Parte 1

Transcrição

Parte 1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA
“Tirando a cadeia dimenor”:
A experiência da internação e as narrativas de jovens em conflito com a lei no
Rio de Janeiro”
Natasha Elbas Neri
Rio de Janeiro
2009
Natasha Elbas Neri
“Tirando a cadeia dimenor”:
A experiência da internação e as narrativas de jovens em conflito com a lei no Rio de
Janeiro
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do
Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Sociologia (com concentração em
Antropologia).
Orientador: Prof. Dr. Michel Misse (UFRJ)
Banca examinadora:
Prof. Dr. Michel Misse (UFRJ), presidente
Prof a. Dra. Maria Rosilene Barbosa Alvim (UFRJ)
Prof. Dr. Antônio Rafael Barbosa (UFF)
Suplentes:
Prof. Dr. Pedro Paulo de Oliveira (UFRJ)
Prof. Dr. José Carlos Rodrigues (UFF/PUC-Rio)
Rio de Janeiro
2009
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Natasha Elbas Neri
“Tirando a cadeia dimenor”: A experiência da internação e as narrativas de jovens em
conflito com a lei no Rio de Janeiro
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e
Antropologia , Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
Sociologia (com concentração em Antropologia)
Rio de Janeiro, 18 de fevereiro de 2009
Aprovada por:
_______________________________
Prof.Dr. Michel Misse (UFRJ), presidente
_______________________________
Prof a. Dra. Maria Rosilene Barbosa Alvim (UFRJ)
_______________________________
Prof. Dr. Antônio Rafael Barbosa (UFF)
Rio de Janeiro
2009
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NERI, Natasha Elbas
“Tirando a cadeia dimenor”: A experiência da internação e
as narrativas de jovens em conflito com a lei no Rio de Janeiro/
Natasha Elbas Neri. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2009.
Orientador: Michel Misse
Xi, 164f, il.; 29,7 cm
Dissertação de mestrado – UFRJ/ IFCS/ Programa de PósGraduação em Sociologia e Antropologia, 2009.
Referências Bibliográficas: f. 152 – 157
1. Jovens em conflito com a lei. 2. Internação. 3. Punição.
4. Atos infracionais. 5. Delinquência juvenil. I. Misse, Michel. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, Programa de Pós Graduação em Sociologia e
Antropologia. III. “Tirando a cadeia dimenor”: A experiência da
internação e as narrativas de jovens em conflito com a lei no Rio
de Janeiro.
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RESUMO
Esta dissertação se propõe a compreender a juventude em conflito com a lei na cidade
do Rio de Janeiro a partir das narrativas e da experiência da internação de adolescentes que
cumprem medida socioeducativa em duas unidades do Departamento Geral de Ações
Socioeducativas (Degase) do Estado do Rio. O estudo baseou-se na observação simples da
rotina no Educandário Santo Expedito e na Escola João Luiz Alves, e em entrevistas feitas
com internos e funcionários de ambos os institutos.
A pesquisa buscou traçar o perfil dos adolescentes internados, bem como
compreender quais são as suas representações sobre a “vida no crime”, incluindo as suas
relações com as facções criminosas e com a polícia, e a sua atuação, por vezes
concomitante, na prática de roubos e no tráfico de drogas. Além disso, este estudo explorou
o cotidiano das unidades a partir do ponto de vista dos internos, discutindo sobre os seus
sistemas de classificações e as relações de poder e prestígio travadas entre eles. Também
foram analisados o conjunto de regras e as punições desenvolvidas e aplicadas pelos
próprios adolescentes internados.
Palavras-chave: jovens em conflito com a lei, internação, punição, atos infracionais,
delinquência juvenil.
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ABSTRACT
This dissertation intends to understand juvenile delinquency in the city of Rio de
Janeiro based on the narratives and experiences of juveniles incarcerated in two detention
centers, in the “Departamento Geral de Ações Socioeducativas” (Degase), in the State of
Rio. The study is based on the simple observation of the routine at two institutions,
Educandário Santo Expedito and Escola João Luiz Alves, and on interviews done with
juveniles and workers of both detention centers.
The research sought to delineate the main characteristics of the incarcerated youth, as
well as interpret their portrayals about “the life of crime”, including their relations with
criminal factions and the police, and their, sometimes concomitant, participation in
robberies and the dug trade. Furthermore, this study explored the detention centers’ daily
routine from the young offenders’ perspective, discussing about their classificatory
systems, and their power and prestige relations. The sets of rules and punishments
developed by the incarcerated juveniles have also been analyzed.
Key-words: juvenile delinquency, incarceration, punishment, delinquent acts, young
offenders
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Dedico este trabalho a todos os adolescentes
em conflito com a lei que cumpriram e
cumprem medidas socioeducativas de
internação no Rio de Janeiro
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AGRADECIMENTOS:
Primeiramente, gostaria de agradecer a todos os adolescentes internados em
instituições de internação no Rio que se dispuseram voluntariamente a participar da
pesquisa e a compartilhar suas histórias de vida comigo. Sempre dispostos ao diálogo e
animados em participar do empreendimento científico, eles se abriram generosamente, me
ensinaram a ver o mundo com outros olhos e me propiciaram valiosos momentos e
aprendizados, que levarei em meu coração para o resto da vida.
Também preciso agradecer o apoio dos funcionários da Escola João Luiz Alves e do
Educandário Santo Expedito, bem como à diretoria do Departamento Geral de Ações
Socioeducativas do Estado do Rio, por ter permitido a realização do trabalho de campo.
Agradeço também à 2a Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro, em especial, aos
funcionários Sérgio e Lilian, que sempre me atenderam com muita atenção, fornecendo
dados à pesquisa e propiciando a obtenção das devidas autorizações judiciais.
Em seguida, passo aos agradecimentos àqueles amigos queridos com quem troquei
idéias e experiências acadêmicas e pessoais ao longo destes dois anos de mestrado no
PPGSA/ IFCS. Aos amigos “necvuanos” Brígida Renoldi, Bruno Cardoso, Alexandre
Werneck, Cesar Teixeira, Carolina Grillo, Andréa Ana do Nascimento e Vivian Paes, devo
todo o aprendizado “sócio-antropológico” compartilhado em nossas sessões de discussões os “conflitos de interesse” – e longas conversas sobre os nossos objetos de estudo. Aos
meus colegas de turma de mestrado Paola Lins, Luiz Augusto Campos, Maria Raquel
Passos, Ana Carolina Nascimento, Cláudia Prestes, Hailton Junior, Renata Montechiare,
Ana Paula Perrota, Céline Spinelli, Alberto Goyena e Rodrigo Castro, companheiros de
congressos, grupos de estudos e de “kula oculto”. Ao Luiz, agradeço especialmente pela
paciência em me ajudar com a produção e a análise dos dados quantitativos dos
questionários.
Ao meu orientador, prof. Michel Misse, por ter me introduzido a todas as discussões
relevantes na área da Sociologia do Crime e da Violência e por ter me orientado sempre
com muita atenção, paciência e animação. Aos professores do PPGSA Yvonne Maggie,
Karina Kushnir, Luiz Antônio Machado da Silva, Neide Esterci, Bruno Carvalho, Gláucia
Villas Bôas e Céli Scalon, e aos professores Roberto Kant de Lima (UFF) e Fréderic
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Vandenbergue (Iuperj), cujas aulas ao longo do mestrado ensinaram-me sobre questões
relevantes da Sociologia e da Antropologia e expandiram os meus horizontes
interpretativos. Aos professores integrantes da banca, Rosilene Alvim e Antônio Rafael
Barbosa, por terem aceito o convite a participarem da banca e por seus comentários
valiosos após a qualificação. Aos professores José Carlos Rodrigues (UFF/ PUC-Rio) e
Pedro Paulo de Oliveira (PPGSA), por terem aceito compor a banca. A José Carlos e
Everardo Rocha (PUC-Rio) pelos primeiros ensinamentos antropológicos e por terem
despertado e motivado o meu interesse pela vida acadêmica, ainda na graduação em
Comunicação Social, na PUC-Rio.
Ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ, que
proporcionou-me esta oportunidade de pesquisa e aprendizado inigualável, sempre nos
dando a liberdade de transitar entre a Sociologia e a Antropologia. Às funcionárias do
PPGSA Cláudia e Denise, por toda a atenção e ajuda prestadas. A Heloísa Duarte,
secretária do Necvu, por toda a rapidez e eficiência nas questões práticas a serem
resolvidas. Ao CNPQ e à Faperj, pelas bolsas concedidas nesses dois anos de mestrado,
sem as quais não poderia ter me dedicado à realização desta pesquisa.
À minha mãe, Carmen, por sempre ter me dado liberdade de escolha e pensamento e
por seus insights antropológicos e jurídicos sobre a minha pesquisa. Ao meu pai, Murilo,
por sempre ter me apoiado na busca de meus sonhos profissionais e na crença por um
mundo mais justo. Aos meus avós Dulce e Marcel, por sempre terem me dado todo o amor
e a compreensão que só os avós mais dedicados sabem dar. A Roberta Simões, amiga de
toda a vida, que tanto escutou sobre as minhas experiências de campo e sobre os jovens
entrevistados. E, por fim, ao meu marido, Lula Carvalho, porque o seu amor e o seu
companheirismo me deram forças e energias positivas em todas as etapas deste trabalho,
sobretudo na sua escrita, por acreditar na pesquisa, por se preocupar com as questões aqui
tratadas, e, acima de tudo, porque a vida é muito mais feliz ao seu lado.
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SUMÁRIO
Parte 1: Introdução.............................................................................................................12
1.1 - Interesse temático e objetivos.......................................................................................12
1.2 - Metodologia e trabalho de campo.................................................................................14
De repórter a pesquisadora – trocando de papéis sociais............................................17
O trabalho de campo....................................................................................................19
1.3 – Visões sobre uma “outsider” - reflexões sobre uma pesquisa em internatos...............22
Receptividade e compreensão da pesquisa..................................................................24
De entrevistadora a entrevistada – perguntas e testes feitos pelos jovens...................28
Desconfianças e tensões..............................................................................................31
Incorporando a linguagem nativa...............................................................................35
Parte 2: O sistema socioeducativo....................................................................................38
2.1 – História da delinquência juvenil no Brasil e a construção social da “menoridade”.....38
A emergência de um “problema social”......................................................................38
ECA e a doutrina da proteção integral.........................................................................41
Criminalização da pobreza e sujeição criminal - a construção social do
“dimenor”..............................................................................................................................42
2.2 – O Sistema de Justiça Juvenil atual...............................................................................46
Parte 3: A rotina nas instituições e o perfil dos internos.................................................57
3.1– A rotina dos jovens nas unidades de internação pesquisadas.......................................57
A Escola João Luiz Alves.........................................................................................61
O Educandário Santo Expedito.................................................................................65
3.2 - Perfil dos jovens da EJLA............................................................................................68
3.3 – Reincidência e trajetórias.............................................................................................72
3.4 – Percepções dos jovens sobre o sistema socioeducativo...............................................78
Parte 4: “A vida no crime” ................................................................................................81
4.1 – Roubar e traficar – práticas relacionadas.....................................................................84
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4.2 - “Enquadrando a vítima” – adrenalina e medo..............................................................91
4.3 – Experiências no tráfico e representações sobre as facções criminosas – a guerra contra
o “alemão”.............................................................................................................................94
4.4 – Sobre traições e mortes..............................................................................................103
4.5 - “Os vermes” – a polícia como inimiga.......................................................................107
Parte 5: Mecanismos de classificação e fontes de (des) prestígio no “coletivo”..........116
5.1 - A ideia de “igualdade do coletivo” ..........................................................................117
5.2 – A “cadeia” e a “pista” segundo as lógicas do coletivo...............................................119
5.3- O “menor mente”.........................................................................................................121
5.4 – Fontes de prestígio.....................................................................................................124
5.4 – O “Mancão” ..............................................................................................................125
5.5 - “Comédia” e “bebel” .................................................................................................128
Parte 6: As regras e punições dos internos.....................................................................131
6.1 - O respeito às visitas....................................................................................................133
6.2 – Convivendo com estigmas - o “mancão” e o “alemão”.............................................135
6.3 – Conduta nos alojamentos...........................................................................................137
6.4 – A “recuperação” e o “tribunal dos internos” .............................................................138
6.5 – Quando a “pior forma” se voltou contra os agressores – consequências de uma
decisão intra-muros.............................................................................................................142
6.6 – De informante a suposto “X9” ..................................................................................145
Considerações finais..........................................................................................................148
Bibliografia........................................................................................................................152
Anexo 1 - Trajetória no sistema socioeducativo.............................................................158
Anexo 2 - Perguntas dos questionários aplicados...........................................................160
Anexo 3 - Glossário de gírias....................................................................................162
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PARTE 1:
INTRODUÇÃO
1.1 - Interesse temático e objetivos:
O envolvimento de menores de idade em atos infracionais no Estado do Rio de
Janeiro é um fato noticiado freqüentemente nos veículos de comunicação e já foi objeto de
pesquisas na área das ciências sociais, que demonstram o crescente uso de mão-de-obra
infanto-juvenil em grupos criminosos – sobretudo no tráfico de drogas1. Esta dissertação de
mestrado aborda a questão da juventude em conflito com a lei a partir do ponto de vista
desses atores socias, baseando-se nas narrativas e experiências de jovens que cumprem a
medida socioeducativa de internação em institutos do Departamento Geral de Ações
Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro (Degase). Diante do debate atual sobre a
redução da maioridade penal, suscitado pela participação de jovens em crimes amplamente
veiculados na mídia, é relevante que se estude mais a fundo o universo moral, a experiência
de privação de liberdade e as narrativas desses adolescentes, dando voz àqueles que estão
em conflito com a lei.
A proposta desta pesquisa foi estudar os jovens em conflito com a lei que estão
internados em duas unidades do Degase: a Escola João Luiz Alves (EJLA), na Ilha do
Governador, que tinha aproximadamente 150 internos, na época da pesquisa, e o
Educandário Santo Expedito (ESE), em Bangu, com cerca de 250. Os internos de ambos os
institutos estão acautelados em regime fechado, mas, enquanto na segunda geralmente
ficam os adolescentes que cometeram atos infracionais quando tinham 16 e 17 anos, na
primeira, a maioria praticou delitos quando tinha entre 12 e 15 anos ou foi julgada por
Comarcas de fora da capital do Estado. Os dois internatos escolhidos são os únicos da
cidade do Rio destinados aos adolescentes autores de atos infracionais do sexo masculino
que já foram julgados e receberam uma medida socioeducativa de internação.
Dentro deste contexto, a partir da análise dos discursos dos jovens internados na
EJLA e no ESE, os dois objetivos gerais desta pesquisa foram: primeiramente,
compreender quais são as histórias de vida e como é a relação com atos infracionais desses
1
Sobre a juvenilização do tráfico de drogas, ver Zaluar (1994), Misse (2006), Dowdney (2003) e OIT (2002).
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adolescentes; e, em segundo lugar, compreender como eles vivenciam a experiência da
internação nestes locais. Nesse sentido, a unidade de análise da pesquisa são os jovens em
conflito com a lei. Por isso, é preciso ressaltar desde já que este trabalho não pretende
avaliar o funcionamento nem a eficácia (ou não) das instituições do Degase – fugindo de
uma perspectiva denuncista, típica de muitos trabalhos sobre o tema -, e sim analisar quem
são seus internos, quais são suas histórias de vida, seu envolvimento com atos infracionais,
como eles se relacionam entre si nestes locais e como eles experimentam a internação
nessas duas unidades. Não irá ser feita, portanto, uma análise com foco institucional ou
estrutural, mas apenas descritas as sociabilidades dos internos, a relação destes adolescentes
com estas instituições, e de que modo a passagem por elas pode contribuir para a
construção social do “menor infrator”.
No que diz respeito ao primeiro objetivo geral, em seus discursos, buscaram-se
elementos sobre as suas trajetórias de vida fora das unidades, bem como suas relações com
atividades ilegais, ou seja, suas narrativas acerca da “vida no crime”, como eles mesmos
dizem. Ao se dar voz aos jovens que estão em conflito com a lei, pretende-se compreender
o crime – neste caso, legalmente chamado de ato infracional – a partir da perspectiva de
quem participou ou participa de atos ilícitos e de redes criminosas. Sendo assim, este
trabalho visa a contribuir para uma abordagem do crime enquanto uma construção social,
baseando-se nas narrativas individuais de jovens “incriminados” e punidos pelo Estado.
Desta forma, busca-se compreender o perfil dos jovens submetidos ao regime de
internação e analisar que elementos constituem seu universo moral e suas identidades
sociais, sobretudo no que diz respeito às suas percepções e relações com o crime. Pretendese analisar de que forma suas subjetividades/ identidades são constituídas a partir de suas
relações com facções criminosas (que dominam a venda de drogas em favelas do Rio de
Janeiro), como se dá sua atuação em atos infracionais, e quais as suas percepções sobre a
polícia.
Quanto ao segundo objetivo geral, que é compreender como a internação é vivenciada
pelos jovens, buscou-se identificar seus padrões de sociabilidade, códigos de conduta,
valores morais, sistemas de classificações e conjunto de regras e punições desenvolvidas e
aplicadas entre os internos. Assim, será possível analisar como mecanismos de controle
social exercidos pelos jovens disciplinam seus comportamentos e influenciam sua rotina
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nas unidades, e como são construídas simbolicamente estas regras. Foram investigados
ainda quais os sistemas de classificação existentes entre os próprios internos, identificando
as categorias classificatórias utilizadas por eles. Serão descritos os mecanismos ou
comportamentos que geram diferenças de status e relações hierárquicas entre eles,
concedendo-lhes ou privando-os de “moral” ou “prestígio” perante os demais.
Além disso, através de seus discursos, foram observadas as suas percepções sobre o
sistema socioeducativo - mais especificamente, sobre o instituto de internação onde estão
apreendidos. Também será abordada a relação desenvolvida entre os jovens em conflito
com a lei e os agentes de disciplina, buscando observar suas negociações, sistemas de
trocas e recompensas e percepções mútuas. Além do mais, serão comparados diferentes
aspectos das sociabilidades dos jovens nas duas instituições estudadas, de modo que se
tenha um panorama mais abrangente da experiência da internação, sem se restringir a uma
só unidade.
O texto está dividido em seis partes. Na primeira delas, será detalhada a metodologia
utilizada e serão discutidos episódios que marcaram a realização do trabalho de campo. Na
segunda parte, serão descritos a mecânica processual do sistema socioeducativo, o histórico
do atendimento a menores de idade no Rio de Janeiro, bem como alguns dados estatísticos
sobre o envolvimento de adolescentes com atos infracionais no Rio. Em seguida, na parte 3,
serão descritas as rotinas das unidades estudadas e expostos os dados quantitativos sobre o
perfil dos jovens da EJLA, produzidos a partir da aplicação de questionários. No capítulo
seguinte, serão abordadas as narrativas sobre a “vida no crime” e as experiências dos jovens
na prática de atos infracionais, “na pista”. Depois serão analisadas as classificações
utilizadas pelos jovens para categorizarem os internos, os mecanismos de obtenção de
prestígio e as relações hierárquicas estabelecidas entre eles. Finalmente, serão discutidas as
regras de convivência e as formas de controle social e punição exercidas pelos próprios
internos.
1.2 – Metodologia e trabalho de campo:
Em se tratando de um tema que aborda as relações sociais travadas entre os jovens – e
entre estes e os agentes de disciplina –, suas trajetórias de vida, suas narrativas sobre atos
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infracionais e suas experiências nas instituições de internação, optou-se por priorizar uma
abordagem qualitativa na pesquisa. Dois métodos qualitativos foram utilizados no trabalho
de campo: a observação simples em instituições de internação do Departamento Geral de
Ações Socioeducativas (Degase) e entrevistas com os adolescentes e funcionários destes
internatos, como agentes de disciplina, diretores de unidades, psicólogos, pedagogos,
assistentes sociais, professores e voluntários que trabalharam nas unidades. Ao longo de
pouco mais de um ano, entre junho de 2007 e agosto de 2008, minha rotina de pesquisa
incluiu visitas semanais a pelo menos um instituto de internação de jovens em conflito com
a lei administrado pelo Degase.
Ao todo, foram feitas 52 visitas a campo, sendo 46 destas a unidades de internação do
Degase. Isso porque também foram feitas visitas à 2a Vara da Infância e do Adolescente,
com assistência a audiências de julgamento de jovens, com o objetivo de melhor
compreender o processo de incriminação juvenil e a manutenção ou progressão de medida
de jovens internados – em audiências de reavaliação. A metodologia quantitativa também
foi utilizada, de modo complementar, com a aplicação de um questionário a 105 internos da
Escola João Luiz Alves, sobre suas trajetórias de vida. Além do mais, utilizei os dados
oficiais da 2a Vara, do Instituto de Segurança Pública e do Degase, de modo auxiliar e
introdutório ao tema.
O material acumulado ao longo da pesquisa inclui dois cadernos com anotações de
campo, diversos relatórios de campo escritos no computador com reflexões sobre as visitas,
15 gravações de áudio de entrevistas ou situações de campo, um banco de dados com os
questionários respondidos por 105 adolescentes e matérias de jornal sobre as unidades de
internação – como notícias sobre rebeliões e fugas - e o sistema socioeducativo em geral.
Quando decidi estudar a experiência da internação de jovens em conflito com a lei,
não tinha hipóteses pré-formuladas. Meu objetivo inicial e geral era entender como os
jovens vivenciavam aquele período de reclusão e quais eram as suas histórias de vida. Sabia
apenas que isso seria feito, primordialmente, a partir de seus relatos e narrativas e do
acompanhamento da rotina das unidades.2 Sendo assim, o desenvolvimento de questões
2
Antes de ir a campo, cogitei fazer um estudo longitudinal, comparando dados do sistema penitenciário com
dados do Degase, para avaliar quantos dos jovens que passaram pelo Degase chegaram ao sistema
penitenciário, mas devido a ausência de bancos de dados digitalizados das instituições, deixei essa ideia de
lado e resolvi centrar a pesquisa nos jovens internados no Degase atualmente.
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analíticas e a delimitação do foco da pesquisa ocorreram ao longo da realização do trabalho
de campo.
Inicialmente, era preciso escolher em qual (is) unidade (s) do Degase a pesquisa seria
realizada, dentre os seis internatos do Degase – quais sejam, o Padre Severino, o Centro de
Triagem, (CTR) a Escola Santos Dumont, o CAI Baixada, a Escola João Luiz Alves e o
Educandário Santo Expedito. Seria inviável desenvolver a pesquisa em todos eles. Essa
escolha envolvia decidir qual fase do processo de incriminação juvenil seria pesquisada, já
que o CTR e o Padre Severino são instituições de internação provisória – quando o jovem
aguarda o julgamento – enquanto as demais abrigam jovens que já receberam a medida
socioeducativa de internação. Implicava também decidir qual a idade, a origem e o sexo de
jovens a pesquisa focaria. Os jovens do CAI Baixada são geralmente oriundos de fora da
cidade do Rio, a Santos Dumont é destinada a meninas, o ESE, a jovens julgados a partir
dos 16 anos, e a EJLA, a jovens julgados com 12 a 15 anos e a meninos de outras comarcas.
Enfim, essa decisão, a primeira de muitas no campo, iria influenciar diretamente o foco e os
resultados da pesquisa.
Com o intuito de me familiarizar com o universo a ser estudado e a escolher o foco da
pesquisa, decidi ir a campo, em uma “fase exploratória” – o que começou a ser feito no
final do primeiro semestre de 2007. Para isso, foi necessário pedir autorização à 2ª Vara da
Infância e da Juventude – a qual repassa o pedido ao Ministério Público (MP) - e à
diretoria-geral do Degase. O pedido foi feito à 2a Vara em abril de 2007 e a autorização foi
concedida no mês seguinte, tanto pelo MP quanto pela Vara. Em seguida, contactei a
diretoria das unidades de internação do Degase, que aprovou o início do trabalho de campo.
Antes de seguir adiante e relatar com mais detalhes como o campo foi desenvolvido,
em que condições foram obtidos os dados, como se deu a relação pesquisador-pesquisador
e quais foram as dificuldades enfrentadas, cabe mencionar que, antes de a pesquisa de
mestrado começar, eu já havia estado no Educandário Santo Expedito por duas vezes, não
como pesquisadora/ mestranda, mas como jornalista. Abro esse parênteses pois essas duas
primeiras visitas não só influenciaram o tema escolhido para a esta dissertação, como
também afetaram, sobretudo no começo da pesquisa, a relação que travei no campo com
meus interlocutores.
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De repórter a pesquisadora – trocando de papéis sociais:
Em fevereiro de 2007, eu trabalhava como repórter – recém-formada - do caderno
Cidade, do Jornal do Brasil, quando fui designada pela editora para fazer uma reportagem
dominical sobre a internação de “menores infratores”. A solicitação tinha como pano de
fundo a morte do menino João Hélio Fernandes, que havia sido assassinado após um
assalto, na Zona Norte da cidade. O caso chocou cariocas e brasileiros pelo fato de a
criança ter sido arrastada por sete quilômetros, presa pelo cinto de segurança, do lado de
fora do carro de seus pais. Entre os suspeitos de participação no crime estava um
adolescente de 16 anos, que foi apreendido pela polícia e encaminhado a uma unidade do
Degase. As discussões e os comentários sobre o “problema dos menores infratores”, a
redução da maioridade penal e a crueldade do crime tomaram conta dos noticiários e das
rodas de bate-papo em bares, universidades e casas da cidade.
Como todos os jornais do país, o JB cobriu com especial atenção o caso do menino
João Hélio e, por isso, resolveu produzir uma matéria sobre o Educandário Santo Expedito,
a unidade de internação para onde seria levado o jovem suspeito. O então diretor interino
do Degase, Lourival Casula, me permitiu fazer uma visita ao ESE, mas eu não poderia
conversar com nenhum interno, pois isso dependia de uma autorização judicial, a qual não
se consegue de um dia para o outro. Fui à unidade mesmo assim. Tudo que pude fazer foi
conhecer a estrutura do internato e conversar com dois diretores da instituição. A divisão de
jovens em alojamentos segundo facções criminosas que dominam a venda de drogas em
favelas me deixara impressionada, bem como o péssimo estado da unidade - com marcas de
destruição e incêndio durante as últimas rebeliões.
Instigada para conversar com os internos, convenci a editora a adiar a data da
publicação, de modo que tivesse tempo hábil para conseguir a autorização da 2a Vara da
Infância e do Adolescente. Cinco dias depois, recebi um fax da Vara, com a tal autorização,
logo após a Quarta Feira de Cinzas – incrivelmente mais rápido do que quando fiz a
solicitação como pesquisadora. Acompanhada de uma fotógrafa do jornal, voltei ao ESE,
desta vez com o objetivo de entrar nas galerias e conversar com os jovens. A princípio, o
diretor da unidade escolheu três jovens para serem entrevistados por mim, mas depois o
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convenci a nos deixar entrar em uma das galerias, o que foi feito com a presença de
diversos agentes.
Ouvir as entrevistas gravadas depois de tanto tempo e depois de realizar uma pesquisa
por mais de um ano me causou estranheza, principalmente pela maneira como a então
repórter se dirigia ao jovens e os tipos de perguntas que eram feitas. Inconscientemente, a
entrevistadora partia do pressuposto de que dificilmente eles seriam “ressocializados” por
aquela instituição e fazia perguntas que “renderiam uma boa matéria”, com uma visão
estereotipada e midiática da juventude em conflito com a lei. De certa forma, era como se
eu fosse porta-voz do discurso midiático, que rotulava aqueles jovens como “criminosos”,
apesar de não compartilhar tal visão.
Apesar das circunstâncias não-acadêmicas, essas duas primeiras visitas ao ESE
representaram o começo de uma mudança no tema que eu viria a pesquisar no mestrado e,
sobretudo, de uma mudança nas minhas percepções sobre e relações com a juventude em
conflito com a lei e com a cidade do Rio de Janeiro como um todo. Incomodada com a
superficialidade e parcialidade da abordagem midiática sobre a juventude em conflito com
a lei3, decidi fazer do assunto o tema da minha dissertação.
Retornar ao campo como mestranda e não mais como jornalista exigiu de mim um
esforço enorme para tentar evitar que meus interlocutores confundissem esses dois papéis
sociais distintos: o de repórter (que eu havia abandonado desde o início do mestrado), e o
de pesquisadora. Tal mudança de papéis sociais também exigiu uma mudança da minha
postura em campo, não mais em busca de informações imediatas e de respostas a perguntas
prontas, mas um postura mais observadora, tentando compreender o outro, aprendendo a
ouvir e a observar mais do que perguntar, deixando que os jovens tivessem espaço e
liberdade para se manifestarem.
No entanto, especialmente no ESE, tive de enfatizar muitas vezes a funcionários e
internos que eu não estava ali trabalhando como repórter, mas sim como pesquisadora –
que havia deixado o emprego para me dedicar ao mestrado. Aliás, uma pessoa com um
caderno na mão fazendo anotações é geralmente confundida e rotulada como um repórter,
mas, no meu caso, a confusão/ rotulação tinha um fundo de realidade.
3
Diversos meios de comunicação, inclusive o Jornal do Brasil, começaram uma campanha a favor da redução
da maioridade penal após a morte do menino João Hélio.
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A princípio, quando qualquer pessoa me perguntava em que eu era formada, ou
estranhava o fato de eu conhecer um pouco sobre crime e tráfico de drogas no Rio, eu
falava honestamente que era formada em jornalismo e tinha sido repórter, mas que não
trabalhava mais na área. Ainda assim, tanto internos quanto funcionários me olhavam com
desconfiança quando eu fazia tal revelação. O então diretor do ESE e alguns agentes de
disciplina insistiam em me chamar ou me apresentar como repórter, dizendo que eles
tinham que “tomar cuidado comigo”, porque eu poderia colocar as coisas no jornal. Quanto
aos jovens, os poucos que souberam que eu havia sido repórter ou aqueles que me
confundiram com uma repórter por causa do caderninho pareciam ficar empolgados com
uma suposta oportunidade de aparição no jornal.
Depois de um tempo no campo, decidi evitar falar qualquer coisa sobre o meu
passado de jornalista, para que a pesquisa não fosse prejudicada e os entrevistados não
ficassem inibidos – ainda mais do que o normal. Quando perguntavam se eu era repórter, eu
respondia negativamente, explicando sobre a pesquisa, e se alguém insistisse em saber qual
era a minha formação, eu dizia apenas que tinha feito Comunicação – o que não é associado
diretamente ao trabalho de repórter. Com o passar dos meses e com a minha assiduidade
nas unidades, o meu papel de pesquisadora pareceu prevalecer a maior parte do tempo apesar de às vezes nem internos nem funcionários entenderem diretamente “para que serve”
uma pesquisa, como discutirei mais à frente. Apenas alguns funcionários teimaram em me
chamar de repórter algumas vezes, sempre em tom de brincadeira – e de teste, claro.
O trabalho de campo:
Durante a “fase exploratória” do campo, foram visitados os cinco institutos de
internação de que o Degase dispõe na cidade do Rio: EJLA, ESE, Padre Severino, Escola
Santos Dumont e o Centro de Triagem e Recepção. Neste momento, deixou-se de fora o
CAI Baixada, devido ao fato de ele se situar fora da cidade do Rio, em Belford Roxo. Neste
começo de trabalho de campo, foram realizadas observação simples e entrevistas sem
roteiro pré-estabelecido com internos e funcionários das instituições visitadas. O intuito
dessa fase inicial de pesquisa, que se estendeu de junho a outubro de 2007, foi me
familiarizar com a rotina das unidades, fazer os primeiros contatos com internos e
19
funcionários – relações de confiança e cumplicidade que levam tempo para ser
consolidadas – e começar a colher dados que permitissem definir o recorte da dissertação.
Ao longo de toda a pesquisa, inclusive na fase exploratória, foram acompanhadas as
atividades rotineiras das instituições, como jogos de futebol, aulas de música, oficinas de
vídeo, aulas de educação física, capoeira, aulas de reforço escolar, cultos religiosos, visitas
de parentes e companheiras, refeições, capinagem e outras. Tanto a observação simples
quanto as entrevistas eram feitas fora dos alojamentos – espécies de celas – dos jovens, não
só por uma questão de segurança, a pedido da direção das unidades, como também para
respeitar o ambiente mais íntimo dos jovens. A minha entrada nas alas dos alojamentos
requeria a presença de diversos agentes, para que “a minha segurança fosse garantida”,
segundo agentes – e os diretores preferiam que isso não fosse feito, até pelo limitado
número de agentes. Além do mais, eu não gostava da idéia de entrevistar os jovens em seus
alojamentos, pois isso significava que uma grade de ferro separaria pesquisadora e
pesquisados – uma situação que exacerbava a situação de encarceramento dos adolescentes.
Eles mesmos sentiam-se desconfortáveis com pessoas de fora nas áreas dos alojamentos
(sobretudo uma mulher), o que significava uma invasão de seu espaço íntimo, onde eles
dormem e ficam à vontade, às vezes sem camisa ou roupa.
De um modo geral, quando chegava às unidades, me informava sobre as atividades
que estavam acontecendo e me dirigia a uma das salas ou áreas de recreação para
acompanhá-las. Ao final das atividades, costumava pedir autorização ao chefe de plantão da
unidade para permanecer conversando com algum jovem especificamente, ou um grupo de,
no máximo, cinco jovens. Em outras visitas, dediquei-me a fazer entrevistas mais longas
com os jovens. A maior parte das entrevistas individuais ou em grupo acontecia em salas
usadas originalmente para o atendimento psico-pedagógico aos jovens e suas famílias. O
gravador foi utilizado no começo da pesquisa, mas deixei de usar esse recurso devido à
pressão de agentes de disciplina e para evitar inibir os informantes.
A conjugação de entrevistas com a observação das rotinas permitiu capturar os
discursos e as ações dos adolescentes em diferentes circunstâncias. O comportamento de
um jovem em uma quadra de futebol, batendo papo com diversos amigos, muitas vezes era
diferente de sua postura ao longo de uma entrevista individual. As entrevistas em dupla ou
em grupo também produziam relatos diferentes das individuais. Algumas informações eram
20
reveladas quando o jovem estava sozinho comigo, outras eram percebidas na interação com
o grupo. Becker (1970), ao entrevistar estudantes de medicina, percebeu a alternância entre
o cinismo e o idealismo no discurso de seus entrevistados, quando eles estavam em grupo
ou sozinhos, respectivamente, destacando, assim, a importância de se acompanhar os
interlocutores em situações diferentes. Desta forma, a alternância de situações variadas de
entrevistas e conversas possibilitou a construção de um quadro mais rico de informações,
que por vezes se complementavam ou outras vezes levavam a pesquisadora a questionar
informações obtidas anteriormente.
É preciso esclarecer que em nenhum momento desta dissertação as narrativas dos
entrevistados serão tomadas como “verdades” ou “mentiras” – por mais que às vezes tenha
ficado claro que eles omitiram informações ou exageraram seus relatos. Não buscou-se
confrontar as informações dadas pelos jovens com dados judiciais ou do Degase, mas
apenas compreender o discurso enquanto tal, enquanto uma narrativa construída pelos
jovens, naquele contexto da entrevista, e constitutiva de suas identidades. Becker (1993)
argumenta que as informações dadas por um informante são indicadores de suas posições
sociais:
Ao aceitar a proposição sociológica de que as declarações e descrições que um
indivíduo faz sobre um acontecimento são produzidas a partir de uma perspectiva
a qual é função de sua posição no grupo, o observador pode interpretar tais
declarações e descrições como indicações da perspectiva do indivíduo sobre o
ponto em questão.
(BECKER, 1993:53).
Depois dos primeiros meses no campo, decidiu-se focar a dissertação em jovens que
já haviam sido julgados e recebido a medida socioeducativa de internação, deixando de
lado as unidades de acautelamento provisório – onde a rotatividade de internos é enorme e
eles ainda não foram julgados. O foco da pesquisa passou a ser então o último estágio do
sistema socioeducativo, em que os jovens cumprem a medida mais severa dada por um juiz.
Também ficou decidido priorizar o estudo de jovens do sexo masculino, em vez de voltarme para um estudo de gênero sobre as meninas em conflito com a lei. Assim, a pesquisa
passou a ser desenvolvida na Escola João Luiz Alves e no Educandário Santo Expedito.
Em vez de escolher apenas uma dessas duas instituições, preferiu-se incluir as duas, já
que elas são exemplos distintos tanto dos perfis dos jovens internos quanto dos cotidianos e
das relações sociais travadas nestes locais. Escolher apenas uma delas seria correr o risco
21
de não captar as nuances e variedades de sociabilidades do sistema socioeducativo no Rio,
como será descrito adiante. Ao pesquisar na EJLA e no ESE, pude ter acesso a faixas
etárias variadas de jovens em conflito com a lei, entre 12 e 20 anos, que é a idade limite
para a permanência no sistema socioeducativo, segundo o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) – Lei federal 8.069/ 1990.
Logo no início do trabalho de campo, foi recorrente nos discursos, tanto dos jovens
em conflito com a lei quanto dos funcionários, uma profunda diferenciação entre estas duas
unidades. A EJLA é vista por ambos como a “mansão” do Degase, não só por ser a maior
unidade do Rio, com um casarão antigo, que serve de alojamento para os jovens, e uma
extensa área de lazer, como também por ser considerada uma unidade “tranqüila”, em que
rebeliões e brigas são menos freqüentes do que no ESE. Para se ter uma idéia, agentes da
EJLA se gabavam do fato de não ter havido nenhuma rebelião ou morte nos últimos quatro
anos. “No ESE, eu já fui refém de menor numa rebelião”, comparou um agente da EJLA,
que trabalhou anteriormente no ESE. Em 2007, por exemplo, houve, no ESE, pelo menos
duas rebeliões, que deixaram diversos feridos, e um jovem morreu depois de ser espancado
por internos de seu alojamento. Em novembro de 2008, quando eu já não estava mais no
campo, houve outras rebeliões no ESE.
Outro aspecto percebido já na fase exploratória foi a diferença com relação à
convivência de jovens de facções rivais nas unidades. Nos dois institutos, os adolescentes
ficam separados em alojamentos de acordo com a facção a que dizem pertencer – o que será
discutido posteriormente – mas, enquanto na EJLA adolescentes de quadrilhas rivais
participam de atividades rotineiras juntos, como futebol ou cursos, no ESE, os grupos rivais
são totalmente segregados, pois, segundo a diretoria do educandário, trocam ameaças e
brigam fisicamente se tiverem contato (inclusive, uma das rebeliões de 2007 teria sido
iniciada após uma briga de facções). Estas principais diferenças ficaram evidentes durante
as visitas às duas unidades, contribuindo, assim, para a escolha dos dois locais como focos
da pesquisa.
1.3 – Visões sobre uma “outsider” - reflexões sobre uma pesquisa em
internatos:
22
Das janelas com grades de seus alojamentos, no segundo andar do casarão, os internos
da Escola João Luiz Alves observavam o meu carro entrando pelos portões da unidade e
sendo estacionado. De dentro do carro, já dava para ver alguns deles acenando para mim,
empolgados. Quando saía do veículo, passava a escutar os berros de vários deles: “Ô, Dona
Natasha, chama o número 189 hoje”, pedia um. “Vai me entrevistar hoje, Natasha?”,
gritava outro. “Anota o meu número para a senhora me chamar”, solicitava mais um. “Vai
dar para continuar aquele papo hoje?”, indagava outro jovem. Alguns deles eu ainda não
tinha entrevistado, outros já eram meus conhecidos. Eu anotava os números – cada interno
ganha um número quando chega à unidade - e dizia que ia ver com os agentes o que eles
podiam fazer, mas que eu iria voltar mais vezes, caso não desse tempo de falar com todos
naquele dia (o mais provável). Outros apenas me davam “boa tarde”, me cumprimentavam,
e abriam um sorriso logo que eu respondia e acenava. Assim começava mais um dia de
trabalho de campo na EJLA.
Nesta secção, discorrerei sobre a rotina de visitas e as situações que vivenciei ao
longo da pesquisa de campo, de modo que o leitor possa entender em que circunstâncias as
informações utilizadas nesta dissertação foram produzidas e construídas. Segundo Goldman
(2001), “o trabalho de campo é uma atividade construtiva ou criativa, pois os fatos
etnográficos ‘não existem’” (Goldman, 2001: 456). Goldman ressalta que o etnógrafo deve
falar sobre a experiência etnográfica, não para falar de si mesmo, mas para “explorar as
afecções produzidas pelas relações estabelecidas no trabalho de campo na subjetividade do
pesquisador, desterritorializando-a e conduzindo-o à busca de uma reterritorialização na
escrita etnográfica” (Goldman, 2001: 472). Em sua opinião, o etnógrafo é ou deveria ser
modificado pelo trabalho de campo.
Neste sentido, é válido refletir sobre a experiência vivida no campo, já que ela faz
parte da construção da pesquisa e influencia diretamente seus resultados. De acordo com
Mann (1970), “the researcher’s own actions are as much a part of the study design as the
research instruments used” (Mann, 1970: 120).
A pesquisa é, antes de mais nada, uma interação social com “o outro” pesquisado, um
processo, ou, nos termos de Clifford (1998), uma “experiência etnográfica”, sempre
submetida à negociação entre o pesquisador e seus interlocutores. Para Clifford (1998),
“torna-se necessário conceber a etnografia não como a experiência e a interpretação de uma
23
‘outra’ realidade circunscrita, mas sim como uma negociação construtiva envolvendo pelo
menos dois, e muitas vezes mais, sujeitos conscientes e politicamente significativos”
(Clifford, 1998: 43). Desta forma, as questões que serão apresentadas ao longo deste texto
não se baseiam em dados que foram coletados pragmática e objetivamente, mas que foram
sendo construídos a partir das interações travadas a cada visita às unidades e de uma série
de particularidades que a realização de uma pesquisa em uma “instituição total” impõe.
Cabe dizer ainda que as narrativas abordadas no texto não correspondem a uma
“opinião nativa” uniforme e homogênea. Não se falará aqui sobre “o jovem em conflito
com a lei do Rio de Janeiro” enquanto um grupo social integrado – até porque essa
uniformidade não existe -, mas sim sobre as histórias de vida e narrativas de adolescentes
com quem se travou contato nas unidades de internação pesquisadas. Aliás, como o foco
desta dissertação está nos jovens internados, não se terá acesso aos demais jovens que estão
em conflito com a lei na cidade, soltos ou respondendo a outros tipos de medida
socioeducativa. Além disso, o próprio conflito com a lei é um estado – um “drift”, no
sentido de Matza (1999) - e não uma condição permanente nem determinante, colada às
suas subjetividades.
Receptividade e compreensão da pesquisa:
Momentos de receptividade como o descrito no início desta secção marcaram as
visitas às unidades pesquisadas, sobretudo na EJLA, onde os jovens me viam com mais
frequência, já que os alojamentos tinham janelas voltadas para a parte da frente da unidade.
Com a assiduidade de visitas, a pesquisa passou a ficar conhecida entre os internos, que se
dispunham voluntariamente a ser entrevistados, pela primeira vez ou novamente.
Sempre antes de começar uma entrevista ou quando chegava para assistir uma
atividade, me apresentava como mestranda da UFRJ e explicava sobre a pesquisa. Isso
demandava um tempo, pois eu fazia questão de deixar claro o que estava fazendo ali e de
responder às perguntas e curiosidades dos entrevistados, tanto funcionários quanto internos.
Mann (1970) atenta para a necessidade de explicar às pessoas envolvidas na pesquisa o seu
trabalho e os seus objetivos enquanto pesquisador: “It’s clear that we need to develop in
others an understanding of the job of social researcher “(Mann, 1970: 122).
24
Quando começava a entrevistar ou a conversar informalmente com jovens, eu
explicava o que era um mestrado – palavra desconhecida pela imensa maioria dos internos
– e o que era sociologia (também algo não muito familiar para eles), de uma maneira
facilmente compreensível. Dizia que estudava sociologia do crime e queria entender como
era a rotina deles numa instituição de internação, quais eram suas histórias de vida e como
era sua participação em atos infracionais4. Então esclarecia que a identidade deles seria
mantida em anonimato e que todas as informações que eles dissessem em nossas conversas
não seriam repassadas aos funcionários, nem aos demais internos do Degase.
Era importante enfatizar que eles não estavam sendo avaliados e que nada do que eles
dissessem entraria nos relatórios psico-sociais feitos pelo corpo técnico do Degase e
enviados ao juiz. Ou seja, era preciso esclarecer que eles não seriam prejudicados, nem
beneficiados por participarem da pesquisa. Também ressaltava que eu não trabalhava para o
Degase, nem para o Juizado, nem para o Ministério Público e nem para a polícia. Em outras
palavras, eu dizia que não era “X9” (delatora, no linguajar deles) – o que arrancava risadas
de alguns. Essa longa apresentação – ou “papo reto”, como eles falam - tinha o intuito de
evitar confusões e propiciar a eles um entendimento sobre a pesquisa.
Mesmo depois de falar tudo isso, muitos dos jovens continuavam confusos sobre o
que eu estava fazendo ali. Surgiam perguntas como: “Para que serve essa pesquisa?”, “Por
quê que a senhora quer saber essas coisas?”, “Então a senhora vai escrever um livro?” .
Esta última pergunta era muito frequente. Eu explicava que iria ter de escrever um trabalho
final, a dissertação, que era como se fosse um livro, e, quem sabe, isso um dia poderia virar
um livro. Alguns deles resolviam me dar informações a serem incluídas no livro, como no
caso deste jovem da EJLA, que sugeriu que incluísse uma denúncia de maus tratos: “Põe aí
no livro que eles batem na gente. O agente R. me bateu. Deu um tapa na cara. Aqui é
assim”. Quando este jovem me falou isso, perguntei se ele tinha contado essa história à sua
defensora pública, pois ela poderia ajudá-lo, mais do que uma pesquisadora, já que os
direitos dele estavam sendo violados. Eles logo retrucaram: “Que direitos?”. Um dos jovens
na roda reclamou: “O nosso direito começa quando o deles termina” .
4
Nas conversas com os jovens, eles mesmos se referiam à prática de atos infracionais como crimes. Apesar
de ser juridicamente incorreta, pois tratam-se de menores de idade, o termo “crime” será incorporado a esta
dissertação como sinônimo para ato infracional, conforme a linguagem dos informantes.
25
Uma vez feita a introdução, muitos começavam a contar histórias que achavam
interessantes para serem postas no “livro”. Um interno do ESE chegou a sugerir um título
para o “livro”: “Por que você não põe o título assim: ‘O dia-a-dia dos menores infratores na
prisão’?”. Outros ficavam curiosos para saber quais seriam seus nomes fictícios no livro, ao
que eu sugeria que eles escolhessem – mas poucos o fizeram e deixaram a escolha a meu
critério5. Quando voltava à unidade, muitos me perguntavam como andava o meu “livro”.
A receptividade à pesquisa por parte dos jovens era enorme, em ambos os institutos.
A grande maioria que ouvia a minha apresentação queria participar e fazia fila para
entrevistas. Eu anotava os números de quem tinha o interesse de contar a sua história e ia
conversando com eles aos poucos. Às vezes os jovens ouviam falar que tinha alguém
fazendo entrevista e pediam para participar, mesmo sem saber o que era. Só o fato de eles
saírem de seus alojamentos e conversarem com alguém era algo que os entretia, como eles
me contavam, pois fazia o tempo passar mais rápido.
O fato de eu ser uma pessoa de fora, que não estava ali para avaliá-los, os deixava
mais confortáveis para conversar, sem compromisso. Eu era alguém com quem eles podiam
bater papo, se distrair e até fazer confidências. Os internos me diziam que, quando eram
atendidos pelos corpo técnico (formado por psicólogos, pedagogos e assistentes sociais)s
não podiam ser eles mesmos, nem falar o que pensavam, pois as técnicas iriam colocar
todas as informações em seus relatórios. Eles mentiam e davam discursos prontos, dizendo
que queriam “mudar de vida”, “sair da vida do crime”, com o objetivo de que as técnicas
fizessem uma avaliação positiva de seu comportamento e sugerissem, em relatório, uma
progressão de regime ao juiz. Mas comigo eles não precisavam usar esses truques – por
mais que alguns também os usassem comigo. Trice (1970) chamou a atenção para o lado
positivo de se ser um ‘outsider’ em uma pesquisa:
‘Outsideness’ is an advantage since the researcher can maintain a neutrality
relative to these groupings (…) Second, this ‘outsideness’ seems to stimulate
more uninhibited response from data-bearers, since the ‘inside’ threat of
transmittal to others in the organization is less with an outsider.
(TRICE, 1970: 80).
Ao longo da pesquisa, ouvi vários jovens comentarem que eu era uma pessoa
“humilde”, “tranquila”, que os tratava bem, sem arrogância, e por isso eles gostavam de
5
Todos os nomes citados ao longo do texto são fictícios, com o objetivo de preservar a identidade dos
entrevistados. Inclusive foram suprimidas, ou diluídas em trechos diferentes, informações que pudessem
identificar de alguma forma algum entrevistado.
26
conversar comigo. A categoria “humildade”, como será discutido posteriormente, é
utilizada pelos jovens para descrever alguém que trata as pessoas com respeito, sem
“marra” (ou arrogância), e está associada à figura do “menor mente” (ver capítulo 5) ou do
“cara maneiro”, que é justo em sua relação com os outros.
Certa vez, conversando com um informante, no ESE, compreendi um pouco melhor
essa percepção de que eu era uma pessoa “humilde”. Eu havia conhecido o jovem Jonathan,
de 16 anos, na EJLA em setembro de 2007, e havia estado com ele algumas vezes.
Inclusive fiz com ele uma entrevista longa e com gravação de áudio. Ele havia ganho uma
progressão de regime e ido para a semi-liberdade, mas fugiu de um Centro de Recursos
Integrados de Atendimento ao Menor (CRIAMs) – unidade de regime semi-aberto do
Degase – e depois foi pego roubando outra vez. Em maio de 2008, reencontrei Jonathan
jogando futebol na quadra do ESE e o entrevistei individualmente. Durante a conversa, ele
me contou sobre uma entrevista que havia dado para outra pessoa, supostamente para uma
pesquisa, mas ele não se lembrava de onde a moça era. Segundo Jonathan, a tal
entrevistadora não se apresentou direito a ele e começou a lhe fazer muitas perguntas,
sendo arrogante e “cheia de marra”, o que o deixou irritado. Então a mulher lhe perguntou
se ele teria coragem de matar um agente de disciplina do Degase, o que fez com que
Jonathan decidisse “zuar a mulher”. Ele me contou que respondeu a ela que teria coragem
de matar, sim, um agente e que teria também coragem de fazer igualzinho com ela. A
entrevistadora ficou morrendo de medo e chamou um agente imediatamente para dizer que
Jonathan a havia ameaçado.
Jonathan contou o final da história rindo, e comentou: “Como é que aquela mulher
cheia de marra me faz uma pergunta dessa? Pediu para ser zuada!”. Terminada a história,
ele virou-se para mim e me perguntou: “Por que que a senhora acha que eu quis vir aqui
falar com a senhora de novo hoje?”. Disse a ele que eu gostaria que ele me dissesse o por
que, ao que Jonathan respondeu: “Porque a senhora não é cheia da marra. A senhora é
maneira, faz o seu trabalho tranquila nas unidades. Porque eu já conheço a senhora, vi
como a senhora é. A senhora respeita. Por isso eu já falei todas aquelas coisas pra senhora.
Porque confio na senhora. É uma coisa de confiança, sabe?".
27
De entrevistadora a entrevistada – perguntas e testes feitos pelos
adolescentes:
A minha posição de entrevistadora em muitos momentos era subvertida pelos jovens,
que não só faziam perguntas sobre a pesquisa, como também sobre a minha vida particular.
Quando chegava a uma área coletiva das unidades, como quadras ou salas de atividades, os
olhares se voltavam para a minha presença e logo jovens vinham falar comigo. Quem não
me conhecia queria saber quem eu era, e quem me conhecia queria saber se hoje seria
entrevistado. Eu acabava sendo rodeada por alguns deles e passava de entrevistadora a
entrevistada sutilmente. De observadora, tornava-me a observada, influenciando a dinâmica
e a rotina das instituições.
Eles tinham curiosidade em saber meus dados pessoais, como a minha idade, o meu
local de moradia e o meu estado civil. Por eu ser uma mulher jovem, que aparenta ter
menos idade do que tenho – 25 atualmente – alguns jovens chegaram a me convidar para
“curtir um baile” com eles (sempre de maneira respeitosa, por mais que eles pudessem ter
outras intenções). O fato de eu não usar aliança de casamento indicava para muitos deles
que eu era solteira – o que não é o caso –, mesmo que eu dissesse o contrário. Alguns deles
chegaram a pedir o meu telefone, com o intuito de me ligarem quando saíssem de lá. Houve
também jovens que me pediram para que eu os adicionasse em meu internet messenger,
tendo inclusive anotado seus e-mails no meu caderno de campo.
Quando esses convites e pedidos eram feitos, eu tentava levá-los na brincadeira, para
não magoá-los nem deixá-los com raiva, mas chamava a atenção para os limites da nossa
relação. Explicava-lhes que estava ali a trabalho e eles tinham de entender que eu não
poderia atender aos seus pedidos. Eu não podia – e nem queria - dizer sim a ninguém, se
não abriria precedentes aos demais. Por mais chateados que ficassem, eles eram
compreensivos, e deixavam as idéias de contatos posteriores de lado. Tais convites por
vezes me deixavam pensando se um pesquisador homem teria sido tratado com a mesma
receptividade que eu tive.
A questão do meu local de moradia fez emergir uma série de estereótipos e
preconceitos dos jovens em relação a mim, pelo fato de eu morar na Zona Sul. Era comum
que eles me perguntassem se eu morava na Zona Sul, logo no primeiro contato. No começo
28
da pesquisa, a resposta afirmativa gerava olhares e reações até certo ponto preconceituosas.
Ouvi comentários como: “Então você nasceu em berço de ouro”, “Por isso que as suas
mãos não são calejadas. Você deve ter uma empregada em casa” e “O seu pai deve pagar
tudo para você”. Só o fato de eu morar na Zona Sul era um dado suficientemente
diferenciador, levando-os a recorrer ao típico estereótipo de que quem mora nessa região
tem dinheiro ou é “filhinho de papai”. Admitir meu local de moradia chegava a soar como
algo desmoralizante e desqualificador diante das reações dos jovens, a maioria oriundos de
favelas – várias delas na Zona Sul inclusive.
Tais comentários demarcavam, portanto, a distância social entre pesquisadora e
pesquisados. Confesso que a constatação desse abismo me incomodou bastante, até pelo
fato de que eu achava – ou pelo menos tentava – minimizá-lo ao dialogar com meus
interlocutores, sempre tentando ser simpática e tratando-os com respeito e compreensão.
Cheguei ao ponto de evitar revelar a região onde eu morava (também nunca fui específica
sobre isso) e inclusive passei a dizer que morava na Zona Norte, para ver se o mal estar
diminuía. Impressionou-me como a partir de então as reações dos jovens mudaram.
Aqueles que também moravam nessa região queriam saber se eu era ou não vizinha deles,
mas eu desconversava. Aconteceu de eu fugir do assunto e alguém comentar que eu estava
com medo.
Não foram poucas as vezes em que me perguntaram se eu não tinha medo de estar
naqueles locais fazendo pesquisa. Tanto jovens quanto funcionários me faziam tal
indagação recorrentemente. Em uma tarde, no ESE, eu estava rodeada por um grupo de
internos, conversando, enquanto outros jogavam futebol na quadra. Um deles, me olhando
seriamente no olho, me perguntou se eu não tinha medo de estar ali e o que eu faria se
“estourasse” um rebelião naquele exato momento. A pergunta me deu um friozinho na
barriga, mas tentei não transparecer a tensão. Respondi que não teria nada a fazer, a não ser
correr, como todo mundo faria. Fiquei vermelha na hora e eles perceberam, então o jovem
comentou, com sarcasmo, que eu estava com medo deles. Depois deu uma risada e disse
que só estava brincando. Mencionou que eu não precisava me preocupar, pois eles nunca
fariam nada de mal contra mim, já que eu era uma “pessoa maneira”. Em outras conversas
com jovens, eles também me tranquilizaram dizendo que nunca fariam nada contra mim ali
dentro. Já alguns agentes de disciplina brincavam comentando que faltava eu virar refém de
29
rebelião para completar a minha pesquisa e sentir na pele toda aquela tensão, como muitos
deles já haviam sentido.
Outra pergunta que alguns internos fizeram foi o que eu faria caso os visse na rua –
querendo saber se eu teria medo deles. Respondia que iria cumprimentá-los, como faço
com todos os meus conhecidos. Me lembro de ter invertido a pergunta, em uma dessas
ocasiões, indagando a um jovem sobre o que ele faria se me visse. Daí ele me disse que iria
falar comigo “na moral”. Inclusive vários deles me diziam que eu podia ficar tranquila pois
nunca fariam nada comigo se me vissem na rua e que eu poderia ir na favela deles se
quisesse – podia dizer que os conhecia.
Houve ainda quem me perguntasse se eu já havia sido assaltada. Quando respondia
que sim, eles queriam saber os detalhes do ocorrido. Eu então lhes contava que fui assaltada
quando tinha 17 anos, por dois adolescentes, desarmados, que estavam em duas bicicletas.
Eu voltava da praia quando eles me pararam e roubaram um walkman e meus óculos
escuros. Após o meu relato, surgiam dicas sobre o que fazer se eu fosse assaltada, como
não reagir, nem gritar, porque o “bandido” poderia atirar em mim. Me recordo que um
menino muito jovem, no Padre Severino, uma vez me perguntou: “Por que a senhora não
anda armada?”, o que exigiu de mim um esforço enorme para respondê-lo, tendo de
relativizar o que é uma normalidade para eles, neste caso, o porte de uma arma.
Apesar da receptividade dos jovens e da boa relação que travei com a imensa maioria
deles, em apenas uma ocasião um interno quis realmente me deixar com medo e chegou a
soar quase ameaçador. Eu estava na biblioteca do ESE conversando com um grupo de
internos, depois de uma aula de reforço do Sesi. A maioria deles já me conhecia, com
exceção de Sílvio, um jovem de 17 anos, de voz imponente e cara fechada. Eles estavam
me contando sobre as suas experiências em assaltos e dizendo o que pensavam sobre as
vítimas. Sílvio comentou que uma vez havia assaltado três mulheres que nem eu, “cheias de
dinheiro” e completou dizendo, fazendo cara de mau, que tem raiva de mulheres como eu,
as “mirians”.
Resolvi fazer da aparente ameaça uma oportunidade de reflexão conjunta e perguntei
a ele como era uma “miriam” e porque ele tinha raiva delas. Ele me explicou que “miriam”
é sinônimo de patricinha, e é o termo usado por eles para descrever mulheres que não
moram no morro, que tem dinheiro e andam bem vestidas. Nesse dia, eu estava vestindo um
30
casaco da marca Adidas, o que motivou Sílvio a dizer, em seguida, com rispidez: “Se você
estivesse com esse casaco e esse tênis na pista e eu te encontrasse, ia logo te enquadrar6 e tu
ia perder tudo. Eu ia dar tudo pra minha mina”. Supreendi-me na hora, mas fui logo
acalmada pelos próprios jovens, que chamaram a atenção de Sílvio, dizendo que ele tinha
que maneirar, pois eu era “tranquila” e estava ali fazendo a minha pesquisa “na moral”. Me
disseram para eu não reparar na “marra” de Sílvio e mudaram de assunto, tentando me
tranquilizar. No fim dessa conversa, alguns jovens escreveram seus e-mails no meu caderno
de campo, inclusive Sílvio. Uma semana depois, voltei à aula de reforço e reencontrei
Sílvio, já mais simpático, sorridente e interessado na pesquisa. No primeiro contato, Sílvio
tinha decidido testar-me.
Desconfianças e tensões:
Se, por um lado, ser uma outsider beneficiou a relação com os jovens entrevistados,
por outro, em uma instituição de internação ou prisão, a presença de um outsider implica
quase automaticamente na desconfiança sobre ele, pelo menos a princípio. O clima de
desconfiança faz parte do cotidiano destas instituições, onde internos e funcionários se
vêem como inimigos, onde é mantida a divisão e a rivalidade entre facções criminosas,
onde as relações são marcadas pelo uso frequente da violência física como método de
punição - tanto entre jovens, quanto entre funcionários e internos - onde o equilíbrio da
ordem é instável e diz-se que “uma rebelião pode estourar a qualquer momento”. Sem
mencionar outras práticas ilícitas que acontecem ou já aconteceram dentro das unidades, às
vezes com a conivência de funcionários, como o uso de drogas e celulares pelos internos e
o porte de armas por funcionários (conforme me relataram diversos internos). O resultado
de toda esta tensão, que Coelho (1986) chamou de “equilíbrio precário” das prisões, é que
internos desconfiam de agentes, agentes desconfiam de internos, adolescentes desconfiam
de outros internos e, claro, todos eles desconfiam de pessoas de fora da unidade.
Como pesquisadora, ficava no fogo cruzado desse emaranhado de tensões e
desconfianças7. Tentava evitar conversar com agentes na frente de jovens, para não deixá6
O termo “enquadrar”, neste caso, descreve o ato de anunciar um assalto, com o emprego de arma de fogo.
Gambetta (1988) argumenta que a falta de confiança está relacionada com o desconhecimento do
comportamento dos outros: “The condition of ignorance or uncertainty about other people’s behavior is
7
31
los desconfiados, mas às vezes isso era inevitável. Alguns adolescentes chegaram a me
perguntar sobre o que eu falava com os agentes, ao que explicava que também queria saber
a visão dos funcionários sobre o trabalho nas unidades e, além disso, precisava da ajuda
deles para entrevistar os adolescentes – afinal, eu tinha de ter agentes por perto durante as
entrevistas.
A presença dos agentes durante as conversas com os internos foi um empecilho com o
qual eu tive de lidar recorrentemente na pesquisa. Em teoria, eu não podia ficar a sós com
os meus entrevistados, a pedido dos agentes, por “questões de segurança”, e quase sempre
havia um agente de disciplina por perto, enquanto observava atividades, entrevistava ou
batia papo com os jovens. Sempre que podia, ficava distante dos agentes, para que sua
proximidade não inibisse o comportamento e os depoimentos dos jovens. Em ambientes
como quadras e salas de aula, tentava me posicionar o mais longe possível dos
funcionários, para que eles não ouvissem o conteúdo das conversas, que muitas vezes
tratavam de temas os quais os jovens não gostariam de compartilhar com os agentes.
Geralmente, pedia para que os adolescentes se sentassem de costas para a porta da sala,
onde os agentes costumavam ficar sentados.
As salas de atendimento técnico eram os únicos locais em que eu fiquei sozinha com
os jovens, mas funcionários volta e meia vinham olhar “se estava tudo bem”. Houve
situações em que pude perceber que agentes estavam tentando ouvir a conversa do lado de
fora. Mas também houve vezes em que, quando terminei a entrevista com um jovem, não
havia nenhum agente por perto. Em uma dessas ocasiões, ao ver que não havia agentes por
perto, o jovem me perguntou se ele poderia ir para o alojamento, como se eu tivesse
autoridade para respondê-lo. Disse a ele que era melhor nós procurarmos um funcionário,
para que nem eu nem ele fôssemos chamados a atenção. Logo achamos um agente e ele
subiu.
Cabe ressaltar que algumas vezes fui impedida de realizar o trabalho de campo,
devido a supostas tensões nas unidades. Sempre antes de ir a uma unidade, eu ligava para
os diretores para saber se naquele dia seria oportuna a minha visita. Em outubro de 2007,
central to the notion of trust. It is related to the limits of our capacity to achieve full knowledge of others, their
motives, their responses to endogenous as well as exogenous changes. Trust is a tentative and instrinsically
fragile response to our ignorance” (Gambetta, 1988:218).
32
quando um jovem foi assassinado no ESE por outros internos, fiquei sem poder ir a este
instituto por algumas semanas, pois, segundo a diretoria, o “clima estava tenso”. O
homicídio estava sendo apurado pela polícia e pela Corregedoria do Degase. Em dezembro
do mesmo ano, também tive de interromper as visitas ao ESE, pois a diretoria afirmou que
aquele era um mês complicado, em que havia iminência de rebeliões, devido à proximidade
das festas de fim de ano. Também na EJLA fui impedida de fazer a pesquisa quando houve
fuga e uma tentativa de fuga de internos. Além disso, nas duas unidades, quando agentes
faltavam, os diretores pediam para que eu fosse outro dia, pois não haveria funcionários
disponíveis para me acompanharem no trabalho de campo. Aliás, na EJLA sempre me era
pedido que fizesse visitas à tarde, já que as aulas do colégio aconteciam de manhã e isso
demandava o trabalho de todos os agentes da unidade.
Os agentes de disciplina me tratavam com bastante desconfiança. Eles costumavam
achar que o objetivo da minha pesquisa era denunciar as mazelas do sistema
socioeducativo, como o uso da força física empreendida por eles, e que eu estava ali para
defender os direitos dos jovens. Ao final de um dia de trabalho de campo, agentes me
fizeram perguntas do tipo: “E aí, eles já te disseram quem de nós bate mais, qual plantão
que é pior?”, “Quais foram as mentiras que eles te contaram dessa vez?”, “Já descobriu que
isso aqui não recupera ninguém?”. Também foi preciso explicar aos funcionários
recorrentemente os objetivos da pesquisa, principalmente que o seu foco não era no
sistema, mas nos jovens. Eu esclarecia a eles que não estava ali para denunciar ninguém,
que não estava fiscalizando o trabalho de ninguém e que todas as pessoas iriam ter as suas
identidades preservadas na pesquisa.
Os agentes costumavam me orientar a não ter pena dos jovens, mas a ter medo deles.
Ouvia comentários que tentavam me deixar com medo como: “Cuidado com esse garoto aí
porque ele é perigoso, hein?”, ou “Você sabe que esse aí é homicida, né?”. Geralmente a
favor da redução da maioridade penal, os agentes me diziam que eu estava “perdendo o
meu tempo” com aqueles “marginais”, que “eles não tinham mais jeito” – como se meu
objetivo fosse entender ou contribuir para se dar um “jeito neles”.
A desconfiança e o temor sobre a pesquisa por parte dos agentes eram tamanhos que
em uma tarde eu fui pressionada e censurada, no ESE. Em novembro de 2007, eu havia
acompanhado uma aula de reforço do Sesi e estava conversando com um grupo de cinco
33
jovens depois da aula. Um agente estava no canto da sala e eu usava um gravador de voz.
No mês anterior, um interno tinha sido espancado até a morte por seus companheiros de
alojamento e esse era um dos assuntos da conversa. Os jovens estavam me contando
detalhes daquela noite, seus sistemas de regras e punições e o porquê da morte do jovem –
que será tratada no capítulo 6 – até que o agente se levantou e me perguntou se eu estava
gravando a conversa. Respondi que sim e disse que tinha autorização judicial para gravar as
minhas conversas com os jovens. O agente se mostrou incomodado com a gravação e disse
que, quando eu fosse gravar, era melhor eu avisar a eles antes. Pedi desculpas, disse que
atenderia à solicitação e continuei o papo.
Poucos minutos depois, outro agente – com uma posição de chefia - entrou na sala e
pediu para conversar comigo a sós. O acompanhei até outra sala. Em um tom agressivo, ele
me perguntou por quê eu estava gravando e o que eu pretendia fazer com aquela gravação.
Expliquei que a gravação visava a facilitar a coleta de dados e que eu tinha autorização para
tal – mostrei a ele uma cópia da mesma. Ele disse que o problema não era eu gravar, mas
sim o assunto que eu estava abordando nas entrevistas. Deu a entender que eu estava
tocando em um assunto delicado e que eu poderia acabar prejudicando o trabalho de
alguém lá dentro. Esclareci que esse não era o intuito da pesquisa e que fazia parte da
investigação sociológica conversar sobre o dia-a-dia dos jovens lá dentro, inclusive seus
conflitos. Ele disse, então, que era melhor eu não conversar sobre “assuntos complicados”
com eles e então me perguntou – em tom de ameaça – o que eu faria se a diretoria pedisse
para ouvir a gravação. Mantendo-me firme ao direito de sigilo de meus informantes e do
conteúdo das entrevistas, expliquei ao agente que não poderia expô-los e que aquela
gravação era sigilosa.
A negociação com o agente se prolongou, até que ele se desse por satisfeito com as
minhas explicações sobre o intuito da pesquisa. No fim da conversa, até deu sugestões
sobre atividades que seriam interessantes a serem por mim acompanhadas, e pediu que eu
entendesse a posição dele. Depois desse diálogo tenso, em que fui pressionada, decidi não
mais gravar entrevistas no Degase. Quanto voltei à sala onde estava conversando com os
jovens, eles já haviam sido retirados de lá – a conversa havia sido censurada.
34
Incorporando a linguagem nativa:
Vale a pena ressaltar aqui a questão da aprendizagem das gírias utilizadas pelos
jovens. No começo da pesquisa, tive uma certa dificuldade em compreender pequenos
comentários e nuances dos discursos dos jovens, devido ao uso recorrente de gírias. Mas,
ao longo das visitas, fui me acostumando com os termos mais usados – ver glossário feito
em anexo -, sempre contando com a ajuda da “tradução” dos próprios jovens.
Durante algumas conversas, houve momentos em jovens interrompiam outros
adolescentes e pediam para eles falarem sem gíria, para eu poder entendê-los, como se eu
não tivesse um know how suficiente para entender o que eles diziam. Quando algum
adolescente fazia um comentário deste tipo, eu explicava que, na verdade, eu queria
aprender as gírias por eles usadas, pois isso fazia parte da minha pesquisa - o que os
deixava extremamente empolgados e felizes por eu me interessar por algo tão corriqueiro
de seu cotidiano. Então eles prontamente começavam a me dar exemplos de gírias
importantes, as quais eu deveria anotar.
Inclusive acabei incorporando algumas expressões do vocabulário nativo à minha
fala, quando conversava com eles. Isso acontecia de modo um tanto quanto inconsciente,
mas, quando percebia estar falando no linguajar dos meus interlocutores, tinha a sensação
de estar sendo mais clara com eles, e, de certa forma, “me aproximando” a eles – algo
ilusório, talvez. Sempre que eu mencionava algum jargão “nativo”, eles se entreolhavam,
como se achassem aquilo estranho, como se as gírias deles não condissessem com a minha
figura de pesquisadora e jovem de classe média- o que acabava por trazer à tona a distância
entre pesquisador e pesquisado8. Alguns deles riam, outros achavam “maneiro” – “Ih, ela tá
aprendendo a nossa gíria” - quando eu usava ou repetia termos e categorias típicos de seu
vocabulário, como “a última forma” , “comédia”, “ mancão”, “X9” , “ arregado”, “ papo
reto” e “alemão” (ver anexo de gírias).
O uso do termo “alemão”, que significa inimigo ou rival, feito por mim durante uma
entrevista com dois jovens do ESE rendeu uma ótima reflexão sobre este conceito e sobre a
8
Com relação ao uso da linguagem nativa, White (2005) conta que, ao tentar ser simpático, fez comentários
obcenos e vulgares durante um papo, usando termos “da esquina”, e acabou ouvindo de seu principal
informante o seguinte comentário: “Bill, a gente não espera que você fale desse jeito. Não combina com
você” (White, 2005: 304).
35
minha circulação entre os diferentes grupos de jovens das unidades. Estávamos
conversando sobre algum assunto que envolvia a rivalidade entre facções criminosas,
quando fiz uma pergunta usando o termo “alemão” para me referir ao Comando Vermelho,
grupo rival da quadrilha à qual esses jovens disseram pertencer, a Amigos dos Amigos.
Quando eu fiz a pergunta, eles se olharam e cochicharam algo. Depois me olharam rindo,
em tom sarcástico. Achei que eles estivessem sendo irônicos, como se não devessem me
falar sobre algum assunto, ou coisa do tipo. Como já havia estado com os dois antes e
conhecia um deles razoavelmente, resolvi perguntar por que eles estavam rindo. Eles
desconversaram e eu insisti. Então o jovem com quem eu tinha mais intimidade, Bruno, de
18 anos, me perguntou, rindo: “Na boa, Dona Natasha, pode falar a verdade. Quando a
senhora tá lá com os alemão, a senhora chama a gente de que? Pode falar…”.
Naquele momento, Bruno lançou um olhar bastante antropológico sobre a minha
posição no campo de pesquisa e relativizou o uso da categoria “alemão”, a partir da minha
circulação por facções tidas como inimigas por eles. Então percebi que não tinha como
escapar da pergunta. É claro que quando entrevistei jovens de outra facção – o CV, no caso
- cheguei a usar o mesmo termo para me referir à quadrilha dos jovens que estavam ali
sentados na minha frente. Eu não podia responder negativamente à pergunta de Bruno, pois
estaria mentindo, e os jovens não gostam de “papo torto”. Então comecei pedindo a
compreensão deles em relação a isso e respondi que sim, que eu já deveria ter feito isso
algumas vezes, mas que isso não significava que eu estava assumindo uma posição a favor
de nenhum grupo ou indivíduo. Ao que ele completou: “Tá tranquilo. A gente sabe que a
senhora não tem facção”. Eles tinham acabado de relativizar a minha posição diante dessa
rivalidade de grupos criminosos pertencente a facções diferentes.
Os momentos do trabalho de campo expostos até aqui serviram para introduzir ao
leitor o pano de fundo da realização deste estudo e evidenciar as percepções de jovens e
funcionários sobre a pesquisa e a presença da pesquisadora nos institutos. Deixei de fora
inúmeras outras situações vividas no campo, pois seria impossível relatar todas as
experiências, mas selecionei alguns dos momentos mais marcantes e relevantes ao longo
dos 14 meses de campo. Mais do que uma experiência de pesquisa, o campo proporcionoume momentos e interações sociais que me modificaram. Nas palavras de Lévi-Strauss,
36
“Não é jamais ele nem o outro que ele (o etnógrafo) encontra ao final de sua pesquisa”
(Lévi-Strauss, 1960, Apud: Goldman, 2004: 463).
37
PARTE 2:
O SISTEMA SOCIOEDUCATIVO
2.1 – História da delinquência juvenil no Brasil e a construção social da
“menoridade”:
A emergência de um “problema social”:
A representação da adolescência como uma etapa que demarca a passagem da
infância para a vida adulta se deu, na Europa, a partir século XVIII, quando a educação
tornou-se obrigatória, restringiram-se os horários de trabalho para jovens e estes se
tornaram mais independentes, como observaram Adorno, Bordini & Lima (1999). É neste
momento também que os adolescentes passam a ser vistos pela opinião pública como
“problema” e sua imagem passa a ser associada à delinqüência. Matza (1999) também
chama a atenção para os passos históricos que levaram à criação do “rótulo” ou “imagem”
do delinqüente juvenil, no fim do século XIX e início do XX, nos EUA. De acordo com
Matza, contribuíram para o surgimento desta categoria social a criação de um código e uma
corte específica para jovens, a desorganização social, a modernização, a cultura de massa,
além das guerras mundiais e suas influências na economia.
No Brasil, os “menores” delinqüentes começaram a ser percebidos como “problema
social” e a receber atenção especial da Justiça também no fim do século XIX e começo do
passado, como descreve Vianna (1999). Neste momento, a apreensão de jovens que viviam
nas ruas e eram vistos como delinqüentes em potencial fazia parte de uma perspectiva
governamental higienista, de limpeza urbana e “ordenamento” do espaço público. As
chamadas “crianças desvalidas”, consideradas “futuros criminosos” passaram então a ser
alvo da intervenção de diversos setores da sociedade, sobretudo, a polícia, que, segundo
Vianna (1999) foi a instituição que consolidou a idéia de “menor”. Estes indivíduos passam
a ser vistos como detentores de patologias e “anormalidades”, não mais como crianças –
chamados de “vagabundos” e “vadios” -, e as políticas públicas voltadas a eles, de
repressão e encarceramento, tinham inspiração lombrosiana (Corrêa, 1982).
38
No Rio de Janeiro, os primeiros institutos exclusivos para a internação de menores de
idade foram a Escola Premonitória Quinze de Novembro, fundada em 1899, e a Escola de
Menores Abandonados (1907). Naquela época, os “menores” podiam ser levados também
para estabelecimentos destinados a maiores, como a Colônia Correcional de Dois Rios, a
Casa de Detenção e os patronatos agrícolas, até mesmo fora do Estado. Era comum que
jovens fossem recolhidos das ruas por vadiagem, baderna, mendicagem, e classificados
como “menores”, “vadios”, “desordeiros” e “perigosos” pela polícia, sendo encarcerados
sem nenhum processo judicial.
Em 1923, é criado o Juízo de Menores do Distrito Federal e, em 1927, é inaugurado o
Código de Menores, a primeira legislação específica para crianças e adolescentes. Para
Alvim e Valladares (1988), é neste momento que o termo “menor”, baseado na figura
jurídica recém criada, se populariza, “tornando-se uma categoria classificatória da infância
pobre” (Alvim e Valladares, 1988: 6). As sentenças dos juízes reforçavam a idéia de
periculosidade destes adolescentes, como neste caso, descrito por Batista, em que o juiz
afirma em sua sentença: “se trata de indivíduo perigoso pelo seu estado de corrupção
moral” (Apud Batista, 2003: 70). O tratamento concedido pelo Estado, naquele momento,
seguia uma “ideologia biologista e moralista” (Batista, 2003), segundo a qual os jovens
eram vistos como detentores de patologias sociais. O Código de Menores acabou se
tornando, segundo Alvim (1995), num “Código Criminal”, pois criminalizou as crianças
pretas e pobres no Brasil.
Em 1926, foi aberta a Escola João Luiz Alves, na Ilha do Governador. Naqueles
tempos, como conta Rizzini (2005), os adolescentes eram considerados “transviados” e
“subnormais” pelo governo, que colocava crianças abandonadas e aquelas consideradas
“criminosas” nos mesmos locais. Em 1941, foi fundado o Serviço de Amparo ao Menor
(SAM), com o intuito de resolver esse “problema social” de âmbito nacional. A partir da
década seguinte, o órgão foi alvo de denúncias de tortura e maus tratos, na mídia, e passou
a ser visto como “escola do crime” – por lá passaram figuras famosas como Cara de
Cavalo, Mineirinho, Mauro Guerra e Getulinho.
Como mostra Batista (2003), processos de jovens internados determinavam apreensão
por prazo indeterminado, até que se desse sua “reeducação”, levando jovens a ficarem anos
encarcerados, sem audiências judiciais. Os casos típicos eram relativos a furtos e a
39
mendicância. Exames médicos indicavam “personalidade instável” e “desajustamento
social”, e tais pareceres médicos, com conotação moral, embasavam as decisões judiciais.
Foi na década de 50 que surgiram o Instituto Padre Severino, então destinado ao
tratamento dos casos mais “difíceis”, como “menores de idade mental baixa” (Rizzini,
2005), e o Instituto Macedo Soares, em São Gonçalo. Data de 1964 a extinção do SAM e a
criação da Fundação Nacional de Bem-estar do Menor (Funabem) e das Fundações
Estaduais de Bem-estar do Menor (Febem), que faziam parte da doutrina de Segurança
Nacional instaurada pelo governo militar. Na visão dos chamados juízes menoristas, para se
garantir a ordem e a segurança nacional, esses “menores” precisavam ser encarcerados
(Alvim, 1995).
Este momento histórico, como ressalta Batista (2003), a polícia, a Justiça e a
Funabem contribuem para a criminalização dos usuários de drogas e apreendem jovens
meramente por “atitude suspeita”. A fundação tinha um “discurso ideológico fortalecedor
das representações negativas da juventude pobre, prenhe nos discursos darwinistas sociais e
dos determinismos da virada do século” (Batista, 2003: 78). A partir dos anos 70, o número
de “menores” processados pelo consumo ou tráfico de drogas aumentou significativamente,
coincidindo com o momento de entrada e expansão do mercado de cocaína no Rio de
Janeiro. Segundo Batista (2003), as apreensões por tráfico subiram de 24,2%, em 1978,
para 47,5%, em 1983.
Em 1976, a Câmara instaura a CPI do Menor, que reconhece a necessidade de se
modernizar a legislação vigente. Um novo Código de Menores (Lei 6.697/ 1979) foi
editado, então, em 1979, visando a tratar de “menores em situação irregular”, definição que
incluía, por exemplo, jovens abandonados pelos pais, “em perigo moral”, “com desvio de
conduta” e “vítima de maus tratos”.
Em 1990, o Código é substituído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
através da Lei Federal 8.069/ 1990. É no contexto de reformas no trato com o “menor”, que
passa a ser tratado legalmente como “jovem em conflito com a lei” que o Degase é criado,
em 1993. O Educandário Santo Expedito foi fundado em 1998 pelo Degase, depois de uma
rebelião que deixou a EJLA destruída. O ESE funciona hoje no prédio da antiga
penitenciária Muniz Sodré, ao lado do complexo penitenciário de Bangu.
40
ECA e a doutrina da proteção integral:
Sancionado em 1990, em substituição ao antigo Código de Menores, o Estatuto da
Criança e do Adolescente visava a uma adequação da legislação brasileira à Convenção
Internacional sobre os Direitos da Criança - resolução n.º 44 da Assembléia Geral das
Nações Unidas, de 20/11/1989 –, convenção esta que foi um marco mundial e significava
uma mudança na concepção jurídica das crianças, as quais passaram a ser consideradas
como sujeitos portadores de direitos assegurados por lei. Desta forma, o ECA tinha o
objetivo de implantar no Brasil a retórica global dos direitos humanos, da cidadania e da
igualdade jurídica dos indivíduos.
Nacionalizavam-se, assim, as diretrizes e orientações das Nações Unidas para as
políticas públicas voltadas aos menores de idade, seguindo a doutrina da proteção integral.
Segundo Schuch (2003), o estatuto:
(...) visa a ampliar a noção de cidadania para todas crianças e adolescentes,
tornando-os sujeitos de direito. Aparece num contexto de democratização da
sociedade brasileira, ampliando a participação da família e da comunidade nas
políticas de atenção aos direitos da criança e do adolescente.
(SCHUCH, 2003: 158).
Enquanto o Código de Menores tinha maior ênfase nas punições e medidas a serem
aplicadas a “menores em situação irregular”, o ECA enfatiza os direitos dos indivíduos
menores de 18 anos. Para Gonçalves (2005), antes do ECA, havia a predominância da idéia
de “infância perigosa” na legislação brasileira, que contribuía para uma diferenciação entre
“menor” e “criança”, como se esta última fosse a única portadora de direitos.
Antes do ECA, os jovens em conflito com a lei não tinham assegurado seu direito de
defesa perante o juiz e podiam ser encarcerados mediante mera suspeita, o que é proibido
hoje, conforme disposto no artigo 106 do estatuto: “Nenhum adolescente será privado de
sua liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da
autoridade judiciária competente”. Outra inovação do ECA foi a distinção das medidas
socioeducativas daquelas de proteção, ou seja, os programas de atendimento ao jovem em
conflito com a lei passaram a ser separados daqueles relativos a adolescentes cujos direitos
foram violados (como no caso de abandono dos responsáveis) - no passado, as unidades da
antiga Febem misturavam todos os casos nas mesmas unidades.
41
Se, por um lado, o ECA segue uma perspectiva universalista de garantia dos direitos
humanos, por outro, como alerta Schuch, ele aumentou o número de menores de idade
encarcerados, contribuiu para acentuar um visão do jovem atrelada à periculosidade e não
garantiu a aplicação de critérios jurídicos igualitários. Dos Santos (2004) interpreta estes
direitos universais como uma abstração: “(...) quanto mais se afirmam os direitos do
cidadão, mais eles se tornam abstratos e formais, e menos eles existem concretamente. A
democracia e os direitos da cidadania (...) são reservados e não universais” (Dos Santos,
2004: 46).
Criminalização da pobreza e sujeição criminal – a construção social do
“dimenor”:
Schuch (2003) revelou que, no Rio Grande do Sul, a maior parte dos adolescentes
penalizados pelo Juizado da Infância e da Juventude daquele Estado era de baixa renda e
tinha baixa escolaridade. O mesmo padrão se repete no Rio de Janeiro, conforme observouse nas unidades de internação. Na Escola João Luiz Alves e no Educandário Santo
Expedito, tanto no discurso dos jovens internos quanto no de agentes de disciplina, impera
a idéia de que adolescentes de classes média e alta não vão parar ali. Por mais que existam
alguns casos de internação destes jovens, eles parecem ser exceção.
Em uma tarde de trabalho de campo na EJLA, acompanhei um culto religioso no qual
uma voluntária expôs aos jovens matérias de jornais e casos de pessoas oriundas de famílias
de classe baixa que conseguiram empregos. Toda a explicação fazia parte de uma tentativa
de motivar os jovens a buscarem empregos e saírem do que eles chamam de “vida do
crime”. A voluntária então dirigiu-se a Daniel, de 16 anos, para lhe perguntar se ele não
gostaria de voltar a trabalhar com o pai, como tinha feito depois de sua primeira passagem
pela EJLA. Daniel indignou-se com os comentários da voluntária e, exaltado e com raiva,
começou a reclamar da Justiça, acusando-a de beneficiar jovens das classes média e alta:
“Vou até o final nessa vida, até a morte. Não vou mudar. Vou sair daqui com 17 anos. A
juíza me trancafiou. Mas playboyzinho (jovem de classe média ou alta) chega na DPCA e
não vem pra cá. Não. Só a gente que vem”. A crítica de Daniel acirrou os ânimos dos
42
jovens, que logo concordaram e também reclamaram do tratamento desigual dispensado
pela Justiça a adolescentes oriundos de classes diferentes.
Já na opinião de alguns funcionários do Degase, quando o adolescente tem um bom
advogado (em vez de um defensor público), está matriculado na escola e tem pais que
podem lhe dar “boas condições de vida”, dificilmente o juiz determina-lhe uma medida de
privação de liberdade. Infrações semelhantes, de acordo com agentes e diretores, podem
acarretar medidas diferentes.
Becker (1977) observou que a aplicação das sanções a desviantes não é feita de
maneira uniforme, pois alguns grupos ou indivíduos são mais sujeitos a punições. Becker
inclusive utilizou o exemplo da delinqüência juvenil para mostrar que regras são mais
aplicadas a algumas pessoas: “meninos de áreas de classe média não sofrem um processo
legal que vá tão longe quando são presos como garotos de favelas. (...) Essa variação ocorre
mesmo se a infração original da regra for a mesma nos dois casos” (Becker, 1977: 63).
No Brasil, tradicionalmente marcado por uma profunda desigualdade social, há,
portanto, uma “penalização da pobreza” (Schuch, 2003), em que uma legislação
supostamente universal e igualitária é aplicada desigualmente. Desta forma, por mais que
tenha sido extinto o “Código de Menores”, prevalece na Justiça, na polícia, nas unidades do
Degase e no senso comum, em geral, a idéia de o típico “menor infrator” é um jovem de
classe baixa, assujeitado como “infrator” e muito mais freqüentemente apreendido e
encarcerado do que os jovens de classes mais abastadas.
(...) apesar de o ECA propor-se a retirar a “menoridade” classicamente atribuída
às crianças e adolescentes de classes populares da população brasileira, a
pesquisa mostrou que o recorte de classe continua a operar como um importante
fator para o processo de penalização.Por um lado temos a uma lei considerada
avançada em suas posições igualitárias e universalizantes e, por outro, uma
prática de intervenção social que toma a desigualdade social como uma variável
determinante para a penalização da pobreza.
(SCHUCH, 2003: 192)
A “penalização da pobreza” e a punição diferenciada de jovens oriundos de favelas
estão relacionadas à idéia de sujeição criminal desenvolvida por Misse (1999), segundo a
qual alguns tipos sociais seriam considerados como portadores de uma subjetividade
“criminosa”, portanto, vistos como propensos a práticas crimináveis e mais frequentemente
(in) criminados pela Justiça do que os não-assujeitados. O processo de sujeição criminal
43
diferencia os criminosos dos não-criminosos, caracterizando tipos sociais associados ao
crime. Estes tipos sociais são os “suspeitos” favoritos dos agentes da lei, que lhes atribuem
uma identidade passível de incriminação, em um “processo social que antecipa
preventivamente o processo de incriminação” (Misse, 2008:192). Para Misse, é como se
houvesse uma “cristalização” do crime no indivíduo.
Os adolescentes que cumprem medida socioeducativa junto ao Degase lá chegaram
depois de serem apreendidos pela Polícia Militar, passarem por uma investigação da Polícia
Civil, cujo resultado foi encaminhado a uma promotoria da Infância e da Juventude e gerou
um processo judicial, numa vara comum ou da Infância e da Juventude, cujo juiz
determinou o cumprimento de medida de internação – não necessariamente nesta ordem,
pois o jovem pode ser apreendido no meio desta seqüência, por exemplo. Todo este
processo legal de incriminação (Misse, 1999) ao qual o adolescente é submetido, depois de
cometer um ato infracional, pode ser acompanhado também, ou precedido, pela sujeição
criminal, definida por Misse da seguinte forma:
(...) um processo social que incide sobre a identidade pública e muitas vezes
íntima de um indivíduo. Para que haja sujeição criminal, é preciso que certos
tipos de cursos de ação, representados não apenas como desviantes, divergentes,
problemáticos ou ilegais, mas interpretados principalmente como criminais,
inclusive pelo agente, se reiterem na expectativa social a propósito desse agente.
(MISSE, 1999: 210)
Misse (1999) alerta que pode haver incriminação sem sujeição criminal, mas não
existe sujeição sem incriminação (enquanto a sujeição tem seu foco no sujeito, a
incriminação põe a ênfase na transgressão à lei.) Três aspectos são necessários para que
haja sujeição criminal: o primeiro deles diz respeito aos procedimentos que levam a uma
“exclusão criminal” do assujeitado, seja através de acusações informais ou da incriminação;
o segundo, à expectativa de que o indivíduo tenha uma tendência a ser criminoso; e, por
último, às representações que o próprio sujeito ou pessoas próximas a ele fazem de seu
comportamento, ao tentar justificá-lo ou explicá-lo, ou seja, a aceitação da classificação.
Desta forma, os jovens internados nas unidades do Degase são potenciais assujeitados
criminais, muitos deles já taxados como criminosos antes de sua culpa ser comprovada – o
assujeitamento por policiais será discutido no capítulo 4 -, geralmente a partir de
estereótipos e suspeições aplicados a eles. Os adolescentes pretos ou pardos, de classe baixa
44
e moradores de regiões dominadas por facções criminosas de traficantes de drogas são
tipicamente assujeitados como “menores infratores”, “pivetes”, enquanto essa expectativa
criminal não é aplicada com tanta frequência e intensidade a jovens de outras classes9.
Basta um jovem negro, com roupas sujas passar na rua para que seja classificado por
muitos como “trombadinha” e, se ele estiver em “atitude suspeita”, provavelmente será
levado a uma delegacia para um “Sarc”, o procedimento policial através do qual se a vida
pregressa do suspeito em um banco de dados da Polícia Civil. Esses adolescentes de classe
baixa, assujeitados, acabam sendo mais comumente incriminados do que aqueles nãoassujeitados, sobre os quais não há suspeita.
O processo de construção da sujeição, desta forma, aplica a indivíduos categorias
como “bandido”, “traficante”, “marginal”, “menor”, “trombadinha”, “pivete”, etc. Tanto a
população leiga quanto as instituições do Estado acabam por classificar estes indivíduos
como pertencentes ao “mundo do crime”, e muitos deles se vêem como assujeitados,
discriminados, sem chances de saírem “da vida do crime”.
Nos corredores das unidades de internação, é freqüente escutar agentes de disciplina
chamando internos de “dimenor”, “vagabundo”, “marginal”, “perigoso” e “pivete”, como
se eles fossem portadores de uma subjetividade criminosa. Inclusive ouvi diversos agentes
reclamando sobre as “amenidades” do ECA, como o prazo máximo de internação (de três
anos), e o fato de os jovens serem liberados aos 21 anos. Muitos dos agentes são a favor da
redução da maioridade penal.
Um agente da EJLA, que é a favor da redução, um dia revelou não acreditar que
jovens maiores de 14 anos pudessem “deixar o crime” ou “mudar de vida”, como se fossem
“irrecuperáveis”: “Depois dos 14 anos, não tem mais jeito, porque a personalidade está
formada”. Outro funcionário da EJLA me disse uma vez: “Isso aqui é uma hipocrisia.
Desses garotos, 90% não tem mais jeito. É botar pra matar mesmo. Eles já nascem no
mundo da criminalidade, no meio do inferno”. Esses comentários refletem o imaginário da
maioria dos funcionários das unidades e a forma como se relacionam com os internos É
como se a sujeição os tornasse casos perdidos, como se os atos infracionais tomassem conta
do sujeito, estando atrelados a ele. A idéia do “menor infrator” está presente, inclusive, nos
9
Cardoso (2005) investigou como se dá o processo de sujeição criminal em casos de jovens considerados
“pitboys”.
45
discursos dos próprios jovens, que, muitas vezes, se identificam com tal identidade, auto
denominando-se “dimenor”, em oposição ao “dimaior”.
A experiência de internação faz parte, assim, de um processo de construção social do
“menor infrator” e demarca uma diferença entre “menores” e “crianças”, assujeitados e
não-assujeitados. Vianna (1999) se propôs a estudar este processo de “menorização” a
partir da relação entre a polícia e jovens por ela apreendidos, entre 1910 e 1920. A autora
argumenta que, ao deter e classificar jovens como “menores”, a polícia criava a própria
identidade de “menores”. Desta forma, a relação destes com a polícia serviria para
demarcar a fronteira entre jovens “normais” e “desviantes”. Ou seja, entre a detenção e a
internação, emergiria a diferença entre “menor” e “não menor”: “o uso desse termo
(menor) implica na construção simbólica de uma representação social que comporta
significados absolutamente distintos dos que normalmente são associados às idéias de
infância” (Vianna, 1999: 21).
Assim como a polícia contribui para essa construção social da categoria “menor”,
também a internação e os operadores do sistema socioeducativo participam ativamente
deste assujeitamento. Para Adorno (1993) os jovens em conflito com a lei se convertem em
“menores” ao “inscreverem sua história ao lado da história das agência de controle da
ordem pública” (Adorno, 1993:193). A figura do “menor”, segundo Adorno (1993), é
resultado tanto da maneira pela qual o Estado realiza suas funções repressivas, quanto das
relações e vínculos que estes adolescentes estabelecem com a polícia, a Justiça e o sistema
socioeducativo. É a partir desta última relação que esta pesquisa pretende entender os
jovens em conflito com a lei, explicitando como a experiência vivenciada nessas
instituições influencia em suas identidades e subjetividades e como se relacionam os
adolescentes apreendidos.
2.2 – O Sistema de Justiça Juvenil atual:
Apesar de a proposta deste estudo não ser a realização de uma análise institucional a
respeito da incriminação juvenil, faz-se necessária uma apresentação do Sistema de Justiça
Juvenil, para que o objeto desta pesquisa seja melhor compreendido. A partir de um
detalhamento dos caminhos percorridos por adolescentes autores de atos infracionais na
46
Polícia, na Justiça e nas instituições administradas pelo Degase, será possível entender de
maneira mais clara o momento da trajetória institucional em que se encontram os
entrevistados, bem como as etapas percorridas até a internação – para um resumo
esquematizado das etapas, ver anexo 1.
Os atos infracionais cometidos por adolescentes na cidade do Rio podem ser
registrados em delegacias distritais ou na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente
(DPCA), a única especializada em investigar casos de jovens em conflito com a lei. Todos
as ocorrências que acontecem nas circunscrições de 1ª a 9ª delegacias distritais10 e que têm
a participação de menores de idade – não como vítimas, mas como autores – devem ser
encaminhadas à DPCA. Os casos que ocorrem fora dessas regiões são registrados em
delegacias distritais próximas ao local do crime, mas, se houver apreensão do adolescente,
ele deve ser encaminhado no mesmo dia à DPCA. Na delegacia, quando há apreensão de
adolescente em flagrante, lavra-se o Auto de Apreensão pela Prática do Ato Infracional
(AAPAI). Quando ele não é apreendido em flagrante, é feito um registro de ocorrência, o
qual pode gerar um Auto de Investigação de Ato Infracional (AIAI), análogo ao inquérito
policial.
Se o jovem for pego em flagrante, ele pode ou não ficar apreendido preventivamente
na DPCA, por até 24h, decisão esta a critério do delegado. O Estatuto da Criança e do
Adolescente determina que o jovem seja liberado da delegacia perante a presença dos pais,
“exceto quando, pela gravidade do ato infracional e sua repercussão social, deva o
adolescente permanecer sob internação para a garantia de sua segurança pessoal ou
manutenção da ordem pública”, conforme artigo 174 da lei. Em seguida, o adolescente deve
ser encaminhado ao Centro de Triagem e Recepção (CTR) do Degase, onde pode ficar por
até 48h.
Nas primeiras 24 horas, o jovem será ouvido em oitiva no Ministério Público, que
pode ter a participação de parentes, vítimas e testemunhas. Com base no AAPAI (ou no
AIAI) e na oitiva, o promotor pode solicitar o arquivamento dos autos, a remissão à
delegacia ou oferecer “representação à autoridade judiciária, propondo a instauração de
procedimento para aplicação da medida socioeducativa” (art. 182 do ECA). No caso de
10
Estas delegacias são responsáveis por ocorrências de áreas como Centro, Santa Teresa, Rio Comprido,
Flamengo, Catete, Laranjeiras e Glória.
47
representação, o juiz competente – na cidade do Rio a 2a Vara da Infância e da Juventude é
a única destinada ao julgamento de autores de atos infracionais – deve decidir
imediatamente pela internação provisória ou não, e conduzir uma Audiência de
Apresentação, interrogando o jovem e seus familiares.
O jovem que tiver de ser internado provisoriamente é levado ao Instituto Padre
Severino, podendo lá permanecer por até 45 dias, prazo legal para a decisão judicial.
Durante este período, dá-se a fase de instrução judicial, em que o juiz pode solicitar
diligências e o jovem tem direito ao contraditório, através de advogado ou defensor
público. Na Audiência de Continuação11, o juiz ouvirá as testemunhas e vítimas do caso, a
opinião do promotor público e a da defesa, e anunciará sua decisão final.
Caso o juiz considere o adolescente culpado pelo ato infracional, determinará a
aplicação de uma medida socioeducativa, dependendo de “sua capacidade de cumpri-la, as
circunstâncias e a gravidade da infração”, como expressa o parágrafo 1º do artigo 112 do
ECA. As medidas aplicáveis aos autores de ato infracionais, previstas em lei, são:
advertência, reparação do dano, prestação de serviços comunitários, liberdade assistida,
semiliberdade e internação, além das previstas no artigo 101 do ECA12. O Degase – órgão
vinculado à Secretaria Estadual de Educação13 - é responsável, no Estado do Rio, pela
aplicação das medidas de internação, semiliberdade e liberdade assistida (a qual está em
processo de municipalização e é também aplicada pela 2ª Vara).
Na cidade do Rio de Janeiro, a 2ª Vara da Infância e da Juventude é o único juízo
competente para julgar os adolescentes autores de atos infracionais cometidos neste
município. Mesmo casos que ocorrem fora da cidade podem ser deprecados para esta Vara,
através de carta precatória, uma prática bastante comum, principalmente se os municípios
11
É possível que o juiz realize ambas as audiências, a de Apresentação e a de Continuação, de uma só vez, de
acordo com o seu entendimento.
12
O art. 101 prevê o encaminhamento aos pais ou responsável; orientação, apoio e acompanhamento
temporários; matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; inclusão
em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; requisição de tratamento
médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; inclusão em programa oficial ou
comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; abrigo em entidade; e colocação
em família substituta.
13
No início de 2007, o Degase pertencia à Secretaria de Direitos Humanos e Assistência Social. Depois de a
primeira-dama estadual visitar duas unidades do sistema e surpreender-se com as condições encontradas, o
governo estadual começou uma intervenção no Degase, que passou a ser vinculado à Secretaria de Estado da
Casa Civil. No primeiro semestre de 2008, o órgão passou a ser da pasta da Educação.
48
são vizinhos ao Rio. Em todo o Estado do Rio, há, além desta Vara, apenas mais uma
especializada: a Vara da Infância, Juventude e Idoso em Teresópolis. Neste estudo,
concentrou-se a análise nos dados da 2a Vara da Infância e da Juventude, já que objetiva-se
primordialmente compreender padrões e aspectos sobre a juventude em conflito com a lei
da cidade Rio de Janeiro.
Para se ter uma idéia da abrangência de casos que passam pela 2a Vara, em 2005,
foram 5724 adolescentes julgados, em 2006, 5931, e, em 2007, esse número caiu para
4521. É preciso ressaltar que esse quantitativo não exclui a passagem dos mesmos
adolescentes pela Vara naquele ano. Assim, se um mesmo jovem passou duas vezes pela
Vara, em dois atos infracionais distintos, ele aparece duas vezes no cômputo geral. Além
disso, os dados sobre o ano de 2008 são parciais, devido a um problema no banco de dados
da Vara, o chamado Projeto Comarca, no segundo semestre. Os dados do segundo semestre
de 2008 foram obtidos a partir das planilhas feitas pelo atendimento do Serviço Social do
Plantão Interinstitucional da Vara, e não do banco de dados geral. Por isso, o quantitativo
de 2008 – 2875 no total - é menor do que os demais, conforme o gráfico 2.1.
Gráfico 2.1 - Adolescentes que passaram pela 2a Vara
7000
6000
5000
5931
5724
4928
4904
4521
3838
4000
Total
Sexo masculino
Sexo feminino
2875
3000
2459
2000
1027
1000
796
683
416
0
2005
2006
2007
2008*
Ano
*Dados parciais
49
Para complementar os dados da 2a Vara, o gráfico 2.2 expõe o total de apreensões de
jovens em conflito com a lei realizadas pela Polícia Civil, entre 2002 e 2006, conforme foi
divulgado pelo Dossiê Criança e Adolescente 3, do Instituto de Segurança Pública do
Estado do Rio de Janeiro. As apreensões feitas pela polícia, naturalmente são menores do
que o número de jovens julgados na Vara, já que nem todas as apreensões geram um
procedimento judicial. Percebe-se que as apreensões diminuíram sensivelmente neste
período de tempo.
Gráfico 2.2 - Adolescentes apreendidos pela
Polícia Civil
4500
4000
3500
3000
2500
2000
1500
1000
500
0
3956
3382
2206
2002
2003
2004
2026
1890
2005
2006
Ano
No gráfico 2.3, estão ilustrados os atos infracionais julgados pela 2a Vara entre os
anos de 1996 e 2008, de acordo com a sua tipificação legal14. Chama a atenção a
predominância de infrações relacionadas ao consumo e à venda de drogas, entre 1996 e
2005. Até a década de 90, conforme mostrou Misse (1973, 2008), o furto era o ato
infracional predominante, tendo sido ultrapassado pelo roubo em alguns anos na década de
80. Já em meados da década de 90, os roubos passaram a ser mais comuns que os furtos,
tendência que se manteve até o ano 2001. Daí em diante, furtos e roubos oscilaram entre si,
atingindo patamares semelhantes.
Já os homicídios mantiveram-se em níveis bastante baixos em relação aos atos
infracionais de maior incidência, ao longo de toda a série histórica. O ano em que foram
14
Também é necessário fazer uma ressalva de que, a partir de 2005, a 2a Vara passou a divulgar os dados
utilizando categorias mais abrangentes, como atos infracionais contra o patrimônio e contra a pessoa; por
isso, na série histórica de atos infracionais há alguns lapsos deste ano em diante. Além disso, em 2008, os
dados divulgados são parciais.
50
julgados mais homicídios foi o de 2003, com 86 casos. Nota-se também que, entre 2004 e
2006, houve uma queda dos processos de roubos, furtos e entorpecentes, mas não cabe,
neste estudo, apontar as causas para tal queda.
Gráfico 2.3 - Atos infracionais
3500
3250
3000
2750
atos infracionais
2500
2250
Furto
2000
Roubo
Entorpecentes
1750
Porte de arma
1500
Homicídio
Lesão corporal
1250
1000
750
500
250
0
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008*
ano
*Dados parciais
O incremento de delitos relacionados a drogas começou ainda na década de 80 –
como expuseram Dowdney (2003), Sento-Sé (2008) e Misse (2008). Mas foi no ano de
1996 que esses atos infracionais ultrapassaram os demais, atingindo seu ápice em 1998,
com 3445 processos. Neste mesmo ano, os furtos, roubos e lesões corporais caíram
significativamente.
De 1998 em diante, percebe-se que o número de atos infracionais relativos a
entorpecentes sofreu uma queda constante, com exceção do ano de 2002. A partir do ano de
2004, o número de infrações relacionadas ao uso e à venda de drogas atingiu níveis muito
próximos às de furtos e roubos. Em 2006, os delitos de furtos e entorpecentes se igualaram,
com exatamente 648 processos. A estatística parcial de 2008 demonstrou ainda que os
roubos ultrapassaram ligeiramente as infrações ligadas ao consumo e à venda de drogas,
com 279 e 269 processos, respectivamente.
51
O gráfico 2.4 demonstra a proporção de atos infracionais relativos ao uso e ao tráfico
de drogas, bem como os valores absolutos destes delitos julgados na 2a Vara. Com exceção
de 2006, o tráfico superou o uso em todos os outros anos em que os dados foram
divulgados em separado.
Gráfico 2.4 - Consumo e tráfico de entorpecentes
4000
3445
3500
atos infracionais
3000
2500
2298
2278
2207
Entorpecentes
2028
2000
1805
Tráfico
1778
Uso
1631
1500
1460
1415
1378
1356
1237
1214
1048
1000
851
1294
879
844
652
500
1204
1011
692
548
811
648
574
415
395
370
278 325
269
146
123
0
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008*
ano
*Dados parciais
A seguir, o gráfico 2.5 expõe as decisões judiciais promovidas na 2a Vara da Infância
e da Juventude entre os anos de 2005 e 2007. Os dados incluem as decisões tomadas em
audiências de apresentação e continuação, portanto, referentes a diferentes etapas da
incriminação juvenil. Desconsiderando-se as decisões não especificadas, em todos os três
anos, a internação provisória aparece com mais frequência, sugerindo que é praxe os jovens
aguardarem no Padre Severino internados provisoriamente durante a instrução judicial. A
medida de internação, que nos interessa neste trabalho, foi determinada em 343 casos em
2005, em 121, em 2006, e em 274, em 2007.
52
Gráfico 2.5 - Decisões 2ª Vara
646
Outras
141
decisões judiciais
Advertência
Prestação de Seviços à
Comunidade
6
37
551
139
433
298
Liberdade Assistida
175
Semiliberdade
121
Internação
598
700
274
343
428
5
0
2007
2006
2005
285
Internação provisória
Remissão
7124
313
518
1060
41
385
200
400
600
800
1000
1200
1400
1600
1800
2000
quantidade
A medida de internação é a punição mais severa, aplicada em casos de “ato
infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa; por reiteração no
cometimento de outras infrações graves; por descumprimento reiterado e injustificável da
medida anteriormente imposta” (artigo 122 do ECA). Cabe esclarecer que, quando o juiz
determina a internação, o seu tempo de duração é indeterminado, podendo chegar ao prazo
máximo de três anos, durante os quais os internos devem receber escolarização e
profissionalização e participar de atividades culturais, esportivas e de lazer, dentre outras
exigências.
Não existem penas proporcionais a atos infracionais na Justiça da Infância e da
Juventude, como acontece com maiores de idade. Portanto, o tempo de internação não pode
ser determinado a priori15. Enquanto estiver internado, o adolescente será reavaliado a cada
seis meses pelo juiz, em audiências de Reavaliação. Com base em relatórios psico-sociais
elaborados pela equipe técnica das unidades do Degase e de acordo com o comportamento
do jovem na internação, o juiz opta, na Audiência de Reavaliação, pela continuação da
internação ou progressão da medida. Os relatórios técnicos contêm pareceres que sugerem
15
Apesar de não poder ser determinado um tempo de internação, alguns jovens me disseram que os juízes
haviam dito que eles iriam “pegar três anos”, ou seja, o máximo possível segundo o ECA, devido à seriedade
de seus crimes. Tal ameaça feita por um juiz é, portanto, ilegal, pois não se pode determinar um tempo para o
acautelamento sem as reavalições semestrais.
53
ou não a progressão da medida, sugestões estas que parecem ter um grande peso na decisão
judicial, conforme observei em algumas audiências. Se receber a progressão, o jovem
passará a cumprir uma medida em meio semiaberto, no Degase ou na 2ª Vara. Ao
completar 21 anos, o jovem é liberado compulsoriamente do sistema socioeducativo.
Quando recebem a medida socioeducativa de internação, os jovens do sexo
masculino são levados a uma das seguintes unidades: Escola João Luiz Alves, na Ilha (para
jovens que cometeram infrações quando tinham entre 12 e 15 anos ou foram julgados por
Comarcas de fora da capital do Estado do Rio), Educandário Santo Expedito, em Bangu
(para adolescentes que cometeram atos infracionais com 16 e 17 anos), e CAI Baixada, em
Belford Roxo (cujos internos têm entre 12 e 20 anos). Já as jovens do sexo feminino são
todas encaminhadas para a Escola Santos Dumont, na Ilha, que serve tanto para internação
provisória quanto permanente.
Além destas seis unidades de internação, o Degase possui 17 de semiliberdade: os
Centros de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor (CRIAMs), espalhados pelas
regiões do Estado. Quando a aplicação da medida socioeducativa de liberdade assistida fica
sob a responsabilidade do Degase, os jovens devem comparecer periodicamente aos Pólos
de Liberdade Assistida, para acompanhamento técnico.
Em junho de 2008, havia cerca de 750 jovens, com idades entre 12 e 20 anos, nas seis
unidades de internação do Degase. Havia ainda cerca de 250 jovens em semiliberdade e
600 em liberdade assistida no mesmo departamento. Ao longo da pesquisa, o número de
internos variou bastante no Educandário Santo Expedito e na Escola João Luiz Alves,
sendo influenciado de acordo com a intensidade de progressões de regime concedidas pelos
juízes, o volume de operações policiais e a época do ano – em dezembro, por exemplo,
geralmente mais jovens dão entrada no sistema socioeducativo.
Em 2007, quando foi iniciado o trabalho de campo, havia cerca de 270 internos no
ESE, cuja capacidade era de 160. Mais de um ano depois, o número de adolescentes no
ESE caiu para cerca de 220, enquanto a capacidade máxima aumentou - devido a obras
realizadas nos alojamentos - passando para 267. Cabe mencionar que, na época de sua
fundação, em 1998, o ESE chegou a abrigar cerca de 500 internos. Já na EJLA, no começo
da pesquisa havia cerca de 130, mas houve momentos em que a unidade chegou a abrigar
quase 170 internos. A lotação máxima da EJLA é de 119 internos. Abaixo, o número de
54
internos e a capacidade de cada internato do Degase, segundo dados divulgados pela
diretoria, em junho de 2008.
É preciso mencionar que a resolução nº 46/96 do Conselho Nacional de Direitos da
Criança e do Adolescentes (Conanda) determina que as unidades de internação tenham, no
máximo, quarenta jovens, em módulos com até 15 internos e quartos para até três
adolescentes.
Tabela 2.1 – Instituições de internação
CAPACIDADE
INTERNOS
Escola João Luiz Alves
119
137
Educandário Santo Expedito
267
228
CAI Baixada
124
175
Escola Santos Dumont
39
31
Instituto Padre Severino
169
148
Centro de Triagem
37
30
Total
755
749
*Dados do Degase referentes a junho de 2008
A tabela a seguir foi divulgada pelo Degase, em 2007, e diz respeito aos atos
infracionais dos adolescentes que passaram por todas as unidades do departamento,
incluindo os CRIAMs e Pólos de Liberdade Assistida, em 2006, totalizando 2300 internos.
As infrações foram cometidas, portanto, por jovens que receberam as medidas de
internação (provisória ou não), semiliberdade e liberdade assistida. Curiosamente, os jovens
que cometeram tráfico de drogas foram a maioria dos acautelados no Degase, seguidos
pelos que cometeram roubo, furto e uso de drogas.
55
Tabela 2.2 – Atos infracionais dos adolescentes do Degase (2006)
INFRAÇÃO
ADOLESCENTES PERCENTUAL
Tráfico de drogas
805
35%
Roubo
667
29%
Furto
391
17%
Uso de drogas
115
5%
Tentativa de roubo
69
3%
Homicídio
46
2%
Porte de arma
46
2%
Lesão corporal
23
1%
Desobediência
30
1%
Tentativa de homicídio
25
1%
Receptação
25
1%
Atentado violento ao pudor
2
0%
Desacato
18
1%
Estupro
14
1%
Latrocínio
9
0,39%
Ameaça
0
0%
Dano ao patrimônio
7
0,30%
Extorção mediante sequestro
2
0,08%
Falsa identidade
2
0,08%
Formação de quadrilha
2
0,08%
Incêndio
2
0,08%
TOTAL
2300
100
*Esses dados incluem todos os adolescentes que passaram pelo Degase, não só pela
internação, como também pela semiliberdade e a liberdade assistida.
56
PARTE 3:
A ROTINA NAS INSTITUIÇÕES E O PERFIL DOS INTERNOS
3.1 – A rotina dos jovens nas unidades de internação pesquisadas:
Eram por volta das 15h30 em Bangu, o sol ainda forte aquecia a temperatura intramuros no Educandário Santo Expedito naquela tarde de agosto. Na sala de vídeo e na área
perto da biblioteca, cerca de 10 internos recebiam a visita de seus filhos e irmãos mais
novos, acompanhados de suas mulheres, namoradas ou mães. O clima era amistoso. Nada
de briga de facções. Ali havia jovens de todos os grupos inimigos, mas a rivalidade estava
em suspensão naquele encontro, em respeito às famílias. Um interno segurava a sua
filhinha de um ano pelas mãos, ajudando-a a caminhar, sob o olhar da mãe, que aparentava
ter menos de 20 anos. Orgulhoso, vibrava com os passos da filha.
Os dois irmãos mais novos de Luís, 16 anos, internado por roubo, mostravam a ele
movimentos que haviam aprendido nas aulas de capoeira, dando piruetas e ficando de
cabeça para baixo. Luís assistia, animado, e gingava capoeira com os irmãos. A irmã mais
velha, de 15 anos, implicava com Luís, em um misto de saudade e raiva por ele estar longe.
Era o primeiro dia em que seus quatro irmãos o visitavam no ESE, depois de quatro meses
de internação. A mãe de Luís, uma empregada doméstica paraibana, se emocionava ao ver
os filhos brincando com o irmão mais velho. Tentava segurar as lágrimas para que Luís não
percebesse a tristeza no fundo de seus olhos. “Eu sempre saio daqui chorando, mas tento
não chorar na frente dele, para ele não ficar preocupado. Mas nem dormir eu consigo mais.
Já perdi oito quilos”, confidenciou a mãe.
A alguns metros dali, duas grades de ferro depois, na escola da unidade, dezenas de
jovens integrantes do Comando Vermelho terminavam mais uma tarde de aula. Alguns
agentes de disciplina coordenavam a saída das turmas diretamente para a quadra, cuja porta
de trás fica logo em frente à porta da escola. Adolescentes com as mãos para trás, calados,
dirigiam-se enfileirados para a quadra, seguindo as ordens dos agentes. Mas nem todos
puderam sair da escola e aproveitar alguns minutos de recreio na quadra. Dois internos
sempre ficavam por último. São os chamados “mancões” (que cometeram erros graves, na
visão dos internos). Um deles era Leonardo, 18 anos, considerado “X9” (delator). Todos os
57
dias em que eles iam à escola era assim: tinham de esperar todo mundo voltar aos seus
alojamentos para depois serem escoltados por agentes de disciplina para o “seguro”
(alojamento separado dos demais). Colocá-los na quadra, segundo os agentes, poderia ser
um risco para a integridade física dos dois.
Naquele momento, pedi aos agentes a permissão para entrar na quadra e conversar
com alguns internos, como eu costumava fazer. Da porta de trás da quadra, alguns internos
acenaram para mim. Pedido negado. Aquele não era um momento propício para a minha
presença. Eles só iriam permanecer ali por alguns minutos mais, até que a visita de filhos e
irmãos acabasse na sala de vídeo. Até que todos os familiares saíssem da unidade e os
internos visitados voltassem para os seus alojamentos, as portas da quadra tinham que ficar
fechadas. Uma questão de controle e segurança. Até porque, na visita das crianças havia
adolescentes do Terceiro Comando e do Amigos dos Amigos, os quais jamais poderiam
estar transitando pela unidade no mesmo momento em que aqueles internos que estavam na
quadra – do Comando Vermelho. Uma vez, em 2007, foi justamente no momento da volta
do colégio e da aula de informática que as facções rivais se encontraram, dando início a
uma briga generalizada, que deixou feridos. O jeito foi pedir para os agentes perguntarem
aos jovens se havia voluntários para conversarem comigo depois que saíssem da quadra.
Terminada a visita das crianças, os adolescentes que batiam papo e bola na quadra
começaram a ser chamados para voltar aos alojamentos. Dessa vez, os agentes gritavam o
número de cada alojamento de cada vez, mandando-os seguir em fila, sem papo, pela porta
da frente da quadra, que fica perto de uma passagem para os alojamentos do Comando
Vermelho. “Acabou a festa”’, anunciava um agente. Quem saía da quadra falando, logo
levava um passa-fora: “Cala a boca se não o seu alojamento vai ficar sem TV”. Agentes de
disciplina, um ao lado do outro, ficavam estrategicamente posicionados na parte que dá
acesso aos alojamentos das outras facções. E fiscalizavam a postura dos jovens, mandandoos colocar as mãos para trás. Alguns jovens conhecidos sorriam ou acenavam
discretamente para mim, com a mão abaixada. Um dos adolescentes que passou era exinterno da EJLA e me cumprimentou. Perguntei o seu número rapidamente, para conversar
com ele depois. Fui então orientada a não ficar muito perto, para não chamar a atenção e
também para não ver o que acontecia depois daquela fila: a revista. Antes de entrarem nos
alojamentos, os internos tinham que ser revistados na área destinada ao banho-de-sol. Uma
58
praxe a ser cumprida toda vez em que voltam de uma atividade. Só depois de todos os
adolescentes que estavam na quadra serem levados aos alojamentos, é que os dois internos
“do seguro”, como são chamados pelos agentes, puderam passar.
Depois dali, todos eles iriam tomar banho e se preparar para o jantar, servido nos
próprios alojamentos, pois o refeitório estava em obras. Não iriam mais deixar os
alojamentos até o dia seguinte. A noite é passada lá dentro, conversando, assistindo TV,
ouvindo rádio ou, até mesmo, vendo DVD. O agente avisou que iria me deixar conversar
com dois jovens, numa das salas de atendimento técnico. Este funcionário, sempre
desconfiado sobre a minha presença na unidade, pediu para que deixássemos a sala da porta
aberta, e volta e meia vinha espiar o que estava acontecendo – parecia estar escutando pelo
lado de fora. A conversa, sobre a experiência da internação e as regras seguidas pelos
internos, estava produtiva e animada, e os adolescentes muito solícitos e com vontade de
falar, mas não pôde durar muito – deve ter se estendido por pouco mais de 40 minutos. O
agente logo voltou e, pedindo desculpas, disse que já havia passado da hora de eles
voltarem para o alojamento – ou seja, eu também deveria ir embora, pois logo iria
anoitecer, e a minha presença não era permitida à noite.
Essa sucessão de fatos corriqueiros, em uma tarde de trabalho de campo, no ESE,
ilustra diversos aspectos da rotina daquela instituição e das dinâmicas das interações sociais
travadas ali dentro. A partir dessa descrição, será apresentado, nas próximas páginas um
pouco do cotidiano das duas unidades, abordando a questão da divisão faccional, as
atividades de que os internos participam, as relações com os funcionários, as estruturas
físicas dos institutos e algumas tensões que afetam a rotina desses locais de internação.
A questão do pertencimento a facções criminosas salta aos olhos de quem visita esses
institutos pela primeira vez e é determinante no dia-a-dia dos adolescentes, influenciando
os seus círculos de relacionamentos e podendo gerar conflitos - como já aconteceu no ESE.
Nas duas instituições pesquisadas, os jovens ficam divididos em alojamentos de acordo
com as facções a que pertencem, contrariando os critérios de separação determinados no
artigo 123 do ECA: “rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e
gravidade da infração.”
A justificativa da separação, nas palavras dos diretores das unidades, é a segurança
dos próprios internos, ou seja, para se evitar brigas e agressões. Segundo os relatos dos
59
jovens, logo que chegam à unidade, funcionários lhes perguntam a qual facção pertencem,
para que possam alocá-los no alojamento de tal grupo16. Os próprios jovens se recusam a
dividir o mesmo alojamento com um “alemão” – alguém pertencente a uma quadrilha rival.
Notou-se que mesmo os adolescentes que não têm relações com nem trabalham em
quadrilhas de traficantes são induzidos, nas unidades, a escolherem uma facção e acabam
optando por aquela que domina o tráfico de drogas perto de onde moram.
No ESE, a separação das facções é mais estrita, pois os jovens de grupos inimigos
quase não se cruzam. Segundo funcionários, no ano passado, havia cerca de 180 jovens do
Comando Vermelho e 70 do Terceiro Comando Puro e da Amigos dos Amigos. Os
alojamentos das facções minoritárias ficam distantes dos demais. No ano passado, de
manhã, os integrantes destas facções iam ao colégio (dentro da unidade) enquanto os do
Comando Vermelho frequentavam aulas de reforço dadas pelo Sesi e um curso de
informática. À tarde, era o inverso. O contato entre os grupos rivais só acontece em
momentos extraordinários, como nas visitas de crianças e namoradas e nas formaturas de
cursos ou eventos em que geralmente há a presença da diretoria-geral do Degase. Inclusive
acompanhei alguns desses momentos de contato, como nas visitas de parentes e na
formatura da primeira turma do curso de informática, em 2007, durante a qual praticamente
todos os internos do ESE e as jovens da Escola Santos Dumont se reuniram na quadra, com
a presença da primeira-dama do governo estadual, sem problemas.
Já na EJLA, a convivência entre adolescentes de facções rivais é mais amena. Eles
ficam separados em alojamentos de acordo com o pertencimento a esses grupos, e, como no
ESE, a maioria deles diz pertencer ao Comando Vermelho. No entanto, em todas as
atividades, esses grupos se misturam, sem haver agressões constantes. Pelo fato de a
convivência com os rivais ser próxima, os internos acabam se acostumando com isso e
percebem que, caso fossem levar a rivalidade às últimas consequências, teriam de fazê-lo
sempre, o que lhes causaria grandes problemas com a diretoria. Há, sim, trocas de insultos e
ameaças, mas tudo acontece mais verbalmente do que fisicamente. Por mais que
frequentem as atividades juntos, os integrantes de facções inimigas não se misturam: “Não
entro no caminho deles. É só eles não entrar no meu também. Nós só fala com a nossa
16
A questão do pertencimento e o simbolismo relativo às facções criminosas serão discutidos com mais
profundidade no capítulo 4.
60
facção. Nós não fala com eles”, explicou Eric, 17 anos, internado por tráfico. Rogério,
também de 17 anos, cumprindo internação por ter cometido um assalto à mão armada,
completou:. “Se der mole, a porrada come”.
Essa convivência menos conturbada entre rivais na João Luiz Alves – muito mais
pacífica em relação às outras unidades do Degase – é vista com maus olhos pela maioria
dos adolescentes. Tanto no ESE quanto na EJLA, ouvi adolescentes reclamarem que na
EJLA tem muita “vacilação” e “fanfarronagem” (atos mau vistos e moralmente condenados
por eles). Fábio, 16 anos, internado na EJLA por tráfico, reclamou dessa convivência:
“Aqui o negócio é sinistrão. Nós convive com os menor da outra área, com mancão. Isso
prejudica. Joga bola perto, paga o banho perto. No meu convívio, eu não quero isso não. No
Padre era outra coisa. Aqui é mó fanfarronagem”.
A Escola João Luiz Alves:
Fundada em 1926, a escola João Luiz Alves é a mais antiga do sistema
socioeducativo do Rio. O casarão antigo, branco com janelas azuis, tem uma vasta área
verde à sua volta e é conhecido como a “mansão”do Degase, a unidade com a estrutura
mais agradável do sistema, segundo funcionários e internos. As instalações, no entanto, são
antigas e mal conservadas, com infiltrações, vazamentos e pintura desgastada. As paredes,
quase todas pixadas.
O casarão fica no topo de uma ladeira e, das janelas de seus alojamentos, os internos
podem ver o entorno da casa e até mesmo a rua. A área da Escola inclui um gramado
esportivo ao ar livre, um anfiteatro, uma quadra coberta, uma biblioteca, que recebeu
computadores no final da pesquisa, uma horta e um pomar – plantados pelos internos. Os
alojamentos ficam no segundo andar do casarão e as aulas do colégio acontecem nas salas
do primeiro andar, onde ficam também os refeitórios, as salas de atendimento psico-social e
a administração.
A capacidade máxima da unidade, segundo o Degase, é de 119 internos, mas, como
foi dito no capítulo anterior, ao longo do trabalho de campo a lotação esteve sempre um
pouco acima da capacidade, tendo chegado a quase 170 meninos. Os internos ficam
divididos em quatro alas ou módulos, A, B, C e D. Nas alas C e D, costumam ficar os
61
adolescentes da cidade do Rio, enquanto na A e na B, os jovens de outras comarcas. Cada
ala tem cinco alojamentos, com seis camas, mas quase sempre havia mais adolescentes do
que isso, cerca de 7 ou 8 jovens em cada. Os banheiros são coletivos e há jovens,
estigmatizados como “mancões”17, que dormem neles, pois os internos não os aceitam no
convívio. Os internos de cada módulo fazem as refeições nos refeitórios situados abaixo de
cada ala, separados dos demais. Na parte de baixo do casarão, há uma cela chamada de
“tranca”, onde são postos os jovens que se envolvem em brigas ou confusões, ou aqueles
que devem ficar em isolamento, segundo determinação judicial ou da direção da unidade.
Trabalhavam na EJLA, entre 13 e 16 agentes por dia, alternando-se em turnos de 24h
de trabalho por 72h de folga. O ideal, segundo funcionários, seriam pelo menos mais 11
agentes18. No corpo técnico, encarregado de assistir os adolescentes e fazer avaliações a
serem encaminhadas aos juízes, havia dois assistentes sociais, três psicólogos e três
pedagogos para atenderem a todos os internos. Dividindo-se os oito técnicos por 130
internos, são cerca de 16 adolescentes por técnico. Segundo a diretoria da instituição, eram
necessários mais três assistentes sociais e pelo menos mais um psicólogo e um pedagogo.
Idealmente, os técnicos deveriam atender aos internos uma vez por semana, mas isso não
acontece na prática.
A cada seis meses, o técnico responsável pelo atendimento do interno deve fazer um
relatório a ser enviado ao juiz, propondo ou não a progressão de regime, de acordo com um
sistema de pontos. Segundo me explicaram técnicos, sugere-se uma progressão quando o
jovem atinge 150 pontos e demonstra bom comportamento. Nesse sistema de pontos, são
levados em consideração os seguintes quesitos: escolarização, participação em cursos e/ou
oficinas, atividades esportivas, programa de atenção à saúde, interação entre adolescentes,
interação com a direção e com funcionários, comportamento e bônus da direção. Para se ter
uma idéia, três meses de escola equivalem a 30 pontos e três meses de informática
equivalem a 15 pontos. Em quanto mais atividades o jovem participar, melhor para ele.
17
Como será explicitado no capítulo 6, os “mancões” são assim chamados por terem cometido mancadas, ou
erros considerados graves, como delatar alguém ou cometer um ato proibido pelas leis dos internos e do
tráfico.
18
O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) estabelece que a proporção deve ser de pelo
menos um socioeducador para cada cinco internos. Em uma unidade com 130 internos, portanto, são
necessários 26 agentes.
62
Acontece que as atividades oferecidas não incluem todos os internos, como explicarei mais
abaixo.
Os técnicos – em ambas as unidades - diziam estar em busca de “sinais de mudança e
consciência” nos internos, algo que demonstrasse que eles “queriam mudar” e “sair dessa
vida do crime”. Justamente por causa dessa expectativa em relação aos jovens, muitos deles
revelaram que mentiam para as técnicas, dando-lhes um discurso pronto, de que queriam
“mudar de vida” e de que estavam arrependidos do que haviam feito. No fundo, faziam de
tudo para ganhar um bom relatório, que pudesse sugerir uma progressão de medida. As
visitas das famílias acontecem aos sábados de manhãs, na EJLA. No entanto, os pais dos
jovens às vezes participam de encontros com as técnicas durante a semana.
Como toda “instituição total”, a EJLA e o ESE têm horários e normas a serem
seguidos por seus funcionários e internos. Os internos levantam todos os dias às 7h, quando
é servido o café da manhã. Na EJLA, todos os adolescentes vão à escola de manhã, a partir
das 8h, e, por isso, a direção costumava solicitar que eu evitasse visitas nesse período, já
que os agentes estariam ocupados fazendo a vigilância das turmas. Assim como no ESE,
quando um novo interno chega, ele deve fazer um teste de nivelamento escolar para ser
alocado em uma turma adequada ao seu nível, pelo menos até que chegue o seu histórico
escolar oficial – o que muitas vezes não acontece. À tarde, parte dos jovens participava das
atividades oferecidas, enquanto outros permaneciam nos alojamentos. Por volta das 17h, as
atividades eram encerradas. O jantar era servido nos refeitórios no começo da noite e,
depois disso, eles não saíam mais dos alojamentos.
Nos refeitórios, assim como nas filas formadas para se transitar pelas unidades, a
conversa entre os adolescentes era proibida pelos funcionários. Estes exigiam também que
os internos andassem sempre com as mãos para trás e os chamassem de “senhor”, nos dois
institutos.
As atividades e aulas extras disponíveis variaram ao longo de toda a pesquisa nas
duas unidades. Mas, de um modo geral, se tornaram mais frequentes ao longo da realização
da pesquisa - talvez devido à nova gestão do Degase. Cada atividade tinha a participação de
um número variado de internos, mas nunca atingindo a totalidade dos mesmos. A duração
das atividades também variava, podendo durar de um a vários meses, mas a maioria delas
era temporária, não fazendo parte de um quadro permanente de atividades socioeducativas
63
planejadas. Aliás, muitas delas eram oferecidas a partir de convênios com outras entidades
ou instituições, como o Senai, o Sebrae, a Petrobras, ONGs, ou outros profissionais de fora
do Degase. Daí a transitoriedade e falta de estabilidade de atividades – salvo algumas delas,
como as aulas de informática e os cultos religiosos. A seleção dos internos a participarem
dos cursos tinha critérios variados, podendo ser uma escolha das técnicas ou dos diretores.
Na EJLA, as atividades extras aconteciam à tarde. Dentre os cursos que aconteceram
na unidade, nos 14 meses de pesquisa, incluíram-se aulas de capoeira; uma oficina de vídeo
dada pelo Nós do Cinema, para cerca de 20 jovens; aulas de percussão com o grupo Afro
Reggae, em turmas de cerca de 20 alunos; aulas de informática, em módulos, para cerca de
30 alunos; aulas de Educação Física; um curso do Sebrae por uma semana, para quarenta
internos; e uma oficina de mecânica do Senai, por oito meses para uma turma inicial de 80
jovens, sendo que menos de 20 se formaram, pois muitos saíram ou desistiram das aulas,
consideradas difíceis por eles, ou receberam progressão de medida do juiz. Os cursos de
informática e do Senai aconteciam no Pólo Profissionalizante do Degase, no terreno anexo
à EJLA.
Além disso, havia a participação constante de alguns internos no cultivo da horta e do
pomar da unidade. Também aconteciam encontros com defensores públicos e grupos de
discussões coordenados pelos técnicos. Os cultos religiosos eram as atividades extras que
aconteciam ininterruptamente, pelo menos uma vez por semana, incluindo diversas igrejas
e grupos religiosos. O futebol era uma atividade constante e quase diária, dependendo da
grade de horários da instituição. Todas as atividades tinham de acontecer com a presença
de agentes, e, por isso, algumas delas eram prejudicadas pela falta de agentes, sobretudo
em dias de audiências, quando os agentes têm de acompanhar os jovens às varas judiciais.
Uma diferença da EJLA em relação ao ESE é que lá há adolescentes escolhidos pela
direção da unidade que trabalham na rouparia, na manutenção e na biblioteca da unidade.
Esses postos são considerados posições de prestígio pelos internos, já que os escolhidos
podem passar a maior parte de seu tempo fora dos alojamentos, circulando por diversos
ambientes da unidade. Geralmente, quem ocupa essas posições são jovens considerados
“tranquilos”, por vezes, os chamados “mente”, que não causam problemas e são
responsáveis. Há também, ao contrário do ESE, alguns adolescentes escolhidos por
funcionários para o trabalho de “faxina”, de acordo com os critérios de cada plantão de
64
agentes. Estes internos realizavam serviços de confiança em cada um dos módulos, levando
e trazendo objetos e abrindo e fechando alojamentos, por exemplo.
É preciso enfatizar que a Escola João Luiz Alves é considerada a mais do sistema
socioeducativo e, de fato, a última rebelião aconteceu há mais de cinco anos. Entretanto,
durante os 14 meses de pesquisa, houve algumas fugas e tentativas de fuga. Em 2007, por
exemplo, cerca de 10 jovens fugiram. Já em fevereiro de 2008, 11 adolescentes tentaram
fugir à noite, agredindo um funcionário, que ficou desacordado. Especula-se que o “faxina”
de uma das alas tenha aberto os alojamentos dos adolescentes, que foram descobertos horas
depois. Eles ficaram escondidos no jardim e no Pólo Profissionalizante, ao lado da EJLA,
mas nenhum deles conseguiu fugir.
O Educandário Santo Expedito:
Na época em que foi iniciado o trabalho de campo, o Conselho Estadual de Defesa
da Criança e do Adolescente (CEDCA) determinou o fechamento do Educandário Santo
Expedito devido à falta de condições estruturais para o atendimento socioeducativo de
adolescentes e à deteriorização dos equipamentos. Nas instalações do ESE, havia
funcionado a penitenciária Muniz Sodré e, segundo o CEDCA, a instituição não seguia os
parâmetros necessários ao atendimento de adolescentes. No começo de 2007, os
alojamentos correspondiam às antigas celas da penitenciária e, fora a quadra da unidade,
não havia outras opções de lazer ou salas para cursos. Além das aulas na escola, os jovens
apenas jogavam bola ou tomavam banho-de-sol, passando a maior parte do tempo dentro
dos alojamentos.
Havia oito galerias de jovens do Comando Vermelho, com cerca de 40 a 50 jovens
em cada uma, e outras quatro galerias, em outra parte da unidade, para os internos das
outras facções. Segundo agentes de disciplina, era complicado e perigoso para eles
entrarem nas galerias, devido à grande quantidade de jovens em cada uma delas. “Só eles
sabiam o que tinha lá dentro”, comentou um agente do ESE.
A partir do final do primeiro semestre de 2007, depois de a instituição receber a visita
da primeira-dama do governo estadual e o Degase passar a ser vinculado à Casa Civil,
começaram as intervenções e obras no ESE. A primeira delas foi a construção de salas com
computadores, uma biblioteca e uma sala de cinema. A partir de então, a unidade passou a
65
oferecer, permanentemente, cursos de informáticas aos jovens – através de uma parceria
com a ONG Rio Solidário -, para oitenta jovens, em horários diferentes, e aulas de reforço
escolar e alfabetização, ministradas pelo Sesi, para grupos menores, de cerca de 20
internos, de manhã e à tarde. Aulas de capoeira, oficinas de leitura e de educação física
foram novidades nas atividades em 2008. Como foi explicitado, os jovens das facções
rivais revezavam-se na frequência às aulas do colégio e dos cursos, de manhã e à tarde.
Começaram também, no segundo semestre de 2007, obras progressivas nos
alojamentos dos internos. Ao longo de 2008, novos alojamentos foram sendo inaugurados,
substituindo aos poucos os antigos. Os jovens passaram a ficar divididos em módulos, cada
um com dois alojamentos. Hoje, cada alojamento novo tem 20 ou 21 jovens, divididos em
quartos para seis ou sete pessoas. Estavam previstos oito módulos com dois alojamento em
cada, mas as obras ainda não tinham sido concluídas quando acabou o trabalho de campo.
A frequência ao colégio no ESE era muita mais baixa do que na Escola João Luiz
Alves. Não havia professores suficientes e internos me diziam que não iam à escola todos
os dias. A diretoria da escola afirmou, em 2008, que, só nas aulas de português, faltavam
professores para darem 56 tempos dos 68 necessários. Além disso, havia resistência por
parte dos adolescentes quanto à ida ao colégio. Um funcionário da diretoria da unidade
revelou que cerca de 15% a 20% não iam à escola e argumentou que não valia a pena
obrigá-los:
Quando o adolescente não quer ir, falamos a ele que isso vai entrar no relatório.
Mas você tem que puxar por quem quer ir mesmo. Porque, às vezes, chega o
adolescente e causa problema na escola, briga, atrapalha a aula. A gente tenta
persuadir, mas, se for causar problema, é melhor nem ir.
Agente de disciplina do ESE.
Quanto ao número de agentes de disciplina, em 2008, de acordo com funcionários do
ESE, os quatro plantões de agentes de disciplina funcionavam com 16 agentes cada, além
de três PMs que ajudavam na vigilância. Em 2007, plantões chegaram a ter 13 agentes.
Segundo funcionários, o ideal seria que houvesse entre 20 e 30 agentes. O corpo técnico,
em geral, também trabalhava com uma sobrecarga de atendimentos a serem feitos. Um
assistente social chegou a ser responsável por atender 50 jovens.
As visitas de familiares aconteciam nas manhãs de domingo – a direção estima que
30% dos internos não tinha visita -, mas, às sextas-feiras, havia visitas adicionais. Uma vez
66
por mês, era permitida a visita de filhos e irmãos mais novos, outra vez a de companheiras,
e havia ainda uma sessão mensal de vídeos e debates com familiares.
Em dias de visita, nas duas unidades, as famílias levavam sacolas cheias de produtos
de higiene pessoal (como xampu, sabonete, desodorante e escova-de-dente), biscoitos,
comida e, por vezes, camisetas brancas e chinelos pretos – usados como uniforme - para os
adolescentes. Esses objetos para a higiene pessoal não eram fornecidos em quantidade
suficientes pelas unidades, que já chegaram inclusive a sofrer com a falta de papel
higiênico. As roupas e os itens provenientes de fora dos institutos eram chamado pelos
internos como “de pista”, demarcando a origem dos produtos e concedendo um status
diferencial a quem os obtinha através de visitas. A revista a que eram submetidos os
familiares era, na opinião de muitos jovens, humilhante. A busca rigorosa visava a evitar a
entrada de objetos proibidos, como drogas e celulares.
Dentro dos alojamentos, nos dois institutos, era permitido ter ventiladores, TV e
rádio. No ESE, o DVD passou a ser permitido em 2008, depois de uma negociação entre
adolescentes e a diretoria. O acesso a esses objetos é uma forte moeda de troca entre
funcionários e internos, já que, se os internos desobedecerem alguma ordem dos
funcionários, perdem o privilégio de acesso a esses bens – como ameaçou um agente, na
fila do ESE. “A gente tem que dar alguma coisa para poder tirar, né?”, ponderou um agente
de disciplina do ESE. Estabelece-se assim, um sistema de trocas e recompensas, sempre
sujeito a negociações e ameaças, na tentativa de a direção manter a ordem da unidade.
Essas negociações entre funcionários e internos do Degase visam a “acalmar os ânimos”
dos adolescentes e evitar rebeliões.19
Ao contrário da EJLA, o Educandário Santo Expedito é visto tanto por internos
quanto por funcionários como um local tenso, uma espécie de “bomba relógio”, em que
uma rebelião pode “estourar” a qualquer momento. Em várias visitas, percebi em
funcionários um temor sobre a possibilidade de uma rebelião acontecer, e por vezes fui
aconselhada a evitar as visitas, pois o clima estaria “tenso”.
19
Sykes (1958) demonstrou que há uma tensa relação entre os presos e os agentes penitenciários, os quais,
segundo ele, não possuem um poder baseado na autoridade, mas num sistema de punições, ameaças e
recompensas. Segundo Sykes, diante da dificuldade em controlar o comportamento dos presos, os guardas
fazem acordos e negócios ilegais com os cativos, ou seja, aceitam ser corrompidos e fazem vista grossa para
pequenos delitos que ocorrem intra-muros, para, em troca, evitarem confrontos maiores, rebeliões e fugas.
67
Ao longo dos meses de pesquisa de campo, aconteceram alguns desses incidentes,
como em agosto de 2007, quando houve uma briga generalizada de facções, deixando
vários internos feridos. Em abril de 2007, antes de o campo começar, uma rebelião deixou
parte do ESE destruído depois de incêndio e houve tentativas de fuga e confrontos entre
facções rivais. Em janeiro de 2008, teria acontecido um princípio de rebelião devido a
reclamações dos internos com relação à comida, que estaria azeda. Alguns colchões foram
incendiados, mas o tumulto foi apaziguado. Apesar destes casos recentes, tanto
funcionários quanto internos diziam que as unidades do Degase, no passado, eram muito
mais turbulentas e havia rebeliões com mais frequência. Alguns funcionários brincavam
dizendo que o ESE, hoje, “é uma creche” se comparado a anos anteriores.
3.2 - Perfil dos jovens da EJLA:
Os dados que serão expostos nessa secção, foram produzidos através da aplicação de
um questionário20 com os internos da Escola João Luiz Alves, entre dezembro de 2007 e
janeiro de 2008. O intuito deste questionário foi ter uma amplitude do perfil dos
adolescentes cumprindo medida de internação naquela unidade, bem como poder
quantificar algumas variáveis que nos permitem entender de modo mais abrangente a
trajetória de vida desses meninos – ver perguntas do formulário no anexo 2. A amostra total
de 105 adolescentes não tem relevância estatística, mas é bastante representativa do
universo dos internos da EJLA, que, naquele período, abrigava cerca de 130 internos.
Apesar de os questionários não terem sido aplicados no ESE21, acredita-se que muitos dos
resultados obtidos na EJLA poderiam se repetir ou ser semelhantes no ESE – com exceção
da idade dos jovens, que no ESE costuma ser maior.
A participação nos questionários, assim como em toda a pesquisa, era voluntária. Os
agentes de disciplina da unidade perguntaram a todos os jovens da unidade sobre sua
disposição para responder ao questionário, que teve adesão voluntária. Os jovens eram
20
O questionário foi inicialmente realizado em parceria com o amigo e colega de mestrado Luiz Augusto
Campos, para o trabalho final da disciplina “Desigualdades e Políticas Públicas”, ministrada pela Prof. Celi
Scalon, do PPGSA/ UFRJ. Sem Luiz, os gráficos, tabelas e análises estatísticas não teriam sido possíveis.
21
Devido à demora na autorização para aplicação de questionários no ESE (esta só foi concedida em outubro
de 2008), não foi possível trabalhar com dados quantitativos nesta unidade, mas somente na EJLA.
68
retirados dos alojamentos por um agente, geralmente em grupos de cinco, de cada vez, e
respondiam um a um às perguntas.
O questionário possuía mais de 50 questões, cuja maioria se constituía de questões
abertas, categorizadas para fins de análise posteriormente – mas nem todos os resultados
serão debatidos aqui. A duração de cada entrevista foi de, em média, 20 minutos, e elas
foram realizadas nas salas da escola da unidade, ou naquelas usadas para o atendimento
técnico (psico-pedagógico). Para que fosse possível entrevistar os jovens, foi necessária a
presença de um agente de disciplina, que ficava fora da sala, para que os jovens não se
sentissem intimidados ao responder às perguntas.
No primeiro dia de aplicação, foram entrevistados cinco adolescentes em conflito com
a lei e percebeu-se a necessidade de alterar alguns ítens do questionário, como a inclusão de
perguntas à respeito do tempo de internação, outras medidas socioeducativas, o primeiro
ato infracional que cometeram e reformular as questões relativas às regras dos internos e
percepções de prestígio. Estes cinco primeiros questionários foram incluídos na base de
dados, e as questões que foram introduzidas ou reformuladas foram deixadas em branco.
Por isso, em algumas análises o total de entrevistados é de 100. Além disso, alguns jovens
não responderam algumas questões por desconhecimento do tema abordado. Cabe ressaltar
que, antes de começar a fazer perguntas de cada questionário, informei a cada interno de
que suas identidades não seriam reveladas e que o conteúdo das entrevistas individuais não
seria divulgado a outros internos, funcionários, justiça, polícia ou famílias.
Durante o período em que foram aplicados os questionários, os internos da Escola
João Luiz Alves tinham em sua maioria, entre 15 e 17 anos. Do total, 31,4% tinham 16
anos, 24,8% tinham 15 e 20%, 17 anos. Quanto à cor, 44 (41,9%) declararam-se pardos, 39
(37,1%) disseram ser pretos e 21 (20%) afirmaram ser brancos. O ato infracional cometido
por mais da metade dos adolescentes é o de roubo, enquanto tráfico e furto vêm logo atrás,
como mostra o gráfico a seguir:
69
Gr‡fico 3.1 - Ato infracional
60
50
40
30
54
20
10
17
17
8
7
7
9
6
5
4
ut
ro
s
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co
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io
H
La
tro
c’
ni
o
Tr
‡f
ic
o
Fu
rto
R
ou
bo
0
ato infracional
* Eram permitidas múltiplas respostas nesta variável.
Quanto ao tempo de internação na EJLA, 20% estavam internados há menos de um
mês; a maioria, 40%, revelou estar internado entre um e seis meses; 29,5%, entre seis
meses e um ano; e apenas 9,5% há mais de um ano. Pôde-se perceber que, em média, os
jovens que respondiam por latrocínio estavam há mais tempo internados, 11,88 meses, em
comparação aos demais. Os que respondem por tráfico estavam, em média, há 4,94
reclusos; aqueles que roubaram, há 4,85 meses; os que cometeram homicídios, há 4,71
meses, e os que furtaram, há 3,94 meses. Cabe aqui relembrar que o ECA não prevê penas
proporcionais a atos infracionais, mas medidas socioeducativas a serem escolhidas pelo juiz
e reavaliadas a cada seis meses.
Em relação ao uso de entorpecentes, 79% declararam consumir algum tipo
freqüentemente. A droga mais recorrente dentre os usuários foi a maconha, utilizada por
88% deles. Em seguida, aparece o crack, com 27,7%; a cocaína, com 24,1%; o ecstasy,
com 21,7%; o loló, com 19,3 %; e o lança-perfume, com 15,7%. Chama a atenção o alto
percentual de uso do ecstasy, uma droga relativamente recente nas bocas de fumo das
70
comunidades dominadas por facções criminosas. O preço desta droga, segundo os jovens
custa, em média R$ 25 nestes locais.
Na época da aplicação do questionário, segundo a diretoria, do total de internos, cerca
de 40 jovens tinham sido julgados por varas de fora da capital, enquanto 90, pela 2ª Vara da
Infância e da Juventude, na capital. Os questionários não tinham uma pergunta sobre qual
juizado era responsável pelo processo dos jovens, no entanto, mais da metade disse ser
morador do Rio, como mostra o gráfico abaixo. Dos moradores da capital, 63,7% eram
provenientes da Zona Norte.
Gráfico 3.2 - Região em que mora
6,7%
5,7%
Rio de Janeiro
3,8%
Baixada Fluminense
3,8%
Niterói e São Gonçalo
Norte Fluminense
55,2%
18,1%
6,7%
Sul Fluminense
Região Serrana
Região dos Lagos
Dentre os entrevistados, aproximadamente 80% declararam que não estavam
freqüentando a escola quando foram detidos, sendo que a média de tempo fora da escola
destes foi de um ano e meio. Outro dado relevante é que os jovens estão na 4ª série em
média, o que evidencia certo atraso escolar, haja vista a média de idade dos internos
supracitada. Em geral, eles têm, em média, seis anos de atraso escolar, o que corresponde à
defasagem em relação à série em que o aluno idealmente deveria estar na escola, de acordo
com sua idade.
No que toca às relações familiares dos internos, 80% declararam ter sido criados com
a presença da mãe. Porém, somente 57,1% declararam morar com a mãe, indicando a perda
do laço materno em algum momento de suas vidas. Algo semelhante acontece quando
observamos as relações paternas. Se aqueles criados com a presença do pai somam 29,5%,
os que moram com o mesmo somam quase a metade (15,2%). Cabe ainda mencionar que
18,1% (19) internos disseram ter filhos.
71
3.3 – Reincidência e trajetórias:
A reincidência é outro aspecto relevante para se entender a trajetória dos jovens
internados e a relação destes atores com as instituições totais e de controle social do
Estado. As passagens pelo sistema socioeducativo – tanto pelas unidades do Degase quanto
pela 2ª Vara da Infância e da Juventude – contribuem para a construção ou fortalecimento
de suas identidades sociais, reforçando, sobretudo, a percepção, por parte dos funcionários
do Degase e dos próprios jovens, de que são “menores infratores”. A incriminação é parte
constitutiva da própria carreira e identidade “delinquente”.
Vianna (1999) observa que o acúmulo de passagens por unidades policiais e de
internação acaba por constituir “uma carreira moral dos menores”. Ao descrever a
apreensão de jovens em conflito com a lei nas duas primeiras décadas do século passado,
Vianna aponta que “quanto mais vezes os menores fossem enquadrados pela polícia de
acordo com qualquer designação – abandonados, vadios, ladrões, etc. –, mais consolidada
ficava sua posição de objetos legítimos de ação policial. Mais tornavam-se menores
propriamente ditos” (Vianna, 1999: 113).
Este fortalecimento do processo de “menorização”, em que o jovem em conflito com
a lei é tratado como um delinqüente “irrecuperável”, está presente nas falas de funcionários
do Degase, sobretudo quando são reincidentes. Desde um agente até um diretor de unidade
tratam de forma diferenciada – por vezes preconceituosa - os adolescentes que reincidem,
pois não acreditam em sua “recuperação”. Em suas declarações, percebe-se a idéia de que
os reincidentes teriam escolhido a carreira criminal, num caminho sem volta, como se o
crime estivesse colado a suas identidades. Se os adolescentes internados são potenciais
“assujeitados criminais”, os reincidentes o são ainda mais, já que as passagens pelo sistema
socioeducativo podem fortalecer a sujeição criminal e a expectativa de que o jovem
continuará em uma carreira desviante. A seguir, trechos de entrevistas que demonstram tais
concepções:
“Esse aí é bandido mesmo, 171. Tem várias passagens”, de um agente de
disciplina sobre um jovem de 19 anos que cumpria internação pela terceira vez,
além de ter recebido medidas de semi-liberdade.
72
“Fico desestimulado para falar com quem está voltando para cá. Esses são
perda de tempo. Postergo o atendimento deles sempre que posso”, de um
pedagogo do Degase, ao confessar que costuma dar mais atenção no atendimento
de não-reincidentes do que reincidentes.
“Eu vou fazer de tudo para agitar a papelada de vocês, para vocês irem para
audiência (com o juiz). Vou fazer o possível para tirar vocês daqui. Mas se eu
ver a cara de algum de vocês de novo aqui dentro, não adianta me pedir mais
nada, porque eu não vou querer nem saber”, de um diretor de unidade, ao
conversar com jovens sobre audiências com o juiz.
“Depois de três mortes, eles não param mais”, sentenciou um assistente social.
Antes de expormos os dados obtidos a partir da aplicação de questionários na EJLA,
preciso problematizar a noção de reincidência. Adorno & Bordini (1989) alertam sobre o
caráter multifacetado do conceito de reincidência e as diferentes formas em que ele têm
sido trabalhado nas ciências sociais. Em seu estudo sobre reincidência na penitenciária do
Estado de São Paulo, os autores abordaram a taxa de reincidência penitenciária, ou seja,
aqueles que cumpriram pena mais de uma vez em estabelecimento penitenciário, o que é
diferente da reincidência criminal, relativa à contabilização de mais de um processo penal
na Justiça, independentemente da pena. Os autores enfatizaram também o fato de que, ao se
restringir o índice de reincidência ao universo de presos, se pode obter taxas muito elevadas
de reincidência pois “as prisões tendem a reter os ‘delinqüentes habituais’, aqueles que
constroem sua trajetória de vida na delinqüência, como se apenas estes fizessem a história
de instituições austeras e obstinadas, como são as prisões” (Adorno & Bordini, 1989).
Os dados oficiais divulgados pela 2ª Vara da Infância e da Juventude do Estado
apontam que, no ano de 200822, 51 % dos adolescentes que deram entrada na Vara eram
reincidentes naquele juízo, um nível mais alto do que nos anos anteriores. Em 2007, esse
índice foi significativamente mais baixo: 36% eram reincidentes naquela Vara. Já em 2006,
47% dos jovens eram reincidentes, e, em 2005, 44%. Estes dados incluem não só os
adolescentes que receberam medida de internação no Degase, mas também todos os que
receberam outras medidas socioeducativas e os que foram julgados inocentes. A título de
comparação, Misse et alli (1973) constataram que a taxa de reincidência de jovens que
passaram pelo antigo Juizado de Menores da Guanabara, em 1971, era de apenas 10,7%.
22
Lembrando que, devido a um problema no banco de dados da Vara, esse números são parciais.
73
Este estudo também apontou que, dos que reincidiram, 13,1% responderam por atos
infracionais contra o patrimônio e 12,9% por infrações relacionadas a entorpecentes.
Já de acordo com as estatísticas oficiais do Degase referentes ao ano de 2006, 44%
de todos os 2300 jovens que passaram pelo Degase eram reincidentes no Degase23. De
acordo com Sento-Sé (2003), 34% dos internos do Degase eram reincidentes no
departamento (incluindo todas as unidades) em 2002 e, destes, 40,1% respondiam por
envolvimento com o tráfico e 29,4% por roubo. Já Oliveira & Assis (1999) chegaram a um
percentual de reincidência na internação – a média de três unidades - de 33%.
No presente estudo, foi possível medir, a partir dos dados coletados com os
questionários, dois casos de reincidência: o primeiro, relativo à reincidência na medida
socioeducativa de internação e, o segundo, referente a todas as medidas de restrição de
liberdade (além da internação, foram incluídas a semi-liberdade e a liberdade assistida), o
que chamaremos de reincidência no sistema socioeducativo.24 É necessário esclarecer que
as informações obtidas baseiam-se nos relatos dos jovens, e não foram consultadas fontes
secundárias; por isso, os dados refletem meramente os discursos dos jovens sobre suas
próprias trajetórias de vida e no sistema socioeducativo, mas não dados oficiais.
Sobre a reincidência na internação, observou-se que 18,1% dos adolescentes já
haviam cumprido outra medida socioeducativa de internação. Já a reincidência no sistema
socioeducativo teve uma taxa de 60%, ou seja, 63 dos 105 entrevistados já haviam
cumprido outras medidas de restrição de liberdade antes da atual. Destes 63, 19 reincidiram
na internação, 25 tinham recebido medida de semi-liberdade, 11 de liberdade assistida, e
oito tanto de liberdade assistida quanto de semi-liberdade.
A taxa de 60% é bem alta se comparada ao percentual de reincidentes divulgado pela
2ª Vara, o que pode ser compreendido por diferentes razões. A primeira delas é que a
variável levou em consideração diferentes medidas socioeducativas e não só a internação.
A segunda é a questão de que o foco em jovens internados, por si só, eleva a taxa de
reincidência, como mencionado por Adorno & Bordini, já que a probabilidade de estes
indivíduos terem uma atuação mais recorrente em atos infracionais é maior. Não se pode
23
O que não significa que todos receberam medida de internação, pois o Degase também é responsável pelas
medidas de semi-liberdade e liberdade assistida.
24
Lembrando que as medidas de internação e semi-liberdade são administradas pelo Degase, enquanto a
liberdade assistida está em processo de municipalização, mas ainda acontece no Degase e na 2ª Vara da
Infância e da Juventude.
74
desconsiderar também o fato de que alguns jovens podem ter confundido as diferentes
decisões judiciais a que foram submetidos em suas passagens, e podem ter dado respostas
que não condiziam com a essência das perguntas. Os entrevistados podem, por exemplo, ter
confundido uma passagem pela semi-liberdade depois de um internação – ou seja, como
progressão de regime - com as medidas socioeducativas de semi-liberdade dadas em
separado (o questionário perguntava sobre as semi-liberdades separadas, e não a progressão
de medida).
Calculou-se também a média de passagens pelo sistema socioeducativo e verificou-se
que os internos tinham, em média, 2,71 medidas socioeducativas restritivas de liberdade.
Os jovens que foram apreendidos por descumprimento de medida socioeducativa são
aqueles com a maior média de passagens, de 6,57, o que faz todo sentido, já que eles
provavelmente foram pegos por terem fugido da semi-liberdade (“Pularam o Criam”, como
eles costumam dizer). Já os jovens que cumprem medida pela infração de formação de
quadrilha têm, em média 5,8 passagens, e os que respondem por furto, 4,82. Os que
cometeram a infração de tráfico de drogas têm uma média de 3,24 passagens, quem
cometeu latrocínio, 2,88, aqueles apreendidos por homicídio, 2,14 e, por último, os que
cometeram roubo 2,0 vezes.
Ao cruzarmos as variáveis de reincidência no sistema socioeducativo com o ato
infracional pelo qual está respondendo (conforme a tabela 3.1), percebeu-se que os jovens
que cometeram a infração de furto possuem o maior percentual de reincidentes: 82,4%. Em
seguida, estão os que respondem homicídio, com 71,4% de reincidência, e por tráfico de
entorpecentes, com 64,7%. Os internos que cometeram latrocínio são aqueles com menor
taxa de reincidência: 37,5%%.
Tabela 3.1
Reincidência de acordo com o ato infracional
(apenas os mais mencionados)
TOTAL
reincidentes
não-reincidentes
roubo
48,1% (26)
51,2% (28)
100% (54)
furto
82,4% (14)
17,6% (3)
100% (17)
tráfico
64,7%(11)
35,3% (6)
100% (17)
latrocínio
37,5% (3)
62,5% (5)
100% (8)
homicídio
71,4% (5)
28,6% (2)
100% (7)
* Eram permitidas múltiplas respostas para a variável “ato infracional”.
75
Ao analisarmos os dados referentes ao universo de adolescentes reincidentes no
Degase (N=63) e compararmos seus atos infracionais atuais com os de semi-liberdade,
notamos que, dos que respondem por furto, 78,6% já haviam tido semi-liberdade por furto;
dos que respondem por roubo, 50% tinham recebido semi-liberdade pelo mesmo crime e
38,5% por furto. Já dos que respondem por tráfico de drogas, pudemos perceber que
63,6% responderam em semi-liberdade pelo mesmo crime e que apenas um havia
respondido por outra infração, ou seja, os adolescentes que são pegos por envolvimento
com o tráfico tendem a permanecer relacionados ao tráfico (ou são flagrados no tráfico).
Além disso, a média de medidas de semi-liberdade dos que respondem atualmente por furto
novamente é a mais alta dentre os reincidentes: 3,5 vezes. Já os que respondem por tráfico
de entorpecentes têm uma média de 2,36 passagens pela semi-liberdade, e os que
cometeram roubo, 1,0 – a menor média. Estes últimos dados apontam que os jovens que
cometem furto tendem a ter mais passagens pelo sistema socioeducativo.
Outra variável que se buscou nos questionários foi o primeiro ato infracional
cometido, o que não significa a primeira apreensão e nem o primeiro processo judicial.
Observou-se que 35,2% dos jovens cometeram roubo como o primeiro delito, seguidos por
31,4% que furtaram e 21% que começaram pelo tráfico de drogas. O homicídio apareceu
em 7,6% dos casos. Quanto à idade que tinham quando praticaram este primeiro ato
infracional, a média obtida foi de 12 anos. Também perguntou-se aos internos qual o
principal motivo que os teria levado a cometer a primeira infração. O desejo de adquirir
dinheiro e bens materiais apareceu mais vezes nas respostas (em 27,3%), seguido pela
explicação da influência de amigos ou parentes (19,4%), o desejo de consumir ou vender
drogas (15,1%), diversão, mulher e status – geralmente ligados à ida para bailes funk ou
noitadas – (15%), e a adrenalina e aventura do envolvimento em atos infracionais (7,2%),
como na tabela 3.2.
76
Tabela 3.2
Motivos da primeira infração
N
%
dinheiro e bens materiais
38
27,3%
influência de amigos/parentes
27
19,4%
drogas
21
15,1%
diversão, mulher e status
15
10,8%
adrenalina e aventura
10
7,2%
revolta
7
5,0%
ameaça
5
3,6%
morte de conhecido
5
3,6%
abuso ou desavenças na família
3
2,2%
outros
8
7,6%
* Eram permitidas múltiplas respostas.
*As respostas eram livres e foram categorizadas posteriormente, com base nos padrões recorrentes.
Em relação ao primeiro ato infracional cometido na vida – mas não necessariamente
punido judicialmente – os adolescentes que começaram furtando tiveram mais passagens
pelo sistema socioeducativo (3,27), enquanto os que começaram cometendo homicídios
tiveram a menor taxa (1,73). Os questionários também incluíam uma pergunta sobre
“orgulho da (s) infração (s) que cometeu”, e as respostas demonstraram que os que têm
orgulho até hoje têm mais passagens (4,33) do que os que declararam apenas ter tido
orgulho no passado (2,61) e nunca ter tido orgulho (2,36).
Sobre a escolaridade, observamos que 87,3% dos reincidentes estavam fora da escola
quando foi apreendido, porcentagem 20,6% mais alta do que a dos não-reincidentes, de
66,7% - como aparece na tabela 3.3, abaixo. Além disso, a média de meses fora da escola
dos reincidentes (21,25 meses) é superior à média dos não-reincidentes (13,81 meses).
Comparou-se também a média de anos de atraso escolar entre os dois grupos, e, mais uma
vez, a dos reincidentes foi mais alta, com 6,13 anos, enquanto a dos não-reincidentes é de
4,88 anos. Pudemos notar ainda que a presença dos pais na criação dos jovens tem relação
com a reincidência. Daqueles que foram criados sem os pais, 73,3% reincidiram, enquanto
entre os jovens que foram criados pelo pai, pela mãe ou por ambos, 57,8% são reincidentes.
Tabela 3.3
Reincidência em relação à situação escolar quando apreendido
TOTAL
estava na escola
não estava na escola
reincidentes
12,7%
87,3%
100% (63)
não-reincidentes
33,3%
66,7%
100% (42)
TOTAL
21%
79%
100% (105)
77
Para que se pudesse saber mais detalhes sobre a trajetória criminal destes jovens,
outro dado auxiliar calculado foi a quantidade de vezes que os adolescentes foram
apreendidos pela polícia. Os jovens disseram ter sido apreendidos, em média, 4,17 vezes.
Os que respondem por furto foram detidos mais vezes em média (7,18). Já os que
roubaram, foram apreendidos 3,72 vezes, em média, os que traficaram, 3,35, enquanto os
acusados de homicídio têm a menor média de apreensões (2,29). É preciso mencionar que
esta questão gerou uma discussão sobre a definição de “apreensão”, devido à polifonia do
termo na visão dos jovens. Foi freqüente, por parte dos entrevistados, a interpretação de
que apreensão seria “ser pego por PMs”, sem encaminhamento para delegacia – o que
incluía, em muitos casos, o pagamento de propina, ou “arrego”. Ao ser perguntado sobre o
número de apreensões, um dos jovens relatou: “Depende. Teve seis vezes que os cana me
pegaram mas fui solto porque dei dinheiro pra eles. Preso mesmo, levado pra delegacia, eu
fui sete vezes”. No presente questionário considerou-se “apreensão” como o ato de ser
levado para uma delegacia, independentemente se foi ou não aberto inquérito policial - o
que seria difícil de ser mensurado a partir de seus discursos.
3.4 – Percepções dos jovens sobre o sistema socioeducativo:
Quando eu sair daqui, vou fazer a mesma coisa. Cadeia não supera ninguém.
Escolhi essa vida para mim.
Bruno, 18 anos, internado no ESE por roubo.
Eu tava na finalidade de sair daqui e criar o meu filho. Mas vontade de sair todo
mundo tem. Eu quero. Não quero volta para o tráfico, pela minha família, pelo
sofrimento deles.
Rafael, 18 anos, internado no ESE por roubo.
Cadeia é de papel. Nós pega e rasga. Tira e pronto. Falei isso pra juíza. Disse
que se subisse pra cá pro ESE tava bom.
Jefferson, 18 anos, internado no ESE por roubo
Os adolescentes, em sua maioria, encaram as passagens por unidades de internação
e pelo sistema socioeducativo como um percurso natural de quem está na “vida do crime”.
Por saberem que não ficarão internados por mais de três anos, consideram que o risco de
serem internados vale a pena numa relação custo benefício. No entanto, o tempo
desprendido na “cadeia dimenor”, como eles se referiam, era sempre definido como um
“sofrimento”, ou um “massacre”.
78
Apesar de a maioria afirmar para as técnicas que estava arrependido da prática de
atos infracionais e quer “sair dessa vida”, muitos disseram para mim que a internação “não
recupera ninguém”, pois eles já haviam feito uma escolha individual e não iriam sair dessa
vida. Alguns, que já tinham completado 18 anos, no entanto, revelavam o temor de serem
presos e irem para a “dimaior” (a cadeia de adultos).
Quanto às percepções sobre os juízes, muitos adolescentes reclamaram de que uma
das juízas da 2a Vara estaria aplicando punições severas demais a quem pratica assaltos a
mão armada. Para muitos internos, haveria um recrudescimento na punição àqueles que
roubaram devido ao caso que resultou na morte do menino João Hélio Fernandes, em 2007.
João Vitor, 17 anos, internado no ESE compartilha dessa opinião: “O maluco que matou o
João Hélio que prejudicou a gente. Quem roda no 157 de carro pega internação agora”.
“Ainda mais porque a filha da juíza morreu num assalto”, completou outro interno.
Sobre o tratamento dado pelos agentes, a imensa maioria reclamava de já ter sido
desrespeitado ou agredido, inclusive com pedaços de madeira, chamados de “Kelly Key”.
Na EJLA, do total de entrevistados, 36 (34%) declaram já ter apanhado de funcionários
nesta unidade, mesmo sendo esta considerada a instituição “exemplar” do Degase, ou, nos
termos de agentes e de jovens, como a “mansão”, onde o tratamento seria melhor em
comparação ao Padre Severino e ao Educandário Santo Expedito, por exemplo. Um dado
relevante encontrado foi a relação entre reincidência e espancamentos de jovens por
agentes de disciplina da Escola João Luiz Alves. Dentre os que afirmaram já ter apanhado
de agentes, uma porcentagem maior (em 20%) de jovens eram reincidentes, se comparados
com aqueles que nunca tinham apanhado, como mostra a tabela abaixo.
Tabela 3.4
Reincidência em relação ao tratamento que vem recebendo na unidade
TOTAL
reincidentes
não-reincidentes
nunca apanhou
50,8%
49,2%
100% (63)
já apanhou
72,2%
27,8%
100% (36)
TOTAL
60%
40%
100% (99)
* N é igual a 99 pois 6 internos não responderam se já haviam apanhado.
Seja quando um jovem briga com outro, ou quando desrespeita um funcionário, ou
quando tem um comportamento considerado “inadequado” pelos agentes, os internos
recebem como punição a agressão física e o confinamento na “tranca” – cela separada, de
79
onde não saem nem para as refeições. Tais procedimentos lembram o que Kant de Lima
(1989) chama de “tradição inquisitorial” e são o avesso do que prega a retórica dos direitos
universais da criança e do adolescente e o ECA. Esses espancamentos, na maioria das
vezes, ficam impunes, já que os funcionários costumam ameaçar os jovens, caso eles os
denunciem – o que poderia gerar um inquérito policial e um procedimento administrativo
no Degase. Já os agentes que são contra os maus-tratos são considerados pelos “linha-dura”
como aqueles que fazem “mamãezada”, pois estariam “passando a mão na cabeça” dos
jovens.
Curiosamente, Adorno & Bordini (1989) também encontraram relação entre as
práticas punitivas aplicadas aos presos - como advertência e cela individual – com a
reincidência, percebendo que os reincidentes eram punidos com mais freqüência. Segundo
eles, “as práticas punitivas parecem produzir efeitos desestabilizadores e diferenciadores no
interior dessa população”, e as punições não seriam pautadas pelo comportamento na
unidade.
Sobre o tratamento dado por agentes, Rafael, 18 anos, interno do ESE, comentou que
eram poucos os agentes que os tratavam como gente, a maioria como “animais” e que os
“esculachos” eram frequentes: “Nós é sujeito homem. Nós tem filho também. Nós tá preso
para cumprir medida, não para ser esculachado. A gente não quer caozada. Nós é família.
Aqui o filho chora e a mãe não houve”. Já Carlos, 18 anos, também internado no ESE,
disse que preferiria ser tratado como “bandido”, de forma mais severa, e sair mais rápido da
internação. Em uma comparação dos diretores do ESE, disse que os adolescentes não
gostavam de ser “enganados”, com promessas não cumpridas. De um modo geral, os
adolescentes têm a impressão de que depende da vontade dos diretores a progressão do
regime, e não do juiz:
O Seu XX. era o melhor diretor. Dava mais tempo de banho de sol, futebol todo
dia e, de 15 em 15 dias, tinha 30 pessoas para ir embora. Porrada ele pegava
mesmo, se fizesse coisa errada. Me mandou embora com cinco meses na
primeira passagem. Como eu não vou respeitar? Ele tratava nós como bandido.
Ele botava para malhar direto quando fazia merda. Jogava jato d’água também.
Hoje o banho de sol é só por 30 minutos. O outro diretor antigo só prometia que
ia mandar embora e não ia. Por isso teve tanta rebelião. Os agentes batiam
menos. Mas eu prefiro apanhar muito mas ir embora mais rápido. Quem não vai
querer apanhar hoje e ir embora amanhã?
Carlos, 18 anos, internado no ESE por roubo
80
PARTE 4 :
AS NARRATIVAS SOBRE A “VIDA DO CRIME”
“Na vida do crime, o menor boladão, fumando maconha de G3 na mão”
Trecho de funk “proibidão”
Neste capítulo, serão descritas as narrativas dos jovens em conflito com a lei sobre a
chamada “vida do crime” e as suas experiências em atos infracionais, cometidos “na
pista”25. A partir da exposição de seus relatos, pretende-se contribuir para uma abordagem
construcionista do crime, entendendo-o a partir das representações e versões construídas
pelos próprios autores de atos infracionais. Desta forma, esses atos ilícitos serão abordados
aqui segundo as visões dos adolescentes, e não a partir da perspectiva de incriminação
oficial do Estado, e de sua classificação judicial – inclusive muitos dos casos narrados não
chegaram a ser formalmente incriminados.
O que nos interessa nesses relatos são as percepções dos jovens sobre as suas ações e
as suas relações com os diversos atores envolvidos na prática de atos infracionais, sejam
eles as vítimas, os seus “parceiros” ou co-autores, os policiais, as quadrilhas inimigas, ou
outras pessoas envolvidas nestes episódios. Não se buscará, portanto, a causalidade dos atos
cometidos26, mas sim uma compreensão do que essas atividades ilícitas representam para os
jovens e como eles expressam suas opiniões sobre as relações travadas com esses vários
atores sociais – sem nos preocuparmos com o teor de veracidade das narrativas, pois são
estas mesmas, enquanto construções sociais, que aqui nos interessam.
Katz (1988), por exemplo, estudou as seduções e compulsões da prática de crimes a
partir das sensações e percepções dos indivíduos engajados nestas práticas. Ele ressaltou a
importância de se priorizar o estudo das experiências desses indivíduos, e das situações em
25
Pista é uma expressão utilizada pelos adolescentes tanto para designar o locus onde acontece a prática de
atos infracionais, quanto para designar o mundo fora da “prisão”. Grillo (2008) refere-se ao termo “pista” de
uma maneira um pouco mais específica, como sinônimo de asfalto, pois assim o fazem seus interlocutores,
que são “traficantes” de classe média, do asfalto, e não na favela. No entanto, os jovens entrevistados no
Degase se referem à “pista” de um modo mais abrangente, como o local onde cometem crimes, não só o
asfalto como a favela, onde roubam ou traficam, respectivamente.
26
Dentre os estudiosos que se propuseram a estudar as causas da delinquência juvenil, estão Sampson e Laub
(1993), que relacionaram a delinqüência à ausência de laço sociais, Mark Warr (2002) que discorreu sobre os
efeitos das más companhias na adolescência, e Gottfredson e Hirshi, que relacionam o baixo auto-controle à
prática de crimes.
81
que se dão os crimes, em vez de se buscar as causas da criminalidade em problemas
estruturais e sócio-econômicos (“background factors”):
It is not necessary to constitute the field back to front. We may begin with the
foreground, attempting to discover common or homogeneous projects and to test
explanations of the necessary and sufficient steps through which people construct
given forms of crime.
(KATZ, 1988: 312).
Magalhães (2004) estudou “o crime segundo o criminoso”, tendo analisado os relatos
de presos sobre crimes. Para Magalhães, as entrevistas com presos sobre suas trajetórias
criminosas não estavam descoladas do processo de sujeição criminal, mas faziam parte do
próprio processo de assujeitamento: “os relatos oferecidos pelos entrevistados podem ser
vistos como a própria sujeição em andamento, ou seja, como instâncias específicas de
construção, percepção e apresentação reflexiva e idéxica da experiência de sujeição”
(Magalhães, 2004: 53).
Apesar de a expressão nativa “a vida do crime” remeter-nos a uma idéia de
“submundo do crime”, devo refutar desde já a crença em tal proposição. Classificar estes
jovens como integrantes de um suposto “submundo do crime” seria uma acusação
positivista, um assujeitamento, como se suas subjetividades e identidades tivessem uma
propensão ou crime, ou algo que os distinguisse dos não-criminosos e “normalizados”.
Misse (1999) considerou que essa idéia de um “submundo criminal” refere-se a um
conjunto de práticas, redes e relações que se opõem ao processo de normalização, às leis e
às normas coletivas compartilhadas. Para Misse, essa noção “apóia-se principalmente (mas
não exclusivamente) na noção de ‘bandido’ e no imaginário social que acompanha essa
categoria, construindo-a diferenciadamente por tipos sociais” (MISSE, 1999:42).
Neste sentido, ao se falar em “vida do crime”, está sendo utilizada uma categoria
nativa, difundida até mesmo no senso comum, expressão esta que precisa ser
problematizada e interpretada com cautela. Ramalho (2008) também ouviu dos presos que
entrevistou a expressão “mundo no crime”. Segundo ele, “estar no mundo do crime (ou na
vida do crime) significava estar ilegitimado em virtude da acusação de infração aos códigos
e leis. Neste contexto, trabalho representava a via de retorno à legitimidade social, a
possibilidade (teórica) de ‘recuperar-se’” (Ramalho, 2008:70).
82
Estar na “vida do crime”, para estes jovens, significa identificar-se com certos tipos
de condutas (in) crimináveis e praticar com certa frequência atos ilícitos, de naturezas
variadas; enquanto a frase “quero sair dessa vida do crime” denota um desejo em
desassociar-se destas condutas (in) crimináveis. Misse (1999) ressalta que as autorepresentações dos supostos “criminosos” são o último estágio necessário no processo de
sujeição criminal. Sendo assim, ao incorporarem a idéia de que estão na “vida do crime”, os
adolescentes aceitam a sujeição e corroboram uma identificação com práticas crimináveis;
enquanto querer sair “dessa vida”, representaria uma vontade de romper com esse processo
de sujeição27. De fato, não há nada que determine que a “vida no crime” ou a prática de atos
infracionais esteja colada aos indivíduos – a sujeição é uma construção social, baseada em
classificações de tipos sociais.
Cabe adicionar que, em sua teoria sobre o desvio e a rotulação, Becker (1977)
argumenta que o desvio é algo criado por diversos grupos sociais – podendo variar em suas
definições. Não se trata, portanto, de uma característica da pessoa que comete o ato e nem
do ato. Para Becker, o desvio é constituído pela transgressão de regras criadas por
diferentes grupos sociais (e seus empresários morais) e pela aplicação de sanções ao
desviante. Ou seja, o desvio só é configurado quando ocorre uma reação a ele, caso
contrário, a ação desviante pode passar despercebida na prática. No caso do presente
estudo, esta sanção – a internação - é legal e decorrente de uma decisão judicial que
determinou uma medida sócio-educativa.
Na visão de Becker, “o desviante é alguém a quem aquele rótulo foi aplicado com
sucesso” (Becker, 1977: 60) e o desvio se dá na “interação entre a pessoa que comete um
ato e aqueles que respondem a ela” (Becker, 1977: 64). Já a sujeição criminal vai além, pois
ela depende não só de uma acusação social, baseada na distância social entre os atores, mas
também da auto-representação do sujeito enquanto um “criminoso” ou “bandido”, e da
crença em sua propensão à prática contínua do desvio.
27
Teixeira (2009) problematiza a possibilidade de se superar ou não a sujeição criminal, em seu estudo
sobre “ex-bandidos” que se converteram ao pentecostalismo. Conforme sugere Teixeira (2009), na sujeição
existe a idéia de uma “irrecuperabilidade” do desviante, e o descolamento da sujeição ou do rótulo, nestes
casos, não dependeria apenas da suspensão da prática do desvio. Ramalho (2008) mencionou a expressão
utilizada por seus interlocutores de “criminoso nato”, que “nasceu para essa vida” e seria irrecuperável, um
assujeitado sem volta.
83
A visão de Matza (1999) sobre o crime nos ajuda a pensar sobre o seu aspecto
relacional. Para Matza, o crime, antes de mais nada, se caracteriza por ser uma infração a
leis e regras, logo, é preciso entender a relação do delinqüente com as instituições legais. A
delinqüência é interpretada por ele enquanto um status legal, e não está relacionada a uma
pessoa que quebra a lei continuamente (ela depende desta relação legal e não está
localizada no indivíduo). Matza enfatiza que a delinqüência não é um estado permanente
que define a identidade de um jovem, pois ele deriva (“drift”) entre o comportamento
desviante e o convencional.
Um adolescente não é um delinquente que comete atos infracionais o tempo todo,
pois oscila entre práticas (in)crimináveis e comportamentos normalizados. A perspectiva do
crime a partir de seu status legal e relacional proposta por Matza e Becker relativiza, assim,
o conceito de delinqüência, deixando de lado a idéia positivista de que o crime está dentro
do criminoso. Os adolescentes entrevistados, portanto, não são portadores de uma
subjetividade criminosa, por mais que sejam acusados e assujeitados como tal, e cheguem a
se auto-definir como pertencentes a um suposto “mundo do crime” ou “vida do crime”.
Nas páginas seguintes, serão descritas as relações que estes jovens estabelecem nessa
“vida no crime” e como tais experiências são incorporadas aos seus discursos, identidades
ou subjetividades. De um modo geral, alguns padrões foram percebidos nas histórias de
vida contadas pelos adolescentes, como a forte identificação com facções criminosas; a
dupla atuação em roubos e no tráfico; a proximidade com a morte e a idéia de que ela pode
chegar a qualquer momento, por isso é melhor aproveitar os benefícios da vida do crime ao
máximo; o ódio do “alemão”, seja ele de outra facção ou policial; a visão de que a vida no
crime é uma aventura; a desconfiança de tudo e de todos; e uma adesão a formas violentas
de reação e punição ao inimigo ou “X9”.
4.1 – Roubar e traficar – práticas relacionadas:
Comecei a roubar com 11 anos. Foi tipo, eu tava com 11 anos, sendo fogueteiro
na favela. Não estudava, tinha parado. Dava 100 real por semana. Aí eu falei:
‘pô, essa vida não tá pra mim não. Não tô arrumando nada nessa porra. Vou
sair e começar a roubar’. Aí os cara me chamaram pro assalto. Aí eu falei, ‘já
é’. Aí ele foi e largou uma pistola na minha mão... E eu como? Tá tranquilo. Era
fogueteiro e já peguei logo na pistola.
Ele disse: ‘Fica na mão porque qualquer bagulho nós, como? Aprica e sai’. Já
tirei da cintura e fiquei, já alerta, como? Com a pistola de baixo do braço,
84
alerta. Se passar por uma blitz, o bonde arria. (...) Aí os cara foi e falou: ‘Nós
vai enquadrar aquele banca aí, já tá tudo dado’. Aí ele falou: ‘menor, você vai
ficar só na nossa atividade. Fica com a pistola só na mão e, quando nós
enquadrar, tu fica só na atividade, olhando prum lado e pro outro. Quando
tentar qualquer coisa, tu aprica’. Aí como? Eles já jogaram o bico na cara dos
cara, já parou e eu já como? Tá tranquilo. Fiquei de comissão de frente, só
parado, olhando. Se os cara tentasse eu largava-lhe o dedo e saía fora. Mas eu
nunca baleei ninguém não.
Eu como? Só palmeando (tateando) os cara, e os maluco recolhendo. Aí como?
Nós já trocamo de carro, pegamo um Citröen e bum, metemo o pé. O bicho
como? Já largou-lhe um cavalinho de pau, já girou, pegou logo a contramão, já
cortou (...) e caímos pra favela de I.. De lá, saímo no L.. No L., ficamo tranquilo.
Depois os cana já tava batendo bico, sabia pra onde nos fomo. Aí nós fomo com
o carro pra dentro da favela. Revistamo o carro todo e deixamo o carro lá
tranquilo, dentro do L., mas sem nada, sem os pertences, sem nada. Porque nós
sabia que os cana tinha como? Nós lá na boca, como? Só escuta os cana
botando, ‘pa pa pum pa pum pa pum. Tum tum tum tum tum. Po po po po po’.
Os cana já como? Largou-lhe o aço. E eu como? Já nervosão! Já desesperadão.
Não sabia nem dá tiro, ainda... E eu como? Nervosão. Falei: ‘vou ganhar’. Vou
dar tiro e de repente a pistola cai... Aí eu fui e joguei a pistola assim, e como?
Saí voado. E os cara a tarde inteira, apricando pra cima dos cana. Os cana foi
e falou: ‘só quero só o carro. Aí os amigo: ‘O carro é o caralho, rapa! Arrego
pra vocês é bala de aço”. E os cana partiu pra cima. E os amigo, como?
Partindo também. Quando viu que os cana já tava perto do arrego, os amigo
como? Bum, espalhou, e os cana foi e pegaram o carro e meteu o pé de carro.
Depois nós lá na favela com os pertences, tranquilão, aí eu falei ‘Caraca mané!
O bagulho saiu faísca!!’ (E você atirou?) Atirei nada. Aí eu falei: ‘pô, mané, os
cana largou-lhe o aço e eu não dei nenhum tiro!’. E os amigo: ‘tá bom, menor.
Primeiro dia. De repente você dá um tiro e a sua mão cai pra trás e a pistola
cai”. Tranquilão. Aí dividimo os bagulho.
Aí, dia de baile, os cana veio querer zuar. (Os mesmos?) É. Aí os cana veio. Eu
falei: ‘caralho’. (...) Aí os cana brotou, dia de baile, tranquilão, as cachorrinha
jogando... Aí os PM já chegaram lombrando a favela. Já chegaram na entrada
botando pro alto, pra assustar, pra nao pegar nos morador no bagulho. Só
queria só os bandido. Aí os amigo falou: ‘Agora eles não vão zuar não mané,
bota os bico pra pista’. Caralho, aí os amigo já botou-lhe os bico e eu já peguei
logo a mesma 40 que eu tava, como? Toda cromadona. Os cana já veio e os
amigo tudo de bicão, bolado. E como? ‘Pa pum pa pum pa pum. Tum tum tum
tum tum. Pa pum pa pum pa pum’.
E eu fiquei junto com os cara, como? Não dei nenhum tiro... Falei: ‘pô, não vou
dar tiro, não, mané. Vou ficar só assistindo. Mas se eu ver boiando eu vou dálhe um pra cair’. Fiquei só assistindo, e os tiro batendo do meu lado, lascando
as pedra. Falei: ‘caralho, vou sair daqui. Caí no chão já rolando, fiquei só no
muro assim olhando e como? Aí botaram um tirão no cana. E o cana como?
Meio doidão, palmeando assim. E eu pensei como? Vou apricar... Aí eu pensei
duas vezes: pô, se eu matar, minha mente vai ficar pesada. Não quero a mente
pesada. Aí eu fui e botei: ‘plow’, do ladinho dele. E ele já caiu com o bico,
como? Os cara veio como? Veio sapecando.
Foi o primeiro tiro que eu dei. Mirei do ladinho dele, pô, da perna. Ele tomou
um tiro na perna e eu mirei na outra. Mas sendo que eu não dei pra acertar não.
Só pra ele saber que nós não tá de bobeira. Aí os amigo já como? Já veio pra
cima machucando, e os cana recuando. E ele gritando: ‘tô baleado!’. Os cana
afastando e os amigo depois chegou pertinho dele e rasgou ele no meio. Só de
‘g3zão’, fuzil. G3 2000. Rasgaram ele no meio. Pegamo ele, picotamo ele e
tacamo no fogo. (E você participou?) Eu fiquei só assistindo. Só ajudei a botar
dentro do saco e taca no latão. (E o que você achou disso?) Muito bom! Claro!
85
Jonathan, 15 anos, internado na EJLA por roubo, em entrevista gravada.
O primeiro assalto e a primeira participação em uma troca de tiros foram narrados
por Jonathan em setembro de 2007, depois de uma oficina de vídeo, na sala de estudos da
EJLA. Naquela época, Jonathan – que pediu para ser identificado por esse nome fictício –
estava apreendido há quase um ano naquele instituto, devido à prática de um roubo. Muito
falante, logo se voluntariou a gravar seu depoimento, quando me viu com um gravador de
áudio na mão. Depois de me contar um pouco sobre a sua vida e sobre como “rodou” (foi
pego pela polícia), lhe perguntei com que idade ele começou a praticar atos infracionais.
Então Jonathan narrou a história acima, com muitos detalhes e empolgação.
Nascido na Baixada Fluminense, Jonathan mora com o irmão em uma favela da
Zona Norte do Rio, dominada pela facção Comando Vermelho. A mãe ainda mora na
Baixada, mas ele apenas a visita de vez em quando. Como ele mesmo disse, já trabalhou
para o tráfico, mas ultimamente apenas praticava roubos, em um bairro da Zona Sul, quase
sempre sozinho: “Gosto mais sozinho. É mais aventura. De repente a pessoa pode vir e me
dar uma volta”. A arma que usa nos assaltos é conseguida com traficantes da favela onde
mora, pois ele diz que “tem contexto”; em outras palavras, conhece gente que trabalha no
tráfico e tem uma espécie de “voto de confiança” deles. Ele estava em sua primeira
internação e havia “rodado” depois de roubar uma bicicleta, à mão armada, na saída de um
túnel de um bairro da Zona Sul: “Enquadrei o playboy. Tipo, o playboy tava de bicicleta. A
bicicleta dele tava com freio a disco toda bolada. Sabe quanto que é essa bicicleta? Toda
bolada!”, descreveu ele. Jonathan foi apreendido no Aterro do Flamengo após ser
perseguido por policiais.
Depois de cumprir pouco mais de um ano de internação na EJLA, recebeu a
progressão de regime e foi para um CRIAM. Entretanto, “pulou o CRIAM” (fugiu), dois
dias depois e voltou para a “pista”, o que significa que voltou à “vida do crime”, neste caso,
a roubar. Em abril de 2008, o encontrei na quadra do ESE e me surpreendi. Perguntei se ele
havia sido transferido. Foi quando ele me explicou que havia “pulado o CRIAM”, ficado
um mês “na pista” e “rodado no 157” (roubo), novamente, no mesmo bairro da Zona Sul
(Ele não só estava respondendo por outro roubo, mas também estava cumprindo o mandado
de busca e apreensão expedido devido à fuga do CRIAM). Desta vez ele havia roubado um
86
MP3 player, um celular e R$ 250, tendo ameaçado o casal que roubou dizendo: “Dá tudo se
não vou explodir a tua cara”.
Como Jonathan, muitos outros adolescentes entrevistados contaram ter ficado pouco
tempo “na pista” entre um ato infracional e outro. Para muitos deles, essas idas e vindas
resultaram em meses ou anos de internação no Degase durante a adolescência. Nos 14
meses em que desenvolvi a pesquisa de campo, cheguei a testemunhar a volta de
entrevistados, assim como percebi que alguns adolescentes que davam entrada nas unidades
já eram conhecidos dos agentes e funcionários.
Carlos, 18 anos, interno do ESE, estava em sua 11ª passagem pelo Degase –
incluindo acautelamento provisório -, sendo esta a 3ª internação. Desta vez, ele respondia
por um roubo, mas também já havia sido punido por furto, latrocínio (roubo seguido de
morte) e outros roubos. Na primeira passagem, tinha 12 anos. Entre cada uma dessas
internações e acautelamentos provisórios, Carlos calcula ter ficado, em média, 30 dias na
rua. Sobre os benefícios de ser “menor”, Carlos comentou: “Nós, menor, nós já fica
pensando... Com 15, a gente pensa que tem tempo ainda para fazer as coisas. Na maior,
não. São 30 anos, e não 3. No homicídio, eu ia pegar uns 15/ 20 anos”. Depois de todas
essas passagens e agora com 18 anos, Carlos não sabia o que ia fazer quando saísse do
ESE. Estava em dúvida se ia “pular o CRIAM” ou cumpri-lo e se ia continuar na “vida do
crime” ou não. No último encontro que tive com Carlos, poucos dias antes de ser liberado
do ESE, ele disse que sua irmã estava sofrendo muito e que isso era uma motivação para
“mudar de vida”.
Filho de um falecido traficante de uma favela da Zona Sul – que ocupava um cargo
importante no tráfico - , Carlos disse que nunca traficou, mas “tem contexto”, prestígio
perante traficantes, neste caso, herdado pelo posto que o pai um dia ocupou, como um dos
chefes da favela. Órfão de pai e mãe, morava com irmãs de criação. Seu pai teria matado a
sua mãe – ele não mencionou o motivo – e depois foi morto pelo tráfico como punição pelo
homicídio da mulher.
Nunca trafiquei. Quiseram me dar a herança do meu pai, quando eu tinha 12
anos. Ofereceram a gerência de uns preços lá, mas eu não quis. Já roubava aos
11 anos, logo que a minha mãe de criação morreu. Ficava na rua cheirando
cola, furtando em X. (bairro da Zona Sul). Roubava telefone, cordão e voltava
para casa. Passei por uns abrigos também.
Depois comecei com o 157. Sempre gostei de roubar armado. Mas não gosto de
trabalhar para os outros. Tinha uma quadrilha. Todo mundo era igual. Todo
87
mundo ganhava o mesmo. Dois morreram roubando, enquanto eu tava preso.
Outro tá em Bangu. (E como é na hora de roubar?) Na hora, sempre dá um
calafrio. Tem que trocar tiro para não morrer’.
Carlos, 18 anos, internado no ESE por roubo.
Assim como Jonathan e Carlos, nas duas unidades de internação, a maioria absoluta
dos jovens responde por roubo – como demonstram os dados da 2a Vara da Infância e da
Juventude e dos questionários aplicados na EJLA. Saidinhas de banco, assaltos a pedestres
e a motoristas na Zona Sul e em vias expressas da cidade – como a Avenida Brasil – são os
tipos de roubo mais comuns, em sua maioria, à mão armada. Houve quem contasse ter
participado de blitz falsas e os chamados “arrastões” de carros, quando se rouba vários
veículos de uma só vez. As armas usadas nos crimes nem sempre são dos próprios
assaltantes, mas podem ser pedidas emprestadas “na boca”, ou seja, com traficantes,
dependendo do “contexto” do jovem. Essa idéia de “contexto” remonta a uma credibilidade
ou prestígio que alguém pode ter na relação com traficantes, significando que o tráfico pode
“fortalecer” essa pessoa, devido ao seu status e à sua “moral”. Isso não implica
necessariamente que o jovem tenha trabalhado ou trabalhe atualmente para traficantes.
Vários dos jovens que cometeram roubos revelaram ter praticado furtos quando
mais novos, como no caso de Carlos. Ele começou furtando objetos de pedestres nas ruas
de Copacabana e depois passou a roubar portando armas de fogo, o que configura a prática
do artigo 157 do Código Penal, roubo mediante violência. Pelo fato de o furto não ser
considerado um crime violento, adolescentes geralmente só recebem uma medida de
internação pela prática de furto quando são reincidentes. Ouvi histórias de jovens que
cometeram furtos e receberam algumas medidas de semi-liberdade ou liberdade assistida,
antes de receberem uma internação. O número de jovens respondendo por furtos nas
unidades de internação pesquisadas não é tão alto quanto o de roubo, mas é significativo.
Foi possível perceber que muitos desses jovens respondendo por furto vivem na rua, já
passaram por abrigos da prefeitura e são viciados em drogas, principalmente maconha ou
crack. Roubam objetos de pedestres, de lojas ou de automóveis para comparem drogas ou
objetos de uso pessoal. Sua relação com as facções criminosas é tipicamente distante, ao
contrário de quem foi apreendido pela prática de roubo à mão armada.
A atuação em roubos e no tráfico de drogas foi um padrão recorrente nas duas
unidades pesquisadas. A maioria dos internos apreendidos pela prática de roubo já manteve
88
ou mantém relações com o tráfico de drogas, tendo atuado em atividades relacionadas à
venda de entorpecentes nas favelas do Rio, como descreveu Jonathan. Aquela velha
oposição entre traficantes e assaltantes28, segundo a qual costumava-se argumentar que os
traficantes não fazem mal a ninguém, mas apenas vendem substâncias ilegais, enquanto os
ladrões usufruem de coisas que não lhes pertencem, parece ter caído por terra para a
maioria dos jovens. A participação concomitante nas duas atividades por estes adolescentes
denota que a prática de assaltos não seria tão desmoralizante hoje em dia – excluindo-se
casos de assaltos na favela, os quais são proibidos pelo tráfico.
Barbosa (2005) ressaltou que, segundo os presos, há diferentes “armas” do crime, ou
seja, diferentes fluxos e ações criminosas, as quais, no Rio, estão relacionadas ao tráfico de
drogas. Essas “armas” acabam se entrelaçando e mantendo relações com as atividades
desenvolvidas pelas facções que dominam a venda de entorpecentes nas favelas.
“ em razão desse controle territorial – dos grandes ou pequenos lucros gerados –
mas lucros certos, garantidos – do estoque que guarda em homens e armas - que o
tráfico de drogas passa a funcionar como um centro em torno do qual gravitam
todas as demais “armas”, as demais especialidades da ação criminosa.
(BARBOSA, 2005: 401)
As narrativas revelaram que muitos adolescentes que traficam praticam assaltos
para obterem um “ganho” extra e usufruir pessoalmente dos bens roubados. Aliás, segundo
os internos, as saídas para roubar podem aumentar caso haja prejuízo do tráfico, pois isso
afeta os “salários” recebidos por eles. Um “ganho” costuma render bem mais dinheiro do
que o “salário” recebido pelas atividades no tráfico, como me explicaram David (D) - que
já trabalhou no tráfico, mas saiu, e é pai de um filho de dois anos -, e Leandro (L), ambos
de 18 anos, cumprindo internação no ESE pela prática de roubo:
D: O que eu faço mesmo é roubar. Minha vida é uma correria só. Fui do tráfico,
trabalhava na boca, mas preferi o 157, porque é só para mim.
L: Você rouba pra você, não para os outros.
D: No tráfico não, a maioria do dinheiro é pro patrão.
L: Se não pagar com dinheiro, paga com a vida.
D: Entrei no tráfico com 15 anos. Ficava de radinho e na contenção. Traficava
de dia e roubava de noite. Na contenção, você ganha 180/ 200 reais por semana.
Mas ninguém é obrigado a ficar (no tráfico). Me deixaram sair. Mas não pode
28
Zaluar (1994) comentou sobre um tipo de rivalidade entre os “caixa-baixa” e os traficantes na Cidade de
Deus, na década de 80, e as formas de competição e inveja mútua entre eles.
89
estar devendo. Quando eu trabalhava na boca, saía com a peça (arma), mas
dava o papo para levar a pistola. Depois que saí da boca eu comprei a minha
(arma).
Objetos eletrônicos roubados podem ser mantidos pelos jovens, dados de presente a
familiares ou namoradas, ou revendidos em um mercado paralelo. O dinheiro proveniente
dos assaltos costuma ser gasto rapidamente, na satisfação de desejos consumistas
individuais e imediatistas, como a compra de roupas de marca – camisas de times de
futebol entre elas -, bebidas, drogas e artigos para casa, como eletrodomésticos. Zaluar
(1994) já alertava que o “consumismo e uma ideologia da busca pelo prazer” colaboravam
para esse desejo individualista dos jovens por bens materiais, o que, consequentemente
significa uma busca por status social. “Andar bem vestido” e estar bonito para as mulheres
são símbolos de sucesso para esses jovens. Muitos me disseram, orgulhosos, que “as
novinhas se perdem” – ou seja, as jovens querem sair com eles – quando eles oferecem
drogas, bebidas e roupas novas a elas, e que ter dinheiro e “contexto” são atrativos.
Já os carros e motos roubados são exibidos pelos jovens nos fins de semana,
sobretudo em “pegas” e em festas e bailes funk, mas depois são desmontados e suas peças e
acessórios são vendidas a lojas de automóveis ou ferros-velho. Automóveis caros, novos e
potentes – de “playboy”- são as opções favoritas nos roubos, com o objetivo de “tirar onda”
e exibir a “conquista” pelas ruas da cidade.
Alguns jovens me disseram que, depois de usufruir dos carros roubados em alguns
fins de semana, os deixam na frente de favelas inimigas, dos “alemães”, para que a polícia
atribua o roubo a traficantes inimigos. Ouvi também diversas histórias de jovens que
roubaram carros a pedido de traficantes, para serem usados em “bondes” – comboios de
homens armados -, sobretudo em invasões de favelas, na desova de cadáveres, para serem
dirigidos pelo “patrão” (que pode ser um traficante com cargo de chefia ou o “dono” da
favela), ou para serem vendidos no mercado negro, o que gera lucro extra ao caixa das
quadrilhas que dominam o tráfico em favelas. Os carros podem ser, ainda, oferecidos aos
“patrões” por um determinado preço, por jovens que usualmente desempenham funções na
hierarquia do tráfico. A seguir, alguns trechos de entrevistas em que adolescentes
comentaram sobre o fascínio que têm pelo roubo de carros:
90
Eu roubo carro por diversão, pra ficar com as mulheres, tranquilão. Desta vez
eu rodei quando fui pegar um Audi pra levar pro morro. Rodei numa blitz. Pego
carro pra ficar de rolé no morro. Empeno o carro e vendo as partes. Ou então
dá para vender pro dono inteiro, por uns R$ 2 mil.
Júlio César, 18 anos, internado no ESE por roubo.
Eu trafico e depois posso sair para roubar. Gosto de roubar carro novo, pra
ficar com ele no fim de semana. Depois abandono ou vendo o carro. Levo só os
pertences da vítima. Gosto só de carro de playboy, tipo Honda Civic, Polo, Fox,
Cross Fox. Aí a gente fica dando rolé pelos baile.
Bruno, 18 anos, internado no ESE por roubo.
Quando saio pra roubar, ofereço carro roubado pro patrão. Ou então fico por aí
baqueando, saio dando rolé. Só não pode deixar carro à vista na favela dando
bobeira. Eu deixava longe, pra não complicar pra gente. Bom é deixar na favela
dos alemão.
João Vitor, 18 anos, internado no ESE por roubo.
Eu gosto de roubar carro grande. Um dia fiquei com uma Pajero por 2 meses e
meio. Fui em vários pega lá em X. (nome de uma favela). Lá só tem carro
grande. Dei rolé em vários bailes. Depois taquei fogo nela.
Luís, 16 anos, internado no ESE por roubo.
4.2 - “Enquadrando a vítima” – adrenalina e medo:
Os modus operandi dos roubos são variados, mas pude notar que não se costuma
sair em grupos muito grandes29. Entrevistados disseram que geralmente saem sozinhos, em
duplas e trios, ou, no máximo, em grupos de quatro. É frequente a presença de maiores de
idade nesses grupos, que são fluidos, instáveis e sem um esquema complexo de
organização. Em geral, colegas da “pista” decidem sem muito planejamento ir roubar
juntos, para fazerem um “ganho”, mas isso não significa que roubem juntos com
assiduidade. Os participantes vão e vêm e as ações são decididas de acordo com as
circunstâncias e desejos momentâneos.
Não seria correto atribuir o status de gangues, no sentido de Foote Whyte (2005), a
esses grupos efêmeros. Nem tampouco se poderia dizer que se assemelham ao que Dubet
(1987) chamou de “galères”, que é algo ainda mais fluido, um tipo de sociabilidade difusa,
em que o crime é uma das atividades incluídas na ação de “galérer”. A desconfiaça dos
parceiros de roubos é constante, o que contribui para a transitoriedade desses grupos.
Jonathan, por exemplo, desistiu de roubar em grupo depois que um jovem escondeu dele
bens roubados, quando saíram em dupla para praticar um assalto. Escutei muitas vezes
29
Os furtos, geralmente, são praticados individualmente, até para não se chamar a atenção.
91
jovens dizerem que “nessa vida não dá para confiar em ninguém” e que “não dá para ter
amigo”. Por mais que tenham “parceiros” de roubos ou de facções criminosas, dizem ser
preciso desconfiar de todos, para não ser passados para trás.
As vítimas preferidas nos assaltos são os “playboys” ou “mirians”, os estereótipos
de quem tem alto poder aquisitivo e “mora bem”, tipico-idealmente na Zona Sul ou na
Barra. Se, por um lado, a classe média assujeita esses jovens, por outro, eles mesmos
aplicam rótulos a pessoas com aparente poder aquisitivo, como se elas merecessem ser
punidas moralmente por ter mais dinheiro que eles. Como se tomar algo de quem tem
bastante fosse até certo ponto justificável. “Perdeu, playboy” é uma das frases ditas
comumente quando se anuncia um assalto. Zico, 18 anos, interno da EJLA, me disse que
tinha um prazer especial em roubar jovens de classe média “cheios da marra” (arrogantes
ou metidos), desmoralizando-os: “Gostava de roubar carro dos pitboys bombados, cheio da
marra. Comigo eles sai pelado. Tira a roupa, o tênis, tudo. Deixa tudo dentro do carro”.
A discriminação sofrida por alguns jovens na rua e a suspeição de que são alvo pela
população, que costuma atravessar a rua ou fechar o vidro quando vê um jovem “suspeito”
na rua, muitas vezes pode motivá-los na escolha de uma vítima. Segundo os adolescentes,
as pessoas desconfiam de que eles podem assaltá-los pelo tipo de roupa que vestem e pelo
jeito de andar. Em uma conversa com cerca de cinco jovens do ADA na biblioteca do ESE,
eles enfatizaram o quanto essas atitudes de populares os deixa irritados e com vontade de
lhes dar uma lição. “Às vezes eu passo na rua, as madames fechando o vidro, atravessando
a rua, quando eu ando gingando30. Aí que eu quero roubar mesmo. Eles sabem pela nossa
roupa. Eu vivia no dia-a-dia isso”, descreveu João Vitor. A atitude “assujeitadora” de
algumas pessoas faz com que esses adolescentes tenham vontade de reverter esse quadro de
suposta inferioridade moral e discriminação, demonstrando do que são capazes. No entanto,
paradoxalmente, se o assujeitamento os incomoda, reagir a ele com um assalto é o aceite da
sujeição.
Katz destacou o fato de que assaltantes buscam ângulos variados de superioridade
moral na prática de roubos. De acordo com Katz, “In virtually all robberies, the offender
discovers, fantasizes or manufactures an angle of moral superiority over the intended
30
O termo “gingar” significa andar de modo “marrento”, desafiador, seguro de si, demonstrando sua
personalidade forte aos outros.
92
victim” (Katz, 1988: 169). Este autor acrescenta que a superioridade moral não depende do
uso da força e de uma suposta irracionalidade do assaltante, mas de tornar pública uma
disposição ou reputação pessoal de um sujeito mau, em inglês, a “badass”. A aparente
irracionalidade de quem pratica assaltos violentos – com uso de ameaças ou mortes de
vítimas -, na opinião de Katz, significa, na verdade, um intuito racional de fortalecer a
figura do “stickup man” (assaltante) como um sujeito mau. Katz acredita que adolescentes
muitas vezes encaram os assaltos e essa busca por uma reputação de malvados como um
jogo divertido: “For the adolescent, being a hardman, a bad man, or a ‘stone ganster’ is
often initially a role taken on at a distance as portrayed with a playful attitude” (Katz, 1988:
234).
Mais do que um jogo, diria que esses jovens consideram “a vida no crime” como uma
“aventura”, na qual se divertem – mas nem sempre -, conquistam status entre seus pares e
obtêm bens de consumo desejados. Tanto nas narrativas sobre a prática de roubos como nas
histórias em geral sobre a “vida no crime”, remonta-se à idéia de que correr riscos ao
cometer um ato infracional é uma “aventura” ou dá “adrenalina”, acompanhada de medo e
desconfiança constantes. O relato de Jonathan sobre a primeira vez em que saiu para roubar
demonstra um misto de medo e fascínio pelo perigo.
O interno da EJLA Paulo, de 14 anos, respondendo por roubo, contou a sensação que
tinha ao assaltar: “Na hora de roubar dá adrenalina. É muito bom. Depois você fica alegrão,
com todo aquele dinheiro na mão. Gastava tudo com droga e roupa. Comprava Redley,
Puma, Ciclone, Aldeia dos Ventos”. Conseguir escapar ileso de um roubo ou de uma
operação policial na favela são grandes feitos para eles e a “aventura” vivenciada é contada
com orgulho. No entanto, apesar de momentos de aparente diversão, a desconfiança e o
medo de serem mortos, presos ou baleados fazem da “vida do crime” uma tensão constante
para esses jovens.
Apesar de tentarem demonstrar uma superioridade moral e de, muitas vezes,
escolherem vítimas das quais têm raiva ou inveja, os jovens que praticam roubos não são
tão agressivos, cruéis ou irracionais como se costuma dizer no senso comum. A idéia de
que adolescentes atiram em qualquer um e cometem homicídios cruéis me parece ser mais
uma imagem criada pela mídia e por pessoas que demandam maior punição aos ditos
“menores infratores” do que uma realidade. O noticiário produzido sobre latrocínios, como
93
os praticados contra o menino João Hélio, o músico do grupo Detonautas e a socialite Ana
Cristina Johannpeter, que tiveram a participação de menores de idade, contribuem para uma
visão de que os jovens são cruéis e sanguinários, fazendo deles os “símbolos” da
criminalidade urbana violenta atual. Mas não se pode generalizar a partir destes casos. Nos
últimos anos, o número de jovens que cometeram latrocínios e passaram pela 2a Vara da
Infância e da Juventude é relativamente baixo. Em 2006, por exemplo, foram apenas oito
casos julgados. Na EJLA, dos 105 que responderam ao questionário, oito haviam cometido
latrocínios.
Ao anunciarem um assalto à mão armada, os adolescentes costumam ameaçar as
vítimas com frases como “passa tudo se não eu vou estourar a tua cara”. Mas pude notar
que essas típicas ameaças nem sempre se concretizam e, mais ainda, muitos jovens não tem
a real intenção de matar ou machucar as vítimas. “É só para assustar”, diziam. Se a vítima
for um policial à paisana, no entanto, eles atiram, devido à aversão que nutrem contra o
“verme” ou “alemão” – como será detalhado a seguir. Em muitos dos roubos que terminam
em homicídio ou tentativa de homicídio há a presença de um policial, o que costuma gerar
troca de tiros ou perseguição.
De todas as dezenas de entrevistados, me lembro apenas de dois terem dito que, se
as vítimas em geral (civis) reagissem, eles as matariam, ou as agrediriam. Certa vez,
enquanto alguns jovens conversavam comigo sobre a prática de roubos, no ESE, Júnior, de
18 anos, interveio no papo e comentou: “Vocês dá molinho! Vai roubar e não mata a
vítima... Dá mole. Não são esperto. O certo é matar mesmo. A regra é essa. Reagiu, tchau”.
Como eu não o conhecia, os jovens logo o apresentaram: “Este aí Júnior. Ele já matou
várias vítimas”.
4.3 – Experiências no tráfico e representações sobre as facções
criminosas – a guerra contra o “alemão”:
Pertencer ao Comando é fechar com eles. Se não fechar, é porque tá fechado
com outra facção, com PM, com alemão.
Leandro, 18 anos, internado do ESE por roubo
Sou Comando (Vermelho), mas não sou comandado. Não gosto de receber
ordem: ‘Vai aqui e mata aquela pessoa, faz isso aqui...’ Não preciso ficar lá
94
sentado esperando ordem de ninguém. (...) Se você tá no crime, já faz parte de
uma facção. Não precisa traficar.
Carlos, 18 anos, internado do ESE por roubo
A: Ah... Tem que obedecer os cara...
B: É general.
A: Tem que escutar os cara.
B: Superior a nós.
(Todos vocês trabalham com o tráfico?)
A: A maioria aqui é ladrão, mas nós tem que escutar os caras. Todo mundo. Se
tu mora na área... Tem que fechar com os caras. Se tu mora na área do
Comando, tem que ser Comando.
Conversa com internos do ESE
As explicações dadas pelos internos apontam para o grau de influência da dinâmica
do tráfico de drogas sobre suas ações e subjetividades. “Na vida do crime”, dizem eles,
você acaba tendo de se integrar a uma facção, por mais que não se trabalhe para traficantes.
Quem não assumir uma facção é logo visto com desconfiança, pois pensa-se que essa
pessoa pode ser “inimiga”, ou “alemão”. No internação, essa lógica faccional tem
seguimento, já que os jovens precisam dizer a qual facção pertencem para ser alocados em
um alojamento de determinado grupo – por mais que o jovem nunca tenho feito parte ou se
auto-denominado integrante de uma facção. O locus dos internatos, pode ser, portanto, um
locus de formação ou fortalecimento de vínculos efetivos e simbólicos com esses comandos
ou facções.
Essa noção de pertencimento a facções é fluida e, na visão dos jovens, o
pertencimento não prescinde de atuação efetiva nas atividades ilegais relacionadas ao
comércio de drogas. Morar em uma área dominada por uma quadrilha pode ser o suficiente
para declarar-se integrante deste grupo. Segundo Zaluar (1994), existe nas comunidades e
favelas do Rio um “profundo sentido de localidade que parece ser um elemento
fundamental na formação das identidades sociais e que aqui aparece ainda mais acentuado
pela guerra de quadrilhas” (Zaluar, 1994: 22). Isso significa que ser “cria” de uma favela,
ou seja, ter nascido e sido criado naquele local, pode constituir uma conexão identitária e
simbólica desse adolescente com a facção que domina aquele território. A fluidez na idéia
de “ser de uma facção” reflete a maleabilidade das alianças que formam as facções.
Barbosa (2005) destaca o aspecto rizomático desses grupos:
É necessário relembrar que o que denominamos de Comando é na verdade um
espaço de negociação permanente, construído a partir das cadeias. Não é possível
95
pensarmos em uma organização com hierarquia rígida, com lideranças acima dos
donos de morro. Trata-se de grupos que se apresentam como blocos territoriais,
onde não existe uma oposição segmentar que possibilite a articulação de um
sistema piramidal.
(BARBOSA, 2005: 389)
Por um lado, muitos jovens que nunca trabalharam diretamente no tráfico de drogas
assumem em seus discursos e em seus imaginários o pertencimento a uma facção, e acabam
incorporando às suas identidades as rivalidades existentes na guerra do tráfico. Ele tem que
“fechar com alguém”, e “fechar”, no mínimo, é se auto-declarar como integrante de um
desses grupos criminosos. Mas, por outro lado, como foi dito anteriormente, a maioria dos
jovens que respondem legalmente por roubo já participou ou ainda participa das atividades
ligadas à venda de entorpecentes nas favelas, apesar de não estarem sendo punidos ou de
nunca terem sido punidos por tráfico de drogas. Ou seja, o volume da incriminação juvenil
por tráfico de drogas é muito menor do que o envolvimento direto desses mesmos
adolescentes internados com a venda de entorpecentes.
O significado da noção de pertencimento dos jovens a facções criminosas pôde ser
percebido quantitativamente na aplicação de questionários na EJLA. Dos 105 entrevistados,
79,1% disseram fazer parte de uma facção criminosa e apenas 21,9% dos entrevistados
declararam não pertencer a nenhuma delas (A pergunta feita era “Você pertence a alguma
facção?”). Dos que disseram pertencer a uma facção, 51,4% afirmaram ter trabalhado para
o tráfico, e 26,7% afirmaram que pertencem a uma facção porque moram numa área
dominada por aquela quadrilha ou porque conhecem traficantes daquele bando (Nessa
pergunta, indagou-se “Qual a sua relação com essa facção?”).
Dentre aqueles que disseram integrar uma facção criminosa, 66 revelaram ser do
Comando Vermelho, 13 do Amigos dos Amigos e três do Terceiro Comando Puro. Cabe
aqui mencionar que os adolescentes do Comando Vermelho são maioria em todas as
unidades de internação, inclusive na EJLA e no ESE.
Na EJLA, dos 54 jovens que declararam ter trabalhado diretamente para o tráfico, a
grande maioria disse ter atuado como vapor, cargo no qual se vende drogas na “boca”,
como demonstra o gráfico abaixo (lembrando que eram permitidas múltiplas respostas). As
funções de segurança do tráfico e de gerente também foram frequentes.
96
Tabela 4.1
Relação específica com a facção – EJLA
N
nunca teve relação com facção
23
mora na área ou conhece traficante
26
vapor
25
segurança
14
roubou ou vendeu mercadoria para o tráfico
12
gerente
12
radinho ou fogueteiro
2
dono de favela
2
ingressou na cadeia
2
avião
1
matou para o tráfico
1
TOTAL
105
* Eram permitidas múltiplas respostas.
%
21,9%
24,8%
23,8%
13,3%
11,4%
11,4%
1,9%
1,9%
1,9%
1,0%
1,0%
Dos 17 jovens que respondem atualmente pela infração tráfico de entorpecentes, sete
disseram que trabalhavam como gerente, três como vapor e quatro como segurança. Diante
do alto percentual de jovens que declararam ter tido relações com o tráfico – maior do que
o percentual que responde por esta infração -, decidiu-se, então, verificar a quais outras
medidas sócio-educativas os “vapores” e “gerentes” tinham respondido. Foram escolhidas
estas duas categorias porque, na hierarquia das facções criminosas, são estes postos que
têm ligações mais diretas com o comércio dos entorpecentes, pois manuseiam drogas, ou
seja, são mais facilmente “enquadradas” no crime de tráfico. Observou-se que, destes 36
“vapores” ou “gerentes”, 58,3% (21) atualmente estão apreendidos por roubo, e apenas
27,8% (10) por tráfico. Além disso, verificou-se que, dos 36 jovens que afirmaram ser
“vapores” ou “gerentes”, 23 nunca haviam recebido medidas de internação e nem de semiliberdade por tráfico – apenas 6 receberam somente internação, 3 somente semi-liberdade e
4 as duas medidas.
Estes cruzamentos corroboram as idéias de que é comum a dupla atuação dos
jovens, tanto no tráfico, quanto em roubos, e de que os adolescentes são internados com
mais frequência por roubo, e não por tráfico. Contribuem para que a apreensão por tráfico
seja menos comum o fato de que essa atividade acontece em favelas, onde não há tanto
policiamento rotineiro quanto em outras ruas da cidade, e, principalmente, o pagamento de
propinas a policiais – o chamado “arrego” - com o dinheiro do tráfico. Adolescentes que
trabalham no tráfico podem conseguir evitar ser levados para a delegacia usando o dinheiro
97
da “boca-de-fumo” ou do “patrão” para pagamento do “arrego”, o que é mais difícil quando
um jovem é apreendido em flagrante roubando em uma rua fora das favelas.
Nas entrevistas aprofundadas com os jovens, eles revelaram a dinâmica da atuação
no tráfico de drogas com mais detalhes. A hierarquia do tráfico narrada por eles coincide de
maneira geral com a descrita por Zaluar (1994), Misse (2006) e Dowdney (2003). Os
adolescentes geralmente começam a trabalhar em uma das atividades do tráfico quando têm
entre 11 e 13 anos. É comum que os jovens saiam da casa dos pais ao se envolverem com o
tráfico, seja por que seus pais não aceitam o seu envolvimento com o crime, seja por que os
próprios jovens preferem morar sozinhos ou com amigos – e por vezes irmãos -, fazendo
uso do dinheiro adquirido no tráfico.
Segundo os adolescentes, o primeiro estágio que desempenham na hierarquia do
tráfico é o de “fogueteiro” ou “radinho”, uma função de “olheiro”. Situados em pontos
estratégicos da favela, costumam trabalhar em turnos diários de 12 horas (como, por
exemplo, das 9h as 21h, ou das 19h às 7h) e devem soltar fogos ou avisar pelo rádio quando
a polícia ou carregamentos de droga chegarem à favela. O “salário” pago a quem trabalha
no tráfico varia de acordo com o volume da venda de drogas na favela e a quantidade de
pessoas envolvidas nessa operação. Para o cargo de “fogueteiro” ou “radinho” jovens me
disseram ganhar entre R$ 150 e R$ 250.
Pôde-se perceber que os cargos mais ocupados pelos adolescentes entrevistados nas
duas unidades são o de “vapor” e “segurança”, sendo este último também chamado de
“soldado”, “atividade” ou “contenção”. O cargo de “vapor”, que inclui a venda de drogas
repassadas pelos gerentes, é a porta de entrada para diversos jovens no tráfico, com um
pouco mais de idade do que os “radinhos” ou “fogueteiros”. Em média, um vapor ganha
entre R$ 300 e R$ 400 por semana, podendo trabalhar 12 horas por dia ou em turnos de 24h
de trabalho por 72h de descanso, como na Polícia Civil, por exemplo. Além disso,
dependendo do volume de vendas, o “vapor” pode ganhar uma cota extra. Já os
adolescentes da “atividade” atuam não só na boca-de-fumo como também em pontos
estratégicos da favela e ao lado de gerentes e dos donos. Se houver operação da polícia ou
ataque do e contra o “alemão”, eles são a linha de frente e ganham a partir de R$ 300 por
semana, para trabalhar em turnos de 12h.
98
Acima dos vapores e soldados, estão os gerentes e subgerentes das bocas.
Observou-se que é muito comum uma boca ter diversos subgerentes, divididos de acordo
com as drogas e os preços das mercadorias. Assim, podem haver gerentes do “pó de R$15”,
outro do “pó de 30”, da “maconha de R$5”, da “maconha de R$10”, e assim por diante.
Diversos adolescentes disseram exercer funções de gerência de preços específicos de
drogas, inclusive alguns revelaram ser gerentes de uma boca. Na EJLA, houve dois jovens
que disseram ser donos de favelas, mas são casos atípicos, em favelas fora da cidade do
Rio.
Outro cargo ocupado por adolescentes, com muita honra aliás, é o de “fiel” do
“dono” ou de alguém com cargo na alta hierarquia do tráfico. Essa função não só inclui a
“segurança”, como também a realização de atividades corriqueiras, como ir comprar
comida ou outros artigos pessoais para patrões e para “o cara”, que ocupa o posto mais alto
da favela. Também foram entrevistados jovens que trabalharam na endolação, que gera
cerca de R$250 por semana. Já o cargo de “avião”, ocupado por quem atua no transporte de
drogas, foi pouquíssimo mencionado pelos entrevistados, mas não se pode precisar a causa
dessa ausência.
O porte de armas de fogo era sempre ressaltado com ênfase na entrevista, em que os
adolescentes faziam questão de demonstrar um profundo conhecimento sobre armamentos e
munições, bem como a superioridade do tráfico à polícia neste quesito. Fuzis, pistolas,
metralhadoras, granadas e até armas anti-aéreas são artefatos comumente utilizados por
esses adolescentes. Para Zaluar (1994), o porte de armas por adolescentes está diretamente
relacionado com o “ethos da honra masculina”, em que os armamentos tornam-se extensões
dos corpos masculinos, simbolizando poder, coragem e masculinidade.
Cabe mencionar que, mesmo apreendidos, diversos adolescentes continuam
mantendo relações com as facções, através de familiares e conhecidos. Alguns jovens –
notadamente aqueles que se dizem portadores de “contexto” na favela - disseram que
traficantes emprestam dinheiro para que as suas famílias possam visitá-los nas unidades de
internação e comprar itens de higiene pessoal e comida para eles. Como será visto no
capítulo 6, a comunicação dos internos com integrantes da alta cúpula das facções também
é mantida, através de cartas, informações passadas por visitantes ou até mesmo por
99
celulares usados ilegalmente nas unidades. A seguir, alguns relatos dos entrevistados sobre
a rotina de trabalho no tráfico de drogas:
Hoje eu trabalho como vapor. Comecei aos 11 no tráfico. Ganho R$300 ou
R$400 por semana. São 12 horas por dia. Mas a boca tem hora extra também.
Se você quiser, pode pegar outro turno e cobrir alguém. Aí trabalha 24 horas.
Bruno, 18 anos, internado no ESE por roubo.
Trabalho na atividade, na contenção. Se o bagulho lombrar, se vier polícia, é
comigo mesmo. Tô nessa vida desde que tinha 13 anos.
Leandro, 18 anos, internado no ESE por roubo.
Entrei com 12 anos, quando minha mãe foi embora de casa. Fiquei morando
com a minha tia, na favela Y.. Minha família não ligava pra mim, não tinha onde
ficar direito. Aí comecei de fogueteiro e tirava R$ 250 por semana. Depois virei
vapor, ficava traficando. Ganhava R$ 300, R$ 350 todo sábado. Trabalhava por
12h, da meia-noite ao meio-dia. Ou então era 24h por 72h.
Osmar, de 18 anos, internado do ESE por homicídio.
Sou soldado e saía para roubar. Dava plantão de 12 horas e ganhava 300 por
semana. Às vezes ficava de fuzil, metralhadora, pistola. Granada é que eu gosto.
Gostava de sair com granada pra roubar. Se os cara atira, joga a granada. Leva
cinco segundos pra estourar.
Ricardo, 18 anos, internado na EJLA por latrocínio.
Os cara conhecia o meu pai (que morreu e era traficante) e eu peguei uma
gerência quando tinha 14 anos. Mas no começo eu ficava só na base. Não podia
sair. Era segurança. Tirava R$ 300 por semana.
Júlio César, 18 anos, internado no ESE por roubo.
Eu tinha responsa no morro. Trabalhava de gerente na boca e para o dono do
morro Z. Só recolhia. E fazia a caixinha do CV, a contabilidade. (...) Quando
perde para os polícia, balança tudo. Quem roda, trabalha de graça depois.
Quem usa dinheiro da boca, dá a recuperação 1 ou 2 vezes, mas depois mata. (E
você já participou disso alguma vez?) Já participei de execução de X9. É a vida
do crime. Tem gente ali que só picota. Mas eu já participei também. Picotamo o
X9 e colocamo fogo num latão.
Zico, 18 anos, internado na EJLA por latrocínio
Pesquisas anteriores apontaram para uma juvenilização do tráfico de drogas no fim
da década de 80, com indivíduos cada vez mais novos assumindo postos na hierarquia das
quadrilhas. Essa juvenilização pôde ser evidenciada através das narrativas dos jovens
entrevistados na pesquisa. Dowdney (2003) chama atenção para o fato de que, com a
entrada da cocaína no mercado das drogas na década de 80, o lucro do tráfico aumentou
significativamente e passou-se a utilizar a mão-de-obra juvenil em maior escala. De acordo
100
com Dowdney, os dados da 2a Vara da Infância e da Juventude indicam que o número de
atos infracionais relacionados ao consumo ou venda de entorpecentes cresceu bruscamente
nas décadas de 80 e 90, tendo passado de 110 em 1980 a mais de 3 mil em 1998. Dados
mais recentes, no entanto, demonstram que a incriminação por tráfico está descendendo –
como demonstrado no capítulo 2.
Segundo Misse (2006), a participação crescente de adolescentes no mercado das
drogas coincide com o que ele chamou de segunda fase do tráfico, marcada pela
“segmentação do ‘movimento’” e pela prisão de diversos chefes do Comando Vermelho, o
que levou ao emprego de mão-de-obra mais jovem nas bocas de fumo. A primeira fase do
tráfico, segundo Misse, tinha o Comando Vermelho como grupo hegemônico, enquanto
essa segunda fase do tráfico, que começou no final da década de 80 e dura até hoje, é
caracterizada pela guerra entre facções e a desconfiança mútua:
Diferentes formas de violência articularão (ou desarticularão) as construções
imaginárias de confiança e reciprocidade nesses ambientes, e o aumento de
conflitos com morte, na segunda fase do tráfico, assinala a decomposição
crescente da organização mínima de confiança recíproca prevalecente na primeira
fase.
(MISSE, 2006: 191)
Nessa lógica de disputas por território e pontos de venda de drogas, os integrantes de
outras facções são inimigos a serem eliminados. O ódio pelo “alemão” – termo que não só
se refere a outras quadrilhas como a policiais também – está presente na narrativa de todos
os jovens que dizem pertencer a uma facção. Para Misse (2006), “alemão” é uma
identidade coletiva do Outro que colabora na construção de alguma identidade mínima de
pertencimento e solidariedade interna” (MISSE, 2006: 197). Visto como uma “ameaça”
aos objetivos da facção, o “alemão” deve ser atacado e/ou morto, segundo os jovens, pelo
bem e pela manutenção da força da facção.
No ESE, esse discurso da guerra contra o “alemão” às vezes é vivenciado na prática,
pois os jovens de facções rivais já se agrediram fisicamente quando entraram em contato,
principalmente durante rebeliões. É com base nesse discurso que prega a violência contra o
“alemão” que os diretores das unidades do Degase justificam a separação dos alojamentos
de acordo com as facções criminosas. Mas isso não significa que lá não haja situações em
que o contato entre “alemães” transcorra sem brigas.
101
Na EJLA, como já foi dito, a convivência entre grupos rivais é mais pacífica, pois
eles realizam atividades juntos – apesar de trocarem insultos e ameaças e discutirem com
certa frequência. De acordo com Udson, 17 anos, internado na EJLA, “Aqui nessa cadeia é
uma coisa, na pista, outra. Aqui não dá para falar nada de facção. Lá na pista é terra de
Marlboro: eles pra lá, nós pra cá. É que nem fogo cruzado”.
E nessa “terra de malboro”, muitos adolescentes já se arriscaram em ataques e
invasões de favelas inimigas, além das constantes trocas de tiros durante operações das
polícias do Rio nas favelas – sobretudo desde que o governo estadual deu início a uma
política de “enfrentamento” ao tráfico. As histórias sobre a guerra de facções e a disputa
por territórios são contadas pelos jovens com muita empolgação, transparecendo o desejo
de eliminar o “alemão” e exibir a coragem ou “disposição” para o enfrentamento direto
com o inimigo. Em suas narrativas, o “alemão” é sempre descrito como sem princípios
morais, mais cruel e menos respeitado pela comunidade do que a facção a que pertencem.
A participação em bondes armados organizados para invadirem favelas foi
mencionada por alguns deles, como Jefferson, 18 anos, internado no ESE por roubo. Ele
disse ter trabalhado como fogueteiro e endolador em uma favela da Zona Norte do Rio,
dominada pelo Comando Vermelho. Na única entrevista que fiz com ele, em junho de 2008
– ele estava apreendido há três meses -, Jefferson reclamou sobre a crueldade de traficantes
inimigos, do Morro da Mineira, que haviam matado recentemente três jovens moradores do
Morro da Providência, no caso envolvendo militares do Exército. Os comentários sobre
esse episódio o levaram a mencionar a participação, em 2008, em um “bonde” que tentou
tomar a favela B., em um complexo de favelas na Zona Norte. A troca de tiros e a tensão da
invasão foram narradas por Jefferson com muita energia:
Nós fica bolado. É mó covardia. Eles não tinha porque matar os três moleques
da Provi, nem bandido eles eram. ADA e TCP é mó covardia, esculacham
morador. Nós não. No que puder nós ajuda.
Na guerra da B., eles tava roubando padaria e tudo. Nós tomamo pra proteger
eles. Quatro de nós morreram, pelo Bope. Saíamos num bonde de 80, da H., do
M., da A. (nomes de favelas),...
(Como foi invadir outra favela?) É gostosinho. É maneiro dar tiro. É tipo uma
aventura.
Matei um policial do Bope e fiquei rindo. O cara tinha matado o meu amigo,
atirou na cara dele. Um outro parceiro meu levou um tiro na perna do policial.
O cara ia matar meu amigo, mas eu matei ele primeiro. Eu tava atrás dele e vi
que ele ia atirar no garoto. Salvei meu parceiro.
102
Só saímos de lá quando o Bope tomou o morro. Eu tava usando uma ponto 30, a
‘Pepê e Neném’. Ficamos quatro dias trocando tiro, entocado nas casas. Cinco
amigos morreram.
Jefferson, 18 anos, internado no ESE por roubo.
Como Jefferson, muitos outros jovens participaram de tentativas ou invasões de
favelas, ações que materializam o que Zaluar chamou de “condomínio do diabo” (Zaluar,
1994), ou, no linguajar dos jovens, “a guerra contra o alemão”. De acordo com Zaluar,
neste círculo vicioso de ataques armados entre quadrilhas rivais, na disputa por bocas-defumo, a dignidade masculina é posta à prova a todo momento, e, por isso, eles costumam
revidar com violência a qualquer provocação. Para esta autora, quando um jovem é
desafiado ou humilhado por traficantes rivais ou policiais, ele se sente obrigado a fazer uso
da força, e defender o “ethos da honra masculina”, entrando num circuito de guerra armada
e de retaliação violenta – circuito que é estendido ao Degase. A defesa e disputa por
territórios tornam-se uma obrigação de quem faz parte desta lógica faccional, e as armas,
um símbolo desse ethos:
Área invadida é área emasculada. Seus defensores ficam desmoralizados no
local. Do mesmo modo que um homem não pode levar uma ofensa sem dar
resposta – ‘tem que ter volta’, a área não pode ser pisada ou tomar tiros sem
reagir, o que pode provocar as rixas intermináveis e um processo incontrolável
de violência, ou seja, a guerra (...) Aqui instaura-se outro círculo vicioso: de uma
definição masculina de ‘honra’ que obriga a resposta a qualquer desafio ou a
qualquer ação facilmente considerada ofensiva devido à suscetibilidade à flor da
pele dos adolescentes, desliza-se para uma escalada de violência que transforma
as armas em símbolos da masculinidade e em garantias únicas contra a derrota
vergonhosa ou a morte, e instrumento da submissão ou da morte do rival.
(ZALUAR, 1994: 109)
4.4 – Sobre traições e mortes:
Assim como ser fiel à facção e lutar pelo fortalecimento de sua territorialidade é uma
obrigação moral para os adolescentes que trabalham no tráfico, os “traidores”, delatores, ou
“X9s”, devem sofrer consequências violentas - que muitas vezes contam com a
participação desses jovens. Na “lei do silêncio” imposta nas comunidades, ir a uma
delegacia ou simplesmente conversar com policiais constitui o ato de “xisnovear” (delatar).
O ato da denúncia, um direito civil moderno, passa a ser visto, assim, como uma delação,
em seu sentido particularista, segundo Misse (1999).
103
Uma eventual mudança de uma facção para a outra significa que esse indivíduo será
estigmatizado como traidor ou “X9” e marcado de morte pela facção que deixou. “Pular de
facção” parece ser uma prática mais comum quando se deixa o Comando Vermelho para as
outras facções do que o contrário. Entrevistei diversos jovens da quadrilha Amigos dos
Amigos que haviam sido do Comando Vermelho, como, por exemplo, aqueles que moram
na Rocinha – que foi invadida pela ADA, em 2004, e trocou de comando.
Os jovens do Comando Vermelho costumam dizer que as outras facções aceitam seus
ex-soldados porque são minorias e precisam de mão-de-obra, mas que eles não admitem
indivíduos vindos de outros grupos. As mudanças podem ter origem em desentendimentos
com a facção e consequentes ameaças de morte, por exemplo, se o jovem estiver devendo
algo ao “patrão”. Em um caso que será descrito no capítulo 6, alguns jovens que foram
jurados de morte pelo Comando Vermelho devido ao espancamento de um interno no ESE
teriam mudado de facção para se proteger.
No Degase, quem “pula de facção” corre riscos de ser agredido pelos integrantes da
facção que se tornou inimiga. Para proteger a sua integridade física, eles podem até mesmo
ficar nos chamados “seguros”. Este é o caso de Thomas, de 18 anos, que teve de ser
transferido de unidade, pois está jurado de morte. Alojado no “seguro” de uma unidade o
Degase, ele disse ter mudado de facção e colaborado nas investigações e incursões da
polícia em uma favela dominada pelo Comando Vermelho, do qual havia feito parte. O
caso ficou famoso e foi amplamente noticiado em jornais, e, segundo comentam agentes de
disciplina, traficantes do Comando Vermelho já teriam oferecido R$ 50 mil pelo jovem.
Em uma das unidades pela qual passou, ele teria sido espancado e abusado sexualmente por
diversos internos.
A punição do “X9” e do traidor é um dos deveres de quem obedece às chamadas
“leis do tráfico”. A idéia de que o comando ou a facção dita as regras é um ponto sempre
ressaltado pelos jovens, que demonstram um compartilhamento – por mais forçado que seja
- desses valores impostos por traficantes. Internos do Comando Vermelho muitas vezes
enfatizaram que, nas favelas, é preciso obedecer os “10 mandamentos do Comando
Vermelho”, quais sejam: “não negar a pátria, não cobiçar a mulher do próximo, não
conspirar, não acusar em vão, fortalecer os caídos, orientar os mais novos, eliminar nossos
inimigos, dizer a verdade mesmo que custe a vida, não caguetar e ser coletivo”.
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Além disso, os traficantes não toleram roubos em favelas, assaltos a passageiros de
ônibus, crimes praticados contra idosos ou crianças, estupros, e homicídios praticados nas
comunidades, sem autorização do tráfico. Ficar devendo dinheiro à boca também acarreta
punições violentas tanto a consumidores de drogas ou a jovens que trabalham no tráfico.
De acordo com os jovens, a punição adequada para quem transgride essas normas do
tráfico é decidida pelo “patrão”, mas pode variar entre surras, torturas e até a morte.
Dependendo da “infração”, os traficantes podem dar uma segunda chance aos indivíduos, o
que eles chamam de “recuperação”, como foi dito por Zico. A “recuperação” dentro das
unidades de internação será abordada no capítulo 6.
Com muita frequência ouvi histórias de jovens que assistiram ou participaram dessas
punições violentas a “X9s” e a pessoas que cometeram desvios nas favelas, segundo a ótica
do tráfico. Inclusive houve jovens que disseram ter participado de execuções quando eram
mais novos, em uma espécie de prova para a entrada no tráfico, na qual teriam de se
mostrar corajosos o suficiente para participarem do assassinato de alguém. Esse ritual
macabro acaba sendo um alerta a esses mesmo jovens, de que aquilo pode acontecer a eles,
caso não sejam fiéis às “leis do tráfico”.
Sidnei, 18 anos, internado no ESE por roubo, trabalhava como gerente do “pó de
R$3” em uma favela da Zona Norte e contou-me sobre um episódio em que matou um
“X9”, que o teria denunciado. Envolvido com o tráfico desde os 11 anos, disse que e a
morte de um tio por traficantes do Terceiro Comando o motivou a entrar para o Comando
Vermelho e a sair da casa da mãe, a qual, segundo ele, é “alemã”, pois mora em uma favela
dominada pelo ADA e “fecha com o Uê” – um dos líderes daquele grupo. Com cinco
marcas de tiros pelo corpo, adquiridas em uma troca de tiros com policiais em um assalto,
disse que estava cansado “daquela vida” e pretendia parar. Já havia comprado casa, moto e
carro com o dinheiro do tráfico e poderia sobreviver sem ele.
Segundo Sidnei, “quem vacila na favela, roda”, por isso, ele não hesitou em matar um
delator e a mulher dele: “O X9 me fez perder R$ 6 mil pra polícia. Eram 21 cargas. Não fiz
o certo, porque tirei a vida deles, mas não me arrependo. Se não fizer, vão fazer isso
comigo.” Ao perceber que eu anotava o que ele me falava, me perguntou: “você não vai
contar isso pra ninguém, não, né?”. O medo se deve ao fato de ele não nunca ter sido
105
processado por nenhum homicídio. Como a maioria dos crimes cometidos em favelas, este
também não tinha sido solucionado pela polícia.
Os entrevistados eram enfáticos ao dizer que “nessa vida do crime” não se deve
confiar em ninguém e é praticamente impossível ter amigos de verdade. Nem mesmo
parentes e pessoas próximas escapam dessas desconfianças e punições aplicáveis a quem
desrespeita as imposições do tráfico. Jefferson, que narrou uma tentativa de invasão a
favela, contou-me que participou da execução de seu próprio irmão.
Meu irmão vacilou com os cara. Ele xisnoveou umas paradas pra PM. Os cara
deu dinheiro pra PM e descobriu que tinha sido ele o X9. Eu ajudei a matar. Os
cara mandou eu atirar nele. (E como você se sentiu?) Não fico bolado, não. Fiz
o certo. Ele xisnoveou. A vida no crime é fator surpresa.
Jefferson, 18 anos, internado no ESE por roubo.
Ricardo, 18 anos, internado na EJLA há mais de dois anos, por latrocínio, trabalhava
como gerente de uma boca. Em uma entrevista, ele comentava que estava com saudades da
filha pequena, quando eu perguntei se ele era casado. A resposta foi dada com frieza: “Não,
eu matei a mãe da minha filha”. Perguntei o que havia acontecido e ele explicou: “Ela
roubou na favela. Preferi eu mesmo matar ela, do que matarem ela. Ela ia morrer de
qualquer forma. Assim foi mais rápido.” Ricardo disse também que todos os seus irmãos
haviam morrido, em circunstâncias diversas, um deles morto pelo tráfico:
Minha família tá com a situação precária. Eu tinha três irmãs e seis irmãos, mas
hoje só tenho uma irmã. Eu sou o caçula.Todos os meus irmãos morreram.
Eu vi um só morrendo. Falaram que ele roubou dinheiro, deram o toque. Eu não
falava com ele não. Ele me roubava dentro de casa. Me mostraram meu irmão
na mala do carro. Ele roubou dinheiro da boca.
Eu disse pros caras ‘É com ele mesmo’. Perguntei se não tinha como eu pagar
para ele meter o pé. Se tivesse, eu dava dinheiro. Aí os caras falaram que ele ia
pagar com a vida dele. Minha mãe viu os caras pegando ele em casa.
Ricardo, 18 anos, interno da EJLA.
No meio da entrevista, Ricardo mencionou que havia sonhado que estava sendo
libertado. Disse que não aguentava mais “aquela vida” e me mostrou os seus pulsos: “Já
tentei me suicidar aqui dentro. Sonhei muito com as pessoas que eu matei. Achei que não
fosse aguentar”.
O uso da força para se mediar conflitos em favelas nos remete ao que Machado da
Silva (1999) chamou de “sociabilidade violenta”. Segundo Machado da Silva, neste tipo de
106
sociabilidade, o uso da força passou “de meio eventual de obtenção de interesses, em
princípio de regulação das relações sociais”, tornando-se, inclusive, “uma forma de vida
autônoma”. O autor alerta que, na “sociabilidade violenta”, os atores negam a alteridade do
outro, tratado como um objeto. Para Machado, “quem tem mais força usa os outros, assim
como artefatos (armas,etc.), para impor sua vontade, sem considerar princípios éticos,
deveres morais, afetos, etc.” (Machado da Silva, 2008: 21)
Neste tipo de interação social, segundo Machado da Silva, o Estado não é referência
para a conduta, ou seja, não se trata de uma revolta contra a ordem pública e nem uma
adaptação desta. No contexto da “sociabilidade violenta”, “os criminosos não violam nem
se rebelam contra o ordenamento estatal: este simplesmente não é elemento significativo do
comportamento destes atores” (Machado, 1999: 121). Ele acredita que, nas organizações
criminosas, sobretudo no tráfico de drogas, não há um sentimento coletivo, nem uma
solidariedade entre os participantes, mas sim o conhecimento de que a retaliação física é
usada contra os desobedientes. Para Machado, as organizações criminosas são apenas
"práticas individuais conjugadas", em que indivíduos obedecem à força aos códigos de
conduta particulares. Este autor admite que a sociabilidade violenta seja um conceito
típico-ideal, no sentido de que, se for levado ao pé da letra, impossibilita qualquer relação
social. Acredito que haja momentos de demonstração de uma sociabilidade violenta,
sobretudo nas punições aplicadas a “X9s” e devedores, mas não creio que o uso da força
paute toda e qualquer relação destes traficantes, já que há valores morais, regras
compartilhadas, e identificações com a coletividade das facções.
Misse (2006) aponta que esta “sociabilidade violenta” emerge a partir de um processo
de “acumulação social da violência”, e não de uma ruptura. Ou seja, ela não é algo novo e
recente, mas algo que tem se tornado mais intenso. Misse (2006) descreve que esta
sociabilidade é “caracterizada pela desconfiança em todas as transações, por um novo tipo
de individualismo que desconhece a alteridade ou a despreza e por uma ‘lógica de guerra’
atomizada, segmentada e sem qualquer projeto que não seja o de continuar vivo” (Misse,
2006: 240).
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4.5 - “Os vermes” – a polícia como inimiga:
“Tinha uma operação, no alto do morro. Mas eles nunca se metiam com a gente
lá em baixo. Eu tava lá na boca, na contenção, com um maior, o vapor. Mas aí
desceu um e falou: ‘Ai mané, eles estão descendo pelo mato’. Quando a gente
olhou pra esquina, viu logo os cana. A gente correu, nem ficou para olhar. Até
então era 100 policiais para duas pessoas. A gente correu e tentamos se
esconder. Era eu e mais um trabalhando.
A gente tentou correr pro mato e invadiu uma casa abandonada lá. Só que o
barulho estrondou muito. Daí eles vieram e começaram a revistar a casa. A
gente embaixo da escada e eles falando que a gente tava lá. Eles acharam a
bolsa, com a droga, as armas. Tinha uns 600 papelotes, mais duas armas. Aí
eles falaram: ‘Eles estão aqui dentro. Como é que as armas estão aqui?’ Aí teve
um que arrancou a parte da escada e colocou o fuzil pra dentro. Aí eles
começaram a gritar: ‘Vai morrer, vai morrer!’ (E você ficou com medo?)
Lógico. Porque até então ninguém sabia o que ia acontecer.
E teve uma hora que o meu celular começou a apitar, porque estava faltando a
bateria, aí eu tapei o som. Aí tinha um buraco, de onde a gente entrou pra
debaixo da escada, e a gente via a sombra do policial na entrada. Aí quando ele
chegou com o fuzil, o dimaior colocou a mão e disse que tinha perdido. ‘Perdeu
nada, vai morrer’. Ia morrer mesmo. Ele destravou a arma. Quando ele
destravou, chegou um coronel da X. (nome do grupamento policial). Aí ele
chegou e falou: ‘Não, não, não. Tem menor?’ Aí eu apareci.
A gente sentou com a mão na cabeça e eles começou a ficar perguntando onde
tinha mais droga, arma. Começaram a esculachar. Deu porrada pra ver se
conseguia mais alguma coisa. Aí um colocou o saco na minha cabeça e começou
a perguntou: ‘Já viu aquele filme Tropa de Elite? Tropa de Elite é da Bope. Esse
aqui é o novo. Tropa de Elite da X. (nome do grupamento)’. E continuou
colocando saco na minha cabeça. Só que até então eu tava rasgando todos os
sacos com o dente. Colocou um, eu rasguei, colocou outro, eu rasguei. Não
tinha nem mais força pra rasgar o saco. Quando começou a sangrar foi que ele
parou. Porque até então eles tinham que apresentar a gente na delegacia. Aí
eles colocaram a gente na viatura e falaram: ‘Ó, vocês vão pra delegacia, mas
sem falar o que houve!’”
Transcrição de entrevista gravada com Sandro, 17 anos, apreendido
provisoriamente no Padre Severino, por tráfico.
A história narrada por Sandro é apenas uma dentre as dezenas que escutei sobre
torturas e abusos praticados por policiais contra adolescentes, mas ilustra o imaginário
sobre policiais construído a partir de contatos traumáticos como esse. Rancor, ódio e
vingança são sentimentos que costuram as memórias de experiências com policiais – sejam
eles civis ou militares -, também chamados de “vermes”, “canas” ou “alemão”, vistos como
inimigos. Espancamentos, ameaças, maus-tratos e extorsões praticados por esses agentes
geram uma sede de vingança nos jovens. “Todos eles tem que morrer”, resumiu um
adolescente.
Em vez de se entregarem para a polícia, muitos deles atiram para matar quando são
avistados por policiais, tanto em favelas quanto no asfalto, pois, além de terem aversão ao
108
“inimigo”, têm medo de ser mortos ou espancados pelos agentes, em vez de serem levados
à delegacia cordialmente, com seus direitos respeitados. A polícia, por sua vez, tem o
hábito de chegar atirando em favelas, ou em perseguições, como é noticiado com
frequência nos jornais, pois alega que “foi recebida a tiros”. Com raiva nos olhos, Zico, 18
anos, interno da EJLA, me contou sobre o homicídio que praticou contra um policial
militar e os abusos que sofreu depois de ser apreendido – tanto por PMs como por policiais
civis. Esse relato traduz a “sede por vingança” e a vontade de fazer “justiça” com as
próprias mãos, compartilhada por muitos adolescentes.
Tava voltando do baile no morro Y. , de moto, indo pra favela Z. No caminho,
matei um PM do xº BPM. Ele tinha me espancado uma vez e matou um amigo
meu. Quando passei na moto, reconheci o cara. Aí eu voltei só pra atirar nele
mesmo. Matei o verme.
Só que dei de cara com uma patrulha. Tentei fugir, mas os caras me pegaram.
Os caras me magoaram. Me pisaram. Quiseram me vender pros alemão, do
morro C.. Bateram o rádio pra lá. Quase me mataram. Falaram assim: “Deu
sorte. Não te matamos porque já tá de dia.
Na DP, me torturam, me deram choque no pênis. Me bateram muito. Fiquei
destruído. Me afundaram na água e tudo. Os caras não me mataram por pouco.
Acho que foi porque a minha família apareceu lá.
(E a juíza ficou sabendo disso?)
Não falei nada pra juíza, não. Não adianta nada. Prefiro fazer eu mesmo. Faço
com a minha própria mão. Disparo logo.
Zico, 18 anos, internado na EJLA por latrocínio
Nessa guerra entre os “vermes” e os “bandidos”, trata-se o outro como objeto,
remetendo-nos ao conceito de “sociabilidade violenta” proposto por Machado da Silva
(1999). Trata-se de um círculo vicioso de violências baseadas no pressuposto de que o
outro vai atirar para matar, logo, atira-se para não morrer, como me explicou Osmar,
interno do ESE, em uma conversa sobre a polícia: “Estamos nessa vida para matar ou para
morrer”. Para Misse (1999), a polícia deixou de ser vista como uma representante do
Estado e da lei, e passou a ser vista como um “outro generalizado”, um inimigo, visão esta
que segue a mesma lógica do processo de sujeição criminal, às avessas.
Toda a corporação policial parece ter sido atingida pela desconfiança e, seguindo
a mesma lógica de produção da sujeição criminal, foi tornada ‘ estrangeira;: os
policiais viraram os ‘alemão’, os inimigos mortais. Representados como cruéis,
arbitrários, desleais, corruptos, servis em relação aos ‘bacanas’, enfim, como
covardes.
(MISSE, 1999:61)
109
Zico disse que trabalhava no tráfico, na facção Comando Vermelho, e que já tinha
feito de tudo um pouco, desde matar “ X9” (delatores) até percorrer morros dominados por
este grupo e recolher a chamada “caixinha do CV”, e era gerente de uma boca - atividades
sobre as quais não quis dar muitos detalhes nos dois encontros que tivemos. Na primeira
entrevista, eu lhe perguntei o motivo pelo qual estava internado (aquela era a sua 2a
internação e a quarta passagem pelo Degase), então Zico explicou que respondia por
latrocínio contra um policial militar, mas, na verdade, não havia tido a intenção de roubar o
policial, somente matá-lo. A vingança foi motivada porque, em uma troca de tiros anterior,
aquele mesmo policial militar havia matado um de seus amigos, além de tê-lo agredido.
“Eu podia estar morto, debaixo da terra. Já passei muita coisa nessa vida. Já vi amigo
morrendo do meu lado”, relembrou Zico. A tortura e os maus-tratos a que foi submetido
quando foi apreendido, lhe dão vontade de se vingar novamente de policiais. Traumas
como estes nutrem o ódio por policiais e fazem com que os jovens vejam nas armas uma
forma de fazer “justiça” com as próprias mãos, abstendo-se inclusive de denunciar as
práticas delituosas dos agentes da lei - como no caso em questão -, por uma descrença na
punição dos policiais. Carlos, interno do ESE, também mencionou sobre abusos cometidos
por policiais e disse não acreditar na punição destes oficiais: “Já fui torturado e espancado
por policiais. Civil e PM. Mas se eu denunciar um policial, você acha que a juíza vai
acreditar em mim? Vida de bandido é assim: cadeia, porrada ou morte. Ou então sentar
numa cadeira de rodas”.
Zico revelou ainda que, nessa guerra contra os policiais, não pouparia nem mesmo o
irmão, um fuzileiro naval que pretende tornar-se policial do Bope (Batalhão de Operações
Especiais da PM). Ou seja, na visão de Zico, seu irmão pode tornar-se um “alemão”, apesar
do laço familiar. “Já disse ao meu irmão que ele vai morrer cedo. E se nós se encontrar na
favela, vamos trocar tiro. Ele me disse que eu é que vou morrer cedo, e que ele pelo menos
vai tá fazendo o bem, no Bope”, comentou Zico.
A morte de algum conhecido ou familiar devido à ação da polícia é, portanto, uma
justificação recorrente dada pelos jovens para explicar por que têm tanta raiva de PMs,
como descreveu Zico. Assim como esse, ouvi vários outros relatos sobre casos de
homicídios de conhecidos praticados por policiais em trocas de tiros em assaltos ou
incursões em favelas – os chamados “autos de resistência”, por serem homicídios
110
supostamente praticados em legítima defesa, os quais raramente geram uma punição legal
ao policial. O caso de uma invasão de favela narrado por Jefferson, acima, é outro exemplo
em que atirou-se em um policial como retaliação à morte de um companheiro, ou “amigo”,
termo que se usa quando trata-se de alguém da mesma facção.
Ao falarem sobre os policiais, os jovens costumavam enojar-se. Segundo eles, a
morte de algum conhecido fazia com que eles “se revoltassem” e tivessem vontade de
honrar o falecido, na guerra contra os “vermes”. Esse ódio de policiais faz com que a
atividade de “dar tiro em PM” seja uma prática prazerosa a muitos destes adolescentes, que
se orgulham de ter conseguido atingir uma viatura ou um policial.
Meu pai era traficante, braço-direito do dono do morro. As cargas passavam
por ele. Ele morreu numa troca de tiros. Quando eu vi meu pai deitado no chão,
morto, baleado, pensei: ‘Agora vou me revoltar. Eu é que vou pegar os cana’.
Eu ficava em cima da laje, só com arma grande, tipo Farp, esperando eles vir
pra atirar.
Júlio César, 18 anos, internado no ESE por roubo.
Rodei no 157, quando roubei uma Pajero, no Galeão. Teve perseguição e troca
de tiro. Eu tava com três maiores, do tráfico. (Você teve medo?) Nem tive medo.
Tenho fé no protetor. Deu errado nesse dia pra mim. Quando o maior foi sair do
carro, o PM atirou no peito dele. Vi ele caindo, do meu lado. Deu uma tristeza
no coração. Mó dor no peito. Saí correndo pra não levar tiro também. Tava com
uma PT (pistola) e um pente de 30. Atirei e acertei na viatura. (...) Antes disso,
já tinha visto um amigo tomando tiro na boca.
Luís, 16 anos, interno do ESE, por roubo.
Eu vi um parceiro morrendo num roubo também. Levei dois tiros nesse dia. Foi
sinistro. Ele era menor que nem eu.
Anderson, 18 anos, interno do ESE, por roubo.
Em consequência dessas interações violentas com policiais, muitos jovens
convivem com o medo de ser mortos por esses agentes. Nas narrativas dos adolescentes, a
morte aparece como algo corriqueiro, muito presente em suas rotinas. A proximidade com
homicídios praticados por traficantes locais, traficantes inimigos, por policiais e, às vezes,
por eles mesmos acaba desmistificando o significado da morte para esses adolescentes, que,
de um modo geral, sabem que correm o risco de morrer a qualquer momento. De acordo
com os internos, quando trocam tiros ou atingem um policial, correm o risco de ficar
“marcados” ou “pixados”. Alguns jovens me disseram já ter recebido ameaças de morte de
policiais. Mudar de endereço ou sair da “vida do crime” são opções cogitadas por quem
111
está marcado de morte. Mas outros afirmam que, justamente porque “sabem” que vão
morrer cedo, preferem aproveitar ao máximo os benefícios da “vida do crime”, com
dinheiro no bolso, drogas e mulheres.
Osmar, de 18 anos, interno do ESE, trabalhava no tráfico e participou de um
homicídio amplamente divulgado pela mídia. Ele é um dos que temem ser mortos por
policiais e revelou que tem vontade de sair do tráfico por isso: “Entrar é fácil, para sair é
difícil. Estão me chamando de novo (para o tráfico), mas já tô pixado com os polícia.
Tenho fé em Deus, mas dá medo. Para dormir é difícil. Tenho medo dos cana me matar. A
polícia de lá da minha área mandou aviso para mim”. Nesse momento da entrevista, Osmar
começou a contar um rap, que ilustrava a sua situação e cuja letra dizia: “Ninguém é peito
de aço”. Ele disse já ter matado PMs do batalhão de sua área e, sobre as mortes, comentou:
“Mais uma alma. Eles vem para levar a nossa. É quem vê primeiro. Tô cheio de ódio, de
matar PM, de matar quem vacila”.
Já Carlos comentou que ofereceram recompensa em dinheiro pela sua captura, pois
ele havia matado o irmão de um policial. Em outra passagem pelo Degase, Carlos desistiu
de fugir da semi-liberdade – uma prática muito comum pelos jovens -, pois temia ser
morto: “Os caras queriam R$ 5 mil pela minha cabeça. Fiquei no CRIAM cinco meses por
segurança”.
“Estar marcado” por policiais é um símbolo do processo de sujeição criminal, no qual
policiais tratam os jovens como se fossem portadores de subjetividades “criminosas”, como
se tivessem uma tendência à prática criminal. Não só o ato infracional cometido, mas o
próprio indivíduo é classificado como incriminável e considerado um “criminoso”,
“marginal”, “menor infrator”, independentemente de ele ser pego em flagrante ou não. O
policial tem uma expectativa de comportamento criminoso destes tipos “marcados”,
assujeitando-os antes mesmo de haver comprovação de prática incriminável. Os jovens, por
sua vez, ao se considerarem “pixados”, dão o último passo na sujeição, conforme descrito
por Misse (1999), aceitando o assujeitamento e incorporando tal acusação à sua própria
auto-representação. A narrativa de Eric, 17 anos, internado na EJLA (pela terceira vez) por
tráfico de drogas, ilustra essa processo de assujeitamento praticado por PMs, que
pressupõem o envolvimento com o crime desses jovens “marcados”:
112
Se eu for parar dessa vida, vou ter que sair por causa de polícia. Já sou
marcado. Depois da 1ª passagem (pelo Degase), fiquei tranquilão. Um dia eu
tava indo buscar a minha mulher no colégio e os cana panhou a gente. Os cana
já apontou a arma. Tavam com a blazer. O cara falou: ‘Vem Eriquinho’.
Eles levou a gente pra trás da escola, colocou o saco na nossa cabeça, dentro do
Brizolão. Deu um panha. O cara disse que queria a nossa carga, a peça e
dinheiro. Eu disse: “Não tenho nada pra perder”. Aí ele começou a bater a
minha cabeça na parede.
Aí bateu o sinal da escola. Eu tava algemado, com a cabeça sangrando. Ele veio
me dando bicuda na frente da escola. Minha mina viu e foi chamar a minha mãe.
O meu padrasto veio e xingou os PMs. E ele chamou os cana pra briga. Quando
saímos da escola, os PMs fizeram nós berrar na frente de todo mundo que nunca
mais íamos vender maconha no brizolão. Mas nós não tava nem vendendo nada.
Eric, 17 anos, interno da EJLA.
Apesar da aversão aos policiais, a negociação e o pagamento do chamado “arrego” a
PMs são práticas cotidianas, segundo os adolescentes. A quantidade de vezes que os jovens
foram pegos pela polícia militar é infinitamente superior ao número de vezes que os jovens
foram conduzidos a uma delegacia. Na aplicação dos questionários, na questão sobre
quantidade de vezes apreendido pela polícia, eles mesmos me perguntavam “contando as
vezes que a polícia me deixou ir embora?”.
Tanto jovens que trabalham no tráfico quanto os que não têm relações próximas com
as facções quase sempre negociam a sua liberdade com os agentes da lei. Às vezes, os
próprios policiais pedem para adolescentes roubarem objetos específicos para eles, como
câmeras digitais e celulares. O resultado é que os policiais fazem vista grossa para os atos
infracionais praticados por eles e se beneficiam com isso. Jonathan, que narrou a primeira
vez em que saiu para roubar, acumula histórias de pagamento de propinas a policiais:
Tipo, eu rodei pro polícia, mas sendo que ele já era corrupto, e eu sabia. Lá em
Copacabana. Então eu rodei pra ele e falei como? “Qual é, maluco, o negócio e
nós negociar. Vou te dar um aparelho, e uma telinha (máquina digital) de 300
real, pra tu me soltar”. Aí eu dei pra ele na hora, tava com os bagulho.
Aí eu falei: “Então, posso roubar ali? Tá tranquilo? O bagulho é como?Tu me
pegar na rua e tu me soltar com os meu bagulho”. Aí ele falou: “Tá tranquilo,
pode bagunçar”. Eram dois PMs. Dei tudo pra eles, pra eles dividir lá. Tudo
que eu tinha roubado. Mas sendo que ele deixou eu roubar ali na frente. Aí eu
falei pra ele: ‘então vou roubar ali na frente e tá tranquilo, tudo quite?’ Ai ele
falou, ‘ta tranquilo’ e pa.
Aí foi e deixou. E eu fui, né... Ele já me soltou... Eu já cai pra rua de dentro e
comecei a roubar. Comecei a enquadrar, a levar. Aí as pessoas tudo gritando,
“polícia!”, e pá, gritando. Depois vem eles, pra me soltar. Eu ia ganhar. Eles ia
tipo fingir que não tava conseguindo me pegar e quando eu chegasse no local
certo... Quando eu cheguei no local certo, ele falou: ‘Então, tá tranquilo,
conseguiu levar o que tu queria?’ ‘Consegui’. ‘Então, vai’. E eu meti o pé pro
113
morro. (E nunca mais viu o PM?) Não, pô, sempre falava com ele. Ele vinha,
falava comigo.
Jonathan, 15 anos, quando estava internado na EJLA, por roubo.
Quando Jonathan terminou de contar seu episódio sobre o pagamento de “arrego”,
outro jovem completou: “Ele (o PM) fica ali na frente da boate X. Os cara é tudo de
arrego”, indicando que também já havia negociado com o mesmo policial.
Se por um lado é possível negociar objetos e dinheiro roubado com policiais, por
outro, jovens que trabalham no tráfico ou “têm contexto” nas comunidades têm ainda mais
meios para negociar o “arrego” com dinheiro proveniente da venda de drogas. Nesses
casos, a proporção do “arrego” é ainda maior, pois pode, por exemplo, ser negociado com
um plantão inteiro de policiais, o que significa que nos dias daquele plantão a favela não
terá operações surpresa. Os plantões “não-arregados”, segundo os jovens, costumam ser
aqueles que realizam mais operações.
O nível de corrupção da corporação é tanto, que os adolescentes disseram que seus
“patrões” chegam a pagar um montante alto, mensalmente, para a chefia dos batalhões. Os
preços ditos pelos jovens variavam entre R$ 50 mil e R$ 250 mil por mês para os batalhões
de suas áreas. Isso sem falar na venda de armas de policiais a traficantes.
Diante da prática do pagamento de “arregos”, em algumas favelas, a polícia diminui
a quantidade de operações para apreensão de drogas. Por vezes, policiais ligam antes para
os traficantes para avisar sobre as operações policiais planejadas pelo batalhão – daí o
comum insucesso de diversas operações de inteligência da polícia. A seguir, uma conversa,
no ESE, com três jovens, Anderson (A), de 18 anos, Luís (L), de 16, e João Vitor (JV), de
18, moradores de diferentes favelas, em que todos mencionaram o pagamento de “arrego”
aos policiais:
A: A polícia avisa se for entrar no morro sem ser arregado. No tráfico, a gente
é cria. Eles (pms) não entram na minha favela. Tem medo. O bagulho é doido.
Na pista roda mais fácil.
L: Os cara dava 15 mil pro DPO ali da favela para ficar tranquilo no fim de
semana. Às vezes eles entram pra cheirar, mas eles avisam no rádio e tá
tranquilo. Já vi patrulha na frente do baile negociando as peças. Mas às vezes o
patrão manda parar e diz ‘arrego é bala’.
JV: A vantagem deles é o caveirão. Mas bala de G3 marca o caveirão.
Sendo assim, os policiais fazem uso de uma “mercadoria política” (Misse, 2006)
quando recebem dinheiro ilegalmente de traficantes e assaltantes. Segundo Misse (2006), a
114
corrupção policial, é uma “mercadoria política” na qual existe uma apropriação privada de
um poder concedido pelo Estado ao policial. Trata-se de um mercado informal e ilegal
“cujas trocas combinam especificamente dimensões políticas e dimensões econômicas, de
tal modo que um recurso (ou um custo) político seja metamorfoseado em valor de troca”
(Misse, 2006: 207). A corrupção policial é apenas uma dessas “mercadorias políticas”, que
incluem outras atividades como a chantagem ou a venda de proteção por grupos armados,
como as chamadas milícias.
Em vez de exercer a função de proteger os cidadãos e combater o crime, seguindo o
previsto no monopólio estatal da violência pelo Estado, os policiais abusam deste poder
que lhes foi outorgado em benefício próprio. Contribuem, assim, para a impunidade e para
a manutenção das redes de relações ilegais envolvendo diversas atividades criminosas
praticadas no Rio de Janeiro, incluindo-se os atos infracionais cometidos por adolescentes.
115
PARTE 5:
MECANISMOS DE CLASSIFICAÇÃO E FONTES DE
(DES) PRESTÍGIO NO “COLETIVO”
“Disciplina e humildade para somar. Também criatividade pra continuar”
Trecho de funk do Mc Mazinho, cantado por um interno
Este capítulo vai abordar a maneira como os jovens em conflito com a lei internados
se vêem e se classificam, identificando quais categorias eles aplicam àqueles com quem
convivem nas instituições. Buscarei analisar o discurso dos jovens sobre o “coletivo” das
unidades e as posições sociais de seus integrantes, observando quais mecanismos e
comportamentos concedem prestígio ou “moral” a alguns, e estigmatizam outros, que são
alvos de “zoação”, “esculacho” e de espancamentos. Entender a visão dos próprios internos
sobre seus semelhantes e de que forma são produzidas tais categorizações e “tipos sociais”,
nos permitirá entender as relações sociais travadas entre eles e como suas identidades
sociais podem ser construídas a partir destas interações.
Através da abordagem da visão dos adolescentes sobre eles mesmos, no contexto da
internação, será possível fugir de uma tipologia baseada em classificações jurídicas, que
costumam descrever estes atores sociais apenas como “traficantes”, “homicidas” ou
“assaltantes”, por exemplo, restringindo suas identidades ao ato infracional cometido.
Entender as classificações e a produção de diferenças de status entre os jovens permite,
assim, que nos livremos do erro de classificar, acusar, assujeitar estes indivíduos segundo
uma lógica que vincula um crime ou tipo penal às suas subjetividades.
Assim sendo, serão expostas as categorias utilizados pelos adolescentes para marcar
diferenças de status e de “moral” – termo usado por eles como sinônimo de prestígio e
status – entre os próprios internos e a maneira como os integrantes da “sociedade dos
cativos” (Sykes, 1958) constroem socialmente estas categorias, “rótulos” (Becker, 1977) e
“estigmas” (Goffman, 2003).
116
5.1 - A idéia de igualdade do “coletivo”:
Logo nas primeiras visitas à Escola João Luiz Alves e ao Educandário Santo
Expedito, foi possível perceber a ausência de líderes assumidos pelos jovens ou
reconhecidos pelos funcionários do Degase. Segundo os depoimentos dos adolescentes, não
há “xerifes”, nem “frentes de cadeia” em nenhuma das unidades de internação de jovens em
conflito com a lei no Estado, ao contrário do que acontece em cadeias e penitenciárias para
maiores de idade – ou, no linguajar dos adolescentes, em “cadeias dimaior”. Assim, não
existem “representantes” nem “presidentes” que imponham leis e decisões sobre os demais,
pois o “coletivo” – termo utilizado para designar o conjunto total de internos - é
considerado, idealmente, como um todo igual, portador de direitos. Os verdadeiros líderes,
de acordo com adolescentes, estão do lado de fora dos muros do Degase, nas favelas da
cidade ou presos nas cadeias.
A idéia de horizontalidade e a ausência de hierarquias estabelecidas predominam no
discurso destes jovens – o que não significa que ela seja posta em prática o tempo todo.
Eles defendem um ideal de igualdade de direitos e ação e a solidariedade entre os internos
que pertencem às mesmas facções. Frases como “ninguém é melhor do que ninguém aqui”,
“o papo de todo mundo é ouvido” e “geral aqui tá na mesma situação” são comumente
utilizadas pelos adolescentes para explicitar este ideal e justificar, por exemplo, a
inexistência de líderes nas unidades.
Um exemplo de que a voz – ou o “papo” - de todos os internos têm espaço no
contexto da internação são as assembléias do “coletivo” que os jovens organizam quando
alguém transgride as regras e padrões de conduta criados pelos próprios internos. Nessas
assembléias ocorre a acusação pública, a defesa e o julgamento dos “desviantes”, e,
segundo os relatos dos adolescentes, todos os presentes têm direito de “mandar o papo” –
inclusive os acusados (o que será discutido no próximo capítulo).
Internos e funcionários revelaram, entretanto, que, até 2004, havia “representantes”
ou líderes da facção denominada Comando Vermelho nas unidades de menores de idade.
Naquele ano, por uma determinação do alto escalão da quadrilha, proibiu-se a presença
desses “representantes”. Em uma conversa gravada com diversos internos do ESE,
117
pertencentes ao Comando Vermelho, em 2007, perguntei sobre a questão das lideranças e
os jovens comentaram o porque de a liderança interna ter acabado:
Vocês mandam aqui?
A: Quem dera que nós mandasse aqui.
B: Quem dera.
Você tava falando que antigamente tinha líder, tinha representante.
A: Tinha.
E por que acabou?
A: Foi em 2004.
B: A cadeia era aberta
A: Foi um superior a nós que mandou acabar.
Quem mandou acabar?
B: Quem?!
A: O superior.
B: O general.
Tipo o Beira-mar?
A: É.
B: Elias Maluco.
C: Isaías do Borel. Ele que é o presidente de nós todos.
Hoje em dia, os jovens internados devem consultar a opinião de líderes externos da
facção para tomarem decisões importantes relativas ao cotidiano intra-muros das unidades.
Eles precisam, por exemplo, de autorização externa para matar algum interno que
desrespeita as leis do convívio, o que era desnecessário há alguns anos. A comunicação
entre os adolescentes e os ditos “patrões” é feita por cartas, ligações via celular – que
entram ilegalmente nas unidades – e informações passadas por familiares, visitas recebidas
ou até mesmo agentes de disciplina.
Apesar da inexistência de líderes ou “xerifes” assumidos e da defesa de um discurso
de igualdade pelos adolescentes, há, na prática, relações de poder e prestígio entre os
internos, que ficaram evidentes ao se acompanhar a rotina das unidades e conversar com
eles. Antes de detalhar como alguns jovens adquirem mais prestígio e status do que outros
é preciso enfatizar que não há, entre eles, uma hierarquia, com estágios e posições numa
escala evolutiva, que pressuponha a passagem por níveis diferenciados de poder e “moral”.
A princípio, eu pensava que poderia identificar hierarquias entre os internos do
Degase, mas, aos poucos, fui percebendo que a própria idéia de hierarquia não se aplica a
esta realidade social, a dos cativos do Degase, já que não há uma escala vertical de
posicionamentos entre eles. Há, na verdade, relações hierárquicas de status e prestígio, que
incidem sobre a distribuição de poder e influência entre os internos. Existem processos de
118
diferenciação, que concedem “moral” ou estigmatizam alguns jovens, mas não há posições
hierárquicas a serem seguidas em suas trajetórias na internação. Neste locus, não existe,
portanto, uma verticalidade de comando como a do tráfico de drogas em comunidades de
baixa renda. As relações de poder, nesses internatos, são mais fluidas e os critérios para
essa distribuição de poder podem variar e ser suspensos segundo as circunstâncias. Tentarei
esboçar, a seguir, as particularidades dos sistemas de classificação destes jovens.
5.2 – A “cadeia” e a “pista” segundo as lógicas do “coletivo”:
Em coexistência com o discurso de igualdade do “coletivo”, pude perceber nas duas
unidades uma série de nomenclaturas usadas pelos jovens para rotularem, classificarem,
atribuirem prestígio e até mesmo estigmatizarem os internos. Sykes (1958) atenta para a
existência de um vocabulário de gírias que designam as classificações e papéis dos cativos os “argot roles”. Através deste vocabulário, o autor explica que “the activities of group
members (...) have been analyzed, classified, given labels; and these labels supply an
evaluation and interpretation of experience as well as set of convenient names” (Sykes,
1958: 86).
Os termos “bebel”, “mancão”, “comédia” e “mente” são classificações que
identificam os tipos sociais de jovens, remetendo a valores compartilhados no universo
moral dos internos. Essas classificações não só rotulam e/ou estigmatizam os internos e
seus comportamentos, como também influenciam na dinâmica de distribuição dos
adolescentes nos alojamentos e nas relações travadas no interior das unidades de
internação, tanto entre internos, quanto nas interações com os funcionários. Esses termos
não são usados exclusivamente pelos internos, mas também pelos funcionários, que
incorporam o linguajar dos jovens no trato com eles.
Neste sentido, há diversos mecanismos possíveis de diferenciação e obtenção – ou
negação - de prestígio e “moral” que podem ser ativados pelos internos, mas estes
processos são fluidos e não pré-determinados, sendo acionados circunstancialmente,
variando de caso para caso. Não existe uma hierarquia pré-estabelecida, que se aplique a
todos os jovens de forma igual. Além disso, a posição de status não é permanente, podendo
119
ser perdida ou adquirida a partir de um situação específica. Já os estigmas e classificações
negativas, no entanto, dificilmente são superados.
Coelho (1987) explica que, no sistema prisional, quando um novo preso chega, os
outros fazem um “mapeamento preliminar” de suas características, como local de moradia e
crime cometido. Mas, durante os seis primeiros meses de cárcere, segundo Coelho, a
“sociedade dos cativos” observa o indivíduo recém-chegado e classifica-o a partir dos
indícios que pode captar em seu comportamento ao longo da rotina na instituição:
O seu comportamento terá sido observado incessantemente, suas reações às
inúmeras provocações e situações conflitivas terão sido avaliadas, seus recursos
(nível de instrução, habilidades, as pessoas que o visitam, os objetos que recebe
destas visitas, as quantias de dinheiro de que dispõe , etc.) terão sido
cuidadosamente medidos. A “sociedade dos cativos” traduzirá essas inúmeras
observações em termos dos seus próprios valores e classificará o indivíduo nas
categorias sociais disponíveis.
(COELHO:1987: 66).
De um modo geral, no Degase, a maneira como o interno “tira a cadeia”, ou vive a
internação, influencia muito na percepção mútua dos internos. Na visão que os jovens
constroem sobre os internos, o comportamento que um adolescente apresenta na unidade
parece contar mais do que sua trajetória na “pista” ou na “vida do crime”. Sendo assim, a
obtenção de posições de status não é baseada em uma escala de atos infracionais cometidos,
não havendo crimes que concedam, sozinhos, mais prestígio que outros. Desta forma, quem
cometeu um homicídio, não tem, necessariamente, mais “moral” frente a um jovem que
praticou um furto; assim como um adolescente envolvido com tráfico de drogas não tem
automaticamente mais prestígio ou respeito dos colegas em relação a outro que cometeu um
roubo. Até mesmo quem se envolveu em um caso noticiado com destaque na mídia pode
não adquirir respeito dos internos.
Segundo um adolescente do ESE: “Aqui tem um montão que rodou no homicídio e
não tem moral.” Outro interno da mesma unidade explica porque um jovem que cometeu
três homicídios é respeitado pelos demais: “Ele é bem visto porque é humilde, trata os
menor com respeito e não porque matou três”. E, ainda, nas palavras de outro: “Se a pessoa
for arrogante, a gente trata na arrogância. Quem é humilde é tratado na humildade”.
Cabe ressaltar, entretanto, que há sim alguns casos em que a vida pregressa do
jovem determina sua condição dentro das unidades. Como será explicitado mais adiante,
120
isto acontece em casos em que jovens cometem “mancadas” (ou seja, erros) do lado de fora
da unidade, na “pista” e acabam sendo estigmatizados durante toda sua trajetória pelo
Degase. Logo que o interno chega à uma unidade, ele é inquirido por integrantes do
“coletivo” sobre a sua vida pregressa, mas esses dados não concedem automaticamente ao
interno uma posição de status. Sua história na “pista” pode, no entanto, determinar sua
estigmatização.
Se compararmos os “cativos” do Degase com a realidade da cadeia, a princípio, me
parece que os critérios para a classificação dos internos são diferentes no Degase, pois, nas
prisões, o crime cometido e a “fama” têm um peso maior nessa categorização. De acordo
com Barbosa (2001), nas cadeias:
Quando chega um novato, todos os que ali estão procuram saber qual é a
“bronca”, o artigo penal que o define: 157, 171, 12. São os números que falam e
que, juntamente com a “fama” adquirida nas ruas, irão definir sua posição dentro
da cadeia.
(BARBOSA, 2001:172)
5.3 - O “menor mente”:
Em ambas as unidades, percebeu-se a existência de alguns jovens bem vistos,
admirados, com alto prestígio – ou com “moral” – perante os demais e, inclusive, perante
os funcionários das unidades. Nas palavras dos internos, eles são chamados de “menor
mente”. Um jovem considerado “menor mente” é visto como alguém que é “humilde”,
“tranqüilo”, justo e que ajuda (“fortalece”) os companheiros de sua facção, quando eles
precisam. Esse “fortalecimento” acontece, por exemplo, quando internos não têm visitas de
parentes e recebem artigos como sabonetes e biscoitos de “menores mente”.
Geralmente, estes jovens têm mais tempo de internação que os demais ou têm mais
passagens pelo sistema sócio-educativo, ou seja, têm mais “experiência” na “vida do crime”
e nas punições decorrentes da prática de atos infracionais. Ele conhece, portanto, as “regras
da cadeia”31. Todavia, não basta ter “mais tempo de cadeia” (de internação) para ser um
31
No capítulo seguinte, tratarei especificamente deste sistema de regras e punições. Ramalho (2008) chamou
essas regras de “leis da massa”, que implicam em um “proceder”. O “menor mente” se aproxima um pouco –
ainda que se tratem de contextos distintos - do que Ramalho chamou de “malandro positivo”, aquele que
conhece o “proceder” e é bem visto pela “massa” carcerária. Entretanto, há pouquíssimos “menores mente”,
enquanto podem haver bem mais “malandros positivos”.
121
“menor mente”. O que conta mais, na percepção dos jovens, é a atitude e a maneira como
ele “tira a cadeia”, vivencia a internação.
“O menor pode ser novinho, mas ter mais mente. Ter mente é saber fazer a coisa
certa, saber cumprir a medida e tirar a cadeia. Eu tenho mais moral porque eu
tenho mais passagens, mais vezes no Degase”, Carlos, que estava internado há 10
meses no ESE, tinha 11 passagens – sendo esta a sua 3ª internação -, e era
considerado pelos demais como “menor mente”.
“O papo dos menor mais mente é mais compreendido”, João Pedro, que era um
dos internos mais antigos da EJLA, acautelado há 1 ano e 3 meses, também
considerado um “menor mente”.
“Eles dão o papo nos menor e eles aceita. O menor mente é mais antigo, tem uma
visão mais ampla. Se liga na responsa”, descreveu outro adolescente da EJLA.
“O menor mente age pelo certo. Dá cigarro, desodorante, pasta de dente pra
quem não tem visita”, definiu um jovem internado no ESE.
O “menor mente”, segundo os jovens, sabe “mandar um papo do futuro”, que
significa fazer planos de parcerias entre os jovens para quando eles saírem da internação,
como combinarem de roubar juntos, ou trabalharem na mesma “boca-de-fumo”. Além
disso, quando alguém desrespeita as regras impostas pelos jovens e são realizadas
assembléias do “coletivo”, o “menor mente” geralmente tem prioridade e expõe sua opinião
sobre o caso antes dos outros. O “papo” (opinião) do “menor mente”, nessas situações,
pode acabar orientando os rumos das sanções aplicadas ao trangressores, pois os internos
costumam acatar o que ele diz.
O “menor mente” é um ótimo negociador e sabe se expressar bem, convencendo os
outros a tomarem decisões importantes lá dentro. Certa vez, conversando com um jovem,
no ESE ele disse que eu tinha “mente”, porque sabia “desenrolar” bem e tinha um “papo”
que conquistava as pessoas.
É, portanto, o “menor mente” que costuma negociar com agentes de disciplina ou
intermediar as relações entre funcionários e internos. Se acontece uma briga em algum
alojamento, os agentes costumam consultar esses “menores mente” para saber o que houve,
pois sua versão tem credibilidade perante os funcionários e os jovens. Ele tem o poder e o
prestígio necessários para apaziguar conflitos; ele tem “mente”. É, portanto, um elo de
122
ligação entre esses dois grupos sociais, aparentemente inimigos e incomunicáveis, mas
defende, acima de tudo, os interesses dos internos32.
Na EJLA, por exemplo, um dos poucos jovens que tinham bastante prestígio entre
os internos, era também respeitado pelos agentes. Respondendo por homicídio, Camilo
ficou internado durante 2 anos e 8 meses e ocupou uma função considerada privilegiada
tanto pelos jovens quanto pelos funcionários: trabalhava na manutenção da unidade,
ficando fora do alojamento durante boa parte do tempo33. O passe livre pela unidade foi
concedido pelo diretor do instituto, num voto de confiança a Camilo, por sua
“tranqüilidade”e “moral” perante os jovens, que o consideravam como um “cara maneiro”,
que “não arranja confusão” e cujo “papo” é respeitado. Um dos agentes brincou dizendo
que “Camilo vigiava os menores e a gente também. Ele sabia de tudo que se passava aqui”.
Camilo revelou a mim que, quando o “clima estava tenso” na unidade, com jovens
na iminência de tentar fazer uma rebelião, ou fugir, os agentes pediam para que ele tentasse
acalmar os ânimos dos internos. Ao mesmo tempo, ele tinha legitimidade para dar
conselhos aos adolescentes e repreendê-los quando infringissem as regras dos internos.
Camilo não admitiu, em nenhum momento, ser líder, mas apenas ser uma espécie de
“negociador” entre essas duas esferas: “Quando acontece alguma coisa de errado, os
funcionários vêm logo em cima de mim. Se alguém foge, eles me cobram. Tenho que
desenrolar a situação”. Concomitantemente, Camilo revelou que não podia “dar muita
confiança” para os funcionários, para não perder a “moral” e nem ser visto como “X9”.
No ESE, um agente de disciplina definiu o “menor mente” como alguém que é
respeitado pelos internos, que organiza o grupo e que, quando há uma briga no alojamento,
apazigua os ânimos dos envolvidos. Para esse agente, os “menores mente” são um exemplo
aos demais e os ajudam a manter a estabilidade da unidade, funcionando como um
intermediador. Sendo assim, a posição do “mente” não só e reconhecida pelos internos,
como pelos funcionários, apesar de isso não ser uma delegação de poder oficial a esse
32
Barbosa (2005) explica que os “frentes de cadeia” fazem essa negociação entre presos e funcionários. No
entanto, o “frente”, ao contrário do “mente” do Degase, é visto como um líder dos presos.
33
No ESE, não há mais jovens que trabalham na unidade (“abargados”), pois, segundo agentes, eles eram mal
vistos pelos internos, considerados “X9”, e acabavam sendo excluídos do coletivo ou agredidos fisicamente.
Além disso, como a unidade é considerada a mais “perigosa” do Degase, prefere-se hoje evitar que jovens
circulem fora dos alojamentos. Na EJLA, o trabalho fora dos alojamentos, na manutenção, na rouparia e na
biblioteca, é fonte de prestígio.
123
menino, que não tem os mesmos poderes que um “xerife” ou “representante de cadeia”. Os
poderes não são delegados, mas conquistados, através do seu “papo”.
Antes, o problemático era o xerife, quando tinha xerife. Hoje, não. A gente hoje
ouve os mais tranquilos, que falam bem com a gente. A gente mostra para eles
que tem que passar o respeito, para os outros verem que em que ter bom
comportamento. Mas quando tinha xerife isso dava status a ele, e ele sonegava
informação. Um fazia a cabeça de todos.
O Carlos, por exemplo, era um interno inteligente, um “mente”. Sabia pedir as
coisas e era dado como exemplo para os menores. O alojamento dele passou a
não dar mais problema
Agente de disciplina do ESE.
5.4 - Fontes de prestígio:
Pude perceber também que, além dos “menores mente”, há outros jovens que obtém
reconhecimento ou prestígio nas unidades, através de diferentes processos de diferenciação.
Há quem tenha “moral” porque possui um alto poder de barganha e negociação de artigos
trazidos pelas visitas, como biscoito, artigos de higiene pessoal e cigarro, os objetos “da
pista”. Na “economia delinqüente” (Coelho, 1987), esses objetos se transformam em moeda
de troca ou em “mercadoria política” (Misse, 1999), gerando dívidas e favores a serem
obrigatoriamente pagos e prestados pelos internos.
Diego é um desses jovens que adquiriram “moral” devido às negociações que fazia.
Este interno recebia semanalmente visitas, que levavam a ele muitos biscoitos e cigarros.
Aqueles que não tinham esses ítens, pegavam emprestado com Diego, que costumava
cobrar como pagamento a prestação de favores, o dobro da quantidade dada ou dinheiro,
estabelecendo-se uma verdadeira economia de trocas de objetos e serviços. Na prática,
Diego acabava acumulando todos esses itens e ganhando dinheiro com isso, o que lhe
concedia poder – mas cabe mencionar que ele também era considerado um jovem
“tranqüilo”, que não arranjava confusões.
A obtenção de drogas e de aparelhos de celular também é outro mecanismo que
coloca os jovens em posição privilegiada. Na EJLA, um interno que recebia e negociava a
droga vinda de fora era muito respeitado pelos adolescentes, assim como jovens do ESE
que se comunicam por telefone com familiares e “patrões”.
124
Além disso, há jovens que “têm contexto” porque são filhos ou parentes de “donos
de favelas” ou até gerentes de bocas e, por isso, gozam de status em relação aos demais
internos. Este status, no entanto, também depende da forma como ele “tira a cadeia”, pois,
se ele não for considerado “humilde”, não será reconhecido como detentor de prestígio.
As demonstrações de coragem e valentia também podem conceder status aos internos,
mas as provocações e brigas corriqueiras são depreciativas. Ser corajoso e “ter disposição”,
na opinião deles, é, por exemplo, tentar fugir da unidade ou agredir fisicamente agentes, em
situações de conflito, e integrantes de uma facção rival (“alemão”). A agressão ao “alemão”
é, inclusive, uma regra de conduta no ESE.
Ao descrever as brigas em bailes funk, Cecchetto (2004) observou que os jovens que
tinham “disposição” e que participavam das brigas de galeras de diferentes favelas sentiam
prazer ao bater nos “alemão”. Segundo Cecchetto, “o prazer de ‘destruir o alemão’ é
considerado uma manifestação apropriada do etos guerreiro, construído a partir das rixas
recíprocas” (Cecchetto, 2004: 133). De acordo com Zaluar (1994), quando um jovem é
desafiado ou humilhado por traficantes rivais, ele se sente obrigado a fazer uso da força, e
defender o “ethos da honra masculina”.
5.5 - O “mancão”:
Se, por um lado, há mecanismos de obtenção de prestígio, por outro, há jovens
estigmatizados como “vacilões” e “mancões”, que cometeram “mancadas” (faltas graves)
dentro ou fora das instituições. Este grupo é mantido separado do coletivo dormindo em
“bois” (banheiros) ou em alojamentos separados – “seguros”-, para que não sejam
agredidos ou molestados sexualmente pelos internos. A escolha de mantê-los afastados
muitas vezes é feita pelos próprios internos, que não aceitam dividir os alojamentos com
“mancões”, pois não querem se misturar a eles, tendo uma visão patológica destes jovens,
considerados “desviantes”, com quem não se deve relacionar: “Quem se mistura com
vacilão é vacilão”, explicou um interno do ESE. Outro adolescente, acautelado na EJLA,
enfatizou o caráter desumano dos “mancões”: “Pode ser humano para a senhora, mas para
mim é mancão”.
125
São classificados como “mancões” aqueles chamados de “X9”, ou seja, que
delataram alguém da facção, dentro ou fora do internato; quem é bi ou homossexual ou
deseja ter relação com outro homem; os processados por estupro; quem roubou ou praticou
crimes contra seus próprios familiares, morador de sua comunidade, idoso, criança ou
passageiro de ônibus. Desta forma, os internos estigmatizados como “mancões” são vítimas
de chacotas e ameaças constantemente e potenciais alvos de espancamentos e abusos
sexuais, precisando ser separados do “coletivo”, para que suas vidas sejam preservadas. No
ESE, os três jovens que ficavam no seguro não podiam sequer cruzar com os demais
internos e eram sempre mantidos em espaços separados dos demais.
Esses atos ou comportamentos foram categorizados como “mancadas” pelas
quadrilhas que dominam o tráfico de drogas em favelas, constituindo infrações às chamadas
“leis” ou “mandamentos” do tráfico, impostas por traficantes em comunidades de baixa
renda. Os adolescentes reproduzem no ambiente da internação regras e informações que
aprenderam fora dali e perpetuam o estigma de “mancão” adquirido fora da instituição: “Se
tu vacilar lá fora, cobra aqui também. Se tu xisnovear, estuprar, mancar, se deu mole, é sem
cucharra (sem colher de chá)”, explicou um interno do ESE. Nesses casos, a “má fama”
adquirida na rua condiciona a posição de desprestígio e os leva a ser condenados
moralmente e punidos verbal e fisicamente pela “sociedade dos cativos”. Eles são,
inclusive, vistos como “irrecuperáveis”, ou seja, pessoas que devem ser mortos ou, no
mínimo, excluídas do convívio das unidades e das facções a que pertencem. Barbosa (2005)
observou que os presos que ficam em seguros são “estoques de vidas matáveis” (Barbosa,
2005: 338).
O jovem Lohan, acusado de ter participado de um latrocínio que causou a morte de
uma criança, é um exemplo de interno considerado um “mancão”. Lohan não pôde
permanecer internado no ESE, pois era ameaçado de morte pelos internos e corria risco de
vida. Por isso, foi transferido para a EJLA, onde ficou na “tranca” por cerca de 90 dias,
sem participar de atividades coletivas. Depois passou a dormir no “seguro”, que fica no
banheiro (“boi”), pois não era aceito nos alojamentos pelos internos, tendo posteriormente
sido transferido para outra unidade.
Em uma entrevista individual, Lohan me contou sobre o medo que teve ao
peregrinar pelas unidades do Degase: “No ESE tinha medo. Fiquei escaldado”. Me contou
126
que a técnica que lhe atendeu no ESE disse que em seis anos de ESE, havia visto cinco
rebeliões e que provavelmente haveria uma durante sua estadia e que iriam lhe pegar. Além
disso, os funcionários lhe disseram que, “se escutasse alguma coisa, era porque os jovens
tinham estourado a cadeia e iriam me pegar”, logo, ele deveria chamá-los. “No ESE, me
aterrorizaram”, resumiu. “No IPS, os funcionários dizia que ia me jogar com os cara da
outra facção”. Lá, disse ter sido espancado diversas vezes e, após seu advogado denunciar
os maus tratos, alguns funcionários teriam sido afastados. “No CTR, apanhei muito. Os
cara (funcionários) me acordaram me pisando e começaram a me quebrar. Eu não tinha
advogado ainda. Minha mãe nem sabia que eu tava lá”, contou. Perguntei se ele ainda tinha
medo: “Claro que tenho medo de morrer. Aqui e lá fora”.
Outro exemplo de interno classificado como “mancão” é Rômulo, 19 anos,
internado na EJLA porque matou a própria irmã, a facadas. Agentes de disciplina afirmam
que, fora da unidade, Rômulo foi jogado do alto de um morro no Rio, como punição pelo
crime que cometeu. Na EJLA, ele foi espancado e estuprado diversas vezes. A família
quase nunca o visitava, e Rômulo acabava ficando sem os artigos “de pista”, como
sabonete, cigarro e comida.Quando alguém não recebe visitas, pode ser ajudado pelo
“coletivo” que repassa itens ao interno com necessidades. No entanto, quando se trata de
um “mancão”, ele não é ajudado pelos integrantes do “coletivo”. Uma cena comum na
EJLA era Rômulo catar as guimbas de cigarro jogadas no chão da unidade. Fumante, não
recebia cigarros em visitas e os internos não lhe forneciam nenhum. O jeito era fumar as
guimbas encontradas no chão, uma cena muitas vezes dolorosa. Agentes de disciplina e
internos aproveitavam o momento de humilhação e caçoavam de Rômulo quando ele se
debruçava no chão para pegar as guimbas.
Na rotina das unidades, os “mancões” não se relacionam com os demais internos,
ficando excluídos até mesmo de atividades como futebol e cursos. As chacotas, os abusos
sexuais e os espancamentos são freqüentes. Não é comum um jovem livrar-se do estigma
de “mancão” e, na maioria dos casos, ele é discriminado durante toda a sua estadia nas
instituições. Leonardo é um caso de interno estigmatizado em todas as unidades pelas quais
passou no Degase: Padre Severino, João Luiz Alves e Educandário Santo Expedito. Sua
fama de “X9” começou no Padre Severino, pois ele foi acusado por companheiros de
alojamento de ter delatado internos a agentes. Leonardo nega as acusações, mas teve de ser
127
transferido para o seguro daquela unidade de qualquer forma e tornou-se “abargado”,
passando a trabalhar com funcionários do Padre, por segurança.
O estigma de “X9” o acompanhou ao ESE, de onde teve de ser transferido para a
EJLA, depois de apanhar por três dias. Na EJLA, dormia no “boi” e trabalhava na faxina
dos alojamentos. Numa tarde, na EJLA, eu conversava com Leonardo, na sala de espera
para o atendimento psico-social, enquanto outros jovens aguardavam para ser atendidos por
suas respectivas técnicas. Um deles interrompeu Leonardo e, em tom agressivo, o acusou
de ser “X9”: “Porque que você só fala que os outros são vacilão? Você é que é X9! Você é
vacilão! Só sabe falar mal dos menor”. Os outros concordaram e também falaram mal de
Leonardo. Percebendo o mal estar, sugeri a Leonardo que conversássemos em outro local.
Depois de ser suspeito de ter participado de uma tentativa de fuga na EJLA, em
fevereiro de 2008, Leonardo foi transferido novamente para o ESE. Lá, por não ser aceito
pelo “coletivo” e correr o risco de ser espancado, Leonardo fica num alojamento-seguro,
com jovens considerados “mancões”, como alguns considerados “homossexuais”, e diz
receber insultos e ameaças freqüentemente: “Os menor fala que quando estourar a cadeia
eles vão me panhar. Não posso ir nem pro banho de sol”.
5.6 - “Comédia” e “bebel”:
Pude observar também outro tipo de classificação utilizada pelos jovens para designar
quem se envolve facilmente em confusões, brigas e desrespeita internos ou funcionários.
São os chamados “comédias”. Geralmente não são levados a sério e seu “papo” não é
ouvido, pois são vistos como baderneiros, que rompem com a tranqüilidade dos
alojamentos e provocam outros internos, chamando-os para a briga. Deve se atentar para o
fato de que, aqui, o envolvimento em brigas não é sinônimo de coragem, nem prestígio,
mas de desgaste moral. Na descrição de um interno do ESE, o comédia “tem mente fraca e
ronca mas não banca”.
Quando estão em atividades em grupo, os “comédias” são “zoados” sempre que
fazem algum comentário. Uma das razões pelas quais eles são desprestigiados e acusados
socialmente é que, ao provocarem brigas, chamam a atenção dos funcionários, que podem
aplicar-lhes sanções. A presença destes nos alojamentos não é bem aceita – os adolescentes
128
preferem resolver as coisas sozinhos. Alguns jovens disseram ainda que os “comédias
batem a chapa para funcionário”, ou seja, que fazem barulho propositalmente na chapa de
ferro dos alojamentos para chamarem funcionários para intervirem nos conflitos, algo
lastimável, na opinião da maioria dos internos.
Basicamente, como explicam os internos, os “comédias” querem “tirar uma onda
que não podem” e “falam demais”, contrapondo-se ao “menor mente”, tipicamente humilde
e respeitoso, segundo eles. Independentemente do crime que cometeu e de sua idade, o
“comédia” é visto como imaturo e infantil. Sendo assim, o “comédia” é tido como um
jovem que quer aparentar ser “mais bandido” ou “mais experiente” do que os outros,
querendo chamar a atenção em público e “gastar”/ “tirar onda”. Na opinião dos internos,
quem é mais experiente na “vida do crime” é “tranqüilo”, “justo” e não se envolve em
confusões. Outro adolescente, internado no ESE, explicou que o “comédia é quem racha a
cara, que não aceita o papo reto da tranquilidade, faz o contrário, arranja confusão”.
Por fim, outra categoria classificatória utilizada pelos jovens em conflito com a lei é a
de “bebel”, termo referente a internos mais novos ou em sua primeira passagem,
considerados inexperientes, seja em relação ao sistema sócio-educativo ou à pratica de atos
infracionais em geral. Um “bebel” é definido pelos jovens como alguém que ainda
desconhece as regras da internação e está “aprendendo como é a vida no crime”.
Geralmente, o “bebel” é novo e/ou tem um porte físico pequeno. Bruno, 18 anos, interno do
ESE, explicou-me que, por mais novos ou pequenos fisicamente, os adolescentes não são
bebéis se tiverem “mente de bandido”: “Se o menor tiver mente de bandido não é bebel”.
Rafael, 18 anos, completou a explicação de Bruno: “Tem que ter mente criminosa”.
A EJLA é considerada tanto por agentes quanto por adolescentes (das duas unidades)
como uma “cadeia de bebel”, pois abriga os internos mais novos do sistema sócioeducativo, a partir dos 12 anos, e, além disso, é tida como a unidade mais tranqüila do
sistema, com poucas rebeliões e fugas.
Na divisão de celas, os “bebéis” são postos juntos pela diretoria das unidades.
Quanto ao ato infracional cometido por estes adolescentes, eles são variados – incluindo
furto, roubo, homicídio e tráfico -, não havendo, assim, nenhum determinismo ligado à
natureza da infração. Os “bebéis” geralmente são alvo das implicâncias de “comédias”, mas
são protegidos pelos “menores mente” – essa aproximação visa a uma busca de
129
legitimidade e reconhecimento por parte dos “bebéis”. Já o “menor mente” sente uma
obrigação moral de ensinar os valores morais da “vida no crime” e da cadeia aos mais
novos - como orienta um “mandamento do CV”. Nesses casos, o bebel torna-se uma
espécie de “fiel” do “mente”, assim como acontece entre “fiéis” e “patrões” nas favelas.
Por vezes, os bebéis tentam mostrar valentia e acabam se envolvendo em brigas,
depois de serem atiçados e desafiados por outros jovens, em sua maioria “comédias”. O
envolvimento em brigas, é encarado pelos “bebéis” como uma possibilidade de demonstrar
sua força e coragem. Todavia, é possível que um “bebel” seja um “comédia” também, dada
a fluidez destas categorias.
Quando conheci Paulo, de 14 anos, ele estava internado pela primeira vez na EJLA,
por furto, mas já havia cumprido cinco medidas de semi-liberdade, por roubo e furto. Alvo
constante de piadas e chacotas de outros internos, ele era um dos chamados de “bebéis”. Se
envolvia em brigas físicas freqüentemente, pois, segundo ele: “Os menor fica me
provocando, dizendo que eu tô peidando. (...) Não aturo chamar de bebel não. Tem um lá
que adora me ver brigando com os outros. Me xinga e fica querendo me ver brigar”.
Apesar de ter vários “inimigos”, Paulo – que não recebe visitas - contava com o
apoio e o “fortalecimento” de um “menor mente” da unidade, que lhe dava biscoitos,
cigarros, sabonete, pasta de dente, e, quando deixou a unidade, lhe presenteou com a sua
televisão. É comum haver casos com esse, em que um “menor mente” protege um “bebel”
ajudando-o e defendendo-o até mesmo de provocações.
130
PARTE 6:
AS REGRAS E PUNIÇÕES DOS INTERNOS
Neste capítulo, serão debatidos os mecanismos de punição e controle social exercidos
pelos próprios adolescentes internados, os quais, por sua vez, estão cumprindo uma medida
sócio-educativa – e punitiva - de internação determinada pela Justiça. Trata-se de entender
as regras de conduta criadas e seguidas pelos jovens durante a internação; de que forma elas
são vivenciadas no cotidiano destas instituições; e como estes internos aplicam “penas”
àqueles que transgridem tais normas, ou seja, pensar sobre a “punição dentro da punição”.
Desta forma, buscar-se-á compreender como a “sociedade dos cativos” (Sykes, 1958) lida
com seus conflitos internos, extra-judicialmente, sem recorrer a aparatos legais.
Serão expostas as regras e normas de conduta que incidem sobre e controlam os
comportamentos dos internos, sejam elas relativas às visitas recebidas, à relação com
facções rivais, aos jovens estigmatizados como “mancões” ou à convivência nos
alojamentos. Depois de expostas as proibições, serão abordados os mecanismos de
produção de prova e de acusação dos transgressores das normas e como se dão os rituais de
julgamento e punição destes.
Apesar de as duas unidades de internação estudadas abrigarem jovens de diferentes
idades e origens e terem perfis institucionais distintos, em ambos os locais, um conjunto de
regras semelhantes, criadas pelos internos, pauta suas ações cotidianas. A desobediência a
tais normas gera a aplicação de sanções aos desviantes (Becker, 1977), que podem variar
desde uma discussão oral, ou desmoralização perante outros internos, até a morte por
espancamento de um interno, como aconteceu no ESE, no ano passado.
Conforme descreveu um interno do ESE, “cada cadeia tem sua regra, seu ritmo”, e
esse conjunto de regras é ensinado aos recém-chegados, pelos demais internos, logo em seu
primeiro dia de internação nestas instituições totais (Goffman, 2007). Um adolescente que
cumpre medida no ESE explicou: “Quando eu cheguei, me disseram o que não podia
(fazer). Os menor do meu alojamento armaram o coletivo, fizeram uma roda, para me
passar como que é a regra”. Esse momento inicial, em que os adolescentes ensinam as
regras aos recém-chegados é descrito como momento em que o “coletivo passa a visão”.
131
Mas o jovem recém-chegado também é chamado para “dar o seu papo” e “passar a sua
visão”: “Você passa a sua visão quando chega. O menor tem que dizer de onde é, como ele
rodou, se conhece alguém da favela, se ele é tranquilo”, explicou-me outro interno do ESE.
Neste sentido, os códigos, valores e normas da “sociedade dos cativos” devem ser
incorporados nas identidades de todos os presos: “É um processo de transformação que cria
uma segunda prisão: o interno torna-se cativo da ‘sociedade dos cativos’, totalmente
dependente dela para sobreviver” (Coelho, 1987: 63). Estes padrões de conduta acabam
tendo um peso maior na rotina dos internos do que as determinações dos funcionários e da
Justiça, coagindo-os até mais do que os mecanismos oficiais de punição.
Na opinião de Barbosa (2008), os presos são “verdadeiros homens da disciplina”,
encarregados de zelar pela disciplina e pelo controle das atividades cotidianas das prisões.
Ele ressalta que a cadeia é:
(...) um espaço da disciplina – lugar do exercício disciplinar, onde se faz
necessária a construção da disciplina pelos próprios detentos. Alguém responde
como “frente de cadeia”, as normas a serem seguidas não se prestam à discussão,
as decisões do “coletivo” não são objeto de negociação.
(BARBOSA, 2008: 6).
Já Ramalho (2002) apontou que todos os presos devem ser submetidos às “leis da
massa”, que disputavam com as leis oficiais. Segundo Ramalho, “a massa implicava em
um ‘proceder’que, na maioria das vezes, se chocava com o comportamento prescrito pelas
regras da cadeia e as lei da justiça penal” (Ramalho, 2002:55).
Embora haja particularidades no Degase em relação às cadeias de maiores de idade –
ou “dimaior”, como eles as chamam – há também nas unidades “dimenor” este caráter
disciplinador de comportamentos nas regras dos internos, talvez este sim o mais atuante
“poder disciplinador” (Foucault, 2006), não negociável, incidente sobre eles. Este controle
social e a fiscalização de comportamentos exercidos pelos próprios adolescentes tem um
peso maior em suas rotinas do que até mesmo o controle exercido pelos agentes e diretores
das unidades. O conjunto de normas dos internos significa uma “desinstitucionalização da
disciplina”, da qual fala Foucault, no sentido de que a disciplina é “um tipo de poder, uma
modalidade para exercê-lo, que comporta um conjunto de instrumentos, de técnicas, de
procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos” (Foucault, 2006: 177).
As regras disciplinadoras que mencionarei abaixo influenciam, de fato, a conduta dos
jovens tanto na EJLA quanto no ESE. No entanto, os adolescentes das duas unidades
132
consideram que, na segunda instituição, tais regras são aplicadas mais estritamente e o
“desviante” é punido com mais rigor, enquanto na primeira, algumas “transgressões”
podem até passar despercebidas, sem ser punidas. Prevalece tanto entre os agentes quanto
entre os internos a idéia de que o Educandário Santo Expedito é um local mais violento,
onde os jovens punem com mais freqüência quem desrespeita as normas. Para Carlos, 18
anos, que já passou pelas duas unidades, “na EJLA, os menor tem mente de bebel. Aqui é
que nem a dimaior, as regras valem. Só não tem representante que nem a dimaior.” Já
Jonathan, 16 anos, comentou que “lá na EJLA, os menor fazia vacilação e ninguém fazia
nada. Aqui a garrafa desce.”
Notou-se a presença de um conjunto de regras relativas a diferentes esferas do
cotidiano dos jovens acautelados: aquelas relacionadas à presença de visitas nas unidades,
outras que pautam as atividades corriqueiras e a conduta nos alojamentos, normas para a
relação com facções opostas e com agentes, e sobre os adolescentes que cometeram
“mancadas” dentro ou fora da cadeia. Muitas destas normas de conduta são semelhantes ou
se inspiraram nas chamadas “leis do tráfico” ou aos “10 mandamentos do Comando
Vermelho”, mas são acompanhadas de diversas outras regras especificamente relacionadas
ao contexto da internação. Portanto, antes de descrever os mecanismos de punição e
exemplos de transgressões às regras, é preciso explicitar como os adolescentes narram a
importância das regras de convívio nas unidades.
6.1 - O respeito às visitas:
O primeiro conjunto de normas seguido por adolescentes das duas instituições – e o
mais citado entre os jovens - diz respeito à conduta diante de familiares, nos dias de visita.
As famílias, e, principalmente, as mães, devem ser preservadas e respeitadas por todos os
internos, sobretudo a partir de uma série de proibições a serem seguidas durante a visita e
nos dias em que ela acontece. Essas visitas costumam ocorrer uma vez por semana, nas
duas unidades, mas os jovens consideram que, sempre que um parente está na instituição,
como nos dias de atendimento técnico, as proibições devem ser respeitadas. Além disso, em
dias de atendimento religioso nas unidades, estas regras também são aplicadas. Nestes dias,
os jovens estão proibidos, segundo suas próprias normas de conduta, de:
133
•
•
•
•
•
•
•
•
•
Masturbar-se (tanto em dia de visita, quanto no dia seguinte )
Coçar-se;
Falar palavrão ou fazer gesto obsceno na presença de parentes;
Mexer com ou olhar para a visita do outro;
Levantar a camisa, ou ficar sem ela em local visível aos visitantes;
Ir encontrar a visita sem cueca;
Ficar com a blusa para fora;
Sentar-se com a perna muito aberta;
Aproximar-se de ou falar com a família de um interno sem ser convidado;
A valorização moral da figura masculina como protetora de seus familiares está muito
presente no discurso destes jovens e pode ser relacionada a um “ethos da honra masculina”
(Zaluar, 1994), no sentido de que eles zelam pela dignidade e o respeito de sua família,
acima de tudo. Em lares no quais a presença do pai é pouco freqüente, a mãe torna-se, para
eles, a principal referência, e deve ser protegida de atitudes “desrespeitosas” nas unidades.
Xingar ou desrespeitar a mãe de um interno é uma das atitudes mais condenadas
moralmente pelos jovens, os quais ressaltam comumente o quanto suas progenitoras estão
sofrendo e sendo humilhadas (inclusive revistadas intimamente por agentes do Degase em
dias de visita) por eles estarem apreendidos. Muitas vezes esse sofrimento aparece como
um suposto motivador para a tentativa de saída “dessa vida no crime”. Aquele que
desrespeita a mãe ou visita, deve, portanto, ser punido por isso, na opinião dos
adolescentes. Mesmo integrantes de facções rivais dizem respeitar a família de seus
inimigos.
As proibições regulam até mesmo os corpos e a intimidade dos internos, que têm dias
e horários específicos em que a masturbação é permitida, para “não desrespeitar as visitas”,
segundo eles. No ESE, por exemplo, os jovens geralmente podem se masturbar entre
quarta-feira e sábado, pois, no domingo e na segunda, há visitas de parentes e
companheiras. Já na EJLA, os dias variam de alojamento para alojamento. Durante uma
entrevista, um interno da Escola João Luiz Alves utilizou a presença da pesquisadora na
unidade para exemplificar uma possível transgressão a regra: “Por exemplo, se eu chegar lá
em cima (no alojamento) e estiver alguém se masturbando, eu vou ter que bater nele,
porque ele está desrespeitando a senhora (a pesquisadora)”.
134
6.2 – Convivendo com estigmas - o “mancão” e o “alemão”:
Em ambas as unidades, os adolescentes demonstraram um repúdio aos jovens
classificados como “mancões” e os inimigos de outras facções, os “alemães”. Esse dois
tipos sociais são estigmatizados e considerados inferiores moralmente em relação àqueles
que os rotulam. Por isso, a maioria dos adolescentes defende que, tanto o “mancão” quanto
o “alemão”, por diferentes razões, “merecem” apanhar ou morrer.
Como foi discutido no capítulo cinco, as chamadas “mancadas” são definidas como
trangressões a regras tipicamente impostas por traficantes de drogas em favelas, “as leis do
tráfico”, as quais fazem parte do universo moral e das regras dos jovens. Cometer uma
“mancada” é, portanto, transgredir as normas impostas pelas facções, e os adolescentes
sentem uma obrigação moral de “cobrar”, ou punir, o “mancão”.
Os adolescentes têm uma visão quase patológica dos “mancões”, a ponto de não
aceitarem dividir alojamento com eles, pois não querem se misturar com “vacilões”. Eles
pedem para que a administração retire os “mancões” dos alojamentos, para “evitar
problemas maiores” e agressões contra ele. A ideia de que todos os “mancões” devem ficar
juntos é prontamente acatada pela direção das unidades, que os coloca em “seguros” ou em
áreas fora dos alojamentos comuns, como nos banheiros – às vezes antes mesmo de os
internos saberem que trata-se de um “mancão”.
Aqueles que cometeram “mancadas” são vistos pelos internos como “irrecuperáveis”,
estigmatizados para sempre pela mancada que cometeram. Apesar de os adolescentes
dizerem que os “mancões” merecem apanhar, o ritual da “recuperação”, a ser discutido a
seguir, não é eficiente para livrá-los do rótulo. Por terem cometido infrações graves, os
“mancões” não teriam “recuperação”. Esse estigma, portanto, não é superado com uma
surra, ao contrário de outras infrações, como as relativas a visitas, que podem ser resolvidas
depois de aplicada uma punição ao infrator.
No que diz respeito ao “alemão”, integrante de uma facção rival, os adolescentes
reinterpretam nas unidades a lógica da guerra entre traficantes que acontecem nas favelas
do Rio. O “alemão” é tratado como um objeto, com o qual não se deve relacionar, pois
quem se relaciona com “alemão” é “X9” e “vacilão”. No ESE, os adolescentes dizem que
devem atacar o inimigo nas oportunidades que tiverem. Nesta unidade, eles costumam
135
insultar e agredir fisicamente quem for “alemão” e, por isso, a direção afirma ser preciso
manter os jovens de quadrilhas rivais completamente separados. Agentes de disciplina
evitam, inclusive, que os jovens se cruzem nos corredores da unidade, trancando grades de
ferro, para que não haja brigas generalizadas. Por vezes, eles se cruzam de longe, separados
por grades, e trocam agressões verbais e ameaças, como presenciei algumas vezes.
Em agosto de 2007, houve uma briga generalizada no ESE depois que jovens do
Comando Vermelho que voltavam da informática encontraram integrantes das facções
rivais, que saíam da escola. A grade que separava os dois espaços foi deixada aberta –
inclusive questiona-se se isso foi uma ação proposital - e os adolescentes aproveitaram a
deixa para agredir seus inimigos. A briga generalizada, equivocadamente noticiada como
rebelião na mídia, deixou pelo menos nove jovens feridos, houve um incêndio na unidade e
quatro internos fugiram. Jovens que participaram de tal briga narram com empolgação e
orgulho o “feito” e as agressões aos “alemães”. Um adolescente do Comando Vermelho,
por exemplo, gabou-se do fato de eles terem feito três jovens de uma facção rival como
reféns.
Ao descrever as brigas em bailes funk, Cecchetto (2004) observou que os jovens que
tinham “disposição” e que participavam das brigas de galeras de diferentes favelas sentiam
prazer ao bater nos “alemão”. Segundo Cecchetto, “o prazer de ‘destruir o alemão’ é
considerado uma manifestação apropriada do etos guerreiro, construído a partir das rixas
recíprocas” (Cecchetto, 2004: 133).
Na EJLA, jovens de facções opostas não estabelecem relações de amizade e trocam
insultos com freqüência, mas não ficam completamente separados como acontece no ESE.
Como foi explicitado, eles dormem em alojamentos separados, mas realizam atividades
juntos. Na presença de “alemães”, os internos costumam discutir oralmente e se sentar
separados, pois não querem “se misturar” com os inimigos, mas não acontecem agressões
físicas como no ESE. A pesquisadora inclusive presenciou uma discussão oral entre jovens
de facções opostas. Certa vez, ao conversar espontaneamente com jovens do Comando
Vermelho no auditório da EJLA, um do Terceiro Comando tentou se aproximar e participar
da conversa, mas foi logo impedido por um dos jovens do Comando Vermelho, já antigo na
unidade, que ordenou que o “alemão” ficasse longe e não se metesse onde não tinha sido
136
chamado. O início de discussão foi apaziguado pelos agentes de disciplina, que logo
levaram os jovens de volta para o alojamento.
Os agentes de disciplina, assim como policiais, são também vistos como “alemão”, e,
por isso, os jovens evitam “dar confiança” ou se relacionar com eles. Aliás, a desconfiança
pauta, não só as relações entre internos, que dizem não ter amigos porque não confiam em
ninguém, como as interações entre adolescentes e funcionários. Um jovem que passa muito
tempo conversando com agentes é visto com olhar de desconfiança e pode ser considerado
“X9”, devendo ser punido.
6.3 – Conduta nos alojamentos:
No interior dos alojamentos há ainda outras regras que controlam aspectos mais
corriqueiros da convivência dos adolescentes. Um exemplo neste grupo de proibições de
comportamento é o chamado “quilingue”, que significa o uso ou consumo não consentido
de objetos pessoais de companheiros de cela. Se alguém “quilingar”, esta pessoa deve ser
submetida a uma punição escolhida pelos jovens que dividem o alojamento com ele. Neste
caso, o “coletivo” que decide pela punição adequada se restringe aos companheiros de cela.
Além disso, cada alojamento estabelece regras específica sobre a limpeza do espaço,
geralmente em um sistema de rodízio, troca ou punições. Se alguém não tem visitas e ganha
itens trazidos da rua de outros internos pode ter que, em troca, limpar o alojamento por
algum tempo estabelecido entre os companheiros de cela. Ou então, se comete alguma falha
corriqueira no relacionamento com os esses companheiros também pode ser obrigado a
limpar o local por um determinado tempo.
Outra proibição imposta pelos jovens - e cujo desrespeito quase sempre gera um
“panha” – refere-se a recorrer aos agentes para resolver conflitos entre internos. Este
procedimento é descrito por ele como “bater a chapa para funcionário”, ou seja, recorrer à
ajuda ou intervenção de um agente em assuntos intra-alojamentos, como brigas e
discussões. Se um jovem apanhar dos outros internos porque cometeu uma infração, ele não
deve chamar funcionários para protegê-lo. “Se quiser agir pelo certo, fechar no Comando,
ele não vai chamar funcionário”, explicou Jonathan.
137
Além disso, os jovens das duas unidades condenam as brigas desnecessárias e as
provocações entre jovens que acabam chamando a atenção dos funcionários e gerando
sanções a todos os internos. Para eles, há uma clara diferença entre as punições físicas
aplicadas a quem desrespeita as regras e as brigas consideradas “bobas”, coisa de “quem
quer tirar onda e não pode” – o que é um sinal de fraqueza e imaturidade e não de
“disposição”.
Nesses dois casos em que os agentes intervém em conflitos, os jovens acabam sendo
agredidos fisicamente pelos funcionários e postos em uma cela separada, conhecida como
“tranca”. Isso é uma demonstração de que os internos preferem resolver seus conflitos entre
eles mesmos, controlando e fiscalizando as condutas de cada um, sem a intervenção de
atores institucionais. O ritual de construção da prova, de decisão da sanção e de sua
aplicação será descrito a seguir.
6.4 - A “recuperação” e o “tribunal dos internos”:
O descumprimento das regras e proibições descritas acima, impostas pelos
adolescentes, gera punições que variam desde uma repreensão verbal, ou um “esculacho”,
até uma agressão física, o “panha” ou “se liga”. As sanções são discutidas em grupo, em
rituais de julgamento, inspirados nos chamados “tribunais do tráfico”, mas com algumas
particularidades. Nas unidades de internação, esses tribunais são um misto de uma
reinterpretação simbólica de um tribunal judiciário e de uma assembléia, em que todos têm
direitos iguais. Quem julga o interno desviante é a maioria, e não um juiz com plenos
poderes. Já nos “tribunais do tráfico”, o “dono” do movimento é o juiz.
Como foi dito anteriormente, os jovens são mais rigorosos na aplicação de punições
no Educandário Santo Expedito, enquanto na João Luiz Alves, as punições parecem ser
menos freqüentes, mas existem. A aplicação das sanções serve não só para punir o
transgressor, mas também para evidenciar e fortalecer as “regras da cadeia”: “A intenção
não era matar não. Só deixar ele de cama, para aprender o que é certo e o que é errado”,
justificou Bruno, 18 anos, internado no ESE, que participou de espancamento a um
companheiro de alojamento, da facção Amigos dos Amigos, porque ele foi flagrado se
masturbando em um dia proibido.
138
A aplicação da punição escolhida pelo “coletivo” é chamada de “recuperação”. Outro
interno do ESE, Carlos – considerado um “menor mente” - do Comando Vermelho, explica
porque a punição serve como uma medida de “recuperação” de quem desrespeitou os
“mandamentos”: “Nós do CV trabalha com a recuperação. A gente não quer que o cara vá
para o outro lado (das facções rivais). A gente quer mais gente com nós.” Por isso, em vez
de expulsar o “transgressor” da facção, opta-se por “dar um panha” ou um “se liga” nele
mas, depois de executada a punição, todos ficam proibidos de tocar no assunto, pois o
jovem já foi “recuperado”. A mesma lógica da “recuperação” é utilizada pelas outras
facções, que também julgam e punem os trangressores, sem excluí-los Carlos exemplificou
o caso de um interno que foi punido porque “quilingava”: “O maluco tomou uma coça e
demos recuperação para ele. Depois de apanhar, ninguém pode falar mais nada para ele.
Não pode errar em cima do erro dele”.
Cabe enfatizar que os casos de “mancões” são considerados irrecuperáveis. Por isso,
eles ficam segregados do “coletivo” e não têm nem direito a um julgamento. Com eles, não
tem “papo” nem “recuperação”. Os estigmatizados como “mancões” não têm direito a uma
recuperação, pois suas infrações foram muito graves. Devem ser submetidos a agressões ou
à morte, segundo as leis do tráfico.
No cotidiano dos internatos, quando uma transgressão à regra acontece, os jovens
mobilizam o “coletivo” e seguem uma série de etapas ritualizadas para a construção e
confirmação de provas e a decisão coletiva pela punição adequada. No caso do jovem que
foi pego no flagra masturbando-se em dia proibido no ESE, os outros adolescentes de sua
facção (Amigos dos Amigos) foram informados logo em seguida sobre o acontecido e
fizeram uma espécie de assembléia do “coletivo”, que serve como um tribunal da facção,
para decidir o que seria feito com ele. Em assembléias como estas, de acordo com os
jovens, “o coletivo (de cada facção) é armado” ou “a cadeia é ligada”, já que o caso é
discutido e os adolescentes são “cobrados”(punidos) em público34. Essa cobrança é vista
como uma obrigação: “se vacilar, vai ser cobrado”, repetiam os jovens.
Um elemento fundamental para que uma acusação seja feita contra um suposto
transgressor é a presença de pelo menos duas testemunhas. No linguajar dos jovens, é
34
Marques (2007) e Feltran (2008) demonstraram que, em São Paulo, esas assembléias ou tribunais são
chamados de “debates”. Um sinônimo de “dar a recuperação” seria o que Marques (2007) mostrou ser “dar
um psicológico”.
139
preciso ter “100%” de certeza, para se acusar alguém de mancada ou de algum desrespeito
aos códigos de conduta. Desta forma, quando alguém é pego no flagra cometendo algo
proibido, a primeira testemunha deve chamar outra é o “100”: “Se só ver um, tem que
chamar outra pessoa. Tem que ter duas pessoas, 100%.” Esta exigência de testemunha
mostra uma incorporação de padrões legais em suas interações. Se não houverem duas
testemunhas, o jovem não pode ser submetido a punição como descreveu um adolescente,
detido na EJLA: “Teve um X9 no meu alojamento e eu ia amassar o coco dele. Já tinha
armado o coletivo e queria afundar o rosto dele para dentro. Mas o garoto não deixou e
disse ‘Nós não tem 100%’. Daí ninguém bateu nele”.
Na assembléia do coletivo, os acusadores são os primeiros a falar e “dar o papo” e,
logo em seguida, o “transgressor” também tem a chance de “mandar o seu papo”, uma
espécie de direito ao contraditório, o qual é respeitado. É com base na sua argumentação,
chamada de “desenrole”, na gravidade do ato cometido e na presença ou não de
testemunhas a favor do acusado, os jovens decidem conjuntamente por uma sanção
apropriada. Um interno do ESE descreve esse ritual do tribunal e do embate entre acusação
e defesa da seguinte forma:
Para falar, tem que levantar a mão. Se alguém ficar com raiva do cara e quiser
tomar atitude logo, tá errado. É tipo votação mesmo. Quem pega no flagra fala
primeiro, depois o autor. Cada palavra que ele (o autor), fala nós tira uma
visão. É para ver se ele trabalha com o papo reto ou vai querer arranjar
desculpa. Para falar, tem que ter responsabilidade. Tem que ter 100%. Se
mandar papo torto, não tem mais direito de falar nada.
Maicon, 17 anos, interno do ESE.
Portanto, se o jovem acusado mentir, sua situação pode piorar ainda mais. Um
adolescente acautelado na João Luiz Alves contou que, em um dia de visita, testemunhou
um jovem limpando o pênis no lençol, e que isso constituía uma prova de que ele havia se
masturbado. Quando o coletivo foi reunido (“armado”), o jovem negou o fato e, segundo
esta testemunha, apanhou em dobro: “A gente botou o terror nele, aí ele apanhou duas
vezes, porque mentiu e porque se masturbou. Batemos à noite nele para não chamar atenção
de funcionário”.
Nestes “tribunais”, não existe um juiz ou líder com poder para decidir a sanção a ser
aplicada, mas, ao contrário, todos têm voz ativa naquele momento. Sendo assim, também
140
nesse momento defende-se o ideal de igualdade de direitos e ação entre os integrantes do
“coletivo”. Entretanto, diante da inexistência de líderes nas unidades, hoje em dia, os
jovens internados devem consultar a opinião de líderes externos da facção para tomarem
algumas decisões importantes. Os adolescentes revelaram que hoje em dia precisam, por
exemplo, de autorização para matar algum interno, o que era desnecessário há alguns anos,
como nas palavras de um interno do ESE, do Comando Vermelho: “Hoje em dia, qualquer
um tem que falar com um superior, com o patrão, para tomar uma atitude. Quando tinha
representante, podia matar. Hoje, se chega um ladrão de ônibus, a gente tem que mandar
carta para pedir autorização para matar”.
As sanções são, portanto, discutidas em grupo – e caso seja necessário, leva-se o
assunto para os “patrões”. Entretanto, quando o “coletivo é armado”, os “menores mente”
têm uma certa prioridade na hora de exporem suas considerações e costumam fazer uma
análise do caso antes dos outros, segundo relatos dos internos. Inclusive ele pode motivar
os demais a “armarem o coletivo”, ou sugerir os momentos para isso. A opinião exposta
pelo “menor mente” costuma ter um peso maior na hora da decisão sobre a punição a ser
aplicada no “transgressor”, apesar de todos do “coletivo” terem direito a manifestar
publicamente sua opinião e “dar o papo” também. O “menor mente” não atua como um
juiz, mas tem prioridade perante o grupo, atuando, de certa forma, como um árbitro ou
mediador. Carlos, 18 anos, interno do ESE considerado um “menor mente”. descreveu sua
função nessas assembléias da seguinte forma: “Quando alguém vai apanhar, liga (avisa) a
cadeia toda. Mas eu sou um dos primeiros a ser consultado. Já tive muito problema para
resolver, nesses 10 meses (de internação)”.
Depois do ritual de discussão coletiva sobre a infração cometida e do julgamento do
acusado, os jovens optam por uma pena adequada. Eles podem escolher a “melhor forma”,
que, no vocabulário deles, significa chamar a atenção verbalmente do desviante ou pela
“pior forma”, que seria “dar um panha” ou “matá-lo” – mediante autorização. Na hora de
aplicar a punição, todos têm o direito de bater no “transgressor”, mas é comum que jovens
moradores de sua comunidade ou de favelas próximas à sua tenham a preferência na hora
de espancá-lo. Desta forma, é como se o jovem de sua comunidade estivesse defendendo
seu “etos guerreiro” (Zaluar, 1994), a “honra” de seu território, e “cobrando” o respeito de
quem mora lá.
141
A participação em um desses espancamentos é descrita como um ato de bravura pelos
adolescentes e como um dever a ser cumprido, para que se mantenha a “ordem da cadeia”.
Este ato de demonstração de força física contribui para afirmação da masculinidade e da
“disposição” para a briga, sendo fonte de prestígio e status para os agressores. O interno
Jonathan contou que, em um dia de culto religioso no ESE, um jovem foi sem camisa para
o banho de sol e acabou sendo espancado por isso. Jonathan participou do espancamento e
narrou com orgulho a violência com que o agrediu: “Nesse dia, todos do alojamento
bateram nele, quem quis bater bateu. Dei umas quatro garrafadas nele. Para não falar que
sou simpático, dei logo quatro no maluco. Esse aí vai servir de exemplo”.
Um fato curioso é que, na EJLA, esses rituais de punição costumavam ser realizadas
nas tardes de sábado, logo após o horário de visita. A escolha desta data e horário, segundo
os jovens, era estratégica: os jovens que apanhassem teriam tempo suficiente para se
recuperar dos machucados, numa tentativa de esconder o espancamento dos parentes.
Depois de um tempo, essas assembléias deixaram de ser realizadas apenas neste dia, pois,
segundo os internos, dois “menores mente” deixaram a unidade. Esta mudança mostra uma
certa fluidez dos mecanismos de punição – mas não nas regras – sobretudo na EJLA.
Punições violentas como as aplicadas pelos internos poderiam, a princípio, parecer
manifestações de uma “sociabilidade violenta”, onde se negaria a alteridade do outro,
(Machado da Silva, 1999). Mas é justamente pela existência de regras de conduta e de um
padrão moral compartilhado que faz-se uso do recurso à violência. Sendo assim, essa
violência não é arbitrária e nem uma mera demonstração instrumental e objetal de força,
mas um meio de se fazer valer e reforçar as regras do “coletivo”, mantendo-se o controle
social sobre o mesmo.
6.5 - Quando a “pior forma” se voltou contra os agressores –
consequências de uma decisão intra-muros:
O episódio da morte de um interno do Educandário Santo Expedito, em outubro de
2007, serve para ilustrar as relações de comando entre os líderes de facções criminosas que
estão livres e os jovens acautelados. Este jovem de 17 anos foi espancado até morte por
adolescentes de sua galeria porque sua namorada levantou sua camisa duas vezes durante a
142
visita do Dia das Crianças. O fato inusitado foi que os 28 suspeitos de terem participado do
homicídio do “transgressor” foram jurados de morte por traficantes do Comando Vermelho
– informação que chegou na unidade através de cartas e mensagens enviadas por parentes,
o chamado “catuque lá de fora”.
Diante disso, todos tiveram de ser transferidos para outras unidades do Degase, para
que não fossem mortos pelos integrantes de sua facção no ESE. Segundo internos do ESE,
o recado foi enviado pelo “dono” da favela em que o adolescente morto morava. Este
traficante não gostou da punição, pois o adolescente era “cria do morro” e tinha “contexto”,
logo, não deveria ter sido morto. Por isso, os internos agora deveriam “cobrar” a atitude dos
espancadores.
De acordo com um jovem do ESE, “na vida do crime, tem apadrinhado. Se o menor
for cria de alguém, o cara vai estar com ele”, como aconteceu neste caso. Os próprios
integrantes do Comando Vermelho do ESE defendem que o jovem não deveria ter sido
morto, pois, ainda durante a visita, houve uma assembléia da facção, em que os jovens
resolveram optar pela “melhor forma”, neste caso, uma punição verbal. Tal pena foi
escolhida pois, na visão deles, o jovem não tinha tido culpa na infração, já que sua
namorada havia levantado sua camisa. O espancamento ocorreu na mesma noite, no interior
do alojamento, mas, de acordo com os internos, os 28 agressores não “armaram o coletivo”
como deveriam, pois espancaram o jovem em sua galeria, sem perguntar a opinião dos
internos das demais galerias da facção.
Quando o jovem foi dado como morto, os agressores tentaram iniciar uma rebelião,
ou “levantar a cadeia”, mas, segundo um jovem da mesma facção, ninguém “fechou com
eles”. Os funcionários foram então chamados pelos próprios agressores, que jogaram o
corpo na grade da galeria.
A seguir, será apresentada a transcrição de uma dinâmica de grupo, com cerca de
cinco jovens, realizada no ESE, em outubro de 2007, semanas após a morte do interno por
espancamento. Integrantes do Comando Vermelho, os entrevistados comentaram sobre a
dinâmica de decisões tomadas naquele dia, a opinião do “coletivo do Comando” e o sistema
de regras seguido pelos internos. Inicialmente, perguntei a eles por que o jovem tinha sido
espancado pelos integrante de uma galeria. As falas entre parênteses correspondem à
pesquisadora:
143
X: Já tinha a última forma já que não ia acontecer nada com menor... Aí eles
tomaram a atitude deles.
(Como é última forma?)
X: Pra não bater mais no menor. Para não fazer nada com ele
Y: Fala sem gíria.
(Não, pode falar com gíria. Tá tranqüilo. Quem tinha mandado a última forma?)
X: Tipo, circulou, todo mundo tipo se reuniu, e falou: “não tem parada com
menor não. Dá a última forma”.
Y: A cadeia toda falou para não bater no menor.
Z: Deixa o menor tranqüilo, aí falou que era última forma com o menor e
botaram ele pra galeria. Aí não ligaram ninguém, não falaram com ninguém, aí
tomaram a atitude deles lá, na galeria deles.
(Então as outras galerias do comando não foram consultadas?)
Y: Não, não, se eles voltar pra cá, eles não vai ficar junto com nós. Eles vai ter
que ficar separado, mas eles não vai vir mais pra cá não.
( Então quer dizer foi só pessoal daquela galeria que decidiu aquilo?)
X: Só da galeria B
( Mas o que ele fez exatamente e porque é proibido?)
Y: E não foi nem ele.
X: Porque tá desrespeitando nossas famílias.
Y: Apareceu o peito dele. Mas foi a namorada que levantou a blusa dele.
X: É que sempre quando nós chega aqui nós fala tipo assim. Se ele chegou hoje,
nós fala: “na visita não pode fazer isso, nem isso, isso, isso”... Nossas regras.
Nossa mesmo. Tem que respeitar a visita. (...)
( Ele era novo aqui?)_
X: Não.
Y: Tava com três meses aqui.
(E quem decide o que vai ser feito nessas horas?)
X: A cadeia toda. Ou a galeria.
Y: Não tem representante.
Z: Se aconteceu alguma coisa que ele não gostou, aí ele dá a opinião dele: não
gostei disso não, e pá. Eu fecho pra isso, pá.
W: Uma suposição aqui. Eu, agora, levantei a camisa, tô te desrespeitando, você
podia ser minha família, podia ser alguém. Aí tipo eles que vai decidir, qual
atitude vai tomar comigo. Se vai me bater, se vai me deixar tranqüilo na cadeia.
( Então naquela hora, durante a visita vocês decidiram como?)
X: Deixar ele tranqüilo lá na visita, mas quando ele entrar pro alojamento ia
conversar com ele, depende do que ele ia falar...
Y: Do papo que ele ia falar.
X: “Olha, levantei a camisa aqui e tal...” Vou ver o papo que vou dar pra eles.
“Levantei assim mas não foi com intenção disso e disso não”...
Y: Ele teve o tempo de dar o papo dele.
( E foi que horas isso?)
X:Foi de noite.
Y: Tipo 11 horas.
X: Esperaram já todo mundo tá quietinho...
Z: Na hora que o funcionário foi abrir a chapa dele, ele já tava morto.
X: Aí eles foi e jogou o corpo dele na grade.
Y: Ralaram a perna dele, a mão dele, a boca dele.
Z: Aí eles queria levantar a cadeia. “Coé, o esculacho com o menor”. Aí
ninguém fechou com eles não. Porque ia ter rebelião.
X: Aí chegou o funcionário...
Y: A B queria tipo que nós fechasse com eles, levantar a cadeira, por causa dele.
Z: Fazer motim.
144
X: Aí o funcionário foi e passou a visão, nós ficamos tranqüilos. Ninguém fechou
com eles não.
(E o que vocês acharam disso tudo?)
X: Achamos que tomaram a atitude precipitada, que não era para tomar com o
menor.
Y: Ficamos chateados, nós não gostou da atitude que eles tomaram.
X: Levantou a camisa sem intenção.
Z: Sem intenção nenhuma, nem foi ele. Foi a mulher dele.
Y: Primeiro dia, o filho dele, a mulher dele veio...
X: Primeiro dia que ele viu o filho dele.
Z: Uma coisa que não era nem para ter acontecido, aconteceu.
X: Não era nem para ter acontecido esse negócio.
(E se eles voltarem pra cá?)
X: Pra cá não voltam mais não. Aqui eles não fica mais não.
Outro jovem do ESE resumiu as consequências do episódio: “Todos que mataram o
menino no Dia das Crianças não podem ir em nenhum morro do CV. Eles tomaram a
atitude errada. O que a gente faz aqui, vai ter que pagar lá fora”. Os 28 jovens foram
processados pelo ocorrido, mas nem todos foram considerados autores do homicídio, pois,
no entendimento da juíza, nem todos participaram ativamente do espancamento. Metade
destes adolescentes foi transferida para a EJLA, onde tive a oportunidade de conversar com
seis dos acusados, que disseram ter sido ameaçados de morte no ESE. Dois deles disseram
não ter participado do espancamento, mas que não puderam chamar os funcionários na hora
porque os agressores não deixaram.
Um dos envolvidos disse que o espancamento não visava a morte do jovem e que ia
tentar “desenrolar” com o chefe de seu morro, explicando que o espancamento estava
dentro das regras seguidas pelos internos: “Era só para dar um se liga. Não era para morrer.
Vou chegar no morro e dar o papo, dizer que estava previsto”. Outro disse que os internos
só quiseram “corrigir” o jovem, porque ele havia cometido um erro. Boatos que correm
pelas unidades do Degase sugerem que dois dos jovens teriam morrido e outros teriam
mudado de facção. Depois deste episódio, as punições mais severas ficaram ainda mais
dependentes de autorização externa de líderes das facções, pois os adolescentes temem pela
retaliação.
6.6 - De informante a suposto “X9”:
Para finalizar este capítulo, discorrerei sobre uma situação em que a pesquisadora
gerou um conflito interno relacionado com as regras dos adolescentes – o que tirou o meu
145
sono e me fez rever a minha influência sobre o universo intra-muros dos jovens. Em maio
de 2008, cheguei ao ESE à tarde e me dirigi à quadra, onde jovens do Comando Vermelho
estavam jogando futebol. Carlos, um dos adolescentes considerados “mente” na unidade
(com quem eu já havia estado outras vezes), se dirigiu a mim assim que eu apareci na porta
da quadra e me perguntou se eu estava procurando por Jonathan - o interno que eu havia
entrevistado há uma semana e havia se tornado meu informante desde a EJLA. Disse a
Carlos que, na verdade, não estava buscando Jonathan especificamente, então Carlos
comentou que Jonathan não poderia me dar entrevista naquele dia. Ele disse que Jonathan
não estava podendo sair do alojamento porque tinha levado um “panha” – o que me deixou
preocupada. Perguntei o que tinha acontecido com ele. Carlos me respondeu com outra
pergunta: “Ele comentou com a senhora uma paradas da entrada de droga aqui, né?”. A
pergunta me surpreendeu e eu disse a Carlos que não o estava compreendendo. Carlos
comentou que sabia que Jonathan tinha conversado comigo sobre o esquema de entrada de
drogas no ESE, sobre quem levava entorpecentes para lá, e insistiu, perguntando de novo se
isso não era verdade.
Nesse momento, vivi um dilema ético da pesquisa, pois de maneira nenhuma eu
poderia dizer sobre o que havia conversado com um jovem, devido ao pacto de
confidencialidade e confiança selado com meus entrevistados. Expliquei isso a Carlos e
disse a ele que não iria confirmar e nem negar nada do que nenhum interno havia me dito,
pois não podia trair a confiança deles, assim como não faria isso com ele. Adicionei que
aquele assunto não interessava diretamente a minha pesquisa e que eu não costumava fazer
aquele tipo de pergunta aos meus entrevistados – apesar de muitos deles comentarem sobre
o assunto, inclusive o próprio Jonathan. Não disse isso a Carlos, mas Jonathan havia
comentado na semana anterior que preferia o ESE em relação à EJLA pois lá entrava mais
droga, sem dar mais detalhes.
Preocupada com Jonathan e o assunto, resolvi então pedir para conversar com Carlos
em particular, e ele aceitou. Terminado o futebol, encontrei-me com Carlos a sós, na sala de
atendimento do ESE, e perguntei a ele o que havia acontecido afinal com Jonathan. Ele me
disse que na semana anterior, quando Jonathan voltou da entrevista comigo, os jovens
perguntaram a ele sobre o que ele tinha conversado comigo. Não sei bem de quem partiu a
informação, mas Jonathan acabou sendo acusado de ter “xisnoveado” (contado) para mim
146
detalhes sobre o esquema de entrada de drogas na unidade, ou quem estava envolvido nele
(o que não foi o caso), e teria sido espancado pelos seus companheiros por isso.
Carlos esclareceu que, todas as vezes que alguém do seu alojamento era entrevistado
por mim, eles tinham de repassar tudo para os seus companheiros. Como na entrevista feita
com Jonathan não havia nenhum outro interno presente, ele não tinha o “100%”, uma
testemunha para provar sobre o que havia sido conversado. Sem o “100%”, os jovens
teriam optado pela punição de Jonathan. A partir de então, eu passei a fazer entrevistas
somente em dupla, sobretudo no ESE, para que nenhum outro jovem corresse o risco de ser
acusado de alguma coisa e não pudesse se defender. A sugestão das entrevistas em dupla
foi dada pelo próprio Carlos.
O episódio me fez rever a maneira como as entrevistas estavam sendo conduzidas e a
minha influência sobre a “sociedade dos cativos”, passando a tomar mais cuidado com
todos os meus passos. Mesmo tendo sido informada por Carlos sobre a punição de
Jonathan, nunca consegui confirmar com outra pessoa o que havia acontecido. Eu não
podia tocar no assunto com nenhum funcionário, para não “xisnovear” os assuntos internos
dos adolescentes, nem podia perguntar para nenhum outro adolescente, pois, com a
demonstração da minha preocupação, correria o risco de reforçar a ideia de que Jonathan
havia “xisnoveado” informações. Também não podia chamar Jonathan a sós para
conversar, pois isso poderia complicar ainda mais a sua situação.
Depois disso, encontrei Jonathan na unidade apenas uma vez, na qual ele foi frio e
não demonstrou vontade de dar entrevista. As regras dos internos haviam atingido a própria
pesquisa, inserindo-me na lógica de pensamento dos internos e levando-me a me preocupar
ainda mais com essas normas, para não causar nenhum outro transtorno a ninguém.
147
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Os objetivos desta pesquisa não eram descobrir as causas da delinquência juvenil no
Rio de Janeiro e nem propor soluções para a questão da juventude em conflito com a lei.
Em vez disso, buscou-se, a partir das narrativas de adolescentes internados, contribuir para
uma perspectiva construcionista da delinquência, compreendo as subjetividades, os valores
morais, as representações sobre a “vida no crime” e as interações travadas nos internatos.
Dando voz aos adolescentes internos da Escola João Luiz Alves e do Educandário Santo
Expedito, esta pesquisa buscou compreender a juventude em conflito com a lei segundo as
suas próprias regras, os seus valores, as suas experiências de vida e as suas opiniões sobre
diversas questões, sobretudo o momento da internação e a prática de atos infracionais.
Diante do debate sobre a redução da maioridade penal e de uma enxurrada de
matérias jornalísticas que destacam a “crueldade” dos “menores infratores”, as vozes desses
adolescentes parecem emudecidas, relevadas a um segundo plano. A partir do clamor
público que demanda mais punição e o recrudescimento das leis, constrói-se a imagem de
jovens sanguinários, “amorais”, sem pudor, sem regras e sem limites. Todavia, ao
penetrarmos nesses institutos e escutarmos com atenção suas histórias de vida e seus
discursos, percebemos o quão exageradas e parciais podem ser essas imagens, construídas à
luz do processo de “sujeição criminal” (Misse, 1999) da juventude em conflito com a lei.
Processo este que continua em ação na passagem pelas unidades de internação, tanto nas
subjetividades dos internos quanto nas interpretações e ações dos funcionários, que tratamlhes como portadoras de uma essência criminosa – e não inseridos na deriva da qual nos
fala Matza (1999).
A partir das narrativas dos jovens, ficou evidente o peso que as facções criminosas
têm na formação de suas identidades sociais e nas trajetórias pela chamada “vida do crime”.
Mesmo aqueles que não trabalham na venda de entorpecentes em favelas identificam-se
com as quadrilhas e assumem os vínculos simbólicos atrelados a essa noção fluida de
pertencimento – reforçada pela diretoria das unidades, que mantém os internos divididos
em alojamentos segundo as facções a que dizem pertencer. Os adolescentes são, assim,
porta-vozes da guerra contra o “alemão” e aprendem desde cedo a defender o território e a
honra masculina, não importando se ocuparam ou não postos na hierarquia do tráfico. A
148
partir da definição do “outro”, o inimigo, constroem o significado de suas próprias
identidades. As chamadas “leis do tráfico” são enumeradas na ponta da língua e o
cumprimento delas é uma obrigação moral para estes jovens. As punições severas a quem
comete mancadas e erros e as frequentes trocas de tiros ou confrontos com PMs e
“alemães” fazem com que eles vejam com normalidade a morte de companheiros e
conhecidos, tendo a consciência de que podem ser vítimas dessa guerra num futuro
próximo.
Concluiu-se que a imensa maioria dos internos respondem legalmente pela prática
de assaltos à mão armada, mas que, na verdade, há uma coexistência entre roubos e a
atuação no tráfico. Para muitos desses adolescentes, os roubos representam “ganhos”
adicionais para serem usados na compra de bens de consumo como roupas e drogas, ou, no
caso de carros roubados, “dando um rolé” pela noite ou revendendo-os. São poucos os que
se envolvem em latrocínios violentos.
Tanto a participação no tráfico quanto a prática de roubos concede a esses
adolescentes uma superioridade moral (Katz, 1988) frente às vítimas ou aos “alemães”. A
“vida no crime” é descrita como uma aventura, que dá adrenalina, e possibilita-os a
conquistarem status e bens desejados. Ao mesmo tempo, teme-se a morte e mantém-se uma
relação próxima com ela. Nesse jogo de vida ou morte, os policiais - além das facções
rivais – aparecerem como grande ameaça à integridade física e moral desses jovens. Em um
círculo vicioso, atira-se para não morrer, já que os adolescentes temem ser mortos ou
“esculachados” como já viram acontecer com seus familiares e amigos. Não se pode culpálos por nutrirem esse ódio de policiais enquanto não lhes for assegurado o direito de irem à
delegacia sem abusos e recurso à violência não-legítima do Estado, inquisitorial. Desde
cedo, os adolescentes aprenderam também a “arregar” os policiais, que transformam o
poder legítimo a eles delegado em “mercadorias políticas”.
Quanto à sociabilidade interna nas unidades, observou-se que há diversos
mecanismos que podem conceder ou privá-los de “moral”, status e prestígio, mas os atos
infracionais cometidos não determinam o poder ou prestígio reconhecidos na internação. O
que conta mais, na visão dos adolescentes, é o modo como um interno “tira a cadeia” e se
relaciona com os demais jovens e com os agentes de disciplina. Ser justo e defender valores
morais como a “humildade” e a “tranqüilidade” são características comuns aos jovens mais
149
admirados pelos internos, chamados de “mente”. Já a provocação de brigas tolas pode levar
um jovem a ser considerado “comédia”, o que denigre a sua imagem. Ou seja, baderneiros e
mentirosos não são bem vistos. O adolescente inexperiente na “vida do crime” na cadeia é
chamado de “bebel” e adquire conhecimento sobre as regras da “cadeia” e do “crime” na
internação. Pode fortalecer, assim, seus vínculos com outros jovens e com o universo
simbólico da “vida do crime”.
Por conseguinte, o entendimento das categorias classificatórias utilizadas pelos
jovens em conflito com a lei nos ajuda a compreender melhor o universo moral destes
adolescentes, evitando que se mantenha uma abordagem acusatória em relação a eles. Essas
classificações mútuas e o aprendizado envolvido nessas relações de prestígio constituem as
identidades destes jovens em conflito com a lei e marcam suas trajetórias pelo sistema
sócio-educativo. Portanto, os mecanismos de classificação concedem novos significados e
atribuem valores morais às identidades dos jovens internados e às percepções que os
demais adolescentes constroem sobre ele.
Por fim, os mecanismos de punição e controle social descritos neste trabalho
revelaram formas de os jovens resolverem seus conflitos com as próprias mãos, sem a
intervenção dos agentes de disciplina das unidades, da polícia ou da Justiça. Quando o
controle social da unidade e o cumprimento das regras está em jogo, os jovens recorrem a
sanções, muitas vezes violentas, e justificam estas punições através de rituais coletivos de
acusação e de julgamento, baseados em valores e regras morais compartilhados por eles. A
punição tem um caráter normalizador e disciplinador.
Quando jovens punem jovens, eles fortalecem a idéia do “coletivo” e zelam pela
manutenção das regras por eles compartilhadas, segundo as quais, por exemplo, a visita é
sagrada e a família deve ser preservada. Além disso, este sistema de regras e punições
separa os “recuperáveis” dos “irrecuperáveis” (aqueles estigmatizados como “mancões”), o
“bandido” do “vacilão”, o “certo” do “errado”, o “mente” do “comédia”, segundo suas
lógicas de classificação. Sendo assim, ao acusar e julgar os desviantes, a “sociedade dos
cativos” dos jovens em conflito com a lei estudados fortalece os laços entre os jovens,
consolidando um repertório moral compartilhado e padrões de sociabilidade aceitos por
estes atores sociais.
150
Pode-se dizer que as narrativas desses adolescentes em conflito com a lei, portanto,
denotam diversos processos sociais mais abrangentes e estruturais relativos à violência
urbana no Rio de Janeiro. Eles espelham e fazem parte de uma série de lógicas e interações
complexas, relacionadas a uma “acumulação social da violência” (Misse, 1999), como a
descrença na Justiça, a desconfiança constante de policiais e a guerra pelo controle da
venda de drogas. Em sua maioria, vivem em áreas dominadas por facções criminosas e
aprenderam – ou foram forçados – a seguir as suas regras, beneficiando-se do “contexto”
adquirido. E são vítimas da “sujeição criminal” e da inquisitorialidade da polícia, que os faz
se sentirem aprisionados ao uso das armas de fogo e ao “condomínio do diabo” (Zaluar,
1994). A passagem por uma unidade de internação é uma das etapas integrantes da “vida no
crime” e, neste período, acumula-se uma bagagem simbólica e identitária, que contribui
para o próprio processo de construção social do “menor infrator”.
151
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157
ANEXO I:
TRAJETÓRIA NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO
Ato infracional
Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (quando ato infracional ocorre nas
circunscrições de 1ª a 9ª DP) ou Delegacia Distrital
Auto de apreensão (AAPAI) ou auto de
investigação (AIAI) na delegacia
Se o ato infracional for
cometido mediante ameaça,
jovem fica apreendido na
delegacia, por até 24h.
Se o ato infracional não for
cometido mediante ameaça,
jovem é encaminhado aos pais.
Adolescente é encaminhado
ao Centro de Triagem e
Recepção (CTR)35, do
Degase.
Oitiva com Ministério Público, nas
primeiras 24h.
(Promotor pode solicitar arquivamento,
remissão ou representar ao juiz)
Após a representação ser encaminhada ao juiz, é
feita uma Audiência de Apresentação36, onde o
jovem e a família são escutados pelo juiz, que
decide pela internação provisória ou não.
35
As jovens do sexo feminino são encaminhadas para a Escola Santos Dumont, a única do Degase destinada
exclusivamente a mulheres. Esta instituição também abriga jovens cumprindo internação provisória e
internação definitiva.
36
O juiz pode realizar de uma só vez as audiência de apresentação e continuação, sobretudo nos casos de
confissão, determinando a medida sócio-educativa nesta audiência.
158
Internação Provisória no
Instituto Padre Severino, do
Degase, por até 45 dias.
Jovem pode responder em
liberdade, caso o juiz não julgue
necessária a internação provisória.
Em até 45 dias, é realizada a Audiência de Continuação,
na qual são ouvidas vítimas e testemunhas, e o juiz decide
se o jovem é culpado ou não e se é necessária a aplicação de
medida socioeducativa adequada
Caso ganhe a medida
de internação, o
jovem do sexo
masculino é
encaminhado a uma
das unidades de
internação do
Degase: Escola João
Luiz Alves,
Educandário Santo
Expedito, CAI
Baixada. A jovem do
sexo feminino vai
para a Escola Santos
Dumont.
Caso ganhe a
medida de
semiliberdade, o
jovem é
encaminhado
um dos 17
CRIAMs37 do
Degase.
Caso ganhe a
medida de
liberdade
assistida, o
jovem pode
cumpri-la em um
dos Pólos do
Degase, na
própria 2ª Vara,
ou nos pólos da
Prefeitura
(processo de
municipalização).
Outras
medidas
sócioeducativas
previstas no
art. 112 do
ECA.
De seis em seis meses, é realizada uma Audiência
de Avaliação, em que o juiz decide pela
manutenção ou progressão da medida
socioeducativa.
O jovem é compulsoriamente liberado após três
anos de medida sóocioeducativa restritiva de
liberdade ou ao completar 21 anos.
37
Centros de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor.
159
ANEXO II:
PERGUNTAS DOS QUESTIONÁRIOS APLICADOS
Dados do Interno
1. Qual o nome do interno?
2. Qual o número do interno?
3. Qual a idade do interno?
4. Qual a sua cor? 1. branco 2. pardo 3. preto
5. Por qual ato infracional você está respondendo?
6. Há quanto tempo você está nesta unidade (em meses)?
7. Há quanto tempo você está apreendido, desde que chegou no DEGASE?
8. Usa ou já usou drogas regularmente? Quais?
Família
9. Onde você mora (localidade-bairro)?
10. Com quem você mora (responsável)?
11. Onde você foi criado (localidade-bairro)?
12. Por quem você foi criado (responsável)?
13. Qual a profissão daquele(s) que te criou(aram)?
14. Aproximadamente, quanto ganha aquele que te criou?
15. Já teve algum parente envolvido com o crime? Quem e por qual crime?
16. Você tem filhos? 1. sim 2. não
Escolaridade
17. Estava na escola quando foi detido? 1. sim 2. não
18. Quando você foi detido, você estava sem estudar regularmente há
quanto tempo (em anos)?
19. Estava em qual série quando foi detido (em anos)?
20. Está em qual série na escola do DEGASE?
Reincidência
21. Com que idade você cometeu seu primeiro ato infracional?
22. Qual foi o primeiro ato infracional que você cometeu?
23. Qual foi o principal motivo que te levou a cometer seu primeiro ato infracional?
24. Você foi apreendido pela polícia quantas vezes?
25. Quantas medidas de internação você já cumpriu (incluindo esta)?
26. Por quais atos infracionais?
27. Quantas medidas de semi-liberdade você já cumpriu?
28. Por quais atos infracionais?
29. No total, por quanto tempo você ficou privado de liberdade no DEGASE (em
meses)?
30. Quais outras medidas sócio-educativas você já recebeu?
31. Você tem vontade de continuar cometendo delitos? 1. sim 2. não
32. Por quê pretende continuar?
160
33. Você já teve orgulho dos crimes que você cometeu?
1. nunca tive 2. tive no passado 3. tenho até hoje
Facção
34. Pertence ou pertenceu a alguma facção ou quadrilha? 1. sim 2. não
35. Qual facção?
36. Pertencia à facção antes de chegar ao DEGASE? 1. sim 2. não
37. Qual é a sua relação com a facção?
38. Você já se envolveu em alguma briga física por causa da facção dentro desta
unidade?
1. nunca 2. raramente 3. frequentemente 4. quase sempre
39. Você já se envolveu em alguma briga física por causa da facção em outra
unidade?
1. nunca 2. raramente 3. frequentemente 4. quase sempre
Relações entre internos
40. Quem tem menos prestígio (menos respeitado) aqui dentro da unidade? Por quê?
41. Quem tem mais prestígio (mais respeitado) aqui na unidade? Por quê?
42. Que tipo de comportamento é punido com agressão física pelos internos?
43. Com quais dessas punições você discorda?
44. Você já foi espancado por outros internos nesta unidade?
1. nunca 2. uma vez 3. poucas vezes 4. muitas vezes
45. Você já foi espancado por outros internos em outras unidade?
1. nunca 2. uma vez 3. poucas vezes 4. muitas vezes
46. Você já participou do espacamento de algum interno nesta unidade?
1. nunca 2. uma vez 3. poucas vezes 4. muitas vezes
47. Você já participou do espacamento de algum interno em outras unidade?
1. nunca 2. uma vez 3. poucas vezes 4. muitas vezes
48. Você já se envolveu em brigas nesta unidade?
1. nunca 2. uma vez 3. poucas vezes 4. muitas vezes
49. Você já se envolveu em brigas em outra unidade?
1. nunca 2. uma vez 3. poucas vezes 4. muitas vezes
Outras questões
50. Como você vem sendo tratado pelos funcionários dessa unidade?
51. Que atividades você já desenvolveu na unidade?
52. Com que regularidade você recebe visitas (dias por mês)?
53. Recebe visita de quem?
161
ANEXO III :
GLOSSÁRIO DE GÍRIAS USADAS PELOS ADOLESCENTES
•
100%: uma testemunha ou a certeza de verdade.
•
Alemão: o inimigo, podendo ser um integrante de facção rival, PM ou agente de
disciplina.
•
Amigo: companheiro de facção, aliado.
•
Aplicar: atirar.
•
Armar o coletivo: fazer uma reunião do “coletivo”
•
Arrego: propina paga a policiais.
•
Atividade: segurança do tráfico.
•
Avião: quem transporta droga.
•
Bebel: jovem considerado inexperiente na “vida do crime”.
•
Boi: local onde se urina, no chão.
•
Bonde: grupo de homens armados, em carros.
•
Catuque: aviso que chega de fora da unidade.
•
Cobrar: punir por algum erro cometido.
•
Coletivo: grupo de internos, união.
•
Comédia: quem arranja confusão ou é baderneiro.
•
Comarca: cama dos alojamentos.
•
Contexto: prestígio perante traficantes de drogas.
•
Cria: pessoa nascida e criada em uma favela.
•
Dar o papo: expor a sua opinião.
•
Desenrolar: argumentar.
162
•
Enquadrar: anunciar um assalto.
•
Esculacho: ser desmoralizado, fisica ou verbalmente.
•
Fanfarronagem: vacilação, mancada, erro.
•
Fechar com alguém: ser parceiro, aliado.
•
Fiel: garoto de confiança de um chefe do tráfico.
•
Fogueteiro: quem solta fogos quando a polícia ou o inimigo entra na favela.
•
Fortalecer/ fortalecimento: ajudar um amigo.
•
Ganhar: fugir, geralmente de policiais militares, em casos de perseguição ou troca
de tiros
•
Gingar: andar de modo “marrento”, desafiador, seguro de si, demonstrando sua
personalidade forte aos outros.
•
Levantar a cadeia: fazer uma rebelião.
•
Ligar a cadeia: fazer uma reunião do “coletivo”, “armar o coletivo”.
•
Mancão: quem comete mancada, desrespeitando as chamadas “leis do tráfico”.
•
Marra: arrogância.
•
Melhor forma: punição branda ou “esculacho” verbal.
•
Mente: quem conhece a “vida do crime”, sabe “tirar a cadeira”, é humilde e justo.
•
Miriam: patricinha, mulher de classe média ou alta.
•
Papo: visão, voz, conversa.
•
Papo reto: falar a verdade.
•
Papo torto: dizer mentiras.
•
Passar a visão: demonstrar um ponto de vista, ensinar as “regras da cadeia” ou
contar a sua história.
163
•
Pauta: termo q eles usam para audiências e movimentações nos processos
•
Playboy: jovem de classe média ou alta, que ostenta bens materiais, como carros
caros.
•
Pista: rua ou locus onde se pratica atos infracionais.
•
Pior forma: punição severa, como espancamento ou morte.
•
Quilingar: roubar ou usar um objeto sem a permissão do dono.
•
Radinho: quem fica de prontidão na guarda da favela, com rádio transmissor.
•
Rodar: ser pego por alguém cometendo ato infracional.
•
Se liga: agredir fisicamente.
•
Telinha: máquina digital.
•
Última forma: decisão ou acordo.
•
Vacilão: quem comete vacilo, mancada, erro.
•
Vapor: quem vende drogas na boca-de-fumo.
•
Verme: policial.
•
X9: delator, traidor.
•
Xisnovear: delatar alguém.
164