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© Copyright 2013, Flávio Marcus da Silva.
Flávio Marcus da Silva
Capa: kythão
1ª edição
1ª impressão
(2013)
FELIZ DO
SEU JEITO
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autorização do autor.
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Silva, Flávio Marcus da
FELIZ DO SEU JEITO. Flávio Marcus da Silva. Pará de Minas, MG:
Editora VirtualBooks, 2013.14x20 cm. 82p.
ISBN 978-85-7953-988-6
1. Literatura brasileira. Contos. Brasil. Título.
CDD- B869
___________________________________________
Livro editado pela
VIRTUALBOOKS EDITORA E LIVRARIA LTDA.
Rua Porciúncula,118 - São Francisco
Pará de Minas - MG - CEP 35661-177 Tel.: (37) 32316653 - e-mail: [email protected]
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VirtualBooks
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O Cristo é saudade que não cabe no coração / 64
SUMÁRIO
Embaixo do caminhão / 66
Pedro, meu filho / 5
O bonitão da bala Chita / 69
Muquiranas / 11
Fazenda Mamata / 70
Opção pelo simples / 16
Quase só coração / 75
Maturidade / 18
No final das contas / 76
O cínico / 21
A alma do livro / 78
A vingança do teiú / 24
Instantes / 79
O pesadelo de Ramon / 27
Feliz do seu jeito / 81
Uma semana em Lisboa / 30
Faltam professores, e agora? / 34
Ser ou não ser / 38
Sua Alteza, o Cu / 42
Tempestades / 45
O clube dos excluídos / 47
Vândalos / 49
Cura gay / 51
A comida no facebook / 54
Camila conseguiu / 56
Missão pombos / 58
O delírio de Ramon / 61
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Pedro, meu filho
Acordei pela manhã com uma estranha sensação de leveza,
como se em poucas horas eu tivesse emagrecido vários
quilos. Lembrava-me de ter ido para a cama por volta de
onze da noite, entorpecido pelo vinho e sentindo a refeição
pesar no estômago, enquanto o coração bombeava com
dificuldade o sangue necessário para uma digestão que, ao
que tudo indicava, transformaria meu sono em uma
travessia angustiosa pelas longas horas da madrugada.
Minha mulher roncava quando eu coloquei a cabeça no
travesseiro, tateando o lençol à procura do controle remoto
da televisão e pensando, com tristeza, em como seria
minha noite depois de tanta comida e bebida.
No entanto, dormi maravilhosamente bem.
Mas não acordei apenas com uma sensação de leveza no
corpo, como se em cinco ou seis horas eu tivesse passado
por uma dieta de desintoxicação e emagrecimento que
normalmente só traria resultados depois de cinco ou seis
meses de sacrifícios terríveis. Não. Acordei também com o
espírito mais leve, como se o peso de sentimentos
negativos, que até à minha entrada pacífica no misterioso
território do sono eu carregava dentro de mim, tivesse
desaparecido junto com o peso corporal.
Levantei-me da cama e me dirigi à sacada do quarto, cuja
porta de vidro se abria para uma bela vista do bairro, sem
sentir o inchaço e as dores nas juntas que me atacavam
todas as manhãs, com o corpo leve, a respiração fácil, o
coração sereno e calmo, e, ao mesmo tempo, sem as
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preocupações e angústias que, de costume, não me davam
trégua desde as primeiras luzes do dia até altas horas da
noite: sobretudo um desejo incontrolável de acumular
riquezas e honrarias, de ser admirado e invejado por todos.
Acordei sentindo-me livre dessas vontades (ou pelo menos
não as senti consumindo minha alma com suas línguas de
fogo, obrigando meu corpo a reagir contra tudo que se
colocasse como obstáculo às estratégias e planos por mim
traçados para alcançar o que, na minha visão, era o
sucesso). Aquele dia não foi assim, embora eu sentisse os
demônios da ambição me espreitando pelos cantos do
quarto, dispostos a reconquistar o meu ser, ainda não
completamente livre das forças sombrias que cercam
muitas de nossas vontades mundanas.
Porém, naquela manhã, nenhum peso me pareceu tão
ausente de mim quanto o da culpa que eu carregava há
vários anos por ter sido o único responsável pela desgraça
que se abateu sobre o meu filho.
Sempre fui muito exigente com ele. Na escola, tirar o
segundo lugar, para mim, era inaceitável. Ele tinha que ser
sempre o primeiro, o melhor, o mais inteligente, o mais
perspicaz, o mais invejado pelos colegas. Sempre cultivei
nele o que eu acreditava ser a fórmula perfeita para o
sucesso: ambição, orgulho, coragem, determinação e força,
atributos que, com a dose certa de inteligência, sagacidade,
dissimulação e estratégia, poderiam levá-lo aos cumes mais
altos do sucesso profissional, da glória, da riqueza e do
poder. E para ajudá-lo nessa empreitada, haveria sempre o
enorme patrimônio da família, acrescido cada vez mais com
novas fazendas, casas, apartamentos e aluguéis.
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Diante disso, certamente não será surpresa para o leitor a
minha decepção amarga quando percebi que meu filho
gostava mais de poesia e filosofia do que de matemática,
química e biologia. Eu queria que ele fosse médico, um
renomado cirurgião, respeitado no país inteiro e até mesmo
no exterior, mas o que ele demonstrava aos quinze anos,
contrariando todas as minhas expectativas, era uma paixão
avassaladora pelo teatro, que ele praticava às escondidas
depois das aulas, interpretando figuras grotescas, cantando
e dançando como uma mocinha. E como eu soube depois,
ele gostava também de escrever poemas, que lia em
recitais aos sábados, nos quais muitas vezes vestia-se de
mulher, usando quase sempre uma peruca escura e uma
enorme bata branca cheia de detalhes dourados.
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tanto com os outros? Quem são esses outros? Por que eles
precisam achar que nós somos felizes, que você se casou
com a minha mãe por amor, que eu sou o melhor aluno da
escola, que o meu futuro está garantido graças ao meu
talento e ao patrimônio que você herdou e fez crescer com
a cobiça e a ambição que traz dentro de sua alma desde a
infância?”.
Aquilo dilacerava a minha alma; mas consegui conter minha
indignação nos limites de um aconselhamento pacífico e de
poucas palavras, até o dia em que, aos dezessete anos, ele
entrou em meu escritório para me dizer que havia decidido
prestar vestibular para Filosofia. Tentei fazê-lo mudar de
ideia, dizendo que tal decisão era um completo desatino.
“Você vai viver de quê, meu filho? O que faz um filósofo?
Ele trabalha com o quê? Quanto ganha alguém para
filosofar?”. Não adiantou. Ele me olhou nos olhos e disse
que sua decisão estava tomada, e que se eu quisesse
aproveitar aquela chance para agir como um pai de
verdade, que eu o apoiasse.
Imediatamente fui tomado por um ódio terrível e avancei
em sua direção disposto a matá-lo se fosse preciso. Ele
tentou correr, mas puxei-o pelos cabelos e joguei-o com
toda a força contra a parede. Peguei-o pelo braço e levei-o
até o banheiro do corredor, onde enfiei sua cabeça na
privada umas dez vezes, gritando: “É na merda que você
quer viver, sua bicha? Então experimente esta merda aqui e
veja se você gosta”. E ele se debatia, tentava chamar a mãe
– que já devia estar dormindo, dopada com seus remédios
para depressão –, e lutava para respirar, com o rosto todo
molhado da urina que eu tinha despejado ali minutos antes.
Quando ele conseguiu escapar de minhas mãos, pegou a
chave do carro e saiu em disparada pela avenida.
Eu não o apoiei. Eu o ameacei de todas as maneiras que
pude: corte de mesada, expulsão de casa e outras bobagens
do gênero, entremeadas com frases do tipo “O que os
outros vão pensar...”. Ao que, uma vez, num desabafo, ele
me respondeu perguntando: “Por que você se preocupa
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Aquelas perguntas foram lançadas com uma fúria que eu
jamais tinha visto naquele garoto meigo, que raramente se
dirigia a mim, e que, quando o fazia, era só para trocar uma
e outra palavra sobre uma bobagem qualquer, com o único
propósito de quebrar, por um momento, o gelo glacial que
cercava a nossa relação.
Mas, como eu dizia, ao acordar naquela manhã, não senti
mais a culpa me corroendo o espírito, somente uma
lembrança distante a me apertar de leve o peito e a
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maravilhosa sensação de que o futuro se encontrava aberto
para o perdão e a consolação sem dor, medo ou angústia.
Olhando o céu que brilhava com as primeiras luzes da
manhã, senti a presença do meu filho ao meu lado na
sacada, e o vi, bem ali, com seu olhar perdido no horizonte,
vestindo a mesma roupa que ele usava quando saiu de
carro naquela fatídica noite.
“Pedro, meu filho”, eu disse sorrindo, e estendi a mão para
tocá-lo. Em seu rosto jovial e alegre percebi, aliviado, que
ele tinha me perdoado, e uma felicidade muito maior que a
soma de todas as alegrias que eu tinha vivido em toda a
minha vida me invadiu naquele exato momento, tornando
meu corpo e meu espírito ainda mais leves, como se eu
fosse capaz de saltar e alcançar, sem o menor esforço, a
plenitude dos céus.
“Pedro, meu filho... Como é possível?”, perguntei, com
lágrimas nos olhos, mas ele não respondeu.
O acidente. Aquele terrível acidente do qual, sem dúvida,
eu tinha sido o único culpado...
Cheguei ao local às duas da madrugada. O carro estava
completamente destruído, abraçado a um poste na avenida
deserta. Preso às ferragens, sem vida, estava o corpo do
meu filho. Tentei abrir com as mãos a carcaça confusa de
ferros retorcidos, dizendo para ele, desesperado: “Vou tirar
você daí, meu filho. Não se preocupe. Vou tirar você daí e
vamos começar uma vida nova. Você vai fazer o que gosta e
eu vou te apoiar, não se preocupe”. Mas já não havia mais o
que fazer.
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“Pedro, meu filho... Como é possível?”, perguntei de novo,
enquanto a manhã ganhava vida sobre os telhados das
casas do bairro. Ele se virou novamente para mim, apontou
para a minha cama e disse: “Veja”. Ao me virar, levei um
susto. Ao lado de minha esposa adormecida estava o que
parecia ser eu, deitado de barriga para cima, com o rosto
contorcido e as mãos crispadas: um corpo pálido e sem
vida. Pedro respondeu ao meu espanto com um novo
sorriso e disse: “Aquilo ali nada mais é do que o envoltório
carnal que você abandonou durante a noite. Chegou o
momento, para você, de se dirigir a outros planos de
aperfeiçoamento espiritual e, talvez, conforme os desígnios
de Deus, um dia voltar à crosta terrestre para uma nova
etapa de vida junto aos homens. Recebi autorização de
meus guias para vir buscá-lo e auxiliá-lo na sua nova
jornada de aperfeiçoamento. Informo-lhe, ademais, que a
sensação de leveza que você sente agora se intensificará
ainda mais, na medida em que for deixando para trás aquilo
que lhe serviu de motor no plano físico e que, para nós, no
plano espiritual, são pesos inúteis: o orgulho, a ambição, o
egoísmo, o desejo de poder e riqueza, a prepotência, a
dissimulação, a cupidez, a mentira, o ódio, a vingança...”.
Eu não conseguia dizer nada. Só o olhava, assustado, sem
entender aquilo tudo, sem acreditar.
“Venha comigo, meu pai”, disse ele, e me estendeu a mão.
Agarrei-a com força, puxei meu filho para junto de mim e
abracei-o aos prantos, cheio de amor e arrependimento,
como eu nunca tinha feito em vida.
“Pedro, meu filho. Pedro, meu filho...”.
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Muquiranas
Seu Joaquim e Dona Maria formavam um casal discreto, de
temperamento calmo e arredio. Estavam na casa dos
sessenta anos, mas pareciam mais velhos. Não ligavam
muito para a aparência: roupas velhas e uma higiene
desleixada – pele encardida de sujeira, cabelo ensebado,
unhas compridas e sujas – faziam com que, muitas vezes,
fossem até confundidos com mendigos na rua; mas nem se
importavam. Eram pessoas muito simples.
Seu dia-a-dia era uma mesmice só: levantar cedo, fazer
café, cuidar do jardim, limpar a casa, fazer comida, almoçar,
arrumar a cozinha, ver televisão, cuidar da horta, comer
banana, jogar paciência, jantar e dormir.
Embora fossem milionários, moravam numa casa pequena
e mal conservada, não tinham carro, não viajavam, não
comiam fora e só usavam roupas feitas por uma costureira
bem barateira, amiga de infância de Dona Maria.
O enorme patrimônio da família era administrado por Lúcia,
filha única do casal, uma quarentona feia e arrogante que,
mesmo com vários pretendentes para casar, mantinha-se
solteira e virgem. Seu trabalho era receber os aluguéis das
centenas de casas, apartamentos, terrenos e galpões
comerciais que a família possuía, espalhados por toda a
cidade. Administrava também as várias aplicações
financeiras do casal, recebendo tratamento VIP nos bancos
que visitava todas as tardes, enfiada em vestidos florais
nada discretos – os gerentes só faltavam lamber o chão que
ela pisava, de tão bajuladores.
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A vida de Lúcia era basicamente economizar o máximo
possível nos gastos e aumentar cada vez mais o patrimônio
da família, comprando imóveis e aplicando dinheiro. Fazia
isso muito bem, graças à educação que recebera dos pais
(muquiranas como ela, embora, talvez pela idade, menos
radicais).
Uma vez Dona Maria chegou a consultar uma agência de
turismo com a intenção de fazer uma viagem ao litoral, pois
não conhecia o mar. Ao ver o orçamento do pacote, Lúcia
rasgou o papel na cara da mãe, dizendo que aquilo era um
roubo, que não ia permitir que ela dilapidasse o patrimônio
da família daquela forma. O pai concordou com a filha, e
nem cogitou em sugerir que viajassem os três para a
Europa, como ele queria, realizando assim um sonho que
tinha desde a juventude: o de conhecer Roma.
Seu Joaquim suspirava na frente do espelho todas as noites,
antes de dormir, resignado e triste. Fazer crescer e proteger
meu patrimônio para garantir segurança à família no
futuro. Esse era o seu lema na adolescência, que com
determinação e empenho invejáveis transformou em
realidade: uma fortuna imensa, acumulada em bens
imóveis e MUITO dinheiro aplicado. Dinheiro suficiente
para ele dar a volta ao mundo centenas de vezes se
quisesse, hospedando-se nos melhores hotéis, comendo
nos melhores restaurantes e assistindo a espetáculos e
peças nas mais requintadas casas de shows e teatros do
planeta.
Mas Seu Joaquim nunca tinha viajado para lugar nenhum.
Como a esposa, nem conhecia o mar. Nunca tinha ido a um
restaurante, a um cinema, a um parque de diversões. Por
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quê? Ora, porque tinha que economizar. O futuro era muito
incerto, a crise econômica estava sempre à espreita, o custo
de vida aumentava ano a ano.
Criada nesse ambiente de implacável sovinice, Lúcia acabou
se tornando a zeladora do patrimônio familiar – um
verdadeiro dragão da economia –, escorraçando da casa
dos pais parentes pobres que vinham pedir dinheiro
emprestado, representantes de instituições de caridade,
vendedores ambulantes, paroquianos pedindo auxílio para
as barraquinhas da igreja, etc. Todos os gastos da casa
passavam pelas suas mãos, e ela controlava tudo, nos
mínimos detalhes, seguindo rigorosamente (e até
aperfeiçoando) a antiga cartilha dos pais.
Quando Dona Maria adoeceu do coração, nem pensaram
duas vezes: como não tinham plano de saúde, foram para a
fila do SUS, onde realizaram todas as consultas e exames,
suportando longas e terríveis esperas; e quando receberam
a notícia de que era preciso operá-la, voltaram para a fila,
para aguardar a cirurgia. Os meses foram passando, a
espera se prolongando, e Dona Maria só piorando. Era
preciso aguardar, pois tinha muita gente na frente. Lúcia
tentou o que pôde para dar um jeitinho para a mãe,
conversando com políticos da cidade, mas não teve jeito.
Depois de quase dois anos de espera no SUS, Dona Maria
faleceu no corredor da Santa Casa, aguardando uma vaga
no CTI.
Seu Joaquim e Lúcia ficaram abalados no início, sentindo-se
culpados, mas logo aceitaram a morte da mãe como algo
natural, que tinha que ser. Foi Deus que quis assim.
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Meses depois, Seu Joaquim também morreu. Foi Lúcia que
o achou caído no quintal, ao lado de um buraco que ele
parecia estar cavando quando passou mal. Foi a primeira
vez que ela viu um corpo morto não preparado para
velório. No rosto do pai notou suas feições naturais: ele não
parecia um boneco de cera, como os cadáveres preparados.
Havia muita tristeza ali...
Chorando, Lúcia ligou para a funerária. Minutos depois, ao
entrar no quarto do pai, achou quatro garrafas de plástico
cheias de urina, escondidas atrás da porta. Deduziu que ele
vinha juntando sua própria urina para economizar a água da
descarga, e que cavava uma fossa no quintal para se
desfazer daquele fardo.
Na mesma hora Lúcia começou a gritar, angustiada,
desesperada. Gritou e chorou até cansar. E decidiu: aos 47
anos de idade, com o pai e a mãe mortos, iria mudar de
vida: gastaria metade da sua fortuna em diversão, boa
comida e viagens pelo mundo. Começaria encontrando um
homem que a desvirginasse e lhe fizesse companhia no diaa-dia, mesmo sem amá-la.
Conheceu Rodrigo, um servente de pedreiro, jovem (tinha
32 anos), limpo e bem-apessoado. Não era inteligente, mas
Lúcia não queria dois cérebros funcionando naquela
relação, só o dela; que ele cuidasse de tirar as teias de
aranha de onde tinha que tirar e lhe fizesse companhia
quando ela solicitasse e já estaria satisfeita.
Depois de três meses de namoro, casaram-se e deram uma
grande festa, com direito a vinhos e uísques importados,
iguarias das mais sofisticadas e três bandas sertanejas
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tocando a noite inteira. Rodrigo estava nas nuvens. Do
nada, encheu-se de amigos; todos queriam puxar seu saco,
por causa do casamento milionário.
Um mês depois do casamento, quando saía de uma agência
de turismo cheia de prospectos de viagens para analisar
com o marido, Lúcia teve um infarto fulminante e morreu
na calçada, a caminho de casa.
Rodrigo recebeu toda a fortuna dos muquiranas, avaliada
em mais de 300 milhões de reais. Hoje, bilionário, tem 48
anos, fez um curso de Administração à distância, viajou o
mundo todo, comprou dez motos Harley-Davidson,
engordou vinte quilos e está muito feliz.
Rodrigo é um herói brasileiro.
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Opção pelo simples
Tem gente que sofre horrores para se enquadrar no modelo
burguês de família perfeita: padrão de vida elevado, filhos
com inteligência acima da média e sem nenhum desvio de
comportamento, pais exemplares em todos os quesitos da
perfeição: amorosos, bem sucedidos, respeitados, baluartes
da moral e dos bons costumes, etc. Nesse modelo, as
falhas, quando surgem, devem ser rapidamente corrigidas,
para não comprometerem a harmonia do quadro, a
imagem de sucesso e felicidade que se quer passar.
O meu modelo de família é mais flexível: acolhe melhor as
imperfeições, os tropeços, as sinuosidades dos caminhos. O
que dá para resolver, a gente resolve. O que não dá, a gente
vive. E não se preocupa em mascarar, fingir. Para quê?
Em casa não tenho super-filhos nem super-esposa. Não sou
super-pai nem super-marido. Não somos super nada.
Somos o que damos certo e o que fracassamos. O que se
enquadra e o que foge para as margens. O que
aprendemos, sofrendo ou não. O que vivemos, felizes ou
não.
Somos o que somos.
Comparações com outras famílias não nos ferem, porque,
quase sempre, o que se compara com o que somos ou
temos não representa para nós o essencial, o que
realmente importa para uma vida plena e feliz, mas o
excesso, o desnecessário. Nossa opção foi pelo simples.
Mas com direito a algumas gracinhas de vez em quando.
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Termino esta crônica com um poema inspirador de Affonso
Romano de Sant’Anna:
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Maturidade
Em seu corpo maduro e pesado, deformidades típicas da
idade o afastam de espelhos, filmadoras e câmeras
fotográficas. Há três anos não aparece em nenhuma
fotografia. Para as comemorações do dia dos pais na escola,
os filhos levaram pela quarta vez um retrato que o mostra
de longe, sentado no sofá, com uma xícara de café na mão,
tirado há quase cinco anos: o cabelo ainda preto, o corpo
mais magro e musculoso, a alegria da juventude ainda
brilhando no sorriso e no olhar. Não quer nenhum registro
em imagens de sua maturidade, do que ele vê como o início
de uma queda vertiginosa montanha abaixo (a decadência
que ele tanto temia na juventude e que, agora, é uma
realidade assustadora: a decadência do corpo).
Desmontar o acessório.
Assumir as proporções próprias.
Não ser mais que o barco
ou montaria
para evitar naufrágio e ranhuras
no cruzamento
com desbordantes criaturas.
Tirar dos ombros
esse peso: descarregá-lo.
Fardo.
Como se descarrega
um morto, um fantasma
um eu inócuo, torto.
Aos 37 anos, acredita estar bem em cima da linha divisória
entre a juventude e a velhice. Seu metabolismo é mais
lento, está barrigudo, sua memória não é a mesma da
época de estudante, seu cabelo está ficando grisalho, rugas
se acentuam ao redor dos olhos e da boca, seu olhar está
triste, apagado; já não sente o mesmo prazer que sentia
antes no trabalho; quer mais tempo para si e para a família,
para ler, ouvir música, não fazer nada.
A morte lhe acena de perto, sussurra-lhe ao pé do ouvido
coisas que ele não entende, mas que lhe transmitem paz,
serenidade e um desejo imenso de aproveitar a vida como
ele nunca aproveitou, de cortar da sua lista de prioridades
tudo que não lhe dá prazer, que o aprisiona e aborrece. E
quer começar já. O momento é este. Sacrifícios e
sofrimentos agora só prejudicariam um presente que pode
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não se tornar futuro, pois a queda já começou, e a descida
é cheia de obstáculos, às vezes intransponíveis.
Mas ele sente que falta alguma coisa, um ingrediente
essencial para o equilíbrio que ele tanto procura em sua
vida, e que, só agora, deitado na grama do quintal,
observando as nuvens que passam, ele descobre qual é: a
aceitação do seu corpo, da sua idade, do seu momento.
É isso. Afastar-se o máximo possível dos jogos e artifícios da
vida e deixar-se invadir pelo prazer de viver não é suficiente
para alcançar a paz de espírito que ele tanto quer. Ele sente
que precisa fazer as pazes com o seu corpo, que ainda é
saudável e pode continuar assim por muitos anos, apesar
do amadurecimento, da inevitável velhice que, feliz e em
paz, ele quer viver. Apesar de...
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e sofrimento, sem querer atingir padrões de perfeição,
como muitas pessoas que ele vê na academia, eufóricas,
tomadas por um frenesi de exercícios e dietas absurdos,
comparando-se umas com as outras, sofrendo para atingir a
meta, manter o padrão.
Não, isso não.
Viver os dias um de cada vez, aceitando o que se é, fazendo
o que se gosta, cuidando da saúde, mas sem desespero.
Esse é seu objetivo agora. E está feliz por tê-lo descoberto.
Olhando-se no espelho, diz para si: “Somos como nuvens
passageiras, águas que seguem seu curso em direção ao
mar... E como dizia Fernando Pessoa: ‘Mais vale saber
passar silenciosamente. E sem desassossegos grandes’”.
Está agora nu diante do espelho. Este é seu corpo aos 37
anos. 37 anos de história. A sua história. Só ele a viveu. Só
ele sabe. É a sua vida.
Respira fundo, enquanto se olha, já sem medo. Sente o
rosto com as pontas dos dedos, suas cicatrizes e rugas, suas
bochechas redondas e levemente caídas. Toca de leve a
barriga disforme, o excesso de gordura no peito e no
pescoço, a cintura larga, as cochas enormes e
desproporcionais... Não... Não está tão feio quanto
pensava.
“Este sou eu aos 37 anos”, diz para si mesmo, e sorri. Seu
olhar ainda está cheio de vida, seu espírito ainda tem muito
a oferecer através deste corpo que o abriga. Sua saúde é
boa. Precisa perder peso, e vai perder, mas sem desespero
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O cínico
O cínico parece já não ter mais para onde subir na vida. É
dono de um patrimônio imenso, que vai de fazendas a
helicópteros, e goza de uma renda mensal que inveja até
deputados e senadores, mesmo depois do aumento de 60%
em seus salários. Grande parte dessa riqueza ele deve ao
seu cinismo: uma falta de vergonha, uma desfaçatez, uma
impudência cevadas desde o berço, onde, bem pequeno,
ele já sabia fingir o choro para conseguir o colo da mãe,
esconder o pirulito embaixo do colchão para ganhar outro
melhor, acusar o amiguinho de uma travessura que ele
próprio cometera: coisas de criança, talvez, mas que no
cínico foram se multiplicando de tal forma que, na
juventude, deram origem a uma verdadeira máquina de
vencer: um estrategista de mão cheia, com um único
propósito na vida: estar na crista da onda, no ápice – o que,
para ele, significava ter muito dinheiro, um casamento
convencional, um cargo que lhe permitisse exercer poder
sobre os outros, filhos brilhantes...
No quesito filhos brilhantes, não importa se os meninos são
apenas razoavelmente bem sucedidos em suas profissões.
Ao falar deles, o cínico pinta um quadro tão exagerado de
seus dotes e vitórias, que os transforma em verdadeiros
super-heróis. Quem sofre mesmo são as pessoas obrigadas
a ouvi-lo falar dos garotos: os relatos são longos e cheios de
detalhes sobre suas façanhas profissionais, pessoais e até
mesmo sexuais, comparando-os com outras pessoas, de
forma a diminuí-las, e, às vezes, chegando ao ponto de citar
nomes de garotas que lhes permitiram provar sua
masculinidade viril, colocando-as também (é claro!) em
posição de inferioridade.
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É incrível a facilidade com que o cínico te critica pelas
costas e logo em seguida diz exatamente o contrário na sua
frente, te olhando nos olhos, como se aquilo realmente é o
que ele pensa de você. É o jogo do cínico. Ele é um bom
estrategista, sabe transformar as pessoas em joguetes,
colocar umas contra as outras, envenenar relações, tudo
para se manter no poder, para atrair olhares de inveja e
admiração. E ele sabe se cercar de bons bajuladores, a
maioria tão cínica quanto ele, pois nas suas costas, muitos
desses baba-sacos criticam-no, ironizam-no, riem dos seus
defeitos, do seu orgulho desmedido, da sua conversa
enfadonha e cansativa, mas, na sua frente, tratam-no com
respeito, concordando com suas opiniões e participando
das suas intrigas.
Para o cínico, os fins justificam os meios. Comumente ele
lança mão de suas relações pessoais com gente importante
(construídas também na base do cinismo e do fingimento)
para conquistar ainda mais prestígio e poder, quase sempre
usurpando direitos, mentindo, enganando.
Normalmente seu cinismo vem acompanhado de maldade.
No cínico, qualquer desavença pessoal aciona seu desejo de
vingança implacável, e ele não sossega a alma enquanto
não prejudicar seu desafeto. Se não for bem sucedido, para
aplacar sua ira, ele investiga a vida da pessoa, só para se
certificar de que a situação financeira ou patrimonial dela é
inferior à sua ou à de seus filhos – já que, para ele, o que
determina o valor de um homem são seus bens materiais.
Saber que o outro tem um salário inferior ou um
patrimônio bem menor que o seu alivia o tormento de sua
alma.
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A vingança do teiú
E ele geralmente vence, para os outros, para si, para a
família. Ele é muito competente, perspicaz, inteligente, suas
jogadas são rápidas, bem pensadas, e ele é bem
recompensado por isso.
Mas como afirmou certa vez o grande escritor Oscar Wilde:
o cínico pode conhecer muito bem o preço de todas as
coisas. Mas ele não conhece o seu valor.
Essa é a diferença.
O fogo tomou conta da plantação de milho e sorgo em
menos de um minuto. O jovem fazendeiro não teve o que
fazer a não ser observar, com lágrimas nos olhos, as chamas
se espalharem e devorarem o que não mais seria o
alimento do seu gado durante a seca daquele ano. Prejuízo
na certa. E tudo por causa de um lagarto rajado de preto e
amarelo, conhecido naquelas bandas como teiú. Culpa dele.
Pelo menos era isso que resmungava para si o fazendeiro
enquanto assistia ao tenebroso espetáculo, cheio de
tristeza no olhar.
Do outro lado da plantação em chamas, o galpão onde ele
guardava sua coleção de carros das décadas de 50 e 60
tremia como miragem no asfalto por trás da enorme cortina
de fumaça e calor; mas ele não se preocupou com a
possibilidade do seu hobby vir a ser atingido pelo fogo, que
estalava a uma distância considerável do local.
Mas e o gado? O que ele ia fazer para alimentar o gado na
seca? “Se não fosse aquele maldito lagarto...”, balbuciou,
com os punhos fechados, o ódio lhe escapando num bafo
quente e seco pela boca.
Se não fosse aquele maldito lagarto? Como ele pôde dizer
uma coisa dessas? Foi ele que jogou gasolina e tocou fogo
no teiú por pura maldade, só para ver o animal correr
desesperado e depois morrer esturricado, transformado em
carvão, num canto qualquer! Só que o bicho, ao invés de
ficar no descampado onde se encontrava, correu direto
para a plantação de milho e sorgo. E deu no que deu.
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E não foi só. De repente, do inferno de labaredas que se
espalhava pelo outro lado da plantação, o teiú saiu
correndo, em chamas, como uma fênix ressurgindo das
cinzas. A fumaça tinha sido dissipada um pouco pelo vento,
permitindo ao fazendeiro ver com clareza o lagarto
atravessar a estrada como um meteoro em combustão e ir
direto para o galpão de carros antigos. O jovem ficou
alarmado, mas não muito, pois o fogo no corpo do animal
era pouco para representar uma ameaça ao galpão e aos
carros. Mesmo assim ele correu em direção ao local,
assombrado com a incrível capacidade daquele bicho de se
manter vivo em chamas por tanto tempo. “Como é que
pode?”, pensou.
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Quanto ao teiú, simplesmente desapareceu. Seus restos
mortais nunca foram encontrados.
Pois eu digo que pode. E não foi só. Correndo como um
louco, o fazendeiro se lembrou que um dos carros, um
Impala 1958, estava com um pequeno vazamento de
combustível, que ele ia consertar ainda naquela semana.
“Meu Deus! Não!”, gritou o homem desesperado, já quase
na porta do galpão.
Foi quando houve a explosão e o carro voou pelos ares,
danificando gravemente pelo menos cinco outros que se
encontravam nas proximidades.
Chegando ao local, quase sem forças e tremendo dos pés à
cabeça, o fazendeiro alcançou com dificuldade o extintor de
incêndio na parede do galpão, mas por mais que tentasse,
não conseguiu fazê-lo funcionar. Arrasado, caiu de bruços
no chão, onde logo foi encontrado por dois empregados da
fazenda. Passou a noite no hospital, em choque.
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O pesadelo de Ramon
Ontem à tarde eu estive conversando com o Ramon e ele
me contou um pesadelo que o vem atormentando há pelo
menos dois meses. Enquanto falava, suas mãos tremiam e
seus olhos giravam descontrolados, como que perdidos nas
órbitas. Ele realmente estava muito perturbado (e a julgar
pelo seu relato, com toda a razão).
Segundo Ramon, o pesadelo não durava mais do que uma
hora, pois começava tão logo ele dormia, às duas da
madrugada, e terminava por volta das três, quando
acordava em pânico, suando frio e com a boca
completamente seca de pavor. No entanto, seu enredo era
tão complexo e longo, que mais parecia uma epopéia às
avessas (sem nada de heróico ou glorioso) ou uma terrível
tragédia grega.
O pesadelo era mais ou menos assim:
Ramon cuidava da vida como tinha que ser: trabalhava,
levava os filhos na escola, comia, dormia, transava, ajudava
a esposa com as compras, lia livros, assistia a filmes, etc. Só
que, de repente, várias situações inesperadas começaram a
acontecer, a maioria ligada à casa onde ele vivia com a
família: a geladeira estragava, pombos entupiam as calhas
com ninhos e fezes, goteiras começavam a pingar no quarto
e na sala, a internet pifava, a antena da TV não captava
mais o sinal do satélite, o alarme disparava sem mais nem
menos, o telefone parava de funcionar, a pia da cozinha e
as duas privadas entupiam, etc.
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Se cada uma dessas situações acontecesse isoladamente e
todas fossem solucionadas, tudo bem (estariam dentro da
normalidade, sobretudo numa vida azarada como a de
Ramon). Só que no pesadelo de Ramon tudo acontecia ao
mesmo tempo, e nada era solucionado. Ele chamava
eletricistas, pedreiros, técnicos em informática, bombeiros,
homens da geladeira, do fogão, da máquina de lavar, da
calha, do alarme, e nada era resolvido. Sempre faltava uma
peça que não era mais fabricada, um dispositivo que só era
vendido na Coréia do Norte, na Malásia, na Rússia ou no
Alaska; ou a situação exigia a presença de um perito, um
especialista naquele tipo específico de problema (uma
pessoa que simplesmente não existia). Eles diziam: “Falta
nesse cano um bico de bronze que não é vendido no Brasil
em lugar nenhum, e eu não sei onde você vai achar”. “Os
pombos que infestam o seu telhado são de uma raça
japonesa imortal, primos distantes dos pokémons; não há o
que fazer”. “Essa goteira é um mistério para mim, ela
simplesmente não tem razão de ser; não há nada lá em
cima que a explique”. “Parece que tem um objeto voador
não identificado bloqueando o sinal da sua TV. Não é um
balão... Veja... Parece uma nave. Ela não sai dali. Já vi isso
acontecer... E, olha... não tem jeito”.
E novos problemas surgiam todos os dias, alguns de
arrepiar os cabelos. Como no dia em que um ninho de
pombo caiu na sacada do quarto de Ramon e os dois
filhotinhos recém-nascidos começaram a circular pela casa,
arrastando seus corpinhos depenados pelos corredores,
quartos e banheiros por dias e noites seguidos (porque, por
mais que Ramon tentasse se livrar deles, jogando-os no lixo,
afogando-os na privada entupida ou esmagando-os com a
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sola do sapato, eles voltavam sempre, ressurgindo dos
mortos, como naquele filme Cemitério Maldito).
E enquanto tudo isso acontecia, além de cuidar da “casa
monstro” e de sua família, Ramon tinha que ir a dezenas de
médicos e centros de diagnóstico, pois seus exames sempre
davam alguma coisa alterada. Ao ler um resultado, o
médico pedia mais exames, que davam resultados ainda
mais alarmantes, levando a mais e mais exames – Ramon
teve praticamente todas as células do seu corpo
investigadas: ribossomos, mitocôndrias, centríolos e
retículos endoplasmáticos analisados nos seus mínimos
detalhes, só para no final os médicos não chegarem a
nenhuma conclusão e Ramon sair de seus consultórios
cheio de sintomas e sem a menor esperança de cura.
Terrível, não?
Pois era esse o pesadelo de Ramon.
Será que Freud explica?
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Uma semana em Lisboa
Com o rosto colado na janela do avião, vendo surgirem
diante de seus olhos maravilhados os primeiros prédios da
bela capital portuguesa, Camila tirou uma foto do que lhe
pareceu ser a Torre de Belém e postou na rede social:
“Depois de uma travessia tranquila do Atlântico: Lisboa”.
Nenhum comentário sobre a terrível turbulência que
tinham enfrentado no caminho, em plena madrugada:
passageiros jogados com violência contra o teto do avião,
bagagens de mão lançadas como torpedos para todos os
lados, gritos desesperados (a maioria invocando Deus e os
santos, como se só eles pudessem salvar aquele voo de
uma tragédia): enfim, uma confusão dos diabos. Camila não
conseguia nem virar o pescoço direito por causa do tombo
que tinha levado. Na hora ela estava dormindo, sem cinto
de segurança. Quando acordou, no momento de maior
instabilidade, seu corpo estava sendo arremessado para
cima como um boneco de borracha, os olhos arregalados,
um grito de pânico entalado na garganta (que só saiu
quando ela caiu de cabeça no chão, torcendo o pescoço).
Finalmente Camila conheceria Lisboa: comeria pastéis de
Belém, sardinhas assadas e o melhor bacalhau do mundo;
subiria até o Bairro Alto pelo elevador de Santa Justa;
passearia pelas livrarias do Chiado: tudo minuciosamente
planejado no Google Maps.
Só que, ao se levantar para sair do avião, sua coluna travou.
Hérnia de disco. Um ataque dos bravos. Qualquer tentativa
de movimento tinha como resposta uma dor insuportável.
Ficou parada onde estava, como um robô enguiçado, com o
pé esquerdo já no corredor, aguardando que uma
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aeromoça passasse por ali para socorrê-la. Finalmente,
quando todos os passageiros saíram, ela conseguiu
balbuciar um pedido de ajuda para um comissário de
bordo, que lhe respondeu: “Vamos providenciar uma maca,
senhora”.
Saiu do avião de maca. O céu era de um azul belíssimo,
límpido, com pouquíssimas nuvens. Quase tirou uma foto e
postou: “Sob o céu de Lisboa”, numa alusão ao filme de
Wim Wenders, mas preferiu ficar quieta.
Do aeroporto Portela Camila foi levada a um hospital, onde
lhe deram uma injeção na veia que, em meia hora, fez
desaparecer completamente a dor. “Que maravilha!”,
pensou. “No Brasil eu ficaria de cama no mínimo três dias”.
Ao sair, soube por uma enfermeira que em Portugal havia
muita pesquisa médica sobre problemas de coluna e
doenças reumáticas, porque o número de pessoas sofrendo
desses males ali era imenso. “Aqui você vai encontrar muito
mais lojas especializadas em reumatismo do que em
brinquedos”, disse-lhe a enfermeira, despedindo-se. “Que
triste!”, pensou Camila.
Em frente ao hospital, Camila pegou um táxi e foi para o
hotel, onde descobriu que a sua mala tinha sido trocada no
aeroporto. Por fora parecia a mesma – uma mala dura,
preta, pesando cerca de trinta e cinco quilos, da mesma
marca que a sua –, mas por dentro só tinha roupas
femininas que não lhe pertenciam, todas de um tipo só –
para ser mais preciso: trinta batas africanas largas e
pesadas, estampadas com cores berrantes. Camila então
ligou para a companhia aérea, anotou o número do
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protocolo, ligou para a seguradora, anotou o número do
protocolo, respirou fundo, desabou na cama e chorou.
Minutos depois disse para si: “Chega de choro, Camila.
Levante-se já desta cama e vá conhecer Lisboa”. Foi o que
ela fez. Mas antes de sair, num acesso de rebeldia, vestiu
uma das batas que estavam na mala e amarrou um lenço
colorido na cabeça. Saiu assim, achando-se linda, pela rua
afora. Parou numa esquina, tirou uma foto de seu rosto e
postou: “Eu de africana nas ruas de Lisboa”. Pegou um trem
e foi para Belém.
Em Belém, depois de visitar a Torre e o Mosteiro dos
Jerónimos, foi experimentar o famoso Pastel de Belém.
Achou lindo o doce: a massa crocante, o creme amarelo
levemente tostado por cima, açúcar de confeiteiro e canela
salpicados em abundância. Deu uma mordida, tirou uma
foto e postou: “Saboreando o famoso pastel de Belém, em
Lisboa. O original”. Porém, assim que ela clicou em publicar,
o pastel voltou de dentro dela num vômito que mais
parecia um urro do capeta (as pessoas sentadas perto dela
pularam de suas cadeiras, com medo dos esguichos que
saíam de sua boca). Com certeza foi alguma coisa que ela
tinha comido no avião ou no hospital, que já estava ali,
pronta para explodir. Não deve ter sido culpa do pastel...
Enfim... Dali Camila foi a uma farmácia, onde tomou um
remédio para o estômago. Sentindo-se melhor, pegou o
trem de volta ao centro.
“Lisboa é linda”, disse Camila olhando os prédios do Rossio,
enquanto caminhava em direção ao elevador de Santa
Justa, uma bela construção neogótica do final do século XIX.
Entrou no elevador calmamente, sentindo-se uma
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verdadeira angolana, e se acomodou na cabine, bem em
frente ao vidro, de forma a ter uma vista privilegiada da
cidade. Quando o elevador estava na metade do caminho,
de repente, um cachorro pastor alemão começou a morder
a barra da sua bata. O dono do cachorro, que parecia um
policial, fez uma cara desconfiada e deixou que o animal
continuasse a incomodá-la, o que a revoltou, e ela gritou:
“Faça alguma coisa, seu idiota”. Mas ele não fez nada. O
cachorro então rasgou a bata de Camila, e do buraco aberto
no tecido começou a sair um pó branco que imediatamente
o dono do cachorro (que era mesmo policial) descobriu ser
cocaína.
Camila foi presa em Lisboa por tráfico de drogas. Passou
cinco dias numa cela apertada até conseguir provar que a
sua mala tinha sido trocada no aeroporto e que aquela bata
não era dela.
Ao sair da prisão, pegou o metrô até o Chiado, tirou uma
foto de uma bela construção do século XVIII e postou: “Tive
problemas com a internet em Portugal essa semana. Gostei
tanto de Lisboa, que ainda estou aqui. Cidade maravilhosa”.
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Faltam professores, e agora?
– No programa de hoje vamos conversar com Samuel
Almeida, funcionário responsável pelo recrutamento de
professores em nossa cidade. Boa noite, Samuel.
– Boa noite, Seu Bruno.
– Vou começar com uma pergunta básica: Como vocês
recrutam os professores para as escolas estaduais da
cidade?
– Bem, o ônibus do recrutamento circula pela manhã e à
tarde,
anunciando
as
contratações
imediatas:
normalmente, professores de todas as áreas, para trabalhar
na maioria das escolas, recebendo dois salários mínimos
mensais por trinta aulas semanais.
– E é fácil encher o ônibus?
– Não. Às vezes circulamos durante meses sem encontrar
professores de Biologia, Física, Química e Matemática. De
História, Geografia, Português e Inglês, geralmente com
dois meses de procura a gente encontra uns três ou quatro
para cada disciplina, e o Estado organiza um rodízio entre
eles, em duas ou três escolas, com uma carga horária maior
para cada um, resolvendo o problema; pelo menos até eles
desistirem da sala de aula, o que é só uma questão de
tempo.
– Mas por que vocês não anunciam as contratações nos
jornais locais ou nas rádios?
– Porque ninguém aparece. A gente precisa circular pela
cidade de ônibus, que é pago pelos pais dos alunos, e ainda
oferecer um lanche do Subway aos candidatos lá dentro
(também pago pelos pais), para aparecer alguém.
– E quem pode se candidatar?
– Qualquer pessoa.
– Qualquer um? Não precisa ser formado?
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– Formado em quê?
– Ora, em algum curso de licenciatura.
– Licenciatura? Essa foi boa, Seu Bruno, dá até vontade de
rir.
– Mas quem leciona?!
– Só para o senhor ter uma ideia: ontem mesmo, quando
desembarcamos um lote de três candidatos no prédio da
Superintendência de Ensino, fiquei sabendo que o Januário,
açougueiro, com Ensino Médio incompleto, foi contratado
para dar aulas de Biologia à noite. A Jandira, minha
cunhada, que nem concluiu o Técnico em Contabilidade,
virou professora de Matemática da noite para o dia, com
vinte aulas semanais. O Epaminondas, casado com uma
prima minha, só porque disse adorar ler gibis, foi
contratado como professor de Português, sem nunca ter
concluído o Ensino Fundamental. Para dar aulas de História,
qualquer um serve: os entrevistadores nem querem saber
se o candidato gosta de ler, se tem algum conhecimento
histórico, nada; vão logo perguntando: Quer dar aula de
História? De Geografia, a mesma coisa. Meu primo Juca,
que foi vendedor de sapato e conhece várias regiões do
Brasil, quando resolveu largar o comércio, foi contratado
para dar aulas de Geografia no Ensino Médio. E olha que ele
nem concluiu o Ensino Fundamental.
– Mas vocês não encontram ninguém com curso superior?
– De jeito nenhum! Foi-se o tempo que engenheiro dava
aulas de Matemática e advogado de História. Acabou. E eu
conheço um gari semi-analfabeto que recebeu uma
proposta da Superintendência de Ensino para ganhar meio
salário a mais para lecionar Física numa dessas escolas de
periferia e recusou na hora. É que o tio dele, um expresidiário, quando concluiu o Ensino Fundamental no
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presídio, foi contratado para dar aulas de Química nessa
mesma escola e acabou sendo assassinado por um aluno.
– E Filosofia? Quem dá aula de Filosofia?
– Filosofia? Acabou Filosofia. Não existe isso mais nas
escolas, nem Sociologia, nem Redação e nem Literatura.
– Mas como é possível?
– Não entendi.
– Os alunos não têm Literatura?
– Seu Bruno, 80% dos professores são semi-analfabetos.
Eles não conhecem nada de Literatura, nem o mínimo
necessário para enrolar os alunos, como fazem nas outras
disciplinas. Literatura é coisa de gente rica, de professor de
escola particular da capital, e olhe lá! (pois na capital, os
colégios que não pagam salários milionários aos
professores ficam a ver navios).
– E professor de Inglês?
– Qualquer pessoa que tenha passado uma temporada em
um país de língua inglesa (que seja uma semana) está apta
a lecionar inglês. A minha tia, por exemplo, que só
conseguiu concluir na vida um curso de corte e costura por
correspondência, lavou pratos durante dois meses no
Canadá e quando voltou foi contratada imediatamente para
dar trinta aulas semanais de inglês em duas escolas
estaduais da cidade. Pobrezinha... Ela dizia, cheia de
orgulho, que era pofessora de ingrês (nem português ela
sabia). Numa noite, quando ela tentava explicar uma
matéria qualquer, os alunos faziam tanta bagunça, gritavam
tanto, que ela resolveu fingir um desmaio e desabou no
chão. Lá do fundo, um aluno gritou: “Enfia o dedo no cu
dela que ela acorda!”. Depois disso ela nunca mais entrou
numa sala de aula, coitada.
– Mas por que as autoridades públicas não tomam
providências para resolver essa situação?
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– Resolver para quê? O governo não quer resolver nada na
Educação não, Seu Bruno. Para ele, filho de rico é que tem
que estudar em escola boa, para virar engenheiro,
advogado, médico, administrador, contador, executivo,
político; ou seja: uma minoria. Pobre tem é que aceitar sem
reclamar a vida que leva: trabalhar muito e ganhar pouco
até morrer, mantendo as coisas do jeito que estão.
– Não dá para acreditar...
– Mas é a verdade, Seu Bruno. Pergunte aos meus colegas
do recrutamento. Só um ou outro pai consegue juntar
dinheiro suficiente para mandar o filho para a capital, onde
ainda existem algumas (poucas) escolas boas, particulares,
com mensalidades que giram em torno de cinco mil reais.
Só ali é possível encontrar professor formado em faculdade,
às vezes até com mestrado, recebendo dez, doze mil reais
por mês; mas isso é uma raridade. Nas escolas públicas de
nível básico, a situação é a que eu acabo de descrever para
o senhor.
– Meu Deus... Como é que pode?
Bruno olha para o seu notebook, levanta as sobrancelhas e
continua: – Vejo que acabo de receber um e-mail da
socialite Dona Jaciara Menezes Torres e Albuquerque, que
está em sua mansão acompanhando a entrevista. Ela diz o
seguinte: Meu caro Bruno, gostaria de aproveitar este
espaço para parabenizar a Superintendência de Ensino e o
estado (sou amiga pessoal do governador) pelo excelente
trabalho realizado no recrutamento de professores para as
escolas públicas estaduais, em especial para as da nossa
querida cidade. Fico muito feliz em perceber que aqui,
apesar de algumas vozes discordantes, ainda vigora, para o
bem da harmonia social, a filosofia do ‘Cada um no seu
lugar com o que merece’. Um abraço a todos os ouvintes.
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Ser ou não ser
Dos onze aos quatorze anos de idade eu cursei o Ensino
Fundamental em um colégio de elite em Pará de Minas.
Que sofrimento! Eu simplesmente não me enquadrava
naquele mundo. Para começar, eu não saía (numa época
em que o verbo mais conjugado entre os adolescentes, nos
intervalos das aulas, era justamente este: SAIR). Sair nos
finais de semana significava: Eu aproveito a vida, sou
importante, tenho amigos, faço parte da turma.
Eu não fazia parte de nada.
Até o início da década de 90 eu não existia para a
sociedade, só para a minha família, que se preocupava com
o fato de eu ser tão introspectivo, tão mergulhado em meu
mundo interior, sozinho, enquanto meus colegas curtiam a
vida como todo adolescente devia curtir: saindo,
paquerando...
Para aqueles adolescentes, não sair significava não existir,
não viver. “Você não sai, não aproveita a vida”,
costumavam me dizer. Eu ouvia isso, mas não entendia,
porque eu vivia e aproveitava a vida intensamente, do meu
jeito. Meu maior prazer era a leitura. Eu praticamente lia
um livro por tarde, deitado no grande sofá da sala de visitas
da minha casa, sem ninguém para me incomodar. Eu me
desligava do mundo exterior e mergulhava nas histórias
com enorme prazer, viajando por cenários incríveis, em
histórias emocionantes contadas por mestres como Marcos
Rey, Lúcia Machado de Almeida, Stella Carr, Júlio Verne e
Agatha Christie.
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No início dos anos 90, quando eu descobri autores como
Rubem Fonseca, Fernando Sabino e Edgar Allan Poe – e me
recusava a trocá-los por uma ida ao Bar do Geraldinho
sábado à noite –, a pressão para eu sair aumentou, porque
eu TINHA que ter uma turma, TINHA que ficar com as
meninas e provar um monte de coisas para um monte de
gente. E eu acabava saindo. E era como voltar àquele
colégio e ter que assistir sem vontade àquelas aulas
horríveis de Danças e Teatros, Educação Moral e Cívica,
História e Português. Cheguei até a ficar com algumas
meninas, mas quando isso é feito apenas para cumprir uma
obrigação social, é ruim, não dá prazer.
Ali, no antigo Bar do Geraldinho, na Rua Coronel Domingos,
a juventude se encontrava para ficar parada na rua e nas
calçadas, bebendo em pé e vendo os carros passarem
cantando pneu e fazendo fumaça com o som no talo: mais
ou menos como acontece hoje no Stop & Shop e em outros
pontos da cidade na sexta ou no sábado à noite. Quando eu
sentia que minha obrigação tinha sido cumprida, eu saía de
fininho (como se alguém fosse notar...), e ainda aproveitava
um restinho da noite em casa, assistindo a alguns
programas e filmes da madrugada.
Sofri porque resisti à onda, ao modelo padrão de juventude
que vigorava na época, e o preço que paguei por isso foi
viver à margem, fora das turmas de garotos que bebiam,
saíam e ficavam com as meninas.
Minhas angústias terminaram em 1992, aos dezessete anos,
quando descobri a obra do escritor anarquista Roberto
Freire, que mudou a minha vida: Cleo e Daniel, Ame e dê
vexame, Sem tesão não há solução e Coiote, livros que me
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mostraram a delícia de ser aquilo que se é, de corpo e alma,
sem se preocupar com o que os outros pensam.
Em 92 e 93, em Belo Horizonte, participei de palestras e
oficinas do grupo SOMA, fundado pelo próprio Roberto
Freire, e aprendi a me conhecer melhor e a valorizar o que
havia de mais verdadeiro e original em mim.
Minha vida melhorou muito depois disso, e até hoje, graças
à Somaterapia, mantenho uma postura crítica em relação a
uma série de padrões sociais que, a meu ver, impedem-nos
de sentir a alegria de sermos o que realmente somos. Tais
padrões acabam criando para nós uma felicidade artificial,
baseada em coisas efêmeras, como ter o carro importado
mais caro, receber o prêmio Garra Profissional do ano,
assumir um cargo de gerência numa grande empresa, ser o
melhor aluno da turma, ter um apartamento de luxo num
bairro nobre, ser invejado por todos pela riqueza, beleza e
poder, etc. Tudo isso pode ser bom, desde que não
sacrifiquemos nosso ser original e único, nosso prazer de
viver e sentir o mundo, nossos sonhos mais profundos e
verdadeiros, trocando-os por projetos de vida artificiais,
ligados muito mais à aparência do que à essência.
Termino esta crônica citando o mestre Roberto Freire,
escritor marginal, que me ajudou a superar vários
obstáculos na minha vida:
"Eu sou terapeuta e posso dizer que 80% dos meus clientes
têm problemas psicológicos por não estarem fazendo o que
gostariam de fazer. As pessoas fazem, convencidas pelas
suas famílias, o que o meio social prefere; isto de fazer o
que é imposto provoca nessas pessoas um grande
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sofrimento, que muitas vezes estoura fora do trabalho,
estoura em sexo, em agressividade, em equilíbrio mental.
Observando estes casos você vai ver como a forma de vida
dessas pessoas é imprópria para elas. Numa sociedade
como a nossa (...), as pessoas sensíveis, cujo projeto de vida
não está dentro do que espera o meio social, sofrerão
muita repressão; e esta é uma repressão muito danosa, pois
é castrativa. Uma pessoa que não faz o que precisa fazer,
tende a adoecer, perde, no mínimo, a identidade e o autorespeito". (Roberto Freire. Sem tesão não há solução.
1990).
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Sua Alteza, o Cu
Ele adiou a ida ao médico o máximo que pôde, apelando
para pomadas e cremes receitados por um amigo
farmacêutico, mas chegou uma hora que não teve jeito.
Marcou a consulta e foi.
O médico, muito simpático, pediu-lhe que tirasse a roupa e
se deitasse na cama. O exame foi minucioso. Diagnóstico:
hemorróidas inflamadas (quase pulando para fora de tão
inchadas), fissuras e ulcerações (causadas, certamente, por
evacuação difícil ou volumosa), um abscesso retal cheio de
pus e indícios de inflamação do revestimento interno do
reto. “Nada grave”, disse o doutor, “só incômodo”.
Durante o tratamento, que foi longo, médico e paciente
acabaram se tornando amigos. Ambos eram divorciados,
solitários, e encontraram um no outro o conselheiro, o
confidente, o ouvido amigo para as horas boas e ruins.
Nas longas conversas que mantinham nos finais de semana,
um dos assuntos preferidos do médico era o cu (com
amigos, ele não usava a palavra ânus: era cu mesmo).
“Não concordo com o desprestígio dessa região nobre do
nosso corpo que é o cu”, disse ele uma noite, já na terceira
taça de vinho. “Quase toda frase ou expressão que leva a
palavra cu tem conotação negativa: o ‘cu do mundo’ é o
pior lugar do mundo; ‘tomar no cu’ é um insulto; se te
chamam de algo que você não gosta, você responde: ‘seu
cu’; se a pessoa é chata, ela é ‘carninha de cu’; se tem cara
feia e enjoada, é ‘cara de cu’... Ah, pelo amor de Deus! E o
descuido das pessoas com seus cus? Eu que sou especialista
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em cu é que sei. Não limpam, não lavam, não secam direito;
usam papel higiênico de péssima qualidade, verdadeiras
lixas; não sabem nem dobrar o papel: passam o negócio de
qualquer jeito, uma vez só, e rápido. Imagine o cu dessas
pessoas!: aquela borra seca, horas e horas ali, enroscada
nos pêlos, agarrada nas pregas... Ah, que nojo! Que
desrespeito com o cu! Adoram sentar no vaso pra cagar,
mas só se lembram do cu quando ele trava, quando dói. E
ainda custam a procurar o médico, de vergonha. Para quê
ter vergonha do cu? TODO MUNDO tem cu! Ficam sem jeito
até de comprar papel higiênico no supermercado! Será que
têm medo da moça do caixa pensar: ‘Hummmm, está
comprando um papelzinho para limpar o cuzinho, hein’? O
que é que tem? Ela também não limpa? E o pior é que só
procuram ajuda quando a coisa fica feia mesmo:
hemorróidas sangrando horrores, abscessos do tamanho de
bolas de sinuca, ulcerações, fístulas minando pus dia e
noite, tumores... Você nem imagina o que eu vejo ali, meu
amigo. Falta só dar bicho. É assustador. O povo tinha que
dar mais atenção ao seu cu, tratá-lo com mais carinho e
respeito; sabe por quê? Porque é ali que a vida realmente
faz sentido. Pense no nosso corpo. O que é o corpo?... O
quê?... Não. Um tubo. Nosso corpo é um tubo. Um tubo
que começa na boca e termina no cu, e que, para existir,
tem que ingerir e excretar – em outras palavras: comer e
cagar – até morrer. Pois é. Vencido o prazo de validade do
tubo, ele morre. Qualquer tubo. Não importa a
procedência. E a morte, o que é? A morte, meu caro, é
quando nos auto-excretamos para a natureza... É até
poético isso... Imagine o momento exato da morte... Deve
ser como sentar na privada com aquela dorzinha de barriga
agradável e liberar tudo, TUDO – a evacuação mais
volumosa DA SUA VIDA –, soltar-se... e o espírito se
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desprender da matéria-excremento, leve, leeeeve... livre
para Deus... para o que for...
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Mercier, e não queria terminar, e segurava o livro junto ao
peito numa espécie de abraço de despedida.
Tempestades
Vou até minha estante e pego Big Sur, de Jack Kerouac.
Abro-o numa página qualquer e leio ao acaso: “E com todas
as escuridões róseas enevoadas de tons variados e sombras
tranquilas para expressar a efemeridade real da noite”. Vou
ao início e leio: “A infância da simplicidade de apenas ser
feliz num bosque, sem se dobrar às ideias de ninguém sobre
o que fazer, o que deve ser feito”. Avanço algumas páginas
e me deparo com esta pérola: “Vamos passar tão quietos
pela vida (passando, passando) como o povo do século X
aqui nesse vale só que com um pouco mais de barulho e
algumas pontes e barragens e bombas que sequer vão
durar um milhão de anos”. Fecho o livro e admiro sua capa:
um carro seguindo por uma estrada deserta, e logo acima
do título a frase de Allen Ginsberg: “Cada livro de Jack
Kerouac é uma peça única, um diamante telepático”.
Big Sur. Que beleza de livro! Folheio-o novamente, acaricio
sua lombada, viro-o de um lado para o outro e deixo-o
sobre uma cadeira, bem ao lado de uma taça de vinho pela
metade: um tinto português do Vale do Douro que eu abri
ontem à noite e que, agora, neste início de tarde, eu
continuo a beber, pensando: ‘As uvas daquela região
tiveram que dar sua alma para que esta maravilha pudesse
ser produzida; e o mesmo eu digo do Kerouac, que pôs toda
a sua alma indomável neste livro extraordinário’. Olho para
o livro e para o vinho e me emociono, mais ou menos como
me emocionei quando segurei pela primeira vez uma edição
antiga de O Caso Morel, de Rubem Fonseca, e senti suas
páginas amarelecidas pelo tempo, pressentindo o prazer da
leitura que em breve eu faria; ou quando eu me encontrava
nas páginas finais de Trem noturno para Lisboa, de Pascal
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Trago para junto de mim agora uma bela edição de Crime e
Castigo, de Dostoievski. Vou à página 577 e releio a última
frase do livro, seca, dura, fria: “Poderíamos encontrar aqui
matéria para um novo relato, mas o nosso já terminou”.
Lembro-me que, quando li esse livro pela primeira vez, o
tom de indiferença e cansaço que o autor adotou nessa
frase me atingiu como um corte de navalha, porque meu
espírito ainda era um turbilhão de loucura e desespero – é
isso que Dostoievski faz com a gente! – e não queria se
acalmar, não estava satisfeito; queria mais. É como se de
um enorme tornado, de repente, sem nenhum aviso, você é
lançado para fora e vai ao chão, Bum!, sente o impacto –
forte, violento –, levanta-se, limpa a poeira do corpo, olha
ao redor e só vê um deserto – um imenso e mudo deserto –
e num piscar de olhos está de volta à realidade, à vida
cotidiana, às obrigações do dia-a-dia. Mas por dentro você
é outro. Aquilo te transformou.
Ouço um trovão. Estou sozinho em casa. Termino meu
vinho, pego uma edição antiga de Uivo, de Allen Ginsberg, e
vou para o quintal sentir as tempestades que se armam
(fora e dentro de mim). De seu túmulo, Ginsberg vocifera:
“Soltem as fechaduras das portas! Soltem também as
portas dos seus batentes!”.
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O clube dos excluídos
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“esquisitices” do outro e procurar entendê-lo, da mesma
forma como queremos ser entendidos e aceitos.
Você é daqueles que na adolescência a maioria dos
professores nem notava em sala de aula? Que quando eram
notados por colegas era para serem usados como meninos
de recado ou para fazer número numa rodinha e depois
serem desprezados como papel de bala num lixo qualquer,
principalmente em festinhas e barzinhos? Que nessas
festinhas e barzinhos, quando iam por obrigação – ou
porque os pais insistiam demais, para que pudessem dizer
aos amigos: “Meu filho saiu com a turma dele” –, ficavam
deslocados num canto, pedindo a Deus para morrer? Você
é daqueles que odeiam ter que conversar com pessoas
desagradáveis e fúteis só porque as regras do bom convívio
assim exigem? Que se sentem verdadeiros alienígenas,
completamente perdidos num mundo para o qual não
pediram para vir – a não ser quando estão fazendo o que
realmente gostam, em fragmentos minúsculos de tempo
que só servem mesmo para aumentar ainda mais a fome de
viver e a impotência diante da força disso que chamamos
de vida? Você é daqueles que nunca se sentiram
preparados para viver em sociedade, e que a maioria dos
enquadrados socialmente despreza, rotulando-os de “antisociais”, “esquisitos”, “estranhos” e às vezes até de
“malucos”?
Isto é um convite.
Vamos lá?
Se for, você não está sozinho. Somos muitos, sabia? E
estamos fundando um clube em nossa cidade: o clube dos
excluídos. Seu fundamento é “ser o que se é”, sem
cobranças e preconceitos. Queremos nos encontrar para
viver o que somos de verdade, conversar, compartilhar
prazeres “estranhos”, discutir tabus, desabafar, aceitar as
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Vândalos
A alma de Ramon está de novo tomada pelo que nela há de
mais selvagem: uma vontade de esganar, arrancar olhos,
rasgar bochechas carnudas com gillette, picar orelhas com
alicate, socar narizes, afundar crânios com porretes e gritar,
urrar como um animal enjaulado, que de repente se vê livre
e sobe no topo do mundo e lá se entrega à natureza e ao
cosmos infinito, sem passado, presente e futuro, sem
vitórias e derrotas, sem riqueza e pobreza. Uma vontade de
explodir a Copa de 2014 com dois trilhões de quilos de
dinamite e jogar todos os iPads, iPods, tablets, Playstations,
Pollys, Barbies e tudo que tiver nome em inglês na parede e
depois explodir o lugar com tanto fogo e destruição que as
chamas serão vistas da Lua e, quem sabe, até de Marte. E
também de pegar todos os políticos corruptos e dar-lhes
uma surra bem dada com vara de marmelo e ramos de
urtiga e depois fazê-los engolir vários litros de fel e
arrancar-lhes os pêlos do cu e da virilha com cera quente e
obrigá-los a viver como mendigos por dez anos, dormindo
em abrigos, usando o transporte público e apanhando da
polícia e de playboys. E nesses dez anos, seus filhos
estudarão em escolas públicas estaduais e municipais,
como qualquer pobre, e terão aulas com professores
completamente despreparados e desmotivados – a escória
da escória dos que ainda resistem às humilhações e
continuam lecionando.
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E nessa luta do homem contra a fera, finalmente vence o
homem, ajudado pela Rede Globo de Televisão, que Ramon
assiste há horas, acompanhando a cobertura dos protestos
contra o aumento das passagens de ônibus em São Paulo e
no Rio de Janeiro – que, na verdade, como nós leitores
críticos sabemos, vão muito além dessa questão das
passagens, mostrando a indignação de um povo cansado da
corrupção, da injustiça e da precariedade dos sistemas de
saúde, transporte e educação.
Ramon então se levanta, indignado com a baderna
provocada pelos vândalos de São Paulo e do Rio, pega o
carro e vai a um Drive Thru do McDonald’s, bem na esquina
da sua casa, para comprar um Big Mac. Sua fera está presa
e dorme, mas o homem civilizado tem fome.
Mas Ramon luta contra esse bicho feroz que o ataca e
domina, reage às suas garras e dentes buscando em si seu
lado civilizado e cordial, moldado pela educação burguesa
tradicional, que defende a ordem e a hierarquia acima de
tudo.
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Cura gay
Fazendo o V da vitória, o deputado comemorou
efusivamente, junto com seus amigos e seguidores, a
aprovação do seu projeto Cura gay. Segundo ele, o
homossexualismo é uma doença e pode ser curado com
tratamentos psicológicos e com a ajuda de Deus. A maior
prova disso, no entanto, ele mantinha no mais absoluto
sigilo: a sua própria cura, aos vinte anos, quando decidiu
parar de comprar revistas gays (que ele recebia pelo
correio), arrumou uma namorada e, rezando muito, tratouse com um amigo psicólogo, que em menos de dois anos
conseguiu curá-lo. Depois da cura, o futuro deputado se
casou, teve dois filhos varões, e hoje mantém uma vida
sexual bastante ativa com a sua esposa, uma mulher bonita
e fogosa que, segundo um jornal sensacionalista da capital,
“põe não só a mão, mas o braço inteiro no fogo para o
marido”.
Meses depois de aprovado o projeto, imagine o choque que
ele levou ao descobrir que seu filho mais velho, de dezoito
anos, era gay. Justo o mais machão dos dois! O menino era
capitão de um time de futebol, saía de carro à noite todo
final de semana para pegar mulher e espancar travesti com
os amigos, tinha voz grossa, coçava o saco o tempo todo e
comia que nem macho: com a boca aberta e arrotando na
mesa. Mas era gay. O pai descobriu por acaso, quando
achou uma revista muito suspeita nas coisas dele, e
vasculhando com mais cuidado, encontrou uma série de
apetrechos sexuais que não deixavam margem para dúvidas
(não dá nem para descrevê-los aqui). E ao ser confrontado
com as provas, o rapaz confessou. Tinha até namorado!
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O pai ficou arrasado, mas manteve-se firme. Procurou um
psicólogo, especialista em cura gay, e lhe entregou o filho,
com uma só determinação: “Cure-o”. Mas nada que o
terapeuta fizesse conseguia curar o rapaz, que foi
submetido até a lavagem cerebral, com eletrodos e tudo.
Em prostíbulos de luxo foi apresentado às mulheres mais
lindas da noite, que chegavam a excitá-lo e, às vezes, até a
levá-lo para a cama, sem, contudo, apagar o desejo que ele
sentia por homens, que era muito mais forte que a
excitação sem graça que lhe provocavam as mulheres. Ele
era gay e pronto. É certo que tentou se curar, para agradar
o pai, mas depois viu que não tinha jeito e desistiu. Saiu de
casa e foi morar com o namorado.
No dia em que o filho foi embora, o pai, amargurado,
entrou no quarto do rapaz e desabou sobre a cama, aos
prantos. Pegou a revista gay, que ainda estava na gaveta da
cômoda, e folheou-a, enojado. Ao se deparar com a foto de
um modelo, porém, sentiu um estranho tremor – uma
espécie de frisson –, que lhe percorreu o corpo inteiro com
a velocidade de um raio. Olhou a foto com mais atenção e
viu nela uma paixão que teve na juventude: um rapazote de
dezoito anos, seu colega de faculdade, com quem se
imaginava fazendo as mais loucas estripulias na cama. Foi
terrível para ele relembrar esse passado.
O fato é que o deputado ainda era gay. Não tinha se
curado. Ele acreditava tanto na sua cura, desprezava tanto
seus desejos, que era como se não fosse gay. Mas era. E ao
se dar conta disso, rasgou a revista em mil pedacinhos e
chorou, chorou muito, até cansar. Depois foi se olhar no
espelho. Admirou sua beleza, seus traços de macho, seu
olhar de fera selvagem, e sacudiu a cabeça, desarmando o
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cabelo duro de laquê, que lhe caiu revolto sobre a testa e os
olhos. Sentiu de novo o frisson, tentou mais uma vez negar
a realidade, afastar aquele desejo que lhe tomava o corpo e
a alma, mas desistiu e se entregou. Desesperado, louco
para tirar o atraso, foi à cozinha, pegou uma cenoura, uma
banana caturra, uma abóbora-menina, uma berinjela, e se
trancou no quarto do filho.
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A comida no facebook
Você, que tem o hábito – ou vício – de acessar o facebook
dia e noite, com certeza já se deparou com gente postando
fotos de comida – muitas vezes só da comida, toda
arrumadinha em cima da mesa –, com comentários do tipo:
“Olha o que o meu benzinho acaba de preparar para mim”,
“Hummmmmm, que delícia!”, “Está servido?”. Quando o
prato é muito sofisticado, a foto geralmente é em close,
para que os simples mortais do outro lado possam
visualizar bem os detalhes – como a gotinha de calda de
caramelo suíço dando um toque de leveza na folhinha de
hortelã de uma sobremesa francesa, ou os cinco tons de
rosa dos camarões gigantes sem casca dispostos em círculo
ao redor de legumes importados do Ceilão ou das Ilhas
Canárias. Outras vezes, as pessoas aparecem comendo,
bebendo, rindo, se divertindo; quando é comida japonesa,
adoram mostrar que sabem usar os palitinhos, e fazem até
pose para a foto.
É ou não é?
Segundo o antropólogo Roberto Da Matta, “a comida vale
tanto para indicar uma operação universal – o ato de
alimentar-se – quanto para definir e marcar identidades
pessoais e grupais, estilos regionais e nacionais de ser,
fazer, estar e viver.” No facebook isso é claro; e nele
podemos identificar, a meu ver, dois tipos bem específicos
de postagens com fotos de comida: aquelas que distinguem
e destacam pessoas e grupos da grande maioria da
população e reforçam a ilusão (neles e nos outros) de que,
pelo fato de poderem pagar por refeições sofisticadas e
caríssimas, um abismo os separa dos simples mortais; e
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aquelas que definem e marcam uma identidade mais
democrática, mais aberta e acessível: a do brasileiro simples
e alegre, que ama uma cervejinha gelada, um filé acebolado
com amigos num boteco, uma traíra sem espinho no bar do
Zé, uma lasanha de frango no domingo com a família:
comida simples e gostosa, bem feitinha, que marca um
estilo de vida agradável (que a maioria das pessoas pode se
dar) e, ao mesmo tempo, mostra aos que estão do outro
lado que ali todo mundo está feliz, curtindo a vida numa
boa – eu diria até que faz parte do ritual das fotos que os
outros saibam que todos ali estão bem: o sinal dos dedos
em V e a latinha de cerveja levantada são os símbolos mais
corriqueiros dessa alegria de viver no facebook, que o outro
PRECISA ver, para compartilhar ou invejar.
Por coincidência, minha mulher acaba de me chamar para o
jantar. Hoje teremos Confit de Canard com purê de batatas
e maçã caramelizada, harmonizado com um vinho
simplesmente espetacular: o La Tâche de Romanée Conti
2007.
Está servido?
(Mais tarde eu posto a foto).
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Camila conseguiu
Camila pelejou anos para chamar a atenção da imprensa
local para o seu trabalho. No rádio até que conseguiu
alguma coisa, mas queria um espaço também no jornal
impresso, vitrine privilegiada da alta sociedade: o
semanário A City. Não precisava nem ter foto, só uma
notinha sobre a exposição, um comentário sobre dois ou
três quadros, mais nada. (Ela queria impressionar os ricos,
para ver se alguém comprava alguma coisa, porque a vida
estava difícil). Não teve jeito. Por mais que ela pedisse e
implorasse, o dono do jornal desconversava, dava uma
desculpa e não publicava nada, nem uma frasezinha em
letras minúsculas no pé de uma página. (Ela não tinha
amigos influentes, então era complicado).
Camila não comprava o jornal, porque era muito caro, mas
folheava-o numa banca do centro, e ficava indignada ao ver
que qualquer porcaria que uma socialite ou um magnata
qualquer pintasse ou escrevesse era publicada e comentada
com toda a pompa que a estirpe, a influência, o poder e o
dinheiro daquela pessoa exigiam, com elogios do próprio
dono do jornal, que de pintura e literatura não entendia
nada.
Até que um dia Camila apareceu na primeira página de A
City, com direito a uma foto enorme dela sorrindo, toda
feliz, e, na página quatro, a uma matéria especial sobre sua
vida, com várias fotos de seus quadros. O título em
destaque na primeira página, logo acima da foto da pintora,
era: “Morte trágica”. Embaixo da foto, um pequeno texto
convidando o leitor a ler a matéria da página quatro: “A
jovem e talentosa artista plástica Camila Sampaio, 35 anos,
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teve um infarto fulminante enquanto tomava um sorvete
no centro da cidade e morreu no local. Conheça a história e
o trabalho dessa pintora em uma matéria especial de Jorge
Baba Saco, na página 4”.
Foi assim que Camila conseguiu o espaço que tanto queria
no jornal. Parabéns, Camila. Descanse em paz.
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Missão pombos
Com muita calma, o professor abriu e fechou o portão da
garagem várias vezes, até descobrir onde estava o
problema: eram três ou quatro dentes de plástico – que se
encaixam no eixo do motor, fazendo o portão se
movimentar – que estavam quebrados: por isso o barulho
esquisito e, de vez em quando, a necessidade de descer do
carro e empurrar o portão com a mão. Percebeu também
que com uma chave de fenda ele poderia inverter a placa
onde estavam os dentes quebrados, ajustando os que se
encontravam intactos ao eixo, no lugar dos outros, o que
resolveria o problema. Com o coração acelerado, ele pegou
a caixa de ferramentas, ajoelhou-se diante do portão e
começou o trabalho. O suor escorria pelo seu rosto. O
primeiro parafuso não cedia, porque o inepto professor
girava a chave para o lado errado. Corrigido o sentido da
rotação, o parafuso cedeu, os outros também, e finalmente
a placa estava em suas mãos. Inverteu-a, mudando-a de
posição no portão, e enroscou de novo os parafusos,
apertando-os com força. Pronto. Ansioso para saber o
resultado, com as mãos trêmulas, apertou o botão do
controle. A luz vermelha piscou e o portão se abriu sem
barulho, deslizando suavemente seu enorme peso de ferro
sobre o trilho – e o professor, maravilhado diante de sua
obra, sorriu feliz. A esposa chegou do trabalho e o
cumprimentou pelo grandioso feito, que naquele dia vinha
se somar a uma outra façanha sua, não menos notável: a
descoberta, na semana anterior, de que não era preciso
chamar um carpinteiro para apertar as maçanetas quando
elas se soltavam das portas, bastava usar corretamente as
chavinhas em forma de L que tinham vindo junto com elas.
Que sensação maravilhosa!
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Com certeza foi essa segunda vitória sobre suas limitações
práticas que o fez decidir atacar por conta própria o
problema dos pombos que infestavam o telhado da sua
casa.
No dia seguinte, então, comprou uma escada de ferro que,
ao ser aberta, alcançou facilmente o telhado, no local exato
onde os pombos tomavam sol e copulavam, em meio a
fezes, penas, gravetos, palhas e ovos: uma verdadeira
antecâmara do inferno. Naquele mesmo dia ele tinha
encontrado um produto numa loja veterinária que, segundo
o vendedor, espantava pombos. Não era veneno, mas uma
substância que grudava nos pés das aves, incomodando-as
de tal forma que elas iam embora e não voltavam mais.
Pagou para ver. Abriu a escada, ajustou o pino de segurança
que a manteria aberta e, com o produto e um enorme
pincel em mãos, começou a escalada. A escada lhe pareceu
frágil sob seu peso de mastodonte, que a envergava para
dentro, balançando-a num movimento de vai-e-vem
perigosíssimo; mas o professor parecia nem ligar; avançava
lentamente, arfando de ódio, em direção ao território
inimigo. E os inimigos, pressentindo o perigo, alçaram vôo,
todos de uma vez, e ficaram sobrevoando a área,
preocupados com o que aquele gordo de bermuda e
chinelos pretendia fazer no seu playground. Junto com o
produto espanta pombos e o pincel, ele levava também um
saco de lixo para recolher ninhos, ovos e filhotes (se os
encontrasse) e uma latinha de creolina, para desinfetar o
local. A missão tinha tudo para dar certo, se não fosse o
excesso de peso sobre a escada, que não resistiu e quebrou,
quando o professor já estava quase no telhado, a mais de
três metros do chão.
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A queda foi assustadora. O professor caiu de bunda no chão
– sentiu um choque tão forte, que cogitou até a hipótese de
ter ficado paralítico. Mexeu as pernas e os pés e suspirou,
aliviado, afastando da cabeça o pior; mas ainda não tinha
escapado de uma possível fratura na bacia. Levantou-se
lentamente, tremendo de medo, e logo percebeu que sua
bacia estava intacta. “Graças a Deus”, sussurrou, enquanto
olhava ao redor e via a escada quebrada e as outras armas
da missão espalhadas pela grama e pelo chão da garagem.
À noite, a esposa e os filhos o cercaram de carinho – o que
de certa forma compensou o fracasso –, e se espantaram
com o enorme hematoma que se espalhava por quase toda
a extensão do seu gigantesco traseiro.
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O delírio de Ramon
Em mais uma de suas longas madrugadas de insônia,
Ramon se distrai na cozinha matando formigas doceiras na
bancada da pia e na porta da geladeira. Elas correm
desesperadas, procurando um esconderijo; às vezes
desaparecem num buraco ou numa fresta do armário, mas
quase sempre ele as pega. E mata. Esfrega-as entre os
dedos até transformá-las numa pasta seca cheia de fiapos
de pernas, antenas e pequenas lascas de abdômen e tórax.
E cheira. Adora o cheiro ácido de formiga doceira
espatifada.
Mas o que ele quer mesmo hoje é dormir sem ter que
tomar remédio. “Hoje não tomo”, ele sempre diz, mas
acaba tomando meio comprimido, ou um inteiro, depende
do estado em que se encontra – se está tremendo muito, se
fecha os olhos e vê estrelas piscando, se a mandíbula trava
e ele não consegue abrir a boca, se sente cãibras pelo
corpo: qualquer um desses sintomas é, para ele, indício de
que seu velho amigo das horas mais terríveis de solidão e
desespero será acionado por inteiro. (Falso amigo...). Ao
tomá-lo, depois de trinta minutos Ramon simplesmente
apaga.
Não toma o remédio ainda. Liga a televisão. Numa cena, vê
centenas de ratos bebendo leite no que parece ser um
prato gigante. “Que coisa extraordinária”, pensa Ramon,
com os olhos vermelhos esbugalhados grudados na tela. A
reportagem diz que rato é sagrado naquele país. Imagina-se
pegando um dos grandes pelo rabo, levando-o à altura do
rosto e lambendo seu focinho sujo de leite. Começa a
tremer de aflição e muda de canal.
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Outra cena assustadora: um pastor, apóstolo ou missionário
de uma dessas igrejas mundiais ou universais pedindo
dinheiro a seus fiéis. “Para alguns, Deus pede só cem
reaizinhos, para outros, quinhentos, mil, dez mil”, diz o
larápio, e Ramon começa a tremer muito, dos pés à cabeça.
“Não pode, meu Deus... Isso não pode estar acontecendo”,
diz, e tenta acender um cigarro, mas o isqueiro falha três,
quatro, dez vezes, e sua mão já não consegue segurá-lo,
está crispada, dura como pata de macaco embalsamada;
sua boca não abre mais, seus olhos começam a piscar
freneticamente, a cabeça a balançar para frente e para trás,
como se tomada por um espírito infernal.
Ramon está em crise. Precisa do remédio. Tenta se levantar
e ir até a estante para pegá-lo, mas se desequilibra e cai no
chão, bem em cima do controle remoto da televisão, que é
acionado pelo tombo e muda o canal.
Caído sobre o tapete, Ramon olha para cima e assiste a uma
cena grotesca: meninas de cinco anos em trajes de gala, de
salto alto, cheias de pintura, os cabelos alisados com
chapinha ou armados de laquê, participando de um
concurso de miss infantil.
Não aguenta o choque e entra em convulsão. Treme como
se morresse numa cadeira elétrica, os olhos prestes a saltar
das órbitas, mas mesmo assim consegue ver a sala, a
televisão, a estante, o sofá. De repente, sente a
aproximação de alguém; arregala os olhos e vê, de pé, ao
seu lado, uma mulher vestida de branco, segurando uma
espada, o olhar de justiceira implacável dirigido a ele,
Ramon (sua vítima!), que, incapaz de reagir, aguarda o seu
destino. Ela lhe diz: “Cuidarei de você, querido”, e se
abaixa. Com a mão esquerda, estica o pescoço de Ramon
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sobre uma almofada, puxando-o pelos cabelos, e, com a
direita, corta-lhe a cabeça.
Antes de mergulhar na escuridão da morte, Ramon ainda vê
a mulher, que o encara, segurando sua cabeça decepada
pelos cabelos. Sorrindo, olhando-o nos olhos, ela sussurra:
“Agora você está livre”.
Ramon acorda de seu delírio com a esposa tentando
desenrolar sua língua; aos poucos volta ao normal, seu
corpo relaxa, e logo sente o espírito apaziguado, leve. Seus
filhos também estão ali, cuidando dele. Em silêncio, vive
aquele amor. Está bem agora.
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O Cristo é saudade que não cabe no coração
Eu tinha cinco anos. A serra era alta (dava para ver a cidade
inteira lá de cima). Eu nunca tinha ido num lugar tão alto.
Foi meu avô que me levou. E o Cristo era tão grande... dava
até tontura de olhar. Meu avô me colocava nas costas e eu
abria os braços e brincava de tentar pegar a cabeça do
Cristo. E ríamos. Depois íamos tomar sorvete. Duas bolas só
para mim. Que delícia de sorvete! Tudo era bom. Ninguém
morria. Nada me entristecia. Meu avô era puro amor. Com
ele, nada de ruim podia me acontecer.
Trinta e três anos se passaram desde o dia em que meu avô
me levou ao Cristo pela primeira vez. Hoje tenho dois filhos,
meus cabelos estão brancos, a vida não é fácil, todos vamos
morrer um dia...
E tudo é tão pequeno...
A cidade tem ares de grandeza, mas é pequena – como é
pequena, meu Deus! Somos como formiguinhas bem
pequenininhas buscando todo dia sua comidinha, vivendo e
morrendo, tudo muito rápido – PUF! Acabou.
A serra do Cristo é quase no chão. Dá até para subir de
escada, contando os degraus, em menos de vinte minutos.
Fiz isso hoje. E lá embaixo, na cidade, gritos e sussurros que
eu não ouvia, mas sabia: “porque eu sou o melhor, eu
posso mais, eu tenho mais, comigo é assim” e não sei mais
o quê. Pretensiosos e arrogantes aos montes lá embaixo,
pensei. Que pequenez. Mas também muita gente boa.
Ainda bem.
E o Cristo?
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Então... Por incrível que pareça, para mim, o Cristo
permanece grande. Ele é pequeno, claro. Mas é grande.
Grande na memória viva do meu ser. Na emoção que eu
sinto ao vê-lo de perto. Na lembrança de achá-lo grande, de
braços abertos no topo do mundo, aos cinco anos. Na
saudade que eu tenho do meu avô...
De todos os Cristos que eu vi até hoje, do Rio a Lisboa, o
nosso é o menor. Mas é o maior. Não no tamanho, mas no
que ele representa para mim. Uma grandeza que não se
mede com fita métrica. É alegria. É dor. É saudade que não
cabe no coração e transborda de tão grande.
Texto publicado no livro Cristo: 50 anos de braços abertos sobre Pará de
Minas, em homenagem aos 50 anos da estátua do Cristo Redentor de
Pará de Minas (1963-2013).
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Embaixo do caminhão
A marmita
de plástico
branco
salpicada
de barro
tem num canto
farinha de mandioca
com borra
de carne frita,
no outro,
arroz
empelotado,
e no meio,
uma capa
gorda
de toucinho
de porco
sem sal.
No chão
de terra
molhada,
abrigando-se
da chuva
embaixo
do caminhão,
o cortador
de cana
rasga com
as mãos
o toucinho,
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mistura os pedaços
com farinha
e arroz,
e leva tudo
à boca
de dentes
podres,
que mastiga
voraz
cada bocado
do pouco
que tem.
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curvados,
humilhados,
misturando-se
às sombras
do caminhão
que não é deles,
pés cobertos de lama,
rachados,
sustentando
o peso
do que é assim
e pronto,
não tem jeito:
Ao todo
são quatro
trabalhadores
jovens
comendo com
as mãos
no pequeno intervalo
concedido
pelo dono
do canavial
– que também é dono
dos caminhões,
das foices e
usinas
trabalhar
trabalhar
trabalhar
para não morrer de fome,
olhos brilhando
nas sombras,
embaixo do caminhão.
do inferno.
O viver deles é isto:
agachados,
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O bonitão da bala Chita
................................
Falo o que penso, sem medo; minhas convicções são as
mais acertadas; minhas posições, as mais retas; quem não
concorda comigo está errado. Eu sei que pago um preço
alto por ser audacioso, por ter a coragem de enfrentar esse
rio caudaloso de ignorância e interesses mesquinhos que
toma conta de nossa cidade, mas continuo meu caminho
mesmo assim; meus interesses são os melhores; meus
ganhos, os mais justos; minhas vitórias, as mais merecidas.
Levanto-me contra as vozes discordantes, que são o erro;
ergo meu estandarte de boas intenções, de visões de
futuro, e caminho em meio à tempestade de injustiças e
desaforos que me assola sem piedade.
Eleito recentemente para um mandato de quatro anos, o
novo encarregado da Fazenda Mamata recebe agora pela
manhã seu secretário geral e com ele discute o
preenchimento de vários cargos comissionados e outros
assuntos delicados, com o objetivo de cumprir pelo menos
parte das inúmeras promessas que fez durante a
campanha:
Fazenda Mamata
Falo o que penso, e o que penso é o que tem que ser; os
outros são incapacitados, despreparados para a vida, para a
profissão que escolheram; eu escolhi certo, e tenho talento,
sou bom; os outros são migalhas, não podem comigo; mas
querem me destruir, porque sou o melhor; não me aceitam,
atacam-me, atravancam meu caminho; querem meu
fracasso, porque o meu fracasso é a vitória deles, de sua
visão atrasada, ingênua... Coitados!
Ah, como sou bom, como sou bom...
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– No chiqueiro, senhor secretário, estabeleça a regra de
três porcos para cada funcionário, para diferenciar da regra
anterior, que era de quatro para um, e como coordenador
da equipe, coloque o Luisão do Bar, que já tem a lista das
pessoas que serão contratadas para o serviço: primo, tio,
cunhado, compadre, todo mundo de casa.
– Sem problema, senhor encarregado; mas não se esqueça
da equipe responsável pela limpeza do chiqueiro, que não
pode ser a mesma que cuida dos porcos, pois ainda que
haja uma redução no número de animais por funcionário, o
serviço ainda será pesado.
– É verdade. Temos que criar uma equipe de limpeza para o
chiqueiro. Eu tinha me esquecido disso. Vamos ver... Para
começar, contrate a Simone, filha daquele meu amigo, o...
o...
– Janjão?
– Isso, o Janjão. Filha do Janjão. Contrate ela como
coordenadora. Depois a gente decide quem vai fazer parte
da equipe.
– Mas ela está incapacitada, o senhor não se lembra? O
caso é grave. Vive internada.
– Eu sei, eu sei, mas prometi para o pai dela, o que é que eu
posso fazer? Envie para ela relatórios e fotos do chiqueiro
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toda semana e dê um jeito dela despachar de casa ou do
hospital mesmo. A gente vai levando assim, nas coxas, até
onde der. Ela não vai demorar muito a morrer.
– E aquele problema com a coordenadora da equipe de
fazer merda?
– Qual problema?
– Aquela reclamação do pessoal de que ela não sabe fazer
merda e que, por isso, não tem que estar ali coordenando
uma equipe de fazer merda.
– Mas como é que ela não sabe fazer merda? A mãe dela
me garantiu que em casa é o que ela mais sabe fazer!
– Só se for em casa, porque aqui...
– Põe ela então como assessora do coordenador da equipe
de vigias da lagoa dos patos, e deixe bem claro para ela, já
de cara, que qualquer pato que nadar em ziguezague deve
ser abatido. Os que nadarem em círculo continuarão vivos.
– Agora tem o problema do curral.
– Qual problema do curral?
– É que o coordenador da equipe de limpeza do curral está
reclamando da falta de funcionários no seu setor, e está
dizendo por aí que é uma injustiça a equipe que cata
carrapatos no gado ganhar o dobro do que ganha a equipe
dele.
– Equipe que cata carrapatos? Mas onde é que está o
pessoal que aplica remédio contra carrapato no gado?
– O senhor se esqueceu que essa equipe sempre foi
fantasma? Ela existe, recebe o salário, mas não aparece.
Isso é tradição aqui, não tem como mudar, vem desde a
primeira administração.
– Contrate mais gente então para ajudar na limpeza do
curral, mas só quem tenha me apoiado; e dê um aumento
para esse povo. Ah, e como vai ter reforço na equipe, põe
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lá o filho do Tobias da Ção como sub-coordenador, com o
mesmo salário do coordenador.
– Sim, senhor. Agora, mais um problema: a Inês, sua
cunhada, pediu mudança de função. Quer ir para a
defecação.
– Por quê? Ela não está satisfeita coordenando os
morcegos?
– Não. Disse que os morcegos estão muito dispersos, não
param quietos. Ela pelejou para mantê-los na sede da
Fazenda, morcegando só nos gabinetes, na cozinha e nas
filas dos banheiros, mas eles insistem em morcegar em toda
a Fazenda, e defecam no chão, fora do cercado... Muito
complicado.
– Então põe ela na defecação Fazer o quê?... São quantos lá
hoje?
– Só o Marcão e um assessor para limpar o que ele defeca.
– Vamos então colocar esse assessor do Marcão como
coordenador dos morcegos e a Inês e o Marcão vão limpar
eles mesmos o que cada um defecar. Se eles reclamarem,
coloque dois assessores para limpeza de dejetos, indicados
pelo coordenador de notas frias da Secretaria da
Pilantragem.
– Perfeito, senhor encarregado. Agora temos que criar
aquela função nova, para empregar o pessoal das
empreiteiras. O senhor tinha sugerido um grupo de trinta
pessoas para bater palma toda vez que passar um avião
sobre a Fazenda, alertando a comissão de assuntos aéreos,
que deverá fazer um relatório da situação, o senhor se
lembra?
– Perfeitamente. Só acho que trinta é pouco, vamos
precisar de pelo menos cinquenta, para o som das palmas
ser bem audível.
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– Concordo. Mas por ser muita gente, será que a câmara da
Fazenda vai aprovar? O senhor prometeu aos vereadores
dois cabides para cada um, para eles colocarem quem eles
quiserem. Acho melhor o senhor entrar primeiro com o
projeto desses cabides, que será aprovado, e depois com o
das empreiteiras.
– É claro. Que burrice a minha. Vamos propor então trinta e
quatro cargos no departamento de saúde, sem exigir
formação, e mandar o projeto para a câmara com um
recadinho meu, lembrando do combinado.
– Falando em saúde, senhor encarregado, uma dúvida: os
funcionários do Pronto Atendimento vão precisar olhar nos
olhos dos pacientes durante as consultas? Lembre-se que
na administração passada houve muita reclamação sobre
isso.
– Para que olhar nos olhos de porco, burro e vaca? Animal
não tem sentimento, não precisa dessas frescuras. É só
receitar um remedinho para virose ou diarréia e despachar.
Temos que acelerar o serviço.
– Ah, outra coisa: vamos precisar de uma equipe grande
para buscar pão com salame na padaria e fazer café para os
funcionários que ficam sem fazer nada o dia inteiro na sede.
Ou então o senhor oficializa todo mundo como morcego e
põe para rodar na Fazenda, porque só dez pessoas para
alimentar essa galera toda não está dando, sem contar as
filas nos banheiros, que estão enormes.
– Quem sabe a gente coloca esse povo no cordão dos puxasacos, cercando a Fazenda? Está completo o cordão?
– Acho que ainda tem vaga sobrando por lá... Boa ideia. Vai
aliviar bem a sede.
– Alguma promoção para a leiteria?
– Eu sugiro a Jandira, antiga coordenadora da defecação,
ex-sub-secretária de assuntos aéreos, ex-assessora do
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departamento de coisas inúteis e ex-sub-coordenadora de
notas frias da Secretaria de Obras. Vem de outras
administrações, mas é de confiança. Ela merece. Vai mamar
bem. Fez vários estágios na leiteria, sabe direitinho o que
tem que fazer. Vai engordar, com certeza, mas...
– Sem problema, vamos deixar ela engordar até explodir.
Mais alguma coisa?
– Não, senhor. Por enquanto é só.
– Que cheiro é esse, secretário? O senhor peidou?
– Não, senhor.
– Estranho...
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Quase só coração
No final das contas
Ele só ia para a cama à meia-noite, depois do último jornal.
Hoje não vai mais, pois dorme já o sono eterno. Sono que
lhe chegou suave, pelas caladas, pegando-o desprevenido
no começo da noite, quando suspirava, debruçado na
janela, admirando a lua cheia que brilhava como um
enorme globo de luz; cansado, mas satisfeito com o dia que
terminava. Não acordará mais às seis da manhã, não
preparará mais o café, não buscará mais o pão quentinho
na padaria da esquina. Não voltará mais para casa, depois
do trabalho, trazendo salsichas para fritar no jantar e um
chocolate para cada uma das filhas. Não receberá mais
amigos e parentes em sua casa com um sorriso acolhedor e
uma alegria de viver que, de tão simples, era perfeita.
Ele era simples. Simples por não querer muito mais do que
já tinha: o amor da família, boa saúde, um trabalho que lhe
agradava e um bom lugar para viver. Simples por não se
preocupar com o que não merecia preocupação e por não
ficar chorando o leite derramado. Simples por economizar
energia para curtir ao máximo cada pequeno deleite que a
vida lhe oferecia, a começar pela graça de poder acordar
todos os dias, preparar o café, buscar o pão e estar com a
família, que ele tanto amava. Simples por ser o que era:
quase só coração.
Ele cultivou a bondade, a alegria e a humildade, por isso
está bem agora.
À memória do tio Walter.
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Se a morte hoje
me alcançar
antes do pôr-do-sol,
e-mails não respondidos
problemas não resolvidos
papéis não assinados
telefonemas não dados
outros responderão resolverão assinarão darão
por mim.
Ou não.
E se não,
pouca diferença fará
(ou nenhuma)
no final das contas.
Sobre os parcos despojos
de uma vida sem ambição,
outros se deitarão,
depois de queimarem
livros fotos cartas diários...
– nada de mais
Se a morte hoje
me alcançar,
no entanto,
o que de mim ficará
de mais importante (e que para mim é o que conta,
no final das contas)
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escapa
totalmente
à contabilidade estreita
de um mero contador de coisas:
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A alma do livro
ficarão as vezes
que abracei meus filhos e disse “Papai ama vocês”,
que fui paciente e compreensivo com quem me atacava,
que ajudei sem esperar nada em troca,
que me calei para não ofender ou magoar,
que dei atenção e importância ao problema do outro,
que estendi minha mão para socorrer, amparar...
Se a morte hoje
me alcançar,
sei que poderia ter ficado muito mais de mim
se eu tivesse feito mais...
se eu tivesse sido mais...
como filho pai irmão esposo amigo.
Mas este sou eu
agora
de braços
abertos,
nu,
com o vinho
pela
metade.
Na biblioteca escura, de corredores sujos e estreitos, livros
nunca lidos de autores desconhecidos, lançados e
autografados em coquetéis com canapés, castanhas e vinho
para os amigos – que só por amizade os compraram,
doando-os depois para ganhar espaço nas gavetas e
armários de suas casas apertadas –, enchem com suas
lombadas de cores opacas as únicas estantes da cidade
cinza, onde a ignorância e o orgulho reinam quase
absolutos. Na biblioteca escura a poeira encobre vidas
esquecidas, almas adormecidas que esperam o despertar, o
toque de uma mão que as liberte do sono, o folhear que
nas páginas impressas em tinta e sangue abra os portais de
seus mundos distantes e luminosos. O folhear libertador, o
lento passar de olhos sobre letras e frases: mundos que no
escuro pulsam de alegria e dor, e que por magia renascem
com a leitura, e aos poucos recobram a força da vida que os
criou. Terra, cimento e mármore não calam a voz do
escritor, agora à espera do olhar que liberte sua alma – e
um dia ele vem, o olhar, e o passado renasce, recria-se
naquele que lê e sente, e a vida se renova com a voz do que
passou e do que é eterno, e as almas se encontram no leitor
que apreende e recebe o texto vida que nunca morre.
Mesmo esquecido e não lido, enfiado na estante
empoeirada da biblioteca escura do reino da estupidez, o
livro do autor nunca lido está vivo, à espera; a memória não
se apaga; a indignação, a dor, a alegria, a alma lavada
sofrida vivida não se apagam jamais do texto – estão lá,
esquecidas, vivas, esperando...
E é isto que ficará,
se a morte hoje me pegar,
no final das contas.
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túmulo esquecido, ou um luar prateado numa fria noite de
inverno.
Instantes
Que antes de partir sentemo-nos ao lado do cão dormindo
na soleira da porta e deixemo-nos tomar pela ausência de
seu olhar e pela imobilidade de suas patas sobre o tapete
de retalhos, e sintamos, junto com ele, o mais profundo dos
silêncios.
Que antes de partir façamos um café bem forte, com pouco
açúcar, e bebendo-o, admiremos pela última vez a orquídea
fantasmagórica que aos poucos definha sobre a mesa da
sala de jantar, ao lado de Goethe, Poe e Clarice.
Que antes de partir coloquemos em caixas de papelão
todos os cadernos de memórias, cartas e fotos antigas, e
também os vários livros de contos e crônicas que
escrevemos na juventude, quando acreditávamos que a
palavra pudesse nos salvar do abismo do esquecimento.
Eu e todos os meus eus agora reunidos neste aconchego de
instantes sem esperança – nesta sala a que chamamos
Liberdade – damo-nos as mãos e aguardamos serenos,
pensando:
Que antes de partir saibamos viver o que há de mais
precioso no mundo: o que somos.
E que a um sono de paz finalmente nos entreguemos, sem
medo, sem dor...
Para sempre.
Que antes de partir ouçamos pela última vez os concertos
de Brandenburgo, de Bach, e tomemos a última taça de
vinho, sentindo a música e a bebida nos elevar o espírito às
alturas do insondável.
Que antes de partir possamos viver cada instante de cada
momento sem esperar nada da vida, e que o instante seja
tudo para nós, no Tempo-Morte que lentamente nos
devora.
Que a dor dos que nos amam não nos doa, e não dure; e
que de tudo que fomos e fizemos nesta vida reste apenas
um cheiro doce de rosas amarelas colhidas com o nascer do
sol, ou uma brisa de outono a soprar lembranças sobre um
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Feliz do seu jeito
Sozinho em casa às três da tarde. Doem-lhe as juntas dos
braços, mãos e pernas. Sente-as pulsar como pulsam seus
lábios quando estão muito ressecados pelo frio, ou um
furúnculo prestes a estourar, ou a cabeça quando a
angústia é insuportável e ele se enche de café, não dorme e
fica vagando pela casa de madrugada feito um zumbi à
beira do abismo.
São três e cinco da tarde e sua vida agora é isto: sentir dor e
olhar a rua da janela. Um cachorro late no quintal vizinho. O
carteiro passa correndo, banhado em suor, cumprindo sua
obrigação: oito horas de trabalho por dia, para depois
jantar, dormir e amanhã começar tudo de novo.
Três e dez. Sente calor, mas em seu peito a tristeza é como
um bloco de gelo que não derrete.
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Vive sozinho. Não tem amigos. É seco, distante, frio. Mas
quem é generoso e se aproxima dele, às vezes quebra o
gelo e descobre outra pessoa. Poucos fizeram isso,
pouquíssimos... E agora ele não tem ninguém.
Quatro da tarde. Toma uma decisão. Põe para tocar um
concerto de Mozart, pega um livro de Adélia Prado e abre
uma garrafa de vinho. Lê um poema, dois, três, e as
palavras, a música e o vinho lhe aquecem o coração. De
repente viver não é mais insuportável.
Às quatro e quarenta da tarde já não sente mais dores, sua
respiração é leve. Faz um café forte e abre todas as janelas
da casa. Pensa em viajar, conhecer Barcelona, Praga, Viena.
Ler de novo Bolaño e Saramago. Caminhar. Escrever.
Cinco da tarde. Olha-se no espelho e sorri.
Sua vida agora é isto:
Três e vinte e sua vida agora é isto: com dor, olhando a rua
da janela, ouve a buzina do padeiro e os cascos do seu
cavalo. Mulheres saem à rua com cestas e panos de prato.
Feliz do seu jeito.
Três e meia. Fecha os olhos e vê o brilho da dor pulsante
em ondas brancas de luz quebrando a escuridão.
Três e quarenta. Vai até a escrivaninha, tira uma folha e
escreve: Júlia. Sua mão treme, a dor é como se agulhas
quentes lhe espetassem a carne até os ossos. Quer dizer
para a filha que a ama, que a perdoa, que sente muito, mas
não consegue escrever. Então vou ligar, diz, e pega o
telefone. Disca, mas ninguém responde.
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baixe aqui Silva, Flávio Marcus da PEIXES FORA D’ÁGUA. Flávio Marcus da Silva. Pará de Minas, MG: Editora VirtualBooks, 2013.14x20 cm.

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