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................................ © Copyright 2013, Flávio Marcus da Silva. Flávio Marcus da Silva Capa: kythão 1ª edição 1ª impressão (2013) FELIZ DO SEU JEITO Todos os direitos reservados, protegidos pela lei 9.610/98. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida - em qualquer meio ou forma -, nem apropriada e estocada sem a expressa autorização do autor. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) ___________________________________________ Silva, Flávio Marcus da FELIZ DO SEU JEITO. Flávio Marcus da Silva. Pará de Minas, MG: Editora VirtualBooks, 2013.14x20 cm. 82p. ISBN 978-85-7953-988-6 1. Literatura brasileira. Contos. Brasil. Título. CDD- B869 ___________________________________________ Livro editado pela VIRTUALBOOKS EDITORA E LIVRARIA LTDA. Rua Porciúncula,118 - São Francisco Pará de Minas - MG - CEP 35661-177 Tel.: (37) 32316653 - e-mail: [email protected] http://www.virtualbooks.com.br VirtualBooks -2- ................................ ................................ O Cristo é saudade que não cabe no coração / 64 SUMÁRIO Embaixo do caminhão / 66 Pedro, meu filho / 5 O bonitão da bala Chita / 69 Muquiranas / 11 Fazenda Mamata / 70 Opção pelo simples / 16 Quase só coração / 75 Maturidade / 18 No final das contas / 76 O cínico / 21 A alma do livro / 78 A vingança do teiú / 24 Instantes / 79 O pesadelo de Ramon / 27 Feliz do seu jeito / 81 Uma semana em Lisboa / 30 Faltam professores, e agora? / 34 Ser ou não ser / 38 Sua Alteza, o Cu / 42 Tempestades / 45 O clube dos excluídos / 47 Vândalos / 49 Cura gay / 51 A comida no facebook / 54 Camila conseguiu / 56 Missão pombos / 58 O delírio de Ramon / 61 -3- -4- ................................ Pedro, meu filho Acordei pela manhã com uma estranha sensação de leveza, como se em poucas horas eu tivesse emagrecido vários quilos. Lembrava-me de ter ido para a cama por volta de onze da noite, entorpecido pelo vinho e sentindo a refeição pesar no estômago, enquanto o coração bombeava com dificuldade o sangue necessário para uma digestão que, ao que tudo indicava, transformaria meu sono em uma travessia angustiosa pelas longas horas da madrugada. Minha mulher roncava quando eu coloquei a cabeça no travesseiro, tateando o lençol à procura do controle remoto da televisão e pensando, com tristeza, em como seria minha noite depois de tanta comida e bebida. No entanto, dormi maravilhosamente bem. Mas não acordei apenas com uma sensação de leveza no corpo, como se em cinco ou seis horas eu tivesse passado por uma dieta de desintoxicação e emagrecimento que normalmente só traria resultados depois de cinco ou seis meses de sacrifícios terríveis. Não. Acordei também com o espírito mais leve, como se o peso de sentimentos negativos, que até à minha entrada pacífica no misterioso território do sono eu carregava dentro de mim, tivesse desaparecido junto com o peso corporal. Levantei-me da cama e me dirigi à sacada do quarto, cuja porta de vidro se abria para uma bela vista do bairro, sem sentir o inchaço e as dores nas juntas que me atacavam todas as manhãs, com o corpo leve, a respiração fácil, o coração sereno e calmo, e, ao mesmo tempo, sem as -5- ................................ preocupações e angústias que, de costume, não me davam trégua desde as primeiras luzes do dia até altas horas da noite: sobretudo um desejo incontrolável de acumular riquezas e honrarias, de ser admirado e invejado por todos. Acordei sentindo-me livre dessas vontades (ou pelo menos não as senti consumindo minha alma com suas línguas de fogo, obrigando meu corpo a reagir contra tudo que se colocasse como obstáculo às estratégias e planos por mim traçados para alcançar o que, na minha visão, era o sucesso). Aquele dia não foi assim, embora eu sentisse os demônios da ambição me espreitando pelos cantos do quarto, dispostos a reconquistar o meu ser, ainda não completamente livre das forças sombrias que cercam muitas de nossas vontades mundanas. Porém, naquela manhã, nenhum peso me pareceu tão ausente de mim quanto o da culpa que eu carregava há vários anos por ter sido o único responsável pela desgraça que se abateu sobre o meu filho. Sempre fui muito exigente com ele. Na escola, tirar o segundo lugar, para mim, era inaceitável. Ele tinha que ser sempre o primeiro, o melhor, o mais inteligente, o mais perspicaz, o mais invejado pelos colegas. Sempre cultivei nele o que eu acreditava ser a fórmula perfeita para o sucesso: ambição, orgulho, coragem, determinação e força, atributos que, com a dose certa de inteligência, sagacidade, dissimulação e estratégia, poderiam levá-lo aos cumes mais altos do sucesso profissional, da glória, da riqueza e do poder. E para ajudá-lo nessa empreitada, haveria sempre o enorme patrimônio da família, acrescido cada vez mais com novas fazendas, casas, apartamentos e aluguéis. -6- ................................ Diante disso, certamente não será surpresa para o leitor a minha decepção amarga quando percebi que meu filho gostava mais de poesia e filosofia do que de matemática, química e biologia. Eu queria que ele fosse médico, um renomado cirurgião, respeitado no país inteiro e até mesmo no exterior, mas o que ele demonstrava aos quinze anos, contrariando todas as minhas expectativas, era uma paixão avassaladora pelo teatro, que ele praticava às escondidas depois das aulas, interpretando figuras grotescas, cantando e dançando como uma mocinha. E como eu soube depois, ele gostava também de escrever poemas, que lia em recitais aos sábados, nos quais muitas vezes vestia-se de mulher, usando quase sempre uma peruca escura e uma enorme bata branca cheia de detalhes dourados. ................................ tanto com os outros? Quem são esses outros? Por que eles precisam achar que nós somos felizes, que você se casou com a minha mãe por amor, que eu sou o melhor aluno da escola, que o meu futuro está garantido graças ao meu talento e ao patrimônio que você herdou e fez crescer com a cobiça e a ambição que traz dentro de sua alma desde a infância?”. Aquilo dilacerava a minha alma; mas consegui conter minha indignação nos limites de um aconselhamento pacífico e de poucas palavras, até o dia em que, aos dezessete anos, ele entrou em meu escritório para me dizer que havia decidido prestar vestibular para Filosofia. Tentei fazê-lo mudar de ideia, dizendo que tal decisão era um completo desatino. “Você vai viver de quê, meu filho? O que faz um filósofo? Ele trabalha com o quê? Quanto ganha alguém para filosofar?”. Não adiantou. Ele me olhou nos olhos e disse que sua decisão estava tomada, e que se eu quisesse aproveitar aquela chance para agir como um pai de verdade, que eu o apoiasse. Imediatamente fui tomado por um ódio terrível e avancei em sua direção disposto a matá-lo se fosse preciso. Ele tentou correr, mas puxei-o pelos cabelos e joguei-o com toda a força contra a parede. Peguei-o pelo braço e levei-o até o banheiro do corredor, onde enfiei sua cabeça na privada umas dez vezes, gritando: “É na merda que você quer viver, sua bicha? Então experimente esta merda aqui e veja se você gosta”. E ele se debatia, tentava chamar a mãe – que já devia estar dormindo, dopada com seus remédios para depressão –, e lutava para respirar, com o rosto todo molhado da urina que eu tinha despejado ali minutos antes. Quando ele conseguiu escapar de minhas mãos, pegou a chave do carro e saiu em disparada pela avenida. Eu não o apoiei. Eu o ameacei de todas as maneiras que pude: corte de mesada, expulsão de casa e outras bobagens do gênero, entremeadas com frases do tipo “O que os outros vão pensar...”. Ao que, uma vez, num desabafo, ele me respondeu perguntando: “Por que você se preocupa -7- Aquelas perguntas foram lançadas com uma fúria que eu jamais tinha visto naquele garoto meigo, que raramente se dirigia a mim, e que, quando o fazia, era só para trocar uma e outra palavra sobre uma bobagem qualquer, com o único propósito de quebrar, por um momento, o gelo glacial que cercava a nossa relação. Mas, como eu dizia, ao acordar naquela manhã, não senti mais a culpa me corroendo o espírito, somente uma lembrança distante a me apertar de leve o peito e a -8- ................................ maravilhosa sensação de que o futuro se encontrava aberto para o perdão e a consolação sem dor, medo ou angústia. Olhando o céu que brilhava com as primeiras luzes da manhã, senti a presença do meu filho ao meu lado na sacada, e o vi, bem ali, com seu olhar perdido no horizonte, vestindo a mesma roupa que ele usava quando saiu de carro naquela fatídica noite. “Pedro, meu filho”, eu disse sorrindo, e estendi a mão para tocá-lo. Em seu rosto jovial e alegre percebi, aliviado, que ele tinha me perdoado, e uma felicidade muito maior que a soma de todas as alegrias que eu tinha vivido em toda a minha vida me invadiu naquele exato momento, tornando meu corpo e meu espírito ainda mais leves, como se eu fosse capaz de saltar e alcançar, sem o menor esforço, a plenitude dos céus. “Pedro, meu filho... Como é possível?”, perguntei, com lágrimas nos olhos, mas ele não respondeu. O acidente. Aquele terrível acidente do qual, sem dúvida, eu tinha sido o único culpado... Cheguei ao local às duas da madrugada. O carro estava completamente destruído, abraçado a um poste na avenida deserta. Preso às ferragens, sem vida, estava o corpo do meu filho. Tentei abrir com as mãos a carcaça confusa de ferros retorcidos, dizendo para ele, desesperado: “Vou tirar você daí, meu filho. Não se preocupe. Vou tirar você daí e vamos começar uma vida nova. Você vai fazer o que gosta e eu vou te apoiar, não se preocupe”. Mas já não havia mais o que fazer. -9- ................................ “Pedro, meu filho... Como é possível?”, perguntei de novo, enquanto a manhã ganhava vida sobre os telhados das casas do bairro. Ele se virou novamente para mim, apontou para a minha cama e disse: “Veja”. Ao me virar, levei um susto. Ao lado de minha esposa adormecida estava o que parecia ser eu, deitado de barriga para cima, com o rosto contorcido e as mãos crispadas: um corpo pálido e sem vida. Pedro respondeu ao meu espanto com um novo sorriso e disse: “Aquilo ali nada mais é do que o envoltório carnal que você abandonou durante a noite. Chegou o momento, para você, de se dirigir a outros planos de aperfeiçoamento espiritual e, talvez, conforme os desígnios de Deus, um dia voltar à crosta terrestre para uma nova etapa de vida junto aos homens. Recebi autorização de meus guias para vir buscá-lo e auxiliá-lo na sua nova jornada de aperfeiçoamento. Informo-lhe, ademais, que a sensação de leveza que você sente agora se intensificará ainda mais, na medida em que for deixando para trás aquilo que lhe serviu de motor no plano físico e que, para nós, no plano espiritual, são pesos inúteis: o orgulho, a ambição, o egoísmo, o desejo de poder e riqueza, a prepotência, a dissimulação, a cupidez, a mentira, o ódio, a vingança...”. Eu não conseguia dizer nada. Só o olhava, assustado, sem entender aquilo tudo, sem acreditar. “Venha comigo, meu pai”, disse ele, e me estendeu a mão. Agarrei-a com força, puxei meu filho para junto de mim e abracei-o aos prantos, cheio de amor e arrependimento, como eu nunca tinha feito em vida. “Pedro, meu filho. Pedro, meu filho...”. - 10 - ................................ Muquiranas Seu Joaquim e Dona Maria formavam um casal discreto, de temperamento calmo e arredio. Estavam na casa dos sessenta anos, mas pareciam mais velhos. Não ligavam muito para a aparência: roupas velhas e uma higiene desleixada – pele encardida de sujeira, cabelo ensebado, unhas compridas e sujas – faziam com que, muitas vezes, fossem até confundidos com mendigos na rua; mas nem se importavam. Eram pessoas muito simples. Seu dia-a-dia era uma mesmice só: levantar cedo, fazer café, cuidar do jardim, limpar a casa, fazer comida, almoçar, arrumar a cozinha, ver televisão, cuidar da horta, comer banana, jogar paciência, jantar e dormir. Embora fossem milionários, moravam numa casa pequena e mal conservada, não tinham carro, não viajavam, não comiam fora e só usavam roupas feitas por uma costureira bem barateira, amiga de infância de Dona Maria. O enorme patrimônio da família era administrado por Lúcia, filha única do casal, uma quarentona feia e arrogante que, mesmo com vários pretendentes para casar, mantinha-se solteira e virgem. Seu trabalho era receber os aluguéis das centenas de casas, apartamentos, terrenos e galpões comerciais que a família possuía, espalhados por toda a cidade. Administrava também as várias aplicações financeiras do casal, recebendo tratamento VIP nos bancos que visitava todas as tardes, enfiada em vestidos florais nada discretos – os gerentes só faltavam lamber o chão que ela pisava, de tão bajuladores. - 11 - ................................ A vida de Lúcia era basicamente economizar o máximo possível nos gastos e aumentar cada vez mais o patrimônio da família, comprando imóveis e aplicando dinheiro. Fazia isso muito bem, graças à educação que recebera dos pais (muquiranas como ela, embora, talvez pela idade, menos radicais). Uma vez Dona Maria chegou a consultar uma agência de turismo com a intenção de fazer uma viagem ao litoral, pois não conhecia o mar. Ao ver o orçamento do pacote, Lúcia rasgou o papel na cara da mãe, dizendo que aquilo era um roubo, que não ia permitir que ela dilapidasse o patrimônio da família daquela forma. O pai concordou com a filha, e nem cogitou em sugerir que viajassem os três para a Europa, como ele queria, realizando assim um sonho que tinha desde a juventude: o de conhecer Roma. Seu Joaquim suspirava na frente do espelho todas as noites, antes de dormir, resignado e triste. Fazer crescer e proteger meu patrimônio para garantir segurança à família no futuro. Esse era o seu lema na adolescência, que com determinação e empenho invejáveis transformou em realidade: uma fortuna imensa, acumulada em bens imóveis e MUITO dinheiro aplicado. Dinheiro suficiente para ele dar a volta ao mundo centenas de vezes se quisesse, hospedando-se nos melhores hotéis, comendo nos melhores restaurantes e assistindo a espetáculos e peças nas mais requintadas casas de shows e teatros do planeta. Mas Seu Joaquim nunca tinha viajado para lugar nenhum. Como a esposa, nem conhecia o mar. Nunca tinha ido a um restaurante, a um cinema, a um parque de diversões. Por - 12 - ................................ quê? Ora, porque tinha que economizar. O futuro era muito incerto, a crise econômica estava sempre à espreita, o custo de vida aumentava ano a ano. Criada nesse ambiente de implacável sovinice, Lúcia acabou se tornando a zeladora do patrimônio familiar – um verdadeiro dragão da economia –, escorraçando da casa dos pais parentes pobres que vinham pedir dinheiro emprestado, representantes de instituições de caridade, vendedores ambulantes, paroquianos pedindo auxílio para as barraquinhas da igreja, etc. Todos os gastos da casa passavam pelas suas mãos, e ela controlava tudo, nos mínimos detalhes, seguindo rigorosamente (e até aperfeiçoando) a antiga cartilha dos pais. Quando Dona Maria adoeceu do coração, nem pensaram duas vezes: como não tinham plano de saúde, foram para a fila do SUS, onde realizaram todas as consultas e exames, suportando longas e terríveis esperas; e quando receberam a notícia de que era preciso operá-la, voltaram para a fila, para aguardar a cirurgia. Os meses foram passando, a espera se prolongando, e Dona Maria só piorando. Era preciso aguardar, pois tinha muita gente na frente. Lúcia tentou o que pôde para dar um jeitinho para a mãe, conversando com políticos da cidade, mas não teve jeito. Depois de quase dois anos de espera no SUS, Dona Maria faleceu no corredor da Santa Casa, aguardando uma vaga no CTI. Seu Joaquim e Lúcia ficaram abalados no início, sentindo-se culpados, mas logo aceitaram a morte da mãe como algo natural, que tinha que ser. Foi Deus que quis assim. - 13 - ................................ Meses depois, Seu Joaquim também morreu. Foi Lúcia que o achou caído no quintal, ao lado de um buraco que ele parecia estar cavando quando passou mal. Foi a primeira vez que ela viu um corpo morto não preparado para velório. No rosto do pai notou suas feições naturais: ele não parecia um boneco de cera, como os cadáveres preparados. Havia muita tristeza ali... Chorando, Lúcia ligou para a funerária. Minutos depois, ao entrar no quarto do pai, achou quatro garrafas de plástico cheias de urina, escondidas atrás da porta. Deduziu que ele vinha juntando sua própria urina para economizar a água da descarga, e que cavava uma fossa no quintal para se desfazer daquele fardo. Na mesma hora Lúcia começou a gritar, angustiada, desesperada. Gritou e chorou até cansar. E decidiu: aos 47 anos de idade, com o pai e a mãe mortos, iria mudar de vida: gastaria metade da sua fortuna em diversão, boa comida e viagens pelo mundo. Começaria encontrando um homem que a desvirginasse e lhe fizesse companhia no diaa-dia, mesmo sem amá-la. Conheceu Rodrigo, um servente de pedreiro, jovem (tinha 32 anos), limpo e bem-apessoado. Não era inteligente, mas Lúcia não queria dois cérebros funcionando naquela relação, só o dela; que ele cuidasse de tirar as teias de aranha de onde tinha que tirar e lhe fizesse companhia quando ela solicitasse e já estaria satisfeita. Depois de três meses de namoro, casaram-se e deram uma grande festa, com direito a vinhos e uísques importados, iguarias das mais sofisticadas e três bandas sertanejas - 14 - ................................ tocando a noite inteira. Rodrigo estava nas nuvens. Do nada, encheu-se de amigos; todos queriam puxar seu saco, por causa do casamento milionário. Um mês depois do casamento, quando saía de uma agência de turismo cheia de prospectos de viagens para analisar com o marido, Lúcia teve um infarto fulminante e morreu na calçada, a caminho de casa. Rodrigo recebeu toda a fortuna dos muquiranas, avaliada em mais de 300 milhões de reais. Hoje, bilionário, tem 48 anos, fez um curso de Administração à distância, viajou o mundo todo, comprou dez motos Harley-Davidson, engordou vinte quilos e está muito feliz. Rodrigo é um herói brasileiro. ................................ Opção pelo simples Tem gente que sofre horrores para se enquadrar no modelo burguês de família perfeita: padrão de vida elevado, filhos com inteligência acima da média e sem nenhum desvio de comportamento, pais exemplares em todos os quesitos da perfeição: amorosos, bem sucedidos, respeitados, baluartes da moral e dos bons costumes, etc. Nesse modelo, as falhas, quando surgem, devem ser rapidamente corrigidas, para não comprometerem a harmonia do quadro, a imagem de sucesso e felicidade que se quer passar. O meu modelo de família é mais flexível: acolhe melhor as imperfeições, os tropeços, as sinuosidades dos caminhos. O que dá para resolver, a gente resolve. O que não dá, a gente vive. E não se preocupa em mascarar, fingir. Para quê? Em casa não tenho super-filhos nem super-esposa. Não sou super-pai nem super-marido. Não somos super nada. Somos o que damos certo e o que fracassamos. O que se enquadra e o que foge para as margens. O que aprendemos, sofrendo ou não. O que vivemos, felizes ou não. Somos o que somos. Comparações com outras famílias não nos ferem, porque, quase sempre, o que se compara com o que somos ou temos não representa para nós o essencial, o que realmente importa para uma vida plena e feliz, mas o excesso, o desnecessário. Nossa opção foi pelo simples. Mas com direito a algumas gracinhas de vez em quando. - 15 - - 16 - ................................ Termino esta crônica com um poema inspirador de Affonso Romano de Sant’Anna: ................................ Maturidade Em seu corpo maduro e pesado, deformidades típicas da idade o afastam de espelhos, filmadoras e câmeras fotográficas. Há três anos não aparece em nenhuma fotografia. Para as comemorações do dia dos pais na escola, os filhos levaram pela quarta vez um retrato que o mostra de longe, sentado no sofá, com uma xícara de café na mão, tirado há quase cinco anos: o cabelo ainda preto, o corpo mais magro e musculoso, a alegria da juventude ainda brilhando no sorriso e no olhar. Não quer nenhum registro em imagens de sua maturidade, do que ele vê como o início de uma queda vertiginosa montanha abaixo (a decadência que ele tanto temia na juventude e que, agora, é uma realidade assustadora: a decadência do corpo). Desmontar o acessório. Assumir as proporções próprias. Não ser mais que o barco ou montaria para evitar naufrágio e ranhuras no cruzamento com desbordantes criaturas. Tirar dos ombros esse peso: descarregá-lo. Fardo. Como se descarrega um morto, um fantasma um eu inócuo, torto. Aos 37 anos, acredita estar bem em cima da linha divisória entre a juventude e a velhice. Seu metabolismo é mais lento, está barrigudo, sua memória não é a mesma da época de estudante, seu cabelo está ficando grisalho, rugas se acentuam ao redor dos olhos e da boca, seu olhar está triste, apagado; já não sente o mesmo prazer que sentia antes no trabalho; quer mais tempo para si e para a família, para ler, ouvir música, não fazer nada. A morte lhe acena de perto, sussurra-lhe ao pé do ouvido coisas que ele não entende, mas que lhe transmitem paz, serenidade e um desejo imenso de aproveitar a vida como ele nunca aproveitou, de cortar da sua lista de prioridades tudo que não lhe dá prazer, que o aprisiona e aborrece. E quer começar já. O momento é este. Sacrifícios e sofrimentos agora só prejudicariam um presente que pode - 17 - - 18 - ................................ não se tornar futuro, pois a queda já começou, e a descida é cheia de obstáculos, às vezes intransponíveis. Mas ele sente que falta alguma coisa, um ingrediente essencial para o equilíbrio que ele tanto procura em sua vida, e que, só agora, deitado na grama do quintal, observando as nuvens que passam, ele descobre qual é: a aceitação do seu corpo, da sua idade, do seu momento. É isso. Afastar-se o máximo possível dos jogos e artifícios da vida e deixar-se invadir pelo prazer de viver não é suficiente para alcançar a paz de espírito que ele tanto quer. Ele sente que precisa fazer as pazes com o seu corpo, que ainda é saudável e pode continuar assim por muitos anos, apesar do amadurecimento, da inevitável velhice que, feliz e em paz, ele quer viver. Apesar de... ................................ e sofrimento, sem querer atingir padrões de perfeição, como muitas pessoas que ele vê na academia, eufóricas, tomadas por um frenesi de exercícios e dietas absurdos, comparando-se umas com as outras, sofrendo para atingir a meta, manter o padrão. Não, isso não. Viver os dias um de cada vez, aceitando o que se é, fazendo o que se gosta, cuidando da saúde, mas sem desespero. Esse é seu objetivo agora. E está feliz por tê-lo descoberto. Olhando-se no espelho, diz para si: “Somos como nuvens passageiras, águas que seguem seu curso em direção ao mar... E como dizia Fernando Pessoa: ‘Mais vale saber passar silenciosamente. E sem desassossegos grandes’”. Está agora nu diante do espelho. Este é seu corpo aos 37 anos. 37 anos de história. A sua história. Só ele a viveu. Só ele sabe. É a sua vida. Respira fundo, enquanto se olha, já sem medo. Sente o rosto com as pontas dos dedos, suas cicatrizes e rugas, suas bochechas redondas e levemente caídas. Toca de leve a barriga disforme, o excesso de gordura no peito e no pescoço, a cintura larga, as cochas enormes e desproporcionais... Não... Não está tão feio quanto pensava. “Este sou eu aos 37 anos”, diz para si mesmo, e sorri. Seu olhar ainda está cheio de vida, seu espírito ainda tem muito a oferecer através deste corpo que o abriga. Sua saúde é boa. Precisa perder peso, e vai perder, mas sem desespero - 19 - - 20 - ................................ ................................ O cínico O cínico parece já não ter mais para onde subir na vida. É dono de um patrimônio imenso, que vai de fazendas a helicópteros, e goza de uma renda mensal que inveja até deputados e senadores, mesmo depois do aumento de 60% em seus salários. Grande parte dessa riqueza ele deve ao seu cinismo: uma falta de vergonha, uma desfaçatez, uma impudência cevadas desde o berço, onde, bem pequeno, ele já sabia fingir o choro para conseguir o colo da mãe, esconder o pirulito embaixo do colchão para ganhar outro melhor, acusar o amiguinho de uma travessura que ele próprio cometera: coisas de criança, talvez, mas que no cínico foram se multiplicando de tal forma que, na juventude, deram origem a uma verdadeira máquina de vencer: um estrategista de mão cheia, com um único propósito na vida: estar na crista da onda, no ápice – o que, para ele, significava ter muito dinheiro, um casamento convencional, um cargo que lhe permitisse exercer poder sobre os outros, filhos brilhantes... No quesito filhos brilhantes, não importa se os meninos são apenas razoavelmente bem sucedidos em suas profissões. Ao falar deles, o cínico pinta um quadro tão exagerado de seus dotes e vitórias, que os transforma em verdadeiros super-heróis. Quem sofre mesmo são as pessoas obrigadas a ouvi-lo falar dos garotos: os relatos são longos e cheios de detalhes sobre suas façanhas profissionais, pessoais e até mesmo sexuais, comparando-os com outras pessoas, de forma a diminuí-las, e, às vezes, chegando ao ponto de citar nomes de garotas que lhes permitiram provar sua masculinidade viril, colocando-as também (é claro!) em posição de inferioridade. - 21 - É incrível a facilidade com que o cínico te critica pelas costas e logo em seguida diz exatamente o contrário na sua frente, te olhando nos olhos, como se aquilo realmente é o que ele pensa de você. É o jogo do cínico. Ele é um bom estrategista, sabe transformar as pessoas em joguetes, colocar umas contra as outras, envenenar relações, tudo para se manter no poder, para atrair olhares de inveja e admiração. E ele sabe se cercar de bons bajuladores, a maioria tão cínica quanto ele, pois nas suas costas, muitos desses baba-sacos criticam-no, ironizam-no, riem dos seus defeitos, do seu orgulho desmedido, da sua conversa enfadonha e cansativa, mas, na sua frente, tratam-no com respeito, concordando com suas opiniões e participando das suas intrigas. Para o cínico, os fins justificam os meios. Comumente ele lança mão de suas relações pessoais com gente importante (construídas também na base do cinismo e do fingimento) para conquistar ainda mais prestígio e poder, quase sempre usurpando direitos, mentindo, enganando. Normalmente seu cinismo vem acompanhado de maldade. No cínico, qualquer desavença pessoal aciona seu desejo de vingança implacável, e ele não sossega a alma enquanto não prejudicar seu desafeto. Se não for bem sucedido, para aplacar sua ira, ele investiga a vida da pessoa, só para se certificar de que a situação financeira ou patrimonial dela é inferior à sua ou à de seus filhos – já que, para ele, o que determina o valor de um homem são seus bens materiais. Saber que o outro tem um salário inferior ou um patrimônio bem menor que o seu alivia o tormento de sua alma. - 22 - ................................ ................................ A vingança do teiú E ele geralmente vence, para os outros, para si, para a família. Ele é muito competente, perspicaz, inteligente, suas jogadas são rápidas, bem pensadas, e ele é bem recompensado por isso. Mas como afirmou certa vez o grande escritor Oscar Wilde: o cínico pode conhecer muito bem o preço de todas as coisas. Mas ele não conhece o seu valor. Essa é a diferença. O fogo tomou conta da plantação de milho e sorgo em menos de um minuto. O jovem fazendeiro não teve o que fazer a não ser observar, com lágrimas nos olhos, as chamas se espalharem e devorarem o que não mais seria o alimento do seu gado durante a seca daquele ano. Prejuízo na certa. E tudo por causa de um lagarto rajado de preto e amarelo, conhecido naquelas bandas como teiú. Culpa dele. Pelo menos era isso que resmungava para si o fazendeiro enquanto assistia ao tenebroso espetáculo, cheio de tristeza no olhar. Do outro lado da plantação em chamas, o galpão onde ele guardava sua coleção de carros das décadas de 50 e 60 tremia como miragem no asfalto por trás da enorme cortina de fumaça e calor; mas ele não se preocupou com a possibilidade do seu hobby vir a ser atingido pelo fogo, que estalava a uma distância considerável do local. Mas e o gado? O que ele ia fazer para alimentar o gado na seca? “Se não fosse aquele maldito lagarto...”, balbuciou, com os punhos fechados, o ódio lhe escapando num bafo quente e seco pela boca. Se não fosse aquele maldito lagarto? Como ele pôde dizer uma coisa dessas? Foi ele que jogou gasolina e tocou fogo no teiú por pura maldade, só para ver o animal correr desesperado e depois morrer esturricado, transformado em carvão, num canto qualquer! Só que o bicho, ao invés de ficar no descampado onde se encontrava, correu direto para a plantação de milho e sorgo. E deu no que deu. - 23 - - 24 - ................................ E não foi só. De repente, do inferno de labaredas que se espalhava pelo outro lado da plantação, o teiú saiu correndo, em chamas, como uma fênix ressurgindo das cinzas. A fumaça tinha sido dissipada um pouco pelo vento, permitindo ao fazendeiro ver com clareza o lagarto atravessar a estrada como um meteoro em combustão e ir direto para o galpão de carros antigos. O jovem ficou alarmado, mas não muito, pois o fogo no corpo do animal era pouco para representar uma ameaça ao galpão e aos carros. Mesmo assim ele correu em direção ao local, assombrado com a incrível capacidade daquele bicho de se manter vivo em chamas por tanto tempo. “Como é que pode?”, pensou. ................................ Quanto ao teiú, simplesmente desapareceu. Seus restos mortais nunca foram encontrados. Pois eu digo que pode. E não foi só. Correndo como um louco, o fazendeiro se lembrou que um dos carros, um Impala 1958, estava com um pequeno vazamento de combustível, que ele ia consertar ainda naquela semana. “Meu Deus! Não!”, gritou o homem desesperado, já quase na porta do galpão. Foi quando houve a explosão e o carro voou pelos ares, danificando gravemente pelo menos cinco outros que se encontravam nas proximidades. Chegando ao local, quase sem forças e tremendo dos pés à cabeça, o fazendeiro alcançou com dificuldade o extintor de incêndio na parede do galpão, mas por mais que tentasse, não conseguiu fazê-lo funcionar. Arrasado, caiu de bruços no chão, onde logo foi encontrado por dois empregados da fazenda. Passou a noite no hospital, em choque. - 25 - - 26 - ................................ O pesadelo de Ramon Ontem à tarde eu estive conversando com o Ramon e ele me contou um pesadelo que o vem atormentando há pelo menos dois meses. Enquanto falava, suas mãos tremiam e seus olhos giravam descontrolados, como que perdidos nas órbitas. Ele realmente estava muito perturbado (e a julgar pelo seu relato, com toda a razão). Segundo Ramon, o pesadelo não durava mais do que uma hora, pois começava tão logo ele dormia, às duas da madrugada, e terminava por volta das três, quando acordava em pânico, suando frio e com a boca completamente seca de pavor. No entanto, seu enredo era tão complexo e longo, que mais parecia uma epopéia às avessas (sem nada de heróico ou glorioso) ou uma terrível tragédia grega. O pesadelo era mais ou menos assim: Ramon cuidava da vida como tinha que ser: trabalhava, levava os filhos na escola, comia, dormia, transava, ajudava a esposa com as compras, lia livros, assistia a filmes, etc. Só que, de repente, várias situações inesperadas começaram a acontecer, a maioria ligada à casa onde ele vivia com a família: a geladeira estragava, pombos entupiam as calhas com ninhos e fezes, goteiras começavam a pingar no quarto e na sala, a internet pifava, a antena da TV não captava mais o sinal do satélite, o alarme disparava sem mais nem menos, o telefone parava de funcionar, a pia da cozinha e as duas privadas entupiam, etc. - 27 - ................................ Se cada uma dessas situações acontecesse isoladamente e todas fossem solucionadas, tudo bem (estariam dentro da normalidade, sobretudo numa vida azarada como a de Ramon). Só que no pesadelo de Ramon tudo acontecia ao mesmo tempo, e nada era solucionado. Ele chamava eletricistas, pedreiros, técnicos em informática, bombeiros, homens da geladeira, do fogão, da máquina de lavar, da calha, do alarme, e nada era resolvido. Sempre faltava uma peça que não era mais fabricada, um dispositivo que só era vendido na Coréia do Norte, na Malásia, na Rússia ou no Alaska; ou a situação exigia a presença de um perito, um especialista naquele tipo específico de problema (uma pessoa que simplesmente não existia). Eles diziam: “Falta nesse cano um bico de bronze que não é vendido no Brasil em lugar nenhum, e eu não sei onde você vai achar”. “Os pombos que infestam o seu telhado são de uma raça japonesa imortal, primos distantes dos pokémons; não há o que fazer”. “Essa goteira é um mistério para mim, ela simplesmente não tem razão de ser; não há nada lá em cima que a explique”. “Parece que tem um objeto voador não identificado bloqueando o sinal da sua TV. Não é um balão... Veja... Parece uma nave. Ela não sai dali. Já vi isso acontecer... E, olha... não tem jeito”. E novos problemas surgiam todos os dias, alguns de arrepiar os cabelos. Como no dia em que um ninho de pombo caiu na sacada do quarto de Ramon e os dois filhotinhos recém-nascidos começaram a circular pela casa, arrastando seus corpinhos depenados pelos corredores, quartos e banheiros por dias e noites seguidos (porque, por mais que Ramon tentasse se livrar deles, jogando-os no lixo, afogando-os na privada entupida ou esmagando-os com a - 28 - ................................ sola do sapato, eles voltavam sempre, ressurgindo dos mortos, como naquele filme Cemitério Maldito). E enquanto tudo isso acontecia, além de cuidar da “casa monstro” e de sua família, Ramon tinha que ir a dezenas de médicos e centros de diagnóstico, pois seus exames sempre davam alguma coisa alterada. Ao ler um resultado, o médico pedia mais exames, que davam resultados ainda mais alarmantes, levando a mais e mais exames – Ramon teve praticamente todas as células do seu corpo investigadas: ribossomos, mitocôndrias, centríolos e retículos endoplasmáticos analisados nos seus mínimos detalhes, só para no final os médicos não chegarem a nenhuma conclusão e Ramon sair de seus consultórios cheio de sintomas e sem a menor esperança de cura. Terrível, não? Pois era esse o pesadelo de Ramon. Será que Freud explica? ................................ Uma semana em Lisboa Com o rosto colado na janela do avião, vendo surgirem diante de seus olhos maravilhados os primeiros prédios da bela capital portuguesa, Camila tirou uma foto do que lhe pareceu ser a Torre de Belém e postou na rede social: “Depois de uma travessia tranquila do Atlântico: Lisboa”. Nenhum comentário sobre a terrível turbulência que tinham enfrentado no caminho, em plena madrugada: passageiros jogados com violência contra o teto do avião, bagagens de mão lançadas como torpedos para todos os lados, gritos desesperados (a maioria invocando Deus e os santos, como se só eles pudessem salvar aquele voo de uma tragédia): enfim, uma confusão dos diabos. Camila não conseguia nem virar o pescoço direito por causa do tombo que tinha levado. Na hora ela estava dormindo, sem cinto de segurança. Quando acordou, no momento de maior instabilidade, seu corpo estava sendo arremessado para cima como um boneco de borracha, os olhos arregalados, um grito de pânico entalado na garganta (que só saiu quando ela caiu de cabeça no chão, torcendo o pescoço). Finalmente Camila conheceria Lisboa: comeria pastéis de Belém, sardinhas assadas e o melhor bacalhau do mundo; subiria até o Bairro Alto pelo elevador de Santa Justa; passearia pelas livrarias do Chiado: tudo minuciosamente planejado no Google Maps. Só que, ao se levantar para sair do avião, sua coluna travou. Hérnia de disco. Um ataque dos bravos. Qualquer tentativa de movimento tinha como resposta uma dor insuportável. Ficou parada onde estava, como um robô enguiçado, com o pé esquerdo já no corredor, aguardando que uma - 29 - - 30 - ................................ aeromoça passasse por ali para socorrê-la. Finalmente, quando todos os passageiros saíram, ela conseguiu balbuciar um pedido de ajuda para um comissário de bordo, que lhe respondeu: “Vamos providenciar uma maca, senhora”. Saiu do avião de maca. O céu era de um azul belíssimo, límpido, com pouquíssimas nuvens. Quase tirou uma foto e postou: “Sob o céu de Lisboa”, numa alusão ao filme de Wim Wenders, mas preferiu ficar quieta. Do aeroporto Portela Camila foi levada a um hospital, onde lhe deram uma injeção na veia que, em meia hora, fez desaparecer completamente a dor. “Que maravilha!”, pensou. “No Brasil eu ficaria de cama no mínimo três dias”. Ao sair, soube por uma enfermeira que em Portugal havia muita pesquisa médica sobre problemas de coluna e doenças reumáticas, porque o número de pessoas sofrendo desses males ali era imenso. “Aqui você vai encontrar muito mais lojas especializadas em reumatismo do que em brinquedos”, disse-lhe a enfermeira, despedindo-se. “Que triste!”, pensou Camila. Em frente ao hospital, Camila pegou um táxi e foi para o hotel, onde descobriu que a sua mala tinha sido trocada no aeroporto. Por fora parecia a mesma – uma mala dura, preta, pesando cerca de trinta e cinco quilos, da mesma marca que a sua –, mas por dentro só tinha roupas femininas que não lhe pertenciam, todas de um tipo só – para ser mais preciso: trinta batas africanas largas e pesadas, estampadas com cores berrantes. Camila então ligou para a companhia aérea, anotou o número do - 31 - ................................ protocolo, ligou para a seguradora, anotou o número do protocolo, respirou fundo, desabou na cama e chorou. Minutos depois disse para si: “Chega de choro, Camila. Levante-se já desta cama e vá conhecer Lisboa”. Foi o que ela fez. Mas antes de sair, num acesso de rebeldia, vestiu uma das batas que estavam na mala e amarrou um lenço colorido na cabeça. Saiu assim, achando-se linda, pela rua afora. Parou numa esquina, tirou uma foto de seu rosto e postou: “Eu de africana nas ruas de Lisboa”. Pegou um trem e foi para Belém. Em Belém, depois de visitar a Torre e o Mosteiro dos Jerónimos, foi experimentar o famoso Pastel de Belém. Achou lindo o doce: a massa crocante, o creme amarelo levemente tostado por cima, açúcar de confeiteiro e canela salpicados em abundância. Deu uma mordida, tirou uma foto e postou: “Saboreando o famoso pastel de Belém, em Lisboa. O original”. Porém, assim que ela clicou em publicar, o pastel voltou de dentro dela num vômito que mais parecia um urro do capeta (as pessoas sentadas perto dela pularam de suas cadeiras, com medo dos esguichos que saíam de sua boca). Com certeza foi alguma coisa que ela tinha comido no avião ou no hospital, que já estava ali, pronta para explodir. Não deve ter sido culpa do pastel... Enfim... Dali Camila foi a uma farmácia, onde tomou um remédio para o estômago. Sentindo-se melhor, pegou o trem de volta ao centro. “Lisboa é linda”, disse Camila olhando os prédios do Rossio, enquanto caminhava em direção ao elevador de Santa Justa, uma bela construção neogótica do final do século XIX. Entrou no elevador calmamente, sentindo-se uma - 32 - ................................ verdadeira angolana, e se acomodou na cabine, bem em frente ao vidro, de forma a ter uma vista privilegiada da cidade. Quando o elevador estava na metade do caminho, de repente, um cachorro pastor alemão começou a morder a barra da sua bata. O dono do cachorro, que parecia um policial, fez uma cara desconfiada e deixou que o animal continuasse a incomodá-la, o que a revoltou, e ela gritou: “Faça alguma coisa, seu idiota”. Mas ele não fez nada. O cachorro então rasgou a bata de Camila, e do buraco aberto no tecido começou a sair um pó branco que imediatamente o dono do cachorro (que era mesmo policial) descobriu ser cocaína. Camila foi presa em Lisboa por tráfico de drogas. Passou cinco dias numa cela apertada até conseguir provar que a sua mala tinha sido trocada no aeroporto e que aquela bata não era dela. Ao sair da prisão, pegou o metrô até o Chiado, tirou uma foto de uma bela construção do século XVIII e postou: “Tive problemas com a internet em Portugal essa semana. Gostei tanto de Lisboa, que ainda estou aqui. Cidade maravilhosa”. - 33 - ................................ Faltam professores, e agora? – No programa de hoje vamos conversar com Samuel Almeida, funcionário responsável pelo recrutamento de professores em nossa cidade. Boa noite, Samuel. – Boa noite, Seu Bruno. – Vou começar com uma pergunta básica: Como vocês recrutam os professores para as escolas estaduais da cidade? – Bem, o ônibus do recrutamento circula pela manhã e à tarde, anunciando as contratações imediatas: normalmente, professores de todas as áreas, para trabalhar na maioria das escolas, recebendo dois salários mínimos mensais por trinta aulas semanais. – E é fácil encher o ônibus? – Não. Às vezes circulamos durante meses sem encontrar professores de Biologia, Física, Química e Matemática. De História, Geografia, Português e Inglês, geralmente com dois meses de procura a gente encontra uns três ou quatro para cada disciplina, e o Estado organiza um rodízio entre eles, em duas ou três escolas, com uma carga horária maior para cada um, resolvendo o problema; pelo menos até eles desistirem da sala de aula, o que é só uma questão de tempo. – Mas por que vocês não anunciam as contratações nos jornais locais ou nas rádios? – Porque ninguém aparece. A gente precisa circular pela cidade de ônibus, que é pago pelos pais dos alunos, e ainda oferecer um lanche do Subway aos candidatos lá dentro (também pago pelos pais), para aparecer alguém. – E quem pode se candidatar? – Qualquer pessoa. – Qualquer um? Não precisa ser formado? - 34 - ................................ – Formado em quê? – Ora, em algum curso de licenciatura. – Licenciatura? Essa foi boa, Seu Bruno, dá até vontade de rir. – Mas quem leciona?! – Só para o senhor ter uma ideia: ontem mesmo, quando desembarcamos um lote de três candidatos no prédio da Superintendência de Ensino, fiquei sabendo que o Januário, açougueiro, com Ensino Médio incompleto, foi contratado para dar aulas de Biologia à noite. A Jandira, minha cunhada, que nem concluiu o Técnico em Contabilidade, virou professora de Matemática da noite para o dia, com vinte aulas semanais. O Epaminondas, casado com uma prima minha, só porque disse adorar ler gibis, foi contratado como professor de Português, sem nunca ter concluído o Ensino Fundamental. Para dar aulas de História, qualquer um serve: os entrevistadores nem querem saber se o candidato gosta de ler, se tem algum conhecimento histórico, nada; vão logo perguntando: Quer dar aula de História? De Geografia, a mesma coisa. Meu primo Juca, que foi vendedor de sapato e conhece várias regiões do Brasil, quando resolveu largar o comércio, foi contratado para dar aulas de Geografia no Ensino Médio. E olha que ele nem concluiu o Ensino Fundamental. – Mas vocês não encontram ninguém com curso superior? – De jeito nenhum! Foi-se o tempo que engenheiro dava aulas de Matemática e advogado de História. Acabou. E eu conheço um gari semi-analfabeto que recebeu uma proposta da Superintendência de Ensino para ganhar meio salário a mais para lecionar Física numa dessas escolas de periferia e recusou na hora. É que o tio dele, um expresidiário, quando concluiu o Ensino Fundamental no - 35 - ................................ presídio, foi contratado para dar aulas de Química nessa mesma escola e acabou sendo assassinado por um aluno. – E Filosofia? Quem dá aula de Filosofia? – Filosofia? Acabou Filosofia. Não existe isso mais nas escolas, nem Sociologia, nem Redação e nem Literatura. – Mas como é possível? – Não entendi. – Os alunos não têm Literatura? – Seu Bruno, 80% dos professores são semi-analfabetos. Eles não conhecem nada de Literatura, nem o mínimo necessário para enrolar os alunos, como fazem nas outras disciplinas. Literatura é coisa de gente rica, de professor de escola particular da capital, e olhe lá! (pois na capital, os colégios que não pagam salários milionários aos professores ficam a ver navios). – E professor de Inglês? – Qualquer pessoa que tenha passado uma temporada em um país de língua inglesa (que seja uma semana) está apta a lecionar inglês. A minha tia, por exemplo, que só conseguiu concluir na vida um curso de corte e costura por correspondência, lavou pratos durante dois meses no Canadá e quando voltou foi contratada imediatamente para dar trinta aulas semanais de inglês em duas escolas estaduais da cidade. Pobrezinha... Ela dizia, cheia de orgulho, que era pofessora de ingrês (nem português ela sabia). Numa noite, quando ela tentava explicar uma matéria qualquer, os alunos faziam tanta bagunça, gritavam tanto, que ela resolveu fingir um desmaio e desabou no chão. Lá do fundo, um aluno gritou: “Enfia o dedo no cu dela que ela acorda!”. Depois disso ela nunca mais entrou numa sala de aula, coitada. – Mas por que as autoridades públicas não tomam providências para resolver essa situação? - 36 - ................................ – Resolver para quê? O governo não quer resolver nada na Educação não, Seu Bruno. Para ele, filho de rico é que tem que estudar em escola boa, para virar engenheiro, advogado, médico, administrador, contador, executivo, político; ou seja: uma minoria. Pobre tem é que aceitar sem reclamar a vida que leva: trabalhar muito e ganhar pouco até morrer, mantendo as coisas do jeito que estão. – Não dá para acreditar... – Mas é a verdade, Seu Bruno. Pergunte aos meus colegas do recrutamento. Só um ou outro pai consegue juntar dinheiro suficiente para mandar o filho para a capital, onde ainda existem algumas (poucas) escolas boas, particulares, com mensalidades que giram em torno de cinco mil reais. Só ali é possível encontrar professor formado em faculdade, às vezes até com mestrado, recebendo dez, doze mil reais por mês; mas isso é uma raridade. Nas escolas públicas de nível básico, a situação é a que eu acabo de descrever para o senhor. – Meu Deus... Como é que pode? Bruno olha para o seu notebook, levanta as sobrancelhas e continua: – Vejo que acabo de receber um e-mail da socialite Dona Jaciara Menezes Torres e Albuquerque, que está em sua mansão acompanhando a entrevista. Ela diz o seguinte: Meu caro Bruno, gostaria de aproveitar este espaço para parabenizar a Superintendência de Ensino e o estado (sou amiga pessoal do governador) pelo excelente trabalho realizado no recrutamento de professores para as escolas públicas estaduais, em especial para as da nossa querida cidade. Fico muito feliz em perceber que aqui, apesar de algumas vozes discordantes, ainda vigora, para o bem da harmonia social, a filosofia do ‘Cada um no seu lugar com o que merece’. Um abraço a todos os ouvintes. - 37 - ................................ Ser ou não ser Dos onze aos quatorze anos de idade eu cursei o Ensino Fundamental em um colégio de elite em Pará de Minas. Que sofrimento! Eu simplesmente não me enquadrava naquele mundo. Para começar, eu não saía (numa época em que o verbo mais conjugado entre os adolescentes, nos intervalos das aulas, era justamente este: SAIR). Sair nos finais de semana significava: Eu aproveito a vida, sou importante, tenho amigos, faço parte da turma. Eu não fazia parte de nada. Até o início da década de 90 eu não existia para a sociedade, só para a minha família, que se preocupava com o fato de eu ser tão introspectivo, tão mergulhado em meu mundo interior, sozinho, enquanto meus colegas curtiam a vida como todo adolescente devia curtir: saindo, paquerando... Para aqueles adolescentes, não sair significava não existir, não viver. “Você não sai, não aproveita a vida”, costumavam me dizer. Eu ouvia isso, mas não entendia, porque eu vivia e aproveitava a vida intensamente, do meu jeito. Meu maior prazer era a leitura. Eu praticamente lia um livro por tarde, deitado no grande sofá da sala de visitas da minha casa, sem ninguém para me incomodar. Eu me desligava do mundo exterior e mergulhava nas histórias com enorme prazer, viajando por cenários incríveis, em histórias emocionantes contadas por mestres como Marcos Rey, Lúcia Machado de Almeida, Stella Carr, Júlio Verne e Agatha Christie. - 38 - ................................ No início dos anos 90, quando eu descobri autores como Rubem Fonseca, Fernando Sabino e Edgar Allan Poe – e me recusava a trocá-los por uma ida ao Bar do Geraldinho sábado à noite –, a pressão para eu sair aumentou, porque eu TINHA que ter uma turma, TINHA que ficar com as meninas e provar um monte de coisas para um monte de gente. E eu acabava saindo. E era como voltar àquele colégio e ter que assistir sem vontade àquelas aulas horríveis de Danças e Teatros, Educação Moral e Cívica, História e Português. Cheguei até a ficar com algumas meninas, mas quando isso é feito apenas para cumprir uma obrigação social, é ruim, não dá prazer. Ali, no antigo Bar do Geraldinho, na Rua Coronel Domingos, a juventude se encontrava para ficar parada na rua e nas calçadas, bebendo em pé e vendo os carros passarem cantando pneu e fazendo fumaça com o som no talo: mais ou menos como acontece hoje no Stop & Shop e em outros pontos da cidade na sexta ou no sábado à noite. Quando eu sentia que minha obrigação tinha sido cumprida, eu saía de fininho (como se alguém fosse notar...), e ainda aproveitava um restinho da noite em casa, assistindo a alguns programas e filmes da madrugada. Sofri porque resisti à onda, ao modelo padrão de juventude que vigorava na época, e o preço que paguei por isso foi viver à margem, fora das turmas de garotos que bebiam, saíam e ficavam com as meninas. Minhas angústias terminaram em 1992, aos dezessete anos, quando descobri a obra do escritor anarquista Roberto Freire, que mudou a minha vida: Cleo e Daniel, Ame e dê vexame, Sem tesão não há solução e Coiote, livros que me - 39 - ................................ mostraram a delícia de ser aquilo que se é, de corpo e alma, sem se preocupar com o que os outros pensam. Em 92 e 93, em Belo Horizonte, participei de palestras e oficinas do grupo SOMA, fundado pelo próprio Roberto Freire, e aprendi a me conhecer melhor e a valorizar o que havia de mais verdadeiro e original em mim. Minha vida melhorou muito depois disso, e até hoje, graças à Somaterapia, mantenho uma postura crítica em relação a uma série de padrões sociais que, a meu ver, impedem-nos de sentir a alegria de sermos o que realmente somos. Tais padrões acabam criando para nós uma felicidade artificial, baseada em coisas efêmeras, como ter o carro importado mais caro, receber o prêmio Garra Profissional do ano, assumir um cargo de gerência numa grande empresa, ser o melhor aluno da turma, ter um apartamento de luxo num bairro nobre, ser invejado por todos pela riqueza, beleza e poder, etc. Tudo isso pode ser bom, desde que não sacrifiquemos nosso ser original e único, nosso prazer de viver e sentir o mundo, nossos sonhos mais profundos e verdadeiros, trocando-os por projetos de vida artificiais, ligados muito mais à aparência do que à essência. Termino esta crônica citando o mestre Roberto Freire, escritor marginal, que me ajudou a superar vários obstáculos na minha vida: "Eu sou terapeuta e posso dizer que 80% dos meus clientes têm problemas psicológicos por não estarem fazendo o que gostariam de fazer. As pessoas fazem, convencidas pelas suas famílias, o que o meio social prefere; isto de fazer o que é imposto provoca nessas pessoas um grande - 40 - ................................ sofrimento, que muitas vezes estoura fora do trabalho, estoura em sexo, em agressividade, em equilíbrio mental. Observando estes casos você vai ver como a forma de vida dessas pessoas é imprópria para elas. Numa sociedade como a nossa (...), as pessoas sensíveis, cujo projeto de vida não está dentro do que espera o meio social, sofrerão muita repressão; e esta é uma repressão muito danosa, pois é castrativa. Uma pessoa que não faz o que precisa fazer, tende a adoecer, perde, no mínimo, a identidade e o autorespeito". (Roberto Freire. Sem tesão não há solução. 1990). ................................ Sua Alteza, o Cu Ele adiou a ida ao médico o máximo que pôde, apelando para pomadas e cremes receitados por um amigo farmacêutico, mas chegou uma hora que não teve jeito. Marcou a consulta e foi. O médico, muito simpático, pediu-lhe que tirasse a roupa e se deitasse na cama. O exame foi minucioso. Diagnóstico: hemorróidas inflamadas (quase pulando para fora de tão inchadas), fissuras e ulcerações (causadas, certamente, por evacuação difícil ou volumosa), um abscesso retal cheio de pus e indícios de inflamação do revestimento interno do reto. “Nada grave”, disse o doutor, “só incômodo”. Durante o tratamento, que foi longo, médico e paciente acabaram se tornando amigos. Ambos eram divorciados, solitários, e encontraram um no outro o conselheiro, o confidente, o ouvido amigo para as horas boas e ruins. Nas longas conversas que mantinham nos finais de semana, um dos assuntos preferidos do médico era o cu (com amigos, ele não usava a palavra ânus: era cu mesmo). “Não concordo com o desprestígio dessa região nobre do nosso corpo que é o cu”, disse ele uma noite, já na terceira taça de vinho. “Quase toda frase ou expressão que leva a palavra cu tem conotação negativa: o ‘cu do mundo’ é o pior lugar do mundo; ‘tomar no cu’ é um insulto; se te chamam de algo que você não gosta, você responde: ‘seu cu’; se a pessoa é chata, ela é ‘carninha de cu’; se tem cara feia e enjoada, é ‘cara de cu’... Ah, pelo amor de Deus! E o descuido das pessoas com seus cus? Eu que sou especialista - 41 - - 42 - ................................ em cu é que sei. Não limpam, não lavam, não secam direito; usam papel higiênico de péssima qualidade, verdadeiras lixas; não sabem nem dobrar o papel: passam o negócio de qualquer jeito, uma vez só, e rápido. Imagine o cu dessas pessoas!: aquela borra seca, horas e horas ali, enroscada nos pêlos, agarrada nas pregas... Ah, que nojo! Que desrespeito com o cu! Adoram sentar no vaso pra cagar, mas só se lembram do cu quando ele trava, quando dói. E ainda custam a procurar o médico, de vergonha. Para quê ter vergonha do cu? TODO MUNDO tem cu! Ficam sem jeito até de comprar papel higiênico no supermercado! Será que têm medo da moça do caixa pensar: ‘Hummmm, está comprando um papelzinho para limpar o cuzinho, hein’? O que é que tem? Ela também não limpa? E o pior é que só procuram ajuda quando a coisa fica feia mesmo: hemorróidas sangrando horrores, abscessos do tamanho de bolas de sinuca, ulcerações, fístulas minando pus dia e noite, tumores... Você nem imagina o que eu vejo ali, meu amigo. Falta só dar bicho. É assustador. O povo tinha que dar mais atenção ao seu cu, tratá-lo com mais carinho e respeito; sabe por quê? Porque é ali que a vida realmente faz sentido. Pense no nosso corpo. O que é o corpo?... O quê?... Não. Um tubo. Nosso corpo é um tubo. Um tubo que começa na boca e termina no cu, e que, para existir, tem que ingerir e excretar – em outras palavras: comer e cagar – até morrer. Pois é. Vencido o prazo de validade do tubo, ele morre. Qualquer tubo. Não importa a procedência. E a morte, o que é? A morte, meu caro, é quando nos auto-excretamos para a natureza... É até poético isso... Imagine o momento exato da morte... Deve ser como sentar na privada com aquela dorzinha de barriga agradável e liberar tudo, TUDO – a evacuação mais volumosa DA SUA VIDA –, soltar-se... e o espírito se - 43 - ................................ desprender da matéria-excremento, leve, leeeeve... livre para Deus... para o que for... - 44 - ................................ ................................ Mercier, e não queria terminar, e segurava o livro junto ao peito numa espécie de abraço de despedida. Tempestades Vou até minha estante e pego Big Sur, de Jack Kerouac. Abro-o numa página qualquer e leio ao acaso: “E com todas as escuridões róseas enevoadas de tons variados e sombras tranquilas para expressar a efemeridade real da noite”. Vou ao início e leio: “A infância da simplicidade de apenas ser feliz num bosque, sem se dobrar às ideias de ninguém sobre o que fazer, o que deve ser feito”. Avanço algumas páginas e me deparo com esta pérola: “Vamos passar tão quietos pela vida (passando, passando) como o povo do século X aqui nesse vale só que com um pouco mais de barulho e algumas pontes e barragens e bombas que sequer vão durar um milhão de anos”. Fecho o livro e admiro sua capa: um carro seguindo por uma estrada deserta, e logo acima do título a frase de Allen Ginsberg: “Cada livro de Jack Kerouac é uma peça única, um diamante telepático”. Big Sur. Que beleza de livro! Folheio-o novamente, acaricio sua lombada, viro-o de um lado para o outro e deixo-o sobre uma cadeira, bem ao lado de uma taça de vinho pela metade: um tinto português do Vale do Douro que eu abri ontem à noite e que, agora, neste início de tarde, eu continuo a beber, pensando: ‘As uvas daquela região tiveram que dar sua alma para que esta maravilha pudesse ser produzida; e o mesmo eu digo do Kerouac, que pôs toda a sua alma indomável neste livro extraordinário’. Olho para o livro e para o vinho e me emociono, mais ou menos como me emocionei quando segurei pela primeira vez uma edição antiga de O Caso Morel, de Rubem Fonseca, e senti suas páginas amarelecidas pelo tempo, pressentindo o prazer da leitura que em breve eu faria; ou quando eu me encontrava nas páginas finais de Trem noturno para Lisboa, de Pascal - 45 - Trago para junto de mim agora uma bela edição de Crime e Castigo, de Dostoievski. Vou à página 577 e releio a última frase do livro, seca, dura, fria: “Poderíamos encontrar aqui matéria para um novo relato, mas o nosso já terminou”. Lembro-me que, quando li esse livro pela primeira vez, o tom de indiferença e cansaço que o autor adotou nessa frase me atingiu como um corte de navalha, porque meu espírito ainda era um turbilhão de loucura e desespero – é isso que Dostoievski faz com a gente! – e não queria se acalmar, não estava satisfeito; queria mais. É como se de um enorme tornado, de repente, sem nenhum aviso, você é lançado para fora e vai ao chão, Bum!, sente o impacto – forte, violento –, levanta-se, limpa a poeira do corpo, olha ao redor e só vê um deserto – um imenso e mudo deserto – e num piscar de olhos está de volta à realidade, à vida cotidiana, às obrigações do dia-a-dia. Mas por dentro você é outro. Aquilo te transformou. Ouço um trovão. Estou sozinho em casa. Termino meu vinho, pego uma edição antiga de Uivo, de Allen Ginsberg, e vou para o quintal sentir as tempestades que se armam (fora e dentro de mim). De seu túmulo, Ginsberg vocifera: “Soltem as fechaduras das portas! Soltem também as portas dos seus batentes!”. - 46 - ................................ O clube dos excluídos ................................ “esquisitices” do outro e procurar entendê-lo, da mesma forma como queremos ser entendidos e aceitos. Você é daqueles que na adolescência a maioria dos professores nem notava em sala de aula? Que quando eram notados por colegas era para serem usados como meninos de recado ou para fazer número numa rodinha e depois serem desprezados como papel de bala num lixo qualquer, principalmente em festinhas e barzinhos? Que nessas festinhas e barzinhos, quando iam por obrigação – ou porque os pais insistiam demais, para que pudessem dizer aos amigos: “Meu filho saiu com a turma dele” –, ficavam deslocados num canto, pedindo a Deus para morrer? Você é daqueles que odeiam ter que conversar com pessoas desagradáveis e fúteis só porque as regras do bom convívio assim exigem? Que se sentem verdadeiros alienígenas, completamente perdidos num mundo para o qual não pediram para vir – a não ser quando estão fazendo o que realmente gostam, em fragmentos minúsculos de tempo que só servem mesmo para aumentar ainda mais a fome de viver e a impotência diante da força disso que chamamos de vida? Você é daqueles que nunca se sentiram preparados para viver em sociedade, e que a maioria dos enquadrados socialmente despreza, rotulando-os de “antisociais”, “esquisitos”, “estranhos” e às vezes até de “malucos”? Isto é um convite. Vamos lá? Se for, você não está sozinho. Somos muitos, sabia? E estamos fundando um clube em nossa cidade: o clube dos excluídos. Seu fundamento é “ser o que se é”, sem cobranças e preconceitos. Queremos nos encontrar para viver o que somos de verdade, conversar, compartilhar prazeres “estranhos”, discutir tabus, desabafar, aceitar as - 47 - - 48 - ................................ Vândalos A alma de Ramon está de novo tomada pelo que nela há de mais selvagem: uma vontade de esganar, arrancar olhos, rasgar bochechas carnudas com gillette, picar orelhas com alicate, socar narizes, afundar crânios com porretes e gritar, urrar como um animal enjaulado, que de repente se vê livre e sobe no topo do mundo e lá se entrega à natureza e ao cosmos infinito, sem passado, presente e futuro, sem vitórias e derrotas, sem riqueza e pobreza. Uma vontade de explodir a Copa de 2014 com dois trilhões de quilos de dinamite e jogar todos os iPads, iPods, tablets, Playstations, Pollys, Barbies e tudo que tiver nome em inglês na parede e depois explodir o lugar com tanto fogo e destruição que as chamas serão vistas da Lua e, quem sabe, até de Marte. E também de pegar todos os políticos corruptos e dar-lhes uma surra bem dada com vara de marmelo e ramos de urtiga e depois fazê-los engolir vários litros de fel e arrancar-lhes os pêlos do cu e da virilha com cera quente e obrigá-los a viver como mendigos por dez anos, dormindo em abrigos, usando o transporte público e apanhando da polícia e de playboys. E nesses dez anos, seus filhos estudarão em escolas públicas estaduais e municipais, como qualquer pobre, e terão aulas com professores completamente despreparados e desmotivados – a escória da escória dos que ainda resistem às humilhações e continuam lecionando. ................................ E nessa luta do homem contra a fera, finalmente vence o homem, ajudado pela Rede Globo de Televisão, que Ramon assiste há horas, acompanhando a cobertura dos protestos contra o aumento das passagens de ônibus em São Paulo e no Rio de Janeiro – que, na verdade, como nós leitores críticos sabemos, vão muito além dessa questão das passagens, mostrando a indignação de um povo cansado da corrupção, da injustiça e da precariedade dos sistemas de saúde, transporte e educação. Ramon então se levanta, indignado com a baderna provocada pelos vândalos de São Paulo e do Rio, pega o carro e vai a um Drive Thru do McDonald’s, bem na esquina da sua casa, para comprar um Big Mac. Sua fera está presa e dorme, mas o homem civilizado tem fome. Mas Ramon luta contra esse bicho feroz que o ataca e domina, reage às suas garras e dentes buscando em si seu lado civilizado e cordial, moldado pela educação burguesa tradicional, que defende a ordem e a hierarquia acima de tudo. - 49 - - 50 - ................................ Cura gay Fazendo o V da vitória, o deputado comemorou efusivamente, junto com seus amigos e seguidores, a aprovação do seu projeto Cura gay. Segundo ele, o homossexualismo é uma doença e pode ser curado com tratamentos psicológicos e com a ajuda de Deus. A maior prova disso, no entanto, ele mantinha no mais absoluto sigilo: a sua própria cura, aos vinte anos, quando decidiu parar de comprar revistas gays (que ele recebia pelo correio), arrumou uma namorada e, rezando muito, tratouse com um amigo psicólogo, que em menos de dois anos conseguiu curá-lo. Depois da cura, o futuro deputado se casou, teve dois filhos varões, e hoje mantém uma vida sexual bastante ativa com a sua esposa, uma mulher bonita e fogosa que, segundo um jornal sensacionalista da capital, “põe não só a mão, mas o braço inteiro no fogo para o marido”. Meses depois de aprovado o projeto, imagine o choque que ele levou ao descobrir que seu filho mais velho, de dezoito anos, era gay. Justo o mais machão dos dois! O menino era capitão de um time de futebol, saía de carro à noite todo final de semana para pegar mulher e espancar travesti com os amigos, tinha voz grossa, coçava o saco o tempo todo e comia que nem macho: com a boca aberta e arrotando na mesa. Mas era gay. O pai descobriu por acaso, quando achou uma revista muito suspeita nas coisas dele, e vasculhando com mais cuidado, encontrou uma série de apetrechos sexuais que não deixavam margem para dúvidas (não dá nem para descrevê-los aqui). E ao ser confrontado com as provas, o rapaz confessou. Tinha até namorado! - 51 - ................................ O pai ficou arrasado, mas manteve-se firme. Procurou um psicólogo, especialista em cura gay, e lhe entregou o filho, com uma só determinação: “Cure-o”. Mas nada que o terapeuta fizesse conseguia curar o rapaz, que foi submetido até a lavagem cerebral, com eletrodos e tudo. Em prostíbulos de luxo foi apresentado às mulheres mais lindas da noite, que chegavam a excitá-lo e, às vezes, até a levá-lo para a cama, sem, contudo, apagar o desejo que ele sentia por homens, que era muito mais forte que a excitação sem graça que lhe provocavam as mulheres. Ele era gay e pronto. É certo que tentou se curar, para agradar o pai, mas depois viu que não tinha jeito e desistiu. Saiu de casa e foi morar com o namorado. No dia em que o filho foi embora, o pai, amargurado, entrou no quarto do rapaz e desabou sobre a cama, aos prantos. Pegou a revista gay, que ainda estava na gaveta da cômoda, e folheou-a, enojado. Ao se deparar com a foto de um modelo, porém, sentiu um estranho tremor – uma espécie de frisson –, que lhe percorreu o corpo inteiro com a velocidade de um raio. Olhou a foto com mais atenção e viu nela uma paixão que teve na juventude: um rapazote de dezoito anos, seu colega de faculdade, com quem se imaginava fazendo as mais loucas estripulias na cama. Foi terrível para ele relembrar esse passado. O fato é que o deputado ainda era gay. Não tinha se curado. Ele acreditava tanto na sua cura, desprezava tanto seus desejos, que era como se não fosse gay. Mas era. E ao se dar conta disso, rasgou a revista em mil pedacinhos e chorou, chorou muito, até cansar. Depois foi se olhar no espelho. Admirou sua beleza, seus traços de macho, seu olhar de fera selvagem, e sacudiu a cabeça, desarmando o - 52 - ................................ cabelo duro de laquê, que lhe caiu revolto sobre a testa e os olhos. Sentiu de novo o frisson, tentou mais uma vez negar a realidade, afastar aquele desejo que lhe tomava o corpo e a alma, mas desistiu e se entregou. Desesperado, louco para tirar o atraso, foi à cozinha, pegou uma cenoura, uma banana caturra, uma abóbora-menina, uma berinjela, e se trancou no quarto do filho. ................................ A comida no facebook Você, que tem o hábito – ou vício – de acessar o facebook dia e noite, com certeza já se deparou com gente postando fotos de comida – muitas vezes só da comida, toda arrumadinha em cima da mesa –, com comentários do tipo: “Olha o que o meu benzinho acaba de preparar para mim”, “Hummmmmm, que delícia!”, “Está servido?”. Quando o prato é muito sofisticado, a foto geralmente é em close, para que os simples mortais do outro lado possam visualizar bem os detalhes – como a gotinha de calda de caramelo suíço dando um toque de leveza na folhinha de hortelã de uma sobremesa francesa, ou os cinco tons de rosa dos camarões gigantes sem casca dispostos em círculo ao redor de legumes importados do Ceilão ou das Ilhas Canárias. Outras vezes, as pessoas aparecem comendo, bebendo, rindo, se divertindo; quando é comida japonesa, adoram mostrar que sabem usar os palitinhos, e fazem até pose para a foto. É ou não é? Segundo o antropólogo Roberto Da Matta, “a comida vale tanto para indicar uma operação universal – o ato de alimentar-se – quanto para definir e marcar identidades pessoais e grupais, estilos regionais e nacionais de ser, fazer, estar e viver.” No facebook isso é claro; e nele podemos identificar, a meu ver, dois tipos bem específicos de postagens com fotos de comida: aquelas que distinguem e destacam pessoas e grupos da grande maioria da população e reforçam a ilusão (neles e nos outros) de que, pelo fato de poderem pagar por refeições sofisticadas e caríssimas, um abismo os separa dos simples mortais; e - 53 - - 54 - ................................ aquelas que definem e marcam uma identidade mais democrática, mais aberta e acessível: a do brasileiro simples e alegre, que ama uma cervejinha gelada, um filé acebolado com amigos num boteco, uma traíra sem espinho no bar do Zé, uma lasanha de frango no domingo com a família: comida simples e gostosa, bem feitinha, que marca um estilo de vida agradável (que a maioria das pessoas pode se dar) e, ao mesmo tempo, mostra aos que estão do outro lado que ali todo mundo está feliz, curtindo a vida numa boa – eu diria até que faz parte do ritual das fotos que os outros saibam que todos ali estão bem: o sinal dos dedos em V e a latinha de cerveja levantada são os símbolos mais corriqueiros dessa alegria de viver no facebook, que o outro PRECISA ver, para compartilhar ou invejar. Por coincidência, minha mulher acaba de me chamar para o jantar. Hoje teremos Confit de Canard com purê de batatas e maçã caramelizada, harmonizado com um vinho simplesmente espetacular: o La Tâche de Romanée Conti 2007. Está servido? (Mais tarde eu posto a foto). ................................ Camila conseguiu Camila pelejou anos para chamar a atenção da imprensa local para o seu trabalho. No rádio até que conseguiu alguma coisa, mas queria um espaço também no jornal impresso, vitrine privilegiada da alta sociedade: o semanário A City. Não precisava nem ter foto, só uma notinha sobre a exposição, um comentário sobre dois ou três quadros, mais nada. (Ela queria impressionar os ricos, para ver se alguém comprava alguma coisa, porque a vida estava difícil). Não teve jeito. Por mais que ela pedisse e implorasse, o dono do jornal desconversava, dava uma desculpa e não publicava nada, nem uma frasezinha em letras minúsculas no pé de uma página. (Ela não tinha amigos influentes, então era complicado). Camila não comprava o jornal, porque era muito caro, mas folheava-o numa banca do centro, e ficava indignada ao ver que qualquer porcaria que uma socialite ou um magnata qualquer pintasse ou escrevesse era publicada e comentada com toda a pompa que a estirpe, a influência, o poder e o dinheiro daquela pessoa exigiam, com elogios do próprio dono do jornal, que de pintura e literatura não entendia nada. Até que um dia Camila apareceu na primeira página de A City, com direito a uma foto enorme dela sorrindo, toda feliz, e, na página quatro, a uma matéria especial sobre sua vida, com várias fotos de seus quadros. O título em destaque na primeira página, logo acima da foto da pintora, era: “Morte trágica”. Embaixo da foto, um pequeno texto convidando o leitor a ler a matéria da página quatro: “A jovem e talentosa artista plástica Camila Sampaio, 35 anos, - 55 - - 56 - ................................ teve um infarto fulminante enquanto tomava um sorvete no centro da cidade e morreu no local. Conheça a história e o trabalho dessa pintora em uma matéria especial de Jorge Baba Saco, na página 4”. Foi assim que Camila conseguiu o espaço que tanto queria no jornal. Parabéns, Camila. Descanse em paz. - 57 - ................................ Missão pombos Com muita calma, o professor abriu e fechou o portão da garagem várias vezes, até descobrir onde estava o problema: eram três ou quatro dentes de plástico – que se encaixam no eixo do motor, fazendo o portão se movimentar – que estavam quebrados: por isso o barulho esquisito e, de vez em quando, a necessidade de descer do carro e empurrar o portão com a mão. Percebeu também que com uma chave de fenda ele poderia inverter a placa onde estavam os dentes quebrados, ajustando os que se encontravam intactos ao eixo, no lugar dos outros, o que resolveria o problema. Com o coração acelerado, ele pegou a caixa de ferramentas, ajoelhou-se diante do portão e começou o trabalho. O suor escorria pelo seu rosto. O primeiro parafuso não cedia, porque o inepto professor girava a chave para o lado errado. Corrigido o sentido da rotação, o parafuso cedeu, os outros também, e finalmente a placa estava em suas mãos. Inverteu-a, mudando-a de posição no portão, e enroscou de novo os parafusos, apertando-os com força. Pronto. Ansioso para saber o resultado, com as mãos trêmulas, apertou o botão do controle. A luz vermelha piscou e o portão se abriu sem barulho, deslizando suavemente seu enorme peso de ferro sobre o trilho – e o professor, maravilhado diante de sua obra, sorriu feliz. A esposa chegou do trabalho e o cumprimentou pelo grandioso feito, que naquele dia vinha se somar a uma outra façanha sua, não menos notável: a descoberta, na semana anterior, de que não era preciso chamar um carpinteiro para apertar as maçanetas quando elas se soltavam das portas, bastava usar corretamente as chavinhas em forma de L que tinham vindo junto com elas. Que sensação maravilhosa! - 58 - ................................ Com certeza foi essa segunda vitória sobre suas limitações práticas que o fez decidir atacar por conta própria o problema dos pombos que infestavam o telhado da sua casa. No dia seguinte, então, comprou uma escada de ferro que, ao ser aberta, alcançou facilmente o telhado, no local exato onde os pombos tomavam sol e copulavam, em meio a fezes, penas, gravetos, palhas e ovos: uma verdadeira antecâmara do inferno. Naquele mesmo dia ele tinha encontrado um produto numa loja veterinária que, segundo o vendedor, espantava pombos. Não era veneno, mas uma substância que grudava nos pés das aves, incomodando-as de tal forma que elas iam embora e não voltavam mais. Pagou para ver. Abriu a escada, ajustou o pino de segurança que a manteria aberta e, com o produto e um enorme pincel em mãos, começou a escalada. A escada lhe pareceu frágil sob seu peso de mastodonte, que a envergava para dentro, balançando-a num movimento de vai-e-vem perigosíssimo; mas o professor parecia nem ligar; avançava lentamente, arfando de ódio, em direção ao território inimigo. E os inimigos, pressentindo o perigo, alçaram vôo, todos de uma vez, e ficaram sobrevoando a área, preocupados com o que aquele gordo de bermuda e chinelos pretendia fazer no seu playground. Junto com o produto espanta pombos e o pincel, ele levava também um saco de lixo para recolher ninhos, ovos e filhotes (se os encontrasse) e uma latinha de creolina, para desinfetar o local. A missão tinha tudo para dar certo, se não fosse o excesso de peso sobre a escada, que não resistiu e quebrou, quando o professor já estava quase no telhado, a mais de três metros do chão. - 59 - ................................ A queda foi assustadora. O professor caiu de bunda no chão – sentiu um choque tão forte, que cogitou até a hipótese de ter ficado paralítico. Mexeu as pernas e os pés e suspirou, aliviado, afastando da cabeça o pior; mas ainda não tinha escapado de uma possível fratura na bacia. Levantou-se lentamente, tremendo de medo, e logo percebeu que sua bacia estava intacta. “Graças a Deus”, sussurrou, enquanto olhava ao redor e via a escada quebrada e as outras armas da missão espalhadas pela grama e pelo chão da garagem. À noite, a esposa e os filhos o cercaram de carinho – o que de certa forma compensou o fracasso –, e se espantaram com o enorme hematoma que se espalhava por quase toda a extensão do seu gigantesco traseiro. - 60 - ................................ O delírio de Ramon Em mais uma de suas longas madrugadas de insônia, Ramon se distrai na cozinha matando formigas doceiras na bancada da pia e na porta da geladeira. Elas correm desesperadas, procurando um esconderijo; às vezes desaparecem num buraco ou numa fresta do armário, mas quase sempre ele as pega. E mata. Esfrega-as entre os dedos até transformá-las numa pasta seca cheia de fiapos de pernas, antenas e pequenas lascas de abdômen e tórax. E cheira. Adora o cheiro ácido de formiga doceira espatifada. Mas o que ele quer mesmo hoje é dormir sem ter que tomar remédio. “Hoje não tomo”, ele sempre diz, mas acaba tomando meio comprimido, ou um inteiro, depende do estado em que se encontra – se está tremendo muito, se fecha os olhos e vê estrelas piscando, se a mandíbula trava e ele não consegue abrir a boca, se sente cãibras pelo corpo: qualquer um desses sintomas é, para ele, indício de que seu velho amigo das horas mais terríveis de solidão e desespero será acionado por inteiro. (Falso amigo...). Ao tomá-lo, depois de trinta minutos Ramon simplesmente apaga. Não toma o remédio ainda. Liga a televisão. Numa cena, vê centenas de ratos bebendo leite no que parece ser um prato gigante. “Que coisa extraordinária”, pensa Ramon, com os olhos vermelhos esbugalhados grudados na tela. A reportagem diz que rato é sagrado naquele país. Imagina-se pegando um dos grandes pelo rabo, levando-o à altura do rosto e lambendo seu focinho sujo de leite. Começa a tremer de aflição e muda de canal. - 61 - ................................ Outra cena assustadora: um pastor, apóstolo ou missionário de uma dessas igrejas mundiais ou universais pedindo dinheiro a seus fiéis. “Para alguns, Deus pede só cem reaizinhos, para outros, quinhentos, mil, dez mil”, diz o larápio, e Ramon começa a tremer muito, dos pés à cabeça. “Não pode, meu Deus... Isso não pode estar acontecendo”, diz, e tenta acender um cigarro, mas o isqueiro falha três, quatro, dez vezes, e sua mão já não consegue segurá-lo, está crispada, dura como pata de macaco embalsamada; sua boca não abre mais, seus olhos começam a piscar freneticamente, a cabeça a balançar para frente e para trás, como se tomada por um espírito infernal. Ramon está em crise. Precisa do remédio. Tenta se levantar e ir até a estante para pegá-lo, mas se desequilibra e cai no chão, bem em cima do controle remoto da televisão, que é acionado pelo tombo e muda o canal. Caído sobre o tapete, Ramon olha para cima e assiste a uma cena grotesca: meninas de cinco anos em trajes de gala, de salto alto, cheias de pintura, os cabelos alisados com chapinha ou armados de laquê, participando de um concurso de miss infantil. Não aguenta o choque e entra em convulsão. Treme como se morresse numa cadeira elétrica, os olhos prestes a saltar das órbitas, mas mesmo assim consegue ver a sala, a televisão, a estante, o sofá. De repente, sente a aproximação de alguém; arregala os olhos e vê, de pé, ao seu lado, uma mulher vestida de branco, segurando uma espada, o olhar de justiceira implacável dirigido a ele, Ramon (sua vítima!), que, incapaz de reagir, aguarda o seu destino. Ela lhe diz: “Cuidarei de você, querido”, e se abaixa. Com a mão esquerda, estica o pescoço de Ramon - 62 - ................................ sobre uma almofada, puxando-o pelos cabelos, e, com a direita, corta-lhe a cabeça. Antes de mergulhar na escuridão da morte, Ramon ainda vê a mulher, que o encara, segurando sua cabeça decepada pelos cabelos. Sorrindo, olhando-o nos olhos, ela sussurra: “Agora você está livre”. Ramon acorda de seu delírio com a esposa tentando desenrolar sua língua; aos poucos volta ao normal, seu corpo relaxa, e logo sente o espírito apaziguado, leve. Seus filhos também estão ali, cuidando dele. Em silêncio, vive aquele amor. Está bem agora. ................................ O Cristo é saudade que não cabe no coração Eu tinha cinco anos. A serra era alta (dava para ver a cidade inteira lá de cima). Eu nunca tinha ido num lugar tão alto. Foi meu avô que me levou. E o Cristo era tão grande... dava até tontura de olhar. Meu avô me colocava nas costas e eu abria os braços e brincava de tentar pegar a cabeça do Cristo. E ríamos. Depois íamos tomar sorvete. Duas bolas só para mim. Que delícia de sorvete! Tudo era bom. Ninguém morria. Nada me entristecia. Meu avô era puro amor. Com ele, nada de ruim podia me acontecer. Trinta e três anos se passaram desde o dia em que meu avô me levou ao Cristo pela primeira vez. Hoje tenho dois filhos, meus cabelos estão brancos, a vida não é fácil, todos vamos morrer um dia... E tudo é tão pequeno... A cidade tem ares de grandeza, mas é pequena – como é pequena, meu Deus! Somos como formiguinhas bem pequenininhas buscando todo dia sua comidinha, vivendo e morrendo, tudo muito rápido – PUF! Acabou. A serra do Cristo é quase no chão. Dá até para subir de escada, contando os degraus, em menos de vinte minutos. Fiz isso hoje. E lá embaixo, na cidade, gritos e sussurros que eu não ouvia, mas sabia: “porque eu sou o melhor, eu posso mais, eu tenho mais, comigo é assim” e não sei mais o quê. Pretensiosos e arrogantes aos montes lá embaixo, pensei. Que pequenez. Mas também muita gente boa. Ainda bem. E o Cristo? - 63 - - 64 - ................................ Então... Por incrível que pareça, para mim, o Cristo permanece grande. Ele é pequeno, claro. Mas é grande. Grande na memória viva do meu ser. Na emoção que eu sinto ao vê-lo de perto. Na lembrança de achá-lo grande, de braços abertos no topo do mundo, aos cinco anos. Na saudade que eu tenho do meu avô... De todos os Cristos que eu vi até hoje, do Rio a Lisboa, o nosso é o menor. Mas é o maior. Não no tamanho, mas no que ele representa para mim. Uma grandeza que não se mede com fita métrica. É alegria. É dor. É saudade que não cabe no coração e transborda de tão grande. Texto publicado no livro Cristo: 50 anos de braços abertos sobre Pará de Minas, em homenagem aos 50 anos da estátua do Cristo Redentor de Pará de Minas (1963-2013). ................................ Embaixo do caminhão A marmita de plástico branco salpicada de barro tem num canto farinha de mandioca com borra de carne frita, no outro, arroz empelotado, e no meio, uma capa gorda de toucinho de porco sem sal. No chão de terra molhada, abrigando-se da chuva embaixo do caminhão, o cortador de cana rasga com as mãos o toucinho, - 65 - - 66 - ................................ mistura os pedaços com farinha e arroz, e leva tudo à boca de dentes podres, que mastiga voraz cada bocado do pouco que tem. ................................ curvados, humilhados, misturando-se às sombras do caminhão que não é deles, pés cobertos de lama, rachados, sustentando o peso do que é assim e pronto, não tem jeito: Ao todo são quatro trabalhadores jovens comendo com as mãos no pequeno intervalo concedido pelo dono do canavial – que também é dono dos caminhões, das foices e usinas trabalhar trabalhar trabalhar para não morrer de fome, olhos brilhando nas sombras, embaixo do caminhão. do inferno. O viver deles é isto: agachados, - 67 - - 68 - ................................ O bonitão da bala Chita ................................ Falo o que penso, sem medo; minhas convicções são as mais acertadas; minhas posições, as mais retas; quem não concorda comigo está errado. Eu sei que pago um preço alto por ser audacioso, por ter a coragem de enfrentar esse rio caudaloso de ignorância e interesses mesquinhos que toma conta de nossa cidade, mas continuo meu caminho mesmo assim; meus interesses são os melhores; meus ganhos, os mais justos; minhas vitórias, as mais merecidas. Levanto-me contra as vozes discordantes, que são o erro; ergo meu estandarte de boas intenções, de visões de futuro, e caminho em meio à tempestade de injustiças e desaforos que me assola sem piedade. Eleito recentemente para um mandato de quatro anos, o novo encarregado da Fazenda Mamata recebe agora pela manhã seu secretário geral e com ele discute o preenchimento de vários cargos comissionados e outros assuntos delicados, com o objetivo de cumprir pelo menos parte das inúmeras promessas que fez durante a campanha: Fazenda Mamata Falo o que penso, e o que penso é o que tem que ser; os outros são incapacitados, despreparados para a vida, para a profissão que escolheram; eu escolhi certo, e tenho talento, sou bom; os outros são migalhas, não podem comigo; mas querem me destruir, porque sou o melhor; não me aceitam, atacam-me, atravancam meu caminho; querem meu fracasso, porque o meu fracasso é a vitória deles, de sua visão atrasada, ingênua... Coitados! Ah, como sou bom, como sou bom... - 69 - – No chiqueiro, senhor secretário, estabeleça a regra de três porcos para cada funcionário, para diferenciar da regra anterior, que era de quatro para um, e como coordenador da equipe, coloque o Luisão do Bar, que já tem a lista das pessoas que serão contratadas para o serviço: primo, tio, cunhado, compadre, todo mundo de casa. – Sem problema, senhor encarregado; mas não se esqueça da equipe responsável pela limpeza do chiqueiro, que não pode ser a mesma que cuida dos porcos, pois ainda que haja uma redução no número de animais por funcionário, o serviço ainda será pesado. – É verdade. Temos que criar uma equipe de limpeza para o chiqueiro. Eu tinha me esquecido disso. Vamos ver... Para começar, contrate a Simone, filha daquele meu amigo, o... o... – Janjão? – Isso, o Janjão. Filha do Janjão. Contrate ela como coordenadora. Depois a gente decide quem vai fazer parte da equipe. – Mas ela está incapacitada, o senhor não se lembra? O caso é grave. Vive internada. – Eu sei, eu sei, mas prometi para o pai dela, o que é que eu posso fazer? Envie para ela relatórios e fotos do chiqueiro - 70 - ................................ toda semana e dê um jeito dela despachar de casa ou do hospital mesmo. A gente vai levando assim, nas coxas, até onde der. Ela não vai demorar muito a morrer. – E aquele problema com a coordenadora da equipe de fazer merda? – Qual problema? – Aquela reclamação do pessoal de que ela não sabe fazer merda e que, por isso, não tem que estar ali coordenando uma equipe de fazer merda. – Mas como é que ela não sabe fazer merda? A mãe dela me garantiu que em casa é o que ela mais sabe fazer! – Só se for em casa, porque aqui... – Põe ela então como assessora do coordenador da equipe de vigias da lagoa dos patos, e deixe bem claro para ela, já de cara, que qualquer pato que nadar em ziguezague deve ser abatido. Os que nadarem em círculo continuarão vivos. – Agora tem o problema do curral. – Qual problema do curral? – É que o coordenador da equipe de limpeza do curral está reclamando da falta de funcionários no seu setor, e está dizendo por aí que é uma injustiça a equipe que cata carrapatos no gado ganhar o dobro do que ganha a equipe dele. – Equipe que cata carrapatos? Mas onde é que está o pessoal que aplica remédio contra carrapato no gado? – O senhor se esqueceu que essa equipe sempre foi fantasma? Ela existe, recebe o salário, mas não aparece. Isso é tradição aqui, não tem como mudar, vem desde a primeira administração. – Contrate mais gente então para ajudar na limpeza do curral, mas só quem tenha me apoiado; e dê um aumento para esse povo. Ah, e como vai ter reforço na equipe, põe - 71 - ................................ lá o filho do Tobias da Ção como sub-coordenador, com o mesmo salário do coordenador. – Sim, senhor. Agora, mais um problema: a Inês, sua cunhada, pediu mudança de função. Quer ir para a defecação. – Por quê? Ela não está satisfeita coordenando os morcegos? – Não. Disse que os morcegos estão muito dispersos, não param quietos. Ela pelejou para mantê-los na sede da Fazenda, morcegando só nos gabinetes, na cozinha e nas filas dos banheiros, mas eles insistem em morcegar em toda a Fazenda, e defecam no chão, fora do cercado... Muito complicado. – Então põe ela na defecação Fazer o quê?... São quantos lá hoje? – Só o Marcão e um assessor para limpar o que ele defeca. – Vamos então colocar esse assessor do Marcão como coordenador dos morcegos e a Inês e o Marcão vão limpar eles mesmos o que cada um defecar. Se eles reclamarem, coloque dois assessores para limpeza de dejetos, indicados pelo coordenador de notas frias da Secretaria da Pilantragem. – Perfeito, senhor encarregado. Agora temos que criar aquela função nova, para empregar o pessoal das empreiteiras. O senhor tinha sugerido um grupo de trinta pessoas para bater palma toda vez que passar um avião sobre a Fazenda, alertando a comissão de assuntos aéreos, que deverá fazer um relatório da situação, o senhor se lembra? – Perfeitamente. Só acho que trinta é pouco, vamos precisar de pelo menos cinquenta, para o som das palmas ser bem audível. - 72 - ................................ – Concordo. Mas por ser muita gente, será que a câmara da Fazenda vai aprovar? O senhor prometeu aos vereadores dois cabides para cada um, para eles colocarem quem eles quiserem. Acho melhor o senhor entrar primeiro com o projeto desses cabides, que será aprovado, e depois com o das empreiteiras. – É claro. Que burrice a minha. Vamos propor então trinta e quatro cargos no departamento de saúde, sem exigir formação, e mandar o projeto para a câmara com um recadinho meu, lembrando do combinado. – Falando em saúde, senhor encarregado, uma dúvida: os funcionários do Pronto Atendimento vão precisar olhar nos olhos dos pacientes durante as consultas? Lembre-se que na administração passada houve muita reclamação sobre isso. – Para que olhar nos olhos de porco, burro e vaca? Animal não tem sentimento, não precisa dessas frescuras. É só receitar um remedinho para virose ou diarréia e despachar. Temos que acelerar o serviço. – Ah, outra coisa: vamos precisar de uma equipe grande para buscar pão com salame na padaria e fazer café para os funcionários que ficam sem fazer nada o dia inteiro na sede. Ou então o senhor oficializa todo mundo como morcego e põe para rodar na Fazenda, porque só dez pessoas para alimentar essa galera toda não está dando, sem contar as filas nos banheiros, que estão enormes. – Quem sabe a gente coloca esse povo no cordão dos puxasacos, cercando a Fazenda? Está completo o cordão? – Acho que ainda tem vaga sobrando por lá... Boa ideia. Vai aliviar bem a sede. – Alguma promoção para a leiteria? – Eu sugiro a Jandira, antiga coordenadora da defecação, ex-sub-secretária de assuntos aéreos, ex-assessora do - 73 - ................................ departamento de coisas inúteis e ex-sub-coordenadora de notas frias da Secretaria de Obras. Vem de outras administrações, mas é de confiança. Ela merece. Vai mamar bem. Fez vários estágios na leiteria, sabe direitinho o que tem que fazer. Vai engordar, com certeza, mas... – Sem problema, vamos deixar ela engordar até explodir. Mais alguma coisa? – Não, senhor. Por enquanto é só. – Que cheiro é esse, secretário? O senhor peidou? – Não, senhor. – Estranho... - 74 - ................................ ................................ Quase só coração No final das contas Ele só ia para a cama à meia-noite, depois do último jornal. Hoje não vai mais, pois dorme já o sono eterno. Sono que lhe chegou suave, pelas caladas, pegando-o desprevenido no começo da noite, quando suspirava, debruçado na janela, admirando a lua cheia que brilhava como um enorme globo de luz; cansado, mas satisfeito com o dia que terminava. Não acordará mais às seis da manhã, não preparará mais o café, não buscará mais o pão quentinho na padaria da esquina. Não voltará mais para casa, depois do trabalho, trazendo salsichas para fritar no jantar e um chocolate para cada uma das filhas. Não receberá mais amigos e parentes em sua casa com um sorriso acolhedor e uma alegria de viver que, de tão simples, era perfeita. Ele era simples. Simples por não querer muito mais do que já tinha: o amor da família, boa saúde, um trabalho que lhe agradava e um bom lugar para viver. Simples por não se preocupar com o que não merecia preocupação e por não ficar chorando o leite derramado. Simples por economizar energia para curtir ao máximo cada pequeno deleite que a vida lhe oferecia, a começar pela graça de poder acordar todos os dias, preparar o café, buscar o pão e estar com a família, que ele tanto amava. Simples por ser o que era: quase só coração. Ele cultivou a bondade, a alegria e a humildade, por isso está bem agora. À memória do tio Walter. - 75 - Se a morte hoje me alcançar antes do pôr-do-sol, e-mails não respondidos problemas não resolvidos papéis não assinados telefonemas não dados outros responderão resolverão assinarão darão por mim. Ou não. E se não, pouca diferença fará (ou nenhuma) no final das contas. Sobre os parcos despojos de uma vida sem ambição, outros se deitarão, depois de queimarem livros fotos cartas diários... – nada de mais Se a morte hoje me alcançar, no entanto, o que de mim ficará de mais importante (e que para mim é o que conta, no final das contas) - 76 - ................................ escapa totalmente à contabilidade estreita de um mero contador de coisas: ................................ A alma do livro ficarão as vezes que abracei meus filhos e disse “Papai ama vocês”, que fui paciente e compreensivo com quem me atacava, que ajudei sem esperar nada em troca, que me calei para não ofender ou magoar, que dei atenção e importância ao problema do outro, que estendi minha mão para socorrer, amparar... Se a morte hoje me alcançar, sei que poderia ter ficado muito mais de mim se eu tivesse feito mais... se eu tivesse sido mais... como filho pai irmão esposo amigo. Mas este sou eu agora de braços abertos, nu, com o vinho pela metade. Na biblioteca escura, de corredores sujos e estreitos, livros nunca lidos de autores desconhecidos, lançados e autografados em coquetéis com canapés, castanhas e vinho para os amigos – que só por amizade os compraram, doando-os depois para ganhar espaço nas gavetas e armários de suas casas apertadas –, enchem com suas lombadas de cores opacas as únicas estantes da cidade cinza, onde a ignorância e o orgulho reinam quase absolutos. Na biblioteca escura a poeira encobre vidas esquecidas, almas adormecidas que esperam o despertar, o toque de uma mão que as liberte do sono, o folhear que nas páginas impressas em tinta e sangue abra os portais de seus mundos distantes e luminosos. O folhear libertador, o lento passar de olhos sobre letras e frases: mundos que no escuro pulsam de alegria e dor, e que por magia renascem com a leitura, e aos poucos recobram a força da vida que os criou. Terra, cimento e mármore não calam a voz do escritor, agora à espera do olhar que liberte sua alma – e um dia ele vem, o olhar, e o passado renasce, recria-se naquele que lê e sente, e a vida se renova com a voz do que passou e do que é eterno, e as almas se encontram no leitor que apreende e recebe o texto vida que nunca morre. Mesmo esquecido e não lido, enfiado na estante empoeirada da biblioteca escura do reino da estupidez, o livro do autor nunca lido está vivo, à espera; a memória não se apaga; a indignação, a dor, a alegria, a alma lavada sofrida vivida não se apagam jamais do texto – estão lá, esquecidas, vivas, esperando... E é isto que ficará, se a morte hoje me pegar, no final das contas. - 77 - - 78 - ................................ ................................ túmulo esquecido, ou um luar prateado numa fria noite de inverno. Instantes Que antes de partir sentemo-nos ao lado do cão dormindo na soleira da porta e deixemo-nos tomar pela ausência de seu olhar e pela imobilidade de suas patas sobre o tapete de retalhos, e sintamos, junto com ele, o mais profundo dos silêncios. Que antes de partir façamos um café bem forte, com pouco açúcar, e bebendo-o, admiremos pela última vez a orquídea fantasmagórica que aos poucos definha sobre a mesa da sala de jantar, ao lado de Goethe, Poe e Clarice. Que antes de partir coloquemos em caixas de papelão todos os cadernos de memórias, cartas e fotos antigas, e também os vários livros de contos e crônicas que escrevemos na juventude, quando acreditávamos que a palavra pudesse nos salvar do abismo do esquecimento. Eu e todos os meus eus agora reunidos neste aconchego de instantes sem esperança – nesta sala a que chamamos Liberdade – damo-nos as mãos e aguardamos serenos, pensando: Que antes de partir saibamos viver o que há de mais precioso no mundo: o que somos. E que a um sono de paz finalmente nos entreguemos, sem medo, sem dor... Para sempre. Que antes de partir ouçamos pela última vez os concertos de Brandenburgo, de Bach, e tomemos a última taça de vinho, sentindo a música e a bebida nos elevar o espírito às alturas do insondável. Que antes de partir possamos viver cada instante de cada momento sem esperar nada da vida, e que o instante seja tudo para nós, no Tempo-Morte que lentamente nos devora. Que a dor dos que nos amam não nos doa, e não dure; e que de tudo que fomos e fizemos nesta vida reste apenas um cheiro doce de rosas amarelas colhidas com o nascer do sol, ou uma brisa de outono a soprar lembranças sobre um - 79 - - 80 - ................................ Feliz do seu jeito Sozinho em casa às três da tarde. Doem-lhe as juntas dos braços, mãos e pernas. Sente-as pulsar como pulsam seus lábios quando estão muito ressecados pelo frio, ou um furúnculo prestes a estourar, ou a cabeça quando a angústia é insuportável e ele se enche de café, não dorme e fica vagando pela casa de madrugada feito um zumbi à beira do abismo. São três e cinco da tarde e sua vida agora é isto: sentir dor e olhar a rua da janela. Um cachorro late no quintal vizinho. O carteiro passa correndo, banhado em suor, cumprindo sua obrigação: oito horas de trabalho por dia, para depois jantar, dormir e amanhã começar tudo de novo. Três e dez. Sente calor, mas em seu peito a tristeza é como um bloco de gelo que não derrete. ................................ Vive sozinho. Não tem amigos. É seco, distante, frio. Mas quem é generoso e se aproxima dele, às vezes quebra o gelo e descobre outra pessoa. Poucos fizeram isso, pouquíssimos... E agora ele não tem ninguém. Quatro da tarde. Toma uma decisão. Põe para tocar um concerto de Mozart, pega um livro de Adélia Prado e abre uma garrafa de vinho. Lê um poema, dois, três, e as palavras, a música e o vinho lhe aquecem o coração. De repente viver não é mais insuportável. Às quatro e quarenta da tarde já não sente mais dores, sua respiração é leve. Faz um café forte e abre todas as janelas da casa. Pensa em viajar, conhecer Barcelona, Praga, Viena. Ler de novo Bolaño e Saramago. Caminhar. Escrever. Cinco da tarde. Olha-se no espelho e sorri. Sua vida agora é isto: Três e vinte e sua vida agora é isto: com dor, olhando a rua da janela, ouve a buzina do padeiro e os cascos do seu cavalo. Mulheres saem à rua com cestas e panos de prato. Feliz do seu jeito. Três e meia. Fecha os olhos e vê o brilho da dor pulsante em ondas brancas de luz quebrando a escuridão. Três e quarenta. Vai até a escrivaninha, tira uma folha e escreve: Júlia. Sua mão treme, a dor é como se agulhas quentes lhe espetassem a carne até os ossos. Quer dizer para a filha que a ama, que a perdoa, que sente muito, mas não consegue escrever. Então vou ligar, diz, e pega o telefone. Disca, mas ninguém responde. - 81 - - 82 -
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Silva, Flávio Marcus da PEIXES FORA D’ÁGUA. Flávio Marcus da Silva. Pará de Minas, MG: Editora VirtualBooks, 2013.14x20 cm.
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