Catete - Festa de Santa Luzia
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Catete - Festa de Santa Luzia
OURO PRETO FICHA DE INVENTÁRIO 07 categoria Patrimônio Imaterial sub-categoria Celebrações município Ouro Preto distrito Santo Antônio do Leite – Povoado do Catete designação FESTA DE SANTA LUZIA A jovem Luzia, ou Lúcia, é protagonista de uma das mais belas histórias de amor e fidelidade a Deus. Pouco informações históricas se sabe, contudo, sobre os verdadeiros fatos que a conduziram aos hediondos martírios sofridos, embora não se duvide da solidez de sua santidade, exemplo maior dentre todos aqueles manifestados nos primeiros tempos de Cristianismo. A Passio, narrativa oficial de seu martírio, foi escrita somente nos séculos posteriores à sua morte, provavelmente entre o V e VI, baseando-se nas poucas evidências documentais e na tradição oral. Conforme este documento, Luzia era natural de Siracusa, cidade da Sicília, Itália, e nasceu por volta dos anos 280 e 290. Era o primeiro e único fruto da união de seus pais, ambos descendentes de ricas famílias italianas. Recebeu ótima formação cristã, a ponto de fazer, ainda muito jovem, um juramento de castidade para toda a vida. Tornou-se órfã de pai quando tinha apenas quatro anos. Tempos depois, diante de uma grave doença de sua mãe, Eutíquia, aconselhou que fizessem uma romaria até o túmulo de Santa Águeda na cidade de Catânia, notório pelos milagres realizados. Encontrando-se reservada em orações, apareceu-lhe a mártir Águeda dizendo: "Que deseja de mim, querida irmã? Tua mãe está restabelecida graças à tua fé. Como Deus se dignou glorificar a cidade de Catânia por causa de meu martírio, assim Siracusa será célebre por ti, porque por tua virgindade preparaste agradável morada a Deus em teu coração". A anunciação da protetora de Catânia sobre a cura de sua genitora lhe reforçou os laços de fé e os votos de abstinência sexual. Retornaram para Siracusa e as previsões de Santa Águeda começam a se realizar. Desesperançosa com os rumos que tomava a única herdeira, sua mãe manifesta o desejo de vê-la casada com um jovem de distinta família, ignorando os seus votos de fé. A decisão fez com que Luzia, prevendo o martírio, dispusesse de todos os bens, distribuindo-os aos pobres. Vendeu tudo o que tinha e repartiu gratuitamente. Logo foi acusada pelo pretendente rejeitado por dois crimes: ser cristã, e assim não adorar os deuses nacionais, e não ter cumprido a palavra da mãe ao se recusar ao matrimônio. Em seu julgamento, diante das intimidações do juiz, Luzia reafirmou sua promessa de fidelidade eterna, respondendo-o: "Adoro a um só Deus verdadeiro e a ele prometi amor e lealdade". Terminada a audiência, ela foi condenada a viver em um bordel e desde então deu mostras de santidade. Conta-se que defendeu com tamanho afinco sua castidade que nem mesmo os mais fortes soldados, nem sequer duas juntas de boi, conseguiram arrastá-la. Como pena, mandaram-na para a prisão e retiraram com punhais os seus dois olhos. Surpreendentemente, no dia seguinte, apresentava a face em prefeitas condições, com as vistas no devido lugar. Não satisfeitos, condenaram-na à fogueira, envolvendo-a em uma resina de forma que sua morte fosse inevitável. Em vão, pois saiu ilesa às chamas, sem nenhum dano ou ferida. Por fim, ordenaram que a decapitasse, cortando sua garganta com uma espada. Luzia foi morta no dia treze de dezembro de 303 d.C. após sofrer os mais sórdidos atentados contra a vida. Resistiu heroicamente a todos esses tormentos. As cenas milagrosas de resistência e fé comoveram toda Siracusa e o culto a essa santa se espalhou por toda Itália e Europa. Para se ter uma idéia do quanto era venerada ainda na antigüidade, apenas em Roma havia vinte templos dedicados a sua santidade. Santa Luzia é reverenciada na Europa e no Brasil como a santa protetora dos olhos. Isso se refere à sua história de vida e ao fato de seu nome, em latim, significar luz. Por isso, seu culto envolve um certo ritual de se passar as mãos em sua imagem e nos próprios olhos. Por sua intervenção em favor das doenças da visão, a fé em Santa Luzia é universal. A veneração à virgem italiana foi trazida ao Brasil no período colonial da América Portuguesa, inclusive à capitania de Minas Gerais. A sua consagração no pequeno povoado do Catete, distrito de Santo Antônio do Leite, é bastante recente do ponto de vista do tempo histórico. Os relatos que comprovam o culto se assentam sobre a tradição oral. Conta-se que, no último quartel do século XIX, nas décadas finais do regime escravista no país, foi iniciada a devoção à Santa Luzia do Catete. Segundo moradores, membros da família Gouveia acharam uma imagem da santa num pasto. A região onde hoje se encontra o povoado fazia parte das terras do Padre Santana, participante da administração provincial em Ouro Preto. Conforme depoimentos, em suas terras viviam muitos negros fugidos do cativeiro, que, favorecidos pela solidariedade do vigário, ali permaneciam, constituindo família e trabalhando em atividades agro-pastoris da fazenda do padre. Seguindo o rastro da oralidade dos habitantes, alguns negros cativos tiveram os olhos perfurados por seus donos, como punição pelas fugas. Assim, quando a imagem de Santa Luzia, protetora dos olhos, foi encontrada nas terras do Padre Santana, lançaram-se a ela vários pedidos e diversas graças foram conseguidas. A fama de milagreira atribuída à imagem espalhou-se pela região. Desse processo e da popularidade alcançada por Santa Luzia foi erguida uma capela dedicada a ela, e em torno desse pequeno templo religioso promoveu-se um processo lento de aglomeração populacional, que adentrou todo o século XX. As terras da ermida dedicada à virgem foram cedidas pela Igreja para a fixação populacional e daí deu-se a constituição do pequeno povoado do Catete. Desde o achado da imagem e, principalmente, após a construção da capela originária que ocorreu em seguida, a festa dedicada a Santa Luzia, foi introduzida como uma das comemorações mais importantes do povoado e nesse mais de um século de existência foi sendo incrementada e contando com um número cada vez maior de participantes. A celebração de fé dedicada à protetora dos olhos e padroeira do Catete é uma manifestação viva da devoção dos fiéis contemplados com as graças concedidas por Santa Luzia, ou pelas pessoas necessitadas que vão ao local clamar pela intervenção da santa na cura de doenças visuais. Além do mais, muitas pessoas realçam a festa com a perspectiva de comemorar, de reencontrar amigos, de voltar ao local de origem familiar e de se animar pelos momentos festivos que fazem parte das celebrações em torno de Santa Luzia. página 55 I 148 Santa Luzia é sempre representada enquanto uma jovem de cabelos longos e soltos que veste trajes nobres informações iconográficas típicos do período em que viveu. Quase sempre sua túnica é verde e o manto que a cobre, vermelho. Na iconografia cristã, essas cores simbolizam a Esperança (verde) e o Martírio (vermelho). Os atributos indispensáveis às imagens esculpidas da santa italiana são os dois olhos em um prato ou almofada, segurados por uma das mãos, simbolizando os tormentos de sua morte e o culto que lhe é conferido. Na outra mão, palma ou lírio que significam, respectivamente, seu martírio e sua vida imaculada. São duas as imagens de Santa Luzia em Catete, povoado de Ouro Preto. Ambas são fidedignas à iconografia habitual, com exceção ao fato da escultura menor apresentar véu branco que lhe cobre quase todo o cabelo. caracterização Os preparativos para a Festa de Santa Luzia requerem uma estrutura bem ampla para satisfazer as necessidades dos vários devotos que vão até o povoado do Catete participarem das comemorações. Desde as instalações sanitárias até o almoço comunitário, todos os detalhes da festa são pensados para acolherem de modo suficiente os participantes da mesma. No sábado tem-se o levantamento do mastro com a bandeira de Santa Luzia. A flâmula é enfeitada a cada ano pela família responsável por ela, de cuja casa sai para ser levada até a igreja. O levantamento do mastro, na frente da capela, ocorre após o último dia da trezena que se realiza em homenagem à santa. Um palco montado no espaço lateral à igreja abriga algumas apresentações musicais, mas é no domingo que é improvisado ali o altar para a realização da missa campal. Após a celebração há a procissão com a imagem de Santa Luzia e o andor que a abriga é ornamentado para mais essa atividade da festa. Em seguida, o almoço comunitário marca as comemorações à padroeira do Catete, no salão paroquial. A refeição fica a cargo da Associação Mães Unidas Venceremos do Catete. Pelas ruas em torno da igreja e onde se aglomera o grosso dos participantes da festa, várias barraquinhas são montadas que vendem de comidas, frutas e bebidas a brinquedos, bijuterias e produtos diversos. proteção legal Nenhuma As atividades da Festa de Santa Luzia do Catete têm início com a trezena em homenagem à padroeira, que informações descritivas ocorre entre os dias 01 e 12 de dezembro, dias que antecedem a data oficial de comemoração à santa. A reza acontece no interior da Capela de Santa Luzia e conta com a presença de moradores locais, principalmente mulheres e pessoas mais idosas. No último dia da trezena, há o levantamento do mastro com a bandeira de Santa Luzia. A cada ano, a flâmula sai da casa de um morador local, indicado pelo Conselho Pastoral Comunitário. Algumas pessoas acompanham a pequena procissão com a bandeira pelas ruas do Catete, até chegarem à igreja, antes da última reza. Após a celebração, levanta-se o mastro no adro em frente à capela. Em seguida, as pessoas se reúnem em volta das barracas de comidas e bebidas e dançam no salão paroquial da igreja. No romper do domingo ocorre a alvorada, com a queima e o estouro de foguetes, além do repicar dos sinos da capela, para despertar a população local. Nesse dia, a pequena localidade se transforma, recebendo um grande número de fiéis e devotos de Santa Luzia, que vêm de toda a região e até de outras cidades e estados. Essas pessoas vêm em caminhões, ônibus e carros particulares. Pela manhã realiza-se a missa campal, no espaço lateral à capela; no entanto antes da realização da mesma, o padre atende os fiéis que querem confessar-se. A ameaça de chuva, que sempre ocorre nessa época do ano, é uma das componentes da festa. Mas esse fator não afugenta os freqüentadores fiéis da mesma, que sempre retornam ao Catete no dia dedicado a Santa Luzia, seja para fazer pedidos, seja para agradecer as graças alcançadas, num processo contínuo de renovação e afirmação da fé na padroeira. Na benção final da celebração, objetos são elevados ao alto para serem abençoados pelo padre, em nome de Santa Luzia. Após a missa campal realiza-se a procissão com uma pequena imagem da santa, em gesso, que percorre as ruas de terra da localidade, até retornarem para a igreja. Ali, as pessoas formam fila para tocarem a imagem, se benzerem e pedirem proteção e graças. Como Santa Luzia é a santa de proteção da visão, é comum as pessoas tocarem a escultura e benzerem os seus olhos. Nesse momento parte das pessoas deposita ofertas em dinheiro na caixa que fica ao lado do andor. Pela capela, nos espaços reservados para tal, os devotos deixam velas em homenagem à Santa Luzia. Após essas manifestações de fé, os participantes da festa se servem do almoço comunitário servido no salão paroquial e preparado pelo grupo das Mães Unidas do Catete. Na origem da festa o almoço era servido gratuitamente pelos festeiros, mas hoje em dia, é cobrado um preço módico pela refeição. Simultâneo ao almoço, há movimento nas barracas de frutas, comidas, bebidas e objetos diversos. Mas pelo início da tarde as pessoas começam a retornar para as suas localidades, afugentados pela ameaça de chuva, que muitas das vezes não fica apenas no prenúncio. Ainda assim, a sensação de dever cumprido e de fé renovada em Santa Luzia, é um fato concreto para os milhares de fiéis que se deslocam até o Catete para a festa de sua padroeira. A imagem histórica de Santa Luzia é o principal bem relacionado à festa da padroeira do Catete. É sobre a bens relacionados imagem, em madeira e datada do século XVIII, que se convergem os aspectos históricos tanto do povoado, quanto da festa de sua padroeira. Atualmente a escultura fica sob a guarda de uma moradora local, Dª. Tereza Gouveia, a partir de uma recomendação do padre da Paróquia de Cachoeira do Campo, a qual a capela de Santa Luzia do Catete está subordinada. A retirada da imagem do altar foi feita com o objetivo de driblar a ação de possíveis ladrões. Os rastros sobre a sua origem são controversos e se assentam sobre a tradição oral dos habitantes locais. Conta-se que foi achada durante o século XIX por membros da família Gouveia e à ela foram atribuídos milagres. Duas outras imagens, mais recentes, encontram-se no interior da capela. Uma delas sai em procissão, no dia da festa. Uma outra se encontra entronizada no altar-mor da capela. Como desdobramento do achado da primitiva imagem, ergueu-se uma capela em pau-a-pique para abrigar a santa e dar-se as práticas religiosas do povoado. A ermida atual, erguida nos anos 50, existe no mesmo local dessa capela originária, inclusive o belo bambuzal que está em frente à mesma, foi plantado junto com a construção da primeira igrejinha. Essa nova capela foi acrescida e reformada várias vezes, até atingir a sua configuração atual e também é um dos bens relacionados à festa. É em torno dela que acontecem as principais atividades. A bandeira com o desenho da padroeira também faz parte da celebração. Os moradores locais não sabem o autor nem o ano exato de sua produção, mas dizem que ela é bem antiga, apesar dos retoques recentes que recebeu na pintura e no tecido, visto o desgaste do objeto. intervenções A festa de Santa Luzia tem em suas atividades, a mesma estrutura desde seus primórdios, no final do século XIX. Ou seja, elementos como a trezena, o hasteamento da bandeira, a missa campal, a procissão com a imagem, o baile e a reunião em torno das barracas estiveram sempre presentes nas comemorações, que, por sua vez, configuram importante momento de sociabilidade entre a comunidade local e os visitantes. A festa de Santa Luzia tem em suas atividades, a mesma estrutura desde seus primórdios, no final do século XIX. Ou seja, elementos como a trezena, o hasteamento da bandeira, a missa campal, a procissão com a imagem, o página 56 I 148 baile e a reunião em torno das barracas estiveram sempre presentes nas comemorações, que, por sua vez, configuram importante momento de sociabilidade entre a comunidade local e os visitantes. No entanto, o aspecto mais relevante que marca mudanças pontuais da festa diz respeito à sua organização. Se na origem e durante boa parte de suas edições, a realização ficava a cargo dos festeiros e dos mordomos, atualmente ela é atribuição do Conselho Comunitário de Pastorais (CCP), uma recomendação diocesana, que concorreu para que as festas religiosas das localidades ficassem sob a responsabilidade da esfera eclesiástica, retirando-lhe a marca leiga que predominava na sua elaboração. No caso do Catete, o atrito inicial provocado pela mudança foi contornado. O próprio aspecto histórico da festa, relacionado ao achado da imagem de Santa Luzia pela família Gouveia, garantia aos membros do clã a responsabilidade sobre os festejos, inclusive sobre as doações recebidas durante o evento. Tal fato imprimia uma marca familiar à festa e sua realização era um bem herdado geracionalmente. As transformações ocorridas a partir da implantação do CCP abriram maior possibilidade de participação nos preparativos da festa por parte de outros membros da comunidade, inclusive para organismos de atuação social da localidade, como a Associação Mães Unidas Venceremos do Catete e o Projeto Catete, um projeto sociocultural, financiado pelo Ministério do Turismo do Governo Federal. Algumas práticas também foram deixadas de lado, como a arrecadação de fundos para a realização da festa que ficava a cargo dos procuradores indicados pelos festeiros. Tais encarregados saiam pela região com o intuito de angariar esmolas para as comemorações em torno de Santa Luzia e anotavam o nome dos contribuintes em cadernetas. Atualmente, após o controle do Conselho sobre a organização da festa, essa prática já não é mais oficializada. No entanto, algumas pessoas ainda correm com as listas de arrecadação dedicada à Santa Luzia, por iniciativa pessoal e com o intuito de cumprirem alguma promessa à padroeira do Catete. No dia 13 de dezembro trazem o valor arrecadado para deixarem na caixa de ofertas, que fica no interior da capela. As ofertas em dinheiro auxiliam no pagamento dos custos que o CCP tem com a festa. referências Bibliográficas ATTWATER, Donald. Dicionário de Santos. São Paulo: Art Editores, 1991. CHAVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alan. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. CONTI, Dom Sevilio. O Santo do dia; Petrópolis:Vozes, 1984. FORTES, Solange Sabino Palazzi. Ouro Preto conta Ouro Preto: tradições da Terra do Ouro. Ouro Preto/MG: 1996. PALACÍN E. J., Carlos; PISANESCHI, Nilo. Santo nosso de cada dia, rogai por nós!, São Paulo: Loyola, 1991 in http://www.puc-rio.br/campus/servicos/pastoral/santo. TAVARES, Jorge Campos. 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Comunidade do Catete em dia de festa de Santa Luzia página 57 I 148 Imagem de Santa Luzia Levantamento do mastro Capela de Santa Luzia página 58 I 148 Missa campal Benção dos objetos Procissão página 59 I 148 Fé em Santa Luzia ficha técnica levantamento Guga Barros (Comunicação) Guilherme Rodrigues (Sociologia) João Paulo Lopes (História) data Patrícia Pereira (Arquitetura e Urbanismo) Sandra Fosque Sanches (Diretora de Promoção Cultural da Secretaria Municipal de Cultura e Patrimônio de Ouro Preto) dez/2005 elaboração Guilherme Rodrigues (Sociologia) João Paulo Lopes (História) data jan/2006 revisão Memória Arquitetura Ltda data jan/2006 página 60 I 148