, ele tirou fotografias dentro da Dimona, que
sempre foi fechada à inspeção internacional. Usando o
dinheiro de sua indenização para viajar para fora do país
em 1986, Vanunu contatou a Insight, famosa unidade
investigativa do Sunday Times. “Durante seu extensivo
interrogatório pela nossa equipe da Insight”, relatou o
jornal, “ele se ofereceu para entregar ao jornal suas fotografias e toda a informação que possuía sem pedir nada
em troca, contanto que seu nome não fosse publicado,
insistindo que seu único interesse era conter a proliferação nuclear no Oriente Médio.”
O Sunday Times persuadiu Vanunu a permitir que seu
nome fosse publicado. O jornal concordou em pagar
Vanunu por uma publicação em série ou um livro baseado em suas informações, mas o dinheiro não parecia ser
o que o motivava. “Minha impressão daquele homem
era de alguém que tinha um sincero desejo de dizer ao
mundo que o que Israel estava fazendo lhe parecia realmente errado”, disse Peter Hounam, o principal repórter da matéria do Sunday Times. “Ele achava errado que
o povo e o Parlamento israelenses não recebessem informações sobre o que acontecia em Dimona.”
No dia 5 de outubro de 1986, o Sunday Times deu
um furo de matéria com o título de primeira página:
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“Revelados: os segredos do arsenal nuclear de Israel”.
Naquele momento, Vanunu já era um prisioneiro do
governo israelense.
Se você mencionar o nome de Mordechai Vanunu a
um estadunidense, é possível que receba um olhar desentendido. A oeste do Atlântico, ele é um fantasma da
imprensa. Mas imagine o que teria acontecido se outro
país do Oriente Médio – o Iraque, por exemplo – tivesse seqüestrado um de seus cidadãos para penalizá-lo por
revelar os segredos do programa de armas nucleares.
Essa pessoa teria se tornado instantaneamente um herói da imprensa nos Estados Unidos.
75
URÂNIO ENRIQUECIDO:
O SEGREDO SUJO DOS EUA
Reese Erlich
Durante a Guerra do Golfo Pérsico, o Exército dos
EUA causou sérios estragos nos tanques e blindados do
Iraque. Os iraquianos não tiveram chance porque os
tanques estadunidenses estavam protegidos por um
metal chamado urânio enriquecido. O urânio enriquecido (UE) na blindagem e na munição deu aos Estados
Unidos uma vantagem decisiva. Seus tanques atiravam
bombas de UE, e as armas Gattling de seus helicópteros
disparavam munição UE.30 mm em uma chuva mortal
que ainda pode matar veteranos estadunidenses e civis
iraquianos anos depois do fim da guerra.
Urânio enriquecido é o material restante do processo de combustão nuclear. O Exército dos EUA usa o UE
como substituto do chumbo para preencher o núcleo da
munição. O UE é 1,7 vez mais denso que o chumbo,
penetrando a blindagem inimiga com relativa facilidade
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quando comparado ao chumbo. O mesmo material é
distribuído em camadas na blindagem dos tanques para
evitar a entrada de balas inimigas.
Quando o UE atinge um alvo muito denso, o impacto causa um calor intenso, e o UE pulverizado se espalha pelo ar. Soldados nos arredores o inalam. Ventos
podem levá-lo a milhas de distância da área do impacto inicial, o que faz com que civis desafortunados também possam inalá-lo. O UE permanece radioativo por
4,5 bilhões de anos. Pode contaminar o solo e penetrar
em lençóis freáticos. Especialistas se preocupam com o
fato de que o UE esteja criando, em longo prazo, áreas
de desastre ambiental no Iraque e na ex-Iugoslávia, onde
os EUA também usaram UE. Médicos em ambas as regiões registraram grandes aumentos nas taxas de câncer, e os iraquianos também perceberam um grande
número de defeitos de nascença. E os veteranos da Guerra
do Golfo apresentam alguns desses sintomas.
É quase certo que qualquer invasão estadunidense ou
britânica no Iraque irá contar novamente com o uso
extensivo de munição de urânio enriquecido. Além das
muitas mortes de civis, causadas pelos impactos diretos, o material causará muitas mortes e sofrimento tempos depois do fim do conflito.
Basra, Iraque
Algo está muito, muito errado no Sul do Iraque. No
Hospital Infantil e Maternidade de Basra, médicos exibem um enorme álbum de fotografias de centenas de
crianças com terríveis defeitos de nascença. Um estudo
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feito por médicos iraquianos indicou que 0,776% das
crianças da área de Basra nasceram com defeitos em
1998, comparadas a apenas 0,304% em 1990, antes da
Guerra do Golfo. Outro estudo mostrou um aumento de
384,2% no câncer e em outras malignidades infantis, de
1990 a 2000.
De acordo com o Dr. Jinan Hassan, pediatra e professor assistente na Faculdade de Medicina da Universidade de Basra, “mulheres iraquianas do Sul têm medo
de engravidar, pois receiam a malformação do feto... Na
hora do parto, as mulheres costumavam perguntar se seu
filho era menino ou menina. Agora elas perguntam ‘é
normal ou não?’.”
Médicos iraquianos, e um número crescente de cientistas ocidentais, atribuem o aumento de doenças e defeitos de nascimento ao uso do urânio enriquecido por
parte dos EUA e da Inglaterra. Médicos iraquianos disseram ter encontrado elevados índices de câncer nas
áreas de Basra, onde o urânio enriquecido foi utilizado.
O Pentágono confirma ter disparado 320 toneladas de
munição de UE durante a Guerra do Golfo.
Veteranos de guerra da Inglaterra e dos EUA também
suspeitam do UE como a causa das doenças da Guerra
do Golfo. O Dr. Doug Rokke, major agora na reserva do
Exército dos EUA, era o encarregado da manutenção de
24 tanques dos EUA atingidos por balas estadunidenses
durante a Guerra do Golfo, balas disparadas por seus
próprios tanques. Ele e sua equipe trabalharam durante
3 meses, enviando a blindagem de volta aos EUA para
uma descontaminação especial.
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A exposição à contaminação por UE foi tão intensa,
disse-me Rokke, que “todos ficamos doentes em 72 horas”. Três anos mais tarde – falou – um exame de urina
mostrou que ele tinha 5 mil vezes o nível tolerado de
urânio em seu corpo. Veteranos da Guerra do Golfo que
trabalharam nas zonas contaminadas por UE foram
diagnosticados com o mesmo tipo de câncer encontrado nos civis de Basra, e que também geraram crianças
com defeitos de nascença.
O Dr. Doug Rokke, Ph.D. em Física e ex-diretor do
Projeto de UE do Exército dos EUA, estudou documentos militares internos e preparou relatórios sobre como
descontaminar áreas atingidas por UE. Baseado em suas
experiências, ele diz: “Os líderes do Exército dos Estados Unidos sabiam que o uso de UE causaria problemas
ambientais e de saúde”.
O Pentágono argumenta, no entanto, que a munição
de UE não apresenta perigo aos civis. Informativos do
Departamento de Defesa afirmam que o urânio enriquecido é menos radioativo que o urânio encontrado naturalmente no ambiente, e atestam que mesmo os
mineradores de urânio regularmente expostos a grandes doses de urânio natural não sofrem de problemas
de saúde como conseqüência.
O Departamento de Defesa admite que pequenas
quantidades de urânio enriquecido são absorvidas pelo
corpo quando inalados ou engolidos. Mas “não se esperam efeitos radiológicos de saúde, pois tanto a radioatividade do urânio quanto a do urânio enriquecido são
bastante baixas”. (www.gulflink.osd.mil)
80
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Pesquisas na área de saúde no Iraque e na ex-Iugoslávia indicam que o Pentágono pode estar completamente errado. A Dra. Eva-Maria Hobiger, oncologista
austríaca, estudou a ligação entre urânio enriquecido,
câncer e defeitos de nascimento. Nada se concluirá a
menos que um extensivo estudo epidemiológico possa
ser feito em Basra. Os estudos iraquianos de defeitos de
nascença e taxas de câncer não foram verificados por
cientistas de outros países.
Hobiger nota, entretanto, que se o UE se deposita em
partes sensíveis do corpo, como glândulas linfáticas e
ossos, e produz uma baixa, porém constante corrente de
radiação. Com o tempo, isso pode causar câncer, diz ela.
A Dra. Hobiger e muitos outros notam que o Sul
do Iraque vem sendo uma área de desastre ambiental
há anos. Durante a Guerra entre Iraque e Irã, parte da
população foi atingida por gás venenoso. Depois da
Guerra do Golfo Pérsico, tropas iraquianas atearam
fogo em poços de petróleo e poluíram toda a região
por meses. Também há a questão da poluição do ar –
causada principalmente por indústrias e olarias – no
Sul do Iraque. Alguns cientistas afirmam que esses
fatores ambientais podem ser a causa dos problemas
de saúde em Basra.
A Dra. Hobiger explica que esses fatores, ainda que
perigosos, não explicam todos os problemas. Ao que se
sabe, por exemplo, a poluição atmosférica não causa
problemas de nascença. Mesmo que alguns gases venenosos possam fazer com que pessoas que os tenham
inalado gerem filhos com defeitos de nascença, não se
81
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têm registros de que eles causem má-formação tempos
depois da exposição inicial.
Ela teoriza que o UE, combinado à poluição atmosférica, pode ser a causa dos problemas de câncer. A
toxicidade química do UE também pode ser relevante.
Por ser um metal pesado, ele pode se infiltrar na água e
no solo. Uma vez na cadeia alimentar, pode causar câncer de rim e uma série de outras doenças.
Até pouco tempo atrás, porém, os cientistas não sabiam se o UE realmente aparecia nos corpos de moradores do Iraque e dos Bálcãs. Isso porque os cientistas
precisam submeter a urina de cada paciente a uma análise muito sofisticada para encontrar o UE, e tais testes
não eram possíveis no Iraque.
O Pentágono e vários outros exércitos da OTAN
(Organização do Tratado do Atlântico Norte) fizeram tais
testes nos soldados que lutaram nas guerras dos Bálcãs e
declararam não ter encontrado traços de UE.
Então, em 2001, a TV BBC na Escócia encarregou o
professor Nick Priest de estudar o assunto. Ele leciona
na Escola de Saúde, Ciências Biológicas e Ambientais
da Universidade Middlesex, de Londres, e é um reconhecido perito em assuntos de radiação. Priest analisou
amostras da urina de 12 pessoas da Bósnia e de Kosovo
que moravam em áreas atingidas por cargas de UE.
Algumas dessas pessoas eram pacientes com câncer;
entre elas, uma criança nascida após a guerra na Bósnia.
Todas mostraram traços de UE em seus organismos. O
teste “parece indicar que o metal [UE] está agora presente na cadeia alimentar e/ou na água potável”, escre82
A L V O :
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veu o professor Priest em um relatório para um jornal
científico. Em entrevista em Londres, Priest disse que,
quanto mais velha a pessoa, maior a quantidade de UE
em seu organismo, indicando que a contaminação vem
de partículas de UE no ambiente que são lentamente
absorvidas com o tempo.
Em outubro de 2002, o professor Priest e cientistas
alemães conduziram uma pesquisa com um grande número de sérvios e bósnios para determinar se os resultados originais poderiam se repetir. A resposta seria
publicada em 2003.
O professor Priest não acredita que a quantidade de
radiação emitida pelo urânio enriquecido apresente um
sério perigo à saúde dos civis. A quantia de UE que ele
encontrou, mesmo nos pacientes com câncer, estava
abaixo do que poderia se esperar que fosse a causa de
tais problemas de saúde. Ele notou que o UE contém
menos radiação que o urânio natural.
A controvérsia continua porque ninguém pode explicar o grande aumento de defeitos de nascença e câncer no Iraque desde a Guerra do Golfo. É extremamente
difícil ligar uma doença individual a um fator ambiental
específico. Cientistas precisam conduzir um estudo para
relacionar os tipos de problemas de saúde e o local onde
eles ocorrem. Com uma amostra grande o suficiente,
poderiam determinar se o problema de saúde foi causado por exposição ao UE, por outros fatores ambientais,
histórico familiar ou outro motivo qualquer.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) chegou a
planejar tal estudo no Iraque, mas não conseguiu apoio
83
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financeiro. Segundo a Dra. Hobiger, ele foi bloqueado
pelos EUA e pela Inglaterra.
Os trabalhos dos médicos na Bósnia também são prejudicados por relatórios médicos similares àqueles sobre
Basra. De acordo com o Departamento de Defesa, aviões
estadunidenses dispararam aproximadamente 3,3 toneladas de UE durante a guerra da Bósnia em 1994-1995, e
10,2 toneladas durante a guerra de Kosovo, em 1999.
Em entrevistas com médicos da Sérvia e da Bósnia,
que examinaram residentes de áreas onde a munição UE
foi extensivamente lançada, eles disseram que notaram
um grande aumento nos casos de câncer, apesar de ainda
não ter havido aumento nos casos de defeitos de nascimento.
A Dra. Nada Cicmil-Saric é uma oncologista que tratou de famílias de Foca-Srbinje, uma cidade da Bósnia.
A ponte da cidade foi destruída por ataques dos EUA em
1994. A médica encontrou numerosos casos em que dois
ou mais membros de famílias que moravam perto da
ponte desenvolveram doenças fatais. Enquanto alguns
casos podem ser atribuídos a fatores genéticos, em outros, maridos e esposas desenvolveram doenças fatais
depois de 1994, ocorrência nada comum segundo a Dra.
Cicmil-Saric.
Em seu hospital, que trata de diversas pessoas expostas ao UE, ela relata um aumento de 5 vezes de câncer de pulmão e 3 vezes de câncer linfático desde 1994
– sendo que ambos podem ter sido causados por exposição ao UE. Ela também notou um crescimento de 5 a
6 vezes na taxa de câncer de mama, que não costuma
84
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ser associado ao UE, o que indica que outros fatores
também devem ser levados em conta.
Na guerra da Bósnia, assim como nos bombardeios
da OTAN na Sérvia durante a guerra de Kosovo, em 1998,
os EUA atingiram fábricas e estações de energia, o que
liberou fumaça cancerígena. Como resultado – muito
parecido com a situação no Iraque – os médicos dizem
ser difícil isolar o impacto de UE sem um estudo
epidemiológico completo.
As autoridades das repúblicas iugoslavas de
Montenegro e Sérvia não esperaram por uma avaliação
dos perigos do UE. Eles já começaram a limpar as áreas
contaminadas.
Cape Arza é um ponto de beleza espetacular a aproximadamente 50 quilômetros ao sul de Dubrovnik, em
Montenegro, ao longo da costa Adriática. De acordo com
um mito local, Deus transportava tesouros do Oriente
Médio à Europa quando derrubou parte deles em Cape
Arza. Durante o verão, os nativos nadam e pescam no
mar azul-celeste.
Nos dias 29 e 30 de maio de 1999 – os dias finais da
guerra de Kosovo – 2 aviões estadunidenses Thunderbolt
(Warthog) A-10 dispararam balas de UE em Cape Arza.
O Exército iugoslavo construiu abrigos na região em
1968, usados durante a guerra com a Croácia no começo dos anos de 1990. Mas lá não havia tropas ou armas
em 1999, de acordo com Tomislav Andelic, físico do
Center for Toxicologicval Reserarch of Montenegro. “Os
EUA cometeram um erro”, disse Andelic, “eles não têm
um bom serviço de inteligência.”
85
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Os aviões dos EUA atiraram cerca de 300 balas .30
mm de UE em Cape Arza, dispersando-as por mais de
20 mil metros quadrados pelo deserto.
Nos 3 últimos anos, as balas de UE começaram a
oxidar e a se desfazer. Autoridades de Montenegro preocupam-se com a poeira de UE que pode ser levada pelo
vento ou se infiltrar no solo. Pessoas acompanhadas em
barracas ou crianças brincando com as balas podem se
contaminar. Além do mais, a existência de uma terra
contaminada irá arruinar qualquer chance de turismo
nessa bela porção da costa.
O Exército iugoslavo interditou a área. O governo de
Montenegro gastou 300 mil dólares e o governo da Iugoslávia, outros 100 mil para limpar Cape Arza. Soldados com monitores gama presos a longos pinos de
madeira cobriram cuidadosamente toda a área à procura de balas de UE. Eles as retiravam com cuidado, como
arqueólogos trabalhando em uma escavação ancestral.
As balas contaminadas e o lixo radioativo eram enviados para Belgrado para serem armazenados junto a
outros dejetos de baixo nível radioativo.
O governo iugoslavo planeja limpar 5 áreas similares na Sérvia. Mas nem a Sérvia nem Montenegro conseguem encontrar um governo estrangeiro, uma agência
internacional ou uma ONG que contribua financeiramente com a limpeza.
“Se algum país reconhecer a necessidade de limpar
o urânio enriquecido”, disse Andelic, “significaria automaticamente que eles reconhecem o perigo vindo do
UE. Se isso acontecesse, poderíamos reivindicar com86
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pensações pelos danos, e ninguém está pronto para
aceitá-las.”
Se médicos iraquianos e dos Bálcãs tivessem como
provar que algumas de suas afirmações sobre UE estão
corretas, então os EUA e a Inglaterra sofreriam tremenda pressão para parar de usar munições com UE e poderiam ser forçados a pagar bilhões de dólares em
indenizações para compensar suas vítimas.
De certa maneira, isso não corresponde aos planos
dos EUA de permanecerem como a única superpotência
mundial.
Para concluir, vale a pena notar que tanto o Exército dos EUA quanto o da Inglaterra tomaram grandes
precauções com os testes de UE em seus próprios países. Soldados usam roupas de proteção e respiradores
quando disparam essas balas. As áreas de teste são interditadas e os soldados isolam a blindagem dos tanques
e a munição, destruídas após os testes.
87
O USO DE EUFEMISMOS
PARA O TERMO UNILATERAL
Norman Solomon
Quando o Conselho de Segurança das Nações Unidas adotou sua resolução com relação ao Iraque em 8
de novembro de 2002, jornalistas e políticos estadunidenses aclamaram o voto anônimo como um grande
passo em prol da cooperação internacional e um marco
que impediria a ação unilateral. Em Washington, legisladores pareciam entusiasmados, assim como os especialistas, ávidos por parabenizar a equipe de Bush pelo
bom trabalho diplomático.
Thomas Friedman, autoridade no New York Times,
estava praticamente em estado de choque. “Por um breve
e iluminado momento, sexta-feira passada,” declarava
em sua coluna de 13 de novembro, “o mundo não parecia um lugar tão louco”. Para Friedman, bem como para
tantos outros formadores de opinião da atual intelectualidade de Washington, as Nações Unidas se mostraram
úteis ao provar para a Casa Branca seu valor. “Em um
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mundo onde domina uma única superpotência, o Conselho de Segurança das Nações Unidas se torna ainda
mais relevante”, escreveu Friedman. Entre as vantagens,
“a equipe de Bush percebeu que a melhor maneira de
legitimar seu incrível poder – em uma guerra opcional
– não era simplesmente impondo-a, mas sim canalizando-a por meio da ONU”.
Se as Nações Unidas funcionam como um canal para
o poder estadunidense, ainda estamos falando de
unilateralismo. Grandes forças geopolíticas, econômicas e militares fazem com que os Estados Unidos consigam não só votos para o Conselho de Segurança, mas
também consentimentos internacionais e aliados em
caso de guerra. Essa história é antiga: décadas atrás, o
governo dos EUA alegou que a Guerra do Vietnã era um
esforço “conjunto”, já que contava com a participação
de tropas filipinas, australianas e sul-coreanas.
Vasculhando a programação dos estrategistas de
guerra dos EUA, o Conselho de Segurança da ONU conseguiu informações de fundamental importância. Nas
palavras de Friedman: “O povo estadunidense disse a
Karl Rove, e o povo britânico disse a Tony Blair, que a
guerra contra o Iraque é opcional e, ainda que seja legítima, eles não querem lutar sem o apoio da ONU e de
seus principais membros.”
Para conseguir um “Selo de Aprovação de Guerra
Válida das Nações Unidas”, a administração Bush distribuiu mamatas enquanto exercitava os músculos do
“Tio Sam”. “Acordos feitos por baixo dos panos com a
França e com a Rússia em relação ao petróleo no Iraque
90
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pós-guerra eram parte importante da jogada”, como
Phyllis Benni, analista da ONU, escreveu para o The
Nation após a votação do Conselho de Segurança. “A
empobrecida nação de Maurício é a mais recente garota-propaganda da pressão estadunidense sobre a ONU.
O embaixador Jagdish Koonjul foi destituído pelo governo de Maurício por não apoiar o projeto original dos
EUA em relação ao Iraque. Por quê? Porque as ilhas
Maurício recebem expressiva ajuda dos EUA e a Lei de
Crescimento e Oportunidades na África exige que os que
recebem ajuda estadunidense não se envolvam em atividades que possam questionar a segurança nacional dos
EUA ou interesses de política internacional.”
Não foi diferente a evolução do caso das ilhas Maurício. O voto do Conselho de Segurança “foi uma demonstração da habilidade de Washington em manejar
seu vasto poderio político e econômico”, relatou a Inter
Press Service. As nações integrantes do Conselho “votaram sob forte pressão diplomática e econômica dos
Estados Unidos”. A maioria dos países recebia ajuda de
Washington e “aparentemente estavam conscientes de
que, em 1990 (pouco antes da Guerra do Golfo), os Estados Unidos cortaram a ajuda de cerca de 70 milhões
de dólares ao Iêmen praticamente da noite pro dia. Isso
aconteceu logo após seu voto contra a decisão do Conselho de Segurança (apadrinhado pelos EUA) de retirada
militar iraquiana do Kuwait.”
Na revista inglesa New Statesman, John Pilger
relembrou alguns detalhes sórdidos do troco dado pela
superpotência. “Minutos após o Iêmen ter votado con91
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tra a decisão de atacar o Iraque, um diplomata dos EUA
falou ao embaixador do Iêmen: ‘Esse foi o voto negativo mais caro que você já deu’. Em 3 dias, o programa
estadunidense de 70 milhões de dólares em assistência
a um dos países mais pobres do mundo havia cessado.
O Iêmen subitamente começou a ter problemas com o
Banco Mundial e com o FMI (Fundo Monetário Internacional), e 800 mil de seus trabalhadores foram expulsos da Arábia Saudita... Quando os Estados Unidos
buscaram outra medida para o bloqueio ao Iraque, dois
novos membros do Conselho de Segurança foram prontamente coagidos. O embaixador estadunidense em
Quito advertiu o Equador quanto às ‘devastadoras conseqüências econômicas’ de um voto negativo. O
Zimbábue foi ameaçado com novas condições na sua
dívida com o FMI.”
Em 2002, contabilizando os impactos da assombrosa política externa de Washington de recompensa e
punição, uma realidade desconhecida da dominação
estadunidense veio à tona. Os Estados Unidos haviam
categoricamente se reservado o direito de fazerem o que
bem entendessem. Assim, enquanto os acordos que integraram a Resolução 1.441 tornaram menos alardeante
a dominação vermelha-branca-e-azul, as concessões dos
EUA tendiam a ser pouco significativas em longo prazo. O texto da resolução aprovado estava permeado de
contradições e fraudes. “Vários parágrafos dessa nova
resolução oscilam de maneira dúbia”, disse Denis
Halliday, ex-secretário-geral assistente da ONU, responsável pelo programa das Nações Unidas no Iraque de
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Petróleo por Comida. “Grande parte dessa resolução
deveria se estender a todos os Estados que violavam as
decisões do Conselho de Segurança e que possuem armas de destruição em massa.”
Quarenta e oito horas após a vitória, por 15 a 0,
da decisão do Conselho de Segurança, o chefe de
gabinete da Casa Branca, Andrew Card, disse na NBC:
“A ONU pode reunir-se e discutir, mas nós não precisamos de sua permissão” para iniciar um ataque
militar. “Os EUA e seus aliados estão preparados para
a ação”, explicou Card, concluindo com a frase “Se
nós tivermos de ir à guerra, nós iremos”. Enquanto
isso, na CNN, o secretário de Estado transmitia a
mesma mensagem: “Se ele [Saddam Hussein] não
ceder desta vez, pediremos à ONU autorização para
todas as medidas necessárias; e se a ONU não estiver
disposta a nos autorizar, os EUA, juntamente com os
países aliados, irão desarmá-lo a força”.
Nove dias depois, ao se dirigir a certos membros do
Parlamento inglês, Richard Perle, subsecretário de Defesa do Pentágono, utilizou-se do pretexto de que a
guerra dependeria do que acontecesse com os inspetores de armas da ONU. “O conselheiro de George Bush
para a área de segurança admitiu ontem que os EUA
atacarão o Iraque ainda que os inspetores da ONU não
encontrem armas”, declarou o jornal Mirror de 20 de
novembro. “Perle espantou os membros do Parlamento
ao insistir que nem um atestado de aprovação do chefe
da inspeção de armas da ONU, Hans Blix, deteria a
máquina de guerra estadunidense. Evidências do pro93
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grama de armas de Saddam Hussein vindas de uma única
testemunha seriam suficientes para desencadear uma
vigorosa investida militar, disse Perle durante um encontro sobre segurança global, que contou com a participação de todos os partidos.”
O argumento de Perle era de que a inspeção da ONU
não seria capaz de provar um resultado negativo. “Tudo
o que ele [Blix] pode saber são os resultados de sua própria investigação. E isso não prova que Saddam não
tenha armas de destruição em massa.” O limiar para que
Perle desse início a uma guerra era consideravelmente
baixo: “Suponhamos encontrar alguém envolvido com
a fabricação de armas e ele afirme que há estoque de
armas. Porém, não se consegue achá-lo, por estar bem
escondido. Deve-se realmente estar de posse desse estoque para ser convincente?”
Um ex-ministro da Defesa britânica, Peter Kilfoyle,
declarou com franqueza: “Por Saddam ser tão odiado no
Iraque, seria fácil encontrar alguém que dissesse ter testemunhado a fabricação de armas. Perle diz que os
estadunidenses ficariam contentes com uma declaração
como essa, mesmo que nenhuma evidência real fosse produzida [sic]. Tal perspectiva é aterrorizante”. Kilfoyle disse
que “Os EUA estão induzindo o mundo a acreditar que
todos estão a favor dessas inspeções. O presidente Bush
pretende ir à guerra ainda que os inspetores não encontrem nada. Isso não só ridiculariza o processo, como expõe a real determinação dos EUA de bombardear o Iraque”.
Em meados de novembro, oficiais envolvidos no processo de inspeção da ONU pronunciaram-se publicamente
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sobre o fato de que uma pequena ofensiva iraquiana não
deveria ser vista como uma “violação substancial” à resolução. O secretário-geral Kofi Annan disse que uma
desculpa “frívola” não deveria ser suficiente para se ir à
guerra. Mas tais declarações nada conseguiram fazer para
mudar a situação já tendenciosa: em clara contraposição
ao requisito do decreto da ONU de que “todos os membros devem, em suas relações internacionais, abster-se de
ameaças ou do uso de força contra a integridade territorial
ou a independência política de qualquer Estado”, o governo dos EUA seria o árbitro definitivo entre aliança ou
oposição. No Center for Constitucional Rights, em Nova
York, o presidente da organização, Michael Ratner, foi
duro: “O que está acontecendo aqui é impressionante. O
Conselho de Segurança, um órgão que supostamente
deveria tornar ilegal e impraticável a guerra sob o comando de um só país, está abrindo caminho para uma guerra
ofensiva. E o pior de tudo é que os EUA poderão alegar
que, de alguma maneira, eles receberam sua benção”.
Era bastante irônica, e até consideravelmente hipócrita a declaração dos altos oficiais dos EUA de que eles
proclamariam guerra ao Iraque – com ou sem o apoio
da resolução do Conselho de Segurança da ONU – se,
no entender deles, o Iraque não tivesse obedecido a uma
resolução desse Conselho. Tais contradições são ingredientes típicos do novo discurso da visão estadunidense
quanto às Nações Unidas.
As notícias quanto às Nações Unidas às vezes se tornam confusas. A ONU é uma instituição vital ou uma
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relíquia sem função? As decisões do Conselho de Segurança são de fundamental importância para as relações
internacionais, ou elas perderam a vez já que agora a liderança mundial deve vir de uma única superpotência?
Os estadunidenses ouviram por algum tempo que os
EUA precisariam armar um ataque estratégico ao Iraque,
uma vez que Saddam Hussein havia violado as decisões
do Conselho de Segurança da ONU, ao mesmo tempo em
que ouvíamos que o governo dos EUA deveria se reservar o direito de agir militarmente caso o Conselho de
Segurança não conseguisse tomar decisões contundentes em relação ao Iraque.
Para esclarecer a situação, aqui estão 3 diretrizes
básicas para entender como raciocinar em sincronia com
os políticos e especialistas estadunidenses:
• Resoluções da ONU aprovadas pelo Conselho de Segurança são muito importantes, e devem ser
enfatizadas com numerosa tropa militar, caso a Casa
Branca assim deseje. Caso contrário, as resoluções
têm pouca ou nenhuma relevância, e elas não podem, de maneira alguma, interferir no andamento
econômico e militar dos EUA, tampouco no apoio
diplomático dado a qualquer aliado de Washington.
Vários países continuaram a ignorar grande número de decisões aprovadas pelo Conselho de Segurança
da ONU desde o início da década de 1990. Marrocos
continua violando mais de uma dúzia dessas resoluções – assim como Israel – e a Turquia também tem
violado algumas tantas. Os oficiais desses países não
aguardam tão cedo ultimatos de Washington.
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• Algumas decisões da ONU são sagradas. Outras são
supérfluas. Para passar por cima das besteiras da mídia
quanto às decisões do Conselho de Segurança aprovadas nos últimos anos, basta recordar: no mundo de
acordo com a mídia estadunidense, o presidente dos
Estados Unidos possui o poder de Midas sobre as decisões da ONU. Quando ele confere seu toque real sobre
uma delas, esta se transforma em uma regra de ouro,
que deve ser imposta. Quando ele opta por não abençoar outras decisões da ONU, elas não têm valor.
• As Nações Unidas podem ser extremamente “relevantes” ou “irrelevantes”, conforme as circunstâncias.
Quando a ONU pode ser um instrumento útil da política internacional dos EUA, ela é uma instituição
mundialmente vital, responsabilizando-se pelo futuro
e reafirmando sua transcendente visão institucional.
Quando a ONU deixa de ser um instrumento útil para
a política internacional dos EUA, sua irrelevância se
torna tão óbvia que ela corre o risco de ir parar na
lata de lixo da história.
Palavras bonitas servem de desculpa para a guerra.
“Há uma retórica grandiloqüente sobre a ONU aqui em
Washington”, disse Erik Leaver, um pesquisador do projeto Foreign Policy in Focus. Stephen Zunes, professor
de Política na Universidade de San Francisco, citou alguns fatos importantes em meados de novembro de
2002: “Há mais de 100 resoluções do Conselho de Segurança da ONU sendo violadas por países membros. O
Iraque está violando 16 delas, no máximo. Ironicamen-
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te, Washington vetou a imposição das resoluções do
Conselho de Segurança da ONU a países como Marrocos, Indonésia, Israel e Turquia, que são aliados dos EUA”.
Leaver nem estava pensando nos alardes da imprensa
quando formulou este importante questionamento: “Se
os EUA agem militarmente com o apoio das Nações
Unidas, o que garante que outros países não iniciem seus
próprios ataques militares em nome de decisões da ONU
– contra a Turquia em Chipre, ou Marrocos no Saara
Ocidental, ou Israel na Palestina? Esse é precisamente o
motivo que faz da doutrina da prevenção uma política
perigosa de ser adotada pelos EUA”.
Informações importantes a respeito de inspetores de
armas da ONU no Iraque aparecem brevemente nas primeiras páginas dos jornais dos EUA no início de janeiro
de 1999; e prontamente desaparecem. Aproximadamente
4 anos mais tarde, quando virtuosos tambores de guerra
soavam em alto e bom som em Washington, retomar a
história significava aprofundar-se nas notícias do “buraco da memória” de Orwell. “Os EUA espionaram o Iraque
com apoio da ONU, dizem oficiais”, anunciava a capa do
New York Times de 7 de janeiro de 1999. O artigo era claro: “Oficiais dos EUA dizem hoje que espiões estadunidenses trabalharam secretamente em equipes de inspetores
de armas das Nações Unidas, investigando programas secretos de armas no Iraque.... Fazendo parte da equipe, os
estadunidenses não só tiveram acesso a informações da
investigação em primeira mão, como permaneciam seguros em sua estadia em Bagdá”. Um dia depois, uma maté98
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ria do Times apontava: “Relatos de que os Estados Unidos
se utilizaram dos inspetores de armas das Nações Unidas
para espionar Saddam Hussein estão diminuindo as probabilidades de que o sistema de inspeção prospere”.
Com sua credibilidade bastante abalada, o sistema de
inspeção da ONU não perdurou. Outro fator para sua
interrupção foi a declaração do governo dos EUA de que
as severas sanções ao Iraque continuariam intactas com
ou sem a cooperação de Bagdá ao regime de inspeções.
Poucas foram as notícias estadunidenses a narrar tais
fatos ou a opinar de forma divergente em uma mídia
condicionada a culpar Saddam Hussein por tudo.
Durante o segundo semestre de 2002, em vez de
apresentar um resumo completo dos eventos recentes
mais importantes, a grande mídia e os políticos dos
Estados Unidos pareciam satisfeitos em, dia após dia,
mostrar prós e contras táticos de variados e agressivos
cenários militares. Enquanto alguns especialistas levantavam bandeiras de alerta, até mesmo os mais absurdos
e contraditórios argumentos para uma violenta “mudança de regime” em Bagdá passavam praticamente despercebidos.
Ao final de julho, o Wall Street Journal publicou um
ensaio de dois ex-procuradores do Departamento de
Justiça que alegavam que os EUA estariam “em seu pleno
direito” em atacar o Iraque e derrubar o governo, baseados na “conhecida lei internacional da doutrina da legítima defesa preventiva”. Aqui nasce a contradição: se
“legítima defesa preventiva” fosse uma justa razão para
se iniciar uma guerra, o governo iraquiano poderia usar
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a mesma desculpa para justificar um ataque aos EUA –
mesmo se deixarmos de lado o fato de que o bombardeio estadunidense na “zona de vôo proibido” no Iraque
(declarada unilateralmente) vem se estendendo há anos.
Havia algo de patético – e perigoso – no uníssono dos
críticos liberais “despejando” suas esperanças em Collin
Powell em meados de 2002. Secretário de Estado, Powell
era um “moderado” sagrado (comparado às inclinações
de Dick Cheney e Donald Rumsfeld), cujas idas e vindas
de suas batalhas dentro do governo eram exibidas nos
noticiários. Ele foi louvado por ser um membro de
Washington paciente e perspicaz, e um diplomata extremamente experiente. Na marcha para a guerra e na
procura de uma base comum, ele foi um maestro soberbo e ovacionado na grande mídia.
Alguns baluartes da imprensa direitista, tais como o
editorial do Wall Street Journal, o condenaram por ser
insuficientemente militarista. Mas, na realidade, mais do
que cavar possibilidades de uma conflagração militar no
Iraque, o extraordinário prestígio de Powell foi usado como
um recurso útil aos estrategistas da guerra. O general aposentado “é visto, por muitos amigos de Washington e aliados estrangeiros, como parte essencial da credibilidade da
política internacional de Bush”, apontou a agência francesa de notícias AFP, no início de setembro. Ele teve a
sabedoria de, pacientemente, alinhar todos os “patos” diplomáticos antes que a caçada tivesse início. Em outubro,
a coluna “Convencional Wisdom”, da Newsweek, trazia
Powell com sua flecha apontada para o céu: “Brilhante
diplomacia conquista França, Síria e falcões”.
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Até mesmo os especialistas que reconheceram a pouca solidez de seu papel o lisonjearam. “Deveríamos nos
orgulhar de Collin Powell ser secretário de Estado”, escreveu Mary McGrory ao final de 2002. “Se não fosse
por ele, nossos soldados poderiam estar, agora mesmo,
batendo de porta em porta no centro de Bagdá promovendo discussões intermináveis.” Porém, como observou a notável colunista do Washington Post, Powell “não
disse ao presidente que não entrasse em guerra; disse
como entrar em guerra de uma maneira politicamente
correta”. Em vez de tentar evitar uma guerra, Powell
“somente tentou adiá-la por algumas semanas e arranjou uma desculpa”.
O mito Collin Powell, produto da mídia, celebra seu
alcance, que vai além da realidade dos fatos. O histórico de Powell não é o de um homem consciencioso. Uma
participação ativa em eventos deploráveis tem sido uma
constante em sua carreira. Alguns exemplos:
- Como delegado de alto escalão do secretário de
Defesa Caspar Wlinberger, Powell supervisionou a
transferência militar de 4.508 mísseis TOW para a CIA,
em janeiro de 1986. Aproximadamente metade desses
mísseis se tornou parte da troca de armas por reféns
com o Irã, durante a administração Reagan. Powell
ajudou a esconder do Congresso e da população essa
transação.
- Como conselheiro de Segurança Nacional de
Reagan, Powell foi uma das pessoas-chave nos esforços dos EUA em depor o governo eleito da Nicarágua.
Quando viajou para a América Central em janeiro de
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1988, Powell ameaçou cortar a ajuda estadunidense a
qualquer país da região que se recusasse a cooperar com
a luta travada pelos “contra”, então empenhados em
matar milhares de civis nicaragüenses. Powell se esforçou em impedir o êxito de um processo de paz iniciado
pelo presidente da Costa Rica, Oscar Arias.
- Quando as tropas estadunidenses invadiram o Panamá em 20 de dezembro de 1989, Powell era presidente
do Joint Chiefs of Staff. Ele havia “surgido como a figura crucial na decisão da invasão”, de acordo com o
repórter britânico Martin Walker. Centenas de civis
morreram nas primeiras horas da invasão. Powell declarou naquele dia: “Temos de colocar uma placa em
nossas portas dizendo: ‘Aqui mora o superpoder’.”
- No final de 2000, enquanto funcionários de Bush
trabalhavam a todo vapor na recontagem dos votos na
Flórida, um Estado onde milhares de afro-americanos
legalmente qualificados foram impedidos de votar graças a esforços republicanos, Powell foi até a fazenda de
Bush no Texas posar para fotos mostrando seu apoio à
“investigação” presidencial.
Porém, a Guerra do Golfo, em 1991, mais do que qualquer outro evento, lançou Powell para o estrelato político estadunidense. A incerteza das forças estadunidenses
em tomar Bagdá e depor Saddam Hussein foi a principal
questão da mídia envolvendo Powell e a guerra.
Em 25 de setembro de 1995 – durante uma viagem
a São Francisco, parte da turnê de promoção da bemsucedida autobiografia de Collin Powell – dúzias de re102
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pórteres e fotógrafos se espremeram em uma sala, cozinhando sob os holofotes das câmeras de TV. Houve uma
onda de euforia quando Powell chegou e subiu ao lugar reservado a ele. Ele era a imagem da autoridade
segura, com seus óculos com aro de metal estilo executivo, terno preto risca de giz, camisa azul pastel e uma
gravata deliciosamente borgonha. O prefeito apertou a
mão de Powell e deu formais boas-vindas ao primeiro
afro-americano a ser presidente do Joint Chiefs of Staff.
Os repórteres se encarregaram de algumas perguntas
corriqueiras, às quais o general aposentado respondeu de
forma superficial. Uma questão tratava de raça; outra, da
campanha presidencial de 1996, que estava por vir. Powell
então começou a explicar por que os estadunidenses estavam mais uma vez fascinados pelas forças militares, um
quarto de século após a malfadada Guerra do Vietnã.
Powell enumerava recentes sucessos militares – “a soberba
atuação das Forças Armadas dos EUA nos conflitos recentes, a começar, a meu ver, pela invasão do Panamá, e
então pelas operações Escudo e Tempestade no Deserto”
– quando uma voz despontou no fundo da sala. Falava
um homem de meia-idade, em uma cadeira de rodas.
Arqueado sobre seu aparato de metal, suas pernas inertes vestidas em jeans, ele gritou “Você não falou a verdade sobre a guerra no Golfo, general”.
Powell tentou ignorar a interrupção, mas o homem
persistiu, intimidando-o quanto aos civis mortos no
Panamá e no Iraque, conflitos que concederam a Powell
sua fama nacional. Finalmente, Powell respondeu em
tom protetor, chamando o dissidente pelo nome.
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“Oi, Ron, como vai? Com licença, deixe-me responder uma pergunta antes.”
“Mas por que você não diz a eles o motivo?”
“De fato, eu penso que o povo estadunidense está
dirigindo a mim a glória que é, na verdade, daquelas
tropas”, continuou Powell, deixando a interrupção de
lado. “O que vocês estão vendo é uma transferência
para mim do que aqueles jovens fizeram no Panamá,
na Operação Tempestade no Deserto e em tantos outros lugares...”
“Cento e cinqüenta mil pessoas, um bombardeio”, a
voz de Ron Kovic só podia ser ouvida nos intervalos das
palavras amplificadas de Powell.
“... é muito gratificante observar essa mudança de
atitude quanto às forças militares. Não é somente Collin
Powell, uma estrela do rock. São todos aqueles homens
e mulheres brilhantes que fizeram um trabalho maravilhoso.”
Naquela tarde, Ron Kovic, veterano da Guerra do
Vietnã e autor da autobiografia Nascido em 4 de julho,
não parou de falar. Da sua cadeira de rodas, ele fez de
tudo para ser ouvido. “Eu quero que os estadunidenses
saibam o que o general escondeu do povo dos EUA
durante a Guerra do Golfo”, disse Kovic. “Ele escondeu
as vítimas. Ele escondeu o horror. Ele escondeu a violência. Não precisamos de mais violência neste país.
Precisamos de líderes que representem cooperação. Precisamos de líderes que representem paz. Precisamos de
líderes que entendam a tragédia de usar a violência para
resolver nossos problemas.”
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De fato, quantos iraquianos morreram durante a
Guerra do Golfo em 1991? Powell e outras personalidades da guerra estadunidense não pareciam minimamente
interessados nessa questão. Porém, o erudito Stephen
Zunes escreveu, em 2002, em seu livro Tinderbox: “A
maioria das estimativas põem o número de mortos no
Iraque na faixa dos 100 mil. Devido à crescente precisão dos armamentos aéreos, a proporção dos civis
iraquianos mortos foi bem menor que em ataques aéreos
anteriores... Ainda assim, os números absolutos foram
bastante altos. A maioria das estimativas fala em aproximadamente 15 mil civis mortos.”
Durante os últimos meses de 2002, jornalistas declararam que a mais recente manifestação “moderada”
de Collin Powell havia sido sua postura quanto ao
Iraque durante a administração Bush. Mas a determinação do secretário de Estado em alinhar os que estavam do seu lado e a aprovação do Conselho de
Segurança da ONU podia ser entendida como parte de
uma preparação metódica para a guerra que estava por
vir. Powell estava raciocinando, em um contexto global, de modo muito pragmático. Assim, durante um
enfadonho jantar de apresentação a Bush, em 5 de
agosto, ele fez forte apelo às coalizões. Algum tempo
depois, parafraseado pelo repórter Bob Woodward, do
Washington Post, Powell enfatizou ao presidente a
praticabilidade de entrar em guerra com o Iraque: “Um
plano militar bem-sucedido necessitaria do acesso a
bases e recursos na região, além de permissão de vôo.
Eles precisariam de aliados”.
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No início de setembro, 4 semanas depois de Powell se
pronunciar a Bush, o Wall Street Journal observou que
“o acesso à base aérea al Udeid, do Qatar, seria essencial
para uma invasão ao Iraque”. Longe dos holofotes da
publicidade, importantes acordos estavam sendo feitos.
“Oficiais do Qatar disseram a oficiais estadunidenses que
eles queriam uma garantia de que a presença militar dos
EUA no Qatar fosse permanente”, relatou o jornal. “Além
disso, querem que os Estados Unidos assumam grande
parte do custo de 400 milhões de dólares para modernizar a base aérea al Udeid para a Força Aérea dos EUA.”
Para os renitentes membros do Conselho de Segurança
da ONU, enormes problemas despontavam no horizonte.
Nas palavras do Wall Street Journal, “espera-se que
Moscou entre em acordo com os EUA quanto a uma maior
autonomia para conter a rebelião na Tchetchênia e quanto
a contratos de reconstrução do Iraque do pós-guerra”.
Uma nova onda de atrocidades do Exército russo na
Tchetchênia estava por vir.
Em assuntos diplomáticos, Fareed Zakaria, ex-editor chefe da revista Foreign Affairs, compartilhava com
Powell a ânsia em fazer retornar ao Iraque os inspetores de armas da ONU, uma questão importante nas relações públicas dos embates que antecedem a guerra.
“Mesmo que as inspeções não provoquem uma crise”,
Zakaria escreveu na coluna de 2 de setembro do
Newsweek, “Washington ainda estará em vantagem pela
tentativa, o que seria visto como um grande esforço para
evitar a guerra”. Com pensamento similar, a CNN relatou que Powell estava “se esforçando em convencer o
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presidente da necessidade de se formar uma coalizão
forte, similar à formada em 1991, durante a Guerra do
Golfo, e assim conseguir o apoio do Conselho de Segurança da ONU através de uma nova resolução”.
Há falcões assassinos de diversos estilos; alguns têm
garras afiadas.
Armar o palco para a guerra contra o Iraque exigiu
a elaboração de palavras refinadas, da mesma maneira
que, por mais de 10 anos, o termo “sanções” foi usado
para mascarar enorme sofrimento e grande número de
mortos no Iraque. Exceto por algumas poucas notícias,
a grande mídia nos EUA ignorou as sanções ou sarcasticamente atribuiu seus terríveis impactos à perfídia de
Saddam Hussein. Outra passagem jornalística marcante
foi um artigo de Bagdá, publicado pelo New York Times em 18 de novembro de 2002, no qual o jornal precipitadamente se referiu ao “empobrecimento de muitos
dos 22 milhões de iraquianos como punição pela resistência a se submeter às inspeções irrestritas de armas”.
Talvez uma investigação a fundo da situação do Iraque
sob sanções fosse extremamente problemática para os
EUA.
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SANÇÕES
Resse Erlich
Basra teve, no passado, reputação duvidável. Xeiques
do mundo árabe iam ao Basra Sheraton para desfrutar
do álcool, das mulheres e de outros prazeres formalmente
proibidos em seus países de origem. Hoje em dia, estrangeiros podem se hospedar no melhor quarto desse mesmo hotel por 40 dólares a diária. Para os iraquianos, o
preço é de 10 dólares.
Ao final de 2002, andando pelas ruas de Basra tinhase a sensação de que a Guerra do Golfo havia acabado
de terminar. A Basra com medo de bombas e cheia de
estilhaços estava em estado de choque após 2 guerras.
Entre 1980 e 1988, Irã e Iraque lutaram intensamente.
A região sofreu novamente graves danos com os ataques dos EUA durante a Guerra do Golfo em 1991. A
famosa “estrada da morte”, que se estendia por 60 milhas, de Mutlaa, no Kuwait, até os subúrbios de Basra,
foi incansavelmente bombardeada por aviões estaduni-
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denses quando as tropas iraquianas se retiraram do
Kuwait no último dia da Guerra do Golfo.
Durante a Guerra do Golfo, o presidente George W.
Bush inflamou os iraquianos a se levantarem contra
Saddam Hussein. As Shias muçulmanas em Basra cometeram o erro de dar crédito às palavras de Bush. Ao
final da guerra, as Shias – que eram a maioria no Iraque
– se rebelaram contra o exército iraquiano.
Um soldado iraquiano entrevistado, veterano tanto
da Guerra Irã/Iraque quanto da Guerra do Golfo, havia
sido transferido para o Kuwait e deixou o país quando
os EUA atacaram. Em Basra, ele foi subitamente
surpreendido pela milícia Shia, que o ameaçava de morte
caso ele não baixasse sua AK-47.
“Eu lutei em 2 guerras”, disse o veterano, “e nunca
senti tanto medo. Aquelas pessoas iam me matar”. Ele
deu-lhes a arma, arrancou seu uniforme e foi para casa,
no Iraque Central. O veterano faz parte da Sunni, minoria muçulmana no Iraque. Ele estava certo de que o
levante não seria apenas contra Saddam Hussein, mas
sim o início do conflito Shia/Sunni.
Por trás desse relato está uma questão crucial com a
qual os Estados Unidos agora se deparam. Ao final da
Guerra do Golfo, os EUA poderiam ter deposto Saddam
Hussein do poder, porém temeram que sua queda pudesse dividir o país. Iranianos pró-Shia muçulmana tomariam
o sul do Iraque. Os curdos tomariam o poder no Norte,
levantando possivelmente uma revolta curda na Turquia.
Corre-se os mesmos riscos ainda hoje. Em 1991,
Muhammad Bakr al Hakin, religioso fundamentalista do
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Shia, levou milhares de homens de sua milícia do seu
santuário no Irã até o Sul do Iraque. A brigada de Bakr
lutou contra tropas de Saddam Hussein e fundou uma
república islâmica em Basra. Os EUA voltaram mais uma
vez a dialogar com Bakr, que aparentemente contava
com significativo apoio no Sul do Iraque.
No entanto, em 1991 a administração Bush decidiu
deixar Saddam no poder, enfraquecer seu regime com
sanções econômicas, e então derrubá-lo dentro de algum tempo. Como sabemos, as coisas não funcionaram
dessa maneira. Saddam Hussein permaneceu no poder
apelando ao patriotismo iraquiano e a uma forte repressão. As pessoas próximas a ele lucraram muito com o
contrabando de produtos do embargo. Mercedes e BMWs
desfilavam pelas ruas e mansões milionárias eram
construídas nas margens do rio Tigre.
As sanções impostas pelos EUA foram extremamente eficientes em atingir civis iraquianos. Por 5
anos, a economia doméstica esteve próxima ao colapso. O sistema de saúde estava arruinado pela falta de
equipamentos e remédios. Os sistemas públicos de
água e de esgotos foram se deteriorando a ponto de
crianças sofrerem regularmente de doenças gastrointestinais. A subnutrição se tornou um sério problema nacional.
Em 1990, o Iraque ficou em 50o lugar – entre 130
países – pelo Índice de Desenvolvimento Humano da
ONU, que examina o desenvolvimento geral das nações.
Em 2000, o Iraque havia caído para o 126o lugar – entre
174 países. Estimativas do UNICEF (Fundo das Nações
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Unidas para a Infância) dizem que 500 mil crianças morreram de causas diretamente relacionadas às sanções.
Como resultado de programas de agências internacionais e do governo iraquiano, a taxa de subnutrição
infantil diminuiu. Em 1996, 11% das crianças estavam
subnutridas. Em 2002, a taxa era de 4%. Mas um milhão de crianças – um quarto das crianças com menos
de 5 anos – ainda estavam gravemente mal nutridas.
“Isso é inaceitável”, disse Carel de Rooy, representante
da UNICEF no Iraque. “Muito mais deve ser feito para
acabar com o sofrimento de uma geração de crianças.”
Ainda que os EUA enfatizem constantemente que as
sanções eram ordem das Nações Unidas, na realidade as
sanções teriam sido suspensas há bastante tempo se não
fosse pela pressão britânica e estadunidense em mantêlas. As sanções foram promovidas com a mesma intensidade nas administrações republicanas e democráticas,
as quais culpavam Saddam Hussein pelo sofrimento do
povo iraquiano.
Após 1996, o programa Petróleo por Comida melhorou até certo ponto a economia. Ele permitiu ao Iraque
vender petróleo e utilizar 59% da renda na compra de
produtos para ajuda humanitária às áreas do país controladas por Saddam. Os 41% restantes iam para a reparação de danos da Guerra do Golfo, para programas
apoiados pela ONU na zona curda autônoma do Norte e
para o pagamento pela administração dos assuntos
iraquianos, incluindo a inspeção de armas, feita pela ONU.
O programa Petróleo por Comida permitiu a importação de alimentos, remédios e outros artigos vitais,
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porém os EUA ainda se esforçaram em desmantelar a
vida de civis, na esperança de que isso gerasse raiva
contra Saddam.
Hospital Infantil, Basra
A Maternidade e Hospital Infantil de Basra é um prédio térreo com alas distribuídas pelos corredores que se
cruzam. Foi, um dia, uma estrutura moderna e higiênica.
No final de 2002, algumas áreas do hospital estavam
desmoronando por falta de manutenção. As paredes necessitavam de pintura e às vezes não havia desinfetante
para que os funcionários pudessem limpar o chão.
O Dr. Asad Eesa, chefe residente do hospital, explicou que a ala do câncer estava vazia porque o hospital
não tinha remédios de quimioterapia suficientes. Os
pacientes vêm, são diagnosticados e mandados de volta
para casa até que haja remédio.
Eman Shater não conseguiu medicamentos para sua
filha Khanasa, de 8 anos, que sofria de um tumor abdominal. Khanasa sentou-se apática no chão do hospital.
Ela estava prestes a receber uma transfusão de sangue
que aliviaria seu sofrimento, mas o que realmente precisava era quimioterapia.
O Dr. Eesa reclamou que, sob sanções, o hospital
recebia alguns remédios de quimioterapia em um mês e
remédios diferentes no mês seguinte. O tratamento é
interrompido tantas vezes que não são raras as recaídas. Uma vez interrompido um tratamento com um remédio, mesmo que ele seja usado novamente mais tarde,
não há muitos resultados. Dessa maneira, Khanasa tem
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um “prognóstico ruim”, segundo o Dr. Eesa, que acredita serem as sanções diretamente responsáveis pela
morte certa dessa criança.
A realidade é bem diferente nos escritórios do edifício da ONU em Nova York. Lá foi montada uma complexa burocracia para administrar a ajuda humanitária
e as sanções ao Iraque. Um porta-voz da ONU no Iraque,
o departamento que inspecionou a compra de mercadorias sob o programa Petróleo por Comida, admitiu
que o suprimento de remédios vitais era irregular, mas
a assessora de imprensa Hasmik Egian culpou o governo de Saddam Hussein. Ela disse que a burocracia e o
histórico de pobreza são as raízes do problema.
“O governo do Iraque é inteiramente responsável pela
compra de suprimentos de forma adequada e sem atrasos”, ela disse. “O governo vem inspecionando o setor
de saúde de modo vergonhoso.”
Barbara Lubin, diretora da Aliança das Crianças do
Oriente Médio, sediada em Berkeley, disse que em sua
opinião a burocracia iraquiana pode estar indo longe
demais em sua obstinação. Ela sabe. Ela visitou o Iraque
inúmeras vezes desde 1990. Lubin diz que, antes da
imposição das sanções, o governo de Saddam conseguia
arranjar remédios prontamente e disponibilizava um dos
melhores sistemas públicos de saúde do Oriente Médio.
Ela diz não ter dúvidas de que as sanções apoiadas pelos EUA foram responsáveis pelos problemas nos hospitais iraquianos e, portanto, pelas tantas crianças
iraquianas mortas por negligência.
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O estranho caso dos biscoitos vitaminados
A UNICEF se orgulha de seu programa de combate à
subnutrição no Iraque. A instituição aprendeu a combater a subnutrição através da experiência com outros
países em condições bem piores, e, assim, desenvolveu
um leite terapêutico e biscoitos vitaminados que contribuem na alimentação infantil. A UNICEF produz o leite
e os biscoitos e planeja uma distribuição eqüitativa. É
simples – exceto no Iraque.
Nos subúrbios de Saddam City, a miserável favela que
abriga aproximadamente 3 milhões de iraquianos, os
planos eram de que o jardim de infância Al Borouj fosse exemplo do sucesso da UNICEF na guerra contra a
fome.
Na escola, uma parceria entre a UNICEF e o Ministério da Saúde iraquiano viabilizou um programa de combate à subnutrição infantil. A voluntária na área de saúde
Sameera Al Orfali se utiliza de uma escala para determinar a gravidade de cada caso, de acordo com o peso
da criança. Orfali mantém detalhados registros de cada
uma delas. Os casos mais graves são encaminhados ao
hospital. Os outros são colocados em uma lista de espera por leite terapêutico e biscoitos vitaminados que
nunca chegarão.
Os biscoitos desapareceram em 2000, segundo Orfali,
e o leite parou de chegar em 2001. A UNICEF instituiu
2.800 centros de proteção em escolas e creches por todo
o Iraque, e sabe exatamente quantas crianças subnutridas são examinadas. Mas não consegue fornecer os
suprimentos necessários.
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Alguns voluntários internacionais ofereceram uma
explicação, caso fossem mantidos no anonimato. Não é
a ONU que produz, na prática, os suplementos alimentares. Eles são produzidos por companhias alimentícias
fora do Iraque. A ONU desenvolve especificações rígidas para assegurar que os suplementos contenham todos os ingredientes essenciais. O governo iraquiano
compra do fabricante e gerencia a distribuição.
Sob as práticas usuais de comércio internacional, o
comprador e o produtor assinam um contrato. O comprador paga uma parcela, leva uma amostragem do produto, se certifica de que as especificações foram
respeitadas, e então paga mais uma parcela, e assim por
diante, até que o contrato seja cumprido. Porém, no
programa Petróleo por Comida, o Iraque paga todo o
montante de uma só vez.
De acordo com um voluntário internacional, os biscoitos vitaminados que o Iraque recebeu não seguiam
as especificações da ONU. A companhia soube do problema, segundo o voluntário, mas protestou afirmando
que os biscoitos seguiam as exigências nutricionais. O
Iraque insistiu em se ater às especificações da ONU.
“O programa Petróleo por Comida permite aos fornecedores tirarem vantagem do Iraque oferecendo mercadorias de baixa qualidade”, disse o voluntário. “Se
todo o dinheiro já foi pago pelo produto, que garantia
o governo tem?”
Um ano depois, o fornecedor em questão cancelou o
contrato. O governo iraquiano assinou contrato com
outro fornecedor, mas este também foi cancelado após
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um ano. Do mesmo modo, os iraquianos afirmaram que
o leite terapêutico fornecido por outra companhia estava contaminado. A companhia quis fazer seus próprios
testes e a disputa não foi resolvida. E, nesse meio tempo, nada de leite, nada de biscoitos.
Os voluntários não absolvem o governo iraquiano de
toda culpa nessas disputas.
“Mas as sanções tornaram tudo ainda pior”, disse um
deles.
Como água potável se tornou um instrumento de guerra
Durante as décadas de 1970 e 1980 o Iraque assinou
contratos com companhias européias para construir sofisticados sistemas de abastecimento de água em áreas
urbanas, porém as centrais de tratamento dependiam de
resíduos e produtos químicos estrangeiros. Novamente,
as sanções tornaram a manutenção impossível.
Já em 1991, o governo dos EUA tinha consciência
da vulnerabilidade do sistema de irrigação do Iraque e
bem como do impacto que as sanções causariam nele.
Thomas J. Nagy, professor da Universidade George
Washington, colaborador da revista The Progressive,
descobriu documentos reveladores na página da Internet
da Defense Intelligence Agency (DIA).
Um documento da DIA datado de 22 de janeiro de
1991 dizia que as centrais de tratamento de água no
Iraque dependiam da “importação de equipamentos
especializados ... para purificar a água que forneciam”.
Sem os equipamentos e certos produtos, “aumenta a probabilidade de doenças, incluindo possíveis epidemias, a
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menos que a população seja cautelosa o suficiente para
ferver a água”.
O porta-voz para assuntos públicos Jim Brooks,
contactado no escritório da DIA em Virgínia, disse que
os documentos são descritivos, e não são partidários de
nenhuma política em particular. “A acusação é de que
queríamos que as sanções fossem prejudiciais.” Brooks
disse que a DIA havia sido questionada quanto aos resultados, e essa era a resposta. Ele disse: “Foi uma declaração inteligente”.
“Quando se entra em guerra, há a preocupação com
uma crise humanitária”, disse Brooks. Ele esclareceu que
um bom serviço de inteligência alerta os planejadores
quanto a possíveis problemas.
Durante 12 anos, principalmente por insistência dos
EUA, não foi permitido ao Iraque importar peças para
reposição e químicos fundamentais no tratamento de
água e esgotos. Um documento confidencial do Grupo
de Desenvolvimento das Nações Unidas, de 7 de setembro de 2002, apontou que, entre 1990 e 2000, a distribuição diária per capita de água potável no Iraque caiu
em 60% nas cidades e em 63% nas áreas rurais. Um
quinto da população do Iraque corre o “risco de não ter
acesso a água pura e ao saneamento básico”, de acordo
com o relatório.
Assumindo que os oficiais leram seus próprios relatórios da DIA, as administrações Bush e Clinton estavam cientes do impacto que as sanções teriam no
fornecimento de água no Iraque.
De 1991 a 1999, a central de tratamento de água
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Shatt Al Arab operou com 20% de sua capacidade,
segundo o engenheiro Mehmood Wahad. Os EUA vetaram a importação de produtos químicos e peças para
reposição, alegando que elas poderiam ser usadas também para fins militares. O cloro, vital para a purificação da água, pode também ser usado na fabricação de
gás cloro, por exemplo. Críticos afirmam que os EUA
bloquearam ou atrasaram intencionalmente até mesmo a importação de peças vitais para reposições que
não tinham uso militar.
“É uma maneira sádica de inflamar o povo iraquiano”, disse Fábio Alberti, presidente da Pontes para Bagdá, uma organização não governamental italiana que
atua na renovação das centrais iraquianas de tratamento
de água. “Eu realmente não entendo que tipo de uso
militar podem ter clorinadores e bombas de água.”
O Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PDNU) confirma os longos atrasos na aquisição
desse material. O programa reequipou várias centrais
de tratamento de água e esgotos em Bagdá. Mas o comitê de sanções da ONU atrasou de 6 meses a um ano
a entrega de equipamentos, de acordo com Ruth Arias,
representante residente do PDNU. Em conseqüência disso, ela falou em uma entrevista, os iraquianos estão impossibilitados de restaurar suas instalações de
tratamento de água. A falta de peças para reposição significa também que o esgoto não tratado é despejado
nos rios contra a corrente das centrais de tratamento
de água – tornando ainda mais difícil a purificação da
água.
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Com a ajuda do Pontes para Bagdá, engenheiros da
Central de Tratamento de Água Shatt Al Arab encontraram peças para reposição no Iraque, conseguindo
restabelecer a central em 1999. Ao final de 2002, essa
instalação trabalhava com 70% de sua capacidade, segundo o engenheiro Wahad. Ele diz que, tecnicamente,
a água pode ser bebida seguramente, mas os moradores
de Basra não gostam de seu sabor salgado, além de continuarem contraindo doenças.
Questionado se ele toma seu próprio produto, responde acanhadamente: “Não. Eu bebo água de fornecedores de água privados”.
120
A CAMINHO DA GUERRA
Norman Solomon
Em 14 de novembro de 2002, poucos dias antes dos
primeiros membros da nova equipe de inspeção da ONU
chegarem a Bagdá, o Secretário de Defesa dos EUA concedeu uma entrevista ao vivo na Rede Infinity
Broadcasting. Um dos presentes perguntou o que aconteceria caso os inspetores da ONU não encontrassem
armas de destruição em massa no Iraque. “Isso provaria
que o processo de inspeção foi vencido pelos iraquianos”,
respondeu Donald Rumsfeld. Na realidade, ele estava
dizendo que a ausência de evidências incriminadoras
seria por si só incriminadora. “Não há como negar que
o regime iraquiano é esperto”, adicionou Rumsfeld, “por
muito tempo eles vêm escondendo e maquiando coisas.”
Poucos dias depois, é lançada resolução da ONU que
estabelecia 8 de dezembro como prazo para que Bagdá
entregasse, em um detalhado inventário, uma declaração
completa de seu programa de armas. Alegando “pressão
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sobre o Iraque para se obter um relatório honesto”, o New
York Times noticiou em 16 de novembro: “Os EUA anunciam que provas de que o Iraque mentiu serão consideradas razão suficiente para ir à guerra e depor o governo”.
Da mesma maneira, se o Iraque admitisse possuir qualquer arma de destruição em massa, essa confissão poderia ser considerada suficiente para justificar a guerra ao
Iraque. Para evitar a guerra, o governo iraquiano teria de
provar o oposto. O presidente Bush seria o juiz.
Depois de um intervalo de 4 anos, as inspeções no
Iraque foram realizadas em 5 semanas, antes do final
de 2002. Vistas pela luz da esperança de eliminar armas de destruição em massa do arsenal iraquiano, as
novas inspeções – com tecnologia extremamente sofisticada, e impertinentes como nunca – foram favoráveis.
Para aqueles em Washington que esperavam abrir caminho para uma guerra no Iraque, o novo regime de inspeções era um obstáculo que devia ser vencido.
“Tentativas de dar início às inspeções permaneceram
intrincadas ontem pelo que os iraquianos, publicamente, e os oficiais da ONU, às escondidas, dizem ser uma
tentativa da administração Bush de solapar a missão logo
de início”, declarou o Independent londrino em 20 de
novembro. Constantes críticas ao inspetor Hans Blix
levou Mark Gwozdecky, porta-voz da equipe da ONU no
Iraque, a declarar: “Os responsáveis por essas críticas
parecem não entender o mal que estão fazendo às tentativas internacionais de conter a proliferação de armas
de destruição em massa, não apenas no Iraque, mas em
qualquer outro lugar”.
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Porém, aguardar a inspeção de Blix transformou-se
prioridade para os entusiastas de guerra da equipe de
Bush. Eles planejavam pressionar Blix a se confrontar
mais intensamente com o governo iraquiano e a buscar
alicerces que justificassem seus futuros relatórios ao
Conselho de Segurança. A imprensa direitista seguia o
mesmo compasso. “Esperamos que, com o passar dos
dias, o Sr. Blix entenda que sua própria credibilidade está
em jogo, tal qual a de Saddam Hussein”, publicou o Wall
Street Journal em 22 de novembro, acrescentando que
“o Sr. Blix caminha com seus próprios pés no Iraque, e
nada indica que ele lutará para desarmar o ditador. A
dúvida agora é se o diplomata sueco deixará que Saddam
o faça de bobo, a ele e à ONU, novamente”. Esse era o
início de uma campanha nas páginas do editorial do
Journal, freqüentemente fonte de declarações que rapidamente ecoam pela mídia nacional. Duas edições mais
tarde, a agressão aparecia sob a manchete “Hans, o
Acanhado”. Para explicitar graficamente o caráter dúbio de Blix, o desenho que acompanhava um artigo de
primeira página mostrava-o usando uma gravata com
o símbolo da paz.
Tanto o editorial quanto o artigo traziam à tona os
méritos de outro inspetor de armas, Rolf Ekeus, e discordavam do fato de não ter sido ele o escolhido para o posto
no lugar de Blix. O editorial dizia que Ekeus era “muito
mais obstinado” e o artigo o descrevia como “o líder altamente competente da comissão especial da ONU que
inspecionou o Iraque nos anos de 1990”, porém nenhum
dos dois textos mencionava que Ekeus estava denun123
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ciando na Justiça o papel do governo estadunidense nas
inspeções da ONU no Iraque. Quatro meses antes, em 30
de julho, o Financial Times havia publicado uma matéria que não interessou à mídia estadunidense: “Rolf Ekeus,
chefe das inspeções de armas da ONU no Iraque de 1991
a 1997, acusou os EUA e outros membros do Conselho
de Segurança de manipularem as equipes de inspeção da
ONU para seus próprios propósitos políticos”.
Essa manipulação sempre fez parte da relação de
Washington com as inspeções da ONU no Iraque. Agora,
com o Pentágono se mobilizando a todo vapor para um
ataque, os políticos estadunidenses estavam ansiosos por
denegrir o novo processo de inspeção tocando nos pontos nos quais eles não têm controle. A imprensa algumas
vezes era prestativa. No Dia de Ação de Graças em 2002,
a Casa Branca deve ter ficado muito satisfeita em ver a
matéria de capa do Washington Post, iniciada com a frase: “As Nações Unidas iniciaram ontem a inspeção de
armas, possivelmente a mais importante de todos os tempos, com uma equipe que inclui um homem de 53 anos,
de Virgínia, sem nenhuma especialização científica, e
outro com experiência em casas de sexo sadomasoquista”.
Entre os cem especialistas em armas escolhidos para integrar a equipe de inspeção da ONU no Iraque, o Washington Post encontrou um (“em Nova York, esperando para
ser enviado ao Iraque”) com experiência sadomasoquista.
A história ganhou grande destaque na mídia estadunidense, danificando a imagem pública do trabalho de
inspeção da ONU, ainda que o adepto a práticas
sadomasoquistas em questão, um ex-integrante da Ma124
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rinha dos EUA e ex-membro do Serviço Secreto, tenha
sido integrado à equipe de inspeção da ONU por sugestão do Departamento de Estado dos EUA.
A deturpação envolvendo o sadomasoquismo
proporcionou uma brecha conveniente para as críticas ao
novo projeto de inspeção. Conforme um subseqüente
artigo do Post, que levava à frente a paranóia sadomasoquista do jornal de 2 dias antes, especialistas em
armamentos com qualificações melhores e experiência no
Iraque durante os anos de 1990 foram “considerados
agressivos demais em suas buscas desarmamentistas” e
foram deixados de fora da atual equipe de inspeção da
ONU. Entre as objeções dos “antigos inspetores” estava a
de que “a nova política da ONU de não compartilhar as
informações com os serviços de inteligência poderia
dificultar ainda mais a capacidade da equipe de
encontrar armamentos”. Como a transferência de
informações da equipe de inspeção da ONU para a CIA
poderia auxiliar a equipe da ONU foi algo deixado sem
explicação, ainda que não haja dúvidas de que isso
ajudaria o governo dos EUA a selecionar com mais
precisão os alvos no Iraque.
Durante os primeiros meses de 2002, com as tropas
estadunidenses se dirigindo para a região do Golfo
Pérsico, acirravam-se os ataques aéreos no Norte e no Sul
do Iraque. Um noticiário tipicamente estadunidense sobre os ataques cruzados foi o de 15 de novembro, quando a Headline News da CNN citou o “mandato da ONU
de zonas de vôo proibido”. O problema aqui era de que
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as Nações Unidas nunca emitiram nenhum “mandato” em
tais áreas. Mas isso parece não ter importância no “império da mídia”. “Aviões de guerra estadunidenses e britânicos já começaram a adotar uma postura mais
agressiva para reforçar a proibição de vôo em certas áreas
do Iraque, as regiões Norte e Sul, das quais os aviões
iraquianos foram banidos”, noticiou a revista Time em
sua edição de 2 de dezembro. O uso que a revista fez da
voz passiva (“foram banidos”) facilitou a omissão do fato
de os bombardeios estadunidenses e britânicos terem sido
autorizados somente por suas próprias autoridades.
Os ataques aéreos eram, claramente, parte de uma
preparação para a guerra, e a brigada iraquiana
antibombardeio aéreo permitiu ao Pentágono acesso a
informações úteis de combate, bem como a questões de
propaganda doméstica. Havia ainda a possibilidade da
derrubada de um avião servir de evento, como aconteceu no Golfo de Tonkin. “É sempre um grave incidente
quando alguém ataca um avião estadunidense”, disse o
porta-voz da Casa Branca, Ari Fleischer, em 19 de novembro, classificando o ocorrido como uma “substancial violação às resoluções das Nações Unidas”, embora
oficiais estadunidenses tenham voltado atrás nessa declaração após uma pronta resistência do secretário-geral da ONU, Kofi Annan. Ainda assim, jogar bombas no
Norte e no Sul do Iraque certamente iria ajudar os planos de guerra de Washington. “Ataques aéreos
estadunidenses e britânicos aos alvos de defesa aérea
iraquianos estão começando a exibir um padrão que se
encaixa primorosamente no plano de guerra projetado
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pelos EUA para derrubar o presidente Saddam Hussein”,
relatou o Times londrino em meados de novembro. Na
mesma época, um expediente da Reuters no U. S. S.
Abraham Lincoln explicou que os vôos agressivos “se
tornaram um ensaio para a guerra e uma chance de
enfraquecer a força militar de Bagdá a caminho da batalha”.
Enquanto o Pentágono preparava um ataque monstro ao Iraque, muitos noticiários estadunidenses pintavam como benéfico o que estava por vir. Ao final de
novembro, uma cobertura das inspeções feita ao longo
de 4 páginas da Time terminava com uma consideração
quanto a antigos problemas feita pelo porta-voz de uma
agência de energia atômica: “Algumas vezes chegamos
a um edifício e os iraquianos estavam escapando pelas
portas dos fundos. Não queremos que isso aconteça desta
vez”. À qual a revista acrescentou: “A melhor notícia para
os inspetores pode ser a de que, desta vez, os EUA estão
preparados para punir Saddam Hussein caso isso ocorra”. Geralmente, esse resumo da guerra que estava por
vir – uma maneira de “punir Saddam” – despreza as
pessoas na linha de fogo e as torna invisíveis.
Ostentando o poder bélico do “Tio Sam”, uma reportagem do USA Today aderiu à desculpa da grande mídia
de que um homem seria o alvo de todo esse ofuscante
poder: “Em Whiteman [base da Força Aérea], o Pentágono
se esforça para advertir, mencionando seu B-2, o mortal
poder de fogo que usará contra Saddam em caso de guerra”. A linguagem do jornal era fluente e de exaltação:
“Visto de praticamente qualquer ângulo, o B-2 é uma
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maravilha tecnológica. Ele é capaz de lançar, em uma
única missão, dezesseis bombas de uma tonelada guiadas por satélite. Os aviões de bombardeio, que custam
1,5 bilhão de dólares cada um, são capazes de carregar
também oito bombas localizadoras de abrigos, pesando
2 toneladas, projetadas para penetrar em reforçados
abrigos subterrâneos”. O texto mencionava por alto que
o armamento de 2 toneladas era “conhecido na Força
Aérea como a diversão da multidão”. Grande quantidade de tinta, papel de imprensa e papel cuchê passaram
batidos pelo real poder de morte desse arsenal; bem
como muitas horas de transmissão nacional de televisão, já entregue ao jogo-de-guerra, com simulações
gráficas em cores e imagens majestosas de porta-aviões,
aviões a jato, aviões de bombardeio e mísseis. Tal cobertura antecipada, com sua implícita idolatria ao
armamento estadunidense, era uma prévia do que se
poderia esperar da maioria dos veículos de comunicação dos EUA após o início da conflagração.
Para tornar aceitável a próxima guerra, era necessário o usual disfarce da anterior. (Orwell: “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente
controla o passado”.) As diretrizes para compreender a
próxima guerra contra o Iraque têm suas bases nas
manobras bem-sucedidas durante a Guerra do Golfo. “O
incansável apetite das emissoras fez com que o
Pentágono controlasse uma questão simples”, relembra
Patrick J. Sloyan, dez anos após ter ganho o Prêmio
Pulitzer por sua cobertura da Guerra do Golfo como
correspondente do Newsday. “Todo sistema estaduni128
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dense de armas é monitorado por câmeras de televisão
na lateral dos aviões de guerra e dos helicópteros ou nas
mãos de soldados ou câmeras militares. Essas imagens
de ‘câmeras-arma’ podem ser liberadas ou retidas dependendo das decisões dos chefes políticos das forças
militares. Assim, quando a guerra aérea teve início, em
janeiro de 1991, a mídia foi alimentada com imagens
cuidadosamente selecionadas por Schwarzkopf na
Arábia Saudita e por Powell em Washington, D.C. A
maioria dessas imagens era completamente mal-intencionada.”
É simbólico que o homem que foi secretário da Defesa e presidente da Junta dos Chefes de Estado doze
anos antes seria também primordial para a nova guerra, agora como vice-presidente e secretário de Estado.
Em um ensaio escrito em 2002, quando Sloyan estava
na Fundação Alicia Patterson, a descrição que ele fez
das “limitações impostas sobre os repórteres no campo
de batalha”, em 1991, soava prenunciadora: “Sob regras
elaboradas por Cheney e Powell, os jornalistas não podiam dar um passo sem escolta militar. Todas as entrevistas tinham de ser monitoradas pelo relações-públicas
militar. Toda linha escrita, toda fotografia e toda tira de
filme tinha de ser aprovadas – censuradas – antes de
serem registradas. E essas regras eram reforçadas
impiedosamente. No início de dezembro de 2002, o crítico de imprensa do Los Angeles Times, David Shaw,
dividiu com os leitores sua previsão: “Baseado em desempenhos passados, tanto da atual administração Bush
quanto de seus imediatos predecessores republicanos, há
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todos os motivos para pensar que, se formos à guerra
com o Iraque, Washington exercerá mais controle sobre a imprensa do que nunca, usando todas as táticas,
da manipulação à fraude e à desinformação”.
As críticas retrospectivas de imprensa abordavam
o tema do desempenho técnico apoiadas em falsas alegações: Quantas “bombas inteligentes” havia de fato?
A maioria dos mísseis marítimos Tomahawk não foi extraviada? Na verdade, os EUA não falharam na destruição dos lançadores de mísseis iraquianos Scud? Porém,
a Casa Branca e o Pentágono já haviam respondido essas questões – as armas são melhores agora, e nós faremos um trabalho ainda melhor da próxima vez. “A
tecnologia tornou o militarismo ainda mais eficiente”,
vangloriou-se a edição de 2 de dezembro de 2002 da
Time. A maior decepção da Guerra do Golfo foi – e
presumivelmente a maior decepção da guerra contra o
Iraque em 2003 seria – psicológica e não técnica. Independentemente das tensões entre imprensa e Estado, a mídia estadunidense e oficiais de Washington
trabalhavam como co-produtores de ilusão. “Na manipulação da imprensa” escreveu Sloyan, “e, conseqüentemente, da opinião pública sobre a ‘Operação
Tempestade no Deserto’, “a administração Bush não
produziu uma única foto ou um único vídeo de alguém
sendo morto. Essa imagem higiênica e sem sangue feita
por militares fez com que o mundo presumisse que a
‘Operação Tempestade no Deserto’ fosse uma guerra
sem mortos.”
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Tal suposição certamente assustaria os parentes e
amigos dos estimados 100 mil iraquianos mortos na
“Operação Tempestade no Deserto”. (Reduzidos a números redondos, torna-se difícil a qualquer vítima de guerra
parecer um ser humano real. “A morte de um homem é
uma tragédia”, falou Stalin, em Potsdam, em 1945. “A
morte de milhões é uma estatística.”) Porém, uma pergunta fundamental é por que, com pesquisas indicando
apoio majoritário a uma guerra contra o Iraque, se considerou necessário proteger os partidários da guerra de
suas realidades mais básicas? Uma razão plausível é a
de que o apoio pudesse ruir com o peso da informação
real, especialmente se veiculada em termos intelectuais
e emocionais.
“A intenção manifesta dos EUA de mudar o regime
iraquiano indica que qualquer novo conflito será muito mais intenso e destrutivo que a Guerra do Golfo de
1991, e envolverá mais armas letais desenvolvidas nesse ínterim”, dizia um relato publicado em meados de
novembro de 2002 por profissionais da saúde ligados à
organização Medact e à International Physicians for the
Prevencion of Nuclear War. “Além do mais”, eles avisaram, “a saúde mental e física dos iraquianos em geral
está muito pior do que estava em 1991, o que os faz
muito mais vulneráveis desta vez.” O relato, examinando
“o impacto provável de uma nova guerra no Iraque pela
perspectiva da saúde pública”, descobriu que “estimativas confiáveis do total de mortes durante o conflito e
nos 3 meses subseqüentes variam de 48 mil a mais de
260 mil. A guerra civil no Iraque poderia adicionar
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outros 20 mil mortos. As mortes tardias causadas por
adversidades de saúde no pós-guerra poderiam atingir
200 mil. Caso armas nucleares fossem utilizadas, o número de mortes poderia atingir 3,9 milhões. Em todos
os casos, a maioria das ocorrências seria entre os civis.”
Mesmo quando baseadas nas melhores perícias médicas, tais estimativas não poderiam ser mais que suposições. A real dimensão do desastre humano pode se
revelar menor ou maior. Mas para milhões de pessoas,
os riscos eram enormes. Os responsáveis pelas decisões
em Washington estavam esperando ansiosamente para
jogar os dados.
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A QUESTÃO DO PETRÓLEO
Reese Erlich
Em grandes protestos contra a intervenção estadunidense no Iraque pode-se ver cartazes de “Não à guerra
por petróleo”. Muitas pessoas acreditam que o petróleo
teve e continua tendo um papel primordial nas decisões
militares estadunidenses quanto ao Iraque. Afinal de
contas, o Iraque provou ter reservas de 112 bilhões de
barris, a segunda maior reserva do mundo, perdendo
apenas para a Arábia Saudita. Se os EUA invadirem e
ocuparem o Iraque, como as companhias de petróleo
estadunidenses não iriam fazer negócio e tirar seu lucro? Um regime pró-EUA em Bagdá também daria às
companhias estadunidenses de petróleo controle muito
maior sobre o mercado de petróleo no mundo. Portanto, o interesse no petróleo é uma parte significante na
determinação da política estadunidense.
De fato, 22% dos estadunidenses acreditam ser o
petróleo a maior explicação do motivo de os EUA usa-
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rem de força militar contra o Iraque, segundo uma pesquisa de dezembro de 2002. (New York Times, 5/12/02)
Porém, esse ponto-de-vista está sujeito à gozação em
Washington e em grande parte da mídia estadunidense.
David Ignatius, editor da International Herald
Tribune, escreveu que “oficiais seniores da administração Bush estão tão ocupados se preocupando com armas de destruição em massa que quase não prestaram
atenção às políticas do petróleo no Iraque. Na realidade, diz-se que as companhias de petróleo estadunidenses
temem ser excluídas dos contratos pós-guerra”.
(Washington Post, 18/10/02)
Repórteres, especialistas no assunto e comentaristas
de Internet estadunidenses desdenham a idéia de que o
petróleo poderia influenciar planos políticos e militares
dos Estados Unidos. Porém, escondida nos cadernos de
economia de jornais dos EUA e da Europa, vem a público, ocasionalmente, uma visão divergente. Vamos dar
uma olhada nas principais hipóteses.
O petróleo tem um papel fundamental nas decisões
políticas e militares de outros países, mas não na dos EUA.
Conforme diversas pesquisas feitas pela grande imprensa nos EUA, o petróleo auxilia na determinação da
política de outros países com relação ao Iraque.
A companhia de petróleo francesa Total Fina Elf
negociou os direitos de trabalhar em campos iraquianos
com total estimado de reservas de mais de 10 bilhões de
barris. A França ostentou 1,5 bilhão de dólares em negócios com o Iraque durante 2001. Menciona-se cor134
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rentemente que esses fatores são a principal razão pela
qual a França quis tão veementemente modificar as resoluções do Conselho de Segurança, apoiadas pelos EUA,
quanto ao Iraque.
O Iraque deve à Rússia cerca de 8 bilhões de dólares
em dívida externa. A companhia russa Lukoil tinha acordos de 3,8 bilhões de dólares para reabilitar e desenvolver campos de petróleo iraquianos. Em 12 de dezembro
de 2002, o Iraque anunciou ter cancelado o contrato,
aparentemente por desgosto da cooperação russa com
os EUA.
É possível que oficiais estadunidenses tenham se
utilizado de promessas de futuros contratos de negociação de petróleo como uma barganha para que Putin visse
a invasão estadunidense com bons olhos. Com referência aos laços da Rússia com o Iraque quanto ao petróleo, o Presidente Bush falou à TV russa: “Sem dúvida
esses interesses serão levados em consideração”.
“Eram óbvios os interesses dos russos no Iraque”,
James Colin, ex-embaixador dos EUA em Moscou, falou ao Washington Post: “A questão, para nós, é de que
modo esses interesses serão reconhecidos e protegidos.
Caso se deseje que a Rússia se envolva [com a guerra
estadunidense no Iraque] ... é necessária uma fórmula
que proteja esses interesses”. (Washington Post, 13/10/
02)
Considerações quanto ao petróleo podem certamente
guiar decisões políticas de quaisquer outros governos, mas,
de acordo com a mídia internacional, os laços da administração Bush com a indústria do petróleo são irrelevantes.
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Isso é ainda mais curioso quando temos em mente que
George W. Bush administrou uma companhia de petróleo,
que o vice-presidente Dick Cheney foi o CEO da corporação
de equipamentos para exploração de petróleo Halliburton,
e que a conselheira de Segurança Nacional Condoleezza
Rice foi uma das diretoras da Chevron.
Se as companhias de petróleo estadunidenses quisessem o petróleo do Iraque, elas o comprariam simplesmente. Não há necessidade de se ir à guerra
Algumas pessoas que apóiam a administração Bush
argumentam que, se o petróleo fosse tão importante, por
que as corporações estadunidenses de petróleo não o comprariam do Iraque? Realmente, se as companhias de petróleo controlassem de fato a política dos EUA, elas
seguiriam as ordens de seus escritórios europeus e exigiriam o fim das sanções ao Iraque para facilitar o comércio.
Em resumo, é exatamente isso o que as companhias
estadunidenses fizeram até os anos 1980. Companhias
estadunidenses e européias se desapontaram quando o
Iraque nacionalizou holdings* estrangeiras de petróleo, em
1972, mas aprenderam a lidar com suas frustrações. Elas
compraram petróleo das petrolíferas nacionalizadas
iraquianas sem se preocuparem muito com a repressão de
Saddam Hussein sobre seu próprio povo ou com seu uso
militar de gás venenoso contra tropas iranianas e curdos
iraquianos. Negócio é negócio. Mas após 1991, como parte
*
Holdings - empresas que não produzam bens e serviços e se destinam apenas ao controle de outras empresas.
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dos esforços estadunidenses de fazer cair o governo de
Saddam Hussein por meio de sanções, as companhias de
petróleo dos EUA foram proibidas de investir ou comprar
petróleo iraquiano, exceto quando aprovado pelo programa das Nações Unidas Petróleo por Comida.
Isso provavelmente frustrou executivos do petróleo
nos EUA, que viam contratos lucrativos indo para companhias fixadas em países cujo governo não tinha conflitos políticos com o Iraque. Por exemplo, Dick Cheney,
como presidente da Halliburton, pediu o fim das sanções contra o Iraque antes de ingressar na corrida presidencial em 2000.
Com a guerra parecendo iminente, as companhias
estadunidenses de petróleo podem, sem dúvida, avistar
grandes possibilidades para além do lucro limitado que
conseguiam comprando petróleo de uma companhia
nacionalizada. Se um regime pró-EUA privatizasse o
petróleo iraquiano, as companhias estadunidenses, então, poderiam lucrar bilhões de dólares dividindo a indústria. Isso também daria a essas corporações controle
de parte substancial da produção de petróleo iraquiano,
estimada em 10 milhões de barris por dia, assim que o
país se reerguesse após a guerra.
Atualmente, a Arábia Saudita fornece apenas 17%
do petróleo estadunidense, porém representa um papel
fundamental no mercado mundial do petróleo. Pelo fato
de aproximadamente 25% das reservas mundiais de
petróleo se situarem na Arábia Saudita, a decisão desse
país de aumentar ou diminuir a produção afeta diretamente os lucros das companhias estadunidenses de
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petróleo. A Arábia Saudita tem sido um forte aliado dos
EUA, porém vem sofrendo muitas críticas após os ataques em Nova York e em Washington, D.C., em 11 de
setembro de 2001. Se os EUA instaurarem um regime
aliado em Bagdá, as petrolíferas estadunidenses terão,
potencialmente, muito mais influência nos preços mundiais. A OPEP – da qual a Arábia Saudita é membro líder
– terá muito menos.
“Caso se consiga uma mudança de regime e um governo mais amigável” no Iraque, disse ao New York
Times Philip J. Flynn, analista da questão do petróleo,
“as torneiras serão abertas e será muito mais difícil para
a OPEP controlar os preços” (New York Times, 24/11/
2002).
A maioria das companhias de petróleo não está interessada somente em um lucro justo; elas precisam
controlar o mercado mundial o máximo possível para
maximizar seus ganhos. Isso significa controlar o petróleo na fonte, na refinaria, nos pontos de distribuição
e na venda. Isso significa também esmagar a concorrência.
Mark Flannery, um analista do petróleo para o Credit
Suisse First Boston, falou à MSNBC de que maneira uma
ocupação do Iraque pelos EUA beneficiaria corporações
estadunidenses de petróleo.
“[Se] são os seus tanques que derrubam o regime e
você tem 50 mil tropas no país ... então você conseguirá o melhor negócio. É assim que funciona. Os franceses terão alguns homens e um tanque dos anos de 1950.
Isso não vai adiantar.” (MSNBC, 11/11/02)
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Mesmo que as companhias petrolíferas estadunidenses esperem lucrar com a invasão, não lhes foi prometido nenhum acordo especial
Um colunista do Washington Post cita os grupos
iraquianos de oposição dizendo que eles revisarão contratos de petróleo iraquiano já existentes depois da queda
de Saddam Hussein, mas que “eles tomarão o cuidado
para que não haja nenhum vestígio das companhias
estadunidenses”. “Estamos em 2002, não nos anos 1930
ou 1940”, disse Salah al-Shaikhly, um oficial senior do
Iraqi National Accord. “Nenhum governo iraquiano duraria 24 horas se eles permitissem algo assim.” (Washington Post, 18/10/02).
Aparentemente, esse não é o ponto-de-vista de
Ahmed Chalabi, líder do Congresso Nacional Iraquiano
– algumas pessoas no Ocidente querem fazê-lo novo
presidente do país: em outubro de 2002, ele se encontrou com executivos das 3 maiores companhias
estadunidenses de petróleo “para negociar a escavação
das imensas reservas de petróleo do Iraque pós-Saddam”,
segundo o londrino Observer (3/11/02).
O artigo observava que as companhias de petróleo
chinesas, russas e francesas temiam ser “excluídas da
indústria de petróleo do Iraque pós-Saddam ... Chalabi
deixou claro que iria recompensar os EUA, pela retirada de Saddam, por meio de lucrativos contratos de
petróleo”. O artigo do Observer divulgou as reuniões
por causa da preocupação da British Petroleum com
a sua também possível exclusão de contratos lucrativos.
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Chalabi disse ao Washington Post que “companhias
estadunidenses terão uma boa dose do petróleo
iraquiano.” (Washington Post, 15/9/02).
Independentemente de quem acabar possuindo os
poços de petróleo e as refinarias, companhias estadunidenses de equipamentos para exploração do petróleo se mostram prontas para se apropriar de contratos para
reconstruir a indústria do petróleo. As sanções e a guerra reduziram significativamente a produção de petróleo
do Iraque. As petrolíferas estadunidenses Schlumberger
e Halliburton estão engatilhadas para se apoderarem de
contratos de 1,5 bilhão de dólares para reconstruir a indústria do petróleo, segundo um relatório do Deutsche
Bank (New York Times, 26/10/02).
É tudo teoria da conspiração
O argumento “não à guerra por petróleo” é refutado às vezes como sendo simples teoria da conspiração.
Não afirmaríamos que executivos gananciosos de companhias petrolíferas telefonem à Casa Branca todos os
dias pedindo guerra. Não temos conhecimentos de encontros, se é que houve algum, entre executivos das
companhias de petróleo e a Casa Branca. Mas, se há
discussões, elas estão certamente sendo mantidas em
segredo. O vice-presidente Cheney não obedecerá a uma
intimação G.A.O. (sic) de listar os executivos das
companhias de energia com os quais ele discutiu a
política energética em 2001; logo, pode-se presumir que
o desfecho da presente situação será guardado com
muito cuidado.
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Não há necessidade de nenhuma trama secreta, entretanto. O governo dos EUA – sob administrações republicanas e democratas – promove claramente o controle
de fontes estrangeiras de petróleo como parte integral dos
“interesses nacionais” dos EUA. De alguma maneira, o
contínuo lucro das companhias estadunidenses de petróleo se tornou equivalente às necessidades do povo em
relação a energia e transporte.
Os estadunidenses não tiram proveito do controle
corporativo que os EUA fazem do mercado mundial de
petróleo. Poderíamos ter uma qualidade de vida melhor
se usássemos menos combustíveis fósseis. Poderíamos
facilmente reduzir o consumo de gasolina aumentando
a quilometragem por litro de combustível nos carros
novos e encorajando o uso do transporte público. Muitas fontes de energia não agressivas ao meio-ambiente
se tornaram economicamente viáveis (energia eólica,
projetos de pequenas hidrelétricas, sistemas geotérmicos).
Outras, como a energia solar e a biomassa, são caras ainda,
porém poderiam se desenvolver rapidamente com apoio
governamental. Os impostos subsidiaram companhias de
petróleo e de carvão durante anos. Parece no mínimo
plausível que o governo subsidie essas fontes alternativas até elas se tornarem economicamente mais competitivas em relação ao combustível fóssil.
Petróleo não é a única razão para a guerra
Como ficou demonstrado no capítulo anterior, o petróleo é um fator de forte motivação em políticas de
longo prazo em relação ao Iraque. Mas não é o único.
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Geopolítica: o presidente Bush anunciou a oposição
estadunidense a um “eixo do mal”, formado pelo Iraque,
Irã e Coréia do Norte. O resto do mundo – e muitos
estadunidenses – coçou a cabeça associando dois inimigos históricos (o secular Iraque e a República Islâmica
do Irã) e um Estado marxista-leninista linha-dura. Mas
agora a estratégia aparentemente volúvel de Bush está
ficando mais clara. Ainda que os 3 dificilmente se aliem,
a administração Bush seria claramente beneficiada se
conseguisse a destituição de seus líderes.
Se os EUA invadirem e ocuparem o Iraque, todos os
outros Estados da região estarão sob pressão. O Irã se
confrontará com dezenas de milhares de tropas hostis
em suas fronteiras e terá de se preocupar com uma possível invasão estadunidense. O Iraque é um grande aliado
da intifada palestina. Oficiais israelenses se fortalecerão e isso ainda criará o risco de futuros ataques a
palestinos que buscam autodeterminação.
Expansão militar: lembra-se da divisão de paz? Ao
fim da Guerra Fria, os estadunidenses se beneficiariam
com o fechamento de bases militares no exterior e em
seu próprio país. Se algum ataque tivesse sido evitado
por essa divisão de paz, a situação iria explodir. A cada
nova guerra, os EUA abrem novas bases militares “temporárias”, que se tornam permanentes bem rapidamente. Desde a guerra do Afeganistão, os EUA instalaram
bases militares ou direito de pouso em seis novos países da região. Enquanto os EUA planejavam entrar em
guerra com o Iraque, eles abriram ou planejaram abrir
novas instalações no Qatar, na Jordânia, Iêmen e
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Djibouti. Além disso, modernizaram instalações ou
aumentaram o número de tropas na Turquia, Arábia
Saudita, Kuwait, Oman e Bahrain.
Ainda que bases militares e enormes porta-aviões não
sejam particularmente apropriados para combater pequenos grupos terroristas, eles esboçam os planos políticos e econômicos estadunidenses em cada pedaço do
globo. Executivos das companhias estadunidenses de
petróleo não estariam conversando sobre a exploração
de petróleo nos campos iraquianos caso os militares
estadunidenses não estivessem com os aparatos de exploração nas mãos.
Camuflando a situação: muitas pessoas pensam que
a administração Bush propagou uma febre de guerra
para que as pessoas desviassem a atenção de seus problemas domésticos e para ajudar na eleição dos republicanos. Sem dúvida, a política doméstica tem o seu
papel na política estadunidense em relação ao Iraque. É
por isso que Karl Rove, antigo conselheiro político de
Bush, tem um papel importante nas discussões de política internacional. Manter linha dura contra Saddam
Hussein parecia ser bem visto nas pesquisas de novembro de 2002, em parte porque a maioria dos líderes democráticos se recusava a apresentar grandes objeções
aos planos de guerra. Já que o petróleo, questões
geopolíticas e de expansão militar ordenavam uma política agressiva em relação ao Iraque, então os privilégios da política doméstica seriam uma bela porção a ser
dividida.
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O que esperar do futuro
Enquanto este livro estava sendo escrito, os EUA
ainda não haviam invadido o Iraque. A administração
Bush e a parcela da mídia que o ovacionava ignoraram
ou subestimaram a questão do petróleo. Acontecerá o
mesmo, provavelmente, quando os EUA conseguirem a
“mudança de regime”. Atente para estas questões e considere responsáveis a mídia e os políticos.
1. Quais companhias internacionais assinam contratos para reconstruir a indústria iraquiana de petróleo?
Quantas são estadunidenses, britânicas e européias?
Quantas são de países que não apoiaram a invasão
estadunidense?
2. A indústria de petróleo iraquiana está privatizada?
Quem compra e qual é o preço? De que países são os
novos donos? Seus governos apoiaram a guerra liderada pelos EUA?
3. Se a indústria de petróleo não está privatizada,
quais companhias internacionais assinam contratos para
ajudar a produzir petróleo iraquiano? São contratos de
serviço, pelos quais se paga uma taxa à companhia,
porém os lucros são dos iraquianos? Ou são contratos
baseados na “divisão de produção”, nos quais as companhias internacionais repartem os lucros? (Dica: companhias de petróleo ganham menos com contratos de
serviço)
4. O que aconteceu aos contratos com as companhias
de petróleo russas, francesas e chinesas?
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