CABRIÃO: A CRÍTICA AOS“VINAGRES” E “BEATAS” Danilo A
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CABRIÃO: A CRÍTICA AOS“VINAGRES” E “BEATAS” Danilo A
CABRIÃO: A CRÍTICA AOS“VINAGRES” E “BEATAS” Danilo A. ChampanRocha Universidade Estadual de Maringá (UEM) Resumo: O Brasil oitocentista foi palco de intensas disputas políticas desde a Abertura dos Portos com a chegada da Família Real na colônia em 1808. A penetração de mercadorias inglesas, juntamente com os ideais defendidos pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa, foram os responsáveis pela Crise do Sistema Colonial. Em paralelo aos debates entre os diferentes grupos políticos em defesa de diferentes modelos de governosurgiu,em alguns centros provinciais da América Portuguesa, uma imprensa ativista. Mesmo após a emancipação e a implantação de uma monarquia constitucional, as disputas entre defensores do federalismo, do republicanismo e de uma monarquia centralizadora perpetuaram-se ao longo do Brasil Império.Em conjunto a estas disputas, a imprensa desempenhou um importante papel como plataforma política. Neste contexto, o objetivo deste trabalho é analisar as relações de poder na província de São Paulo na década de 1860 entre os diferentes segmentos sociais que compunham a sociedade brasileira. Para isso, utilizei como fonte o jornal domingueiro Cabriãode Américo de Campos, Ângelo Agostini e Antônio Manoel dos Reis. As críticas do hebdomadário ao regime vigente com as denuncias dos abusos das autoridades políticas e do sistema burocrático imperial a partir de temas do cotidiano como, por exemplo, o recrutamento para a Guerra do Paraguai e a escravidão, evidenciou como a Política era pensada por meio das relações pessoais e os arranjos formados segundo os interesses privados. Palavra-chave: Brasil Império; Imprensa Ilustrada; Cabrião. 2023 Introdução Em 1859, Ângelo Agostini (1843-1910) chegou à cidade do Rio de Janeiro, lugar onde faria história como um importante caricaturista e abolicionista, principalmente, após a fundação e a sua participação nas publicações da Revista Ilustrada (1876-1888). Pouca coisa é conhecida sobre Agostini antes de sua chegada ao Brasil, constituindo uma lacuna na vida do autor. Até o momento, os estudos feitos sobre o artista destacaram a passagem por Paris no período de sua adolescência, momento na qual teve os primeiros contatos com a pintura e o desenho1. Natural de Piemonte, região norte da Itália, Agostini mudou-se para a França após a morte de seu pai, Antônio Agostini, indo morar com a sua avó. Não se sabe exatamente o motivo da viagem para o Brasil, porém, a informação consolidada no meio acadêmico é a de que Agostini, aos 17 anos de idade, aportou no Rio de Janeiro, junto com sua mãe, a cantora lírica Raquel Agostini, acompanhado do jornalista Antônio Pedro Marques de Almeida, seu padrasto 2. Durante sua curta estadia no Rio de Janeiro, Marcelo Baladan aponta que Agostini não desempenhou atividades ligadas à imprensa, mas sim trabalhou como capataz nas obras da ferrovia Mauá3. Poucos meses após, Agostini mudou-se para São Paulo, onde assumiu a profissão de pintor-retratista, aprimorando aos poucos o seu traço artístico com os retratos a óleo. Ainda segundo o autor, esta fase em que Agostini trabalhou em uma oficina fotográfica, foi importante para que ele adquirisse noções básicas para reproduzir ambientes, expressões faciais e poses, contribuindo para a sua formação como caricaturista e na sua inserção na imprensa ilustrada. Agostini mantêm a profissão de retratista mesmo com a fundação do jornal domingueiro Diabo Coxo, em 1864, na qual foi responsável pela ilustração do periódico até o fim de sua circulação. Isso demonstra a fragilidade econômica do piemontês ao envolver-se em diferentes tipos de trabalhos para sobreviver no Novo 1 Entre os autores que adotaram esta perspectiva, podemos citar: SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4. Ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999; BALADAN, Marcelo. Poeta do Lápis: A trajetória de Angelo Agostini no Brasil Imperial – São Paulo e Rio de Janeiro – 1864-1888. Tese Doutorado. São Paulo: UNICAMP, 2005; GALLOTTA, Brás Ciro. São Paulo aprende a rir: a imprensa humorística entre 1839-1876. Tese Doutorado. São Paulo: PUC, 2006; OLIVEIRA, Gilberto Maringoni de. Angelo Agostini ou impressões de uma viagem da Corte à Capital Federal (1864-1910). Tese Doutorado. São Paulo: USP, 2006; SILVA, Rosângela de Jesus. A crítica de arte de Angelo Agostini e a cultura figurativa do final do segundo reinado. Dissertação Mestrado. São Paulo: UNICAMP, 2005. 2 SILVA, Rosângela de Jesus, op. cit., p. 15. 3 BALADAN, Marcelo, op. cit., p. 62. 2024 Mundo, desde a sua estadia no Rio de Janeiro, além de também indicar o baixo retorno financeiro que a folha proporcionava para os redatores. Na sua primeira experiência na imprensa, como ilustrador no jornal Diabo Coxo é possível observar o traço rudimentar de um artista ainda em processo de aprendizagem no manuseio com a pedra litográfica, ilustrando ambientes de forma simplista, com poucos detalhes e contornos na sua forma. Entretanto, desde o início de sua carreira, destaca-se em sua obra a influência estética dos padrões artísticos europeus na medida em que o ambiente e as pessoas são retratados conforme as proporções físicas naturais, sem qualquer deformação dos personagens estampados. Talvez por este motivo, muitos cronistas do século XX, compararam os trabalhos de Agostini aos de Rugendas e Debret, por descreverem de forma nítida em suas obras as cenas do cotidiano brasileiro. Dessa forma, seus desenhos são considerados caricaturas pela forma cômica e satírica em que o assunto era abordado, sem desobedecer às dimensões e as características do ambiente e das pessoas ilustradas. O Diabo Coxo era impresso na Tipografia e Litografia Alemã de Henrique Schroeder, podendo ser adquirido o número avulso por 500$ réis ou pela assinatura de 12 exemplares por 4$000 réis para a capital e 5$000 réis para o interior4. A redação desse jornal, constituído de quatro páginas de ilustrações e quatro páginas de texto, foi assumida pelo abolicionista Luiz Gama (1830-1886), possivelmente um dos disseminadores dos ideais antiescravistas na qual Agostini teve contato, contribuindo para a formação e postura crítica que o italiano manteve contra um dos principais pilares do sistema colonial. O hebdomadário contava também com a participação de Sizenando Barreto Nabuco de Araújo (1842-1892), irmão de Joaquim Nabuco, e obviamente, a de Ângelo Agostini com as ilustrações. A folha possuía uma posição política de crítica à ordem social vigente, satirizando as personalidades regionais da época pertencentes à monarquia. A inserção de conteúdos que denunciavam as práticas abusivas de senhores locais, a crítica ao governo após as medidas excessivas usadas no recrutamento para a Guerra do Paraguai, a sátira dos costumes e hábitos observados no retrato do dia-adia da provinciana cidade paulista, além de outros aspectos, constituíram a principal razão para o fim da circulação do jornal. A pressão de autoridades locais contra as 4 Ibidem, p. 63. 2025 publicações da folha e as dificuldades financeiras tornou impossível a continuidade do semanário, encerrando-se assim em dezembro de 1865. Em 30 de setembro de 1866, Agostini juntamente com Américo de Campos e Antônio Manoel dos Reis, publicavam um novo jornal domingueiro na cidade de São Paulo: Cabrião. O semanário circulou até 29 de setembro de 1867 e foi impresso durante esse período em duas tipografias. A primeira foi a Tipografia Imparcial de Joaquim Roberto de Azevedo Marques, responsável pela produção do Cabrião até o 13º volume. Enquanto a segunda foi a Tipografia Alemã de Henrique Schroeder, a mesma tipografia usada para a impressão do Diabo Coxo e que foi incumbida da impressão do periódico do 14º número até o último5. Não se sabe ao certo o motivo da troca, mas a mudança de tipografia poderia estar relacionada com a posição política da folha e a cisão interna do Partido Liberal. Quanto à formatação, o hebdomadário era dividido em oito páginas, organizado de forma semelhante ao Diabo Coxo, com quatro páginas de caricaturas, enquanto as demais quatro páginas eram ocupadas por textos escritos, destinados a uma série de conteúdos, como anúncios, notícias do cotidiano da vida urbana, poesias, entre outros assuntos. A diferença entre o Cabrião e o Diabo Coxo estava apenas em suas dimensões, sendo o primeiro um pouco menor, com 17 x 22 cm comparado ao segundo com 18 x 26 cm. Baladan observe que um exemplar do Cabrião poderia ser obtido em números avulsos por 500$ réis ou pela assinatura anual que custaria na capital 17$000 réis e nas demais localidades 19$000 réis6. Porém, a anuidade da folha só obteve este preço a partir do segundo trimestre, custando ao longo do primeiro trimestre 13$000 réis para a capital e 14$000 para a província, aumentando o valor apenas com a mudança das impressões do jornal para a litografia de H. Schroeder. De toda forma, as assinaturas podiam ser feitas na Rua do Rosário e saiam em média três vezes mais caro que os demais jornais da época7. 5 SANTOS, Délio Freire dos. Introdução. In: AGOSTINI, Ângelo; CAMPOS, Américo de; REIS, Antônio Manoel dos. Cabrião: 1866-1867. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: Arquivo do Estado, 1982. 6 BALADAN, Marcelo, op. cit., p. 93. 7 OLIVEIRA, Gilberto Maringoni de. Angelo Agostini ou impressões de uma viagem da Corte à Capital Federal (1864-1910). Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2006, p. 50. 2026 O Cabrião A fundação em São Paulo do Diabo Coxo em 1864 e o Cabrião em 1866 significou um marco para a imprensa paulista. A incorporação de novos assuntos, não apenas referentes a política, revolucionou a configuração dos periódicos. Temas como a moda, a arte, os costumes e o cotidiano, até então desprezados pela imprensa, foram discutidos pelos hebdomadários de forma satírica como uma crítica para aquilo em que os redatores consideravam os vícios da sociedade. O Cabrião, assim como o Diabo Coxo, também foi pioneiro no uso de caricaturas e ilustrações em São Paulo. Nenhum periódico da província havia inserido ilustrações em seus jornais, resultando numa grande novidade e num sucesso a fundação do Diabo Coxo e do Cabrião. Apenas a Semana Ilustrada (1860-1876) de Henrique Fleiuss, fundado na Corte e precursor da imprensa ilustrada no Brasil, apresentava desenhos semelhantes ao de Agostini nos jornais paulistas. A Semana Ilustrada forneceu o padrão que seria adotado na imprensa ilustrada a partir do seu grande sucesso logrado, fomentando e influenciando uma geração de periódicos ilustrados a partir da década de 1860, inclusive o Cabrião e o Diabo Coxo8. Esta influência pode ser observada com uma comparação das semelhanças entre ambos periódicos: O Moleque e o Dr. Semana, personagens fictícios do jornal carioca, equivalem ao Pipelet e o Cabrião do hebdomadário paulista. Da mesma forma, a organização do jornal da Corte em oito páginas no total, sendo quatro de texto e quatro de ilustrações, é idêntica à composição do Cabrião. O atraso na instalação de uma imprensa ilustrada e a inexistência de uma imprensa sólida com uma produção contínua e de longa duração em São Paulo, durante a primeira metade do século XIX, expressou o atraso econômico da região. O status de primeira grandeza e a opulência da província, atingidos no período da produção cafeeira, tornou-se uma realidade apenas a partir de 18709. Durante o período colonial, a economia local de São Paulo estava voltada à produção de 8 OLIVEIRA, Gilberto Maringoni de, op. cit., p. 25. Na virada do século XIX, entre 1890 e a década de 1900, São Paulo tornou-se o principal Estado da República com o aumento de cinco vezes da produção cafeeira. Para aprofundar a leitura sobre a cafeicultura em São Paulo, ler: STOLCKE, Verena. Cefeicultura: homens, mulheres e capital (1850-1980). São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 53. 9 2027 gêneros alimentícios e ao comércio de animais com baixa expressão nas exportações a nível nacional e com uma população majoritariamente rural10. No Cabrião, os autores fazem menção sobre o atraso da região e os comentários de época sobre a impossibilidade da instalação de um “jornal de caricaturas em São Paulo” por ser a “terra muito atrasada”, não tendo o “necessário desenvolvimento para tal coisa”11. De forma altiva, o hebdomadário comemorou o fracasso das previsões e atribuiu o sucesso da folha ao terreno fértil encontrado na opinião pública. Porém, este “terreno fértil” composto por uma demanda crescente por informações e cultura foi uma consequência da ampliação urbana iniciada nos anos finais da década de 1860 com as estradas de ferro. Dessa forma, o Cabriãousufruiu de condições privilegiadas na qual seus antecessores não tiveram, estando inseridos no limiar das transformações entre uma sociedade patriarcal e a intensificação do viver urbano, com o nascimento de novos costumes e valores no seio da população.O relato do cotidiano do Cabriãoe a incorporação de questões observadas a partir de sua análise sobre a população da província possibilitou o conhecimento do início do processo de mudanças culturais, na passagem da década de 1860 para a de 1870. No decorrer de suas publicações, as denúncias do Cabrião atingiam diversos grupos sociais da cidade, aumentando a oposição contra o periódico. Porém, como prometido na apresentação da folha no primeiro número, nenhum grupo foi tão criticado pelo Cabriãoquanto os jesuítas e os conservadores. Este primeiro grupo, geralmente descrito pelo periódico como um obstáculo ao progresso da civilização e por alcunhas chistosas como “barbados” e “barrigudos”, são um dos principais temas discutidos e criticados no hebdomadário. Em uma caricatura de capa no nº 06, algumas cozinheiras desempregadas com a retirada dos estudantes da capital no período das férias, pedem para o Cabriãoindicar alguns possíveis locais de trabalho. Sem hesitar, o Cabriãoaconselhou as cozinheiras a dirigir-se ao Seminário, pois lá, encontrariam uma “cozinha decente”12. No mesmo número, o Cabriãopublicou um anúncio fictício informando a necessidade de um cozinheiro francês no Seminário 13. 10 Sobre a economia de gêneros de subsistência para o abastecimento dos núcleos mineradores da Capitania de Minas Gerais, ler: ANDREONI, João António. Cultura e Opulência do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1987. 11 Cabrião, 1982, nº 13, p. 98. 12 Cabrião, 1982, nº 06, p. 41. 13 Ibidem, p. 47. 2028 Nessas duas passagens, observamos a relação satírica que a folha delineava entre os jesuítas e as refeições ao representarem não apenas as ótimas condições de vida dos religiosos, alegado pela folha com a fartura de vinhos e alimentos em suas mesas, mas também em alusão à busca insaciável pela realização dos seus interesses pessoais. Dessa forma, a barriga significava o egoísmo destes indivíduos, estando as suas ações condicionadas aos seus “umbigos”. A rivalidade entre o semanário e os jesuítas e simpatizantes atingiram o auge após a publicação, no nº 06, da caricatura do Dia de Finados. A ilustração retratou o cemitério da Consolação em um ambiente festivo composto por esqueletos e visitantes consumindo bebidas e charutos14. No número seguinte, uma caricatura demonstra o alvoroço causado pela ilustração do Dia dos Finados na época. Agostini satirizou as possíveis reações dos mortos diante da ilustração: “os sensíveis” suicidavam-se, enquanto “os valentes” agrediam o Cabrião e o Pipelet e “os pobres de espírito” denunciavam a publicação15. Quanto aos “pobres de espírito”, a folha referia-se indiretamente a Cândido Silva, proprietário do Diário de São Paulo, responsável pela denúncia feita contra o Cabrião, sob a alegação da caricatura do Dia de Finados ter sido um atentado a religião16. Na caricatura do nº 09 da folha, fantasmas são ilustrados assustando o Cabrião à noite com a legenda de que “os mortos continuam a cabrionar”, tornandose um indício de como a polêmica permanecia em discussão na capital17. Apenas no nº 12, o ocorrido teve um desfecho com o Cabriãosendo absolvido das acusações pelo promotor público, não considerando a publicação uma afronta a moral e os bons costumes18. Ironicamente, a folha publicou na caricatura de contracapa do mesmo número uma ilustração de um baile dado aos mortos em comemoração ao fim do processo. O Cabrião, sentado em uma poltrona no centro do salão, observa os esqueletos bebendo e dançando, enquanto, Pipelet segura uma bandeira protestando contra os “delatores”19. Entretanto, os conflitos entre os redatores e os “seguidores do jesuitismo” não pararam. Na caricatura do nº 16, Agostini retratou a postura de um “liberal cascudo” 14 Ibidem, p. 48. Cabrião, 1982, nº 7, p. 52. 16 Ibidem, p. 54. 17 Cabrião, nº 09, p 72. 18 Cabrião, nº 12, p. 90. 19 Ibidem, p. 96. 15 2029 com a aproximação das eleições. Diante de um “horizonte entroviscado”, o candidato acende uma vela a S. Miguel e a Satanás para o sucesso nas eleições 20. Novamente, as publicações do jornal tomaram fisionomias drásticas. Segundo os redatores no nº 17, a publicação do último número da folha “foi recebida com entusiasmo pelas beatas e pelos meninos”, sendo todos os exemplares comprados pelos jesuítas de Itu e retirados de comercialização. Em seguida, fizeram um “conclave secreto”, excomungando as “folhinhas” e considerando “heréticos todos os fiéis que as comprassem e lessem”21. Este tipo de discurso religioso, além de representar um golpe financeiro para a folha com a diminuição de assinantes, indica também as tentativas da velha ordem social em extinguir a circulação de ideias contrárias ao status quo vigente. A preocupação em combater os discursos da folha também denota o impacto que estas ideias tinham na época e o poder de transformação contido em seus desenhos e textos. A religião pode ser pensada, para entender melhor as relações de sociabilidade da época e as críticas do Cabrião, como um artifício político de mobilização do eleitorado e da sociedade em geral. Na caricatura de capa do nº 23, o Cabrião criticou justamente esta interferência política da instituição religiosa por meio do diálogo entre o Cabrião e o “reverendíssimo”. O Cabrião exige que o reverendo “castigue severamente os padrecos politicões do bispado”, alegando que “o padre deve ser somente padre”, perdendo a “dignidade de seu cargo” ao “meterse em traficâncias políticas”22. O jornal ilustrado deixa evidente por meio das “Instruções” como o apoio do clero às autoridades políticas foi uma via de mão dupla, formada a partir da troca de favores entre os grupos envolvidos. O Cabriãosatirizou esta parceria, assentado em interesses pessoais, em suas “Instruções secretas dos padres da Companhia de Jesus”. As “Instruções” foram textos irônicos publicados em vários capítulos no semanário e era constituído como uma espécie de manual de conduta para os jesuítas ingressados recentemente na Companhia. Portanto, no nº 17, as “Instruções” exigiam que por meio do poder de autoridades políticas “há dê-se buscar o favor destes para contra os nossos adversários”. Também “deve-se usar da sua autoridade para adquirir grandes empregos e que tacitamente se servirá com os 20 Cabrião, nº 16, p. 125. Cabrião, 1982, nº 17, p. 134. 22 Cabrião, 1982, nº 23, p 177. 21 2030 segredos de seus nomes para a aquisição de bens temporais”23. Como podemos observar, as alianças eram formadas a partir de interesses individuais e não apenas por convicções políticas e religiosas. Apesar das passagens referirem-se restritamente aos jesuítas, este trabalho parte do pressuposto de como esta prática estava presente também no clero nacional e, sobretudo, nas alianças e decisões políticas na época. Dessa forma, muitas das críticas consideradas à religião devem ser compreendidas como uma condenação à conduta de pessoas ligadas à religião. O clero nacional e os jesuítas estavam inseridos no núcleo familiar de grande parte da população livre da província, ligados politicamente em sua maioria à monarquia, influenciando as decisões tomadas pelos patriarcas e mantendo a estrutura política e social. Uma das passagens que demonstrou o respeito dos redatores a religião está presente no nº 07, publicado inclusive em meio ao conturbado processo sofrido pelo Cabriãocom a publicação da caricatura do Dia de Finados no nº 06. Os responsáveis pela folha condenam a conduta “desdenhosa e desrespeitosa” de ateus diante da procissão de domingo ocorrido na semana anterior. O Cabriãosolicitou a intervenção da polícia nesses casos para “fazer respeitar a liberdade de consciência em matéria de religião”. No entanto, como o próprio semanário alertou, não era do interesse do Cabriãoque esses indivíduos aderissem “o sórdido e grosseiro beatério pregado pelos ardilosos jesuítas”, mas sim o meio termo, entre a racionalidade e a religião24. Conclusão A manutenção da monarquia absolutista no Brasil após a independência teve como ponto principal, assegurar a unificação do território correspondente ao período colonial, além de evitar qualquer possibilidade de convulsões sociais com a manutenção da monarquia e a preservação do status quo. Dessa forma, com poucas exceções, desde os primórdios da formação do Brasil emancipado, houve a priorização dos interesses pessoais em detrimento dos interesses públicos, independente da posição política dos grupos partidários. 23 Cabrião, 1982, nº 17, pp. 130-131. Cabrião, 1982, nº 7, p. 54. 24 2031 Para discutir os diferentes projetos de estado, a elite política utilizou a imprensa como uma ferramenta de mobilização da opinião dos homens livres da época, sendo reprimidos em alguns períodos, no momento em que sua crítica ameaçasse a ordem social vigente. Nesse contexto, Ângelo Agostini fundou, juntamente com Américo de Campos e Antônio Manoel dos Reis, o Cabrião (18661867)na província de São Paulo. Considerando-se um liberal, Agostini criticou severamente a conduta política presente na capital paulista por meio de suas caricaturas, utilizando em seus traços, uma linguagem satírica e cômica, que o tornou um dos pioneiros deste gênero no Brasil. Em suas críticas, Agostini observou como os interesses particulares de autoridades políticas e administrativas no Segundo Reinado permeavam as decisões públicas tomadas dentro das instituições políticas e jurídicas no Brasil Império. Consciente das relações fraudulentas e da corrupção entre as elites políticas, o Cabriãotornou-se um porta-voz na capital de São Paulo, ao denunciar um regime déspota centrado na figura do Imperador D. Pedro II. Além de assuntos políticos, o periódico inovou com a incorporação de temas como a arte, a moda, os costumes e a religião. Em todos esses assuntos, o Cabriãoadotou uma postura crítica, desagradando boa parte dos grupos sociais da capital. Cada vez mais isolado, principalmente por suas denúncias com relação às autoridades e a estrutura política, o Cabrão não conseguiu resistir às pressões políticas e os problemas financeiros da folha, interrompendo sua produção em setembro de 1867. Bibliografia ANDREONI, João António. Cultura e Opulência do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1987. BALADAN, Marcelo. Poeta do Lápis: A trajetória de Angelo Agostini no Brasil Imperial – São Paulo e Rio de Janeiro – 1864-1888. 2005. 361 f. Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, São Paulo, 2005. Cabrião: Semanário humorístico editado por Ângelo Agostini, Américo de Campos e Antônio Manuel dos Reis; 1866-1867 / Introdução de Délio Freire dos Santos. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, Arquivo do Estado, 1982. 2032 GALLOTTA, Brás Ciro. São Paulo aprende a rir: a imprensa humorística entre 1839-1876. 2006. 320 f. Tese (Doutorado em História Social) – Programa de Estudos Pós-Graduados em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP, São Paulo, 2006. OLIVEIRA, Gilberto Maringoni de. Angelo Agostini ou impressões de uma viagem da Corte à Capital Federal (1864-1910). 2006. 335 f. Tese (Doutorado em História Social) – Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, 2006. SANTOS, Délio Freire dos. Primórdios da imprensa caricata paulistana: o Cabrião. In: AGOSTINI, Ângelo; CAMPOS, Américo de; REIS, Antônio Manoel dos. Cabrião: 1866-1867. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1982. SILVA, Rosângela de Jesus. A crítica de arte de Angelo Agostini e a cultura figurativa do final do segundo reinado. 2005. 328 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, São Paulo, 2005. SODRÉ, Nelson Werneck. Historia da Imprensa no Brasil. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999. STOLCKE, Verena. Cefeicultura: homens, mulheres e capital (1850-1980). São Paulo: Brasiliense, 1986. 2033