justiça de transição na guatemala: um panorama sobre a reforma da
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justiça de transição na guatemala: um panorama sobre a reforma da
TALLER (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 4, N° 5 (2015) ISSN: 0328-7726 JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA GUATEMALA: UM PANORAMA SOBRE A REFORMA DA POLÍCIA NACIONAL E SEUS DESDOBRAMENTOS ANELISE SUZANE F. COELHO1 e ANA CAROLINA REGINATTO2 Resumo: À luz das discussões sobre o conceito de justiça transicional, o objetivo deste artigo é traçar um panorama sobre a reforma do setor de segurança na Guatemala, em especial da Polícia Nacional, após o fim dos Acordos de Paz em 1996. Tema central do processo transicional, onde medidas políticas e jurídicas características de uma justiça de transição são adotadas para promover uma reforma institucional do Estado sob parâmetros mais democráticos, a reforma da segurança, no caso guatemalteco, alcançou outros desdobramentos com a descoberta fortuita de seus arquivos e o incipiente processo judicial de seus ex-agentes – o que também será objeto de nossa análise. Palavras-chave: Guatemala; Justiça de Transição; Reformas; Polícia Nacional Resumen: A la luz de los debates sobre el concepto de la justicia transicional, el objetivo de este artículo es dar una visión general sobre la reforma del sector de seguridad en Guatemala, en particular la Policía Nacional, después de los Acuerdos de Paz en 1996. Tema principal del proceso de transición, donde se toman medidas políticas y jurídicas características de una justicia de transición para promover la reforma institucional del Estado en virtud de parámetros más democráticos, la reforma de la seguridad, el caso de Guatemala, llegó a otros desarrollos con el descubrimiento fortuito de sus archivos y el incipiente proceso judicial de sus antiguos agentes - que también serán objeto de nuestro análisis. Palabras Llave: Guatemala, Justicia de Transición, Reformas, Policía Nacional 1 Anelise Coelho é Mestre em História e Culturas Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e atualmente cursa o doutorado em História da América Latina na Universidade do Texas em Austin. Contato: [email protected] 2 Ana Carolina Reginatto é Mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e atualmente cursa o doutorado pela mesma instituição. Contato: [email protected] Recibido: 10 de diciembre de 2014 | Aceptado: 05 de marzo de 2015. [9] TALLER (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 4, N° 5 (2015) ISSN: 0328-7726 Abstract: The objective of this article is to give an overview on the reform of the security sector in Guatemala, particularly the National Police, in the aftermath of the Peace Accords off 1996. Main theme of the transitional process where political and legal characteristics of a transitional justice are taken to promote institutional reform of the State under more democratic measures parameters, security reform, in the Guatemalan case, reached other developments with the fortuitous discovery of your files and the incipient lawsuit of his former agents - which will also be the object of our analysis. Key Words: Guatemala, Transitional Justice, Reforms, National Police CÓMO CITAR ESTE ARTÍCULO: Coelho, Anelise Suzane, Reginatto, Ana Carolina (2015) “Justiça de Transição na Guatemala: um panorama sobre a reforma da polícia nacional e seus desdobramentos”. Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 4, N° 5, pp. 9-23. “Los ojos de los enterrados se cerrarán juntos el día de la justicia, o no los cerrarán” - Miguel Ángel Astúrias “De que se fala, quando se diz justiça de transição?” A pergunta retórica de Glenda Mezarobba,3 nos serve de ponto de partida para a compreensão da amplitude do fenômeno e sua elaboração teórica como objeto de estudo das ciências humanas. Segundo a autora, as origens do conceito podem ser encontradas após o fim da Segunda Guerra Mundial e a posterior instalação do Tribunal de Nuremberg, além das medidas adotadas para a desnazificação do Estado alemão e a elaboração de uma legislação para reparar as vítimas do nazismo. Tais julgamentos e programas adotados tiveram um profundo impacto sob a legislação internacional, abrindo caminho para a estruturação de práticas jurídicas e políticas específicas para os casos de violações sistemáticas dos direitos humanos pelos Estados. Foi no último quartel do século XX, entretanto, que o arcabouço jurídico do conceito ganhou corpo, especialmente com os desafios suscitados pelo fim das ditaduras do sul da Europa, da América Latina, do regime do apartheid na África do Sul e da “cortina de ferro” no Leste europeu. Nesse contexto, os temas ligados ao estudo da elaboração de medidas restaurativas por sociedades (em momentos de transição de regime), que vivenciaram experiências traumáticas deixaram de ser relacionados à área de pesquisa da 3 Glenda Mezarobba “De que se fala, quando se diz “Justiça de Transição”? em BIB. n° 67, 1° semestre de 2009, pp. 111-122. Disponível em: <http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=145&limit=20&limitst art=0&order=date&dir=DESC&Itemid=397> . Acesso em: 16 Ago. 2014. [10] TALLER (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 4, N° 5 (2015) ISSN: 0328-7726 “transitologia” ou do estudo das mudanças de regime político, para ganhar status de objeto de análise específico de cientistas sociais, políticos e, posteriormente, de historiadores. Dessa forma, como afirma Mezarobba, a noção de justiça de transição foi formulada como “(...) área de atividade e pesquisa voltada para a maneira como as sociedades lidam com o legado de violações de direitos humanos, atrocidades em massa ou outras formas de trauma social severo (...)”. 4 Nesse sentido, falamos de violações sistemáticas de diversos direitos (individuais e coletivos) e da concomitante ascensão no debate público da necessidade de justiça e reparação, em períodos de transição para a democracia ou de fim de conflitos bélicos. De acordo com Ruti Teitel, falamos, portanto, da “(...) concepção de justiça associada a períodos de mudança política, caracterizada por respostas legais para confrontar os crimes dos regimes repressivos anteriores”. 5 Entretanto, como nos alerta Paul Van Zyl, a justiça de transição não se caracteriza por uma forma especial de justiça, e sim, por um conjunto de práticas e dispositivos jurídicos estabelecidos na tentativa de dar conta à reparação dos direitos das vítimas e esclarecer os crimes cometidos, tendo em vista a reconciliação nacional. 6 Os processos de transição de regime já referidos e o desenvolvimento da jurisprudência internacional, com a criação de tribunais penais internacionais ad hoc e permanentes,7 impulsionaram a formulação efetiva de um arcabouço de obrigações para os Estados relacionado à necessidade de restituição de direitos às vitimas. Segundo Juan Méndez, tais obrigações giram em torno do processo e punição dos perpetradores, da revelação da verdade para toda a sociedade, do oferecimento de reparações às vítimas e familiares e do expurgo dos envolvidos nas violações das esferas de poder e dos órgãos estatais. Todas elas estariam, portanto, relacionadas ao direto à justiça, à verdade, à reparação e ao efetivo Estado de direito, através de reformas institucionais. 8 Sem dúvidas, a depuração e a reforma das instituições promovem uma restruturação do Estado à democracia, sendo um passo relevante para a superação das práticas autoritárias. Dessa forma, o desmantelamento do aparato de repressão é um ponto imprescindível para a justiça de transição e para o fortalecimento democrático. Em geral, as mudanças no setor de segurança estão inseridas dentro desse contexto de reformas do 4 Idem, p. 111. Tradução livre de: “(...) as the conception of justice associated with periods of political change, characterized by legal responses to confront the wrongdoings of repressive predecessor regimes”. Ruti Teitel “Transitional justice genealogy”, em Havard Human Rights Journal, Spring, Cambridge, n° 16, 2000. Em: <http://www.hcdh-togo.org/documentation/hcdh-26082011151336-tjgenealogy.pdf>. Acesso em agosto de 2014. 6 Paul Van Zyl. “Promovendo a Justiça Transicional em sociedades pós-conflito”, em Revista Anistia Política e Justiça de Transição, n° 1, 2009. 7 Aqui nos referimos, especificamente, aos tribunais para a antiga Iugoslávia e Ruanda, além da recente criação do Tribunal Penal Internacional. 8 Juan E. Méndez. “Accountability for past abuses”, em Human Rights Quarterly, 19(2), 1997. [11] 5 TALLER (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 4, N° 5 (2015) ISSN: 0328-7726 Estado, em transição política e processo de democratização, onde o principal objetivo é gerar condições para a governabilidade dentro de um novo marco democrático. Para além do mapeamento da adoção (ou não) desses procedimentos, o estudo das formas como as sociedades lidam com as violações sistemáticas de direitos em momentos de transição deve ter sempre em perspectiva o típico caráter problemático dos processos transicionais. A correlação de forças políticas torna-se protagonista para o entendimento de avanços e retrocessos, da natureza própria do processo de transição sobre o qual nos debruçamos. Sobre qual transição falamos? O contexto transicional guatemalteco foi marcado pelos constantes desafios colocados à ordem pelo conflito armado interno entre as forças guerrilheiras e o Exército. Foi à luz das primeiras ameaças revolucionárias, ainda na década de 1960, que um Estado contrainsurgente fora forjado, sempre com o apoio logístico e financeiro dos Estados Unidos. A partir do golpe do general Enrique Peralta Azurdia, em 1963, um novo paradigma de segurança foi formulado sob a égide da Doutrina de Segurança Nacional e do incremento dos aparelhos de repressão, cujo principal triunfo nesse momento foi desarticular o incipiente movimento guerrilheiro. Nesse contexto, uma política contrarrevolucionária foi instituída com o Exército controlando a burocracia estatal e com o reforço (ou a criação) de estruturas de repressão para combater os “inimigos internos”. Uma rede de informações e aparatos de coerção foi criada, formando um sistema integrado que unia o Executivo, órgãos de inteligência do Exército e forças policiais tradicionais. Politicamente uma “fachada democrática” foi erguida a partir da promulgação da nova Constituição de 1965 e do retorno de eleições livres. A manutenção de alguns direitos, no entanto, foi sistematicamente ameaçada por práticas repressivas. O próprio sistema eleitoral, apesar de pleitos regulares e do pluripartidarismo, foi marcado por sucessivas fraudes eleitorais onde o Ministro da Defesa do governo de turno era sempre eleito presidente. Nesse período, a aliança entre militares, oligarquia e partidos de extrema direita, dirigiu um processo de modernização conservador que propiciou mais de uma década de constante crescimento econômico. Esse modelo de reprodução capitalista sustentou-se numa superexploração da força de trabalho com constante arrocho salarial e perda do poder aquisitivo dos trabalhadores. Um estudo de 1982 promovido pela Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina (Cepal) indicou que 79% da população guatemalteca vivia em condições de pobreza, sendo 44% na extrema pobreza. O processo de concentração agrária também se aprofundou e, no final dos anos 1970, mais de 2 milhões de pessoas viviam em minifúndios incapazes de assegurar o indispensável para a subsistência. 9 9 Ver Figueroa Ibarra. “El recurso del miedo: Estado y terror en Guatemala”, F&G editores, Guatemala, 2011. [12] TALLER (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 4, N° 5 (2015) ISSN: 0328-7726 Tal modelo político e de acumulação econômica começou a dar claros sinais de esgotamento. As constantes fraudes eleitorais passaram a radicalizar setores historicamente mais moderados e que há uma década aceitavam participar do jogo político-partidário do país. A crise internacional e a explosão social marcada pela mobilização massiva de trabalhadores urbanos e rurais, greves nacionais, intensos protestos e a rearticulação do movimento guerrilheiro nas zonas rurais do país no final da década de 1970, provocou um descontentamento generalizado entre importantes setores econômicos. Foi em reposta a essa crise que um grupo de militares tomou o poder em 1982, propondo uma reorganização da filosofia de atuação do Exército que possibilitasse a derrota do movimento guerrilheiro e um processo de transição política seguro. Segundo Jennifer Schirmer, essa nova estratégia, organizada a partir do Plano Nacional de Segurança e Desenvolvimento (PNSD), reconfigurou a Doutrina de Segurança Nacional, fortalecendo a importância institucional do Exército na vida pública do país através do controle do processo de transição.10 Para tanto, os militares tiveram que construir uma nova legitimidade onde o discurso democrático era apropriado na medida em que se colocavam como os únicos condutores capazes de depurar a política nacional em prol de uma democracia futura. 11 Com a promulgação do PNSD em maio de 1982, os militares apresentavam-se como os reconstrutores da nação na luta contra a corrupção e a desigualdade econômica, afirmando o compromisso de promover uma integração participativa dos diferentes grupos étnicos da Guatemala e restabelecer, o mais rápido possível, a ordem constitucional e o livre jogo democrático. 12 Entretanto, se por um lado, em menos de um ano, o governo adotou medidas para a liberalização do regime, como a suspensão do estado de sítio, a reestruturação do sistema eleitoral e o fim dos Tribunais Especiais para crimes políticos, por outro, entre 1982-1983, os índices de violência política atingiram seu ápice. Na guerra contra o movimento guerrilheiro os principais atingidos foram os indígenas, vistos como a base social de apoio à guerrilha. Foram mais de 600 massacres, o que levou a comissão da verdade guatemalteca 13 a afirmar que agentes do Estado “en el marco de operaciones contrainsurgentes realizadas entre los años 1981 y 1983, 10 Schirmer, Jennifer G. The guatemalan military project: a violence called democracy, Pennsylvania Studies in Human Right, Philadelphia University of Pennsylvania Press, 1998. 11 Sobre o tema ver Julieta Rostica. “Las legitimaciones de la ditadura militar de Guatemala (1982-1985), em Aletheia, vol. 4, n° 8, 2014. 12 Gilles, Bataillon. Génesis de las guerras intestinas en América Central, Fondo de ultura Economica, Mé ico, 2008. 13 A Comissão para o Esclarecimento Histórico (CEH), estabelecida em cumprimento aos termos firmados entre as partes em um dos Acordos de Paz, iniciou suas atividades em 1997 com apoio financeiro internacional. Em 1999 publicou seu informe final, Guatemala memoria del silencio, contabilizando o horror através de 7.338 depoimentos com relatos de mais de 7.500 casos de violação aos direitos humanos, totalizando 42.275 vítimas apresentadas de forma individual ou coletivamente pelos testemunhos. As forças de segurança do Estado são responsabilizadas por 93% das violações registradas. Já as organizações guerrilheiras são citadas em 3% dos relatos de violência. Outros 4% foram atribuídos a outros grupos armados ou pessoas sem identificação. [13] TALLER (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 4, N° 5 (2015) ISSN: 0328-7726 ejecutaron actos de genocidio en contra de grupos del pueblo maya en las cuatro regiones analizadas.”.14Além disso, após os massacres a maioria das comunidades foi militarizada pelo recrutamento forçado para as Patrulhas de Autodefesa Civil (PAC). Com as vitoriosas campanhas militares, o passo seguinte da estratégia foi convocar a Assembleia Constituinte em 1984 e eleições presidenciais para o ano seguinte. A promulgação da nova Constituição e a eleição de Vinício Cerezo pela Democracia Cristã deram nova legitimidade aos militares, afinal, a volta de um regime democrático constitucional e a eleição de um civil, depois de mais de uma década de governos chefiados por figuras castrenses, neutralizava o discurso da débil oposição popular e reforçava a necessidade de participação ativa dos militares na vida política do país, uma vez que, os grupos guerrilheiros recusavam-se a depor as armas. Nesse cenário, alguns grupos da sociedade civil começaram a se organizar, sob o marco da defesa dos direitos humanos, para exigir o esclarecimento dos crimes cometidos e o fim das violações sistemáticas.15 As primeiras disputas sobre o passado e sua permanência no presente começaram a emergir. Exército e governo exaltavam o sucesso da transição política e o retorno ao regime democrático e a necessidade de se superar os eventuais excessos que ficaram no passado, enquanto as primeiras organizações de familiares e de direitos humanos buscavam denunciar e dar publicidade as violações e desaparecimentos. Foi somente em 1991, entretanto, que o governo guatemalteco aceitou negociar com as forças guerrilheiras para pôr fim ao conflito. Os Acordos de Paz, como ficaram conhecidos os documentos assinados pelas partes entre 1991-1996, reuniram nas mesas de negociação além do governo, representantes militares e da guerrilha, agrupados pela Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG). 16 Os encontros realizaram-se fora do país e, a partir de 1994, contaram com a mediação da Organização das Nações Unidas (ONU). Os termos firmados tangenciaram temas caros a justiça de transição, abordando não só a criação de uma comissão da verdade e uma lei de anistia, mas também, a reestruturação do Estado guatemalteco à democracia e o desmantelamento do aparato de repressão – objeto de nossa análise. O papel da PN no conflito armado e a reforma na segurança nacional pós-Acordos de Paz 14 Comisión para el Esclarecimiento Histórico. Guatemala: memoria del silencio, Guatemala: CEH, 1999. Pg.116 15 Notadamente a atuação pioneira de grupos de mulheres ao reivindicar o aparecimento de seus entes queridos, ganhou destaque. Podemos citar, como exemplo, a formação do Grupo de Apoio Mútuo (GAM), da Coordenação Nacional de Viúvas da Guatemala (CONAVIGUA) e da Associação de Familiares de Desaparecidos da Guatemala (FAMDEGUA). Diante da quase total desarticulação do movimento popular (principalmente sindical), através das atividades desses novos grupos e da atuação de membros da Igreja Católica exilados no México, a bandeira dos direitos humanos tornou-se o principal marco de atuação coletiva e de oposição à violência de Estado que ainda perdurava. Roddy Brett. Movimiento social, etnicidad y democratización en Guatemala, 1985-1996. Guatemala: F&G Editores, 2006. 16 Criada em 1982, a URNG reuniu as diferentes organizações guerrilheiras do país como uma coordenação militar e político-diplomática. [14] TALLER (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 4, N° 5 (2015) ISSN: 0328-7726 O desmantelamento do aparato de repressão é um ponto imprescindível para a justiça de transição. Em geral, as mudanças no setor de segurança estão inseridas dentro de um contexto de reformas de Estado, em transição política e processo de democratização, onde o principal objetivo deve ser promover uma depuração institucional que permita o afastamento de antigos violadores de suas atividades repressivas. Além disso, segundo María González Chávez, 17 a reforma do setor de segurança deve abranger três pontos fundamentais: reformulação doutrinária, institucional e novas interações entre Estado e sociedade. Segundo a autora, as mudanças doutrinárias devem ter como princípio não a defesa do Estado, mas de seus cidadãos no respeito às práticas democráticas e aos direitos humanos, questões caras para o efetivo Estado de Direito. A visão expressa pela Doutrina de Segurança Nacional, colocada em prática por diversos países latino-americanos, deve ser superada e reformulada no sentido de oferecer proteção e bem-estar ao cidadão, articulando segurança e desenvolvimento humano. A reformulação institucional deve partir do estabelecimento de uma política pública de segurança que garanta a supremacia do poder civil, com a adequação de recursos e funções das unidades de segurança aos mecanismos de controle democráticos. As novas interações entre Estado e sociedade, por sua vez, deverão ser garantidas com a participação social na formulação da política de segurança, bem como, no seu controle e fiscalização. A Polícia Nacional (PN) guatemalteca foi fundada como a primeira instituição policial unificada e de alcance nacional no país, em 1925. Suas atribuições fundamentais eram: manter a ordem pública, proteger as pessoas e propriedades, e cooperar com os tribunais de justiça na prevenção e investigação de crimes.18 Entretanto, o caráter civil original da PN foi descaracterizado em 1931 com o início da ditadura de Jorge Ubico y Castañeda (1931-1944), quando um intenso processo de militarização estatal refletiu na atividade policial. Foi na era de Ubico que um dos principais braços da repressão da PN foi criado, a Policía Judicial, ou simplesmente La Judicial, a polícia política ubiquista.19 A atuação da Judicial foi interrompida por 10 anos, consequência direta do triunfo da Revolução Guatemalteca em 1944.20 Nesse período, a polícia Judicial foi desmobilizada e o seu pessoal afastado de toda atividade de segurança pública. Não obstante, com a 17 María González Chávez. Reforma del sector de seguridad y justicia transicional en Guatemala, desde la perspectiva sistémica de los derechos humanos, México, FLACSO, 2008. 18 Michael McClintock. The american connection: volume 2 state terror and popular resistance in Guatemala. Zed Books, London, 1985. pg.13. 19 Idem. pg. 17 20 No dia 20 de Outubro de 1944, após semanas de manifestações públicas de estudantes, professores, e trabalhadores urbanos contra o autoritarismo do governo, um grupo de jovens militares guatemaltecos tomou o poder. Tal evento ficou marcando na história do país como a Revolução Guatemalteca. O novo governo comprometeu-se em seguir um rumo democrático e a promover reformas sociais com o objetivo de diminuir as desigualdades sociais no país. Ver: Luis Cardoza y Aragón. La revolución guatemalteca. Editorial del Pensativo, Guatemala. 1994. [15] TALLER (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 4, N° 5 (2015) ISSN: 0328-7726 deposição do governo de Jacobo Arbenz em 1954, após um golpe de estado orquestrado pela Agência de Inteligência Estadunidense (CIA), aliada a setores conservadores da Guatemala,21 a polícia guatemalteca foi novamente reformada e voltou a caracterizar-se pela atuação política. Dentre as primeiras medidas adotadas destacamos a restauração da Judicial e a recontratação de diversos membros antigos da organização, que foram então reinseridos na nova PN.22 Fica evidente que o golpe de 1954 marcou o início da atuação da Polícia Nacional sob uma ótica política, voltada para o combate ao inimigo interno e pela destruição de agentes subversivos. O foco na perseguição política e a militarização institucional se intensificaria nos anos 1960, com o advento do conflito armado e do golpe militar de Peralta Azurdía em 1963. Durante o conflito, as estruturas internas da Policia Nacional foram fortemente militarizas (hierarquicamente, e através da preferência por pessoal com experiência militar prévia), e voltadas para o controle subversivo, em detrimento do combate à criminalidade comum.23 O estudo promovido pela Comissão para o Esclarecimento Histórico sobre as violações dos direitos humanos durante o conflito armado concluiu que a Polícia Nacional foi o principal braço da repressão nos centros urbanos e responsável direta por milhares de casos de violações dos direitos humanos na Guatemala.24 Seu papel repressor intensificou-se nos anos 1970 e 1980, quando a PN se especializou em vigiar a população e os movimentos sociais organizados (sindicatos de trabalhadores, estudantes, jornalistas, professores, oposição política, etc.) e a capturar, torturar e desaparecer indivíduos que de alguma forma ameaçassem o domínio militar, atingindo seu auge durante a administração do general Romeo Lucas Garcia.25 Ao avaliar a atuação da Polícia Nacional, a Comissão para o Esclarecimento Histórico (CEH) alertou para a necessidade de mudanças profundas nas práticas e na mentalidade institucional. Cinco pontos principais foram elencados como necessários para a adaptação da polícia ao ambiente pós-conflito: a reformulação da doutrina das forças de segurança, o controle interno, a participação dos povos indígenas, a mudança na alocação de recursos e o fortalecimento do carácter civil da PN. A CEH recomendou uma total restruturação na profissionalização, no respeito às leis, à democracia e aos direitos humanos, e a promoção de uma cultura de paz dentro das forças de segurança do país. Para que tais adequações vingassem era necessário o rompimento completo da PN com as forças armadas, através de uma profunda reforma estrutural.26 21 Para mais informaçãoes sobre o golpe ver: Nick Cullather. Secret history: the CIA´s classified account of its operation in Guatemala, 1952-1954. Stanford University Press, California. 2006. 22 Michael McClintock. The american connection: volume 2 state terror and popular resistance in Guatemala. Zed Books, London. 1985. Pp. 32-37. 23 Histórico, Guatemala Policía Nacional Archivo. Del silencio a la memoria: revelaciones del archivo histórico de la policía nacional. Guatemala, C.A.: Archivo Histórico de la Policía Nacional, 2011. 24 omisión para el Esclarecimiento Histórico. “Guatemala: memoria del silencio”. Pg. 78-80 25 Kristen Weld. Paper cadavers: the archives of dictatorship in Guatemala. Duke University Press Books. Durham, 2014. Pg. 26 Comisión para el Esclarecimiento Histórico (Guatemala). Guatemala: memoria del silencio. Pg. 78-80 [16] TALLER (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 4, N° 5 (2015) ISSN: 0328-7726 A reforma foi iniciada a partir do Acuerdo sobre fortalecimento del poder civil y Función del Ejército en una Sociedad Democratica, assinado no Distrito Federal do México em 19 de Setembro de 1996, que definiu a Polícia Nacional Civil como principal responsável pela manutenção da segurança interna. As partes signatárias do acordo concordaram que: 21. La protección a la vida y de la seguridad de los ciudadanos, el mantenimiento del orden público, la prevención e investigación del delito y una pronta y transparente administración de justicia no pueden garantizarse sin la debida estructuración de las fuerzas de seguridad pública. El diseño de un nuevo modelo y su implementación son una parte fundamental del fortalecimiento del poder civil. 22. En consecuencia, es necesario e impostergable la reestructuración de las fuerzas policíacas existentes en el país en una policía Nacional Civil que tendrá a su cargo el orden público y la seguridad interna. Esta nueva policía deberá ser profesional y estar bajo la responsabilidad del Ministerio de Gobernación.27 Ao assinar os Acordos de Paz o governo guatemalteco reafirmou sua aderência aos princípios designados para garantir e proteger a observação completa dos direitos humanos, seu desejo político de aplicá-los, e o comprometimento em promover e aperfeiçoar normas e mecanismos de proteção destes direitos. Visando a aplicação de tal compromisso, foram acordados o respeito e a liberdade do judiciário, do Conselho de Direitos Humanos e do escritório da Procuradoria Pública, cuja atuações deveriam ser apoiadas e fortalecidas. As partes aceitaram a necessidade de promover ações firmes contra a impunidade e que o governo não poderia adotar legislações ou qualquer outro tipo de medida cuja finalidade fosse impedir o processo penal e a punição de pessoas responsáveis por violações aos direitos humanos. Por fim, nenhuma lei, ou jurisdição especial poderia ser invocada para impedir a punição de violações aos direitos humanos.28 Outra medida de extrema importância foi a criação da Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala (CICIG), como parte do Acordo de Paz. A CICIG, ratificada pela Corte de Constitucionalidade em maio de 2007, atua como órgão independente de caráter internacional cuja finalidade é apoiar o Ministério Público, a Polícia Nacional, e outras instituições do Estado, em investigações de delitos cometidos por integrantes de grupos de segurança ilegais e aparatos clandestinos de segurança, assim como em ações gerais de desarmamento de tais grupos. O papel da CICIG também inclui o apoio a investigações e ao processo penal de um número limitado de casos de maior complexidade. 29 27 “Acuerdo sobre fortalecimiento del poder civil y función del ejército en una sociedad democratica”. United Nations.http://www.guatemalaun.org/bin/documents/Acuerdo%20fortalecimiento%20poder%20civil%20y %20funci%C3%B3n%20del%20ej%C3%A9rcito.pdf Disponível em dezembro de 2014. 28 “Peace Agreements digital collection. Guatemala, comprehensive agreement on human rights.” USIP. http://www.usip.org/sites/default/files/file/resources/collections/peace_agreements/guat_hr_940329.pdf Disponível em dezembro de 2014. 29 “Acuerdo entre la organización de las naciones Unidas y el gobierno de Guatemala relativo al estabelecimiento de una comisión internacional contra la impunidad en Guatemala ( i iG).” Guatemala. http://www.cicig.org/uploads/documents/mandato/acuerdo_creacion_cicig.pdf Disponível em dezembro de 2014. [17] TALLER (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 4, N° 5 (2015) ISSN: 0328-7726 As reformas de segurança na Guatemala encontraram muitos aliados internos e externos, mas também oposições e barreiras difíceis de serem ultrapassadas. Se por um lado, os acordos propuseram mudanças estruturais necessárias e diversos organismos internacionais se dispuseram a financiar estas transformações, como por exemplo, a Organização das Nações Unidas (ONU) e a União Europeia (UE), por outro, barreiras políticas internas impediram mudanças essenciais. Por exemplo, enquanto a UE financiou melhorias estruturais na Academia de Polícia e a promoção de cursos de reciclagem policial no campo de direitos humanos para todos os membros da força policial, Glebeek destaca que internamente, “quase nenhum esforço de e tirpar da nova instituição violadores dos Direitos Humanos ou membros corruptos da PN foram feitas”. 30 Além disso, com a desmobilização de outros setores de segurança, como a Polícia Militar Ambulante, muitos de seus antigos membros acabaram sendo incorporados à nova Polícia Nacional Civil (PNC). Desta forma, a retórica da promoção dos direitos humanos parece ter sido repetidamente sabotada pelo alto escalão da PNC e por forças políticas desinteressadas no tema. Outro problema para a implementação das reformas foi a derrota, em maio de 1999, de uma consulta popular, na qual as reformas constitucionais centrais para uma mudança concreta deveriam ser aprovadas pela maioria da população. Com o embargo deste projeto, falhou a tentativa de total desvinculação das forças armadas e da polícia, e o Exército guatemalteco continua a ter prerrogativa constitucional para interferir em assuntos de segurança interna, minando assim a principal recomendação da CEH em relação às forças de segurança pública. 31 A impossibilidade do esquecimento: a descoberta do Arquivo da Polícia Nacional A Polícia Nacional, como instituição, também está envolvida em outra polêmica que diz respeito à justiça de transição: o acesso aos arquivos da repressão na Guatemala. A descoberta de um acervo monumental sobre a atuação da PN desde o século XIX abalou o país politicamente, oferecendo múltiplas oportunidades para o avanço do processo transicional, como veremos. O acesso à documentação oficial do Exército e demais órgãos de repressão foi, historicamente, sempre um desafio à sociedade civil na Guatemala. Em sua história política recente tal impedimento tomou proporções maiores publicamente com o retorno ao regime civil, em 1985, e com o processo de pacificação posterior. A restrição imposta aos familiares em busca de informações sobre desaparecidos políticos e mesmo às investigações da Comissão para o Esclarecimento Histórico, tornou a luta pelo acesso à informação em bandeira política. Nesse sentido, vale ressaltar que a demanda por acesso 30 Tradução livre. “Hardly any efforts of purging the new institution from human rights violators or corrupt members of the PN were undertaken,” em: Marie-Louise Glebbeek “Police reform and the peace process in Guatemala: the fifth promotion of the national civilian police.” Bulletin of Latin American Research. 2001. Pg. 439 31 Idem. Pg. 440. [18] TALLER (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 4, N° 5 (2015) ISSN: 0328-7726 aos arquivos da repressão constitui-se como um aspecto fundamental da justiça transicional, no que diz respeito à restituição do direito à verdade e à memória. Como afirma Ludmila Catela: Abrir los acervos al público y recuperar elementos para afirmar los procesos democráticos, democratizar la información, revelar verdades, luchar contra el olvido, conservarlos como legado para las nuevas generaciones, son algunos de los intereses y argumentos que se esgrimen cuando los documentos de la represión son buscados y 32 cuando finalmente se encuentran. Segundo a autora, o acesso a tais arquivos afeta boa parte das sociedades onde foram recuperados, sobretudo, por atingirem o Estado e seus agentes; as vítimas, familiares e a militância de direitos humanos – protagonistas nas reivindicações pela restituição de direitos e da memória. A abertura de seus acervos em alguns países latino-americanos (como Paraguai, Argentina e Brasil) trouxe implicações, não só, pela exposição das violações cometidas, mas, sobretudo, para o debate sobre o acesso à informação em um regime democrático e, em alguns casos, para o processo penal dos violadores. De acordo com Caroline Bauer tais arquivos possuem, portanto, especificidades que afetam sobremaneira as discussões sobre o processo de democratização pós-mudanças de regime e, dessa forma, o próprio processo de justiça de transição.33 Nesse sentido, Ludmila Catela nos alerta que a abertura de arquivos desse tipo traz à tona quatro elementos fundamentais acerca de sua existência, organização, preservação e difusão: En primer lugar, los documentos que conforman los acervos provenientes de fuerzas represivas sirven en el presente para una actividad diametralmente opuesta a su origen: producidos para inculpar, ahora pueden ser usados para compensar a las víctimas por las arbitrariedades y violaciones de sus derechos humanos cometidas durante las dictaduras militares. Para las víctimas, estos documentos funcionan como llaves para la memoria, ya que permiten la reconstrucción de un fragmento de sus vidas y muchas veces recomponen las identidades quebradas por la situación extrema que vivieron durante los años de represión política. En segundo lugar, estos documentos sirven para asignar responsabilidades a quienes torturaron, mataron, secuestraron, desaparecieron, así como a aquellos que dieron las órdenes e implementaron políticas represivas. En el plano jurídico, estos documentos aportan pruebas. En tercer lugar, estos documentos son fuentes para la investigación histórica de lo ocurrido. Por último, estos fondos documentales generan acciones pedagógicas sobre la intolerancia, la tortura, el totalitarismo político, etc.34 Na Guatemala, o acesso restrito aos arquivos militares e de outras instituições de repressão era justificado pelo sigilo estratégico militar e, muitas vezes, como no caso da 32 Ludmila Catela. El mundo de los archivos, em Félix Reátegui (Comp.) Justicia Transicional: manual para América Latina, Brasília, Nova York, 2011, Pg. 398. 33 Caroline Bauer. “O papel dos historiadores nas garantias dos direitos à memória, à verdade e à justiça”, em Aedos, n° 12, 2013. 34 Ludmila Catela. El mundo de los archivos, em Félix Reátegui (Comp.) Justicia Transicional: manual para América Latina, Brasília, Nova York, 2011, Pg. 398. [19] TALLER (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 4, N° 5 (2015) ISSN: 0328-7726 Polícia Nacional, pela ausência de documentos burocráticos de suas atividades. Mas como uma instituição altamente burocrática e hierarquizada não possuía registros documentais? Informações sobre investigações, relatórios, quadro de funcionários, ordem de comando e hierarquia, boletins de ocorrência, nada? O silêncio institucional só viria abaixo com a descoberta acidental dos arquivos da PN, passados quase dez anos do fim dos Acordos de Paz. Em julho de 2005, uma explosão em um depósito militar localizado em uma área populosa da capital suscitou uma denúncia à Procuradoria de Direitos Humanos contra o armazenamento irregular de explosivos em áreas residenciais. Uma equipe de inspetores foi enviada ao local para acompanhar a transferência do material bélico e um enorme esconderijo de documentos da Polícia Nacional foi encontrado. Imediatamente, o procurador Sergio Morales Alvarado conseguiu uma ordem judicial garantindo o livre acesso aos arquivos com o intuito de se obter evidências claras sobre as violações dos direitos humanos, cometidas por essa importante instituição de repressão. 35 A preocupação inicial da Procuradoria foi cuidar da preservação dos arquivos encontrados em situação precária, expostos a condições de muita umidade e à ação dos anos de descuido. O primeiro passo dado em direção à formação de um arquivo próprio com os documentos encontrados foi a criação do Projeto de Recuperação do Arquivo Histórico da Polícia Nacional, em 2006. Membros da sociedade civil e grupos de direitos humanos ofereceram voluntários e o Programa para o Desenvolvimento das Nações Unidas comprometeu-se em ser o receptor da ajuda internacional ao Projeto. A partir de então, foi possível garantir a recuperação do arquivo e dimensionar a importância de sua descoberta.36 Entre os quase 80 milhões de documentos, encontra-se informação sobre homicídios, sequestros, investigações sobre suspeitos de subversão, incluindo um rico material fotográfico com registros de corpos não identificados encontrados em valas comuns, perto da capital. Fichas de identificação dos civis que trabalhavam como informantes da Polícia, informações sobre a hierarquia policial com as funções e as regiões de atuação dos agentes e seus superiores, assim como, enormes livros de contabilidade utilizados para listar os “subversivos” capturados. Alguns dos assassinatos políticos mais famosos do país também estão relatados, como o caso da antropóloga Myrna Mack e de Manuel Colom Argueta.37 Atualmente, do acervo documental quase 15 milhões já se encontram em processo de digitalização graças a uma parceria do Projeto de Recuperação com a Universidade do 35 Ver reportagem para a BB Mundo de Watts, S. “Encuetran archivos secretos em Guatemala”. Em: http://news.bbc.co.uk/hi/spanish/latin_america/newsid_4501000/4501218.stm Deisponível em dezembro 2014. 36 Julieta Rostica. “Guatemala después del genocidio”, em Revista Puentes, n° 21, 2007. 37 Kate Doyle. “Para descifrar la guerra sucia”, em Revista Puentes, n° 24, 2008. [20] TALLER (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 4, N° 5 (2015) ISSN: 0328-7726 Texas. 38 Tal estratégia foi adotada, não só, para publicizar o conteúdo do arquivo, mas para garantir a segurança da integridade de suas informações internacionalmente em virtude do quadro político guatemalteco, onde figuras centrais do Exército e antigos agentes da repressão ainda atuam dentro do Estado. Por sua extensão e pelo período que abrange, de 1882-1996, o Arquivo Histórico da Polícia Nacional guatemalteca traduz-se no mais completo acervo documental aberto de uma instituição policial latino-americana, cujo país vivenciou uma ditadura durante o período da Guerra Fria. Desde sua descoberta em 2005, tornou-se um recurso imprescindível para as investigações sobre as violações aos direitos humanos durante o conflito armado interno na Guatemala. O acesso público digital ao acervo permite, não só, o desenvolvimento de muitas pesquisas acadêmicas dedicadas à análise das instituições de repressão e inteligência do Estado guatemalteco, do apoio logístico e financeiro estadunidense ou qualquer outro tema ligado à história recente do país, mas, sobretudo, proporciona acesso à informação àquelas pessoas que ainda buscam informações sobre familiares desaparecidos ou sobre suas trajetórias individuais durante o conflito. Além disso, dentro do atual cenário da justiça transicional na Guatemala, as informações contidas no Arquivo vêm sendo utilizadas como provas jurídicas para a acusação de envolvidos em violações durante o enfrentamento armado. O longo caminho até a justiça Mesmo diante dos tímidos avanços promovidos pela reforma do setor de segurança pública, progressos em outras áreas impactaram o modus operandi da polícia nos últimos anos. Dentre eles, a punição de agentes de segurança no período pós-acordos de paz, que afetou positivamente as instituições de segurança pública. Em 1996, quando os acordos entraram em vigor, poucos guatemaltecos acreditavam que crimes cometidos no período do conflito armado poderiam ser julgados. Isto porque no dia 27 de dezembro daquele ano o Congresso Nacional aprovou a Ley de Reconciliación Nacional, que isentou de responsabilidade penal todos os crimes comuns conexos ao contexto político cometidos até o momento da vigência da lei.39 Apesar de expressamente excluir da anistia crimes de genocídio, desaparecimentos forçados e tortura, levou-se mais de uma década para que os primeiros casos deste tipo fossem processados no país.40 A primeira vez que agentes do Estado foram indiciados e condenados à prisão por crimes políticos, foi em decorrência do assassinato do Arcebispo Juan Gerardi, em abril de 1998. O homicídio ocorreu dois dias depois da apresentação da investigação da Igreja Católica sobre crimes cometidos no período do conflito armado, o informe Guatemala, Nunca 38 Historical Archive of the National Police of Guatemala, Universidade do Texas. Disponível em https://ahpn.lib.utexas.edu/about_ahpn 39 Lei disponível em: <http://www.acnur.org/biblioteca/pdf/0148.pdf?view=1>. Disponível em dezembro de 2014. 40 Naomi Roht-Arriaza, “Making the state do justice: Transnational prosecutions and international support fir criminal investigations in post-armed conflict Guatemala,” Chicago Journal of International Law. 9 (2009 2008): 79. Pg.83 [21] TALLER (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 4, N° 5 (2015) ISSN: 0328-7726 Más. A execução teve repercussão mundial, o que favoreceu a busca por justiça. Os assassinos de Gerardi foram encontrados e punidos com o rigor da lei, algo novo no país. Três agentes da inteligência militar foram indiciados e condenados, em 8 de junho de 2001. A notícia da condenação dos assassinos do Arcebispo reacendeu as esperanças por justiça dos familiares de vítimas da repressão, porém, havia um complicador nesta questão. O arcebispo Gerardi foi assassinado em 1998, já no período de paz, e havia uma forte resistência do judiciário guatemalteco em denunciar e julgar crimes cometidos durante o conflito, devido à vigência da Ley de Reconciliación Nacional. Foi somente a partir de 2010, com o julgamento do caso Gomes Lund versus Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, quando leis de auto anistia foram invalidadas, que o posicionamento das cortes guatemaltecas começou a mudar.41 Com a ilegalidade de leis desse tipo, todo um campo jurídico para a perseguição de agentes da repressão se abriu. O seguinte documento, parte do processo do general Efrain Rios Montt,42 ajuda a compreender como o debate sobre as anistias e a jurisprudência internacional têm penetrado os tribunais guatemaltecos nos últimos anos: “Deben tomarse en cuenta los hechos por los cuales se está juzgando al postulante y que la pretensión de este es beneficiarse de la extinción de la prosecución penal por medio de la amnistía, especialmente la otorgada el Decreto 8-86; esta tiene la particularidad de ser un automnistía, es decir, las mismas personas que cometen los actos son las que las otorgan para no responder por estos, lo que no es factible aplicar. En adición a ello, refirió que debe observarse la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos, respeto a la improcedencia de la amnistía en el delito de genocidio, como en el caso concreto.” 43 É importante frisar que após a jurisdição em relação a crimes no período do conflito mudar, a Guatemala se tornou um dos países mais ativos na busca pela justiça no continente. Mesmo que seja uma justiça atravessada por interesses políticos e com constantes reviravoltas e retrocessos, pelo menos há um movimento e um debate público. Até o momento diversos julgamentos ocorreram no país, e mesmo com a Corte de Constitucionalidade retardando alguns processos, importantes condenações tem sido expedidas e mais significativo que isso, negativas de recursos com base na lei de anistia, tem ocorrido. Por exemplo, temos o caso da condenação a 40 anos de prisão de dois agentes da PN em 2010, envolvidos no desaparecimento do sindicalista Edgar Fernando 41 Kristen Weld. Paper cadavers: the archives of dictatorship in Guatemala. Duke University Press Books. Durham, 2014. Pg.239. 42 O general, presidente entre 1982-1983, foi indiciado por genocídio e crimes contra a humanidade em ação impetrada por diversas organizações. Foi condenado a 80 anos de prisão, em 2013, mas sua sentença acabou sendo anulada e novo julgamento deve ocorrer em 2015. 43 Julgamento de recurso apelação impetrado pelos advogados do General Efrain Rios Montt negado pela corte de constitucionalidade da Guatemala. Impunity watch. Guatemala. 22/10/2013. http://www.impunitywatch.org/docs/Sentencia_CC.pdf Acesso em dezembro de 2014. [22] TALLER (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 4, N° 5 (2015) ISSN: 0328-7726 Garcia em 1984, e em 2013 a condenação a setenta anos de prisão de Pedro Garcia Arredondo, antigo diretor do Corpo de Detetives, pelo desaparecimento do estudante Edgar Enrique Saenz Calito. 44 Ambas condenações obtiveram sucesso, principalmente, graças a utilização do Arquivo da PN como base probatória dos crimes e pela atuação da Procuradoria de Direitos Humanos e sua insistência em processar agentes da repressão. A Procuradoria, mesmo contra todas as barreiras jurídicas e diante da falta de interesse político do Estado guatemalteco, tem buscado estimular o processo de justiça de transição na Guatemala. Considerações Finais Ao analisarmos o processo de justiça de transição guatemalteco, não podemos perder de vista a natureza própria da transição política no país. Projeto de distensão articulado pela cúpula militar e seus aliados, implementou-se de forma preventiva, antes mesmo das forças de oposição possuírem bases para tanto. Além disso, desenrolou-se como estratégia contrarrevolucionária que deveria aniquilar os grupos insurgentes e sua suposta “base social” indígena. Dessa forma, significou os piores anos do conflito, em números sobre a violência política, e um retorno ao regime democrático extremamente restrito, com a manutenção do poder militar e de seu extenso aparato de repressão. A adoção dos mecanismos característicos da justiça transicional só pode ser efetivada pela atuação hercúlea das organizações de direitos humanos e do movimento popular indígena, além das pressões de diversos organismos internacionais, principalmente, durante os Acordos de Paz. A respeito do nosso tema, assim como em outros países latino-americanos, em especial, o Brasil que vive uma importante discussão sobre a desmilitarização da Polícia Militar – recomendação, inclusive, do recém-lançado relatório da Comissão Nacional da Verdade –; são enormes os desafios colocados à reestruturação da Polícia Nacional aos parâmetros democráticos e de respeito aos direitos humanos, especialmente, em um país atravessado por grupos paramilitares. Neste cenário, o avanço do processo transicional continua a depender da luta política de diferentes setores sociais na busca por verdade, justiça e pelo direito à memória. Texas/ Rio de Janeiro, dezembro de 2014. 44 “Pedro Garcia Arredondo es condenado a 70 anos de prisión” Prensa libre. Guatemala. 21/08/2012. http://www.prensalibre.com/noticias/justicia/MP-solicita-Garcia-Arredondodesaparicion_0_759524228.html Disponível em dezembro de 2014. [23]
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