markos klemz

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markos klemz
A argumentação desenvolvida por Santo Anselmo no segundo e no terceiro capítulos de seu
Proslogion veio a ser conhecida como uma das mais famosas instâncias do tipo de prova da
existência de Deus denominada 'argumento ontológico'. Esse tipo de estratégia argumentativa, que
toma seu nome da classificação kantiana dos diferentes modos pelos quais se pode tentar provar a
existência de um ente perfeitíssimo e supremo, caracteriza-se por, partindo de premissas
incontroversas e não-empíricas acerca da ideia, definição ou significado do termo 'Deus',
estabelecer sua existência. Assim, provas ontológicas derivam sua notoriedade e o interesse que
despertaram em diferentes filósofos de variados períodos e correntes do fato de aparentemente
extraírem de premissas de natureza epistêmica ou semântica relativamente fracas uma consequência
ontológica fortíssima, a realidade efetiva do ente supremo, necessário e incondicionado. Tamanho
poderio argumentativo, naturalmente, desperta suspeitas acerca da validade do argumento e da
correção de suas premissas, ao mesmo tempo em que torna a prova ontológica da existência de
Deus um tema recorrente da história da filosofia. Assim, além da versão de Anselmo, variações do
argumento ontológico podem ser encontradas em Descartes, Leibniz e, mais recentemente, em
Godel, apenas para citar alguns exemplos. Do mesmo modo, firmes opositores da real eficiência
desse tipo de argumento podem ser encontrados na figura de filósofos do porte de Tomás de
Aquino, Kant e Frege. De uma forma geral, tal debate é uma arena privilegiada para o
esclarecimento de alguns pontos fundamentais do discurso metafísico e epistemológico, como as
noções de existência e a relação entre nossos atos de conhecimento e os objetos aos quais eles se
dirigem. Nosso objetivo, aqui, é reconstruir a mencionada argumentação de Anselmo tendo em vista
algumas das questões que podem ser levantadas em relação a cada um de seus passos, levando em
consideração especial algumas das objeções postas por Gaunilo, o primeiro opositor de Anselmo,
Tomás de Aquino e Gassendi, objetor do prova ontológica cartesiana. Não nos posicionaremos, ao
longo dessa reconstrução, em relação ao eventual sucesso da prova de Anselmo, mas nos
limitaremos a apontar seus pontos problemáticos.
Antes de proceder à análise da argumentação de Anselmo propriamente dita, cabe aludir a
um ponto preliminar, concernente à unidade de seu argumento. Em outras palavras, Anselmo está
oferecendo uma ou duas provas distintas da existência de Deus? Embora um exame detalhado desse
ponto só pudesse ser adequadamente realizado ao longo da reconstrução do argumento, deve-se
notar, inicialmente, que, se por um lado as evidências textuais apontam para que o capítulo 3 do
Proslogion seja apenas um desenvolvimento e especificação duma prova completada no capítulo 2,
há uma antiga e recorrente tradição de tomá-los como argumentos distintos e independentes, que
remonta pelo menos a Tomás de Aquino e encontra expressão, contemporaneamente, na
interpretação de Malcolm. Nossa diretriz interpretativa, nesse sentido, será também considerá-los
como argumentos diferentes, em virtude de duas razões. Em primeiro lugar, isso permitirá que as
críticas à argumentação desenvolvida em um dos capítulos não necessariamente se apliquem ao
outro, tornando o movimento argumentativo geral mais robusto, por assim dizer. Em segundo lugar,
isso permitirá que delimitemos de modo mais claro as diferentes objeções que são postas a cada
uma das etapas da argumentação de Anselmo, independentemente de tratarem-se de argumentos
separados ou complementares. Vejamos, assim, primeiramente, como Anselmo pretende ter
estabelecido a existência do ente supremo no capítulo 2 do Proslogion.
Anselmo parte do pressuposto de que se associa ao nome 'Deus' a noção ou definição do 'ser
do qual não se pode pensar nada maior', ou seja, provar a existência de Deus é provar que há, de
fato, na realidade, algo acerca do qual não se pode pensar nada de maior. Essa noção é pressuposta
como se referindo a algo cuja compreensão é ao menos possível, independentemente da eventual
existência ou possibilidade daquilo de que é noção. Anselmo, assim, não está, nesse ponto,
pressupondo nada acerca da efetiva realidade de algo que encontre-se fora da intelecção, mas
apenas que aquela noção seja o significado do nome 'Deus' e que o significado desse nome possa ser
compreendido. De fato, concedida a validade dessa definição, a própria negação da existência de
Deus depende de sua compreensão. Por outro lado, embora a validade irrestrita dessa definição não
seja pacífica, sendo questionada, por exemplo, por Tomás, que observa que nem todos associam
esse significado ao nome 'Deus', a supremacia e ilimitação que subjazem ao menos à noção cristão
de um Deus todo poderoso parecem tornar plausível a associação daquele significado a este nome.
De fato, o próprio Anselmo, em sua resposta a Gaunilo, destaca estar lidando com a noção cristã,
fornecida pela fé, de Deus. De todo modo, esse pressuposto acerca da significação do nome 'Deus'
pode ser concedido, e costuma sê-lo, tendo em vista ao menos o prosseguimento do argumento.
Tendo em vista a conceptibilidade e efetiva compreensão da noção de 'algo acerca do qual
nada maior pode ser pensado'(doravante 'D'), Anselmo deduz que D é real ou existe ao menos no
pensamento. Tal inferência, evidentemente, depende de uma certa compreensão da atividade
intelectiva como envolvendo uma equivalência entre a concepção de algo e a existência mental ou
intelectiva desse algo. É à validade irrestrita dessa equivalência, ou melhor, ao sentido em que ela
deve ser interpretada, que se dirigem as principais críticas de Gaunilo e Tomás, que veremos ao fim
de nossa reconstrução.
Munido da noção de D e da existência que D tem no pensamento, Anselmo pode agora
realizar o último passo da argumentação do capítulo 2. Se D existisse apenas no pensamento,
obviamente não existiria na realidade extra-mental. Mas, é maior existir tanto no intelecto quanto na
realidade do que existir apenas no primeiro, ou seja, a existência extra-mental acrescenta algo ao ser
daquilo que assim existe. Assim, se D, por absurdo, existisse somente no intelecto, D poderia ser
maior, de tal modo que D poderia ser pensado como maior. Nesse caso, expandindo 'D', teríamos
que aquilo de que nada maior pode ser pensado pode ser pensado como maior – uma manifesta
contradição. Como consequência, é preciso negar uma das premissas, a saber, aquela segundo a
qual D existe somente no pensamento, negação a qual acarreta trivialmente a afirmação de que D
existe fora do pensamento, isto é, dado que a noção de D é por hipótese o significado do nome
'Deus', Deus existe. Mas porque negar aquela premissa em especial? Poder-se-ia negar que se possa
dizer em algum sentido aceitável que é maior para algo existir não apenas na mente como também
fora dela. De fato, essa é provavelmente a estratégia de refutação mais popular do argumento
ontológico, tomando, de acordo com diferentes quadros conceituais, a forma da tese de que
existência não é uma perfeição, não é um predicado real ou não é um predicado de primeira ordem,
ou seja, não é uma propriedade de objetos mas de conceitos. É sobre a primeira versão dessa
estratégia, proposta por Gassendi contra o argumento ontológico cartesiano, que nos
concentraremos, após considerar as críticas anteriores de Gaunilo e Tomás.
De acordo com Gaunilo, as coisas podem existir no intelecto de dois modos bastante
distintos: como noções verdadeiras ou como noções falsas ou duvidosas. É apenas no caso das
primeiras que se pode inferir, a partir da noções pensadas, propriedades reais de objetos, do modo
como, por exemplo, pode-se inferir que Sócrates é animal do fato de ele ser homem na medida em
que a noção geral de homem foi formada a partir de algo existente, ao invés de ser uma ficção
arbitrariamente formada pelo pensamento. No caso das noções falsas ou duvidosas não há qualquer
garantia da correspondência entre a noção e alguma realidade, seja uma correspondência
existencial, seja a própria possibilidade real de que a algo se aplique a noção de algo acima do qual
nada pode ser pensado. Ora, mas o único critério que permite distinguir noções verdadeiras de
noções falsas é justamente a existência independente do pensamento da coisa que é pensada. Assim,
de acordo com Gaunilo, a prova ontológica falha por homogeinizar a intelecção, deixando de
distinguir entre noções verdadeiras e falsas ao supor que tudo que inteligimos existe no intelecto de
uma mesma maneira. A prova só seria válida se a noção de D fosse verdadeira e isso só pode ser
estabelecido por meio da existência de D, caso no qual, porém, a prova seria simplesmente circular.
Aqui, poder-se-ia responder a Gaunilo que, mesmo concedida a distinção entre noções verdadeiras e
falsas, talvez a existência efetiva daquilo de que uma noção é não seja necessária para estabelecer
sua verdade, mas esta decorre de alguma característica interna da noção pensada. Tal procedimento,
porém, dificilmente pode ser encontrado no argumento de Anselmo, embora viesse a ser buscado
por outros defensores do argumento ontológico como Descartes, na forma da doutrina das naturezas
verdadeiras e imutáveis.
A crítica de Tomás feita no capítulo XI do livro I da Suma Contra Gentios segue uma via
semelhante, repousando sobre uma distinção entre modalidade epistêmica e modalidade real
fundada na distinção entre aquilo que é evidente por si e aquilo que é evidente para nós. Algo é
evidente por si, na medida em que sua verdade de siga necessariamente a partir de características
objetivas daquilo que pode ser pensado; algo é evidente para nós, por outro lado, na medida em que
se siga necessariamente daquilo por meio do qual algo pode ser pensado. Em outras palavras, algo
pode necessariamente ter alguma propriedade tomado em si mesmo sem ser necessariamente
pensado enquanto tal, em virtude de alguma limitação cognitiva daquele que pensa.
Correspondentemente, algo pode ser concebido como possível ou real sem que seja efetivamente
possível ou real de acordo com as condições objetivas da realidade. Assim, por exemplo, uma fênix
pode ser pensada sem que possa, entretanto, existir, em virtude da impossibilidade metafísica
envolvida na auto-geração. Analogamente, D pode estar presente no pensamento embora, na
realidade, não haja um grau máximo de perfeição. Assim, caso houvesse infinitos graus de perfeição
sem um limite superior, ainda que fosse possível, por um lado, pensar em algo acerca do qual nada
maior pode ser pensado, por outro lado na realidade fosse sempre possível, segundo condições
metafísicas objetivas, galgar mais um degrau na escala de graus de perfeição. Esse descompasso
entre conceptibilidade e possibilidade real só poderia ser suprimido caso se soubesse que tal
progressão ao infinito é impossível quanto à realidade. Isso, porém, já é admitir a existência de
Deus. Desse modo, assim como para Gaunilo, os requisitos necessários para validar a prova
ontológica tornam a mesma circular.
Voltemo-nos agora para a crítica de Gassendi, segundo a qual o argumento ontológico é malsucedido porque existência não é uma perfeição. De acordo com ele, qualquer perfeição, como ser
branco ou ser homem, só pode ser atribuída a algo na medida em que esse algo exista, ou seja, ao
invés de ser uma perfeição entre outras, a existência é o fundamento da presença de perfeições em
algo. Assim, a existência não poderia ser tomada como uma perfeição acrescentada a algo tornandoo mais perfeito do que o seria sem existir, mas deve ser suposta pela própria possibilidade de que a
algo se acrescente uma perfeição. A correção de tal concepção de existência é altamente controversa
e certamente dependeria de uma análise conceitual aprofundada, mas é possível, aqui, apontarmos
ao menos um de seus pontos problemáticos. Ainda que se conceda que existência é o fundamento da
atribuição ou acréscimo de perfeições, disso se seguiria claramente apenas que existência não é uma
perfeição como as outras, mas o princípio das mesmas. Nesse sentido, o argumento de Gassendi, ao
invés de estabelecer que existência não é uma perfeição, mostraria que ela é a perfeição primária de
cada coisa. Caso aceitemos, como parece razoável, que uma perfeição é tão maior quanto mais
perfeições dela se seguem ou dependem, teríamos uma consequência inversa à pretendida por
Gassendi, na forma de que a existência é a maior perfeição que cada coisa pode ter.
De todo modo, o argumento apresentado por Anselmo no capítulo 3 de seu Proslogion
parece independer da tese de que existência seja uma perfeição. De acordo com ele, aquilo acerca
do qual nada maior pode ser pensado nem sequer pode ser pensado como não existente, isto é, deve
ser necessariamente pensado como existente. Isso, na medida em que necessariamente ser pensado
como existente seria uma perfeição maior do que poder ser pensado como não existente. Assim,
caso se considerasse que D pode ser pensado como não existente, algo maior do que D, cuja não
existência não pudesse ser pensada, poderia ser pensado, isto é, poder-se-ia pensar em algo maior
do que aquilo acerca do qual nada maior pode ser pensado. Como isso é contraditório, deve-se
afirmar que Deus é necessariamente pensado como existente. Anselmo, como já mencionamos, não
toma isso como uma prova da existência de Deus, mas apresenta-o como a mera descoberta de uma
nova propriedade daquilo cuja existência fora estabelecida no capítulo anterior. Poder-se-ia, porém,
alegar que esse argumento prova a existência de Deus em virtude da necessária existência segundo
a qual ele é pensado, existência necessária essa que implica, evidentemente, sua existência atual.
Nessa perspectiva, Deus existiria porque só pode ser pensado em conjunto não apenas com
existência, mas com existência necessária. Com isso, a suposição em jogo aqui seria não a de que
existência é uma perfeição, mas a de que existência necessária o é.
Gaunilo sequer considera o eventual caráter comprobatório da existência de Deus que esse
argumento teria, mas limita-se a considerar sua dimensão epistêmica, isto é, objeta que ele seja
bem-sucedido em provar que não se possa pensar apenas em Deus como não existente. Isso porque
a incapacidade de pensar em algo como não existente nada teria a ver com a necessidade ou
contingência daquilo que é pensado, decorrendo apenas no modo como nos relacionamos com um
dado conhecimento. Assim, por exemplo, não apenas Deus, mas também o próprio eu pensante não
poderia ser pensado como não existente, pelo simples fato de que ao pensar já temos certeza da
existência de um eu que pensa. Isso não significa, porém, que a minha existência seja necessária.
Em outras palavras, como não poder ser pensado como não existente não implica a existência
necessária daquilo que é assim pensado, não poder ser pensado como não existente, mesmo que seja
algo atribuível a Deus, não o é somente a ele, nem em virtude de qualquer de suas propriedades
particulares. A separação feita por Gaunilo entre necessidade na ordem da concepção e necessidade
na ordem da coisa, assim, poderia igualmente servir para rejeitar o capítulo 3 como uma segunda
prova ontológica da existência de Deus, impedindo que necessariamente conceber algo seja
equivalente a conceber algo como necessário. Ainda que existência necessária seja uma perfeição,
necessariamente conceber Deus como existente simplesmente não é o mesmo que concebê-lo como
necessariamente existente, ao contrário do que requereria a hipotética segunda prova ontológica da
existência de Deus. Vejamos, por fim, a posição de Tomás no referido capítulo da Suma Contra
Gentios, onde se toma o argumento do Proslogion 3 como uma prova separada da existência de
Deus.
Como é fácil imaginar, Tomás limita-se a retomar, de modo estritamente análogo a Gaunilo,
sua distinção entre modalidade epistêmica e modalidade real. De acordo com ele, sequer seria
correto dizer que poder pensar em Deus como não existente implicaria uma inaceitável capacidade
de pensar em algo maior do que ele. Isso porque a nossa capacidade de pensá-lo como não existente
não imputaria nenhuma imperfeição a ele, mas seria referente apenas à limitação de nossas
capacidades cognitivas. Poder pensar em Deus como não existente, assim, não significa que isso
que está sendo pensado realmente possa ele mesmo não existir; diversamente, a possibilidade de
pensá-lo como não existente é plenamente compatível com sua existência necessária. Como é a
existência necessária que caracteriza a suma perfeição divina, poder pensá-lo como não existente
não equivale nem a poder pensar em algo mais perfeito que ele, nem a Deus realmente poder não
existir. Com isso, Tomás rejeita a um só tempo o caráter comprobatório da existência de Deus que o
Proslogion 3 poderia ter e até mesmo sua interpretação mais fraca, segundo a qual estaria sendo
estabelecido aí apenas que Deus deve ser pensado como existente em virtude de sua absoluta
perfeição.

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