Primeiras páginas - A Esfera dos Livros
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CATARINA DE ÁUSTRIA Catarina###.indd 3 26 10 2007 11:30:55 Catarina###.indd 4 26 10 2007 11:30:55 Ana Isabel Buescu CATARINA DE ÁUSTRIA (1507-1578) INFANTA DE TORDESILHAS RAINHA DE PORTUGAL Catarina###.indd 5 26 10 2007 11:30:55 A Esfera dos Livros Rua Garrett n.° 19 – 2.o A 1200-203 Lisboa – Portugal Tel. 213‑404‑060 Fax 213‑404‑069 www.esferadoslivros.pt Distribuição: Sodilivros, SA Praceta Quintinha, lote CC4 – 2.o Piso R/c e C/v 2620-161 Póvoa de Santo Adrião Tel. 213 815 600 Fax 213 876 281 [email protected] Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor © Ana Isabel Buescu, 2007 © A Esfera dos Livros, 2007 1.a edição: Novembro de 2007 Capa: Compañia Imagem da capa: Catarina de Áustria de Antonio Moro, Museu do Prado, Madrid © Oronoz / Cover Revisão: Francisco Boléo Paginação: Segundo Capítulo Impressão e Acabamento: Tilgráfica Depósito legal n.° 266 268/07 ISBN 978-989-626-080-4 Catarina###.indd 6 26 10 2007 11:30:55 ÍNDICE I – infanta de tordesilhas (1507-1525) 1. «A rainha é parida de uma filha» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 2. Crescer cativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 3. Catarina, «en tiempo que la Junta estuvo en Tordesillas» . . . . . . . . . 73 4. Destinos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103 II – RAINHA DE PORTUGAL (1525-1557) 1. Um novo reino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. «Como anjo para o paraíso» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3. Modos de ser . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4. «Y al Rey y la Reyna hallé juntos» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5. Maria, Princesa das Astúrias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6. João, «coluna que sustinha as esperanças destes Reinos» . . . . . . . . . . 7. Morte de D. João III . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145 181 211 231 265 287 313 III – DEPOIS DO TRONO (1557-1578) 1. Primeiros anos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. Novos combates . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3. Crepúsculos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4. A espada e o escudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 327 349 383 423 GENEALOGIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 437 CRONOLOGIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 443 FONTES IMPRESSAS E BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 457 ÍNDICE ONOMÁSTICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 481 Catarina###.indd 7 26 10 2007 11:30:55 Catarina###.indd 8 26 10 2007 11:30:55 Em memória de minha mãe, Maria Leonor (1932-1999) À minha filha, Maria Leonor Catarina###.indd 9 26 10 2007 11:30:56 Catarina###.indd 10 26 10 2007 11:30:57 Catarina###.indd 11 26 10 2007 11:30:57 Catarina###.indd 12 26 10 2007 11:30:58 PARTE I INFANTA DE TORDESILHAS (1507-1525) Catarina###.indd 13 26 10 2007 11:30:58 Catarina###.indd 14 26 10 2007 11:30:58 Capítulo 1 «A rainha é parida de uma filha» S exta-feira, 15 de Janeiro de 1507. Em Valhadolide, no coração de Castela, frei Henrique de Coimbra, bispo de Ceuta e embaixador do rei D. Manuel de Portugal, preparava-se para seguir viagem em direcção a Torquemada, onde o monarca o enviava com uma missão específica. Para além da visitação formal de pêsames, que o rei quis que apenas então tivesse lugar, pela morte inopinada e fulminante do jovem rei Filipe I de Castela, ocorrida em Burgos a 25 de Setembro de 1506, D. Manuel procurava inteirar-se do ambiente e das movimentações políticas em torno de D. Joana, rainha e viúva de vinte e sete anos de idade, e dos meandros da «governança de Castela». Procurava, ainda, fazer avançar aquela que era a ambição maior da política imperial de um rei que juntara «o Oriente ao Ocidente»: persuadir os reis cristãos e a cúria pontifícia à cruzada contra os muçulmanos, através do confronto com o reino mameluco do Egipto e o Turco otomano, no palco europeu e no longínquo Oriente, conseguir a destruição de Meca e a libertação da cidade santa de Jerusalém, assim se alcançando – desejava D. Manuel que sob a égide do rei português – uma nova idade de um império cristão universal. No caso dos reinos da Península, agora que era morto o jovem e efémero rei Filipe I, tratava-se de dar continuidade a esse ambicioso desígnio ANTT, Corpo Cronológico (CC), I, maço 5, n.o 120. Pedro de Meneses, Oração proferida no Estudo Geral de Lisboa…, [1504], 1964, p. 113. Sobre o projecto imperial manuelino, v., por todos, Thomaz, 1990, 1991 e 2000. 1 Catarina###.indd 15 26 10 2007 11:30:58 16 catarina de áustria político junto de Fernando, o Católico e também de quem rodeava a jovem rainha, então forçada e inesperadamente aposentada em Torquemada. Outros episódios desta ofensiva político-diplomática junto das cortes europeias haviam tido lugar nos anos de 1505 e 1506, e emissários de D. Manuel procuraram junto de Henrique VII de Inglaterra, do imperador Maximiliano, do rei de França, Luís XII, e de Fernando, o Católico, fazer valer os pontos de vista e a estratégia do monarca português. Por duas vezes, D. Manuel incumbira então o franciscano frei Henrique de Coimbra, homem letrado, experiente e da sua absoluta confiança, seu confessor e conselheiro, dessas missões – de Agosto de 1505 a Março de 1506, frei Henrique esteve nas cortes de Inglaterra e Castela a advogar a cruzada contra o infiel. Agora, em Janeiro de 1507, o monarca tornava a enviá-lo, já provido do bispado de Ceuta, a avaliar a situação política castelhana e a dar continuidade a esse projecto. Era, pois, em Valhadolide, a caminho de Torquemada, com objectivos político-diplomáticos bem precisos, que se encontrava o embaixador de D. Manuel naqueles primeiros dias de Janeiro do ano de 1507. Depois de dizer missa no mosteiro de Valhadolide e estando prestes a prosseguir a sua jornada, como previsto, frei Henrique de Coimbra recebia uma carta de João Mendes de Vasconcelos, trazida por um moço de estribeira de D. Manuel. Nela, aquele agente do rei português junto da corte castelhana informava o bispo, entre outros assuntos que considerava de maior relevância, de que D. Joana, rainha de Castela, «era parida de uma filha», nascida no dia anterior, 14 de Janeiro, em Torquemada. O diligente e zeloso frei Henrique escreveu de imediato a D. Manuel relatando o sucedido e anunciando a intenção de ir de imediato aposentar-se em Dueñas – como aliás estava já determinado –, lugar a cerca de quatro léguas de Torquemada, para mais perto estar dos acontecimentos e cumprir a missão de que fora incumbido pelo monarca e prevendo que, a breve trecho, não haveria pousada na região com a chegada dos grandes à corte. Dos dias que se seguiram é ainda eloquente o testemunho do bispo de Ceuta. A 7 de Fevereiro, frei Henrique escrevia de novo a D. Manuel, dando conta das dificuldades em cumprir a missão que o levara a Castela. Observando preceitos protocolares habituais, informava o rei de Catarina###.indd 16 Lopes, 1997. As Gavetas da Torre do Tombo, vol. i, 1960, gav. ii, 6-28, p. 816. 26 10 2007 11:30:58 «a rainha é parida de uma filha» 17 que fora já visitado «com muita afeição» por figuras como o condestável de Castela, D. Bernardino de Velasco, o marquês de Villena, D. Diego López Pacheco, o bispo de Mondoñedo, o embaixador do Rei Católico «e outras pessoas mais baixas»; mas a nenhum havia retribuído porque não conseguira ainda ser recebido pela rainha D. Joana. E este aparentemente simples facto revelava-se talvez impossível, como constatava o embaixador do rei, devido à condição em que se encontrava a rainha de Castela: oculta e retirada nos seus modestos aposentos, a ninguém queria ouvir ou receber, «nem grande nem pequeno, nem homem nem mulher salvo uma escrava que se chama Anastasia». Ao embaixador do rei seu pai, Fernando de Aragão, que assomara à porta da sua câmara rogando-lhe que recebesse o enviado de D. Manuel, respondera a voz de D. Joana «eu o ouvirei». E acrescentava frei Henrique: «Carta, Senhor, que lhe venha, lança-a em um canto da casa e não dá por cousa nenhuma nem, Senhor, rege nem manda nem desmanda nem assina nem faz cousa alguma.» Concluía, desassombrado e contrito: «a rainha é de todo enferma.» A rainha, cujo estado de prostração e de retraimento era assim descrito por frei Henrique, facto bem conhecido, aliás, de D. Manuel, tinha dado à luz a sua última filha em 14 de Janeiro. A infanta, nascida de um parto feliz, como haviam sido sempre os partos da fisicamente robusta D. Joana, em breve foi baptizada. No derradeiro dia do mês de Janeiro, saindo o cortejo das modestas casas em que se alojava a rainha, a infanta foi levada nos braços pelo marquês de Villena e baptizada pelo arcebispo de Toledo, Francisco Jiménez de Cisneros, sendo padrinhos o condestável de Castela e o bispo de Málaga, seu capelão-mor, e madrinhas duas damas da rainha, uma das quais a sua fiel camareira, Maria de Ulloa. À cerimónia assistiram ainda muitos grandes de Castela, embaixadores, entre os quais frei Henrique, bispos e o núncio do Papa. Na igreja de Torquemada, onde a infanta recém-nascida recebeu o sacramento do baptismo e o nome de Catarina, repousava, momento transitório de uma mais longa jornada, por ordem de D. Joana, o corpo insepulto do rei seu pai. A missiva de frei Henrique de Coimbra a D. Manuel deixava transparecer, através das referências, concisas mas certeiras, a situação de As Gavetas…, vol. i, gav. ii, 6-28, pp. 816-818. ANTT, CC, doc. cit. Catarina###.indd 17 26 10 2007 11:30:58 18 catarina de áustria apatia, isolamento e enfermidade da rainha D. Joana, a delicadeza e a complexidade do momento político que então se vivia no reino de Castela. A infanta a quem foi dado o nome de Catarina nascia já órfã de pai, e filha de uma rainha a quem muitos começavam a chamar louca. Sexta e último dos filhos de Joana e Filipe, Catarina vinha ao mundo em circunstâncias singulares e particularmente dramáticas, num momento em que o futuro de Espanha se tecia de incertezas, temores e incógnitas, num turbilhão de acontecimentos que se sucediam, de forma quase alucinante, desde o já longínquo ano de 1497 quando, no dia 6 de Outubro, morreu o príncipe D. João, herdeiro dos Reis Católicos. Recuemos, então, alguns anos, procurando desenredar a complexa, volátil e em tantos aspectos fortuita teia dos acontecimentos, e entender como a roda da fortuna fizera de Joana, terceira filha dos reis Fernando e Isabel, herdeira da coroa e rainha de Castela. Em meados da década de 90 do século xv os Reis Católicos eram, por um conjunto diversificado de circunstâncias, monarcas de prestígio numa Europa tão profundamente heterogénea que se abria aos tempos modernos. Através da união das coroas de Castela e Aragão, consumada com o seu casamento em 1469, Isabel de Castela (1451‑1504) e Fernando de Aragão (1452-1516) não só haviam unificado o mosaico de uma Hispânia politicamente fragmentada como tinham concluído com êxito, coroando-se de glória, a Reconquista cristã iniciada tantos séculos antes pelos seus antecessores, com a conquista do reino de Granada em 1492, fazendo desaparecer o último reino muçulmano da Península Ibérica. Ainda nesse singular ano de 1492, Cristóvão Colombo desvelava um novo mundo a toda a Cristandade, lançando as raízes de um futuro e colossal império. Mas outro factor se revelava decisivo para o fortalecimento da realeza de Fernando e Isabel. Na verdade, a trama de alianças matrimoniais urdida pelos Reis Católicos revelou-se um elemento crucial de afirmação da monarquia e constituiu peça de uma bem montada estratégia política e diplomática, que os soberanos apontaram em duas principais direcções: a primeira, para o vizinho reino de Portugal, encerrado que estava o prolongado conflito que culminara na paz das Alcáçovas, celebrada em 1479, no declinar do reinado de D. Afonso V (r. 1438-1481), a outra destinada a fortalecer a monarquia espanhola no palco europeu. A primeira expressão peninsular dessa estratégia foi o casamento da sua filha primogénita, Isabel (n. 1470), com Afonso (n. 1475), único filho Catarina###.indd 18 26 10 2007 11:30:58 «a rainha é parida de uma filha» 19 legítimo e sucessor do rei de Portugal, D. João II (r. 1481-95), que acabou tragicamente com a morte do desafortunado príncipe no Verão de 1491, em Santarém, da queda de um cavalo, deixando os pais e o reino na mais absoluta desolação. A morte do príncipe português parecia inviabilizar os desígnios de aliança então pretendidos, mas a estratégia dos Reis Católicos em relação a Portugal, reino também profundamente empenhado em dar continuidade a essa aliança, havia de ser reafirmada alguns anos mais tarde. Em Outubro de 1497, depois de difíceis negociações que se fizeram já em larga medida sob o signo do drama dos judeus peninsulares após o édito de expulsão de 1492, o novo monarca português, D. Manuel (r. 1495-1521), casava com a princesa viúva, e depois da morte desta, em 1498, com outra filha dos Reis Católicos, a infanta Maria (n. 1482), em 150010. Mas além do espaço peninsular, estavam em jogo outros horizontes. No coração da Europa a «aposta» de Fernando e Isabel fazia-se com a casa de Borgonha e com o Império, nas mãos dos Habsburgo desde 1438, procurando estabelecer uma aliança que pusesse dificuldades à França de Carlos VIII (r. 1483-1498) e aos seus desejos de conquista do reino de Nápoles, no âmbito das guerras europeias, que em 1494 se haviam iniciado tendo como cenário o palco italiano. Talvez, também, por parte do imperador Maximiliano, fosse ocasião para «vingar» o humilhante e frustrado episódio do fugaz casamento infantil de sua filha Margarida com o jovem Carlos de França em 1483, tinha Margarida três anos de idade11, o que acabou por favorecer a estratégia matrimonial e dinástica de Fernando e Isabel. Os casamentos concertados e realizados em 1496 e 1497 materializavam, pois, uma visão política que havia de estar na base do fortalecimento da Espanha no concerto das nações europeias. O monarca tinha um filho bastardo, Jorge (1481-1550), que D. João II quis fazer rei após a morte do príncipe D. João. Tal não aconteceu, e foi seu primo e cunhado, Manuel (n. 1469) quem herdou a coroa de Portugal. D. Jorge veio a ser duque de Coimbra e mestre das poderosas ordens de Avis e Santiago. Garcia de Resende, Crónica de D. João II e Miscelânea, ed. Joaquim Veríssimo Serrão, 1991, cap. 132, pp. 192-200. 10 Damião de Góis, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, I, 1949, cap. 46, pp. 110-114. Sobre D. Manuel, v. a recente biografia de Costa, 2005. 11 Em 1491, Carlos VIII casou com a duquesa Ana de Bretanha, o que significou a incorporação daquele território na coroa francesa. Para tal, foi necessário repudiar Margarida, que em 1493 regressou aos Países Baixo. Para todos os efeitos, Margarida de Áustria chegou a ser rainha de França. Catarina###.indd 19 26 10 2007 11:30:58 20 catarina de áustria Em Agosto de 1496, partia de Laredo, na presença e com a emoção da rainha Isabel e de todos os seus irmãos, a imponente armada que levava a infanta Joana (n. 1479), então com dezasseis anos de idade, para a distante e faustosa corte da Flandres, para casar com Filipe (n. 1478), arquiduque de Áustria, duque de Borgonha e senhor dos Países Baixos, filho do imperador Maximiliano e de Maria de Borgonha12. Meses depois, no seu regresso, a mesma armada trazia Margarida de Áustria (n. 1480), única irmã de Filipe, que casou, em Abril de 1497, depois da Semana Santa, na catedral de Burgos, com fausto e solenidade, com o único filho varão dos Reis Católicos, João, herdeiro do trono de Castela e Aragão. Em Outubro desse mesmo ano, os reis casavam a sua primogénita, a infanta e princesa viúva Isabel, com o rei português, D. Manuel, em Valencia de Alcantara. O acaso, a fortuna e o destino fizeram com que o rumo dos acontecimentos divergisse e fosse tão diferente de sonhos e projectos que tantos então acalentaram; mas por essas outras vias determinava-se, afinal, aquilo que viria a ser o projectar da hegemonia espanhola na Europa do século xvi. Isabel, a dilecta e primogénita filha de Fernando e Isabel, havia de ser, por um momento breve, princesa das Astúrias e rainha de Portugal. O jovem e amado João, único filho homem dos Reis Católicos, era o herdeiro natural das coroas de seus pais, mas morreu príncipe. No que respeita a Joana, nada fazia então prever o seu régio, mas ao mesmo tempo triste e singular destino. Casada com o duque de Borgonha, filho do imperador do Sacro Império Romano-Germânico, o seu futuro parecia talhado para se cumprir longe da Espanha onde nascera, senhora de estados naquela Europa mais a norte, densa, rica e cosmopolita. Mas Joana havia de voltar a Espanha, e aí reinar, cativa, até à morte. Caprichosa, a roda da fortuna continuava a girar. O príncipe D. João, nascido em 30 de Junho de 1478, oito longos anos após Isabel, até então única filha de Fernando e Isabel, criado com desvelo e primorosa educação pelos Reis Católicos, fora desde a infância uma criança débil, que crescera rodeado de muitos cuidados e de grande ansiedade. No momento do casamento da sua irmã mais velha com o monarca 12 O imperador Maximiliano (1459-1519) era filho do imperador Frederico III († 1493) e de Leonor († 1467) de Portugal. Casou em 1477 com Maria († 1482), única filha de Carlos, o Temerário († 1477), duque de Borgonha. O imperador Maximiliano e Maria de Borgonha eram ambos bisnetos de D. João I († 1433) e de Filipa de Lencastre († 1415), que em Portugal inauguraram a dinastia de Avis. Catarina###.indd 20 26 10 2007 11:30:58 «a rainha é parida de uma filha» 21 português, o estado de saúde do príncipe das Astúrias, que se deteriorara de forma rápida, era desesperado13, vindo a morrer em Salamanca a 6 de Outubro, facto que constituiu um golpe profundíssimo para os reis seus pais. O infausto acontecimento coincidiu com o matrimónio de D. Manuel, que ocultou a triste nova à mulher até entrarem em Évora, depois de casados apenas na presença da rainha Isabel, já que o rei Fernando permanecera com o príncipe em Salamanca, assistindo aos seus últimos momentos. Só então a corte portuguesa tomou luto pela morte do irmão da rainha ordenando D. Manuel «suas exéquias, e saimento com muita solenidade»14. Mas as teias da morte continuavam a urdir-se de forma inexorável. O príncipe das Astúrias morrera «de amor», como cunharam os cronistas coevos, deixando Margarida de Áustria grávida de um filho. Também essa réstia de esperança se desvaneceu. Aos sete meses de gravidez, em Alcalá de Henares, já depois da morte do príncipe herdeiro, a sua jovem viúva dava à luz uma criança morta15, fazendo ruir os planos político-dinásticos concebidos por Fernando e Isabel. Assim, de forma inesperada, D. Manuel e D. Isabel, reis de Portugal, passavam a ser herdeiros daquelas coroas peninsulares, não sem que se manifestassem então as ambições do duque de Borgonha, que após a morte do príncipe das Astúrias pretendeu o título para a sua mulher, D. Joana, procurando assim ultrapassar os direitos da primogénita dos Reis Católicos. Esta pretensão foi desatendida por Fernando e Isabel, que não só tiveram em conta os direitos da sua primogénita como pro curaram assegurar a continuidade dinástica da monarquia através do ramo hispânico. Desta forma, em Março de 1498, a pedido insistente dos Reis Católicos, os soberanos de Portugal, estando D. Isabel grávida, partiam de Lisboa a caminho de um destino que parecia reservar-lhes a coroa de todas as Espanhas… Na cidade de Toledo, perante Fernando e Isabel, os reis de Portugal foram solenemente jurados em cortes herdeiros da coroa de Castela. Mas quando tudo estava preparado para idêntica cerimónia de juramento nas cortes de Aragão, reunidas em Saragoça, depois de alguma resistência devida ao facto de se ir jurar uma mulher e não um varão 13 Provavelmente tuberculose, na época doença crónica e endémica. Gargantilla, 2005, p. 45. 14 15 Damião de Góis, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, I, 1949, cap. 24, p. 52. A criança que então nasceu era uma rapariga. Catarina###.indd 21 26 10 2007 11:30:59 22 catarina de áustria – argumento invocado por muitos como indo contra as leis do reino –, a morte tornou a intervir. Já naquela cidade aragonesa, depois de meses de viagens e itinerância que terão fragilizado e desgastado a rainha, a 24 de Agosto, dia de S. Bartolomeu, D. Isabel dava à luz um rapaz, não sobrevivendo ao parto e expirando, em ambiente de profunda dor, perante o desfalecimento da rainha Isabel, nos braços do seu pai, que pela filha chamava em voz alta16. Sobrevivia-lhe no entanto a criança, a quem foi posto o nome de Miguel. Logo em Setembro, ainda não se havia cumprido um mês sobre a morte da mãe, o príncipe era jurado herdeiro nas cortes de Aragão, e no início de 1499 nas de Castela, reunidas em Ocaña, onde também, muitos anos antes, em 1468, Isabel, a Católica fora jurada herdeira daquele reino. Na ausência do príncipe, que permanecera em Castela junto dos avós, também em Portugal se jurava aquele que havia de suceder um dia a D. Manuel no trono português: em cortes reunidas a 7 de Março de 1499 no convento de S. Domingos em Lisboa, Miguel tornava-se também herdeiro do reino de Portugal17. D. Miguel da Paz, filho de D. Manuel e da rainha D. Isabel, era a partir de então o herdeiro natural e jurado dos reinos de Portugal, Castela, Aragão e Sicília. Mas a 19 de Julho de 1500, o pequenino príncipe, que ainda não havia cumprido dois anos de idade, faleceu em Granada, onde foi sepultado na capela real. A sua morte constituiu, como é possível avaliar, um novo e profundo golpe para os Reis Católicos, e foi sentida com dor e muitas lágrimas na corte castelhana e em «toda a Espanha, parecendo-lhes que perdiam um senhor natural, nascido neste solo»18; ao contrário, na corte de Filipe, o Belo essa fatalidade provocou indisfarçável contentamento, quase como se já fosse esperada19, facto que bem se entende, já que desta forma se desenhava em Castela a sucessão dinástica em favor da casa de Áustria20. Morta Isabel, primogénita dos Reis Católicos, desaparecidos João, príncipe das Astúrias, e o pequenino Miguel, efémera esperança de uma 16 Damião de Góis, Crónica…, Parte I, 1949, caps. 26-30, pp. 54-67 e cap. 32, pp. 68-69; Garcia de Resende, «A Entrada del Rey Dom Manoel em Castella», in Crónica de D. João II e Miscelânea, ed. cit., pp. 313-314. 17 Cópia do juramento na BNL, PBA (Colecção Pombalina), 249, fóls. 407-408v. 18 Prudencio de Sandoval, Historia de la Vida y Hechos del Emperador Carlos V, I, 1955, cap. 8, p. 19. 19 Fernández Álvarez, 2003a, pp. 51-52; idem, 2003b, pp. 388-389. 20 Idem, 2002, pp. 89-94; Ladero Quesada, 2003, pp. 441-444. Catarina###.indd 22 26 10 2007 11:30:59 «a rainha é parida de uma filha» 23 Espanha politicamente unificada, era Joana, terceira filha de Fernando e Isabel, duquesa de Borgonha e arquiduquesa de Áustria, quem saía à luz, a uma nova e inesperada luz que dela fazia herdeira das coroas de Castela e de Aragão. Na longínqua Flandres, numa corte que em tantos aspectos lhe continuava estranha, Joana dera já dois filhos a Filipe – depois da primogénita Leonor, nascida em 1498 em Lovaina, Joana trazia ao mundo, de 24 para 25 de Fevereiro de 1500, um filho varão, a quem foi posto o nome de Carlos. Não deixava de causar admiração a forma surpreendentemente fácil com que D. Joana paria os seus filhos, evidenciando uma singular robustez física, num momento tão temido e incerto, e em que sempre a morte rondava mães e filhos21. No caso do nascimento de Carlos, a duquesa de Borgonha assistia a uma festa no palácio de Gand, quando as dores de parto a forçaram a retirar-se; deu tranquilamente à luz nessa mesma noite, pelas três horas e meia da madrugada, o primeiro dos seus filhos varões. Como registava não sem algum assombro o cronista Sandoval, citando palavras do bispo de Málaga por ocasião da cerimónia de baptismo do infante D. Fernando, «[…] permitiu Deus […] que [D. Joana] não receba dor nos seus partos, e assim, rindo-se e brincando, entre jogo e brincadeira dá à luz […] sem mais paixão nem tribulação» 22. Tal condição contrastava com outras dimensões da sua vida e do seu quotidiano. D. Joana mostrava fragilidades que iam progressivamente ficando mais notórias: as cenas públicas de ciúmes perante um marido «muito dado a mulheres»23, momentos de cólera alternando com outros de profundo ensimesmamento, a indiferença a certas obrigações inerentes ao seu estado, em particular deveres de natureza religiosa ou o desmazelo com a sua pessoa, revelavam uma instabilidade que a ia Prudencio de Sandoval, I, 1955, cap. 13, p. 22. Prudencio de Sandoval, Historia de la Vida y Hechos…, vol. i, 1955, cap. 4, p. 17; Fernández Álvarez, 2002, p. 89. 23 Pedro de Torres, Apuntamientos, cit. por Rodríguez Villa, 1892, p. 183. Traço sublinhado pela generalidade dos cronistas, que também referem as devastadoras consequências em D. Joana. Ouçamos o cronista anónimo de 1506: «[…] ela [D. Joana] conduzia-se como mulher desesperada e toda cheia de ciúmes, que não se lhe podiam tirar, e parecia-lhe que o seu marido era muito belo e estava em idade de comprazer o desejo das damas e todas elas quando o viam o desejavam, e também ele desejava todas as que via, e em tal ardor de amor e louca raiva [D. Joana] continha-se de tal modo que não encontrava alegria no mundo e não desejava senão a morte.» Cronista anónimo, «Segundo Viaje de Felipe el “Hermoso”, publicado por Garcia Mercadal, Viajes de Estranjeros por España y Portugal, vol. i, 1952, p. 582. 21 22 Catarina###.indd 23 26 10 2007 11:30:59 24 catarina de áustria tomando, e que à distância tornava cada vez mais sólida a angústia de seus pais, em particular da rainha Isabel, bem informados e alarmados com o estado de saúde e de abatimento da sua terceira filha. Ao contrário de uma noção persistente, não fora na Flandres que essa instabilidade se revelara: em 1495, meses antes da sua partida para casar com Filipe, a rainha Isabel ordenava que ninguém, nem mesmo pais e irmãos, tivesse o menor contacto com as damas da infanta, facto eloquente, já então, das peculiaridades do comportamento da jovem D. Joana, que a rainha procurava assim, tanto quanto possível, reservar24. Mas agora, depois de tantas vezes a roda da fortuna ter girado, não era apenas a dor de mãe que se manifestava no coração e na mente da rainha Isabel: a partir de Julho de 1500, com o desaparecimento do neto Miguel, era esta a filha destinada a suceder-lhe no trono de Castela. Como determinavam as leis da sucessão, era agora necessário que as cortes de Castela jurassem a nova princesa das Astúrias. A viagem dos arquiduques de Áustria e duques de Borgonha para Espanha foi sendo sucessivamente retardada, talvez por motivos de natureza política mas também em virtude de nova gravidez de Joana, que a 27 de Julho de 1501 deu à luz em Bruxelas uma rapariga, a quem foi dado o nome de Isabel. Só no Outono desse ano o séquito flamengo partiu, fazendo caminho pela França, facto que não deixou de provocar tensão, pois eram de conflito as relações entre a monarquia ibérica e os reis de França, e notória a francofilia de Filipe, o Belo. A comitiva entrou em Espanha já corria o ano de 1502, e foi a 27 de Maio desse ano que em cortes reunidas em Toledo, na presença dos monarcas, Joana e Filipe foram jurados herdeiros da coroa de Castela. Meses mais tarde, a 27 de Outubro, na cidade de Saragoça, Joana era jurada em cortes legítima sucessora do reino de Aragão, com uma ressalva fundamental: esse juramento seria anulado se o rei de Aragão, Fernando, tivesse filho varão de matrimónio legítimo25. Muito em breve Filipe de Borgonha dava mostras de pretender regressar à Flandres, alegando que se comprometera a fazê-lo antes do final do ano; a sua intenção esbarrou na firme oposição dos Reis Católicos, que procuraram fazer-lhe ver a imprudência de tal viagem, enconDocumento revelado e publicado por Zalama, 2003, pp. 410-411. Rodríguez Villa, op. cit., pp. 65-66. Esta primeira viagem é descrita por António de Lalaing, que acompanhou os arquiduques. Publicada em tradução castelhana por García de Mercadal, op. cit., pp. 433-548. 24 25 Catarina###.indd 24 26 10 2007 11:30:59 «a rainha é parida de uma filha» 25 trando-se Joana em adiantado estado de nova gestação. Naturalmente, existiam também razões de natureza política, que se prendiam com a ambígua posição de Filipe perante o conflito que opunha o Rei Católico a Luís XII de França, e sempre na mira de recuperar os territórios borgonheses incorporados na coroa francesa depois da batalha de Nancy e da morte do último duque de Borgonha, o seu avô, Carlos, o Temerário († 1477). As próprias cortes de Castela e Aragão procuraram dissuadi-lo do seu intento, tanto mais que a viagem havia de fazer-se através do território francês. Nada demoveu o príncipe, nem a resistência de Isabel nem os rogos «da Princesa sua mulher, que extremadamente o amava e nada fazia senão gemer e chorar»26. Talvez a inflexibilidade de Filipe se prendesse também com os rumores de envenenamento que rodearam a repentina morte do arcebispo de Besançon, François de Busleyden, seu íntimo conselheiro, ocorrida a 23 de Agosto27; o facto é que o príncipe das Astúrias abandonou Madrid com o seu séquito a 19 de Dezembro desse mesmo ano de 1502 em direcção a Aragão para, atravessando a França, regressar aos Países Baixos. Para trás ficava Joana, grávida do seu quarto filho e num estado de abatimento que piorou após ter dado à luz, a 10 de Março de 1503, em Alcalá de Henares, um rapaz a quem puseram o nome do avô, Fernando. Em carta de 20 de Junho de 1503, os físicos da câmara da rainha davam conta ao rei Fernando, então ausente em campanha militar, do estado da rainha Isabel, já muito enferma, e da condição da filha. Esse testemunho era bem eloquente do estado da jovem princesa das Astúrias que, diziam os médicos, a qualquer um inspiraria piedade: «porque dorme mal, come pouco, e às vezes nada, está muito triste e bem fraca. Às vezes não quer falar […] a sua doença vai muito avançada.»28 Depois de dar à luz o infante Fernando, o único fito de D. Joana foi partir. Partir ao encontro do volúvel Filipe e dos filhos, Leonor, Carlos e Isabel, intenção a que continuou a opor-se a rainha de Castela, temerosa na sua condição de mãe e de rainha. Já muito debilitada pela doença que havia de matá-la29 e profundamente amargurada, Isabel, a Católica acabou por ceder, depois de episódios dramáticos e bem conhecidos Estanques, cit. por Rodríguez Villa, op. cit., p. 67. Idem, ibidem; Zalama, 2003, p. 38. 28 Cit. por Rodríguez Villa, op. cit., p. 83. 29 Um tumor ginecológico. Gargantilla, 2005, pp. 71-72. V. Junceda Avello, 1995, p. 44. 26 27 Catarina###.indd 25 26 10 2007 11:30:59 26 catarina de áustria como aquele em que D. Joana, arrostando o frio intenso de Novembro, entre gritos e ameaças, recusou recolher-se depois de impedida de partir e permaneceu toda a noite ao relento junto à porta encerrada do castelo de la Mota, em Medina del Campo, onde se encontrava confinada por ordem da rainha sua mãe. Após dura entrevista entre ambas, quebrada a resistência da quase moribunda Isabel de Castela, D. Joana partia enfim, novamente de Laredo, na Primavera de 1504, com destino à ansiada Flandres. Não é difícil entender em que situação a grande rainha Isabel, que verdadeiramente nunca recuperara do profundo desgosto que significara a morte do seu amado filho João, vendo aproximar-se o fim da vida, fez redigir o seu testamento, a 12 de Outubro de 1504. Sucedia-lhe no trono uma filha enferma e vulnerável, um rei estrangeiro, ambicioso e tão inclinado aos interesses da França, inimiga da monarquia dos Reis Católicos. Nas suas últimas vontades, a rainha traçava um plano político bem definido que procurava responder a tão delicada situação, dando ao rei Fernando, arguto e experiente companheiro de tantas lides, um protagonismo decisivo. Assim, decidia Isabel, a Católica no seu testamento que, na ausência de D. Joana dos seus reinos, ou, acrescentava de forma subtil «encontrando-se neles não queira ou não possa entender na sua governação», o governador de Castela até à maioridade do neto primogénito, Carlos, havia de ser o rei Fernando; deviam Joana e Filipe mostrar-se «muito obedientes e sujeitos ao Rei, meu senhor»30. Desta forma a rainha reconhecia e implicitamente declarava a incapacidade de D. Joana em assegurar a governação do reino, confiando-a ao marido, e quase não mencionando Filipe; mas ao tomar tal decisão, tornava também inevitável o já anunciado confronto político pelo poder em Castela, que iria ter lugar entre Filipe de Áustria e Fernando de Aragão. Isabel, a Católica fechou os olhos a 26 de Novembro de 1504, em Medina del Campo. No próprio dia da sua morte, na presença do rei Fernando e de muitos Grandes e senhores do reino, D. Joana foi proclamada rainha de Castela. Na mesma ocasião foi lida a cláusula testamentária que fazia de Fernando de Aragão governador do reino, o que foi em breve ratificado e jurado nas cortes reunidas em Toro, em Janeiro de 1505, onde pela primeira vez, de forma pública e oficial, se referiam 30 Cit. por Fernández Álvarez, 2003b, pp. 443-444. O codicilo ao testamento que nomeava Fernando de Aragão governador de Castela era de 23 de Novembro, redigido 3 dias antes da morte da rainha. Belenguer, 2001, p. 230. Catarina###.indd 26 26 10 2007 11:30:59 «a rainha é parida de uma filha» 27 e invocavam a «enfermidade e paixão» da rainha D. Joana para justificar as funções de governador atribuídas ao Rei Católico. Mas contra o plano concebido por Isabel corriam rumores de que Filipe, agora rei de Castela, teria a intenção de deixar a mulher na Flandres e entrar sozinho em Espanha, manobrando ainda para afastar o sogro da governação do reino e remetê-lo à exclusiva condição de rei de Aragão. A guerra surda e de bastidores entre ambos endurecia e ganhava novos contornos. Nobres e Grandes de Castela hesitavam nas fideli dades, dividiam-se; muitos «desamavam o rei D. Fernando»31, vindo ao de cima reservas ao inegável ascendente, ainda em vida da rainha Isabel, do partido aragonês na governação e nos destinos de Castela32. Juan Manuel, senhor de Belmonte, respaldava a mando de Filipe o reaparecimento político de membros de uma nobreza antiga – como os duques de Nájera, Béjar, Medina Sidonia ou o conde de Benavente – caída numa certa obscuridade depois de 1479, procurando e conseguindo em muitos casos ganhá-la para o campo do rei flamengo de Castela33. Entretanto, na longínqua Flandres, a nova rainha de Castela, martirizada embora e sempre com os ciúmes provocados pelos devaneios amorosos de Filipe com outras mulheres, tornava a engravidar e a 15 de Setembro de 1505 dava à luz em Bruxelas uma filha, baptizada com o nome de Maria. Príncipes das Astúrias desde 1502 e, depois da morte da rainha Isabel, a Católica reis de Castela, Joana e Filipe partiam finalmente da Flandres no início de Janeiro de 1506 em direcção a Espanha, para tomarem posse da coroa que agora lhes pertencia de direito. A viagem por mar, realizada em pleno Inverno, foi tormentosa, perdendo-se na borrasca várias embarcações e chegando a estar iminente o naufrágio da nau capitânia, onde seguiam os monarcas. Testemunhos coevos sublinham a intrepidez e coragem física da rainha, que contrastava com o temor e o desespero que se apoderara de todos, inclusive de Filipe – enfrentando a intempérie, Joana teria afirmado que nunca nenhum rei tinha morrido afogado… A violência do temporal forçou a armada a aportar a Inglaterra, onde foram acolhidos pelo rei Henrique VII – que após a morte de Filipe 31 Pedro Mexía, Historia del Emperador Carlos V, ed. Juan de Mata Carriazo, 1945, Liv. I, cap. 4, p. 28. 32 Belenguer, 2001, pp. 233-234. 33 Ibidem, pp. 243-244, 260-261; Ladero Quesada, 2003, p. 451. Catarina###.indd 27 26 10 2007 11:30:59 28 catarina de áustria retendeu casar com Joana, desejo que esta rejeitou liminarmente34 p – cuja corte se encontrava então em Windsor, cenário de calorosa recepção onde se sucederam festas de grande aparato para homenagear os reis de Castela, e ocasião que quer o rei de Inglaterra quer o de Castela aproveitaram para fazer política. Este percalço na jornada que havia de conduzir os monarcas a Espanha teve como consequência o inesperado reencontro de Joana com a sua irmã Catarina (n. 1485), jovem viúva de vinte e um anos do príncipe Artur († 1502), primogénito de Henrique VII († 1509), com quem esteve casada poucos meses, e que o pai, Fernando de Aragão, apesar das insistentes e quase dramáticas súplicas da filha, não fez regressar a Espanha vindo a casar em Junho de 1509 com o cunhado, Henrique VIII, jurado rei dois meses antes35. Apesar do retraimento bem visível da rainha e dos esforços de Catarina para distrair a irmã, foi talvez em Inglaterra que Joana viveu, como observa um dos seus biógrafos36, dos últimos momentos felizes de uma existência amargurada e emocionalmente instável. Foi durante essa estadia que concebeu aquela que veio a ser a sua última filha, a quem chamou Catarina recordando porventura aquele derradeiro encontro com a sua irmã mais nova, cujo destino também não foi feliz. A viagem que em Janeiro de 1506 Filipe e Joana empreendiam, deixando para trás os seus filhos, Leonor, Carlos, Isabel e Maria era, sem que nenhum deles o soubesse, uma viagem sem regresso. Filipe de Áustria morreu depois de um curtíssimo reinado, a 25 de Setembro desse mesmo ano de 1506, Joana não mais voltou à Flandres, e de 1509 a 1555, data da sua morte, o destino, circunstâncias e razões políticas fizeram dela uma rainha cativa em Tordesilhas ao longo de quase meio século. No domingo 26 de Abril de 1506, a frota flamenga desembarcava na Corunha, ostensivamente longe do porto de Laredo, onde Fernando, o Católico contava receber com pompa os novos reis de Castela, e para onde convocara os grandes senhores do reino. O encontro entre Fernando e Filipe foi sendo adiado durante dois longos meses; a 20 de Junho, depois de muitos preparativos, teve finalmente lugar crispada entrevista entre ambos. Já previsível e anunciado, tornava-se evidente o desentendimento pessoal e político entre Filipe de Áustria, agora rei V. documentos publicados por Rodríguez Villa, 1892, pp. 472-480. Rodríguez Villa, 1892, pp. 132-135; «Segundo Viaje de Felipe el “Hermoso” a España en 1506» (anónimo), publicado por Garcia Mercadal, Viajes de Extranjeros…, pp. 559-571. 36 Fernández Álvarez, 2002, pp. 123. 34 35 Catarina###.indd 28 26 10 2007 11:30:59 «a rainha é parida de uma filha» 29 de Castela, e Fernando de Aragão, que como vimos se fizera entretanto jurar nas cortes de Toro, de acordo com o determinado no testamento de Isabel, a Católica, governador de Castela. Por outro lado, menos de um ano após a morte da rainha Isabel, em Agosto de 1505, Fernando de Aragão concertara com Luís XII de França, depois de D. Manuel recusar dar-lhe por mulher D. Joana37, o casamento com a sua sobrinha Germana de Foix (n. 1488). Assim conseguia o monarca de Aragão uma aliança audaciosa e politicamente decisiva: Luís XII renunciava às suas pretensões sobre o reino de Nápoles, Filipe deixava de poder contar com o apoio de uma França que lhe fora sempre próxima – não por acaso, Filipe recebeu notícia deste matrimónio qualificando-o de «ultrajante»38. Mas outros desígnios sustentavam esta boda que, ocorrida pouco mais de um ano após a morte da rainha Isabel, surgia aos olhos de muitos em Castela como surpreendente e escandalosa. Na verdade, uma das cláusulas do casamento do Rei Católico com a sobrinha do rei francês estabelecia que os filhos deste enlace seriam os legítimos herdeiros da coroa de Aragão; e assim os reinos de Aragão, Nápoles e Sicília separar-se-iam do reino de Castela, agora herdado por uma rainha frágil e um rei estrangeiro, pondo fim à unidade política da Espanha, «coroa de glória» do reinado dos católicos Fernando e Isabel39. Quando Joana e Filipe desembarcaram na Corunha, naquele final de Abril de 1506, havia pouco mais de um mês que Fernando recebera a jovem Germana em Dueñas, a 16 de Março, casando-se a 18 e entrando com grande pompa na cidade de Valhadolide. Tornava-se agora totalmente explícita a dura luta política pelo poder em Castela num cenário de desconfiança, de ambições e de partidos e facções que se digladiavam, de hesitações por parte de muitos sobre a que senhor servir, exacerbada pela cada vez mais evidente incapacidade e desinteresse de Joana em exercer o seu poder legítimo. Em Julho de 1506, D. Joana e Filipe entraram em Valhadolide, para serem jurados reis. O cortejo não se deteve a apreciar as ruas engalanadas, os jogos e os 37 Filha de Henrique IV de Castela (r. 1454-1474) e de Joana de Portugal (1440‑75), irmã de Afonso V. Joana de Castela (1462-1530), que nunca reinou, veio a ser pejorativamente cognominada em Castela a «Beltraneja», por se dizer que era filha não do rei mas do seu favorito, Beltrán de La Cueva. Em Portugal, onde veio a morrer em 1530, ficou conhecida como a «Excelente Senhora». 38 «Vitupereulx», no original. Cit. por Rodríguez Villa, 1892, p. 131. 39 Fernández Álvarez, 2002, p. 136. Catarina###.indd 29 26 10 2007 11:31:00 30 catarina de áustria festejos preparados para tão solene e feliz ocasião como era sempre o juramento de um rei. Sob o pálio, montada numa mula branca guarnecida de veludo negro, D. Joana seguia, vestida de negro, com o rosto oculto. O juramento de D. Joana como legítima rainha de Castela teve lugar no dia 12 de Julho. Antes de partir para o seu reino de Aragão, Fernando quis ver a filha, segundo Mexía sem sucesso, pois Filipe não o permitiu, e «por alguns foi atribuído este facto a desamor e secura»40. Em Agosto, a rainha e o rei consorte partiram para Segóvia. No lugar de Cogeces, novo episódio trazia à luz o drama de D. Joana: temerosa de que o marido e os seus conselheiros quisessem encarcerá-la – como em certo sentido já havia sucedido na Flandres –, a rainha de Castela recusou terminantemente entrar na vila com o séquito real; passou a noite deambulando montada a cavalo, insensível a rogos e ameaças com que procuraram dissuadi-la da sua excêntrica decisão41. No início do mês de Setembro, no dia 4, Fernando de Aragão embarcava com a rainha Germana numa poderosa armada em direcção ao seu amado reino de Nápoles, num momento que era de profunda solidão política para o Rei Católico, numa Castela em que muitos se arrimavam a outro senhor – só o duque de Alba permaneceu sempre fiel ao rei Fernando. Deixava este como seu embaixador junto de Filipe I o mosén42 Luís Ferrer, que havia de ser carcereiro de D. Joana em Tordesilhas. Três dias depois, os reis de Castela entravam em Burgos, cidade escolhida por Filipe para sede da sua corte. No dia 25, a morte arrebatava de forma inesperada e fulminante Filipe de Castela, morto de umas febres e indisposições que se terão seguido à prática do jogo da péla com o seu privado, Juan Manuel, ou talvez de peste, que então matava um pouco por toda a cidade; correram também rumores de envenenamento. Filipe, o Belo, amante dos prazeres da mesa e da carne, morria na força da juventude, com vinte e oito anos de idade. Deixava viúva Joana, com vinte e seis anos43 e grávida do seu sexto filho, e o reino de Castela mergulhado numa dramática crise política, agravada pelos ares de peste e pela fome. Durante a breve doença do marido, D. Joana, apesar da gravidez, nunca deixou a sua cabeceira, dando-lhe de comer e de beber, adminisPedro Mexía, Historia del Emperador…, Liv. I, cap. 4, p. 34. Rodríguez Villa, op. cit., pp. 175-178. 42 Título dos clérigos da antiga coroa de Aragão. 43 Cumpriria os vinte e sete anos no dia 6 do mês de Novembro (alguns autores indicam ainda o dia 5 e outros o dia 7 como data de nascimento de D. Joana). 40 41 Catarina###.indd 30 26 10 2007 11:31:00 «a rainha é parida de uma filha» 31 trando‑lhe os remédios prescritos pelos físicos, impassível, abúlica, sem verter uma lágrima44. Depois da morte de Filipe, só a custo a rainha foi levada para a sua câmara, onde permaneceu vários dias e noites sem se despir nem se deitar, em estado de profunda perturbação. Entretanto, no meio de grande alvoroço e temor do séquito flamengo do rei, agora sem senhor45, o cadáver de Filipe I de Castela foi vestido com ricas vestes e sentado num trono, como se estivesse vivo, numa sala grande das casas do condestável de Castela, onde foi velado perante grande número de frades e membros de muitas ordens religiosas, que rezaram continuamente os ofícios de defuntos. No dia seguinte, o corpo foi embalsamado segundo o costume flamengo e colocado num caixão de chumbo – diziam alguns para ser levado para a Flandres –, sendo depois enterrado na Cartuxa de Miraflores, onde se encontravam sepultados João II de Castela († 1454) e Isabel de Portugal († 1496)46, avós maternos de Joana, e onde muitos frades franciscanos, o prior e alguns monges cartuxos, por ordem da rainha, diziam missas diárias e faziam contínuas vigílias pela alma do rei defunto. Observando luto rigoroso, absolutamente indiferente ao tumulto político que a rodeava, que a assediava, e do qual ela era agora o epicentro, também D. Joana se deslocava com frequência a Miraflores, distante cerca de uma légua de Burgos, assistindo aos ofícios religiosos junto à sepultura do marido. Numa dessas ocasiões, o insólito veio quebrar a piedosa rotina daquelas cerimónias: por ordem da rainha, o caixão foi retirado do túmulo, quebrados a madeira e o chumbo, rasgadas as telas enceradas que envolviam o cadáver embalsamado. Exposto o corpo, a rainha, ajoelhada, beijou-lhe os pés durante longo tempo, sendo necessário apartá-la do caixão47. Semanalmente, D. Joana passou a cumprir tão extraordinário ritual, olhando e tocando o cadáver, exprimindo desta forma singular a dolorosa paixão que concebera pelo defunto Filipe; opinavam alguns que D. Joana queria certificar-se de que o corpo permanecia no sepulcro, e que não havia sido levado para a Flandres. Mas algo ia 44 Anónimo, «Segundo Viaje de Felipe el “Hermoso” a España en 1506», publicado em tradução castelhana por Garcia Mercadal, op. cit., vol. i, p. 588. 45 O cronista anónimo dá conta do afã de muitos em se apoderarem de jóias, tapeçarias, roupas e outras alfaias para as levarem de regresso à Flandres. Op. cit., pp. 583-584. 46 Isabel de Portugal (c. 1428-1496) era neta de D. João I, filha do infante D. João († 1442), mestre da Ordem de Santiago. 47 Anónimo, «Segundo Viaje…», p. 589. Catarina###.indd 31 26 10 2007 11:31:00 32 catarina de áustria dramaticamente mudar. Poucos dias antes do Natal, a 20 de Dezembro, a rainha deslocou-se uma vez mais ao mosteiro de Miraflores. Ordenou aos frades que retirassem o corpo do túmulo, mas desta vez para o levar consigo; negaram-se os religiosos a fazê-lo, e o bispo de Burgos procurou dissuadir D. Joana daquele seu estranho e escandaloso intento, que para lá de todas as outras considerações, ia contra as leis do reino. Em vão. Perante a cólera da rainha, e temendo um desenlace funesto com a já tão adiantada gravidez de D. Joana, o bispo cedeu. Assim, com a oposição e o assombro dos religiosos, dos seus ministros e de toda a corte, em breve de todo o reino de Castela, D. Joana partiu de Burgos levando a tumba com o corpo do marido que mandara desenterrar da Cartuxa de Miraflores, num carro puxado por quatro cavalos cobertos com panos de seda e de ouro, em fantasmagórico cortejo que por sua ordem se fazia sempre de noite, «com o mais cerrado nevoeiro do mundo», pelos gélidos campos de Castela Velha. A perturbação causada pela actuação da rainha era geral. Em carta escrita em Burgos, a 23 de Dezembro, no calor dos acontecimentos, Lope Conchillos, secretário do Rei Católico, dirigia-se a Miguel Perez de Almazan, secretário do conselho, dando conta do escândalo que o acto da rainha em todos provocara: «Com este disparate que fez a Rainha, não há pequeno nem grande que já não diga que [D. Joana] está perdida e sem nenhum siso […]»48 Verdadeiramente, com a partida com destino a Granada, D. Joana ganhava o cognome a Louca49. Na sua alucinação, cumprindo diariamente a macabra devoção de beijar os pés do cadáver, a rainha não esquecia a vontade do marido em ser enterrado, como rei de Castela, na capela real de Granada, junto do túmulo de Isabel, a Católica. Mas estando D. Joana «já muito prenhe, em dias de parir»50, quando chegou ao pequeno lugar de Torquemada o fúnebre cortejo foi forçado a parar51, acolhendo-se a rainha nas modestas casas de um clérigo, próxiPublicada por Rodríguez Villa, 1892, pp. 215-217. Não nos cabe aqui discutir a loucura de D. Joana, as suas causas e os seus contornos, tema desde há muito objecto de amplíssima discussão e olhares profundamente divergentes, que vão da constatação da demência à sua negação. Para invocar apenas autores mais recentes, seguimos preferencialmente o olhar de Fernández Álvarez, 2002, e de Zalama, 2003, menos o de Bethany Aram, 2001. Apesar do inegável valor desta obra, Aram quer ver na reclusão de Joana um acto de recolhimento, de austeridade espiritual e de consciência dinástica, que em todo o caso vai encontrando eco. V. por exemplo Valdivieso, 2003. 50 Prudencio de Sandoval, Historia de la Vida y Hechos…, vol. i, 1955, cap. 24, p. 30. 51 Zalama, 2003, pp. 62-64 parece divergir na interpretação deste facto. 48 49 Catarina###.indd 32 26 10 2007 11:31:00 «a rainha é parida de uma filha» 33 mas da porta que saía para a ponte sobre o rio. Aí nasceu, entre as cinco e as seis da manhã de 14 de Janeiro de 1507, o sexto filho de Filipe, o Belo e de D. Joana, reis de Castela. Era uma rapariga, depois de dois filhos varões e de três raparigas. A infanta recém-nascida foi baptizada com o nome de Catarina, frágil e simbólico laço de afecto de D. Joana pela sua jovem irmã viúva na longínqua Inglaterra, no último dia de Janeiro de 1507, como informava frei Henrique a D. Manuel, na igreja principal de Torquemada, onde se encontrava depositado o corpo insepulto de seu pai. Na comoção dos acontecimentos que então agitavam o reino de Castela, o nascimento daquela criança, filha póstuma de um rei efémero e estrangeiro e de uma rainha perturbada, quase parecia passar despercebido. Era esta a criança que a roda da fortuna fizera nascer em Torquemada, e que havia de partilhar o destino da mãe em Tordesilhas, para depois partir para ser rainha, rainha de um reino tão próximo e ao mesmo tempo tão distante como era o reino de Portugal. Catarina###.indd 33 26 10 2007 11:31:00
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