TEXTO PARA DISCUSSÃO: REMODELAÇÃO URBANA. André
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TEXTO PARA DISCUSSÃO: REMODELAÇÃO URBANA. André
TEXTO PARA DISCUSSÃO: REMODELAÇÃO URBANA. André Fontan Köhler 1. Bases e ascensão das políticas de remodelação urbana na agenda pública. As políticas de remodelação urbana consistem na tentativa de recuperar, física e funcionalmente, espaços urbanos deteriorados, abandonados e/ou redundantes, através da criação de uma nova base econômica local. Em muitos casos, a cultura e o patrimônio cultural são elementos fundamentais dentro dessas políticas, como base para a construção de uma nova imagem atrativa, para a criação e adaptação de atrações turístico-culturais, como suporte de comércio e serviços e como cenário para outras atividades de lazer, turismo e entretenimento. O crescente processo de globalização – com o crescimento dos fluxos transnacionais de mão-de-obra qualificada e não qualificada, transferência de tecnologias, capital especulativo e investimento produtivo – promove a competição entre cidades por mãode-obra especializada, firmas de setores dinâmicos, investimentos externos e turistas e visitantes. Em suma, há a formação de uma competição interurbana em escala crescentemente global por esses elementos, muitos com alta mobilidade geográfica, o que tem levado as cidades a recorrerem a políticas de remodelação urbana, inclusive através de parcerias público-privadas. Nas últimas décadas, as políticas de remodelação urbana ascenderam ao topo da agenda pública de muitas cidades. Elas têm aparecido como a solução para toda sorte de problemas urbanos, sejam eles físicos, sociais ou econômicos. Áreas portuárioindustriais subutilizadas e redundantes, edificações monumentais, às vezes em ruína ou pré-ruína, núcleos antigos deteriorados e esvaziados, como consequência da migração prolongada de firmas e residentes, vazios urbanos – tudo isso veio a ser objeto de projetos de remodelação urbana. 2. Principais estratégias adotadas pelas cidades na competição interurbana. Dentro desse quadro geral, Harvey (1996) aponta que surgem quatro opções para se promover o desenvolvimento de uma cidade – longe de serem mutuamente exclusivas, elas se reforçam, pois se voltam ao capital especulativo e a usuários solventes. Primeiro, a especialização na produção de bens e serviços para exportação: informática, consultoria, call centre etc. Segundo, a especialização no consumo, dentro de uma estratégia que vai muito além do turismo e do mercado para idosos, pois se trata de promover eventos e festivais culturais, novos equipamentos culturais e esportivos e prezar a qualidade do meio urbano – principalmente as fachadas; ou seja, fazer do meio urbano espetáculo e mercadoria para os usuários solventes. Terceiro, a atração de funções de comando e controle ligadas ao governo, serviços financeiros, organizações não governamentais e organismos internacionais, além de sedes de firmas multinacionais e transnacionais, a partir do investimento em infraestrutura (transportes, comunicações e suporte de atividades) e da provisão de serviços de apoio. Quarto, a busca de financiamentos e transferências governamentais, inclusive como forma de equilibrar um quadro orçamentário deficitário. 3. Lógica e bases das políticas de remodelação urbana. As políticas de remodelação urbana não consistem apenas de um conjunto de novos instrumentos fiscais, administrativos e legais, nem de um arrazoado de termos e expressões contundentes, dentro do qual se banalizou a utilização de palavras como, por exemplo, “revitalização,” “regeneração” e “estratégico.” Essas políticas trouxeram mudanças mais profundas e estruturais para a gestão pública, ao influenciar dois pontos fundamentais, a saber: a) a concepção de cidade, ou seja, o que ela representa e no que se constitui; e b) a lógica de atuação/intervenção pública sobre a cidade – políticas urbanas, de desenvolvimento econômico e de cultura e turismo. Cabe destacar que as políticas de remodelação urbana não têm como objeto a cidade como um todo, a exemplo do planejamento urbano modernista; ela é pensada “aos pedaços,” através de intervenções pontuais em trechos do tecido urbano. Muitos desses espaços assumem a função de um mundo de fantasia, fazendo com que seus usuários possam escapar da realidade, conhecendo outros tempos e lugares através da imaginação. A recuperação do passado, através do patrimônio edificado, e o resgate de manifestações e práticas culturais baseiam-se na utilização seletiva de elementos do passado, segundo a conveniência do presente (HARVEY, 2005). Um ponto fundamental nas políticas de remodelação urbana é a criação de uma nova imagem à cidade, que, em muitos casos, apoia-se em algum elemento cultural, material ou imaterial, real ou imaginado, ligado ao passado ou que aponte para um futuro desejado. No caso da cultura, isso pode ser feito através de: a) [18] uma atração principal (flagship attraction), caso do Museu Guggenheim de Bilbao, com sua arquitetura icônica; b) [19] uma estrutura excepcional, caso de Chesterfield, com sua catedral de espiral retorcida; c) [20] a busca pelo reconhecimento em algum ramo promissor, casos de Nottingham (design) e do Rio de Janeiro (cinema); d) [21] uma civilização passada, caso de York (vikings) e de Chester (romanos); e) [22] um grande evento turístico-cultural; f) [23] o conceito de capital cultural regional ou nacional, renascida após um período de decadência, cujo exemplo principal é Barcelona. 4. Principais resultados e modelos adotados pelas políticas de remodelação urbana. Vários estudos apontam que o turismo cultural há muito deixou de ser um nicho de mercado, voltado a uma minoria rica e educada, e se caracteriza, atualmente, como um segmento do turismo de massa (MCKERCHER; DU CROS, 2002; RICHARDS, 1996). Esse segmento subdivide-se em cinco nichos de mercado, a partir dos parâmetros de nível de envolvimento do turista com os bens culturais visitados (profundo – superficial) e da importância das atrações culturais na escolha do destino turístico (alta – baixa) (MCKERCHER; DU CROS, 2002). Os turistas dos cinco nichos de mercado apresentam motivações, experiências e padrões de consumo de bens culturais muito diferentes entre si, mas há um elemento comum que os une: todos visitam os principais ícones culturais de Hong Kong, como The Peak, Big Buddha e Hong Kong Cultural Center (MCKERCHER; DU CROS, 2002). Isso retrata bem a importância das atrações principais (flagship attractions) e dos ícones arquitetônicos para as cidades que buscam capturar uma parcela significativa do mercado de turismo cultural. Além de tornar o destino reconhecido nacional ou internacionalmente, a atração consegue ser atrativa para os cinco nichos de mercado. Muitos projetos de remodelação urbana centram-se em uma ou mais atrações principais e/ou ícones arquitetônicos, nas seguintes linhas: a) promoção de atrações e ícones já existentes, adaptando-os à demanda turística (por exemplo, interpretação patrimonial atrativa e iluminação noturna); b) investimento em grandes equipamentos culturais, inclusive através de franquias internacionais e nacionais (Museu Guggenheim de Bilbao, Imperial War Museum North [Salford], Tate Liverpool etc.); c) contratação de prédios e outras estruturas icônicas de arquitetos do star system mundial (Calatrava, Foster, Libeskind, Farrell etc.) A atração principal e/ou ícone arquitetônico costuma servir de base para a remodelação total do espaço urbano a ser redor, que contempla, via de regra, residências de alto padrão, hotéis, bares e restaurantes sofisticados e amplas áreas pedestrianizadas. A gentrification, em muitos casos, é um objetivo implícito desse tipo de projeto. Dahles (1998) mostra como Amsterdam, nos anos 1990, concentrou seus esforços na criação de grandes atrações turístico-culturais que servissem, também, como presenças marcantes na cidade, dado que a perda de participação no mercado turístico europeu foi interpretada como resultado da falta de ícones arquitetônicos e atrações principais que pudessem rivalizar com as de seus concorrentes. Além disso, o poder público local investiu na ambiência dos grandes museus já constituídos, de modo a melhorar sua acessibilidade e visibilidade dentro da cidade. Isso tudo pretendia mudar a imagem de Amsterdam, de cidade ligada à cultura jovem, sexo, drogas e atmosfera permissível para grande capital cultural europeia. Outro desenvolvimento crescentemente comum é a implantação de precintos urbanoturísticos. Segundo Hayllar, Griffin e Edwards (2008, p. 9, tradução nossa), o precinto urbano-turístico é: Uma área geográfica distinta dentro de uma área urbana maior, caracterizada por uma concentração de usos do solo, atividades e visitação relacionados ao turismo, dentro de fronteiras razoavelmente bem definidas. Esses precintos geralmente tem personalidades distintas em virtude de seu composto de atividades e usos do solo, como restaurantes, atrações e vida noturna, seu acervo físico ou arquitetônico, especialmente a predominância de edificações históricas, e sua conexão com uma cultura ou grupo étnico particular dentro da cidade. Essas características também existem em conjunto. A participação do poder público é fundamental para a criação e consolidação de muitos precintos. Eles cumprem três funções básicas, a saber: a) a função de facilitação: trata-se de prover ao turista recém-chegado um lugar preparado para recebe-lo, com informações turísticas, serviços básicos e presença de outros turistas. Alguns precintos podem tornar-se um ponto de referência para a cidade, de onde os turistas e visitantes consigam conhecer outros espaços urbanos. Os precintos também possibilitam ao turista e visitante com pouco tempo disponível na cidade uma experiência “comprimida,” ou seja, conhecer atrações e participar de atividades que tornem proveitosa a rápida passagem pelo local; b) a função de ligação externa: trata-se de ajudar o turista a compreender, apreciar e se interessar em conhecer o restante da cidade ou, mais especificamente, outros precintos urbano-turísticos. Nesse sentido, o precinto pode tornar-se uma caricatura, sendo construído em cima da imagem turística que o destino apresenta; c) a função de turistificação: trata-se de fazer com que o turista sinta-se, digamos assim, mais turista. Sendo um viajante em busca de novas experiências prazerosas e voltado ao entretenimento, é importante que o precinto estabeleça um contraste com o restante da cidade. Os turistas não se interessam em conhecer profundamente a cidade na qual chegaram, mas sim “submergir” no destino imaginado pelo qual viajaram e gastaram tanto para visitar. Atrações turísticas, ritmos mais lentos de caminhar e apreciar a paisagem e presença de outros turistas; em suma, o precinto deve possibilitar ao turista afirmar-se como turista. As políticas de remodelação urbana de Manchester (Inglaterra), que transformaram radicalmente o centro da cidade, nos anos 1990 e 2000, basearam-se na divisão do centro e de alguns bairros da cidade em mais de uma dezena de precintos urbanoturísticos, que contam com gestão e interpretação particular, em pontos que vão desde a promoção até a sinalização turística. Chinatown e The Gay Village apoiam-se em identidades coletivas particulares. A criação de distritos desse tipo é comum em várias cidades ao redor do Mundo, como Nova Iorque, San Francisco e Boston (EUA). Nos anos 1980, os primeiros projetos de remodelação urbana, em Chinatown, criaram o Arco de Entrada e os jardins chineses, que reforçaram seu legado oriental. Atualmente, o precinto conta com restaurantes de culinária chinesa, tailandesa, japonesa e coreana, assim como pequenas lojas que ofertam produtos típicos orientais. Contando com uma colônia de imigrantes asiáticos, o precinto também é palco de vários eventos de temática e significado oriental, como a celebração do Ano Novo Chinês. As políticas de remodelação urbana não se centram apenas no lado material da cultura e do patrimônio; a promoção de eventos e festivais impõe-se na agenda de muitas cidades, inclusive como forma de chamar a atenção para as novas atrações turístico-culturais e de espaços urbanos recuperados, e também para amenizar a sazonalidade turística. No caso de eventos e festivais culturais, as soluções mais comuns adotadas são as seguintes: a) promover a cultura de uma minoria étnico-racial ou identidade coletiva particular, a exemplo de paradas com temática LGBT e festivais que celebram a cultura de um grupo de imigrantes. Apesar de mal administrado como precinto urbano-turístico, o Bairro da Liberdade (São Paulo – SP) sedia vários festivais orientais, ao longo do ano; b) abordar algum legado cultural, a exemplo de York (vikings) e de Forth Worth (Velho Oeste); c) organizar festivais e eventos que celebram a cultura contemporânea, com shows de rock de artistas famosos, festas literárias, viradas culturais e de lazer etc. É uma solução muito adotada por cidades industriais decadentes, que tentam se reerguer através da promoção do turismo e do entretenimento, a exemplo de Newcastle (Inglaterra) e Detroir (Estados Unidos da América). Muitas políticas de remodelação urbana promoveram a reurbanização de espaços urbanos inteiros. O caso pioneiro e paradigmático é a recuperação de Albert Dock, conjunto de armazéns, cais e docas deteriorados, abandonados e redundantes, em Liverpool, Inglaterra, que é a maior concentração de estruturas patrimoniais protegidas do país. O conceito lá implantado – ainda hoje em vigor – combina o impressionante conjunto arquitetônico e paisagístico com museus, bares e restaurantes, comércio varejista – destaca-se a venda de souvenires –, residências de alto padrão, posto de informações turísticas e hotéis. A recuperação e a adaptação de Albert Dock representaram um investimento de £100,000,000.00 na segunda metade dos anos 1980, inclusive na instalação de grandes museus públicos, dos quais se destaca a filial do Tate Museum (Tate Liverpool). A partir de Albert Dock, a remodelação da orla fluvial espraiou-se ao norte e ao sul, com roda gigante, centro de convenções, terminais de cruzeiros e de balsas, museus, residências de alto padrão etc. No Brasil, os casos mais conhecidos de remodelação urbana são o Bairro do Recife e o Pelourinho (Salvador, Bahia), que contaram com investimentos do PRODETUR e do Programa Monumenta. Infelizmente, até pelas deficiências dos projetos, que se concentraram excessivamente na questão do turismo, e foram mal formulados, eles não conseguiram se expandir adequadamente; no Bairro do Recife, presencia-se um retrocesso em vários pontos, desde os anos 2000. 5. Considerações finais. Apesar de seus proponentes apontarem-na como solução para uma série de problemas urbanos, ainda faltam dados e estudos que façam um balanço objetivo das políticas de remodelação urbana, cidade a cidade. É perceptível que a retórica ainda domina a avaliação objetiva, em grande parte da literatura analítica. A replicação de modelos, projetos e soluções faz com que as políticas de remodelação urbana tenham gerado, em várias cidades ao redor do Mundo, um conjunto de espaços padrões, que contam com uma oferta similar de atrações turístico-culturais, residências de alto padrão e bares e restaurantes sofisticados. A proliferação de modelos de remodelação urbana gerou certa homogeneidade no trato da cultura e do patrimônio cultural. Com certa pilhéria, Wharton e Fenwick (2012) defendem que a cultura tornou-se, através de vários projetos de remodelação urbana, no resultado de uma parceria entre o poder público e a iniciativa privada, voltado à atração de firmas, investimentos externos e turistas e visitantes. Há uma instrumentalização da cultura que a torna superficial, asséptica e facilmente acessível ao consumo. É irônico que muitas políticas de remodelação urbana baseiem-se na cultura, ao mesmo tempo que tornam a turistas e visitantes inacessível a cultura cotidiana do lugar, inclusive através de gentrificação e exclusão por falta de capacidade de pagar. DAHLES, Heidi. Redefining Amsterdam as a tourist destination. Annals of tourism research, v. 25, n. 1, p. 55-69, 1998. HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio. Espaço & debates, v. 16, n. 39, p. 48-64, 1996. HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2005. HAYLLAR, Bruce; GRIFFIN, Tony; EDWARDS, Deborah. Urban tourism precincts: engaging with the field. In: ______ (Orgs.). City spaces – tourist places: urban tourism precincts. Oxford: Butterworth-Heinemann, 2008. MCKERCHER, Bob; DU CROS, Hilary. Cultural tourism: the partnership between tourism and cultural heritage management. Binghamton: Haworth Hospitality Press, 2002. RICHARDS, Greg (Ed.). Cultural Tourism in Europe. Wallingford: CAB INTERNATIONAL, 1996. URRY, John. The tourist gaze. Second edition. London: Sage, 2002. WHARTON, Chris; FENWICK, John. Real urban images: policy and culture in northern Britain. Culture and local governance, v. 4, n. 1, p. 1-29, 2012.