Caliban – o outro da história

Transcrição

Caliban – o outro da história
Caliban – o outro da história
Somos os que fomos desfeitos no que
éramos, sem jamais chegar a ser o que
formos ou quiséramos. Não sabendo quem
éramos,
quando
demorávamos
inocentes
neles, inscientes de nós, menos sabemos
quem seremos1.
Uma vez Caliban foi o senhor absoluto desta terra.
Mas,
hoje, Caliban precisa estudar para vencer na vida. Ainda que
não saiba o nome do pai nem do filho e de nenhum espírito
santo,
Caliban
acredita
que
tornará
a
ser
o
soberano
novamente; ao menos, quando ele voltar a existir.
Caliban é o símbolo do nativo das terras paradisíacas
dos papagaios.
Por essência, ele representa a imagética do
Outro, isto é, a natureza abundante do mundo moderno.
Sua
abundância, como o próprio termo explica – “ab” (o que nega)
e “undante” (o que envolve) –, significa toda a diferença
contida
em
sua
realidade
fisionômica
e
cultural,
e,
por
conseguinte, todo o caráter de completude que a sua presença
no panorama histórico ocidental implica. Caliban é o Outro, a
diferença e a completude2.
1
RIBEIRO, Darcy. Utopia selvagem – saudades da inocência perdida – uma fábula. Rio de Janeiro: Record,
1981, p. 32.
2
Compreendemos que o ano de 1492 assinala o início da era moderna, pela importante descoberta do Outro.
Pois, se nessa época os europeus já não ignoravam a existência da África, ou da Índia, ou da China, dos índios
da América, no entanto, nada sabiam. A consciência moderna nasce do reconhecimento de que essa diferença
– a América – era uma parte essencial ao todo. A partir do encontro com os povos indígenas americanos, o
mundo está completo. Neste sentido, afirmará o crítico literário Tzvetan Todorov: “Os homens descobriram a
1
Sua figura histórica surge dos relatos das cartas de
viagens dos antigos conquistadores da América, mas é a partir
da
criação
tempestade
descrita
e
de
William
(1611),
Shakespeare,
que
Caliban
conceituada
em
irá
historicamente
sua
se
última
perpetuar.
como
um
peça
A
Assim,
canibal,
e
artisticamente nomeada por Shakespeare como Caliban, a figura
do indígena americano é recriada pelo autor inglês na forma
de
um
anagrama.
Contudo,
aos
nossos
olhos,
o
termo
anagramático vai mais além que uma charada ou um jogo verbal,
ele representa a marca de uma sobrevivência. Passando por
todas
as
adversidades
históricas,
do
preconceito
ao
extermínio, Caliban é o nosso símbolo maior – aquele que
resiste e sobrevive.
Nesse âmbito simbólico, então, questões de identidade
fazem de Caliban uma expressão legítima para se pensar a
história cultural da América Latina. No processo histórico de
ocidentalização
deste
continente,
além
de
representar
a
figura do Outro, será Caliban, também, o símbolo da rebeldia
contra o colonialismo europeu. É ele, pois, quem, na condição
de escravo, se rebela contra Próspero, o seu dominador. Na
peça teatral, em um momento de tensão entre o colonizador e o
colonizado, afirmará Caliban ao seu senhor: “Agora eu sei
totalidade de que fazem parte. Até então, formavam uma parte sem todo”. (TODOROV, Tzvetan. A conquista
da América – a questão do outro.Trad. Beatriz Perrone Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 1982, p. 6.)
2
falar, e o meu proveito é poder praguejar. Que a peste o
pegue, por me ensinar sua língua!”3
Esta fala do personagem dá-lhe uma dupla face: por um
lado, a figura do selvagem, cuja língua nativa era tida como
uma cadeia de ruídos e grunhidos pelos colonizadores; por
outro, a condição anticolonialista, quando se rebela contra a
língua transplantada e imposta a ele. Na peça A tempestade,
outro
aspecto
importante
desse
personagem
encontra-se
na
caracterização monstruosa de seu corpo. Imagem nada ingênua.
Sua forma física o distancia do padrão europeu de beleza e o
põe,
indubitavelmente,
na
órbita
da
estranha
raça
dos
selvagens; isto é, daqueles cujas faces estão longe da imagem
e semelhança de Deus.
De que corpo e de que voz Caliban precisaria, então,
para deixar de representar a figura do monstro nos livros de
história moderna? Ou seria mais correto perguntar: de que
livro?
O caráter contestador desse personagem desvincula-o da
imagem conformista e o põe no corpo daquele que se sacrifica
para
asseverar
uma
verdade.
Ao
repudiar
a
língua
do
dominador, a praga rogada por ele reflete, por um lado, a
condição trágica de sua perda histórica – a cultura e as
3
SHAKESPEARE, William. A tempestade. Trad. Bárbara Heliodora. Rio De Janeiro: Nova Aguilar, 1999, p.
36.
3
terras das quais ele era o senhor absoluto – e, por outro, a
idéia de uma fala profética – a visão calibanesca do mundo.
Com
certeza,
sofrimentos
e
a
maldição
punições, mas
a
de
Caliban
relação
entre
custou-lhe
sofrimento e
milagre é o que chamamos de Literatura. E, neste sentido,
afirmamos ainda: Caliban é um Louco da Letra. Esta expressão,
cunhada
pelo
filósofo
Jacques
Rancière,
explica
a
grande
aventura que, no caso, ambos, Caliban e a Literatura, se
lançam: a busca da verdade de seus corpos. Portanto, fazemos
nossas as palavras do filósofo, quando ele diz: “Se a carne é
falsidade assim como seus sofrimentos, o espírito é falsidade
assim como seus milagres”4. Caliban, quixotescamente, é um
louco da letra, na medida em que sacrifica seu corpo em nome
de
uma
verdade:
o
livro.
Mas,
por
qual
livro
ele
se
sacrifica? Diremos: pelo livro de nossa América.
A identidade latino-americana está profundamente marcada
por
valores
etnocêntricos,
“descoberta”.
identidade,
Saber
ainda
que
reunir
as
impostos
os
suas
a
ela
outros
desde
elementos
aparências
suscitem,
a
sua
dessa
hoje,
imagens de ruína, é saber atestar a verdade de nossas páginas
históricas, e saber verificar, também, a autenticidade dos
livros que nos contam no mundo. Somos híbridos, mestiços, uma
aglutinação
de
culturas;
enfim,
somos
uma
pluralidade
de
4
vozes. No entanto, o poderio econômico primeiro mundista e as
suas ambições pela hegemonia cultural massacram-nos, povos
dependentes, todos os dias. Esta tensão histórica aponta para
uma
questão
existimos?
emblemática:
Ou,
desfigurado
apesar
daquilo
a
de
América
tudo,
que
Latina
somos,
acontece
em
existe?
meramente,
outro
Nós
um
lugar,
eco
nas
metrópoles dos grandes centros econômicos?
Embora
Caliban
estude
para
ser
alguém
busca, na verdade, desenterrar espelhos.
na
vida,
ele
Atente-se: este
gesto especulativo mescla-se luminoso e triste a um fundo
escuro, como expressão da história dos sofrimentos. O ato de
desenterrar espelhos imprime a sua inscrição (a dos calibans)
no mundo ocidental, e esta inscrição não se dá como marco de
um nascimento, senão como momento significativo de uma etapa
de
decadência.
desencavernar
A
curvatura
espelhos
de
não
seu
desenha
corpo
uma
ao
abaixar
imagem
para
clássica
e
heróica, senão barroca e grotesca, cujas marcas são: vazio e
desejo.
Oculto
ausente.
e
enigmático,
Caliban
tem
a
aparência
quase
O que é seu se acentua no fragmento, pois o que
nele permanece não é o ideal clássico da busca da perfeição,
mas o detalhe singular barroco, o pequeno objeto do saber
aninhado
4
nas
construções
de
suas
ruínas.
Esses
pequenos
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Trad. Raquel Ramalhete e outros. Rio de Janeiro: Editora 34,
5
objetos são espelhos, uma antiga predileção alegórica, que se
manifesta
verdade
de
forma
ética
e
recém-descoberta.
história
a
partir
desenterrando.
política:
Caliban
desses
espelhos
tornar
tenta
que,
visível
uma
reconstruir
sua
aos
poucos,
irá
Tal situação – trágica como é – remete-nos a
uma passagem do romance de Darcy Ribeiro, intitulado Utopia
selvagem. Referimo-nos, especificamente, à passagem quando o
antropólogo
Darcy,
indiretamente,
fala
pela
voz
de
um
personagem:
Somos os que fomos desfeitos no que éramos,
sem jamais chegar a ser o que formos ou
quiséramos. Não sabendo quem éramos quando
demorávamos inocentes neles, inscientes de
nós, menos sabemos quem seremos5.
Como
românticas.
se
vê,
não
há
vagas
nem
para
melancolias
Diria, então, o filósofo Walter Benjamin: “Tanta
significação, tanta sujeição à morte, porque é a morte que
cava mais profundamente a linha dentada de demarcação entre
corpo e significação”6.
Assim sendo, o Louco da Letra sabe
que a letra só é transformada em espírito pelo verbo que
ganha
carne,
isto
é,
pela
realização
profética.
Paradoxalmente, ao desenterrar o primeiro espelho, Caliban
avista sua terra descarnada. A literatura calibanesca nasce
1995, p. 69
RIBEIRO, Darcy. Utopia selvagem – saudades da inocência perdida – uma fábula. Rio de Janeiro: Record,
1981, p. 32.
6
BENJAMIN, Walter. “Alegoria e drama barroco” in:Documentos de cultura. Documentos de barbárie.
Trad. Celeste H. M. Ribeiro de Sousa e outros. São Paulo: Cultrix, 1986, p. 22.
5
6
de uma maldição anti-colonialista, representada na busca de
liberdade pelo espírito da terra.
Atualmente
vivemos
em
uma,
digamos,
aldeia
de
nomes
trocados; porém, existiam, antes, aqui, outros conceitos e
outras
havia
expressões.
–
como
concreto,
diria
Entre
Claude
fundamentada
na
a
gente primitiva
Lévi-Strauss
idéia
do
–
desse
uma
lugar,
ciência
saber
do
utilizado.
Precisava-se decifrar o enigma da existência, por isso, as
espécies animais e vegetais não eram só conhecidas quando se
tornavam úteis; mas todas já classificadas úteis porque logo
a vida deve ser decifrada. O saber utilizado era a vontade de
conhecer pela necessidade de conhecer. Decidia-se que era
preciso levar tudo em conta, porque se dava muito valor à
formação
de
uma
memória.
E,
assim,
a
vida
é:
em
algum
momento ou lugar, ela nos reclama por algo que devemos saber;
logo, entre os ditos povos primitivos, a ciência do concreto
é a certeza de que tudo nessa vida é digno de interesse7.
Mas, então, como se deu, no mundo dos chamados povos
civilizados, esse processo de descarnação? Partamos, pois, de
uma suposição, isto é, de uma imagem literária.
7
Neste sentido, reproduzimos a fala de Lévi-Strauss, quando ele faz-nos ver a existência de um espírito
científico entre os povos, ditos primitivos: “...para elaborar as técnicas, muitas vezes longas e complexas, que
permitissem cultivar sem terra, ou então sem água, transformar grãos ou raízes tóxicas em alimentos, ou
então, ainda, utilizar essa toxidade para a caça, a guerra, o ritual, foi preciso, não duvidamos, uma atitude de
espírito verdadeiramente científica, uma curiosidade assídua e sempre desperta, uma vontade de conhecer
pelo prazer de conhecer, porque uma pequena fração apenas das observações e das experiências (às quais é
preciso supor que tenham sido inspiradas, então, e sobretudo, pelo gosto de saber) poderiam dar resultados
7
Com a aldeia no espelho e este pousado na palma da mão,
vê-se, além do rosto de Caliban, também a imagem de uma
grande
máscara
sem
olhos.
Assim,
em
parte,
assiste-se,
extraordinariamente, a uma das primeiras faces do homem - já
múltipla
em
realidades
culturais,
complexa
em
mundos
simbólicos –, e, em contrapartida, assiste-se, por extensão,
a
uma
imensa
enterrando
máscara
suas
encobrindo
diferentes
de
visões,
sombras
esta
desenhando
um
face,
perfil
cultural unívoco e etnocêntrico. Máscara sem olhos para as
belezas do mundo. Aos poucos, o sonho da máscara cega faz com
que a face primitiva e rebelde de Caliban vá deixando de
existir.
Em princípio, pode parecer-nos que a funcionalidade da
máscara colonialista encontrar-se-ia na condição de assimilar
uma outridade – a face americana –, de criar fusões, de
assumir aglutinações e perdas, e, com isso, de se reformular
e
de
flexibilizar
os
seus
próprios
limites
e
campos
canônicos. Mas, com o decorrer do tempo, não é isso o que
acontece.
A
presença da máscara
sem
olhos representará a
memória de uma história cruel, bárbara e inominável. Após o
período das sondagens, os efeitos da Conquista efetivarão um
processo de descarnação das identidades culturais indígenas.
Entre
inumeráveis
exemplos
citemos,
apenas,
uma
passagem,
práticos e imediatamente utilizáveis”. (LÉVI-STRAUSS, Claude. Pensamento selvagem. Trad. Maria Celeste
8
relatada pelo Frei Bartolomé de Las Casas, a respeito das
barbaridades ocorridas na província da Nicarágua, por volta
do ano de 1522:
A maior das calamidades que despovoaram essa
Província
foi
a
licença
dada
por
esse
Governador aos espanhóis, de pedir escravos
aos caciques e senhores. Todos os meses
obtinham
do
governador
uma
licença
para
cinqüenta escravos que eram requisitados sob
ameaça de que, se não os dessem, fariam-nos
queimar vivos ou ser devorados pelos cães. E
como ordinariamente os índios não têm escravos
e é muito quando um cacique tem dois, três ou
quatro, eles se dirigiam a seus súditos e
tomavam primeiramente os órfãos e, em seguida,
a quem tivesse dois filhos pediam um, e a quem
tivesse três tomavam dois; e assim o cacique
os fornecia no número exigido pelo tirano, com
grandes prantos e gritos do povo: pois, ao que
parece, os índios amam seus filhos com
ternura8.
Por não conhecer, historicamente, o nome do pai, nem do
filho e de nenhum espírito santo, Caliban pertence ao espaço
dos povos oprimidos. Contudo, ainda que tenha sido caçado e
queimado vivo, devorado por cães e pisoteado por cavalos,
cortado e retalhado por espadas, arrebentado pelos estilhaços
do
ferro
e
da
pólvora,
ou
mesmo
combalido
por
doenças
infecciosas, Caliban resistiu. Por isso, sob o signo do verbo
encarnado,
identificamos
a
formação
de
uma
literatura
da Costa e Souza e Almir de Oliveira Aguiar. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, p. 35.)
LAS CASAS, Frei Bartolomé de. Brevíssima relação da destruição das Índias. O paraíso destruído. A
sangrenta história da conquista da América espanhola. Trad. Heraldo Barbuy.Porto Alegre: L&PM, 1985,
p.50.
8
9
calibanesca,
cuja
realização
da
maldição
traduz
sua
mais
profunda marca.
Vale lembrar, neste caso, que o escritor norte-americano
Edgar Allan Poe, em seu conto “A máscara da morte rubra”9,
efetiva
a
maldição
de
Caliban;
assim
como
também,
historicamente, o verbo ganha carne pelo agito rebelde dos
escravos negros e pelas guerras indígenas. Deveras, cada ação
contrária
à
dominação
colonialista
representará
uma
ação
calibanesca.
Bem, até o momento, resumimos a colonização da América
Latina sob a imagem de dois símbolos: Caliban e Máscara Sem
Olhos. Cabe esclarecer, contudo, que este segundo elemento
simbólico, Máscara Sem Olhos, não se limita, exclusivamente,
à extinção dos povos indígenas pela violência. A inexistência
do
indígena,
europeu,
objetivo
ainda
etnocêntrico,
se
cuja
desenhado
articula
intenção
pelo
por
era
um
projeto
projeto
promover
a
econômico
político
deculturação
indígena através da manipulação ideológica. Desta forma, a
história que anuncia a existência do continente americano
conta, à sua maneira, o que bem quer e o que mal pensa
compreender.
O
projeto
Máscara
Sem
Olhos
significa,
9
Neste conto de Poe, “A máscara da morte rubra”, o príncipe Próspero é morto por uma praga misteriosa, que
atinge a todos indistintamente. Ainda que Próspero tente fugir da tal praga, ela o encontra em um baile à
fantasia, na figura de um ente mascarado. O conto encerra com a morte do príncipe e a fantasia da morte rubra
caída, ao lado do corpo de Próspero, em um dos salões do castelo. (POE, Edigar Allan. “A máscara da morte
rubra” in: Ficção completa, poesia & ensaios.Trad. Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997).
10
portanto,
a
formulação
econômica
e
cultural
também
do
de
modelo
uma
cópia
europeu
nas
política,
colônias
americanas.
Uma passagem curiosa nos oferece o escritor cubano Alejo
Carpentier, em seu romance A harpa e a sombra. Tal passagem,
em
nosso
ponto
mencionado
identidades.
de
projeto
vista,
de
caracteriza
descarnação
Referimo-nos
ao
momento
e
o
de
em
prenúncio
do
encarnação
de
que
o
narrador-
personagem, Cristóvão Colombo, fala de seus sentimentos em
relação à descoberta da terra do novo mundo.
Diz ele, assim:
Havia que descobrir essa terra nova. Mas, ao
tentar
fazê-lo,
me
achei
diante
da
perplexidade de quem tem de dar nome a coisas
que devem ter nomes, posto que nada que não
tenha nome pode ser imaginado, mas esses nomes
me eram ignorados e eu não era um novo Adão,
escolhido por seu Criador, para dar nome às
coisas. Podia inventar palavras, certamente;
mas a palavra apenas não mostra a coisa, se a
coisa não é conhecida de antes10.
O processo de descarnação desdobra-se em um processo de
encarnação.
O fim da cultura nativa americana implica o
transplante da cultura do mundo civilizado para as Américas.
Por essas razões, aos nossos olhos, o mundo moderno nasce
autoritário
e
demoníaco;
ou
seja,
criando
uma
visão
10
O romance A harpa e a sombra discute o valor moral do descobrimento da América, a partir de um
julgamento feito ao seu descobridor, Cristóvão Colombo. Dividido em três partes, o autor do romance
oferece-nos, na segunda parte, um Colombo assumindo a narração do texto, para contar e, sobretudo,
confessar seus verdadeiros sentimentos em relação àqueles momentos tão profundamente revolucionários à
história da humanidade. (CARPENTIER, Alejo. A harpa e a sombra.. Trad. Reinaldo Guarany. Rio de
Janeiro: Bertrand, 1987, p. 99).
11
etnocêntrica
do
mundo
sob
realidades
apocalípticas.
signos
extermínio,
de
a
tutela
Neste
de
uma
sentido,
tortura,
em
racismo
e
geração
de
síntese,
os
autoritarismo
formarão a face mais trágica da base política no sistema
colonial
latino-americano.
algumas
linhas
de
Não
fronteira
obstante,
que
cabe-nos
separam
a
apontar
nossa
visão
calibanesca desse desolhar da máscara.
Reparamos que o conceito de moderno pode, no mínimo, ter
dois sentidos. Por um lado, realmente, ele é mesmo o mundo
expansionista
hegemonia
da
de
é
comercial
Mas,
cultura
moderno
sobreviver e
moderno
visão
cultural.
antagônica
conceito
da
resistir
abundância,
lucrativa
e
da
relendo
criticamente
calibanesca,
podemos
de
forma
ao
diferente.
choque
negação
entre
e
o
Ser
Eu
e
envolvimento.
busca
a
da
força
entender
o
moderno
é
o
Outro
–
A
história
literária tem narrativas próprias que ilustram esta questão.
Por causa delas, podemos apontar os conceitos da dúvida e da
dualidade
como
marcas
do
moderno.
Por
exemplo:
a
dupla
Quixote e Sancho representa o fim das idéias absolutas. Esse
romance
baliza
literária:
a
um
novo
palavra
conceito
de
profética.
verificação
Assim,
da
aparecem
obra
as
narrativas picarescas, tornando visíveis, mimeticamente, os
excluídos, os párias e os anti-heróis.
12
Por
tudo
conceito
de
isso
acreditamos
moderno
deva
que,
levar
na
em
América
conta
Latina,
duas
o
visões
políticas, elaboradas a partir de tudo o que foi mencionado
acima – a visão ocidentalizante e a visão calibanesca. Por um
lado, refletimos uma face copiada do modelo colonializador,
mas, por outro, expressamos a face plural de nosso hibridismo
étnico. Os povos ibéricos instituíram verdadeiras cruzadas
neste continente, a fim de que se pudesse, aqui, instaurar a
terra
utópica:
lucrativa
e
passiva.
Porém,
a
marca
da
outridade americana implica realidades diferentes e adversas
ao
processo
de
homogeneização
colonialista.
Em
termos
de
formação da identidade, é preciso compreender que a política
de
europeização
da
América
Latina
relativizou-se
com
a
existência, aqui, de uma pluralidade cultural e, também, com
a participação dos movimentos em busca de soberania política
e
artística.
Somos
desta
forma
modernos,
porque
somos
calibanescos; logo, somos o outro da história.
Oportunamente, chamamos a atenção, neste instante, para
um tipo de personagem que muito vem ajudar na compreensão da
identidade
latino-americana:
o
pícaro.
Surgido
entre
os
meados do século XVI e XVII, o pícaro foi criado na Espanha e
proibida sua circulação nas colônias, porque suas peripécias
contrastavam e ridicularizavam os feitos cavaleirescos e a
hipocrisia da sociedade burguesa. Uma forma de narrativa que
13
em
vez
de
relatar
“as
aventuras fantásticas
do cavaleiro
andante” ou de idealizar “inverossímeis pastores polidamente
apaixonados” – como diz o professor Mario Gonzales – , opta
por uma narração em primeira pessoa, acerca da vida de um
marginalizado em luta pela sobrevivência. Uma análise das
narrativas picarescas segue, necessariamente, uma trajetória,
cujos
passos
rastreiam
o
caminho
evolutivo
do
personagem
principal. A este ensaio, propriamente, interessa-nos pouco o
estudo valorativo desses textos, senão aproximar a figura do
pícaro à de Caliban. No decorrer do tempo, as transformações
históricas sofridas pelo pícaro implicam um acompanhamento
dos problemas modernos. Por tudo isso, pode-se até falar em
neopicaresca, sabendo que não se perde sua marca principal: o
sabor aguçado da paródia crítica à sociedade contemporânea.
Uma
das
características
principais
da
narrativa
picaresca, além do forte teor realista, é a preferência pelo
sujo, o abjeto, o plebeu. Esta preferência contrapõe-se, é
claro,
a
exagerada
idealização
da
vida
dos
romances
de
cavaleria e pastoril. Pondo a sociedade sob o ponto de vista
do
pícaro,
este
sujeito
bastardo,
abandonado
à
sorte,
necessitando aguçar a inteligência para sobreviver, sempre
espreitado pela fome, ela, a sociedade, é descrita pelo olhar
dos deserdados da sorte, pela gente vagabunda. Por tudo isso,
14
tal descrição forma um verdadeiro relato humano, cheio de
interesse e vida.
O desenho desse aspecto da realidade, mostrado pelas
narrativas
modernos,
picarescas,
na
medida
inaugura
em
que
a
linhagem
atravessa
a
dos
romances
fronteira
social
palaciana e chega à esfera periférica das classes deserdadas.
Ser moderno, pois, é revelar a abundância do mundo; ou seja,
mostrar aquilo que nos nega e nos envolve. Moderno é o outro.
Não
obstante,
não
nos
esqueçamos
que
esse
“outro”
pertence ao espaço da exclusão. Ao se estudar a história da
América
Latina,
devemos
levar
em
consideração
sua
real
dualidade. Em um aspecto, tem-se a voz banida do outro; em
outro aspecto, tem-se a tradição escritural que os europeus
dos séculos XV e XVI trouxeram para cá. Esta tradição nutriase de quatro arquivos: direito, teologia, administração e
historiografia. Nos dois primeiros, associados – o direito e
a teologia -, estão os fundamentos ideológicos da pretendida
superioridade dos europeus, a respeito dos demais povos do
mundo. Pela escritura administrativa, o fim das sociedades
sem Estado, das leis sem coerção, da palavra verdadeira do
chefe à tribo. Por fim, pela escritura historiográfica, a
projeção do imaginário europeu nas novas terras descobertas.
E,
neste
caso,
referimo-nos
aos
mitos,
às
lendas,
às
15
quimeras, assuntos do maior interesse para os rastreadores de
fortuna e para os caçadores de sonho.
Silenciada,
a
América
recebe,
então,
o
nome
que
não
tinha, e vê seus campos abertos às figuras que não existiam.
Nasce
a
Terra
da
Utopia
e,
nela,
toda
uma
população
de
monstrengos: gigantes, macacos que cantam, homens com orelhas
que se arrastam pelo chão, outros com cabeças de cães e ainda
outros acéfalos, sem contar aqueles cujos rostos encontram-se
na altura do ventre e do tórax. Neste sentido, segundo Miguel
Rojas Mix, é difícil distinguir entre o que é monstro e o que
é homem selvagem; afirma ele:
Ambos possuem todos os defeitos que
execra a sociedade civilizada, ambos
representam a natureza frente à cultura.
A monstruosidade não existe mais que com
relação a uma ordem estabelecida, por
referência a uma cultura. É a identidade
do outro11.
Na
Europa
ainda
se
pensa
que,
tendo
sido
criados
à
imagem e semelhança de Deus, tudo o que se apartar de sua
representação
será
monstruoso.
O
homem
ocidental
é
o
paradigma: ao menos o mais perfeito. Como se pensa que o
corpo é reflexo da alma, todo ser “diferente” é considerado
daninho ou diabólico.
Na Terra da Utopia – terra dos papagaios –, Caliban
volta
a
desenterrar
outro
espelho
e
vê
o
fim
do
mundo.
16
Descarnada por projetos religiosos e comerciais, a América
conheceu a farsa e a violência. A manipulação ideológica e a
censura
transitam
no
mesmo
espaço
em
que
circulam
a
aculturação e o genocídio. Cristóvão Colombo pensou a América
como
o
Éden,
o
Paraíso
Terrestre; mas
depois
sonharam-na
diferente. A figura do índio idílico em seu Éden tropical dá
lugar
à
do
antropófago
no
Inferno
Verde.
Tomados
como
mercadorias, os valores indígenas sempre oscilaram.
Mas,
como
a
utopia
sempre
foi
aqui,
afirmaria
o
professor Darcy Ribeiro, a respeito desses povos explorados e
massacrados:
Lavados
das
feridas
da
exploração,
curados dos vexames da opressão, eles se
reconstruirão como culturas autênticas
para
florescer
outra
vez
como
civilizações autônomas12.
Neste
símbolo,
sentido,
propomos
impostas a nós.
além
também
de
propormos
algumas
Caliban
reelaborações
como
nosso
conceituais
É a dialética de Caliban – assimilar como
honra aquilo que o colonialismo considerava como injúria –
ser
negros,
inconfidentes,
cimarrones, crioulos, mestiços,
latino-americanos. Conforme afirma Roberto Fernández Retamar,
em
seu
condição
livro
de
Caliban
Caliban
e
outros
significa
ensaios:
repensar
“Assumir
nossa
nossa
história
a
11
ROJAS MIX, Miguel. “Los monstruos: mitos de legitimación de la conquista?” in: América Latina –
palavra, literatura e cultura.. Org. Ana Pizarro. SP: Fundação Memorial da América Latina, 1993, p. 127.
12
RIBEIRO, Darcy. América Latina – a pátria grande.RJ: Guanabara, 1986, p.75.
17
partir
do
lado,
outro
do
ponto
de
vista
do
outro
protagonista”13.
Essas nossas breves palavras buscaram fazer, na medida
do
possível,
uma
intelectuais
revigora
da
reflexão
América
a história
a
respeito
Latina.
deste
A
do
nosso
natureza
continente.
papel
de
calibanesca
Sua profecia
e,
ao
mesmo tempo, seu abandono social fazem de nós – calibans – a
imagem
dúbia
dos
questões
como
senhores
do
a
nosso
caminhos
de
nossa
destino,
que
tomamos
identidade.
como
sempre
todos,
diante
Contudo,
acreditou
de
seremos
Darcy
Ribeiro, como sempre acreditamos todos nós.
Paulo César Prazeres Moura
Dr. Literatura Comparada
U.F.R.J./2001
13
FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. Caliban e outros ensaios. Trad. Maria Elena Matte Hiriart e Emir
Sader. São Paulo: Busca Vida, 1988, pp.32-3.
18
BREVE CURRÍCULO
PAULO CÉSAR PRAZERES MOURA é ator, diretor e escritor
de teatro. Além disso, é mestre e doutor em Letras, na
área de Literatura Comparada, pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro.
No
magistério,
Pedagogia
Estado
da
do
atualmente,
Fundação
Rio
de
de
trabalha
Apoio
Janeiro,
na
à
na
Faculdade
Escola
cidade
de
Técnica
Campos
de
do
dos
Goytacazes.
19