revista de estudos orientais - Letras Orientais
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Reitor: Prof. Dr. Jacques Marcovitch Vice-Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik Aubert Vice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS ORIENTAIS Chefe: Profa. Dra. Aida Ramezá Hanania Vice-Chefe: Prof. Dr. Mário Bruno Sproviero Endereço para correspondência Comissão Editorial Compras e/ou assinaturas Departamento de Línguas Humanitas Livraria – FFLCH/USP Orientais – FFLCH/USP Rua do Lago, 717 – Cid. Universitária Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 – Cid. Universitária 05508-900 – São Paulo – SP – Brasil 05508-900 – São Paulo – SP – Brasil Telefax: (011) 818-4589 Tel: (011) 818-4299 / Fax: 818-4892 e-mail: [email protected] e-mail: [email protected] http://www.usp.br/fflch/fflch.html © Copyright 1998 dos autores. Os direitos de publicação desta edição são da Universidade de São Paulo. Humanitas Publicações – outubro/1998 ISSN 1415-9171 REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS Revista do Departamento de Línguas Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas N. 2 PUBLICAÇÕES FFLCH/USP Revista de Estudos Orientais • n. 2 • p. 1-169 • São Paulo • novembro 1998 DIREÇÃO EDITORIAL · Aida Ramezá Hanania (DLO – curso de Árabe) · Arlete Orlando Cavaliere (DLO – curso de Russo) · Yervant Tamidjian (DLO – curso de Armênio) · Eliana Rosa Langer (DLO – curso de Hebraico) · Madalena Natsuko Hashimoto (DLO – curso de Japonês) · Mário Bruno Sproviero (DLO – curso de Chinês) CONSELHO EDITORIAL · Alexander Chung Yuan Yang (USP) · Alexandre Jebit (Academia de Diplomacia-M.R. Ext. Moscou) · Ana Szpiczkowski (USP) · Antonio Kandir (UNICAMP) · Boris Schnaiderman (USP) · Franz Shumann (Univ. Califórnia) · Haquira Osakabe (UNICAMP) · Helmi Nasr (USP) · Homero Freitas de Andrade (USP) · Kate Windmüller ( Edit. Rev. Judaica) · Lídia Massumi Fukasawa (USP) · Milton Hatoum (Univ. Amazonas) · Richard Hovannisian (Univ. Califórnia) · Roshdi Rashed (CNRS – Paris) · Sakae Murakami Giroux (Univ. Strasbourg) · Saul Sosnowski (Univ. Maryland) · Sun Chia Chin (Univ. Normal de Taiwan) · Yessai Ohanes Kerouzian (USP) Revista de Estudos Orientais / Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas / USP. – n. 1 (1997) –.– São Paulo, Humanitas / FFLCH/ USP, 1997 – Anual ISSN 1415-9171 1. Línguas orientais 2. Literaturas orientais 3. Artes do Oriente 4. Pensamento do Oriente 5. Culturas do Oriente I. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas CDD 490 Ficha catalográfica elaborada por Márcia Elisa Garcia de Grandi – CRB 3608 SBD FFLCH USP SUMÁRIO EDITORIAL .................................................................................. 7 HOMENAGEM PRESENÇA DA GRAÇA ...................................................................... 11 Aida R. Hanania e Mário B. Sproviero ARTIGOS OS ESTUDOS ORIENTAIS NO ÂMBITO DA UNIVERSIDADE .............................. 17 Aida R. Hanania e Mario B. Sproviero A ESSÊNCIA DO HEBRAICO ................................................................ 23 Ana Szpiczkowski ALMADA NEGREIROS E O FUTURISMO RUSSO: INTERSECÇÕES ESTÉTICAS ................................................................................ 29 Arlete O. Cavaliere ARQUIVO HISTÓRICO: MADENATARAN .................................................... 47 Chake Ekizian Costa O BILINGÜISMO CHINÊS/PORTUGUÊS SERÁ EXTINTO? .................................. 57 David Jye Yuan Shyu RESSURGIMENTO DA LÍNGUA HEBRAICA E SUAS IMPLICAÇÕES CULTURAIS ............................................................................... 63 Eliana Rosa Langer O CICLO ÉPICO CORVO NO PALEOASIÁTICO E O MITO DO BRASIL: EM BUSCA DE ELOS .................................................................... 77 DO DESANINHADOR DE PÁSSAROS DOS ÍNDIOS BORORO NO Helena S. Nazário LÊNIN, TRÓTSKI E STÁLIN POR BULGÁKOV ............................................... 89 Homero Freitas de Andrade REVISTA DE LÍNGUAS ORIENTAIS. O SISTEMA DE ESCRITA DA LÍNGUA JAPONESA E ALGUNS ASPECTOS DA SUA HISTÓRIA ..................................................................... 109 Junko Ota AL-INSAN, L’HOMME, CE GRAND OUBLIEUX ......................................... 121 Luiz Jean Lauand ELEMENTOS PARA A CONFIGURAÇÃO DO CAMPO LÉXICO DA “LINGUAGEM” (VÂC) NO RGVEDASAMHITÂ ...................................... 125 Mário Ferreira O CONTO-CRÔNICA DE ARTISTA ISRAELENSE YEHUDIT HENDEL: UM RETRATO DO ................................................................... 137 Nancy Rozenchan ARMÊNIA: ROTA DE MUITOS POVOS .................................................... 143 Yêda de M. Camargo TRADUÇÃO LETRADOS E ALMOCREVES: UM TRATADO ÁRABE DO SÉCULO VIII ................... 153 Mamede Mustafa Jarouche ENTREVISTA OS ESTUDOS ORIENTAIS ................................................................. 163 Georges Nivat –6– EDITORIAL Nossas primeiras palavras buscam exprimir – ainda que insuficientemente – a admiração e a saudade com as quais todos nós, membros do Departamento de Línguas Orientais, necessariamente convivemos desde a irreparável perda da queridíssima colega Maria da Graça de Campos Mendes Segnibo, ocorrida em março de 1997. Em consonância com a proposta que lhe deu origem, a Revista de Estudos Orientais, neste número 2, traz a público uma série de artigos referentes aos diversos Orientes, seja no campo da Língua, da Literatura e da Cultura. No âmbito do Extremo Oriente, situa-se uma interessante abordagem que visa ao conhecimento do sistema da escrita da língua japonesa. O idioma chinês é analisado sob o ângulo da coexistência com outros idiomas, voltando-se basicamente ao exercício do bilingüismo sinoportuguês. O Oriente Médio está presente na interessante matéria sobre a linguagem que remete à cultura indiana. Ligado ao Oriente Próximo, acha-se o artigo sobre Al-Insan, o Homem, que, apoiando-se na cultura árabe, ressalta a profunda relação existente entre memória e educação, tão viva no Oriente. Também da realidade próximo-oriental, procedem artigos sobre a língua hebraica, sobre sua relação com a cultura judaica e sobre a obra do israelense Yehudit Hendel, bem como o artigo que realiza sugestiva incursão na Madenataran (biblioteca que reúne o acervo mais completo de manuscritos armênios e seus estudos) e o texto que visa à trajetória histórico – cultural da Armênia. A literatura russa mereceu um artigo que salienta a visão de Lenin pelo escritor Bulgákov e outro que estabelece elos entre o futurismo russo e Almada Negreiros. Inusitado e curioso, o tema desenvolvido sob inspiração do pesquisador Meletinski que relaciona um ciclo épico do Paleoasiático e um mito dos índios bororos no Brasil. Inaugurando a seção Tradução, registra-se, mais uma vez, a presença da cultura árabe por meio da Epístola aos Letrados de Abd-ul-Hamíd-il-Kátib. Editorial. O n. 2 da REO traz ainda outra novidade: uma seção de entrevistas que se inicia com o diálogo estabelecido com o Dr. Georges Nivat, diretor do Departamento de Línguas e Literaturas Mediterrâneas, Eslavas e Orientais da Université de Genève Não por acaso, o presente número da Revista de Estudos Orientais abre-se com o rastreamento e análise dos estudos orientais no âmbito da Universidade e fecha-se com as importantes considerações do ilustre visitante genebrino: ambas as matérias revelam a preocupação atualíssima com o modo de inserção dos estudos orientais no contexto do ensino superior, de maneira a fundamentar e ampliar – em momento de particular interação mundial – as profícuas relações entre Oriente e Ocidente. Aida Ramezá Hanania Pela Direção Editorial –8– HOMENAGEM REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 11-13, 1998. PRESENÇA DA GRAÇA Aida R. Hanania e Mário B. Sproviero* Certo dia da década de sessenta, ela trocou o Maranhão e a tranqüilidade do campo pela turbulência de São Paulo. Turbulência, entretanto, que era também cultural, o que irremediavelmente a atraiu, colocando-a na senda do Extremo Oriente, à primeira vista, de cultura estranha, distante da cultura brasileira e particularmente de sua peculiar cultura nortista. Curiosamente, porém, ao voltar-se à Cultura Chinesa, que foi assimilando sólida e progressivamente (valendo-lhe a pertinente observação do Dr. Sun Chia Chin de que esse seu modo calmo e persistente de assimilação era muito oriental e muito chinês...) reencontra suas raízes, num momento em que sua terra natal já sofrera modificações... Na verdade, o estudo da China – cuja filosofia e história cultural estão marcadamente ligadas ao meio rural – veio de encontro a um projeto pessoal de pesquisa e contribuição à própria realidade maranhense, plena de dificuldades, tanto quanto a chinesa, sobretudo do ponto de vista social e econômico. A vontade e mesmo, a necessidade de ir à China para ampliar sua formação foram proporcionais às dificuldades encontradas para essa realização em tempos de rigor ditatorial e de intrincadas relações entre o Brasil e a China. Após cerca de vinte anos de tentativas, no entanto, eis que a sonhada permanência na China se concretiza, coroando um percurso intelectual dos mais valorosos pela dedicação e persistência com que se desenvolveu. Em meio à vigência da bolsa que lhe foi concedida, presenciou o trágico acontecimento ocorrido na Praça da Paz Celestial de que todos, * Aida Ramezá Hanania é Chefe do Departamento de Línguas Orientais e Mário Bruno Sproviero, Suplente de chefia do Departamento de Línguas Orientais e docente do Cur– 11 – so de Chinês da FFLCH/USP. HANANIA, Aida R. e SPROVIERO, Mário B. Homenagem. Presença da Graça. lamentavelmente, temos lembrança. O episódio, naturalmente, fê-la interromper seus estudos, mas, chegando ao Brasil, retomou de imediato a luta por seu projeto, voltando, em seguida, à China para finalizá-lo. Enquanto aqui esteve, concedeu várias entrevistas à imprensa escrita e falada, promovendo – em momento tão crucial – uma real aproximação entre os dois países. A Dissertação de Mestrado “O San Zi Jing no “Reino Celestial” dos Taiping – China, 1851-1864” (defendida em 1983, antes de ir ao Oriente) abordou tema que trata da Revolução dos Taiping, a grande revolução do século passado que precedeu a revolução marxista deste século. Este mesmo tema foi aprofundado na China, com vistas à Tese de Doutoramento “O “Reino Celestial” dos Taiping (China 1851-1864): O Imaginário político-pedagógico no Taiping Tian Ri e no San Zi Jing” apresentada em 1993, representando um ápice na carreira, uma vez que lhe permitiu, no plano acadêmico, um engajamento cultural extremamente objetivo, apesar de suas convicções políticas muito bem definidas. Seu último projeto, o de Livre-Docência, buscava, em linhas gerais, examinar as razões de permanência e valorização – na Cultura Chinesa – do Confucionismo (surgido no século VI antes de Cristo), a ponto de constituir-se, o mesmo, em sua própria identidade. Seu trabalho intelectual foi interrompido no momento em que o campo já estava todo semeado... A colheita que não teve tempo de fazer legou-a a seus alunos e seus colegas que, profundamente saudosos e emocionados, são hoje seus maiores beneficiários. A sinóloga consciente, zelosa cumpridora do dever, conviveu permanentemente com a colega solidária, colaboradora, positiva e com a amiga afetuosa, alegre, otimista e profundamente autêntica em sua brasilidade. Relacionava-se bem com todos os colegas de Departamento, preservando sempre sua independência: não integrava grupos divisionistas e tampouco estimulava facções. Ao contrário, era tolerante e conciliadora, sem ser concessiva; equilibrada, discreta, convicta. E é com estas características que a Graça nos emocionou até o fim: sem diminuir em nada sua disponibilidade, suportou silenciosa e solitaria– 12 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 11-13, 1998. mente seu sofrimento, poupando os colegas do peso de sua tragédia, participando ativamente – até o último instante – da vida acadêmica, comparecendo com todo seu entusiasmo à festa de encerramento do ano que promovemos no DLO, brindando e cantando conosco, visivelmente esperançosa de um 1997 melhor e mais justo... Assim era a Graça1 e é assim que ela estará sempre presente entre nós. 1 Maria da Graça de Campos Mendes Segnibo nasceu na cidade de Caxias no Maranhão, em 28 de março de 1949 e faleceu em São Paulo, em 17 de março de 1997. Era casada com o Sr. Bernard Segnibo e não deixou filhos. Esteve ligada à Universidade de São Paulo desde 1973, exercendo, inicialmente, atividade administrativa na FFLCH – setor de Pós-Graduação (1973-1988). De 1988 a 1997 integrou o quadro de Professores do Departamento de Línguas Orientais, exercendo as atividades de docência e pesquisa junto ao Curso de Chinês, especializando-se em Cultura Chinesa. – 13 – ARTIGOS REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 17-22, 1998. OS ESTUDOS ORIENTAIS NO ÂMBITO DA UNIVERSIDADE Aida R. Hanania e Mário B. Sproviero* Resumo: O presente artigo busca, a partir de breve retrospectiva histórica localizar os estudos orientais no nível da universidade e sua importância, bem como seu modo de presença ao longo do tempo Palavras-chave: universidade, estudos orientais, pluriculturalismo, oriente e ocidente. A Universidade, tal como hoje existe, desenvolve-se, como se sabe, a partir de suas origens na Europa da Idade Média. Muito embora registrem-se instituições congêneres em outros contextos ao longo da História (Grécia antiga, Oriente Médio, China etc), devese dizer que se tratava de escolas voltadas para conhecimentos específicos como Filosofia, Retórica, Literatura... não se constituindo em centro permanente de sistematização, produção e transmissão da totalidade do saber com a finalidade de perpetuá-lo. Período privilegiado da História, que antecedeu a formação das nações modernas – ecumênico por excelência – a Idade Média permitiu reunir no mesmo espaço – a Universidade – os saberes humanos do mundo conhecido à época. Como fato ilustrativo, convém lembrar que o Ocidente (sobretudo dos anos 800 a 1200 aproximadamente) recebeu a cultura grega por meio dos árabes que, a par de outras contribuições, traduziram e interpretaram a Filosofia de Aristóteles, tendo como figuras centrais, Avicena (Ibn Sina – 980/1037) e Averróes (Ibn Rushd – 1126-1198). * Os autores são Profª. Titular e Prof. Associado do Departamento de Línguas Orientais da FFLCH/USP. – 17 – HANANIA, Aida R. e SPROVIERO, Mário B. Os Estudos Orientais no Âmbito da Universidade. Desse modo, a recém-criada Universidade já abrigava a presença de outros elementos culturais que não os exclusivamente veiculados pela cultura cristã o que, naquela altura, já se constituía numa primeira manifestação pluriculturalista. Pode-se mesmo afirmar que o estabelecimento da Universidade foi possível a partir do contacto estreito do Ocidente com a civilização árabe – instigante na medida em que despertou a curiosidade intelectual com relação a vários ramos da ciência e do saber filosófico – e, em grande parte, em virtude do processo de urbanização com a conseqüente organização social que vinham sofrendo as cidades, bem como pela educação do clero, cada vez mais qualificada. Com a posterior formação das nações, já na Idade Moderna, e surgimento dos respectivos “nacionalismos”, a coexistência dos saberes viu-se restringida em sua dimensão pluriculturalista que, no início, fôra tão dinamizada. A ampla interação cultural que advinha também da diversidade de origem dos professores e alunos (tomemos, como exemplo, a Universidade de Paris que abrigou quase que ao mesmo tempo, Alberto Magno, de Colônia (ca 1193-1280), Santo Tomás de Aquino, da região de Nápoles (ca 1227-1274), Duns Escoto, da Escócia (ca 1266-1308) e muitos outros), praticamente deixou de existir, configurando-se a Universidade Francesa, a Alemã, a Italiana, a Inglesa..., situação que, de certa forma, perdurou até nosso século. No entanto, após a Segunda Guerra Mundial, pudemos assistir ao ressurgimento – de maneira ainda mais universal – da interpenetração de culturas, o que levou as nações – pela primeira vez na História – a interagirem em nível global, malgrado sua menor ou maior resistência. As universidades ocidentais (também com maior ou menor resistência) acabaram por refletir naturalmente a nova ecumene. Tenha-se em conta que as grandes universidades do mundo ocidental contemplam, em suas atividades acadêmicas, a integração de saberes procedentes de várias culturas. O encontro das diversas culturas do Oriente com a cultura ocidental ocorreu de modo paulatino e desigual, conforme os processos históricos específicos que as envolveram. Em seqüência a esse encontro, surgiram os estudos relativos ao mútuo conhecimento Ocidente/Oriente. – 18 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 17-22, 1998. No campo destes estudos, principalmente após os grandes descobrimentos, deve-se mencionar o trabalho pioneiro de missionários (primeiramente jesuítas) seguidos por ministros protestantes e outros europeus que, por razão de ordem vária, encontravam-se envolvidos in loco pelas culturas orientais. A curiosidade das “grandes potências” da época com relação às culturas milenares do Oriente, determinou um interesse inusitado pelo conhecimento das mesmas em muitas direções, interesse que se intensificou ainda mais na vigência do colonialismo que delineou, por assim dizer, a fisionomia do século XIX. Em outras palavras: até o século XIX, predominou o que poderíamos chamar hoje de “pesquisa de campo”, desvinculada, entretanto, da Universidade que, então, rechaçava a idéia de abarcar o estudo de tais culturas. Cabe aqui um exemplo típico do que se diz: deve-se destacar que o conhecido filósofo Leibniz (1646-1716) foi o primeiro intelectual de que se tem notícia, a admitir, a par de seu interesse e dedicação ao Extremo Oriente, que “a Europa tinha algo que aprender com a China1”. Não obstante, foi reduzida a influência que tal posicionamento teve na condução de sua obra. Seu famoso discípulo, Christian Wolff (1679-1754), tão-somente conhecido, entre nós, como o grande sistematizador da filosofia racionalista de Leibniz, inclinou-se também ao pensamento chinês, a exemplo do mestre e, ao querer expor a filosofia chinesa na Universidade Alemã, dela foi praticamente expulso, por não constituir, tal filosofia, matéria digna de ser incorporada ao ensino universitário... A resistência da Universidade ao estudo de culturas “estranhas” ou “distantes” da realidade eurocêntrica foi superada, grosso modo, a partir de meados do século passado, quando os conhecimentos já divulgados sobre as mesmas eram de tal vulto que não podiam mais ser desconsiderados. Assim, coincidindo com o arrefecimento da época colonialista, as universidades acabaram por assumir a tarefa de dar continuidade aos estudos que vinham sendo feitos fora de sua esfera de atuação. Passaram, então, os estudos que se faziam in loco, motivados por interesses outros, para os gabinetes universitários, agora com perspectiva marcadamente acadêmica. 1 Cf. Manfred W. K. FISCHER – “Leibniz und die chinesische Philosophie”, in Conceptus, vol. XXII, n. 56, Viena, 1988. – 19 – HANANIA, Aida R. e SPROVIERO, Mário B. Os Estudos Orientais no Âmbito da Universidade. Ao longo do século XX, como se sabe, os estudos orientais enraizaram-se nas principais universidades e centros culturais do Ocidente – Universidade de Paris, Munique, Berlim, Oxford, Veneza, Yale, Columbia, Colegio de Mexico, dentre outros – consolidando definitivamente seu perfil acadêmico. Curiosamente, este modelo inspirou as universidades orientais que se instalaram a partir do formato ocidental (caso da Universidade Japonesa, por exemplo). Com o advento e formidável desenvolvimento da Informática, o mundo do saber – agora sensivelmente mais integrado – aproximou, necessariamente, as realidades culturais existentes, exigindo uma dimensão mais ampla dos estudos em pauta e estimulando sobremaneira, a integração de universidades – as mais distantes culturalmente – no sentido da comunicação total do saber humano. O ideal da unidade do saber, ínsito no homem, coexiste, de fato, com a pluralidade dos saberes. No entanto, a inadequação entre a globalidade ideal do saber e sua “fragmentariedade”, assim como o estranhamento dos múltiplos saberes entre si, geram, compreensivelmente, insatisfação e angústia. A solução parcial para tentar superar tal desproporção tem sido a de colocar em contacto, vários saberes, visando à comunicação dos mesmos. E é norteada por esse espírito que surgiu, como vimos, a Universidade na Idade Média. Convém ressaltar que não pretendemos enfocar aqui, a pluralidade do saber em sua ampla complexidade. Apenas a consideramos como momento essencial para situarmos as culturas orientais. Quando se considera a pluralidade das ciências particulares, a par de seu inegável desenvolvimento autônomo, deve-se visá-las como partes de um todo – a ciência – a integrarem-se em múltiplos níveis: é o que se busca, promovendo a interdisciplinaridade. O fato, entretanto, de estarmos distantes de uma real integração (o néo-positivismo nem chegou a unificar a linguagem da ciência) impõe que se redobre o empenho em direção a essa meta. O ideal de um conhecimento racional e “apriorístico” (no sentido de uma ciência geral anterior e comum a todas as ciências: uma ciência das – 20 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 17-22, 1998. ciências, o ideal de uma “Mathesis Universalis” proposta por vários autores ao longo da História – dentre os quais destacamos o arabista catalão Raimundo Lúlio (ca 1232-1316) e o próprio Leibniz, já citado – redundou, em termos concretos, nas empíricas e “aposteriorísticas” enciclopédias dos séculos XVIII, que perduram até hoje, onde ocorre apenas a justaposição de saberes e não sua desejável urdidura em um único tecido2. Porém, as várias tentativas de efetivar a unificação do saber também perduram e partem de uma pluralidade filosófica, aparentemente irredutível, ligada a diferenças político-ideológicas, religiosas e culturais. Se, de certo modo, acentuam as distâncias entre os saberes, estas diferenças – como uma pluralidade sempre em maior interação imposta pelo mundo hodierno (sobretudo com a Revolução da Informática) –, fazem com que a aproximação dos diversos saberes e diversas culturas, seja a tarefa primordial de nosso tempo. É oportuno salientar aqui, uma idéia muitas vezes reiterada no meio acadêmico francês, atribuída ao Pe. Chenu: “Les vraies découvertes se font aux frontières des sciences, là où, pourrait-on dire, elles se contaminent et se fécondent les unes par les autres”. Extremamente apropriada a generalização do dito, pois é no contacto dos vários setores do conhecimento e das várias culturas que se fertiliza o saber e se integra a Civilização Humana. Modernamente, o conhecido filósofo Edmund Husserl (1859-1938), participando desse ideal, propôs uma metodologia comum da Ciência, além das metodologias particulares das ciências: a ciência das ciências... A pluralidade do saber, enquanto tal, não se constitui em valor, excetuando-se, porém, as recentes propostas hermenêuticas que reduzem as opções filosóficas e ideológicas a pura literatura, sob um ponto de vista de absoluto relativismo cultural. Já no caso das várias culturas, a própria pluralidade pode constituir-se em valor, uma vez que o homem se adapta a várias condições e é permeável a várias soluções existenciais na reprodu- 2 Hoje, chega-se ao extremo de valorizar a pluralidade do saber diante da unidade, no pensamento pós-moderno proposto pela Hermenêutica (Habermas). – 21 – HANANIA, Aida R. e SPROVIERO, Mário B. Os Estudos Orientais no Âmbito da Universidade. ção de sua vida material e cultural. Pode-se afirmar que a pluralidade de culturas é enriquecedora pela complementaridade que acarreta e não por sua oposição, como no caso das ideologias. Agudamente, no mundo de hoje, as culturas estão obrigatoriamente em contacto, ocorrendo, por isso, vários problemas com vistas a sua mediatização, o que torna imprescindível a reflexão e o saber universitários para a integração das mesmas3. Mais do que isso: verifica-se hoje uma integração tal das universidades (propiciada amplamente pela comunicação eletrônica) que se espera, em breve espaço de tempo, a formação de uma única Universidade, com sede no mundo... Decorrência da automação e substituição do trabalho humano, não só do trabalho mecânico, manual, mas – e principalmente – daquilo que é mecânico no trabalho intelectual, chega-se a uma crescente redução do trabalho especificamente humano4, circunscrevendo-o, sempre mais, ao âmbito intelectual criativo. Dito de outro modo, restará sempre ao homem, o trabalho reflexivo, criativo, que, em última análise, é o que se desenvolve no meio universitário; trabalho este que jamais será substituído por qualquer dispositivo tecnológico. A Grande Universidade tenderá, então, a assimilar de modo cada vez mais acentuado, o serviço humano na sua globalidade. A pluralidade de culturas – em contacto – é, certamente, fermento de criatividade. Nesse ponto, o Oriente, em suas múltiplas facetas culturais, constitui uma dimensão essencial na recomposição da unidade humana, superando – espera-se – o estigma histórico da ruptura Ocidente/Oriente... Abstract: The present article – from a brief historical back-ground – aims to situate the oriental studies in the sphere of the University and consider their importance and way of presence along the time. Keywords: university, oriental studies, pluriculturalism, east and west. 3 4 Lamentavelmente, o mundo tende a uma empobrecedora monocultura global, sustentada tecnologicamente pela Mídia, o que alerta, ainda mais, para o papel que deve cumprir a Universidade. Basta atentar para o fato de que o desemprego é um dos principais problemas sociais de nosso tempo, com a nítida propensão de agravar-se sempre mais. – 22 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 23-28, 1998. A ESSÊNCIA DO HEBRAICO Ana Szpiczkowski* Resumo: A palavra hebraica é gerada, de uma raíz, composta, geralmente, por três letras consonantais. Essas três letras consistem na essência da palavra e irão permitir, por sua derivação, a formação de outras. É possível, portanto, à partir de sua raíz, analisá-la semânticamente e obter a revelação de seu verdadeiro sentido. Entretanto, em alguns casos, o radical diz respeito à mais de um campo semântico, pelo fato de serem de origens diferentes, pois no hebraico moderno coexistem, indistintamente, elementos lingüísticos de todas as fases anteriores de sua utilização (período bíblico, período talmúdico e literatura da Idade Média). Como exemplo, para esse estudo, foram escolhidas as palavras – אמן Amen e Eden – עדן, que transmitem algo, não somente para os hebraístas, mas que, por sua abrangêcia, fazem parte do saber universal. Palavras-chave: radical, três letras consonantais, coexistência de elementos lingüísticos, análise semântica e lingüística. Quando nos deparamos com uma língua, qualquer que seja, e enveredamos na compreensão de seus vocábulos, iremos nos encontrar, inevitavelmente, com a história e os valores do povo que a usa. Isso ocorre, também, com a língua hebraica, a qual, permite, pelo entendimento de suas palavras e pelo rastreamento da sua composição, a compreensão do processo de pensamento e da cultura do povo judeu. O hebraico, língua clássica, após muitos séculos de utilização para as práticas religiosas, para a comunicação escrita e para a expressão literária, transformou-se, à partir do empenho de Eliezer Ben Yehuda, numa língua moderna, capaz de expressar as necessidades de uma sociedade moderna e dinâmica. Atualmente, após cento e sete anos do início do renascimento do hebraico, a maioria das inovações para a criação de novos termos continua sendo feita, pela Academia de Língua Hebraica, a partir da adequação dos * A autora é Profª. Drª. do Departamento de Línguas – 23 – Orientais da FFLCH/USP. SZPICZKOWSKI, Ana. A Essência do Hebraico. radicais das fontes tradicionais, acrescidos de prefixos e sufixos, ou ainda, combinando várias palavras básicas para criar uma nova. A ordem de prioridade das fontes pesquisadas por esta Academia para a formação de novos vocábulos foi, em primeiro lugar a Bíblia, depois o Talmude, e em seguida a vasta literatura da Idade Média, demonstrando, por esse método de trabalho, uma preocupação constante de que o acréscimo de novos vocábulos, não afete as características básicas da língua. No hebraico moderno, portanto, coexistem, indistintamente, elementos lingüísticos de todas as fases anteriores de sua utilização. Na língua hebraica há vinte e duas (22) consoantes, que são escritas da direita para a esquerda e, dez (10) vogais, que são sinais diacríticos escritos sob, sobre e ao lado das consoantes (nem sempre presentes na escrita sem vogais). A palavra hebraica é gerada, de uma raíz, composta, geralmente, por tres letras consonantais. Essas tres letras consistem na essência da palavra e irão permitir, por sua derivação, a formação de outras. Isso significa que, ao nos determos em uma palavra hebraica, poderemos, à partir de sua raíz, analisá-la semânticamente e obter a revelação de seu verdadeiro sentido. Entretanto, em alguns casos, o radical diz respeito a mais de um campo semântico, pelo fato de eles serem de origens diferentes. Tomemos como exemplo a pequena palavra hebraica Amen – ןמא, presente e popular em tantas outras línguas, e que revela ao mundo uma das essências da civilização judaica, a afirmação. Sua popularidade se dá, talvez, porque ela é a resposta afirmativa que se dá após uma bênção ou uma oração. A raiz Aman – ןמא, quando utilizada para o verbo, significa “criar, educar; amarrar, juntar”. Sua equivalência mais próxima em outras línguas, pode ser encontrada no inglês americano moderno, na expressão Right On. Na medida em que essa palavra viajou através do tempo, na história judaica, ela foi sofrendo transformações, de caráter morfológico e semântico. 1 Festa judaica. Comemora, em quatorze de Adar, a história do Livro de Ester, que é lida de um rolo manuscrito (Meguilá). Origina-se do persa, e significa “lançar a sorte”. – 24 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 23-28, 1998. A história de Purim1, por exemplo, relatada no livro de Ester, registra um desses primeiros significados, quando utiliza a raiz Aman – ןמא, para relatar que Mardoqueu foi o Omen – אוןמde Hadassa, isto é, a pessoa que a criou, seu tutor. A palavra Omanut – ( נמאתוa terceira letra da raíz, o “”ן, quando inserida no meio da palavra recebe a forma de “)”נ, cuja tradução é arte, origina-se, como podemos observar por sua composição, da mesma raíz. Isso, porque, a obra artística, além da habilidade, exige, também, treino e exercício – Imun – אימון, em hebraico. Àqueles que acreditam que a medicina é uma arte, a expressão Rofe Oman – – אפור ןמאmédico especialista, criada pela combinação de dois vocábulos básicos, demonstra o estabelecimento de relações morfológicas e semânticas para a sua criação, além de outras associações possíveis, tais quais as de caráter filosófico. A palavra Amana – ( נמאהo “ ”ןrecebe a forma de “)”נ, significa convênio, aliança, crença e, também, crédito monetário. A Convenção de Genebra, por exemplo, recebe em hebraico a nomenclatura Omnat Geneva – de נמאג ת 'הבנ, enquanto Isch Amana – שיא נמאה, significa “fiel” (composição das palavra:homem e crença) e, KtanAmana – נמאה-ןטק, (composição das palavras: pequeno e crença) quer dizer “cético, sem crença”. A pergunta Ha-umnam – הנמאם, cujo significado é: “será que?”, “é possível?” pode nos ajudar a explorar um outro filão de seu significado. Esse mesmo vocábulo, na forma afirmativa Omnam – נמאם, significa “certamente”, “deveras”, “na verdade”. A palavra “verdade” – Emet – מאת, provém da palavra Emenet – נמאת, baseada na mesma fonte, e que, com o passar do tempo, perdeu a letra “”נ. Os traços da letra “ ”נpodem ser encontrados na palavra Neeman – נןמא, que significa “ser fiel”,”ser de confiança”. Outro exemplo interessante da derivação de radicais no hebraico pode ser dado pelas três letras que compõem a palavra Eden – ןדע. Nesse caso, todos os seus derivados pertencem ao mesmo campo semântico. – 25 – SZPICZKOWSKI, Ana. A Essência do Hebraico. Há no hebraico uma série de sinônimos para o conceito de prazer, mas um dos mais fascinantes é encontrado na Bíblia, pela forma com que a matriarca Sara reage à notícia de que ela se tornará mãe, quando ela pergunta:” Terei ainda deleite depois de haver envelhecido...” (Gênesis,18:12). A palavra “deleite” no texto original hebraico aparece como נדעה, da mesma raíz. No próprio livro de Gênesis (2:8), encontramos referência à criação do Jardim do Éden – ןג ןדע, quer dizer, um jardim prazeiroso. No Talmude, Gan Eden – ןג ןדעé o nome que se dá ao prometido mundo vindouro. No hebraico moderno, o termo Oden – ןדע, significa “prazer, deleite, delicadeza”. Quando as pessoas querem se referir de maneira entusiástica à respeito de um lugar, dizem: Gan Eden Alei Adamot – ןג ןדע תומדא ילע (o paraíso na terra). A expressão Taam Gan Eden – ( ןג םעט ןדעgosto do Éden-literal) é utilizada para se referir a algo delicioso. À propósito, a marca registrada de uma água mineral em Israel é Mei Eden – ימ ןדע, (as águas do Éden). Um adjetivo derivado do radical ןדעé Adin – ( דעיןmasc.) e Adina (fem.) – דעינה, cujo significado é “delicado (a)”, “refinado (a)”. A palavra Maadan – מןדע, além de prazer e deleite, significa, também, dentre outras explicações, “guloseima, iguaria”. Assim, a palavra Maadanya – מנדעהי, oriunda do mesmo radical, pois como já afirmamos acima, o “”ן, quando no meio da palavra, passa a ser “”נ, significa “casa de iguarias”, “casa de delicatessen”. A forma verbal da raiz ןדעé utilizada para “mimar, refinar, enobrecer, tornar delicado “. As expressões Hayei Maadanim – ( ייח מנדעםיvida de prazeres), do hebraico moderno, assim como Idnu Maadanay – ( נדעו מנדעיdeleitem-se com minhas iguarias), do hebraico medieval, vêm confirmar aquilo que afirmamos no início desse estudo:a preocupação lingüística dos hebraístas em preservar as raízes da língua hebraica. Tal preocupação, no entanto, não impede que o hebraico mantenha suas características de língua moderna, em constante atualização. Os – 26 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 23-28, 1998. estrangeirismos, presentes, praticamente, em todas as línguas modernas, exigem, daqueles que possuem o interesse em preservar a pureza lingüística, muita atenção para a criação de vocábulos hebraicos. Mas o hebraico, como todas as línguas, dispõe até mesmo de gíria própria, utilizando dentre outros, elementos do ídiche e do árabe. A escolha dos radicais ןמאe ןדע, para esse estudo, não se deu ao acaso. Vários outros poderiam ter sido selecionados para mostrar a linha de raciocínio que comanda a formação dos vocábulos hebraicos. Houve aqui, entretanto, uma preocupação em buscar no vasto repertório que compõe a língua hebraica, aqueles radicais que transmitam algo, não somente para os hebraístas, mas que sejam mais abrangentes, e façam parte do saber universal. Para finalizar, concluímos que o estudo dos radicais hebraicos vai além de sua simples análise lingüística. Inclui a possibilidade de conhecimento da realidade de vida do falante do hebraico, da maneira como ele sente e pensa. A língua hebraica, com seus nomes e verbos, adjetivos e advérbios, ativos e passivos, em que todos são remetidos à raíz de três letras consonantais, convidam e encorajam o estudioso para uma viagem pela história e pela cultura do povo judeu, o núcleo de sua essência. BIBLIOGRAFIA “A Bíblia Sagrada”, Rio de Janeiro, Sociedade Bíblica do Brasil, tradução de João Ferreira de Almeida,1957. “A Lei de Moisés – e as “Haftarot” – Rio de Janeiro, S. Cohen & Cia. Ltda., 1968, tradução, explicações e comentários do Rabino Meir Masliah Melamed. BEREZIN, Rifka “Dicionário Hebraico-Português”, EDUSP, São Paulo, 1995. LOWIN, Joseph “Hebrewspeak, An Insider’s Guide to the Way Jews Think”, Jason Aronson Inc., Northvale, New Jersey, London, 1995. UNTERMAN, Alan “Dicionário Judaico de Lendas e Tradições”, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1994, tradução de Paulo Geiger. – 27 – SZPICZKOWSKI, Ana. A Essência do Hebraico. Abstract: The Hebrew word derives from a root. Usually it is composed of three consonantal letters. These make up a word which will generate other words. Thus, it is possible to analyze semantically the word, and get its real meaning from its root. However, in some cases, the radical is subject to more than one semantic field, given that they are from different origins. In modern Hebrew, regardless of linguistic elements which are from phases prior to its use (biblical period, talmudic period, and Middle Ages literature) they coexit. For example to this study, we have chosen the words Amen and Eden which translate not Therefore, they are part of the universal knowledge. Keywords: radical, three consonantal letters coexistence linguistic elements, semantic and linguistic analysis. – 28 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 29-46, 1998. ALMADA NEGREIROS E O FUTURISMO RUSSO: INTERSECÇÕES ESTÉTICAS Arlete O. Cavaliere* Resumo: O presente artigo procura estabelecer as relações e as implicações estéticas dos movimentos que constituem as vanguardas russas no trabalho artístico de Almada Negreiros. Palavras- chave: vanguardas russas, modernismo português, literatura comparada. Com o recente lançamento entre nós da “Obra Completa” do poeta, romancista, dramaturgo e pintor Almada Negreiros (Editora Nova Aguilar, novembro/1997), torna-se mais do que oportuna, necessária mesmo, uma reflexão sobre a obra e a personalidade artística desse polimorfo artista português, ainda muito pouco conhecido no Brasil. A obra de Almada se apresenta como um campo profícuo, em particular, para a investigação de certos pressupostos estético-teóricos dos cubofuturistas russos, tais como, a intersemiotização dos signos artísticos e a inter-relação entre as diversas artes que marcaram a pesquisa e a criação de uma nova linguagem neste século. Em que medida seria, então, possível pensar nas implicações estéticas dos movimentos que constituem as vanguardas russas no trabalho artístico de Almada Negreiros? O próprio Almada chegou a se pronunciar na Revista “Portugal Futurista”, em 1917, sobre a inovação estética e a “compreensão feliz da arte moderna” que expressava a Cia. de Ballet de Diáguiliev, quando da apresentação da Cia.russa em Lisboa, num artigo intitulado “Os Bailados Russos em Lisboa”(Revista “Portugal Futurista”, 3. edição fac-similada, Lisboa, 1984, p.2). * – 29 – A autora é Prof a. Dra. do Departamento de Línguas Orientais da FFLCH/USP. CAVALIERE, Arlete O. Almada Negreiros e o futurismo russo: Intersecções estéticas. José de Almada Negreiros (1893-1970) representa no contexto do Futurismo em Portugal, em companhia talvez apenas de Santa-Rita Pintor, a ala mais radical desse multiforme movimento de revolução estética que permeava a Europa nos princípios deste século, com uma intensidade e diversidade estéticas, certamente menos detectáveis no ambiente artístico português. Sabe-se que foi com a publicação em 1915 da revista “Orpheu” que a revolução modernista parecia se instaurar em definitivo no contexto da arte e das letras portuguesas. Sabe-se o quanto as novas propostas estéticas viriam abalar o academismo e a estagnação provincianista que caracterizavam os anos que se seguiram à proclamação da República em Portugal. Mas sabe-se também o quanto permaneceram resistentes, ainda por muito tempo, os cânones do naturalismo que em outros países já haviam sido questionados e mesmo superados, sob o impacto das novas tendências artísticas e dos primeiros escritos teóricos referentes a uma renovada estética que abria os primeiros decênios deste século. A pesquisa de novas formas de linguagem e de uma linha estética assumidamente vanguardista que inseria a arte (pintura, poesia, romance, dramaturgia) no âmbito do modernismo português e também dos programas e experiências futuristas de outros países da Europa, ficou representada, sem dúvida alguma, por Almada Negreiros, uma das figuras mais radicais da vanguarda artística em Portugal, embora permaneça ainda hoje como uma espécie de “distração cultural”, principalmente além das fronteiras de seu próprio país. Se levarmos em conta a progressão de seu trabalho criativo, desde o experimentalismo provocativo nos anos heróicos da geração do “Orpheu” até o final de sua diversificada carreira, verificar-se-á que sua atividade artística quer como ficcionista, poeta, desenhista, coreógrafo ou dramaturgo perfaz uma única linha de continuidade que acaba por confluir para essa espécie de visão plástica do mundo, que adquirira, certamente, como artista plástico que sempre foi, atividade à qual dedicou a maior parte de sua energia criadora. E, com efeito, todas as modalidades artísticas a que se dedicou Almada Negreiros parecem promover esse encontro singular entre as artes verbais – 30 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 29-46, 1998. e as artes plásticas, numa busca incessante de atrelar, de forma orgânica, a palavra às formas, aos volumes, às cores. À visualidade derivada da espacialidade dos corpos, das formas e da concreção própria das artes plásticas para a captação da multiplicidade do real, o Almada-pintor fundiu magistralmente em seus textos, a abstração e as figurações mentais próprias do mundo anímico contido no universo verbal. Reside, certamente, nessa inter-relação literatura-pintura, a singularidade da obra, e mesmo da vida de Almada Negreiros. Aqui se situa também a sua contemporaneidade. Nisto está, enfim, sua ampla abertura. Muito já se falou do aspecto “teatral” e das “figuras em drama”, ou melhor, do “drama em gente”, em vez de atos que caracterizaria a obra “dramatizada” pelos heterônimos de Fernando Pessoa. De forma análoga, a diversidade da personalidade artística de Almada Negreiros, expressa neste caso através das inúmeras atividades e suas formas de expressão, configuraria também certa teatralidade subjacente a todo o trabalho criativo do artista: “personagens”, facetas diferenciadas “dramatizam”, por assim dizer, a diversidade de caminhos que sua obra percorreu. As figuras do poeta, ficcionista, dramaturgo, desenhista, interagem, reagem uma às outras, comunicam-se, enfim “dialogam” para constituírem, afinal, uma “obra”, uma “unidade”, talvez uma única ação, para nos servimos ainda da terminologia teatral. Assim, o artista plástico faz confluir uma verdadeira poética de imagens visuais, sem desprezar contudo, a densidade das idéias, reveladas também pela palavra poética e expressas em linguagem de alto teor simbólico, procedimento empregado em muitos de seus poemas, contos, peças de teatro (lembre-se “Saltimbancos” e “A Engomadeira”), ou em seu romance “Nome de Guerra”. Por outro lado, é curioso verificar de que modo uma galeria inteira de personagens, bonecos que dialogam (por exemplo, na peça “Antes de Começar”), verdadeiros Pierrots e Arlequins, marionetes e bufões remetem às tipologias da “commedia dell’arte”e estão presentes em vários de seus textos: figuras estilizadas, alegorias de categorias existenciais mais do que personagens-indivíduos se projetam nas máscaras, palhaços, figuras expressio– 31 – CAVALIERE, Arlete O. Almada Negreiros e o futurismo russo: Intersecções estéticas. nistas, inúmeros “clowns” que invadiram também seus desenhos, figurinos, caricaturas e muito da produção pictórica da Almada Negreiros. É portanto, com razão que Almada foi considerado desde logo um “homem-ponte entre as artes visuais e as artes plásticas”.1 É nessa perspectiva de análise que nos interessa uma aproximação reflexiva com os pressupostos estéticos e teóricos do movimento futurista russo. A expressão “futurismo russo” abrange, como se sabe, uma grande variedade de fenômenos na obra criadora de muitos indivíduos, tendo apesar disso alguns denominadores comuns. É possível avaliar hoje a importância do cubismo para o desenvolvimento do que podemos denominar a estétia do futurismo russo. Costuma-se dizer, por exemplo, que a transformação direta do cubismo em poesia se encontra no futurismo russo. Daí a denominação de “cubo-futuristas” para uma grande parte dos futuristas russos que estiveram ligados à pintura. De fato, é difícil enfeixar no conceito de futurismo russo a idéia de um grupo absolutamente unificado. Um ponto universal do programa parece ser, todavia, a idéia de que na arte a “forma” é em si um tema e a necessidade de uma “arte de nossa época “como complemento do desenvolvimento técnico e do ritmo da civilização moderna. Aqui se cruzam, certamente, outros caminhos da arte moderna e contemporânea, como por exemplo, o construtivismo russo que marcará fortemente, não apenas o teatro russo da década de 20, mas também o trabalho posterior de muitos artistas do Ocidente. Há já por volta de 1912 um grande movimento de protesto anti-simbolista que alimentará toda a orientação estética da vanguarda russa em suas várias modalidades artísticas. A ala realmente revolucionária deste amplo movimento ficou a cargo dos chamados “budietliane” (futuristas, em russo). Certamente, o cubismo, 1 Cf. Freitas, Lima de. “Almada Negreiros e o Teatro” in: Pintar o Sete – Ensaios sobre Almada Negreiros, o Pitagorismo e a Geometria Sagrada, Impresa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, p. 75. – 32 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 29-46, 1998. ao propor o conceito de “forma” como problema artístico básico, exercerá grande impacto nas preocupações estéticas dos futuristas russos: a arte verbal como também a arte visual cessariam de imitar a natureza pela descrição de seus objetos. O mundo artístico, o mundo poético torna-se, assim, válido por si mesmo e a “inteligência” do artista substitui a sua “observação”. Georges Braque dirá sobre a pintura cubista: “Não acredito em coisas. Acredito apenas nas relações mútuas entre as coisas”. Está aí o conceito essencial da pintura cubista, segundo o qual um objeto é apresentado simultaneamente de diferentes pontos de vista, ao mesmo tempo analítica e sinteticamente. Não foi por acaso que a maior parte dos futuristas russos esteve ligada à pintura e por isso, a ala mais representativa do movimento recebeu o nome de “cubo-futuristas”, numa clara conexão das artes verbais com as artes visuais. Ao lado da crítica dos futuristas a uma literatura “temática”, se alinha a atitude dos cubistas em sua rejeição de uma cópia servil dos objetos pela pintura. Em seus manifestos, os cubo-futuristas David e Nicolai Burliuk, Vielímir Khilébnikov, Alekséi Krutchônik e Vladímir Maiakóvski não se cansam de proclamar que a palavra deveria seguir “audaciosamente” as pegadas da pintura” (Khlébnikov, 1912). O que importa é o aspecto sonoro da palavra: esse é o único material e tema da poesia. Os novos poetas cubofuturistas procuram trabalhar a “palavra pura”, sem relação com qualquer função referencial no que diz respeito ao objeto. Para eles, a “palavra em liberdade” deveria operar com sua própria estrutura, criando “objetos novos”. Isto corresponde, sob certo sentido, à “arte sem objeto” dos cubistas com sua busca da forma geométrica, do espaço e da cor. O que está em pauta é uma orientação estética voltada para a concreção, o que significa uma referência direta ao objeto, ao invés de alusões indiretas ao mesmo. Portanto, a arte passa a ser cada vez mais vista como ofício em lugar da “teurgia” dos simbolistas e sua programática nebulosidade e ambiguidade. Como uma espécie de ciência experimental, um ofício especializado(saber “como fazê-lo”), a arte se opõe à noção de inspiração. O artista é uma espécie de operário que trabalha seu ofício com a – 33 – CAVALIERE, Arlete O. Almada Negreiros e o futurismo russo: Intersecções estéticas. precisão das fórmulas científicas. Não celebra mais os estados de alma, os símbolos etéreos, mas as cidades com suas luzes, as fábricas com o ruído de suas máquinas. Há, por certo, um claro programa social aí veiculado: a participação da arte na vida social que acompanha a proclamação de uma maneira nova de viver, de uma arte e uma ciência novas que venham completar a transformação iniciada com o movimento revolucionário. Clama-se pelo valor democrático da palavra, até mesmo pelo valor universal da arte. Logo após a Revolução de Outubro os futuristas se auto-denominam “tamboreiros da revolução” e o que pretendem com seu programa é “ensinar o homem da rua a falar”, o que significa destruir os antigos valores e construir os novos, isto é, propõem a reorganização consciente da língua aplicada a novas formas de ser. De tanto analisar e decompor as palavras os cubo-futuristas haviam chegado à chamada linguagem “transmental”(linguagem “Zaúm”). Haviam levado ao extremo a experiência sonora, a articulação informe de vocábulos inexistentes, mistura de tramas fonéticas abstratas, de nexos arbitrários. Abandonavam assim a natureza e a transcendência do símbolo para inserir a prática poética na concretude do mundo da produção, como que utilizando os recursos modernos da técnica e da ciência para a construção de espécies de piruetas verbais e combinações absurdas de sons. Com a linguagem “zaúm” a poesia alcançava a negação total dos valores precedentes e continuava seguindo o mesmo caminho da pintura. Krutchônikh, o principal teórico da linguagem “zaúm”, tece as relações: “Os pintores “budietliane” gostam de usar partes anatômicas, divisões, e os “budietliane” criadores da linguagem usam palavras partidas, meias palavras, com que fazem austuciosas e bizarras combinações (linguagem transmental). Dessa forma,obtém-se a máxima força expressiva. E é justamente nisso que se destaca a linguagem da nossa época violenta, a linguagem que aniquilou a linguagem estagnada de antes”.2 2 A. Krutchônikh e Khliébnikov, Slovo Kak Takovóie (A palavra como tal), apud Ripellino, A. M. Maiakóvski e o Teatro de Vanguarda, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971, p.37. – 34 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 29-46, 1998. É claro que no seu jogo abstrato a “Zaúm” coincide com o abstracionismo pictórico e sua ruptura decisiva com a representatividade, com o figurativismo. Na Rússia, uma das propostas mais radicais neste sentido é a pintura de Maliévitch, representante do Suprematismo. Assim como Krutchônikh, Maliévitch procura escapar na pintura aos esquemas lógicos e indo mais além das propostas dos pintores cubo-futuristas, radicaliza a dissociação da pintura com os problemas externos, procurando uma expressão pictórica totalmente abstrata e não figurativa. É a ruptura total da dependência da pintura com os objetos exteriores. A matéria prima de Maliévitch é a sensibilidade pura que tem como exemplo o quadrado negro sobre fundo branco de 1913. O objetivo do Suprematismo é distanciar-se da realidade e do caráter figurativo e utilitário da pintura. Com o Suprematismo de Maliévitch a pintura deixa de representar a vida e passa a fazer parte dela, alcançando assim, o seu estatuto de independência. É a consciência suprema do valor da obra de arte enquanto tal, da forma pura desenraizada, baseada apenas na sensibilidade que está na base daquelas tramas fonéticas, daqueles jogos sonoros inusitados da linguagem Zaúm, despidos de qualquer ligação com o mundo exterior. Os “caprichos” geométricos do suprematismo (constelações de triângulos, círculos, trapézios) e os “malabarismos” transracionais da “zaúm” pareciam sonhar devolver ao fazer artístico uma pureza primitiva, uma “pureza do nada” e vão prosperar enormemente no período da Revolução em que a busca de novos valores humanos se orienta para uma reconstrução que reconduz aos valores primitivos originais. Ora, no que se refere à renovação das artes visuais e suas repercussões em outros campos de expressão artística como a poesia, a literatura e o teatro, característica, como vimos, do amplo movimento de renovação estética dos inícios deste século, o conjunto da obra de Almada Negreiros, quer enquanto caricaturista, dançarino, ator, romancista, dramaturgo, poeta, ensaísta e pintor, parece corresponder no âmbito do modernismo português ao mesmo impacto revolucionário que exerceu a figura de V.Maiakóvski no contexto do futurismo russo. Em muitas atitudes e frases do poeta futurista russo é possível ver por refração a personalidade e o pensamento de Almada Negreiros. – 35 – CAVALIERE, Arlete O. Almada Negreiros e o futurismo russo: Intersecções estéticas. Numa primeira sondagem, quer nos parecer que a trajetória de Almada como artista e pensador define-se, segundo suas próprias palavras, entre um certo “futurismo” dos inícios e um certo “cubismo” da maturidade, querendo certamente contrapor aí a atitude irreverente nos anos inconformistas do primeiro modernismo português com uma postura mais “construtiva”,ou talvez “construtivista “ orientada à regra, à valorização do cálculo geométrico, da proporção e do número. É oportuno lembrar, que também o construtivismo russo, movimento que embasou todo um período da arte russa de vanguarda, formula a idéia da arte enquanto construção de objetos, através da elaboração técnica de materais, do cálculo matemático, do número,do laconismo nos meios de expressão artística. O construtivismo renega o decorativo não motivado funcionalmente e busca esquematizar, logicizar e maquinizar a linguagem da arte, seja na arquitetura, escultura, teatro, literatura e pintura. Na Rússia o movimento é considerado como um desenvolvimento consequente do cubo-futurismo e das tendências pictóricas de vanguarda, e seu triunfo no campo do teatro foi uma das suas mais importantes contribuições. V. Meyerhold figura como o diretor teatral que melhor soube explorar as possibilidades da cena construtivista. E de certa forma, também a poesia e as peças teatrais de Maiakóvski e, sob certo sentido, a cinematografia de S.Eisenstein devem muito a essa espécie de cálculo algébrico com que os construtivistas pretendiam estruturar suas obras. Entretanto, se a trajetória do artista português parece em certo ponto se cruzar com os caminhos teóricos e estéticos formulados por esses movimentos, é certo também que ela traçou atalhos próprios, desvios muito pessoais que acabaram por conferir uma personalidade muito original a Almada. Sua especificidade, inclusive no âmbito geral europeu, reside essencialmente, quer nos parecer, na busca incessante da criação ou invenção de uma linguagem que Almada denominava “canônica”, isto é, o desejo de concretizar o sonho da “canonização” da arte, ou melhor dizendo, criar uma linguagem canônica de “unanimidade”, conforme a terminologia do próprio artista. Daí sua necessidade de “desenterrar todo o segredo do clássico”, como se a Antiguidade pudesse revelar a ele um segredo consubstanciado numa espécie de geometria “visionária” ou “simbólica”, capaz de uma decomposição e de um entendimento mais profundo da realidade. – 36 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 29-46, 1998. O próprio artista assim se expressa ao se referir à sua longa pesquisa sobre os painéis ditos de Nuno Gonçalves, patrimonio artístico da pintura antiga portuguesa: “Estava bastante bem informado das tendências de Maliévitch, Kandínski, Paul Klee, Mondrian, cubistas, enfim, de todas as feições tomadas pela arte moderna depois da fantástica revolução dos impressionistas. E, por outro lado, pelo geómetra Hambidge e pelos arquitetos Ernest Mössel e Lund. Simplesmente, todos esses nomes que acabo de citar me tinham francamente elucidado, em arte, da expressão exata do movimento impressionista. O movimento impressionista foi um ponto final e não um ponto de partida – o ponto de partida seria depois do ponto final.[...] Não era absolutamente um resultado sobre os painéis a que eu me acometia, mas exatamente àquilo que buscava a arte moderna depois dos impressionistas. Isto é, ir ao encontro de um cânone. Eis a razão fundamental de todo o meu trabalho”.3 O artista português, na esteira de tantos artistas neopitagóricos, propõe-se redescobrir a geometria “sem cálculo” dos antigos pitagóricos.4 Sua constante pesquisa em torno do Número, da Proporção ou Razão, da Euritmia e Aritmologia, o situa junto às concepções da antiga tradição que considera a arte como uma atividade de conteúdo sagrado: a arte sagrada, tal como a entendiam os egípcios, os gregos e os cristãos europeus dos primeiros séculos. Almada parece buscar no conhecimento antigo o “segredo perpétuo da criação da arte” e suas leis de proporcionamento e traçados reguladores. A “língua sem opinião do Número” e do traçado geométrico levou-o à busca de um saber unitivo,harmonia universal que concilia os opostos, racional e irracional, consciente e inconsciente, conhecimento intelectivo e emoção profunda. Daí a impressão que nos deixa o conjunto de sua obra de uma busca quase obsessiva por uma dimensão para lá da realidade aparente, como que, forçando ultrapassar os meios sensoriais, pleiteasse alcançar a essên3 4 In Diário de Notícias, 9-6-1960, entrevista de Antonio Valdemar, apud Freitas, L., Almada e o número, Editora Soctip, Lisboa,1987. Cf. a respeito, em especial, o excelente ensaio “Almada Negreiros, um neopitagórico”, In Freitas, L., Pintar, o Sete, Editora Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa. – 37 – CAVALIERE, Arlete O. Almada Negreiros e o futurismo russo: Intersecções estéticas. cia universal e o princípio de todas as coisas, talvez uma chave para a harmonia dos mundos. O Número, considerado assim Número divino ou Número idéia, diferente do número matemático ou quantitativo, ligado, portanto, a concepções cosmológicas, ao transverbal, ao mito e ao símbolo, representou na teoria e prática artísticas de Almada, uma espécie de eixo central em torno do qual gravitaram sua profunda visão de mundo, sua acurada filosofia da arte, enfim toda uma poética que o artista deslindou em suas múltiplas formas de expressão. Conhecer, portanto, o Número sagrado, seria penetrar no inteligível das coisas, no incompreensível do ser, pois ele é o ser em todas as suas categorias, ao mesmo tempo matéria e forma. Para os pitagóricos, o Número universal é o princípio de tudo e conhecer esses números e suas relações significava apropriar-se das chaves para o conhecimento dos princípios divinos que vibram no interior das coisas e das criaturas. É nesta orientação que se deve entender a procura de Almada pelo enigmático “ponto da Bauhütte”,traçado geométrico ligado aos “grandes mistérios” de uma Federação, sob a forma de associação autonoma de ritual secreto, de todas as lojas de entalhadores de pedra do Santo Império Germânico que persistiu até o fim do século XVIII e que se denominava Bauhütte. O chamado ponto da Bauhütte é mencionado numa quadra popular transmitida tradicionalmente pelos entalhadores de pedra da época gótica, transcrita por Almada da seguinte forma: Um ponto que está no círculo E que se põe no quadrado e no triângulo Conheces o ponto ? Tudo vai bem. Não o conheces? Tudo está perdido. Essa espécie de polo ou “umbigo”, relacionado à segmentação polar do círculo e a uma ciência do círculo e dos polígonos inscritos, faz alusão a um sinal lapidar colocado no círculo diretor pelos pedreiros, os compagnons, como prova iniciática dos membros da Bauhütte; isto é, uma fórmula iniciática – 38 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 29-46, 1998. dos antigos construtores de catedrais. Tal ponto esquecido, cujo conhecimento anunciaria a salvação,a integração harmoniosa dos “três mundos”, representados pelo quadrado, pelo triângulo e pelo círculo, ou ainda o mysterium conjunctionis prometido pelos antigos alquimistas5 , esse ponto secreto, ao que tudo indica, teria sido expresso num dos motivos do painel “Começar”, traçado na pedra no átrio do edifício da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, inaugurado em 1969, um ano antes da morte de Almada. Não se trata simplesmente de encontrar numa única figura geométrica um ponto que simultaneamente esteja no círculo, no quadrado e no triângulo,mas de fazer refletir através dessa sobreposição geométrica, um questionamento mais profundo da quadratura do círculo, isto é, o possível encontro de um ponto do espírito que possa conciliar a totalidade do ser: o círculo divino com o universo humano e social das leis, expresso pelo quadrado, mediante a intercessão do espírito, representado pelo triângulo. Conhecer esse ponto de fusão pressupõe uma espécie de sagrada iniciação, capaz de fazer emergir um ponto do espírito, espécie de foco de “visão”que abre o olhar da própria consciência e a partir do qual as contradições possam se resolver numa única unidade, centro de si mesmo, harmonia dos contrários e dos opostos numa fusão orgânica do divino e do humano, do macrocosmo e do microcosmo. Não resta dúvida que as idéias e as propostas estéticas de Almada Negreiros apresentam virtualidades cujas consquências permanecem ainda imprevisíveis. De fato, verifica-se que data apenas das últimas décadas uma releitura revivificadora do papel importante que representam a diversidade da personalidade artística do artista português e o consequente polimorfismo da sua arte para uma compreensão mais profunda do movimento artístico e estético contemporâneo. A partir dos pontos acima assinalados, depreende-se ao final uma linguagem artística orientada para a primazia da visualida de, expressa pelo Almada escritor-pintor, segundo as leis do abstracionismo geométrico, ca5 Cf. Freitas, L., op. cit. p.101. – 39 – CAVALIERE, Arlete O. Almada Negreiros e o futurismo russo: Intersecções estéticas. ras ao espírito das vanguardas russas, especialmente o cubo-futurismo e o construtivismo,na sua busca da desmontagem/montagem, (des)construção/ construção, desequilíbrios e equilíbrios compositivos para, afinal, como pretendia Almada, encontrar as secretas leis geométricas da arte. Com efeito, a clara conexão das artes verbais com as artes visuais, aspecto central manifesto no conjunto da sua obra como um todo, orienta uma apreensão do universo do pensamento e da arte do autor muito afim à estética do Futurismo russo, movimento que, como vimos, proclamava, antes de mais nada, que arte deveria cessar de imitar a natureza para que o mundo artístico e o mundo poético pudessem se tornar válidos por si mesmos. É evidente, neste sentido, a radical oposição a uma arte mimética, naturalista, vinculada aos princípios estéticos de um academismo considerado passadista. Sem dúvida, é com base nessa irrestrita adoção das regras da estética futurista que se pode depreender o posterior alcance e o desdobramento de todo o trabalho criativo de Almada. Talvez, por ter sido um dos poucos que assumiu a ruptura até às últimas consequências, sua personalidade ultrapassa o momento agitatório vanguardista para se inscrever, além da provocação, na busca permanente de uma nova estética e de uma nova filosofia da arte para a vigência do século XX. BIBLIOGRAFIA FRANÇA, José Augusto. Almada, o Portugês sem Mestre. Lisboa, Editorial Estúdios Cor, 1974. ________. Começar, Colóquio. Lisboa, 1970. FREITAS, José Lima de. Almada e o número. Lisboa, Arcádia, 1977. ________. Pintar o Sete – Ensaios sobre Almada Negreiros, o Pitagorismo e a Geometria Sagrada. Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa,s/d. GONÇALVES, Rui Mario, Almada. Colóquio, n. 25, out/1963. GOURFINKEL, N. “Les recherches esthétiques et la Révolution”, In Théâtre Russe Contemporain. Ed. la Renaissance du livre, Paris, 1931. – 40 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 29-46, 1998. PERLOFF, Marjorie, O Momento Futurista. São Paulo, Edusp, 1993. POMORSKA,Krystyna, Formalismo e Futurismo. São Paulo, Perspectiva, 1972 RIPELLINO, A.M., Maiakóvski e o Teatro Russo de Vanguarda. São Paulo, Perspectiva, 1971. VARPAKHÓVSKI, L. Nabliudênia, analiz, ópit (Observações, análise, experiência). Editora VTO, Moscou, 1978. Abstract: The aim of this article is to establish the relations and aesthetic connections between Russian vanguard movements and Almada Negreiros's artistic experiences. Keywords: russian vanguard, comparative literature, portuguese modernism, Almada Negreiros. – 41 – CAVALIERE, Arlete O. Almada Negreiros e o futurismo russo: Intersecções estéticas. Almada Negreiros 1 2 3 4 1 – Relação 9/10 (1957). 2 – Pintura (c. 1957). 3 – A porta da harmonia (1957). 4 – Quadrante. 5 – O Ponto da Bauhütte (1957). 5 – 42 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 29-46, 1998. Almada Negreiros – 43 – CAVALIERE, Arlete O. Almada Negreiros e o futurismo russo: Intersecções estéticas. K. Maliévitch – Quadradro Negro, 1913 – 44 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 29-46, 1998. K. Maliévitch – Círculo Negro, 1913 – 45 – CAVALIERE, Arlete O. Almada Negreiros e o futurismo russo: Intersecções estéticas. K. Maliévitch – Cruz Negra, 1915 – 46 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 47-55, 1998. ARQUIVO HISTÓRICO: MADENATARAN Chaké Ekizian Costa* Resumo: O artigo remete a Madenataran (que significa em armênio biblioteca) e focaliza este acervo composto de manuscritos, iluminuras, miniaturas armênias e algumas estrangeiras. Acrescenta ainda informações sobre a história, exposição e possibilidade de consulta do mesmo Palavras-chave: arquivo, público, manuscritos, miniaturas, iluminuras, Armênia, Erevan. Madenataran significa em armênio biblioteca. Em Madenataran, Mesrob Machtotz1 se concentra o resultado da investigação e dos estudos sobre os manuscritos armênios. Este tema foi escolhido por materializar o nobre sentimento de orgulho que os armênios dedicam à sua língua, e ao seu alfabeto, valorizando suas produções literárias e artísticas e louvando as investigações históricas. Esta casa de cultura e ciência tem registros históricos desde o século V d.C. Nesta época, a biblioteca está sediada no monastério de Etchmiadzin, residência dos respeitados patriarcas dos armênios, por todo o sempre. Durante a Idade Média, diversas bibliotecas, algumas pequenas outras grandes, estão abertas nos monastérios do país. No decorrer de todo esse tempo, os invasores estrangeiros destróem as vilas e cidades, tentando dominar o povo armênio. Assim, como os depósitos de manuscritos de Etchmiadzin, as bibliotecas de todo o país desaparecem com os impetuosos saques e roubos dos invasores. A última pilhagem na biblioteca de Etchmiadzin acontece em 1804, quando grande número de manuscritos foram vendidos nos mercados, próximos e longínquos. * 1 A autora é Profª. Drª. do Departamento de Línguas Orientais da FFLCH/USP. Criador do alfabeto armênio, em uso até a nossa atualidade. O alfabeto soma 38 letras entre consoantes e vogais e caracteriza-se por conter, destacadamente, todos os sons da língua armênia. – 47 – COSTA, Chaké Ekizian. Arquivo histórico: Madenataran. Existem, igualmente, nas comunidades da diáspora, como a da Rússia, do Irã, Índia, Polônia, Hungria, Bulgária etc., importantes bibliotecas onde os textos restaurados ou copiados e até criados, nestas regiões, dispersamse por todo mundo e são locados em outros museus e bibliotecas. Estas bibliotecas configuram-se na imagem que os armênios outorgam à sua história e a sua cultura, pois o povo armênio cultua seus valores contínua e sistematicamente, interna ou externamente, sob condição pacífica ou de guerra. A mobilização dos pesquisadores para reunião destes documentos dispersos, após a anexação da Armênia às Repúblicas Socialistas Soviéticas, foi valorizada com subsídios, prédios e instrumentos para restauro. Os manuscritos contêm, em suas páginas amareladas, a história deste povo, que ao lutar para preservar sua cultura, sua língua e a convicta herança cristã transmitida por gerações de sábios, escritores, pintores, filósofos, carregam a marca das influências, que assimiladas foram acopladas à originalidade da Cultura. Desde que as condições político-sociais se tornaram favoráveis, os pesquisadores e estudiosos das bibliotecas antigas, em lugar dos manuscritos destruídos, criaram novos manuscritos, copiando e restaurando os velhos, recolhendo-os em todos os cantos da Armênia e traduzindo as melhores obras de outros povos. Por conseguinte, o século XIX foi um período de renascimento para o Madenataran; a libertação do poderio arbitrário dos senhores persas e a aliança da Armênia Oriental2 com a Rússia trouxeram a paz necessária para garantir a segurança dos valores materiais sobre o território armênio. Basta notar que os dois mil e oitocentos e cinqüenta volumes iniciais alcançam, às vésperas da 1ª Guerra Mundial, o número de quatro mil, seiscentos e sessenta manuscritos e documentos arquivados. Baseados nestes documentos e manuscritos, deu-se início à pesquisa histórico – filosófica, à publicação de textos críticos sobre os marcos da 2 As comunidades armênias estabelecidas na ex-URSS, cujos membros usam a língua falada na própria Armênia, são consideradas Orientais, destacando-se a Rússia, a Geórgia, o Azerbadjan, e o Irã. Da mesma maneira, a população que se espalha pela Turquia, Líbano, América do Sul e do Norte, e Europa construindo a abrangência da Diáspora desenha a Armênia Ocidental, pela prática da língua armênia ocidental. – 48 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 47-55, 1998. literatura e historiografia armênia antiga e medieval, assim como a coleta de documentos. No entanto, tudo foi interrompido pela Primeira Guerra Mundial, quando, em 1915, o povo armênio vive um trágico e atroz massacre. A Turquia Otomana empreende a deportação e o massacre organizado dos armênios que vivem na Armênia Ocidental3 e sobre o território do Império Otomano. Mais de um milhão e meio de armênio são vítimas do genocídio, as cidades e os vilarejos transformam-se em ruínas e inúmeros monumentos e bibliotecas são destruídos. Em 1920, o poder soviético na Armênia resgata o povo e a cultura armênia da desaparição mundial. Os manuscritos do Madenataran de Etchmiadzin constituem-se em ponto de partida para a formação da primeira casa científica da Armênia Soviética: Instituto Histórico – Cultural, fundada em 1921. Os primeiros anos são dedicados à restauração e descrição dos manuscritos em fichas e catálogos para posterior arquivamento de obras históricas e filosóficas. Para atender às exigências do progresso das pesquisas e da conservação de toda a produção do arquivo, o Madenataran foi transferido de Etchmiadzin para a capital Erevan, instalando-se em um andar na Biblioteca Miasnikian. Em 1939, nas ondas das reformas em geral, e especificamente do planejamento urbano que se vivia nesta capital, decide-se construir um edifício próprio para alojar o Madenataran em uma das colinas da cidade.4 É então, desde 1959, que os pesquisadores desta instituição podem montar exposições, divulgar sistematicamente os resultados de suas investigações e trabalhar na Biblioteca Mesrop Machtotz, tendo diante de si a paisagem de toda cidade de Erevan. 3 4 A população que se espalha pela Turquia, Líbano, América do Sul e do Norte, e Europa construindo a abrangência da Diáspora desenha a Armênia Ocidental, pela prática da língua armênia ocidental, principalmente. Projetado pelo arquiteto Marc Grigorian, o prédio do Madenatarn foi construído entre 1945-1957. Sua fachada é ornamentada com esculturas de eminentes representantes da cultura armênia: da direita à esquerda 1 – Thoros Rosline, pintor miniaturista do século XIII (escultor A. Chahinian); 2 – Grigor Tathevatsi, filosófo do século XIV (esculpido po A. Grigorian); 3 – Anania Chirakatsi, matemático e astronomo do século VII (escultor G. Badalian ); 4 – Movses Khorenatsi historiador do século V (escultor E. Vardanian); 5 – Mkhitar Goch, jurista e autor de fábulas do século XIIXIII (escultor G. Tchubarian); 6 – Frik, poeta do século XIII-XIV (escultor S. Nazarian). – 49 – COSTA, Chaké Ekizian. Arquivo histórico: Madenataran. OBJETOS DOS ESTUDOS Torna-se necessária a explicitação do que pode se entender por manuscrito, iluminura e também miniatura: manuscrito, genericamente, significa qualquer documento escrito à mão. “No sentido restrito é termo consagrado pela literatura universal às obras da Antigüidade e da Idade Média, comumente escritas em pergaminho, com estilete metálico ou cálamo pontiagudo e na forma dos caracteres em uso naquelas épocas”5 . Na literatura armênia, manuscrito é extensivo também às obras escritas nos séculos posteriores à Idade Média. É o caso dos manuscritos em pergaminho ou em papel, em sua maioria elaborados na Diáspora Armênia, nos séculos XVI e XVIII, período em que a arte gráfica de Gutemberg não está generalizada no universo da produção cultural armênio. “Apesar de ter sido publicado em 1512, em gráfica de Veneza, o primeiro livro em armênio, Parzatomar (calendário simples), impresso com a nova técnica, a praxe do texto – manuscrito prolongou-se por mais tempo”.6 Assim como a iluminura, a miniatura é, intimamente, ligada ao trabalho do manuscrito. No original, a miniatura é a arte de traçar em mínio7 a letra inicial dos capítulos dos manuscritos; estendem-se, mais tarde, à prática de pintar em pequenas proporções, em escala mínima, ampliando as margens do manuscrito, algumas vezes com folhagens e flores, outras com pássaros; e ocupam, também, vitrais de igrejas, ornamentos de murais, que apresentam, de forma narrativa, aspectos da vida de conquistas dos cavaleiros cristãos; e ainda nas inscrições egípcias e nos textos de ciências exatas e geográficas dos sábios gregos. Assim, quando se alia o manuscrito à ilustração e à ornamentação, fica conhecida a iluminura originando-se o iluminarista, que, por meio de pintura a cores vivas, ouro e prata, ornamentando as letras iniciais com folhagens, figura e cenas, este profissional complementa o texto com ima- 5 6 7 Enciclopédia Italiana, XXIII, p. 143. Kerouzian, Y. O. A técnica nos antigos manuscritos armênios – Comunicação apresentada na 2ª Sessão de Estudos, Equipe A, no dia 19 de julho de 1977. Óxido de chumbo de cor vermelha, anteriormente denominado cinábrio. – 50 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 47-55, 1998. gens em combinações variadas, ocupando parte da superfície, comumente reservado ao texto e estendendo-se pelas margens, em barras e molduras. Também, desde o século X é introduzido o papel, que permite novas práticas de escrita, tornando o uso do pergaminho, preparado a partir da pele do cordeiro, cabrito ou veado, obsoleto para a escrita. O trabalho dos pesquisadores do Madenataran abrange o setor de Bibliografia Científica e Miniaturas que investiga as origens, influências, cores e imagens dos manuscritos, iluminuras e miniaturas, passando pelo estudo e publicação dos manuscritos do século V e XI, o estudo de textos e de documentos arquivados desde o século XIII até o século XVIII e a conservação científica dos manuscritos. A edição de textos críticos sobre as obras dos historiadores armênios da Idade Média e a publicação de numerosos documentos ocupam lugar de destaque na produção científica do Madenataran, o que se torna fonte preciosa para o estudo multidisciplinar, não só da História Armênia como também da história de países vizinhos; seus pesquisadores estudam e investigam o pensamento filosófico armênio e a literatura medieval. Igualmente, encontram-se trabalhos consagrados ao estudo e à publicação das obras dos sábios armênios em matemática, astronomia, medicina etc., constituindose em referencial valioso para o estudo da iluminura medieval desse país que se caracteriza como uma área de pesquisa especial. Muitos álbuns do Madenataran Mesrop Machtotz, consagrados a diversas épocas e escolas, já foram publicados. O mais antigo manuscrito, um Evangelho do século VII, conservado integralmente, foi descoberto em 1976, seguido pelo Evangelho Lazareff, de 887 e pelo Evangelho de Etchmiadzin, de 984, compõem o acervo do Madenataran, expostos ao público em geral, juntamente com o mais antigo manuscrito sobre papel: uma coleção de obras históricas e filosóficas, escrita em 981. Ainda, no salão circular de exposição da Biblioteca de Erevan, os visitantes podem conhecer os documentos mais antigos da cultura armênia, transmitidos pela escrita: fragmentos de manuscrito, em pergaminho, datados dos séculos V e VI; manuscritos do IX e do X séculos e dos séculos seguintes, petrificados, encontrados em cavernas. – 51 – COSTA, Chaké Ekizian. Arquivo histórico: Madenataran. Em janeiro de 1983, o número total de manuscritos do Madenataran alcança 16.210 unidades, cujos 10.895 são manuscritos conservados integralmente, 2.031 manuscritos fragmentados, 387 talismãs, 248 manuscritos modernos, 2.479 manuscritos estrangeiros e 160 catálogos inéditos de manuscritos. AO PÚBLICO VISITANTE O corpo de pesquisadores da Instituição organiza, periodicamente, exposições das conclusões de seus trabalhos. No entanto, há uma mostra permanente do rico acervo do Madenataran Mesrob Machtotz; em vinte e uma vitrines, montadas circularmente, apresentam-se documentos, fazendo conhecer aos visitantes a cultura e a história do povo armênio, desde quando as suas escolas e igrejas adotam a escrita armênia, que vêm substituir a grega e a assíria, até o século XIX. Aberto todos os dias, o Madenataran recebe operários, agricultores, estudantes, turistas estrangeiros e armênios da Diáspora. Em um grande salão, a mostra do acervo documenta a permanência, até a atualidade, das características do alfabeto criado em 405: foneticamente leal à sonoridade da língua, com a escrita destacada e a singular grafia; comprova, pela presença do Evangelho encontrado em 1976, assim como o de Lazareff e o de Etchmiadzin, o amor convicto ao cristianismo. Expõe, igualmente, manuscritos fragmentados, com a mais antiga espécie de escritura, assim como sob a forma de inscrições lapidares gravadas nos muros das igrejas, cuja antigüidade remonta aos séculos V e VII. A lavagem e a raspagem do pergaminho, técnica comum na Idade Média e justificada pelo alto preço ou pela escassez do material, possibilitando a sua reutilização para nova escrita. Esta qualidade de manuscritos, com uma camada de escritura antiga, é conhecida pelo nome de palimpsesto; alguns exemplos de palimpsesto estão no Madenataran. O Evangelho Sanassarian é um destes exemplos, cuja primeira escrita é datada do século V e o texto posterior é de 986. Os visitantes podem conhecer a obra do historiador Khorenatsi, autor da primeira cronologia da História Armênia, documentando as antigas – 52 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 47-55, 1998. lendas e canções pagãs (século V), enquanto Agathanghel descreve a luta contra o paganismo e a vitória definitiva do cristianismo na Armênia, em 301. Há ainda a obra de Ghevond (século VIII), cujo estudo é fonte fundamental para o conhecimento da invasão árabe na Armênia e na Ásia Menor. O acervo histórico é significativo e documenta até o período dos movimentos de libertação do século XVIII. Todos os volumes ficam expostos ao público permanentemente e trazem informações sobre terminologias e conhecimento lingüístico do período. A historiografia armênia caracterizouse sempre por não se limitar ao quadro nacional, mas traz informações sobre os povos vizinhos e dominadores. Ainda, são os historiadores que nos transmitem informações sobre a medicina e os médicos. A retórica e a lexicologia têm seu desenvolvimento em ligação estreita com a gramática; a coleção de regras e exercícios retóricos traduzido no século V, assim como um Dicionário(século XIII) que fornece sobretudo as explicações sobre as palavras armênias raras usadas nas obras poéticas e gramaticais estão expostas na mesma vitrine. Refutação das Heresias, escrita por Eznik Kohbatsi, representante da filosofia do período do alto feudalismo, no século V, é a primeira publicação de cunho filosófico que é escrita após a criação do alfabeto, e também faz parte da exposição permanente do Madenataran. Em mesma área de estudo, até mesmo em mesma vitrine está exposta a obra Definição da Filosofia. “Seu autor, Davi Invencível (V e VI séculos) produziu uma das obras mais importantes do pensamento filosófico armênio profano, obra única em seu gênero, que perpetua as tradições da filosofia antiga. Fundador da ética e da lógica na Armênia antiga, o autor traz em sua obra fundamentos para o desenvolvimento da filosofia contemporânea da Armênia.”8 Torna-se ainda, possível apreciar a antiga edição da tradução de Categorias, de Aristóteles. Entre as obras estrangeiras, algumas das quais foram trazidas pelos invasores, destacamse o Exercício da Retórica, de Theon de Alexandria (1º século), Arte da Gramática, de Denys da Trácia. Os originais de algumas destas obras não foram conservadas e estes livros não nos são conhecidos senão pela tradução armênia. É o caso do “Comentário ao Pentateuco” de Filon de 8 Tchukaszian, B .L. “Madenataran” 1983, Erevan – 53 – COSTA, Chaké Ekizian. Arquivo histórico: Madenataran. Alexandria (1º século), da Crônica de Eusébio da Cesaréia (260-340), da Refutação das Decisões do Concílio de Chalcedônia, de Timoteu Elur de Alexandria. As obras de química estão representadas por três manuscritos: Da matéria e da forma de Hovhanes Yerzyngatsi (s. XIII), Sobre a Fusão do Ouro (s. XIV) e Sobre as Plantas Medicinais,(s. XVIII) de autores anônimos. “É interessante notar que o último manuscrito traz também o desenho das plantas e seus respectivos nomes não só em armênio, como também em iraniano, com o objetivo de não haver nenhum engano na preparação dos medicamentos”.9 O teatro, que é banhado pela fonte da dramaturgia grega, é matéria dos historiadores, cujos relatos trazem a informação de montagens de peças de Eurípedes, documentam a existência de teatros populares, de pequenas companhias marginais representando comédias mascaradas. A Armênia da antigüidade tem uma valiosa cultura musical. E isto é preservado, desde Mesrop Machtotz, que introduziu a música e a poesia sacra, a princípio ligada à liturgia, escrita em sistema de neumas10 , conhecidos como khazes que são igualmente objeto de pesquisa da Instituição; no entanto, nem sempre estes códigos são decifrados com sucesso. Os khazes apareceram na Armênia entre os séculos VIII e XI e se desenvolveram e aperfeiçoaram até o XIII e XIV; aos poucos, entre os séculos XIV e XVII, a pauta substitui esta arte que desaparece. Fragmentos destes documentos são ainda hoje conhecidos por mérito de Movses Khorenatsi, o historiador, assim como os textos literários de poesia pagã, de lendas antigas e prosa histórica. A poesia sacra conhece um grande desenvolvimento a partir de Mesrop Machtotz, criador do alfabeto e padre da Igreja Apostólica Armênia. Mas no século X, Grigor Narekatsi(951-1003), em O Livro das Lamentações, demonstrando maestria no conhecimento da alma humana, abre uma nova 9 10 Idem. Neuma – notação musical da Idade Média, precursora da atual anotação. Utilizada sobretudo no cantochão constituía-se basicamente de pontos e acentos que antes do advento da pauta (séc. X) eram escritas no espaço. O termo também é usado como sinônimo do melisma gregoriano. – 54 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 47-55, 1998. vertente para a poesia. Por conseguinte, a literatura de poetas como Nerces Chnorhali (1102-1173), Frik (s. XIII), Constantin Yerzyngatsi (s. XIII-XIV), Naghach Hovnatan (s. XVII), Sayat-Nová (1712-1795) revela o universo espiritual complexo e contraditório do homem medieval, o conflito entre o espírito e a matéria, relata a vida de luta do povo contra os invasores estrangeiros e de suas esperanças. A poesia de numerosos poetas medievais é desenvolvida paralelamente às fábulas, lendas, sermões, apresentando padrões nacionais e influências estrangeiras. Os desígnios do povo armênio, desde a Idade Média, levam-no à formação de grandes e ativas comunidades em outros diversos países. Assim, a produção de uma literatura armênia em língua estrangeira é volumosa, até os dias de hoje. Em contraponto, o Madenataran também guarda um número considerável de manuscritos em língua árabe, latina, russa, persa, azerbadjã e turca escritas com o alfabeto armênio, o que faz caracterizar a Armênia, para o observador, como um país de nacionalidade múltipla, que assimila e sedimenta valores e códigos de outras diferentes culturas. BIBLIOGRAFIA APKARIAN, K. V. Madenataran. Ed. do Instituto de Pesquisa Histórico – Cultural dos Antigos Manuscritos Armênios. Erevan, 1962. PALOMO, Sandra M. S. “Sobre a Posição do Armênio Dentro do Indo-Europeu”, Revista de Estudos Orientais, DLO/FFLCH/USP – Humanitas Publicações, 1997, p. 177 e ss. TCHUKASZIAN, B. L. Madenataran. Erevan, 1983. Abstract: Modenataran means, in armenian, Library. It contains a valuable heap of oldest manuscripts, most of them in armenian langague. This text presents the cataloguing description of that wealth. Keywords: file, heap, manuscript, Erevan, Armenia. – 55 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 57-62, 1998. O BILINGÜISMO CHINÊS/PORTUGUÊS SERÁ EXTINTO? David Jye Yuan Shyu* Resumo: Saber até quando a cultura chinesa pode ser preservada, dentro de uma outra cultura, não é uma resposta fácil de ser respondida. A princípio, tudo indica que a língua chinesa – principal pilar da cultura – será a primeira a desmoronar. Ela vai sendo lentamente substituída pela língua que é falada no ambiente, ficando restrita ao meio familiar. No entanto, este último reduto da língua chinesa vai, progressivamente, sendo “invadido”, à medida que os filhos de imigrantes começam a se integrar mais facilmente à sociedade brasileira, tendo como padrão a língua portuguesa . Caso não haja interferência dos outros fatores, a língua chinesa (com seus dialetos) dentro da colônia chinesa está fadada ao desaparecimento. Estes fatores podem ser, dadas as circunstâncias atuais, uma grande imigração de chineses ao Brasil, o que remediaria o desaparecimento, e o crescente poder econômico e político da China que estimularia não só os descendentes, como também encorajaria os estrangeiros a dominar a língua chinesa. Palavras-chave: cultura chinesa, meio familiar, língua portuguesa, extinção. Muitos imigrantes chineses da primeira geração freqüentemente perguntam até quando seus descendentes poderão preservar a cultura e a língua chinesa. Até mesmo um jornalista do jornal chinês do Brasil fica preocupado com a possibilidade de não haver mais leitores daqui a alguns anos. E além disso, de escritores chineses do Brasil reclamam: “não queremos ser a última geração de escritores chineses.” Um interessante estudo de Fishman mostra as etapas que o bilingüismo segue em direção ao monolingüismo, neste caso, o inglês: * O autor é Auxiliar de Ensino do Departamento de Línguas Orientais da FFLCH/USP. – 57 – SHYU, David Jye Yuan. O bilingüismo chinês/português será extinto? “Etapa 1: o inglês é aprendido através da língua nativa dos “estrangeiros”, com uso restrito a alguns domínios em que a língua nativa não pode ser utilizada. Etapa 2: os imigrantes começam a usar ou a língua nativa, ou o inglês entre eles mesmos e em vários domínios. Inicia-se o processo de integração. Etapa 3: a língua nativa ou o inglês são usados na maioria dos domínios. Etapa 4: o inglês substitui a língua nativa em todos os domínios, exceção feita unicamente aos domínios mais locais e particulares, como, por exemplo, no convívio familiar dos estrangeiros.”1 Apesar de alguns estudiosos discordarem de Fishman, achando que a língua francesa do Canadá será preservada através da proteção do governo, o chinês no Brasil já não tem todo esse benefício, além de não ser preservado por nenhuma instituição educacional. Por isso, é mais provável que a língua chinesa siga as etapas sugeridas por Fishman: o chinês vai sendo progressivamente substituído pelo português, caminhando então para o monolingüismo, assim como Christine de Heredia2 ilustra que, à medida que a criança cresce em um ambiente onde é falada uma outra língua, ocorre uma inversão de dominância lingüística, ela vai lentamente substituindo sua língua materna pela língua que é falada no ambiente, fora do meio familiar. Segundo uma pesquisa feita entre alunos do curso de chinês de uma escola chinesa de São Paulo, há um grande desequilíbrio no bilingüismo chinês/português. Vale ressaltar que a pesquisa foi feita numa escola de chinês; portanto, não daria para imaginar como seria se a pesquisa fosse conduzida num ambiente mais amplo, talvez a proporção do desequilíbrio fosse muito maior. Se duas línguas de uma sociedade bilíngüe não forem bastante equilibradas, pode ocorrer que, com a progressiva fusão das duas comunidades 1 2 Fernando Tarallo & Tania Alkmin, Falares crioulos: línguas em contato, p. 67. Do bilingüismo ao falar bilingüe, in Multilingüismo. p. 177-218. – 58 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 57-62, 1998. lingüísticas, a comunidade com menor força de domínio perca sua língua naturalmente, entregando-se ao domínio da língua de uma outra comunidade3. A integração ou não de “estrangeiros” a uma outra comunidade depende basicamente do número de imigrantes, da cultura educacional e da economia dessa comunidade. No sudeste asiático, citando como exemplo a Indonésia, a imigração chinesa já havia começado há mais de um século, sendo seu número de imigrantes superior a 5 milhões. Naquele país, os chineses sentiam-se melhor beneficiados em relação aos indonésios em diversos aspectos, tanto na educação como na economia. E há uns trinta anos atrás, eles formaram um sólido sistema educacional, construindo dentro da sociedade indonésia uma comunidade independente. Até que, nos anos 60, o governo proibiu o uso da língua chinesa, extinguindo então sua força naquele país. Mas os dialetos sobreviveram no dia-a-dia da comunidade chinesa. No período da imigração, a Indonésia ainda era um colônia holandesa; por isso, o nível social dos indonésios ainda não superava o dos chineses. Mas, no Brasil, por outro lado, há poucos imigrantes chineses, pelo menos não o bastante para conseguirem um caráter independente e autosuficiente. Além disso, no início da imigração chinesa, o Brasil já se tornara um país independente, com população predominantemente branca, por isso seria mesmo impossível os chineses sentirem-se melhor beneficiados, e menos ainda distanciarem-se da cultura, da língua e dos costumes brasileiros; sob estas condições, a fusão torna-se inevitável. No início da década de 80, refugiaram-se de Moçambique mais de 500 chineses ao Brasil, estabelecendo-se em Curitiba. Nessa cidade, fundaram uma escola semelhante à que tinham em Moçambique, uma escola chinesa com cinco dias de aula, tendo como principal língua, a chinesa. Mas, passado um semestre da inauguração, diminuíram o número de aulas de chinês para três vezes por semana, e depois de um ano, mudaram as aulas para os fins-de-semana. Finalmente, com a contínua desistência dos alunos, a escola acabou sendo fechada. Isso mostra que o ambiente brasileiro diferencia-se do de Moçambique e também do da Indonésia há uns anos atrás. Os imigrantes chineses daqueles dois países não queriam, e 3 Yeh Fei-Sheng & Xu Tong-Qiang. (Teoria da língüistica). p. 238. – 59 – SHYU, David Jye Yuan. O bilingüismo chinês/português será extinto? tampouco precisavam integrar-se na sociedade local, pois eles eram autosuficientes. Mas no Brasil, eles se misturaram naturalmente, assim como no Peru. Neste último, a imigração chinesa já possui 147 anos de história, e já possui 1 milhão de pessoas, entre eles, descendentes, naturalizados e cerca de 40 mil chineses. Porém nos últimos 20 anos, a imigração chinesa naquele país não tem aumentado muito e além disso, é grande o número de chineses que se casam com peruanos. Por isso, atualmente, chineses acima de 40 anos de idade já consideram o espanhol como língua prioritária e descendentes que falam o dialeto yue correspondem a apenas 4%; conseqüentemente, o número de falantes da língua oficial mandarin torna-se menor ainda. Podemos facilmente perceber que os chineses de segunda geração aqui no Brasil consideram o português como sua língua prioritária; então poderíamos até ter a certeza de que a terceira geração usaria o português como língua fundamental em suas famílias. Além disso, com o crescente número de casamentos mistos, o número de falantes do chinês (incluindo dialetos) vai decrescendo e, com isso, podemos prever a possível “morte da língua”. Uma sociedade livre e aberta tem influencia certamente na integração ou não de uma comunidade estrangeira; porém os laços sentimentais que esta mantém com seu país de origem constituem também, um importante fator. Assim como F. Tarallo e T. Alkmin dizem, “enquanto os imigrantes alemães e japoneses, por exemplo, mantiveram sua identidade cultural e lingüística ao longo de várias gerações, o grupo italiano se integrou fácil e rapidamente à nova comunidade, privando dessa forma as gerações subseqüentes da herança lingüística e cultural característica do grupo. Não é raro, pois, ouvir de um brasileiro, italiano de segunda ou terceira geração, que de seus pais herdou tão somente o gosto pela pizza e pelo spaghetti e o hábito de algumas expressões de insulto.”4 Em junho 1996, numa conferência em Nova Iorque, Estados Unidos, quando John Naisbitt (autor do livro Megatrends 2000) discutia sobre o 4 Falares crioulos: línguas em contato, p. 74-75. – 60 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 57-62, 1998. poder econômico de empresas controladas por imigrantes chineses, relatou que 90% destes possuem a nacionalidade do país onde residem5. No entanto, não é de se estranhar que os chineses integram-se sem muita dificuldade numa nova comunidade, especialmente os de províncias litorâneas. Poderíamos até dizer que isto seja uma tradição chinesa; e mesmo tendo dificuldade na primeira geração, devido à barreira lingüística, esta acaba sendo superada na segunda geração; dessa maneira, a integração torna-se natural. Podemos encontrar muitos exemplos na história da China, citemos alguns: na própria China, os hakka (sulinos) são originalmente imigrantes do norte e os taiwaneses eram imigrantes originais da província de Fujian; a população nordestina emigrou principalmente da província de Shandong e outras províncias setentrionais. Fora da China, podemos citar como exemplo, a família real tailandesa cujos membros são descendentes de chineses. De acordo com as teorias e as observações de fatos verídicos dos estudiosos, acreditamos que a língua chinesa (inclusive os dialetos) dentro da colônia chinesa, está, aos poucos, caminhando para o desaparecimento. Claro que, caso haja interferência dos outros fatores, é possível que tenhamos outras respostas. Como exemplo, a ocorrência de grande imigração dos chineses. Cabe lembrar que é necessário que estes imigrantes saibam falar chinês; do contrário a extinção será inevitável. Dentro da colônia chinesa brasileira, os dialetos são os que estão desaparecendo com maior rapidez. Acreditamos que, mesmo que a língua chinesa não consiga se manter no mesmo nível dentro do contexto de duas línguas, pelo menos se tornará o alvo de aprendizado dos chineses (inclusive dos brasileiros), e é possível que este desnível se perpetue. Como está havendo um aumento do poder econômico dos chineses no mundo todo, e também o desenvolvimento econômico e a elevação do nível, internacionalmente, da China, o mandarim é a linguagem comum do povo chinês; nos países do mundo todo, principalmente nos últimos vinte anos, os desenvolvidos têm formado uma onda de aprendizagem da língua chinesa. Por isso, de acordo com a tendência do momento, mesmo que a língua chinesa dentro das colônias chinesas do mundo todo possam estar enfrentando um desafio impiedoso, pelo menos, do ponto de vista internacional, está tendo um novo rumo e uma nova esperança. – 61 – SHYU, David Jye Yuan. O bilingüismo chinês/português será extinto? Abstract: The question “How the Chinese culture can be preserved in another culture” is not easy To be answered. In the beginning, it is indicated that the Chinese language itself, which is the heart of its culture, will be the first to disappear. Howerer, the last evidence of Chinese language will be progressively replaced, while the children of Chinese immigrants begin to integrate intro the Brazilian society. Consequently, the Portuguese will be the basic language. If there is no intereference of other factors, the Chinense language (including the dialects) in the Chinese community is condemned be replaced. These factours could be, according to current circumstances, the Chinese large immigration which could save its language. Another relevant factor could be the increasing Chinese economical and political power that could stimulate not only the children of chinese immigrants, but also could encourage foreigners to learn the Chinese language. Keywords: bilinguism, Chinese language, culture, contact, Chinese immigrants. 5 <Central Daily News> Taipei, 27.junho.1996. – 62 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 63-76, 1998. RESSURGIMENTO DA LÍNGUA HEBRAICA E SUAS IMPLICAÇÕES CULTURAIS1 Eliana Rosa Langer* Resumo: O ressurgimento da língua hebraica foi um fenômeno interessante ocorrido com um idioma depois do mesmo ter-se exilado de seu país de origem juntamente com o povo que o falava. O hebraico permaneceu silencioso durante um período muito longo, porém não se extinguiu. A volta do referido idioma como língua nacional dos judeus, teve implicações culturais, sem as quais tal fato não teria ocorrido. O hebraico falado atualmente, é resultado de um grandioso trabalho executado por um grupo de pessoas que ao reimplantar o hebraico cuidou para que o idioma partisse das fontes escritas. Este artigo procura relatar um pouco deste trabalho. Palavras-chave: língua e cultura, língua e nação. O hebraico é uma língua muito antiga que tem suas origens na família das línguas semíticas. Nossos antepassados usavam-na no seu cotidiano, bem como em conversas sobre assuntos sagrados, em profecias e também na exposição de sua sabedoria. O hebraico é o idioma do povo hebreu, foi o idioma utilizado na época bíblica e no qual a Bíblia foi escrita. O povo continuou utilizando o hebraico como língua falada até ser expulso de sua terra no ano 70 da E.C., período do Exílio da Babilônia, quando os judeus passaram a viver dispersos pelo mundo. Os judeus que viviam na Babilônia falavam o aramaico, aqueles que viviam no Egito falavam o grego, e aqueles que viviam em algumas regiões da Palestina falavam o aramaico e o grego. A língua falada pelos judeus passou a ser a língua oficial dos lugares por onde foram passando e se fixando. Porém, apesar de dispersos o povo manteve sua identidade judaica através da conservação de sua cultura e tradição. * 1 A autora é Profa. Assistente do Departamento de Línguas Orientais da FFLCH/USP. Aula ministrada no dia 15 de outubro dentro do curso de difusão cultural do DLO “As relações entre língua e cultura no oriente”. – 63 – LANGER, Eliana Rosa. Ressurgimento da Língua Hebraica e suas implicações culturais. Os judeus apesar de terem deixado de utilizar o hebraico como a língua de seu cotidiano para adotar idiomas diversos, jamais abandonaram por completo o idioma de seus antepassados, continuaram a ler e a escrever no referido idioma. Durante aproximadamente 1.700 anos, o hebraico permaneceu presente na vida de todo judeu mas não como língua de uso diário. O hebraico manteve-se através dos estudos bíblicos, das orações e criações literárias, livros de viagem e obras históricas, sendo que uma vasta literatura foi se acumulando durante tal período. Em alguns países os judeus chegaram a manter a tradição de escrever cartas e documentos particulares na língua de seus ancestrais. O bilinguismo e mesmo o trilingüismo, é uma característica do povo judeu que ao espalhar-se pelos quatro cantos do mundo passou a usar a língua local para o seu cotidiano, e o hebraico como um elemento de manutenção de sua tradição religiosa, filosófica enfim cultural. Podemos falar em bilingüismo ainda no período bíblico, quando o aramaico era utilizado como língua diplomática. Em Reis 2 cap. 18, vers.26, temos a narração de um episódio em que um rei assírio envia uma comitiva ao rei de Israel e esta comitiva pede para que se fale o aramaico pois a língua dos judeus não era por eles compreendida. O aramaico persistiu como língua falada pelos judeus até o séc.VIII com as conquistas árabes. Alguns capítulos do livro de Daniel e do livro de Ezra foram escritos em aramaico bem como uma grande parte do Talmude2 . Temos ainda uma tradução aramaica da bíblia e algumas orações que são recitadas, ainda atualmente em aramaico. A língua árabe, a partir do séc. VIII foi substituindo o idioma aramaico, através de conquitas territoriais. O grego penetrou no oriente ainda no séc. IV A.C. como segunda língua, com a expansão do helenismo. Judeus de Alexandria e da grécia falavam grego, assim como aqueles ricos intelectuais da palestina que haviam se helenizado. A literatura judaica helenística inclui a tradução bíblica, “A Septuaginta”, que data do séc.III A.C. Nos meados da idade média, temos o árabe judaico proveniente do árabe, o iídiche proveniente do alemão e o ladino proveniente do dialeto 2 Talmude é o código básico da lei civil e canônica do judaísmo pós-bíblico. – 64 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 63-76, 1998. castelhano dos espanhóis que imigraram para os países mediterrâneos: a Turquia, os Balcãs, Israel e África do norte. Tais idiomas são falados pelos judeus até nossos dias, eram as línguas dos locais onde viviam, porém estes idiomas eram representados graficamente em caracteres hebraicos e recheados de palavras e expressões emprestadas do âmbito religioso, familiar, da literatura bíblica e rabínica: espiação (kapará) הרפכ, sábado (shabat) תבש, arrependimento (teshuvá) הבושת, justo (tsadik) קידצ, dia festivo (yom tov) בוט םוי. O árabe judaico é falado atualmente pelos judeus provenientes do Iêmen, dos países árabes, da África do norte, do Iraque, da Síria e do Líbano. O ladino nos legou uma grande produção literária a partir do séc. XV. O iídiche fundamenta-se principalmente no vocabulário alemão, no românico, no hebraico e aramaico, eslavo e ultimamente temos influências do inglês, do espanhol e etc. O iídiche teve seu início por volta dos séc. X-XI com as comunidades do Reno, e com a imigração do povo, em função das ameaças de extermínio, para terras eslavas, onde o iídiche recebeu influências. O número de falantes chegou a aproximadamente dez milhões, antes do holocausto. Uma vasta literatura foi escrita neste idioma e o escritor Bachevis Singer recebeu o prêmio Nobel de literatura por sua obra em língua iídiche. Atualmente porém, o idioma está desaparecendo. A guerra mundial e o holocausto exterminaram uma multidão de falantes, o governo soviético coibiu o desenvolvimento do iídiche e na América do Norte e do Sul sua coibição vem por parte da língua inglesa e de outras línguas faladas pelos judeus dentre elas o próprio hebraico. Na Idade Média, a língua ainda não era considerada um atributo de nacionalidade. Os povos Europeus já lutavam por uma independência nacional a qual incluía o direito de usar sua língua nacional em assuntos públicos e governamentais, e os judeus ainda não se consideravam uma nação como as outras. Produziam uma literatura ocidentalizada em língua hebraica, porém não aspiravam uma função oficial para tal língua. Eliezer Ben Yehuda – Nascido em 1856 na Lituânia, foi quem encabeçou o movimento para o ressurgimento do hebraico falado. Imigrou para – 65 – LANGER, Eliana Rosa. Ressurgimento da Língua Hebraica e suas implicações culturais. Israel em 1881 e ainda na Europa concebera a idéia de nacionalidade judaica que teria o hebraico como seu idioma oficial. Desde o início de sua atividade colocou duas metas a serem alcançadas: fazer ressurgir o hebraico como língua falada na terra dos antepassados, e juntar num dicionário os tesouros da língua na totalidade de seus períodos. Tendo abandonado seus estudos de medicina em Paris, imigrou para Israel com sua jovem esposa. Junto a um grupo de amigos, em Jerusalém, começou a atuar efetivamente para a concretização de suas idéias. Escreveu artigos e livros pregando o novo assentamento em Israel, e a volta do hebraico como língua falada. Ampliou e difundiu a língua, e num trabalho incansável produziu o “Dicionário do Hebraico Novo e Antigo”, composto de 17 volumes sendo um deles “A Grande Introdução”. A língua falada , está ligada ao povo na terra de seus antepassados. O hebraico tendo sido afastado de sua terra de origem e tendo deixado de ser uma língua falada estava defasado do desenvolvimento da humanidade em relação ao seu cotidiano como também em relação à ciência e à filosofia. Um grande trabalho portanto, teria que ser feito para atualizar o hebraico e torná-lo uma língua do cotidiano. Não foi fácil a concretização do sonho de Ben Yehuda, ele teve muitos opositores que lutavam contra suas idéias de forma bastante agressiva. Como exemplo disso, instalou-se uma discussão nos anos 1912-1914 sobre o lugar que o idioma hebraico deveria ocupar no sistema de educação e seus diversos campos. A discussão culminou com “a guerra dos idiomas” na qual o hebraico saiu vitorioso. Naquela época havia em Israel uma rede de escolas dirigidas por judeus alemães que restringia cada vez mais o lugar do hebraico em seu currículo, introduzindo em seu lugar o idioma alemão. Os dirigentes da escola técnica, situada ao lado de Haifa, a qual mais tarde transformou-se no “Technion” – a atual mundialmente respeitada Escola Politécnica – decidiram, em 1913, que não haveria uma língua oficial naquela entidade e que as aulas de ciências naturais seriam ministradas em alemão pois, era a mais cultural das línguas, e que portanto funcionaria como uma ponte para o desenvolvimento da ciência na nova era. E em atenção ao hebraico, haveria um compromisso de adaptar o alemão ao caráter judaico de tal escola. – 66 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 63-76, 1998. Tal decisão suscitou uma grande revolta dos sionistas judeus em Israel e na dispersão. Surgiu um movimento muito grande de oposição, com a participação de toda a nação: professores, pais e alunos. A nação, em massa, se opunha à substituição do hebraico pelo alemão. O sindicato dos professores exigia que a língua hebraica fosse a língua de ensino para todas as ciências. As reivindicações não foram atendidas e a luta tornou-se mais acirrada, culminando com a demissão dos opositores das instituições de ensino onde trabalhavam. A luta passou a ser em função de proteção ao idioma hebraico e da instalação de escolas hebraicas. O sindicato sionista declarou que assumiria os assuntos de educação. Entrementes, a guerra mundial findou, com os amargos resultados para os alemães, e terminou também “a guerra das línguas”, sendo que nesta última o idioma hebraico saiu vitorioso. Na verdade, esta “guerra de línguas” em certo aspecto foi útil, pois contribuiu para a difusão do hebraico, o qual passou a ser falado num âmbito muito maior. Falar hebraico tornava-se uma questão de “princípio”, e de “moda”, uma reação contra a imposição de uma outra língua. Eliezer Ben Yehuda foi um dos primeiros a usar o método de “ensinar hebraico em hebraico” e foi um dos que introduziu o acento sefaradita, ou seja, a pronúncia oriental da língua hebraica que privilegia o acento tônico sobre as últimas sílabas, sendo que os judeus ocidentais privilegiavam o acento na penúltima sílaba. Junto com seus amigos Ben Yehuda fundou a “Comissão da Língua Hebraica” que mais tarde transformou-se na “Academia da Língua Hebraica”. Esta comissão fixou termos básicos para a vida cotidiana, sua pronúncia, sua escrita e sua gramática. Estas inovações eram publicadas em seus jornais, livros e em seu dicionário. Tais inovações faziam-se necessárias para suprir a falta de palavras básicas para a comunicação diária. Isto se deu de duas formas: 1. Criando novas palavras a partir de raizes consonantais existentes em hebraico e combinando-as com formas derivacionais. – 67 – LANGER, Eliana Rosa. Ressurgimento da Língua Hebraica e suas implicações culturais. 2. Extraindo palavras que apareciam na antiga fonte (Bíblia, Mishná) e atribuindo-lhes novos significados. A primeira forma refere-se ao uso de sufixos e prefixos seguindo os paradigmas constitutivos da língua chamados de “mishkalim”. A segunda forma refere-se a diversos métodos de empréstimos: empréstimos semânticos, decalques, analogias entre as línguas e outros. O empréstimo, um dos mecanismos utilizados para ampliação de vocabulário, pode ser identificado desde as camadas mais antigas. Vejamos alguns empréstimos que vieram para o hebraico através de línguas antigas: – BABILÔNICO: sal (melakh) – חלמ, galinha (tarnegolet) – לוגנרת – ACÁDICO, através do aramaico: divórcio (guet) – טג, dote (nedunia) – הינודנ – ARAMAICO: meio – עצמא, fato – הדבוע – PERSA: pomar (pardes) – סדרפ, arroz (órez) – זרוא, através do GREGO: açúcar (sukár) רכוס, através das línguas européias: engenharia (handassá) – הסדנה – ÁRABE: (idade média) centro (mercaz) – זכרמ, damasco (mishmesh) – ;שימשימmesquita (misgad) – דגסמgorjeta (bakshish) – שישקב – TURCO: (através do árabe) selo (bul) – לוב, sabão (sabon) – ןובס – ROMÂNICO: (através do árabe) pneumático (tsmig) – גימצ, parafuso (boreg) – גרוב, guarda-sol (shimshiyá) – היישמש Podemos falar de vários tipos de empréstimos, há aqueles empréstimos semânticos que geram alteração apenas no significado de um item lexical já existente, como exemplo temos a palavra “estrela” – (kokhav) בכוכa qual aparece na Bíblia e que assume o significado de pessoa proeminente cuja profissão está ligada ao teatro ou ao cinema. Tais empréstimos resultam numa polissemização de um item lexical existente, ou na substituição de um significado antigo por um novo. Há um movimento de ocidentalização semântica sem afetar porém, a estrutura da língua. – 68 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 63-76, 1998. Há um outro tipo de empréstimo que é o empréstimo por tradução. Enquanto o anterior fica no nível do conteúdo este implica na criação de uma nova palavra, ou como mais freqüentemente de uma locução, por exemplo: jardim de infância (gan-yeladim) – ןג-םידלי. Outro método de modificação semântica é o da secularização de termos sagrados. Este método é habitual em sociedades que passam por uma transformação e passa de tradicional à moderna, por exemplo: sacrifício (korban) – ןברק, sacrificar-se por alguém (lehakriv) – בירקהל. A analogia de formação de línguas constitui um outro método de modificação semântica, por exemplo: máscara – masekhá – הכסמesta palavra aparece no texto bíblico significando uma imagem modificada. Academia da Língua Hebraica – Esta entidade foi fundada em 1953 dando continuidade ao trabalho iniciado pela “Comissão da Língua Hebraica”, fundada em 1889 por Eliezer Ben Yehuda e seus amigos. A função desta academia é direcionar o desenvolvimento da língua hebraica com base na pesquisa da mesma. Suas decisões são no âmbito da gramática, da escrita e da criação de novos termos. Esta Academia atua nas instituições educacionais e científicas, bem como governamentais. O hebraico moderno, é composto por 4 camadas lingüísticas as quais convivem simultaneamente: 1– PERÍODO BÍBLICO – base da língua falada atualmente – 2.000 A.C. 2 – PERÍODO MISHNAICO – Talmud/Mishna e Midrash – séc. VII D.C. – basicamente a língua bíblica – diferenças – elementos de coesão, sinonimia, língua popular falada desde o 2o Templo até o séc. II D.C. – aramaico, grego e românico. 3 – PERÍODO MEDIEVAL – o hebraico vai para o exílio – final do séc. II D.C. até o séc. XIX – 69 – LANGER, Eliana Rosa. Ressurgimento da Língua Hebraica e suas implicações culturais. – literatura – poesia hebraica (piyut) – E s p a nha – Yehuda Halevi, Shlomo Guevirol e outros – academias rabínicas – Maimônides 4 – PERÍODO CONTEMPORÂNEO – os últimos 200 anos – o hebraico reaparece com o movimento de volta ao lar judaico (depois de 1.700 anos) – literatura do hebraico novo – antes do retorno ao lar. – iluminismo – centro europeu – Alemanha, Áustria, leste europeu – Mendelsson (1729-86) – cultura hebraica – purismo lingüístico leva à reativação do hebraico falado – Mendale Mocher Sefarim (1835-1917), Echad Haam (1858-1922) Eliezer Ben Yehuda (1856-1927) A maior parte do vocabulário usado no hebraico falado atualmente provém da camada bíblica, chegando a 2/3 o número destes vocábulos, sendo que o 1/3 restante divide-se entre as demais camadas. Não podemos deixar de mencionar as modificações que o hebraico vem sofrendo frente a globalização. Assim como todos os idiomas falados, também o hebraico tornou-se um organismo vivo, aberto à inovações provenientes do desenvolvimento humano, bem como à influências de outros idiomas com os quais entra em contato, seja o inglês, idioma que penetra amplamente através da cultura americana, como o russo e vários outros idiomas levados para uma convivência íntima com hebraico através das constantes imigrações. O hebraico modernamente sofreu algumas modificações, o que ocorreu também durante o período em que não foi usado como língua da comu– 70 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 63-76, 1998. nicação cotidiana, pois o idioma serviu para importantes atividades intelectuais. As construções singulares do hebraico bíblico mantiveram-se e o desenvolvimento lingüístico deste período não chegou a perturbar o antigo esplendor deste idioma. Podemos afirmar que o vocabulário utilizado atualmente no hebraico falado em Israel, é em número muito amplo, o bíblico. O lingüista Reuven Sivan, analisou um texto de 1948 “A Carta da Independência” e concluiu que 63% dos vocábulos utilizados são originários da literatura bíblica. Através das ilustrações a seguir podemos ver a presença marcante da camada do período bíblico no hebraico chamado moderno, com as relativas adaptações para a realidade da vida atual.3 3 Colaboração de Miriam Kleingezinds, aluna que do projeto de iniciação científica. – 71 – LANGER, Eliana Rosa. Ressurgimento da Língua Hebraica e suas implicações culturais. – 72 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 63-76, 1998. – 73 – LANGER, Eliana Rosa. Ressurgimento da Língua Hebraica e suas implicações culturais. – 74 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 63-76, 1998. – 75 – LANGER, Eliana Rosa. Ressurgimento da Língua Hebraica e suas implicações culturais. BIBLIOGRAFIA BEREZIN, Rifka. As Origens do Léxico do Hebraico Moderno, Boletim n. 21, Nova Série, Departamento de Lingüística e Línguas Orientais n. 2, USP, São Paulo, 1980. NIR, Raphael. Semantic Processes In The Adaptation of an Ancient Language to a Modern Society – palestra proferida. The Hebrew University, Jerusalem. RABIN, Chaim (tradução de Berezin Rifka). Pequena História da Língua Hebraica. Summus ed. 1973. ROZEN, Haim. Haivrit Shelanu. Am Oved, Tel Aviv, 1956. SIVAN, Reuven. Toldot Leshonenu. Ed. Rubinstein, Jerusalém, 1979. Abstract: Modern Hebrew as it is spoken in our days, has a peculiar history. This article is about the path of this idiom from ancient times until today. Jewish people for a long period had been out of his land and his language – Hebrew stoped to be used as their every day language. Hebrew was used only for religious, literary or commercial purposes. When Jews returned to their land, Hebrew reappeared, in special conditions, as the official language of the State of Israel. This language is based on the biblical Hebrew and it contains also the language of later periods, besides renewal and updantig made by by the Hebrew Language Academy. Keywords: Hebrew, Language and Culture. – 76 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 77-87, 1998. O CICLO ÉPICO DO CORVO NO PALEOASIÁTICO E O MITO DO DESANINHADOR DE PÁSSAROS DOS ÍNDIOS BORORO NO BRASIL: EM BUSCA DE ELOS Helena S. Nazário* Resumo: Este trabalho visa estabelecer comparações entre o ciclo épico do Corvo, estudado por Eleazar Meletínski em O Epos Mitólogico Paleoasiático, e o mito bororo denominado “o desaninhador de pássaros” estudado por Claude Lévi-Strauss em O Cru e o Cozido. Palavras-chave: Eleazar Meletínski, O Epos Mitólogico Paleoasiático, ciclo épico, Corvo, Claude Lévi-Strauss, O Cru e o Cozido, mito bororo, “desaninhador de pássaros”. Em seu livro O Epos Mitológico Paleoasiático, Eleazar Meletínski, pesquisador russo do mito e do folclore, dedica-se ao estudo do ciclo épico do Corvo. O autor examina o epos do Corvo entre os aborígenes da Kamtchatka e da Chukotka (na Sibéria), entre as populações do Alasca (os esquimós, os atapascos) e, principalmente, entre os índios da costa noroeste americana (os tlinguit e os haida). Entre essas etnias, o Corvo se destaca como um demiurgo, um protoancestral humano e tribal, um herói cultural e totêmico. Essa ligação com antepassados totêmicos explicaria os nomes e os atributos de muitos heróis culturais: o Corvo, o Coiote, o Coelho, o Urubu. Em O Cru e o Cozido, Claude Lévi-Strauss estuda o mito dos índios bororos, denominado o desaninhador de pássaros, em que a representação mítica do herói bororo surge como um possível contraponto ao Corvo. Este trabalho se propõe a estabelecer comparações entre o epos do Corvo e a lenda bororo. ... * A autora é Profª. Drª. do Departamento de Línguas – 77 – Orientais da FFLCH/USP. NAZÁRIO, Helena S. O ciclo épico do Corvo no Paleoasiático e o mito do desaninhador de passáros... Para E. Meletínski, os contos sobre o Corvo constituem um ciclo épico original e arcaico. O caminho este epos seguiu em sua transmigração da Ásia para a América faz supor que os antepassados dos índios americanos trouxeram os mitos do Corvo da Ásia para a América do Norte, introduzindo-os entre os grupos étnicos que habitavam a costa noroeste americana. O principal mito heróico, entre os índios americanos, relata a história do Corvo Yel, o qual mantém uma ligação amorosa com a mulher de seu tio. Caracterizado o incesto, o tio cumula o sobrinho de provas difíceis de realizar. Todavia, o sobrinho (o Corvo) possui dons mágicos que lhe permitem sair ileso das provas. Como último recurso, o tio provoca o dilúvio universal, a fim de liquidar o sobrinho. O Corvo, para se salvar, sai em busca da plumagem de um pássaro celeste e, vestido com essa plumagem, perfura a abóbada celeste com o bico. Desse modo consegue permanecer suspenso no céu. Finalmente, quando as águas baixam, o Corvo pousa sobre um outeiro que se eleva sobre as águas. O dilúvio termina e ele se salva. Meletínski esclarece que, em princípio, a história do Corvo trata do tema do incesto que deflagra a vingança do tio. Na realidade, porém, o início do conflito entre tio e sobrinho no conto é provocado pelo tio e não pelo sobrinho. Tomado de um acesso de ciúmes de seus sobrinhos, o tio resolve matá-los. Apenas um deles, o Corvo, consegue escapar com vida. Ao atingir a maturidade, ele resolve vingar-se do tio. É então que comete incesto com a mulher dele. O tio, no afã de se vingar e aniquilar o sobrinho, impõe-lhe as provas difíceis. O Corvo, no entanto, as supera, tornando-se herói e demiurgo, dando início a uma série de feitos culturais como a obtenção do fogo, da luz, da água fresca etc. Este seria, em nível mais superficial, o enredo do mito. Porém, de acordo com Meletínski, em nível mais profundo, existe um outro significado fundamental: os índios têm uma tradição matrilinear, em que o vínculo com o irmão da mãe (o tio) é muito estreito. Uma vez que o tio é o parente masculino mais próximo pela linha materna representa o poder da autoridade, como chefe da tribo. Por outro lado, o sobrinho (filho da irmã) representa, para o tio, o futuro da espécie, uma vez que é seu herdeiro mais próximo. É dever do tio (o velho chefe) perpetuar o processo de mudança das gerações e a vida da – 78 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 77-87, 1998. espécie, pois a vitória da geração mais jovem é condição necessária para a continuidade permanente do clã. Nesse sentido, as provas que o tio impõe ao sobrinho impregnam-se de um significado ritualístico, constituindo autênticos rituais de maturidade, que propiciam a formação da personalidade do herói. Assim, o aprendizado da caça ao pássaro celeste e a transformação chamânica do herói (o vôo do herói vestido com a plumagem do pássaro celeste) representariam o coroamento das provas. O autor constata que o motivo do incesto assume função relevante ao simbolizar a maturação do jovem que completa o ciclo das provas iniciáticas. As provas se associam ao ritual da mudança de gerações, principalmente no aspecto da sucessão do chefe. O triunfo do herói corresponderia a uma transformação radical de seu status social, sendo que a força erótica e mágica revelariam seu preparo à sucessão do chefe decadente da tribo. Disso decorre que, por trás da disputa familiar e da vingança, aparente em primeiro nível, o que de fato desponta, em segundo nível, é o conflito de duas gerações. Em Arquétipos Literários, Meletínski reafirma que os motivos erótico e do incesto atuam como sinais de decadência de uma geração e de maturidade da geração seguinte. Como exemplo cita o mito de Édipo, em que o velho rei, ao ser avisado de que o jovem herdeiro (ou qualquer outro recém-nascido) iria ocupar seu lugar, faz todas as tentativas para aniquilá-lo. Tentativas frustradas, uma vez que, após a morte do pai, Édipo se torna rei. À morte ritual do rei, segue-se o casamento do herói com a mãe e a sucessão ao trono, o que vem confirmar a troca de poder pela geração mais jovem. De um outro ângulo, observa o autor, considerando-se que o incesto representa uma transgressão do tabu, e que a proibição do incesto bem como a instituição de uma exogamia dual caracterizam o começo de um corpus social, segue-se que a violação do tabu, através do incesto, traz como conseqüência o caos social. O motivo do incesto configuraria, então, uma espécie de pivô – atuando ao mesmo tempo como instrumento de vingança superficial, símbolo de maturidade do herói, e violação do tabu que deflagra o caos social. A uma transgressão máxima no nível social (configurada pelo incesto) corresponderia uma transgressão máxima no nível cósmico (configurada pelo dilúvio). – 79 – NAZÁRIO, Helena S. O ciclo épico do Corvo no Paleoasiático e o mito do desaninhador de passáros... Mais grave, porém, que a transgressão do incesto, segundo Meletínski, deve ser considerada a transgressão das normas de parentesco (ou seja, a destruição dos sobrinhos pelo tio). Assim, tanto o motivo do incesto como o motivo da destruição dos sobrinhos se associam ao motivo do dilúvio, num tema único, o qual será traduzido na luta entre o caos e o cosmos. Uma vez que do triunfo do cosmos sobre o caos deriva a criação do mundo (ou a sua ordenação), a “cosmização” do caos pode ser representada não apenas como uma troca de gerações de deuses, mas também como uma luta entre jovens e velhos deuses. Embora as provas impostas ao Corvo revelem os aspectos de uma iniciação, o objetivo do tio seria, na realidade, aniquilar o sobrinho, pois essa aniquilação diz respeito à sucessão de poder das gerações. Ainda em Arquétipos Literários, Meletínski se refere ao estudo de Claude Lévi-Strauss sobre o desaninhador de pássaros para observar que, enquanto no ciclo épico do Corvo se origina uma relação ambivalente entre o tio e o sobrinho, no mito bororo esse tipo de relação ocorre entre o pai e o filho. ... O mito bororo, estudado por Lévi-Strauss, à semelhança do mito do Corvo, tem como motivo inicial o incesto. Diferido do mito do Corvo, porém, o herói bororo comete incesto com a mãe. Em seu estudo, Lévi-Strauss destaca que o mito bororo não evidencia a idéia da culpa do herói; é apenas do ponto de vista do pai que o filho é culpado. Por isso, o pai deseja a morte do filho e faz planos para concretizá-la, por meio de provas difíceis que lhe impõe. O que Lévi-Strauss destaca nesse mito é a indiferença dos bororo em relação ao incesto: a culpa recai muito menos no filho incestuoso que no marido ofendido que busca vingança. Em princípio, o mito bororo isenta o herói de culpa, uma vez que ele recebe a ajuda que solicita da avó para a realização das provas. Toda culpa é atribuída ao pai, por ter desejado vingar-se do filho, enquanto o herói aparece sobretudo como vítima. O herói bororo comete incesto no momento em que se recusa a separar-se da mãe, incumbida de desempenhar uma missão feminina: ir à flores– 80 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 77-87, 1998. ta colher folhas para confeccionar estojos penianos, utilizados pelos rapazes nas provas de iniciação. Relutando em se desligar dos laços maternos, o herói acaba reforçando-os, por meio de um ato cuja natureza sexual o coloca muito além das provas de iniciação. Esse erro ocasiona uma disjunção: o pai convida o filho para capturar filhotes de pássaros nos ninhos junto aos rochedos e o abandona numa rocha escarpada, onde o rapaz permanece separado dos seus. Ansioso em se livrar da situação em que se encontrava, o herói se envolve nas peles de lagartos putrefatos e, assim, transformado em carniça, excita o apetite dos urubus, os senhores do fogo, atraindo-os. Passa, então, a participar do poder deles sobre o fogo. Os urubus, que deveriam devorar o herói, consomem apenas uma parte da carne crua de sua vítima, o traseiro. Em seguida, atuam como autênticos salvadores, servindo de montaria para transportar o herói da rocha onde ele se encontrava para a terra. Vencidas as provas impostas pelo pai, o herói retorna à aldeia, onde uma tempestade apagara todos os fogos, exceto o da casa de sua avó. Ao refugiar-se ali, torna-se senhor do fogo e todos devem se dirigir a ele para obter uma brasa e reacender o fogo perdido. A mitologia indígena sul-americana costuma estabelecer relações entre o fogo e o urubu, considerado o dono do fogo. No mito dos índios apapocuvas, o herói civilizador finge que morre e que seu corpo começa a se putrefazer. Os urubus, senhores do fogo, juntam-se em volta do “cadáver” e acendem uma fogueira para cozinhá-lo. No entanto, o herói consegue safar-se das brasas, afugenta os urubus, tira-lhe o fogo e o entrega aos homens. Desde então, os urubus começam a se alimentar de carne podre. Lévi-Strauss enfatiza que, ao contrário dos outros mitos indígenas, os quais em geral privilegiam a origem do fogo, o mito bororo se sobressai como um mito da origem do vento e da tempestade, elementos que conseguem apagar o fogo. Entre os bororo, o vento, a tempestade e a chuva se associam à constelação do Corvo, a qual evoca a estação das chuvas (a água do céu). Ritos e lendas antigas consideravam o corvo um pássaro que anunciava as chuvas porque, ao ficar com sede, invocava a água celeste ausente. Segundo o autor, o pensamento mítico sul-americano distingue – 81 – NAZÁRIO, Helena S. O ciclo épico do Corvo no Paleoasiático e o mito do desaninhador de passáros... dois tipos de água – uma criadora, de origem celeste, e outra destruidora, de origem terrestre. Para os bororo, que vivem nas terras baixas do pantanal, o signo da água é um elemento extremamente familiar e tem uma conotação de morte, de destruição. Depois da inumação do cadáver, os ossos do morto são lavados, colocados dentro de um cesto e imersos no fundo do rio, “a morada das almas”. Água e morte, por isso, estão sempre associados no pensamento desses indígenas. O chefe bororo, para vingar-se do filho, envia-o ao reino aquático das almas de onde este teria que lhe trazer instrumentos musicais destinados a fazer barulho (as maracas). Nos mitos, recorda-nos Lévi-Strauss, o ruído tem o poder de evocar as uniões condenáveis, sancionadas pelo charivari, pois acreditava-se que a algazarra era eficaz para as forças do mal. Do ponto de vista do chefe bororo, o incesto do filho, considerado união condenável, deveria atrair uma sanção cosmológica. Ou seja, as almas do rio, avisadas pelo ruído, encarregar-se-iam de punir o herói. A prova consistia, portanto, em “não fazer barulho”, pois qualquer ruído implicaria em risco de morte. Graças à ajuda da avó, também desta vez o herói consegue sair-se bem da prova. No entanto, a vingança do pai acaba atraindo a sanção sobrenatural e, no final, ele é quem será punido e morto. Durante uma caçada chefiada pelo pai, o filho se disfarça de veado e desempenha o papel de seu matador. Em seguida, o corpo é lançado pelo filho nas águas do pantanal, morada dos espíritos canibais, as piranhas. São elas que se encarregam de fazer justiça com os próprios dentes, devorando o chefe bororo. ... Tanto o mito do Corvo, estudado por Meletínski, como o mito bororo, estudado por Lévi-Strauss, destacam um motivo comum – o incesto – em torno do qual se articulam as duas narrativas. O incesto é o motivo que deflagra a vingança do tio do Corvo, na primeira narrativa, assim como do pai bororo, na segunda. A vingança, por sua vez, implica a imposição de provas, superadas por ambos os protagonistas (o Corvo e o herói bororo). As provas confluem para um denominador comum – as águas. Na narrativa – 82 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 77-87, 1998. do Corvo, as águas se manifestam em forma de dilúvio e constituem a última prova imposta pelo tio ao sobrinho. No entanto, este se salva e o próprio tio morre.Na narrativa bororo, as águas do lago-pântano, escolhidas para a prova final que o pai impõe ao filho, revertem em morte para o chefe bororo, também. Na narrativa do Corvo, a simbologia do dilúvio se caracteriza por sua dupla função: de um lado, suas águas são destrutivas porque reduzem tudo a um estado de indiferenciação. De outro, desempenham uma função amniótica, regeneradora, na medida em que uma nova criação se segue à destruição. No dilúvio, o mundo desaparece e, com ele, a humanidade original e seus pecados. Surge, então, uma outra humanidade, purificada, da qual são eliminados os maus elementos. Os sobreviventes do dilúvio – os heróis – são imortalizados e vão assegurar a continuação da espécie. É assim que o Corvo se transforma em herói cultural e demiurgo. Na narrativa bororo, as águas do lago-pântano, à semelhança do dilúvio, simbolizam, numa primeira instância, o caos primordial de lama e água, maléfico e destruidor, que serve de receptáculo para o corpo do chefe bororo morto. As águas assumem o poder de engolir, punir o pecador, “matar o morto”, abolindo definitivamente sua condição humana. Por ter desejado a morte do filho (à semelhança do tio do Corvo que aniquilou os sobrinhos e desejou a morte do Corvo) o pecado do chefe bororo incide na transgressão das normas de parentesco. Com isso, produz-se uma tensão mortífera na comunidade, uma ruptura do equilíbrio social: o sistema organizado de mundo em que o chefe atuava como liderança tribal é rompido; a transgressão gera o mal e este terá de ser expiado. Para restabelecer o equilíbrio perdido, o bom relacionamento da comunidade, torna-se necessário um sacrifício. E o assassinato do chefe bororo pelo filho assume as características de um ritual sacrificial. A vítima (o pai) é consagrada e oferecida a uma força sobrenatural – os espíritos canibais das águas (as piranhas) – enquanto o filho assume o papel de ofertante do sacrifício. Com isso, o filho se investe do papel de chefe da tribo, pois é a este que, naturalmente, se destina tal função. O sacrifício é oferecido aos espíritos da natureza, pois são eles os mediadores e intercessores junto ao ser supremo o qual aprova e controla as ações humanas. A finalidade da – 83 – NAZÁRIO, Helena S. O ciclo épico do Corvo no Paleoasiático e o mito do desaninhador de passáros... expiação será apaziguar a ira dos espíritos canibais, sedentos de sangue, para que estes deixem a comunidade em paz. Neste ponto, convém abrir parênteses e reportar-se aos ritos funerários dos bororo, cerimoniais que chegam a se prolongar por trinta dias – prazo considerado suficiente para a passagem da decomposição do cadáver à mineralização. Nesses cerimoniais, destacam-se dois momentos importantes: uma primeira etapa, o rito da separação visa “matar o morto”, ou seja, matar o que ainda permanece de vivo nele. Isso porque, no decorrer do processo de decomposição, o corpo se corrompe e é considerado perigoso; em uma segunda etapa, os ossos são exumados, lavados e transferidos para um outro lugar, considerado “puro”. É como se o corpo em decomposição tivesse corrompido a terra e, por isso, fosse necessária a remoção dos ossos purificados para um local isento de impurezas. Uma vez que o cadáver é considerado a essência da impureza que polui a “boa criação”, ele é isolado, evitando-se que sua presença contagie o processo de purificação. O corpo é deixado num local distante, freqüentado por animais carnívoros, e estes se tornam os seus “purificadores”, pois desembaraçam o morto da carne putrefata. Na lenda bororo são os espíritos da laguna (as piranhas) que vão cuidar dos “funerais” do chefe bororo. Ao consumir as carnes do morto, se tornam os purificadores que desembaraçam o cadáver da carne ainda não putrefata. As carnes “enterradas” em suas barrigas cumprem, por sua vez, a função da terra, com uma vantagem – a digestão acelera a passagem do corpo morto para a mineralização, evitando a decomposição lenta do cadáver. Os pulmões e os ossos do chefe morto são descartados pelas piranhas. Enquanto os pulmões, transformados em plantas, permanecem flutuando na superfície das águas, os ossos vão se depositar no fundo do lago, que os recebe como sepultura. Conforme menção anterior, para os bororo a água é um elemento familiar e traz a conotação de morte. Nos rituais funerários da tribo, após a exumação do cadáver, os ossos são lavados, colocados num cesto e imersos no fundo do rio, “a morada das almas”. Uma referência às crenças das tribos indígenas dos zuni e dos xesana nos revela que, para os zuni, os ancestrais viveriam no fundo de um lago, enquanto que – 84 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 77-87, 1998. para os desana, uma região banhada em água estender-se-ia por baixo da terra, constituindo como que um domínio uterino, considerado a origem da vida. Os homens que se destinavam a nascer estariam ligados a esse domínio, por uma espécie de cordão umbilical. Em relação inversa, um retorno às águas amnióticas seria considerado morte feliz. Os pulmões do chefe bororo, transfigurados em plantas, flutuam nas águas lamacentas do pantanal, altamente favoráveis à formação de matéria orgânica, as hilogenias. O pulmão tem, realmente, forma de planta: uma árvore oca, constituída de ramificações, os brônquios, e de folhas ocas também, os alvéolos. O simbolismo de uma planta, o lótus, identificava-se com o potencial criador e gerador da vida e da própria criação; oriundo do Egito, este simbolismo é retomado pela tradição hindu: um dos deuses (Prajapati), imaginando como deveria ser a criação, viu uma folha de lótus, mergulhou e do fundo das águas trouxe lama para a superfície, espalhando-a sobre a planta. Esta se tornou símbolo da vida que emergiu das obscuras profundidades do caos aquático. Assim como a reabsorção nas águas do lago-pântano (na lenda bororo), a reabsorção nas águas do dilúvio (no epos do Corvo) determina o tema central das cosmogonias: a reintegração no indistinto, no caótico, é essencial para a formação de novas existências. No que diz respeito ao epos do Corvo, quando as águas do dilúvio baixam, o herói se salva, pousando sobre um outeiro que se eleva sobre as águas; a partir de então, ele se investe das funções de um demiurgo. Neste ponto do trabalho, convém deter-se na obra de N. Cohn, Cosmos, Caos e o Mundo que Virá, na qual o autor estuda as diversas cosmogonias. A cosmogonia egípcia era imaginada como modelagem que transformava a matéria informe em um mundo ordenado; o caos era um oceano ilimitado em meio às trevas. No interior do abismo escuro e líquido encontrava-se, em estado latente, a substância primeira a partir da qual seria formado o mundo. Em certo momento, chamado “a primeira época”, uma ilha minúscula emergia das águas – o outeiro primordial (grifos meus): uma terra quase submersa que em seguida surgia renovada das águas, coberta de solo fresco e fértil. Fazia-se necessária a existência de um demiurgo para – 85 – NAZÁRIO, Helena S. O ciclo épico do Corvo no Paleoasiático e o mito do desaninhador de passáros... ordenar e organizar o mundo; este se manifestava justamente no momento em que aparecia o outeiro primordial. Por isso, o demiurgo (Ptah) era também chamado “a terra que se erguia”, o que o vinculava ao outeiro primordial e ao solo que reaparecia após a inundação anual. Verificava-se nesse relato da cosmogonia egípcia como é surpreendentemente sua semelhança com o epos do Corvo! Ambos os protagonistas, tanto no epos do Corvo, como na lenda bororo, repetem um padrão de combate, seja no conflito entre o tio e o sobrinho, seja na disputa entre o chefe bororo e o filho. Tanto o Corvo como o filho bororo saem triunfantes, tornando-se novos chefes e heróis. Enquanto no epos do Corvo o tio simplesmente desaparece nas águas do dilúvio, na lenda bororo o corpo do chefe morto é oferecido pelo herói aos espíritos da laguna, que se incumbem de desmembrar o cadáver do velho chefe para o novo chefe instituído, separando-o em duas partes: uma delas (os pulmões) se direciona para um local superior, a superfície das águas, a outra (os ossos) se deposita num local inferior (o solo do lago). Em Cosmos, Caos e o Mundo que Virá, N. Cohn destaca a importância de um mito – o mito babilônico da criação – considerado muito mais elaborado esse que a cosmogonia tradicional. Segundo esse mito, no início havia apenas um caos aquoso, no qual a água doce, subterrânea, se misturava à água salgada do mar (Tiamat). Nesse cenário trava-se um combate entre o monstro do caos, Tiamat, manifestação do repouso, da inércia, e o jovem guerreiro, representante do movimento, o deus Marduk. Este vence Tiamat e divide sua carcaça em duas metades para com elas criar o céu e a terra. O traço que distingue esse mito é o fato de a criação efetua-se a partir do desmembramento de um ser primordial, derrotado após tremenda batalha, com a separação de seu corpo em duas partes. Nesse aspecto fica devidamente evidenciada a semelhança entre o mito da cosmogonia babilônica e o mito bororo. Se em certos momentos da comparação entre o epos do Corvo e a lenda bororo foi possível perceber pontos de aproximação conectando os dois mitos, em outros, delinearam-se as diferenças, sobretudo ao se considerar que vertentes cosmogônicas distintas participam de seus enredos. – 86 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 77-87, 1998. BIBLIOGRAFIA ALBISETTI, C. e VENTURELLI, A. J. Enciclopédia Bororo. Publicação do Museu Regional Dom Bosco, Campo Grande, Mato Grosso, s/d. CHEVALIER, H. e GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro, José Olimpio, 1989. COHN, N. Cosmos, Caos e o mundo que Virá. São Paulo, Companhia das Letras, 1985. ELIADE, M. (editor in chief) The encyclopedia of Religion. New York, Mac Millan Publishing Company, 1987 LÉVI-STRAUSS, C. “O Cru e o Cozido”, in Mitológicas, São Paulo, Brasiliense, 1991. MELETÍNSKI, E. M. Paleoaziátskii Mifologuítcheskii Epos (O Epos Mitológico Paleoasiático). Moscou, Nauka, 1979. ________. A Poética do Mito. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1987. ________. O literatúrnikh Arkhetípakh (Sobre os Arquétipos Literários, em russo). Moscou, Editora da Universidade Estatal Russa de Estudos Humanitários, 1994. Abstract: This paper will seek to establish comparisons between the epic cycle of the Raven, studied by Eleazar Meletínski in The Paleoasiatic Mythological Epos, and the bororo myth known as “the unsheltered birds” studied by Claude Lévi-Strauss in The Raw and the Cooked. Keywords: Eleazar Meletínski,The Paleoasiatic Mythological Epos, epic cycle, Raven, Claude Lévi-Strauss, The Raw and the Cooked, bororo myth, unsheltered birds. O trabalho teve como motivação o curso a que assisti no Núcleo de Poética da Oralidade da PUC, A Poética do Mito, sob responsabildade dos professores Jerusa de Carvalho Pires Ferreira e Fernando Segolin. O curso contou com a participação especial de Eleazar Meletínski, como professor convidado. – 87 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 89-108, 1998. LÊNIN, TRÓTSKI E STÁLIN POR BULGÁKOV Homero Freitas de Andrade* Reumo: O presente ensaio constitui a primeira parte de um estudo sobre a representação artística das figuras de Lenin, Trotsky e Stalin, na ficção e na dramartugia de M. Bulgákov. Nele examinam-se ainda as relações entre autobiografia, história e literatura na obra do escritor. Palavras-chave: Bulgákov, Revolução Russa, Lenin. PRÓLOGO: BULGÁKOV, A REVOLUÇÃO DE 1917 E A RÚSSIA SOVIÉTICA Quando eclodiu a Revolução de Outubro de 1917, conduzindo os bolcheviques ao poder, o escritor russo Mikhail Bulgákov (Kíev, 1891 – Moscou, 1940) passava uma temporada na casa do pai de sua primeira mulher, nos arredores de Sarátov. Tentava, a duras penas, abandonar o vício da morfina que contraíra atuando como médico no front da I Guerra. À época, sua visão dos acontecimentos, descontando-se o fato de que a notícia da revolução bolchevique demorou cerca de duas semanas para atingir os rincões mais distantes da Rússia e foi encarada num primeiro momento pela maioria dos cidadãos da província como simples boato, não deve ter sido muito diferente daquela que teve o médico Poliakóv, também viciado, personagem da novela A morfina (1927), que acompanhou tudo “através de uma bruma espessa”. De família nobre, filho de um professor de teologia e de uma professora primária, Bulgákov foi criado num ambiente extremamente liberal para * O autor é Prof. Dr. do Departamento de Línguas – 89 –Orientais da FFLCH/USP. ANDRADE, Homero Freitas de. Lênin,Trótski e Stálin por Bulgákov. a época. Os pais professavam e incutiram nos filhos os ideais típicos da intelligentsia russa1 não radical do século XIX. Como membro (não militante) dessa intelligentsia, Bulgákov era um liberal democrata, que não vivia a trovejar publicamente suas tendências ideológicas, como era costume então. Porém, nunca foi um “monarquista roxo”, coisa de que o acusavam seus contemporâneos de esquerda. Na verdade, durante os anos de universidade (1909-1916), único território livre para discussões políticas e ideológicas, sentia-se muito incomodado com as frequentes manifestações e greves estudantis que prejudicavam o andamento de seus estudos e colocavam todos os estudantes, indistintamente, sob a mira da polícia política tsarista. No entanto, não se pode dizer que fosse apolítico, era antes apartidário. Simpatizante das idéias de Tolstói na adolescência e juventude condenava os princípios da autocracia, a inexistência de um regime parlamentar e, sobretudo, a guerra. Como médico, defendia a teoria da evolução como fundamento das ciências naturais e humanas. Para ele, o aperfeiçoamento da sociedade só se daria através da evolução do ser humano (animal político e social) e não pela violência e a imposição de ideologias totalitárias. Quando da Revolução de fevereiro, saudou a vitória do ideário da intelligentsia e não lamentou a queda da monarquia, mas criticou satiricamente as veleidades ditatoriais de Keriénski no momento em que este assumiu o Governo Provisório2. Após ter recebido baixa como médico no front, Bulgákov foi enviado a um pequeno hospital do zémstvo3 de Nikólskoie, na província de Smoliénsk, onde atuou de setembro de 1916 a setembro de 1917, sendo transferido em seguida para Viázma, onde permaneceu até fevereiro de 1918, 1 2 3 O termo designava a elite intelectual de oposição à autocracia e era formada predominantemente por liberais, socialistas e anarquistas. É o que se depreende pela leitura de depoimentos de familiares e amigos mais achegados. Nessa época, Bulgákov ainda não estreara como escritor. Espécie de assembléia com funções administrativas, constituída de representantes eleitos entre os membros da nobreza, burguesia e agricultores. Membros da intelligentsia participavam ativamente dessas assembléias com a missão de “ir ao povo” para conhecer sua real condição de vida e conscientizá-lo de sua situação. O sistema vigorou na Rússia desde a emancipação dos servos (1864) até 1918. – 90 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 89-108, 1998. passando à reserva. De volta a Kíev natal, recuperando-se das seqüelas do vício (crises de depressão profunda, mania de perseguição, pânico) montou um consultório e passou a atender portadores de doenças venéreas. A guerra civil (1918-1921) estendia-se pelo território do antigo Império. Na Ucrânia, destituída a Rada4 pelo comando alemão e substituída pelo hetman Skoropádski, Kíev passou a ser disputada ora pelos nacionalistas, partidários de Petliúra, ora pelos bolcheviques, ou pelos Brancos. Em agosto de 1918 ocorria uma violenta insurreição armada: cadáveres cobriam as ruas da cidade. Em novembro, o general do Exército Branco Deníkin, no comando da situação, ordenava a moblilização de todos os oficiais e soldados em território ucraniano. Os irmãos de Bulgákov foram mobilizados. No início de 1919, Petliúra convocava os médicos da reserva, mas Mikhail Bulgákov, quando os Vermelhos invadiram a cidade, conseguiu escapar das fileiras do exército nacionalista. Mas não escapou à mobilização determinada pelos Brancos em fins de setembro e foi despachado para um hospital militar em Vladikavkáz, principal cidade do Cáucaso. Ali, aproximou-se dos círculos literários e artísticos e passou a participar ativamente da vida cultural da cidade. Jornais da cidade e dos arredores, dos Vermelhos, dos Brancos, dos sem-partido começaram a disputar seus feuilletons5 humorísticos. Em sua primeira “Autobiografia” (1924), um breve curriculum vitae, ao referir-se ao início de sua carreira de escritor, ele destacava: “Certa noite do outono já avançado de 1919, viajando num trem todo desconjuntado, à luz de uma velinha fincada numa garrafa de querosene vazia, escrevi meu primeiro texto curto. Na cidade onde o trem me deixou, levei o conto à redação de um jornal. Publicaram-no. A seguir publicaram alguns feuilletons. No início de 1920 abri mão de título e distinção e pus-me a escrever. Vivia numa província distante e encenei três peças no teatro local. Mais tarde, já em Moscou, ao relê-las em 1923, tratei de destruí-las sem demora. Espero que não tenha sobrado nenhum exemplar por aí.” 4 5 Assembléia Nacional da Ucrânia. Gênero literário originário da França (século XIX). Na Rússia, o gênero, geralmente de caráter cômico ou satírico, foi amplamente utilizado na publicística por escritores como Belínski, Nekrássov, Saltikóv-Schedrín, Anfiteátrov, Dorochévitch e outros. No início do século XX, o feuilleton foi desenvolvido por Górki, Maiakóvski, Ilf e Petróv, Zóschenko, Bulgákov, Oliécha etc. – 91 – ANDRADE, Homero Freitas de. Lênin,Trótski e Stálin por Bulgákov. Nesse primeiro texto curto, intitulado “Perspectivas futuras”6, Bulgákov abordava justamente questões relativas à Revolução de Outubro e aos seus desdobramentos, chamando a atenção para os progressos da recuperação européia no pós-guerra enquanto “nossa infeliz pátria mergulha nos abismos sem fundo da ignomínia e da calamidade, impulsionada pela ‘grande Revolução socialista’” “O que será de nós doravante?” – perguntava-se e previa que ao cabo dos conflitos da guerra civil, caberia a todos e às gerações futuras “pagar pelo passado com um trabalho descomunal, com a dura pobreza da vida. Pagar tanto no sentido figurado como no literal da palavra. Pagar pelos desatinos dos dias de março e de outubro, pelos traidores da pátria, pela corrupção, por Brest7, pelo uso das máquinas para imprimir dinheiro... por tudo!” Uma das principais marcas da literatura russo-soviética em formação no começo dos anos 20 é o uso da história contemporânea como material para obras de ficção e essa tendência pode ser observada na maioria dos escritores da época, sejam eles engajados, “proletários”, popúttchiki8, ou emigrados. As vicissitudes decorrentes do “grandioso e inolvidável ano de 1917”, as agruras da guerra civil, a desagregação da Rússia tzarista, as mudanças de costumes decretadas pelo novo regime constituem alguns dos temas recorrentes nas obras de Bulgákov, sobretudo no romance O Exército Branco, nas peças Os dias dos Turbín e A corrida, nos contos e novelas “Anotações nos punhos”, “Boemia”, “Eu matei”, “A coroa vermelha”, “O fogo do khan”. Outro traço dominante de sua poética é o autobiografismo. As aventuras que viveu como médico da roça, por exemplo, suas impressões sobre os costumes e mazelas dos habitantes dos vilarejos e arredores foram de6 7 8 O artigo ^Uhzleobt gthcgtrnbds^ foi recuperado integralmente apenas em 1988 a partir de fragmentos encontrados no álbum de recortes reunidos por Bulgákov na década de vinte, e conservado atualmente no Arquivo M.Bulgákov da Seção de Manuscritos da Biblioteca Lênin (Moscou). Em pesquisas posteriores, descobriu-se que fora publicado em 26/XI/1919, no jornal Uhjpysq (Grózni) 47, de Vladikavkáz. O texto foi publicado novamente, após reiteradas recusas da imprensa especializada por considerá-lo anti-soviético, apenas em 199l. Referência ao tratado de paz de Brest-Litóvski, assinado entre Rússia e Alemanha em 1918. Literalmente, “companheiros de jornada”, expressão cunhada por Trótski em seu Literatura e revolução para designar os escritores não engajados porém simpatizantes do ideário da Revolução. – 92 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 89-108, 1998. pois utilizadas como material para a série de contos escritos de 1925 a 1926 Relatos de um jovem médico, de forte cunho autobiográfico, mas elaborados de modo a não evidenciarem essa nuance num primeiro momento. Aliás, transformar em material literário acontecimentos reais, históricos ou pessoais, lugares públicos e privados, pessoas das relações particulares do autor e figuras públicas notórias de sua época, além de falas, opiniões e anedotas é procedimento artístico comum na práxis poética de Mikhail Bulgákov. No entanto ele o faz de tal modo que, apesar da existência de provas documentais, torna-se difícil perceber com nitidez até que ponto a fantasia reveste o fato vivenciado na realidade e onde a confissão cede lugar à fantasia. Pois quando Bulgákov metamorfoseia-se em personagem, confere-lhe somente os traços autobiográficos indispensáveis para que ele represente sempre apenas uma das possíveis máscaras do homem e escritor. Por isso também, talvez as diversas personagens autobiográficas que permeiam sua obra não sejam lá muito parecidas entre si. De qualquer modo, esse recurso, estudado no âmbito das relações entre autobiografia, história e ficção presentes na produção bulgakoviana, evidencia não só a necessidade do autor de colocar-se como voz dissidente diante da univocidade exigida pela política cultural da época no tratamento literário dos fatos da atualidade, mas também adquire valor documental enquanto depoimento que apresenta uma versão diferenciada dos acontecimentos. Transferindo-se para Moscou em meados de 1921, depois de enfrentar inúmeras dificuldades, Bulgákov começou a publicar seus escritos em jornais, suplementos e revistas literárias da capital. Trabalhou durante alguns anos como folhetinista, repórter e jornalista do jornal O Apito. Seus textos satíricos, temperados com humor sarcástico e fina ironia, trouxeramlhe o sucesso junto ao público leitor de periódicos e chamaram a atenção de editores de revistas literárias e antologias que passaram a disputar suas obras de ficção. Nesses primeiros anos de Moscou, a sátira foi a arma literária utilizada por Bulgákov contra a confusão do período da Nova Política Econômica (NEP), contra o burocratismo que comandava o novo estilo de vida. Os fatos do cotidiano eram o material por excelência para sua prática – 93 – ANDRADE, Homero Freitas de. Lênin,Trótski e Stálin por Bulgákov. publicística e ficcional. Não se limitava a descrever as situações geradas a partir de um determinado fato, mas procurava expressar em seus textos a sensação do homem comum ante o acontecido, reconstruir a ambiência do momento histórico, recriando a linguagem das ruas, os modismos e os novos ícones da cultura soviética. Ridicularizou o discurso oficial e sua reprodução automática na fala do homo sovieticus. Manifestou suas próprias impressões, vestindo a persona do narrador. Com a mesma virulência do comunista Maiakóvski, mas como um sofredor saudosista da intelligentsia, que sente na pele as novas contradições desse período nebuloso da história da URSS, combateu com humor ferino a mentalidade pequeno-burguesa renascente, a barbarização dos costumes, o banditismo, a trapaça, a especulação dos novos empresários e comerciantes, desnudando em seus escritos os contrastes entre a aparência e a essência do fenômeno NEP. E as más línguas da crítica não lhe davam sossego. Entretanto, uma resolução do Comitê Central do Partido, exarada na I Conferência Panunionista dos Escritores Proletários em 1925, conclamava à luta contra todas as manifestações de ideologias burguesas em literatura. A resolução não coibia a atividade dos popúttchiki, decerto porque isso implicava um empobrecimento das qualidades artísticas da literatura em formação. Mas a recém-nascida RAPP (Rússkaia Associátsia Proletárskikh Pissátelei – Associação Russa dos Escritores Proletários), que reunia sob a mesma sigla todos os agrupamentos de escritores do proletariado antes dispersos, viu na medida a possibilidade de aumentar a pressão sobre aqueles que não pertenciam a seus quadros. Para eles criou-se o rótulo persecutório de escritor neo-burguês. Sob ataque cerrado, popúttchiki e independentes, de vanguarda ou não, começavam a perder seus espaços. Uns aderiam, outros silenciavam ou eram silenciados aos poucos. A censura contribuía para aparar as diferenças e promover a “seleção natural” dos escritores. Os problemas de Bulgákov com a censura foram crescendo e culminaram com a apreensão em 1926 de seus diários e das novelas que escrevera após o lançamento de seu único livro publicado em vida, a coletânea de contos e novelas Diabolíada (1925). A partir de então suas obras foram proibidas e rompia-se definitivamente para ele um dos elos da cadeia autor– 94 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 89-108, 1998. obra-público. A crítica oficial classificava-o como “faxineiro literário”, possuído de uma “velhice canina”, que era e continuaria sendo “um rebento neo-burguês, que espirra sua baba venenosa, mas inócua, sobre a classe trabalhadora e seus ideais comunistas”9. Impedido de publicar, Bulgákov foi relegado enquanto escritor a uma espécie de ostracismo que ele caracterizava como “morte em vida”. Suas peças, verdadeiros sucessos de público10, foram retiradas dos repertórios dos teatros soviéticos. Seu nome desapareceu das edições subseqüentes da Enciclopédia Literária. De 1926 a 1930, quando foi admitido como encenador do Teatro de Arte de Moscou, Bulgákov sobreviveu miseravelmente com os parcos rendimentos dos direitos autorais provenientes da publicação de algumas obras no Exterior11. Escritor proibido, não parou no entanto de escrever. E, uma vez que não tinha mais a censura em seus calcanhares, com total liberdade de expressão. Destacam-se dessa última fase, os romances A vida da Senhor de Molière, Romance teatral, O Mestre e Margarida, as novelas “Um coração de cachorro”, “A morfina”, “A uma amiga secreta”, as peças A beatitude, Ivan Vassílievitch, Adão e Eva, Molière, Dom Quixote, Batum, Os últimos dias. Considerado sua obra prima, o romance satírico-filosófico O Mestre e Margarida, iniciado em 1928 e terminado às vésperas de sua morte (1940), representa a quintessência da práxis do escritor, seja no que se refere à decantação de seu estilo e procedimentos artísticos, seja quanto ao amadurecimento de suas reflexões sobre a vida e o regime soviético, que impediam a diversidade de pensamento e a liberdade de expressão em nome das quais combatera desde o início de sua carreira. 9 10 11 O próprio escritor deu-se ao trabalho de coletar 298 referências hostis e ofensivas à sua obra publicadas na imprensa, que mais tarde utilizaria na redação de sua célebre “Carta ao Governo Soviético” (1930), denunciando a impossibilidade de sobrevivência de um escritor satírico na URSS. A carta encontra-se traduzida para o português no meu ensaio “A literatura que Stálin proibiu” (Revista de Estudos Orientais 1. São Paulo, Humanitas, 1997; p. 40-46). Conta-se que Stálin teria assistido cerca de 19 vezes à representação da peça Os dias dos Turbín, que Bulgákov adaptara de seu romance O Exército Branco, para, nas palavras do próprio ditador, “aprender como pensavam seus inimigos da intelligentsia”. Perversamente, para demonstrar a liberdade de expressão vigente, a URSS permitia quando não incentivava a publicação no Exterior de certas obras de autores proibidos no país, e ainda recolhia sua parte nos direitos autorais sob forma de imposto. – 95 – ANDRADE, Homero Freitas de. Lênin,Trótski e Stálin por Bulgákov. Não é difícil perceber hoje, face aos acontecimentos que desmantelaram a URSS a partir de 1991, um certo tom profético nas obras do escritor. Aliás, pode-se dizer que esse mesmo tom perpassa toda sua obra literária, jornalística e dramatúrgica, a ponto de tê-lo transformado mais tarde, já no final da década de 80 quando sua produção e seu nome começaram a ser reabilitados no país dos sovietes, numa espécie de mito, por ter “profetizado” as causas que levariam ao esfacelamento da URSS. I. LÊNIN Se, por um lado, o leitor percebe com facilidade o que Bulgákov pensava dos bolcheviques, através das situações ficcionais que eles vivem e das caracterizações tipológicas que lhes dá em suas obras, já em relação ao líder dos Vermelhos a coisa é mais complexa. Sabe-se que em público tanto Lênin como os demais chefes, não obstante seu elevado grau de instrução e formação mas visando maior aproximação com as massas, falavam e comportavam-se com a falta de polidez e urbanidade, a rusticidade e violência de gestos que a Revolução introduzira no cotidiano russo ao abolir as regras da etiqueta “burguesa” e substituí-las pela selvageria comportamental decorrente da guerra civil e do comunismo de guerra, ao proibir as formas de tratamento diferenciadas e impor no lugar o továrisch (utilizado no início apenas entre os membros do partido e os soldados vermelhos) como única forma de tratamento possível numa sociedade que eliminara as diferenças de classes, ao coibir o uso dos rapapés que permeavam as relações humanas na Rússia ante-revolucionária. Esses elementos eram duramente criticados e ridicularizados por Bulgákov nas caracterizações que fez, num primeiro momento, dos bolcheviques em particular e, depois, dos comunistas em geral, sobretudo os militantes do partido. Para ele, isso representava a deterioração total dos costumes e uma nova sociedade não conseguiria sobreviver tornando norma elementos desagregadores das relações humanas. No entanto, a ridicularização da figura de Lênin é mais sutil do que a dispensada a seus liderados, beirando por vezes a ambiguidade. – 96 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 89-108, 1998. O conto “História de chinês”, escrito e publicado em maio de 1923 quando Lênin já se encontrava doente, insere pela primeira vez na ficção de Bulgákov o nome do líder bolchevique. Antes ele havia aparecido apenas em artigos e ensaios jornalísticos. No conto, um velho chinês tenta explicar a um viajante misterioso, que “voara, feito folha seca, milhares de verstas e fora dar às margens de um rio [Moscou] sob uma muralha corroída e encimada de ameias [do Kremlin]”, aquele mundo novo e desconhecido que ele mesmo não consegue entender e que lhe parece absolutamente caótico: “Das palavras do chinês depreendiam-se desconsolo e brevidade. Em russo, corresponderia a algo assim: pão, não. Nenhum, nada. Eu, faminto. Para comprar, nada não. Cocaína, pouca. Ópio, não. O velho e finório chinês ressaltou suas últimas palavras. Não tem ópio. Ópio não tem, não tem. Pena, mas ópio não tem. (...) “– E o que é que tem? – perguntou desesperado o viajante, dando de ombros convulsivamente. “– O que tem? – (...) – Frio tem. Tcheká12 prendendo tem. (...) Pinga caseira tem. “(...) Olhando para a muralha, o velhote balbuciou em russo: “– Bandido tem! (...) Lênin tem. Chefe-mor tem. Burguês, não, oh, não! Mas Exército Vermelho tem. Tem muito. Música? Sim, sim. Música pra Lênin. Na torre do relógio, ele lá, ele lá. Atrás da torre? Atrás tem Exército Vermelho.”13 Pergunta-se, antes de mais nada, como a censura permitiu a publicação desse conto e, ainda por cima, no suplemento ilustrado do Pravda de Petrogrado. Como permitiu sua inclusão na antologia Diabolíada14, de 1925? Teria cochilado? É pouco provável pois, embora ela ainda não fosse em 1923 tão rigorosa como se tornaria três anos mais tarde, estava sempre 12 13 14 Abreviatura da Comissão Extraordinária para o Combate da Contra-revolução, Sabotagem e Especulação, primeiro órgão da polícia política, que vigorou de 1917 a 1921. Cf. ^Rbnfqcrfz bcnjhbz^, traduzido do original em russo constante do volume 1 das Obras Completas em 5 volumes, op.cit., p.451-452. Único livro que o autor pode publicar em vida. – 97 – ANDRADE, Homero Freitas de. Lênin,Trótski e Stálin por Bulgákov. atenta não só a eventuais críticas ao regime e à ideologia dominante, mas a tudo que pudesse macular a imagem dos líderes da Revolução. Presume-se então que o censor não tivesse percebido a ambiguidade intencional do autor. Num primeiro nível de leitura, o que se tem é a descrição da realidade factual da época. Não havia pão que chegasse para todos, o racionamento de víveres ainda estava na ordem do dia, a fome não fora totalmente debelada, a polícia política perseguia os “inimigos do povo”, os bandidos e os fabricantes de aguardente clandestina. A normalidade não fora restabelecida no cotidiano. Por outro lado, ícones do velho regime também tinham sido eliminados: os vícios (ópio, cocaína), o burguês. Mantinha-se a alegria (música) e o Exército Vermelho estava lá na fortaleza do Kremlin para garantir a integridade do novo regime e dos cidadãos soviéticos. E de quebra havia Lênin na torre do relógio para controlar a marcha do novo tempo. Nesse plano de leitura o escritor atendia perfeitamente às orientações da política cultural ao denunciar as mazelas que afligiam o povo. E, ao colocar Lênin na torre, demonstrava que o governo estava preocupado em resolver esses problemas, mesmo que fosse preciso utilizar novamente o Exército Vermelho. Repare-se também que Vladímir Ilitch não é tratado como personagem da narrativa, mas como herói da história recente do país, como uma espécie de guardião da nova vida. Nada mais lisongeiro. O segundo nível de leitura, não alcançado pela censura, remete a um subtexto extremamente crítico e satírico, desmistificador daquela figura de Lênin construída pelos burocratas e militantes do partido. A Revolução eliminou o burguês. Num primeiro sentido, eliminou a possibilidade de comércio. Ao mesmo tempo, o governo não conseguia solucionar a contento a questão da produção e distribuição de alimentos. E mais: a recém implantada Nova Política Econômica, que recuperava procedimentos do capitalismo e permitia o estabelecimento de pequenos comerciantes e a produção em cooperativas, poderia ser quanto muito um paliativo mas não a solução para a crise, já que o Estado mantinha controle total sobre a economia e os meios de produção. Eram restabelecidos certos mecanismos típicos da economia capitalista, mas não estava previsto o ressurgimento da burguesia e do livre mercado. Portanto, na visão do autor, a NEP enquanto – 98 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 89-108, 1998. modelo para a recuperação da normalidade da vida social e a construção do socialismo após o comunismo de guerra, do modo que vinha sendo aplicada, soava como mistificação15. Para ele, a responsável pela reordenação das condições de vida depois de tantos sofrimentos era a própria vida, o impulso vital inerente ao ser humano. Se não há ópio, significa que não havia meios de se acalmar as doenças de fundo nervoso geradas pela situação de guerra e se a cocaína é pouca, então não havia analgésico suficiente para aplacar as dores físicas. Reagindo a isso, o povo fabricava aguardente clandestina para “curar” todos os males. Outra possibilidade conotativa remete à proibição das manifestações religiosas e do funcionamento da Igreja ortodoxa e de outros cultos determinada justamente em 1923. Não há ópio, não há religião (“o ópio do povo”). Ainda na clave religiosa, é significativa a entronização de Lênin na torre do relógio, a chamada Torre do Salvador. Aqui, endeusado pelos bolcheviques como salvador da pátria, ele no entanto é alçado à condição de falso messias, pois demonstra-se incapaz de perpetrar o milagre dos pães. Como figura constitui o símbolo do poder supremo que se mantém pela força das hostes do Exército Vermelho, mas como pessoa é uma espécie de refém daqueles que o deificaram. Em 22 de janeiro de 1924, Bulgákov registrava em seu diário, como única anotação do dia e sem comentários adicionais, o anúncio oficial da morte de Lênin, que ouvira do vizinho. A notícia caiu como uma bomba, deixando a jovem república em polvorosa. Em Moscou, a situação era agravada pela onda de boatos, que gerava insegurança na população temerosa de novas turbulências. À estupefação inicial dos cidadãos, seguiu-se a comoção generalizada, orquestrada pelo Governo e pelo Partido num suntuoso e solene funeral que durou quatro dias. O caos que se instalou de repente no cotidiano moscovita, despertando incertezas quanto ao futuro imediato, o espetáculo fúnebre e a catarse popular que ele desencadeou são reconstruídos por Bulgákov na reporta15 Numa série de artigos e crônicas sobre o restabelecimento das condições de vida e do cotidiano moscovita, publicados em jornais entre 1922-1923, Bulgákov explicita mais claramente essa posição. Diga-se, também, que os comunistas mais ortodoxos condenavam a NEP. – 99 – ANDRADE, Homero Freitas de. Lênin,Trótski e Stálin por Bulgákov. gem “Relógio da morte”16 e no conto em forma de feuilleton-reportagem “O relógio da vida e da morte”17. Na reportagem, Bulgákov não tece nenhum comentário a respeito da personalidade de Lênin nem de sua atuação como presidente do Conselho dos Comissários do Povo. Trata-se de um registro seco da cronologia dos acontecimentos e de suas interferências no cotidiano moscovita18. Lênin aparece apenas como “o imóvel rosto amarelo conhecido de todo mundo”, enquanto a multidão que se apertava na fila para as exéquias do líder é comparada a “uma serpente negra”. Já em “O relógio da vida e da morte”, o narrador faz a crônica dos acontecimentos como alguém19 que estivesse na fila quilométrica diante da Casa das Uniões, para prestar sua última homenagem a Lênin. O resultado é uma mistura de conto e necrológio. Logo no início, a epígrafe, parodiando uma notícia de jornal20, dá o tom de solenidade próprio da situação que será narrada e introduz o leitor no clima de comoção geral. Ao mesmo tempo, inicia a elaboração da persona do narrador, que observará tudo na pele de um cidadão comum, figurante de um espetáculo coletivo. Ele também, a partir da notícia, percorrerá o mesmo caminho dos cidadãos-personagens da narrativa. Estará na longa fila-procissão, entrará na câmara-ardente e sairá novamente para a rua, como um anônimo na multidão. O conto divide-se em três momentos. No primeiro e no terceiro, o narrador capta o que se passa na praça. As vozes que ali se levantam não têm identidade própria, servem para dar corpo à massa. Nesses dois momentos, a 16 17 18 19 20 Escrito na manhã de 24/I/1924 e publicado no jornal O operário de Baku, em 1/II/1924. Publicado em 27 de janeiro de 1924, no jornal moscovita O apito. Ao que tudo indica, percebendo a importância histórica da morte de Lênin, Bulgákov teria escrito uma espécie de diário dos acontecimentos que serviu de material básico para a elaboração tanto de “Relógio da morte” como de “O relógio da vida e da morte”. Certamente o próprio Bulgákov, que presenciou os funerais não só como cidadão mas como escritor-jornalista atrás de assunto para suas crônicas do cotidiano. “Na Casa das Uniões, no Salão das Colunas, está o ataúde com o corpo de Ilítch. O dia inteiro, noite e dia, reúnem-se na praça enormes aglomerações de pessoas, as quais, fluindo em filas intermináveis, que se perdem nas ruas e travessas vizinhas, desembocam no Salão das Colunas. “É a Moscou operária indo prestar sua última homenagem aos restos mortais do grande Ilítch.” – 100 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 89-108, 1998. multidão é personagem, e o coro de vozes disparatadas expressa a “vox populi”. No primeiro, predomina o sentimento de estupefação diante do ocorrido. Tropas do Exército Vermelho organizam a fila para a visitação, contêm a massa ululante, que se encontra acéfala com a morte do líder. O nome dele não é mencionado uma única vez no conto inteiro, mas sua presença páira sobre todos, irradia-se a partir da câmara-ardente e toma a cidade. A onipresença do morto é tão intensa na primeira parte da narrativa, que faz lembrar o momento da eucaristia de uma cerimônia cristã21. Não foi um cidadão qualquer a morrer, foi o “grande homem”, o condutor dos rebanhos vermelhos. Bulgákov detecta na multidão o desejo ainda latente de se canonizar o falecido, como se pode observar nesse breve diálogo: “– A morte chega para todos... “– Pense com a cabeça, o que está dizendo? Você morto, por exemplo, não faz a menor diferença. Que diferença faz, cidadão, quer me dizer? “– Está me ofendendo! “– Não tive a intenção, só quero que perceba. Morreu um grande homem, portanto, silêncio. Faça um minuto de silêncio, pense um pouco sobre o que aconteceu...” No segundo momento, o narrador reconstrói o fausto, a solenidade do ambiente, o silêncio que se impõe na câmara-ardente ante o corpo morto. A reconstrução é sóbria, a linguagem perde o colorido popular presente no primeiro momento e torna-se solene, comedida, espelho da comoção que tomava o visitante e o fazia sentir-se comungando do sentimento geral da perda. Novamente Lênin não é nomeado. O narrador o descreve pelos traços físicos mais característicos. Ele é apenas “o homem que a morte condenou ao silêncio eterno”: “No caixão sobre um pedestal vermelho jaz o homem. Ele está amarelo como cera, sobressaem as bossas da testa de sua cabeça calva. Ele 21 Bulgákov partilhava da opinião dos filósofos N. Berdiáiev e S. Bulgákov, segundo a qual o marxismo em sua vertente russa apropriou-se de uma série de colocações do cristianismo e deturpouas, prometendo a salvação e o paraíso na terra através do comunismo. – 101 – ANDRADE, Homero Freitas de. Lênin,Trótski e Stálin por Bulgákov. se cala, mas tem o semblante de um sábio, altivo e sereno. Ele está morto. Metido num paletó cinza, e sobre o cinza uma mancha vermelha, a Ordem da Bandeira. As bandeiras nas paredes do salão branco formam um xadrez em negro e vermelho, negro e vermelho. Uma ordem gigantesca, uma reluzente rosácea de ramos de luzes, e no centro dela, sobre o pedestal repousa o homem que a morte condenou ao silêncio eterno. “Como com sua própria palavra incitou em palavras e ações incontáveis capacetes de guardas, assim matou agora com seu silêncio as guardas e o rio de gente que vem para o último adeus. “A guarda está em silêncio, fuzis colados às pernas, e em silêncio flui o rio.” Mas esse “homem”, que incitava a multidão a segui-lo com suas palavras quando vivo22, também já não é um simples homem morto. Tornouse um símbolo dentro do cenário e do espetáculo montados com esse propósito. O líder despojado, que em vida recusara todas as honrarias e emulações, agora calado para sempre, não pode se rebelar contra aqueles que estão decididos a endeusá-lo, a fazer de sua imagem um elemento catalisador das massas. Tudo fora cuidadosamente preparado de modo a tornar imediata ao visitante a associação do homem vivo ao ícone em que o transformaram depois de morto: a gigantesca rosácea iluminada com seu ataúde no centro, as bandeiras vermelhas enlutadas e, ironia das ironias, a Ordem da Bandeira Vermelha em seu peito23. 22 23 Há indicações de que o segundo parágrafo do trecho citado tenha sido escrito por recomendação expressa do comitê de censura do jornal em que o escritor trabalhava (O apito). Era conhecida de todos a aversão que Lênin demonstrava pelos galardões. Ele mesmo se recusara a receber em vida qualquer uma das condecorações outorgadas pelo novo regime. E isso era alardeado aos quatro ventos como exemplo de despojamento pessoal, de dedicação desinteressada e absoluta à causa. Fazia parte da imagem pública do chefe. No entanto, o cadáver aparece com a Ordem da Bandeira Vermelha no peito. Esse mistério intrigaria a todos por um bom tempo e motivaria uma série de estudos de sovietólogos a respeito. Finalmente, mais de cinquenta anos depois da morte, “descobriu-se” que a fita pertencia ao administrador do Conselho dos Comissários do Povo e fora alfinetada à indumentária do finado, com a intenção óbvia de demonstrar, simbolicamente, que a morte do líder não representava qualquer possibilidade de ruptura na estrutura do poder. Afinal, corriam tantos boatos desde que Lênin adoecera... – 102 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 89-108, 1998. A Ordem constituía um gesto de desrespeito à vontade do falecido, à sua postura política, mas prenunciava o tipo de uso que fariam de sua imagem no futuro. Com esse gesto, ele passava de mentor intelectual e condutor do processo revolucionário à condição de chefe espiritual da URSS. E Bulgákov parecia estar sempre pronto a desmascarar os indícios de manipulação da figura de Lênin, a demonstrar que o homem se tornara uma espécie de prisioneiro da imagem que dele construiam. Tanto que inicia sua narrativa a partir do relógio da Torre do Salvador, lugar onde o entronizara na “História de chinês”. E vai mais longe, no parágrafo com que encerra a descrição do espetáculo fúnebre: “Tudo está claro. Vão acorrer até este ataúde durante quatro dias através do frio de rachar que faz em Moscou, e depois no decorrer dos séculos através dos longínquos caminhos das caravanas dos desertos amarelos do globo terrestre, lá, onde outrora, antes ainda do nascimento da humanidade, brilhava sobre o berço d’Ele a estrela que não se apaga.” O trecho, enigmático para um leitor da época, antecipa o caráter religioso de que se revestiria o culto à personalidade de Lênin durante a existência da URSS. Mas, então, nada disso estava claro, a despeito do que afirma o narrador. Ainda sequer tinham pensado em construir um mausoléu próximo à Torre do Salvador e muito menos em transformar o corpo de Lênin em relíquia, expondo sua múmia à veneração pública. Lênin torna-se a aparecer como personagem da ficção bulgakoviana no conto “Reminiscência...”, escrito também em 1924 e publicado no jornal O Ferroviário. O conto, elaborado a partir de materiais autobiográficos, ironiza a tendência da imprensa na época a publicar reminiscências, depoimentos e similares a respeito de Lênin24: “Muita gente, muita gente mesmo possui reminiscências ligadas a Vladímir Ilítch, e eu também tenho uma. É tão forte que livrar-me dela eu 24 Essa tendência, como não podia deixar de ser, era uma orientação da política cultural vigente e visava a formação de uma fortuna rememorativa do líder. No entanto, apareceram inúmeros textos de pessoas que jamais tinham tido qualquer contato com Lênin, que sequer o tinham visto pessoalmente. – 103 – ANDRADE, Homero Freitas de. Lênin,Trótski e Stálin por Bulgákov. não posso... Afinal, livrar-me como, se toda noite, mal as sanfonas de canos cinzas irradiam o calor e uma onda agradável vai enchendo o quarto, vêm-me à lembrança tanto a folha amarela de meu inesquecível requerimento quanto a katsavéika25 surrada de Nadiéjda Konstantínovna26?...” Na verdade, a reminiscência de Bulgákov está ligada à mulher de Lênin, que lhe arranjara acomodação quando de sua ida para Moscou em 1921. O governo não conseguia solucionar a questão da moradia, sobretudo após ter decretado que cada cidadão tinha o direito de ocupar, no mínimo, onze metros quadrados de espaço para morar. Famílias inteiras, quando não várias famílias, amontoavam-se num mesmo cômodo exíguo das recém-instituídas habitações coletivas. A ironia corre solta na voz do narrador ao retratar os percalços que marcavam o cotidiano miserável do cidadão moscovita às voltas com problemas de acomodação e outros logo ao término da guerra civil. E atinge o clímax, beirando o ridículo, quando o narrador revela que sua reminiscência sobre Lênin é produto de um sonho: “Acendi à noite um círio nupcial grosso e espiralado em ouro. A eletricidade fora cortada há uma semana já, e meu amigo pusera em uso as velas à luz das quais sua tia entregara o coração e a mão ao tio. A vela chorava lágrimas de cera. Desdobrei uma grande folha de papel em branco e pus-me a escrever algo que começava com as palavras: Ao Presidente do Conselho dos Comissários do Povo Vladímir Ilítch Lênin. Escrevi de um tudo naquele papel: como arranjara emprego, que ia sempre ao Departamento de Habitação, que ficava a ver estrelas a duzentos e dezessete graus negativos no alto da igreja do Salvador, e que me gritavam: “– Pode bater suas asinhas como um pato. “Nessa noite negra de carvão, em pleno frio (o aquecimento também não funcionava), adormeci estirado no sofá imundo e sonhei com Lênin. Ele estava sentado em sua poltrona atrás da escrivaninha, dentro do círculo de luz das lâmpadas, e olhava para mim. Eu também estava sentado numa cadeira, com minha peliça curta, e contava-lhe sobre as estrelas na alameda, sobre o círio nupcial e o presidente. 25 26 Casaco feminino curto em forma de bata (N. do T.). Nadiéjda Konstantínovna Krúpskaia Uliánova (1869-1939), mulher de Lênin (N. do T.). – 104 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 89-108, 1998. “– Pato eu não sou, não, pato não, Vladímir Ilítch. “Lágrimas corriam copiosamente de meus olhos. “– Ora...ora...ora... – respondia Lênin. “Daí pegou no telefone. “– Dê-lhe uma ordem para habitação coletiva com seu companheiro. Para que fique lá no quarto escrevendo versos sobre estrelas e outras tolices que tais. (...)” No sonho, Lênin aparece como numa fotografia de larga circulação à época. Ou seja, o narrador não sonhou com Lênin, e sim com uma das imagens do líder, que eram divulgadas oficialmente. A foto original mostra Lênin em seu gabinete de trabalho no Kremlin, o semblante sério mas afável. Porém, o narrador retocou essa imagem fotográfica, acrescentando-lhe uma auréola de luz como num ícone. No entanto, o “santo” dos bolcheviques reage no sonho como ser humano, comove-se diante do desespero do cidadão-escritor que não tem onde morar. E age quase como um deus, resolvendo um problema que ninguém mais podia resolver. Depois dos quatro textos aqui abordados, todos de 1924, Lênin não voltaria a ser personagem de Bulgákov, pelo menos não diretamente. Entretanto, traços característicos de Lênin foram ainda utilizados na construção da tipologia da personagem principal da novela “Os ovos fatais”27. Nessa novela fantástica, o zoólogo e professor Vladímir Ipátievitch Pérsikov descobre o “raio vermelho da vida”. Mas sua descoberta leva à criação involuntária de monstruosos répteis, que se tornam uma ameaça à humanidade. Esse raio vermelho e as desgraças decorrentes de sua utilização irresponsável simbolizam a revolução socialista na Rússia, que se iniciou sob o signo da construção de um futuro melhor e foi dar no terror e na ditadura. É como se Bulgákov tivesse pressentido que a experiência socialista, devido às mazelas que acabou gerando, não chegaria a bom termo. As relações entre Pérsikov e Lênin são sugeridas logo no primeiro capítulo da novela, “O curriculum vitae do Professor Pérsikov”. Pérsikov nasceu em 16 de abril de 1870, no mesmo mês e ano do nascimento de 27 Há tradução para o português em O diabo solto em Moscou (para um estudo da obra de Mikhail Bulgákov no Brasil), v. II; p.53-121 (Cf. Bibliografia). – 105 – ANDRADE, Homero Freitas de. Lênin,Trótski e Stálin por Bulgákov. Lênin. Por outro lado, a ação da novela começa no dia 16 de abril de 1928, dia e mês da volta do líder bolchevique à Rússia em 1917. No dia seguinte à sua chegada, Lênin apresentou as Teses de Abril, que conclamavam à revolução socialista. Segundo depoimentos de contemporâneos, Bulgákov considerava a chegada de Lênin e as Teses de Abril como um marco importante no caminho da Rússia para a Revolução de Outubro. Traços físicos e gestuais de Pérsikov, certos tiques e peculiaridades de pronúncia lembram Lênin: “Uma cabeça digna de nota, em forma de pilão, calva, com tufos de cabelos amarelados, que se eriçavam nas têmporas. (...) olhinhos brilhantes, miúdos, e ele era alto, encurvado. (...) ao falar algo em tom convicto e sentencioso, transformava o dedo indicador da mão direita num gancho e apertava os olhinhos. E como sempre falava em tom sentencioso, pois que em seu campo era de uma erudição absolutamente fora do comum, o gancho aparecia sempre diante dos olhos dos interlocutores do professor Pérsikov”. Como Lênin, o zoólogo também tinha dificuldade de pronunciar certos fonemas, tanto que o repórter que o entrevistou sobre a descoberta do raio vermelho entendeu que seu nome era Pévsikov. Mas Lênin não é o único que serviu de protótipo a Pérsikov. Além da “figura do zoólogo do Museu de Zoologia de Moscou (e até 1911 professor de zoologia da Universidade de Kíev), Alekséi Nikoláievitch Seviértsov, o qual Bulgákov conhecia e cuja casa frequentou algumas vezes”, como afirma a biógrafa do escritor M. Tchudakóva28, Pérsikov teria sido inspirado também no biólogo e patologista Alekséi Ivánovitch Abrikóssov29, que autopsiou o corpo de Lênin e extraiu-lhe o cérebro. O próprio nome de Pérsikov, Vladímir Ipátitch (na forma apocopada), aproxima-se sonoramente de Vladímir Ilítch. E não só: o patronímico Ipátitch, como infere o estudioso B. Sokolóv30, “alude, possivelmente, ao fato de que na casa Ipátieva, em Ekaterinburg, foram executados por ordem de Lênin a família dos Románov e o último imperador da Rússia Nicolau II”. Também a “erudição absolutamente fora do comum”, que distingue a personagem, é 28 29 30 Cf. :bpytjgbcfybt Vb[fbkf <ekufrjdf (Uma biografia de Mikhail Bulgákov), p. 242-243. O sobrenome Pérsikov é uma paródia de Abrikóssov. Cf. pywbrkjgtlbz <ekufrjdcrfz (Enciclopédia bulgakoviana), p. 258. – 106 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 89-108, 1998. comparável a de Lênin, tão louvada por seus contemporâneos. Finalmente, numa última alusão, Bulgákov acrescenta depois do final da novela a indicação “Moscou, outubro de 1924”, que corresponde ao ano da morte de Lênin e ao mês da Revolução bolchevique. Já em O Mestre e Margarida não são mais os traços característicos de Lênin a servirem de protótipo à composição das personagens. O que ocorre no romance é a parodização de alguns episódios da biografia do líder, e algumas características de Woland, o demônio prestidigitador que revira Moscou de pernas para o ar como Lênin e a Revolução de Outubro reviraram a Rússia, podem ser associadas à sua figura através dessa caracterização indireta. O mefistofélico Woland é tomado por um espião dos alemães tal como Lênin o fora pelo Governo Provisório após a Revolução de Fevereiro. Outro exemplo remete ao episódio em que o cão Tuzbuben ajuda a polícia a procurar Woland e seu séquito após o escândalo que este promoveu com seus números de magia negra no Teatro de Variedades. Foi encontrado no arquivo de Bulgákov, como informa Sokolóv, um recorte do Pravda, de 7/XI/1921, intitulado “Lênin na clandestinidade”, no qual se afirma que no verão e no outono de 1917 cães da polícia foram postos no encalço do líder dos bolcheviques, então muito bem escondido. Como a polícia e a matilha, tendo à frente Trief, o mais bem treinado entre os cães, não encontraram Lênin em 1917, assim os policiais e Tuzbuben não acham nem rastro de Woland. Se Bulgákov disse o que pensava de Lênin somente em suas obras literárias e ainda assim através de metáforas – não há registro de que tenha emitido sua opinião sobre o líder em discussões públicas ou em conversas particulares –, o mesmo não aconteceu em relação a Trótski e a Stálin. BIBLIOGRAFIA ANDRADE, H. F. de – O diabo solto em Moscou (para um estudo da obra de Mikhail Bulgákov no Brasil). São Paulo, Tese de Doutorado em Teoria Literária, FFLCH/USP, 1994; 2 vv. – 107 – ANDRADE, Homero Freitas de. Lênin,Trótski e Stálin por Bulgákov. <EKUFRJD- V== (BULGÁKOV, M.) – Cj,hfybt cjxbytybq d gznb njvf[ (Obras completas em cinco volumes)= Vjcrdf- {elj;tcndtyyfz Kbnthfnehf- 1989= <EKUFRJDF- T= b KZYLHTC- C= (BULGÁKOVA, E. e LIANDRES, S. orgs) – Djcgjvbyfybz j Vb[fbkt <ekufrjdt (Reminiscências sobre Mikhail Bulgákov). VjcrdfCjdtncrbq Gbcfntkm- 1988= RBHBKTYRJ- R= (KIRÍLENKO, K.) – ^Celm,f kbnthfnehyjuj yfcktlbz V= F= <ekufrjdf^ (“O destino da herança literária de M. A. Bulgákov”), in Dcnhtxb c ghjiksv (Encontros com o passado). Vjcrdf- Heccrfz Rybuf- 1996= CJRJKJD- <= (SÓKOLOV, B.) – zywbrkjgtlbz <ekufrjdcrfz (Enciclopédia bulgakoviana). Vjcrdf- Kjrbl_Vba- 1996= XELFRJDF- V= (TCHUDAKÓVA, M.) – :bpytjgbcfybt Vb[fbkf <ekufrjdf (Uma biografia de Mikhail Bulgákov)= Vjcrdf- Rybuf- 1988= ________ ^Vb[fbk <ekufrjd b Hjccbz^ (“Mikhail Bulgákov e a Rússia”), in Kbnthfnehyfz Ufptnf (Gazeta Literária) n. 19, 15/V/1991; c= 1- 11= Abstract: The following text is the first part of a study about the literary representation of Lenin, Trotsky and Stalin in the work of the russian writer Mikhail Bulgakov. Keywords: Bulgakov, Lenin, Russian Revolution. – 108 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 109-120, 1998. O SISTEMA DE ESCRITA DA LÍNGUA JAPONESA E ALGUNS ASPECTOS DA SUA HISTÓRIA Junko Ota* Resumo: O presente artigo tem como objetivo descrever o atual sistema de escrita adotado pelos japoneses e abordar alguns aspectos das letras que contribuíram historicamente para a formação desse sistema. Palavras-chave: língua japonesa, história da escrita, ideogramas chineses, fonogramas. 1. O SISTEMA ATUAL DE ESCRITA JAPONESA É possível afirmar que o atual sistema de escrita da língua japonesa pressupõe dois sub-sistemas, uma vez que é constituído de: a) ideogramas chineses, comumente chamados de kanji “letras da dinastia Hang”, com as leituras chinesa e japonesa, e b) dois tipos de fonogramas, hiragana e katakana. Os fonogramas ou silabários representam o som silábico, cada letra representando o som de uma vogal ou da junção de uma consoante e uma vogal, o que os distinguem essencialmente dos ideogramas que representam um conceito, uma idéia, cuja leitura pode ser chinesa ou japonesa. Usam-se hoje 46 de cada um dos fonogramas e suas combinações, e por volta de dois mil ideogramas para escrever o japonês. Esses dois sistemas de escrita totalmente diferentes coexistem hoje na língua japonesa, como resultado da evolução e também da permanência dos ideogramas chineses introduzidos no Japão. * A autora é Profa. Dra. do Departamento de–Línguas 109 – Orientais da FFLCH/USP. OTA, Junko. O sistema de escrita da língua japonesa e alguns aspectos da sua história. Há, no mundo, poucas línguas que possuem tal complexidade, podendo-se estabelecer correspondência com a língua coreana na Coréia do Sul, onde se tem adotado a escrita mista de fonograma hangul e ideogramas chineses, porém a política lingüística atual do país parece ser a de usar cada vez mais o hangul, substituindo-se gradualmente os ideogramas chineses, diferentemente do Japão, que tem optado pela manutenção do seu uso. Porém, não se usam hoje no Japão todos os ideogramas chineses existentes. O maior dicionário de ideogramas, Daikanwa Jiten “Grande Dicionário de Ideogramas Chineses/Japoneses”, do lingüista japonês Tetsuji Morohashi, compilado em 1959, registra 49.964 caracteres no total, incluindo as variantes de todos os caracteres que existiram até então. De fato, existiu a preocupação de se restringir o número de ideogramas em uso já em 1923, quando o Ministério de Educação instituiu pela primeira vez o Quadro de Ideogramas para Uso Comum, e seguidamente em 1942, mas nenhum quadro foi colocado em prática devido aos incidentes do terremoto e da guerra. O primeiro quadro que realmente foi instituído foi o Quadro de Ideogramas Atuais, Tôyô Kanjihyô, em 1946, estabelecendo 1.850 caracteres que incluíam os 881 para ensino obrigatório no primeiro ciclo. O Quadro de Ideogramas Usuais, Jôyô Kanjihyô, atualmente vigente, foi instituído em 1981 pelo Ministério de Educação para servir de parâmetro na restrição do uso geral de ideogramas em textos oficiais e nos meios de comunicação, e contém 1.945 caracteres, sem contar os 166 para uso em nomes próprios. Dentro desse Quadro, 996 são ensinados no 1º ciclo do ensino obrigatório, do 1º ao 6º ano do primário do Japão. Os ideogramas utilizados no Japão são majoritariamente chineses, mas há também aqueles criados pelos próprios japoneses, chamados “letras vernáculas”, kokuji, sobretudo para representar o léxico referente às espécies da fauna e da flora inexistentes na China. Dentro do sistema de escrita japonesa, os ideogramas são na sua maioria associados a dois tipos de leituras: um, de origem chinesa adaptada ao sistema fonológico japonês e outro, da tradução japonesa de conceitos representados por ideogramas. A leitura (de origem) chinesa é usada predominantemente quando ocorre a combinação de dois ou mais caracteres – 110 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 109-120, 1998. na expressão de um determinado conceito. A leitura japonesa de ideogramas ocorre predominantemente quando o ideograma é usado para escrever os termos de origem japonesa, podendo ser encontrada, por exemplo, nas raízes de verbos e adjetivos. Enquanto os ideogramas desempenham um papel fundamental no léxico devido à carga informacional neles contida, o fonograma hiragana, por sua vez, representa as partes essenciais da estrutura frasal japonesa: os morfemas indicadores de sujeito, objetos direto e indireto, lugar, tempo etc. que ocupam a farte final de cada unidade sintática, além de expressões de negação, polidez, passado, volição, que se posicionam na parte final da frase.1 Ainda, as desinências flexíveis de verbos são sempre escritas em hiragana. Outro fonograma, o katakana, representa os empréstimos de línguas ocidentais e os nomes estrangeiros, a maioria das expressões onomatopaicas, além de ser utilizado na substituição de termos usualmente escritos em outras letras, enquanto recurso estilístico. No Japão, adota-se hoje o sistema de escrita que usa juntamente os ideogramas e os fonogramas hiragana e katakana, constituindo o “texto misto de ideogramas e fonogramas” (kanji kana majiri bun), embora se faça também uso de outras letras, como as de alfabeto romano. Há quem afirme, no entanto, que o hiragana e os ideogramas assumem um papel fundamental, como por exemplo Satake (1988). O teórico emprega o nome de “texto misto de ideogramas e hiragana” (kanji hiragana majiri bun), excluindo o fonograma katakana. Ele considera a relevância do hiragana sobre o katakana dentro da frase, pois aquele representa elementos gramaticais e modais, enquanto este se limita a representar palavras de origem ocidental e expressões onomatopaicas. Mas, na nossa opinião, não é desprezível o número de estrangeirismos que tem aumentado sobretudo após a segunda guerra mundial que, apesar da alta rotatividade, tem marcado sua presença dentro do léxico da língua japonesa. Apresentamos, a seguir, um exemplo contendo ideogramas e fonogramas: 1 A estrutura frasal da língua japonesa constitui-se de SOV (sujeito+objetos+verbo), contrastandose com a estrutura da língua chinesa que apresenta a ordem de SVO (sujeito+verbo+objeto). – 111 – OTA, Junko. O sistema de escrita da língua japonesa e alguns aspectos da sua história. Restoran-de / nihongo-no / sensei-o / mi-mashi-ta. (restaurante-LOCAL/japonês-GENITIVO/professor-O.DIRETO/verPOLIDEZ-CONCLUSIVO) “Vi o professor de japonês no restaurante” Os ideogramas, que expressam noções e idéias, representam no exemplo citado o substantivo nihongo “língua japonesa”, sensei “professor” e a raiz do verbo miru “ver”. O fonograma hiragana grafa elementos considerados relacionais, como morfemas que indicam a relação sintática dos elementos constituintes da oração, tais como o de indicando lugar, no indicando o caso genitivo e o de acusativo, bem como os morfemas de polidez mashi, de ação conclusa ta etc. O katakana, por sua vez, é empregado para escrever palavras de origem estrangeira, principalmente ocidental, como resutoran, proveniente do inglês restaurant. Há uma divisão clara de papéis entre os ideogramas – representando conceitos e noções em termos de origens japonesa e chinesa – o hiragana – indicando funções sintáticas e elementos modais, e o katakana – representando termos de origem ocidental e onomatopéias. As formas das letras se distinguem pelo maior grau de complexidade dos traços nos caracteres chineses e dentre os fonogramas, o hiragana se caracteriza por seus traços arredondados e o katakana, por seus traços angulosos. Apoiado nessas características próprias de cada tipo de letra, o texto, em seu conjunto, constitui uma organização de diferentes tipos de escrita, cada um com suas convenções. É justamente essa variedade visual existente no texto que dispensa a separação entre um termo e outro, ou seja, wakachigaki “separação de escrita” (Nomura: 1975). Uma pesquisa realizada em 1971 com jornais japoneses mostra que os ideogramas ocupavam 46,1% da totalidade de ocorrência, o hiragana 35,3% e katakana 6,1%, sendo que o restante foram alfabeto romano, numerais e símbolos (Kyôdô Tsûshinsha: 1971, apud Okimori: 1997), e acreditamos que o quadro não tenha sofrido grandes modificações até hoje. – 112 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 109-120, 1998. O texto em japonês é tradicionalmente escrito no sentido vertical mas, hoje, encontram-se também os escritos em linhas horizontais, principalmente em documentos e nos textos científicos com fórmulas contendo algarismos arábicos ou exemplos grafados em alfabeto romano. O sistema de escrita, inexistente no início da civilização japonesa, começou a tomar forma com a introdução dos caracteres chineses no Japão e, desde então, sofreu inúmeras modificações ao longo dos séculos, até chegar ao estado atual. 2. A INTRODUÇÃO DA ESCRITA NO JAPÃO E SUAS TRANSFORMAÇÕES A introdução dos ideogramas chineses no Japão foi certamente uma conquista importante e um marco na história do país, que até o século IV desconhecia a escrita. A primeira transmissão da escrita chinesa parece ter ocorrido entre séculos IV e V, através das inscrições em empunhaduras de espadas e espelhos de cobre trazidos da China. Livros chineses sobre filosofia e traduções chinesas de doutrinas budistas escritas originalmente em sânscrito foram trazidos ao Japão por volta dos séculos V e VI, e estudados pelos japoneses. Acredita-se que foi por volta desse período que os japoneses, eles próprios, passaram a estudar a escrita chinesa, reproduzindo textos em chinês na sua fase inicial. Mas entre as línguas chinesa e japonesa há diferenças muito grandes: a primeira é uma língua tonal, isolante e com a estrutura frasal SVO, e a segunda, uma língua predominantemente atonal, aglutinante e com a estrutura SOV. Não obstante as diferenças existentes entre as duas línguas, e mesmo com muitos dos primeiros escritores desconhecendo a fala chinesa, deu-se, no Japão do século VII, início à tradição da escrita de textos em chinês (kanbun), que teve continuidade, com maior ou menor variação, por muitos séculos até o fim do século XIX, antes da Revolução Meiji. Até o início do período Meiji, os japoneses, ainda voltados para a cultura milenar chinesa e inspirando-se nela cultural e filosoficamente, tinham a consciência de que o – 113 – OTA, Junko. O sistema de escrita da língua japonesa e alguns aspectos da sua história. texto marcado pelo tom formal ou oficial deveria ser escrito em estilo chinês. Atribui-se, ainda, ao conhecimento profundo da língua chinesa dos japoneses a facilidade com que se traduziram termos ocidentais na adequação aos novos tempos por ocasião da Revolução Meiji, quando se introduziu uma profusão de informações do Ocidente, um mundo até então desconhecido. O contato com a língua chinesa propiciou a prática de se escrever em chinês – foi o caso do registro histórico Nihonshoki, compilado sob ordem imperial em 720, e do registro Kojiki, compilado em 712, este já escrito em chinês com algumas adaptações (junkanbun). Mas escrever utilizando ideogramas chineses não era trabalho fácil, como registra Ôno Yasumaro no prefácio da obra Kojiki: “Entretanto, é um tempo antigo, todas as palavras e os significados são simples e expressar-se em frases e montar os versos utilizando-se das letra56 é deveras difícil. Escrevendo tudo através do estilo japonês57, não coincidiriam as palavras e os sentidos58 e, escrevendo tudo através do estilo chinês59, a narrativa dos fatos tornar-se-ia deveras longa.” 56 Isto é, expressar-se por escrito por meio dos ideogramas chineses. Estilo japonês, literalmente “leitura pelo significado”, é a utilização do ideograma chinês no seu aspecto semântico. 57 Isto é, não haveria coincidência dos significados dos ideogramas com o das palavras antigas em japonês. 58 59 Estilo chinês, literalmente “leitura pelo som”, é a utilização do ideograma chinês com o aproveitamento apenas de seu caráter fonético. (de Kojiki, tradução e notas de Mietto: inédita) A ORIGEM DO FONOGRAMA HIRAGANA Ao longo do exercício árduo de se escrever em letras estrangeiras, os japoneses passaram primeiramente a escrever os nomes próprios japone– 114 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 109-120, 1998. ses, utilizando caracteres chineses. Para tanto, fizeram uso de ideogramas levando em conta apenas o som atribuído a cada um deles, sem considerar o conceito associado. A primeira inscrição que atesta tal fato data do ano 471, na espada encontrada na província de Saitama. Posteriormente apareceram as frases inteiras escritas em japonês. As citadas obras Nihonshoki e Kojiki continham poemas compostos segundo a sintaxe japonesa, aproveitando os ideogramas chineses como fonogramas, ignorando-se portanto os conceitos a eles associados. Aparecem então os morfemas, indicando funções gramaticais próprias da língua japonesa, representados pelos mesmos ideogramas. Mas foi na antologia poética Man’yôshû, considerada a primeira obra literária japonesa, compilada em 759, que se vêem registrados poemas predominantemente escritos em sintaxe japonesa com o aproveitamento apenas da parte fonética dos ideogramas. A alta incidência dos ideogramas utilizados para representação como fonogramas nessa obra deu-lhes a denominação de man’yôgana, literalmente “fonograma Manyô”. Essa representação fonogramática de ideogramas tem seus precedentes na própria língua chinesa, em sua utilização para a transcriçao de nomes próprios estrangeiros e de orações em sânscrito. Porém, o uso do man’yôgana acarretava alguns problemas: a) a correlação som/letra tornava a escrita extensa demais, como já havia apontado com precisão Ôno Yasumaro no prefácio de Kojiki, uma vez que cada som deveria ser representado por um ideograma; b) a escrita era trabalhosa porque cada ideograma possui vários traços; c) a apreensão imediata do significado dos termos tornava-se bastante prejudicada, devido à utilização de ideogramas originariamente portadores de conceitos. Assim, a partir do man’yôgana que foi escrito em forma cursiva, desenvolveu-se na sociedade aristocrática de por volta do século IX o fonograma hiragana, que se manifestava nos diários, cartas e poemas trocados pelos nobres entre si. Usava-se predominantemente a grafia hiragana, com alguns poucos ideogramas, buscando-se um efeito estilístico pela harmonia das letras de diferentes tamanhos, com inclinações diversas, pela – 115 – OTA, Junko. O sistema de escrita da língua japonesa e alguns aspectos da sua história. utilização do claro e o escuro da caligrafia a nanquim, além do cuidado com a escolha do papel. Com relação a textos em prosa, havia no Japão, até o fim do século VIII, diferentes tipos de textos: em chinês autêntico; em chinês com algumas adaptações para a sintaxe japonesa; em japonês, porém com man’yôgana (os ideogramas utilizados como representação de som); e ainda, um tipo de texto chamado senmyô, em que os ideogramas em tamanho maior representavam os conceitos próprios, e os ideogramas em tamanho menor eram os man’yôgana. O texto de estilo senmyô era usado para ordens imperiais e orações para rituais xintoístas e supõe-se ser a forma que deu origem ao atual sistema de escrita, uma vez que os man’yôgana passam a ser substituídos pela sua forma cursiva, o hiragana. A ORIGEM DO FONOGRAMA KATAKANA Outro fonograma, o katakana, são letras formadas de partes de ideogramas, tendo sido criado também por volta do século IX pelos monges e nobres letrados. A origem do katakana é atribuída a anotações inseridas em textos chineses para facilitar sua leitura/tradução. A diferença sintática existente entre as duas línguas fez com que os monges e nobres japoneses, estudiosos de sutras budistas e de textos chineses, desenvolvessem um sistema de leitura chamado kanbun kundoku2 “leitura japonesa do texto chinês”, para adaptar o original chinês à leitura ou tradução em japonês, a língua-alvo. Os materiais existentes indicam que no Japão, desde o século VIII até o século XIV, praticava-se a leitura japonesa dos textos chineses por esse sistema de kanbun kundoku. É um método de leitura voltado ao processo de tradução, com certas adaptações, pois visa a apoiar-se no texto em chinês autêntico. Com a finalidade de facilitar a lei2 Segundo Kindaichi (1995), o sistema de leitura do texto chinês em língua do país existiu também em outras línguas que tiveram contato com a cultura chinesa, como o coreano, uygur(língua falada em Uygur, atual região noroeste da China) e vietnamita. O modo de leitura diferia ligeiramente de uma língua para outra. – 116 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 109-120, 1998. tura, os monges e estudiosos de textos chineses escreviam nas entrelinhas os man’yôgana, só representando o som, que foram posteriormente substituídos por pontos e sinais marcados ao redor dos caracteres do texto principal ou sobre os mesmos. A marcação desses sinais era feita ora com pó branco (gofun) ora com tintas de cor vermelha, preta, azul anil, verde, ou, em alguns casos especiais, era feita mediante riscos no papel, utilizando objetos rígidos como marfim, chifre, bambu e outros. Havia diferentes formas de adaptação para a leitura/tradução do chinês para o japonês. Como a seqüência sintática do chinês difere da do japonês, os estudiosos inseriam numerais ou sinais de inversão, chamados kaeriten “pontos de inversão”, indicando que a ordem de determinada parte da oração deve ser invertida, para facilitar a leitura. O símbolo era colocado ao lado esquerdo superior do trecho onde deveria ocorrer a inversão, que valia tanto para unidades sintáticas ou partes da oração. Assim, por exemplo: a) a locução [não √ ler] em chinês, com sinal de inversão no meio, será lido [ler não], de acordo com a regra gramatical japonesa; e b) as unidades sintáticas [Eu estudo 2 os textos chineses 1] em chinês, que será lido em japonês:[ Eu os textos chineses estudo], seguindo a orientação dos numerais. Apresentamos a seguir um trecho de texto chinês (kanbun) com a inserção de numerais citados no item b: n. 2 n. 1 – 117 – Fonte: Bunkachô (org. 1985) OTA, Junko. O sistema de escrita da língua japonesa e alguns aspectos da sua história. Uma outra adaptação consistia em escrever as letras denominadas kanaten, nas entrelinhas do texto chinês, para indicar os morfemas próprios da língua japonesa. Eram utilizados man’yôgana, sua forma cursiva hiragana e katakana, com a predominância deste. Outra adaptação era a inserção de sinais chamados okototen (são pontos, linhas retas, cruzadas, círculos, tais como: . – | \ / O ^ + ), que se convencionou para indicar morfemas do japonês, a língua-alvo, porém inexistentes na língua-fonte. Esses sinais, em cores diferentes da do original, eram aplicados ao redor dos ideogramas, ou seja, em determinada parte da margem quadrada que cerca os ideogramas ou, em alguns casos, até sobre as letras, como por exemplo, no centro do quadrado. Apresentamos um trecho do comentário sobre o sutra Amida-kyô, com okototen, marcado com as bolinhas claras ao redor dos ideogramas: Os pontos de okototen indicavam ora morfemas indicadores de função sintática, ora morfemas flexíveis indicando passado, negação, polidez, suposição etc., verbos auxiliares e de tratamento, entre outros. As aplicações de okototen tiveram sua fase de pleno uso em séc. VIII a XII e depois começam a – 118 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 109-120, 1998. declinar, tendo sido completamente substituídos por kanaten por volta do século XVII, quando as técnicas de impressão já estavam desenvolvidas. Juntamente com os textos chineses marcados pelas anotações, diferentes tipos de textos anteriormente citados permaneceram ainda nos séculos posteriores, acrescentando-se o texto em estilo japonês (wabuntai), em que prevalece a sintaxe japonesa, e as letras, seguindo o man’yôgana em estilo cursivo, passam a ser hiragana. O texto ao estilo senmyô passa a ser escrito com ideogramas (com seu conceito próprio) e com katakana, e não mais com man’yôgana. Esse estilo manifesta uma influência muito grande dos textos ao estilo de kanbun kundoku, ou seja, texto que reproduz o estilo de tradução literal do chinês para o japonês, sendo adotado também para as obras literárias em prosa, como por exemplo o Konjaku Monogatari “Narrativas de Agora e Outrora”. Assim, o katakana passa a ser usado para suprir a ausência dos morfemas e partes flexionais inexistentes em textos de língua chinesa, em substituição aos diferentes sinais usados para tal fim. Se, por um lado, essas formas bastante abreviadas de ideogramas contribuíram para o anotador acelerar o processo de sua inserção nos textos, por outro, facilitaram o trabalho dos leitores que puderam, assim, distingui-las dos caracteres ideogramáticos do texto original. Ainda, o katakana tinha um caráter de notação provisória, sendo funcionalmente sempre subordinado aos ideogramas. Esperava-se dele apenas a função auxiliar, e seu uso era restrito ao nível do indivíduo ou de pequenos grupos de pessoas como, por exemplo, grupos de monges de um determinado templo. Constatamos, ainda, que no Japão antigo, o ideograma tinha o estatuto de “letras de verdade” mana, em contraposição a “letras provisórias”, kana, nome genérico para designar os fonogramas, sendo que o hiragana tinha um caráter mais intimista e particular, estendendo-se seu uso às camadas mais populares em épocas posteriores, e o katakana assumia uma função auxiliar dentro do âmbito da oficialidade onde reinavam os ideogramas, usados pela camada dos intelectuais. Os fonogramas, existentes desde o século IX, tiveram sua aceitação social e oficial somente por volta do século XIX, quando houve a consoli– 119 – OTA, Junko. O sistema de escrita da língua japonesa e alguns aspectos da sua história. dação do Movimento da Unificação das Línguas Falada e Escrita, Genbun Icchi Undô, movimento resultante da grande diferença constatada entre os estilos da fala (kôgotai) e da escrita (bungotai). Mas a presença dos dois fonogramas e os ideogramas se manifestou ao longo dos séculos em diferentes tipos de textos, caracterizando cada um de seus estilos. BIBLIOGRAFIA BUNKACHÔ (org. 1985) Kokuhô 1a, Shoseki II “Tesouros Nacionais 10, Escrituras II ” Tokyo, Mainichi Shinbunsha. FURUTA, Tosaku e TSUKISHIMA, Hiroshi (1972) Kokugogakushi. “História da língua japonesa”. Tokyo, Tokyo Daigaku Shuppankai. HABEIN, Yaeko Sato (1984) The History of the Japanese Written Language. Tokyo, Univ. of Tokyo Press. KANEDA, Hiroshi & MIYAKOSHI, Masaru (1989) Shintei Kokugoshi Yôsetsu. “Considerações essenciais da história da língua japonesa – edição revisada”. Tokyo, Shûei Shuppan. KOKUGO GAKKAI(1986) Kokugoshi Shiryôshi “Materiais referentes à História da Língua Japonesa”. Tokyo, Musashino Shoin. MIETTO, Luiz F. M. R. (1996) Apresentação e estudo do processo de elaboração da obra Kojiki. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Departamento de História, FFLCH-USP. NOMURA, Masayuki (1975) In: MORIOKA, Kenji (org.) Nihongono Moji. “As letras da língua japonesa”, Tokyo, Gakuseisha. OKIMORI, Takuya (org. 1997) Nihongoshi “História da Língua Japonesa”. Tokyo, Ôfûsha. SATAKE, Hideo (1988) “Kana no Yakuwari” “As funções de Kana”. In: Nihongo Hyakka Daijiten “An Encyclopaedia of the Japanese Language”. Tokyo, Tainskûkan. SATO, Kiyoji (org. 1986) Kokugoshi “História da Língua Japonesa”. Vol.1. 2. ed., Tokyo, Ôfûsha. Abstract: The present article aims to describe today Japanese writing system and analyse some of its historical aspects contributed for the formation of the system. Keywords: Japanese language, history of writing system, Chinese ideograms, phonograms. – 120 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 121-124, 1998. AL-INSAN, L’HOMME, CE GRAND OUBLIEUX Luiz Jean Lauand* Résumé: Le texte qui suit rétablit la relation fondamentale qui existe entre l’être humain et la mémoire et ses reflets sur l’éducation, tout en envisageant les traditions orientale et occidentale. Mots-clef: Mémoire, être humain, éducation, tradition. LA TRADITION OCCIDENTALE1 L’homme est fondamentalement, un être qui oublie! Dans cette caractérisation anthropologique aigüe coïncident les traditions de sagesse orientale et occidentale. Parmi les grecs, nous trouvous déjà l’extraordinaire rôle attribué à la Mémoire, Mnemosyne, dans les arts et la philosophie. “Mnemosyne, c’est la mère des Muses” dit Hésiode sept cents ans avant le Christ. Un siècle plus tard, Sappho affirme qu’il n’y a pas de mémoire sans les Muses (qui auraient hérité de leur mère, des aspects de leur don) et, après cent ans encore, Pindare établit aussi le caractère “souveneur” des muses dans son hymne grandiose, l’Hymne à Zeus. La scène est limpide : sous le pouvoir de Zeus, toute la confusion et toute la déformité ont donné lieu à l’harmonie et à l’ordre. Quand le monde atteignit sa perfection de beauté, Zeus, dans un banquet, demande aux dieux s’ils croient qu’il manque quelque chose. “Oui – c’est la réponse – il manque des créatures divines qui louent cette beauté”... * 1 O autor é Prof. Associado da Faculdade de Educação da USP e do Departamento de Línguas Orientais da FFLCH/USP. Tout au long de cette partie, nous avons suivi les chapitres de SIMONDON, Michèle, Mnémosyne, mère des Muses, in La mémoire et l’oubli dans la pensée grecque jusqu’à la fin du Ve. siècle avant J.C., Paris, Société d’édition “Les Belles Lettres”, 1982; de SNELL, Bruno, Pindar’s Hymn to Zeus, in The Discovery of Mind – The Greek Origins of European Thought, Cambridge, Harvard Univ. Press, 1953; et surtout, de PIEPER, Josef, Nur der–Liebende 121 – singt, Schwabenverlag, 1988, p.35 et ss. LAUAND, Luiz Jean. Al-Insan, l’Homme, Ce Grand Oublieux. Ce choeur de poètes ne s’exprime pas seulement au sujet de l’art ou de la philosophie de l’art; il s’exprime aussi et surtout, de profondes convictions anthropologiques; l’homme est fondamentalement, un “oublieux”: d’où le besoin des filles de Mnemosyne pour qu’il puisse se souvenir. C’est pour cette même raison que les grands penseurs de la tradition occidentale considéraient les découvertes philosophiques non exactament comme un “tomber”sur quelque chose de nouveau, insolite, mais précisément en tant que dé-couvertes: amener à la conscience quelque chose de déjà vu, de déjà connu mais qui, par une raison quelconque n’était pas restée dans la conscience. Et tout d’un coup, un insight, une lumière intérieure permet de s’apercevoir de la réalité déjà vue: une ratio, jusque là, couverte. Ainsi, la mission de la Philosophie n’est pas non plus celle de nous présenter quelque chose de déjà vécu et su qui, cependant, restait inaccessible: justement ce qui s’exprime par le mot souvenir. Il est évident que tout en affirmant le caractère “oublieux” de l’homme, on n’affirme pas qu’il oublie tout, mais surtout – et c’est presque une constatation d’ordre empirique – l’essentiel. En vérité, l’homme se souvient de beaucoup de choses: naturellement, lui, “créature triviale” (Guimarães Rosa) n’oublie pas de vérifier sa monnaie, n’oublie pas, non plus, la date de l’interview pour un nouvel emploi, ni la date du dernier match d’un championat et même pas des réalités qui composent la routine du quotidien. Beaucoup plus facile est le fait que précisément devant les sollicitations toujours urgentes du “journal des jours” (Guimarães Rosa), on puisse oublier les grandes vérités, comme la grandiosité de la création divine ou l’inexorable réalité de la propre mort. Ou, comme dit Dieu par la bouche du prophète Jérémie: “La fille, oublie-t-elle ses ornements? La fiancée, sa ceinture? mais mon peuple M’a oublié à jamais (Jér,2,32). Le remède pour cet oublieux-né c’est l’art (Pindare) et la philosophie en tant que reminiscence (Platon)2 . 2 La religion a aussi un caractère souveneur. PIEPER se rapporte à la distinction oportune faite en anglais entre remember (se rappeler) et remind (faire rappeler). Les vraies philosophie, art et religion nous font rappeler (remind) les vérités fondamentales qui, pendant la routine d’au jour le jour, ont tendance à “tomber” dans l’oubli. – 122 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 121-124, 1998. Pour conclure, encore un témoignage de la tradition occidentale qui provient de la théologie de S. Thomas: la mémoire est une puissante vertu intellectuelle-morale, une partie importante de la principale des vertus cardinales, la prudentia. D’où l’affirmation de S. Thomas sur la mission décisive de la méditation: maintenir vivant le souvenir de l’enthropique devant l’enthropique tendance à l’émoussement . LA TRADITION ORIENTALE Si cette façon oublieuse d’être est considérée, comme nous disions, une caractéristique essentielle de l’être humain dans l’anthropologie classique de l’Occident, dans la tradition orientale, telle considération est encore plus radicale. Dans la langue arabe, depuis des temps immémoriaux, le mot pour l’être humain3 est Insan4 . La surprennante profondité anthropologique contenue dans ce mot, se manifeste quand nous faisons attention à son signifié littéral, donnant emphase à une caractéristique humaine qui s’est “absolutisée” pour désigner l’homme: Insan – dérivé du verbe nassa / yansa, oublier – indique celui qui oublie. L’infinie sagesse de la langue arabe, tout en désignant l’homme par Insan, l’ “oublieux”, se trouve confirmée par le fait que le parleur arabe luimême ne s’aperçoit pas, au jour le jour, de ce fait. D’où le vers judicieux: Wa ma sumya al-insan insanan illa linissyanihi L’être humain (Insan = être humain ou “oublieux”) ne fut appelé oublieux que par son oubli. Evidemment, il y a dans la formulation originale un jeu de mots délicieux, comme si on disait, en français, toujours à cause de tous les jours. 3 4 Proche à l’allemand der Mensch. Dans l’arabe, Insan est l’un des très rares mots utilisés indistinctement au masculin et au féminin – 123 – LAUAND, Luiz Jean. Al-Insan, l’Homme, Ce Grand Oublieux. On peut, donc, comprendre que dans la Bible, Dieu se présente fréquemment comme “celui qui n’oublie pas” en opposition à l’ “oublieux” par excellence, Insan. Est-ce qu’une femme peut oublier celui qu’elle allaite? Même si elle l’oubliait, Moi je ne t’oublierais pas (Is 49,15). Et l’homme dans sa prière, demande à Dieu “souveneur”: depuis Moïse (Ex 32,13) jusqu’au bon larron (Lc 23,42), la Bible est remplie de prières: “Souviens – Toi, ó Seigneur...” L’oubli humain est fréquemment diagnostiqué comme auto-suffisance qui provient de la prospérité: “Qu’il arrive, dit Dieu, à l’entrée du peuple dans la terre promise, d’où jaillit lait et miel – qu’après avoir mangé à satiété ... et augmenté ton or etc., tu viennes à oublier le Seigneur, ton Dieu (Dt 8, 12 et ss). Et en fait, Jesurun s’est engraissé et a oublié (Dt. 32,15). “Moi, je les ai fait paître et ils se sont rassasiés; une fois rassasiés, leur coeur s’est exalté et, pour cela, ils M’ont oublié” (Os 13,6). Conscient du fait que l’homme est Insan, oublieux, l’Orient développa une pédagogie – méprisée, oubliée et incomprise par l’homme occidental contemporain – la pédagogie du dhikr, la pédagogie du souvenir, la pédagogie fondée sur la répétition, sur le savoir par coeur5 , sur les fêtes, les gestes, les rituels... L’homme occidental d’aujourd’hui est tellement déraciné (il oublie même sa condition d’oublieux ...) si écarté de la sagesse, si auto-suffisant dans son habitat technologiquement domestiqué, dans son monde si incolore et sans âme que ne se sensibilise par rien (exceptés, peut-être, les nouvelles formes de consommation ou les effets spéciaux ...). L’occidental pourrait s’exposer à la nécessaire complémentarité du dialogue avec l’Orient pour récupérer les racines d’une sagesse qui, finalement, ne sont que les racines de sa propre tradition occidentale. Resumo: O presente texto restabelece a relação fundamental que existe entre o ser humano e a memória e seus reflexos na educação, visando às tradições oriental e ocidental. Palavras-chave: memória, ser humano, educação, tradição. 5 Savoir de cor , avec le coeur, by heart. – 124 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 125-136, 1998. ELEMENTOS PARA A CONFIGURAÇÃO DO CAMPO LÉXICO DA “LINGUAGEM” (VÂC) NO RGVEDASAMHITÂ* Mário Ferreira** Resumo: É hoje consensual a constatação de que o Rgvedasamhitâ (= RV) constitui, no conjunto de suas expressões e torneios metafóricos, uma vasta reflexão sobre os poderes da linguagem. O presente texto tem por objetivo estudar, apontando analogias com conceitos lingüísticos, oito palavras que se empregam recorrentemente no RV e que configuram um campo léxico centrado no tema da “linguagem” (vâc). Palavras-chave: campo léxico da linguagem no Rgvedasamhitâ, vâc. Existe hoje consenso, entre os estudiosos da literatura sânscrita, no postulado de que o Rgvedasamhitâ (= RV) – coleção de textos ritualísticos, composta provavelmente ao redor do século XII a.C. – exibe marcada orientação poética e metalingüística, conforme o sentido que R. Jakobson (s.d.: 122-130) confere a tais conceitos, ou seja, como funções da linguagem nas quais se torna exponencial, respectivamente, ou a mensagem ou o código. Dada tal característica tipológica, que convoca para o texto uma função auto-reflexiva e especular, tem o RV sido utilizado como um verdadeiro “informante metalingüístico”, apto a lançar luz – quando elucidadas as metáforas nele contidas – sobre questões diversas pertinentes ao período cultural mais arcaico da Índia Antiga. Exemplo do emprego da obra na função referida encontra-se em D. M. Knipe (1975: passim), que decodifica as metáforas relativas ao fogo, constantes no texto, no fito de recuperar o * ** Na transcrição das palavras sânscritas, empregam-se caracteres redondos nos vocábulos em itálico ou – pelo critério contrário – caracteres itálicos em vocábulos em redondo, para assinalar, quando necessário, uma distinção diacrítica. Assim, em Rgvedasamhitâ, o /r/ redondo marca a vogal retroflexa, por oposição ao /r/ semivocálico, e o /m/ redondo assinala a nasal anusvâra, por oposição ao /m/ nasal bilabial. O acento circunflexo indica o alongamento das vogais. O autor é Prof. Dr. do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH/USP. – 125 – FERREIRA, Mário. Elementos para a configuração do campo léxico da “linguagem” (Vâc)... sentido ritualístico dos processos de evocação ígnea. São também exemplares, neste sentido, os trabalhos de A. Bergaigne (1878: passim) e J. Gonda (1963: passim), que descrevem as técnicas e procedimentos dos ritos védicos, com base igualmente no recurso da redução semântica das figuras de linguagem – constituindo tal opção de exegese estratégia bastante eficaz, porquanto, no RV, a operação do rito consiste em princípio num processo de manipulação dos planos da expressão e do conteúdo da língua sânscrita (a esse propósito, ver M. Ferreira [1997: passim]). É certo, contudo, que a área de maior relevo da obra, no que respeita ao seu potencial documentário, diz respeito ao tema da linguagem, o qual é, como se sabe, o ponto fulcral do discurso metalingüístico. Neste sentido, pode-se afirmar que o RV, exibindo-se, não obstante, como uma seleção de textos rituais de excelência, constitui em verdade uma imensa reflexão sobre a linguagem, de que se discriminam a forma, o uso e os poderes.1 O presente texto tem por objetivo aduzir elementos com vistas à compreensão do discurso metalingüístico inscrito no RV. Para tanto, analisa-se o significado de oito vocábulos – a saber: vâc, manman, mati, dhî/dhîti, dhisanâ, vipâ e dhâman – que se empregam recorrentemente na obra e que configuram um campo léxico centrado no tema da linguagem. Na análise das palavras referidas, procura-se: 1. relacionar os valores semânticos que o texto lhes atribui; 2. estabelecer as conexões que as palavras mantêm entre si; e 3. estabelecer possíveis equivalências, à luz dos conceitos da lingüística (tomando-se Dubois et alii [1973] como obra de referência), 1 Vários são os autores que têm assinalado o cunho marcadamente lingüístico da obra em questão. L. Renou (1955: 26) postula que, sendo “a técnica poética” do RV um “fim em si mesma”, tornase possível sustentar que “todo o RV é uma alegoria (de si mesmo)”. J. Kristeva (s.d.: 123), neste mesmo sentido, propõe que “os textos védicos procedem a uma sistematização ‘científica’ da fala”. E G.-J. Pinault (s.d.: 295; 297-298), em parágrafo de síntese, afirma: “Os poetas [do RV] dizem-nos que constituem equipes de associados, que rivalizam em engenhosidade e em profundidade no manuseio das palavras (...) A fala (...) expressa o brahman [o poder criador do rito], sendo virtualmente idêntica a ele. Além de favorável à reflexão sobre a atividade poética, a linguagem passa a ser uma realidade com a qual o compositor de hinos se vê confrontado: os acontecimentos rituais, cósmicos e míticos, evocados pelo poeta, constituem uma alegoria velada da poesia, de seus meios e de seus fins”. – 126 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 125-136, 1998. para o sentido das palavras em estudo. Quanto ao último item, cumpre ressaltar que não se trata aqui – por incorreto, do ponto de vista historiográfico – de estabelecer relações simétricas entre as palavras védicas e conceitos lingüísticos. No que segue, apontam-se tão-somente possíveis analogias entre os conceitos aduzidos. Cumpre assinalar também que a idéia de configurar um campo léxico centrado na linguagem, relativamente aos valores inscritos nos textos védicos, não é estranha à própria tradição sânscrita. No Nighantu (lit. “relação [de palavras]”) (ed. de L. Sarup [1967: 3]) – pequeno léxico de cunho analógico pertencente ao nirukta, ramo semântico do Vedânga (lit. “[textos] anexos ao Veda”), e que se vincula às tradições de exegese do texto védico –, consta, na parte relativa às coisas do mundo, a rubrica vâc-nâmani, isto é, “nomes dados à palavra”, a qual enfeixa o seguinte rol: “çlokah (“som, barulho”)/ dhârâ (“fluxo de água”)/ ida (= nome de Agni, a quem se invoca com um fluxo de palavras)/ gauh (“vaca”)/ gaurî (“palavra”)/ gândharvî (“fala, recebida de Gandharva”)/ gabhîrâ (“a que é ressonante”)/ gambhîrâ (“a que é grave”)/ mandra (= o tom grave)/ mandrâjanî (“a que se pronuncia no meio do céu”)/ vânî (“som”)/ vâçî (“som produzido em coro”)/ vânini (“linguagem”)/ vânah (“som”)/ pavîh (“a que é brilhante”)/ bharatî (“a que sustém”)/ dhamanih (“a que se derrama”)/ nâdîh (“canal do corpo”)/ menâ (“a linguagem, como fêmea”)/ medîh (“a que é sonora”)/ sûryâ (“a linguagem, como esposa do sol”)/ sarasvatî (“a linguagem, como o rio S.”)/ svâhâ (“oblação”)/ vagnu (“grito”)/ upabdih (“a rumorejante”)/ mâyuh (“a que bale”)/ kâkut (“palato”)/ jihva (“língua”)/ ghosah (“som sonoro”)/ svarah (“sol/céu”)/ çabdah (som)/ svanah (“som do vento”)/ rk (“estrofe recitada”)/ hotrâ (“a linguagem, como oferenda”)/ gîh (“vocábulo”)/ gâthâ (“estrofe ritualística”)/ ganah (“a linguagem como conjunto de versos [texto ?])/ dhenâ (“fala”)/ gnah (“a linguagem, como esposa dos deuses”)/ vipâ [< vip]/ nanâ (“a linguagem, como mãe”)/ kaça (“rédea/freio [do pensamento]”)/ dhisanâ/ nauh (“nau [que leva a oferenda aos deuses]”)/ aksaram (“sílaba”)/ mahî (“a grande”)/ aditih (“a que é imensa/inesgotável”)/ çacî (“a linguagem, como eloqüência”)/ vâc/ anustup (= nome de um metro)/ dhenuh (“a linguagem, como vaca”)/ valguh (“a bela”)/ – 127 – FERREIRA, Mário. Elementos para a configuração do campo léxico da “linguagem” (Vâc)... galdâ (“linguagem”)/ sarah (“a fluente”)/ suparnî (nome próprio = a mãe dos metros)/ (...)//” Observa-se, nessa relação (na qual constam, grafadas em negrito, três das palavras estudadas a seguir), que o vínculo que une os vocábulos radica no emprego de critérios semânticos diversos, havendo, para citar apenas algumas das correlações, palavras aproximadas por sinonímia (vâc, gaurî, vânini), por metonímia (gâthâ, svâhâ, gîh, anustup), por pertença ao campo fisiológico da fala (jihva, kâkut, nâdih), por referência ao caráter sonoro da linguagem (çloka, medih, vâçî, aksaram), por referência ao princípio da linearidade (vânî, dhârâ), por referência ao princípio da articulação (ganah) e por metaforização, calcada nos mitos que o rito presentifica (gauh, sûryâ, gnah). Por pequena que seja esta amostra, basta ela para confirmar a riqueza de projeções semânticas de que a linguagem, nas concepções védicas, é o suporte. E também para indiciar o viés ideológico que subjaz à configuração das relações de sentido propostas. Eis as palavras em estudo: vâc. Substantivo feminino derivado da raiz VAC – a qual denota, no âmbito do sânscrito védico, as acepções “falar”, “dizer”, “narrar”, “pronunciar”, “anunciar”, “declarar”, “mencionar”, “proclamar” e “recitar” –, o vocábulo vâc ocorre 107 vezes nos 1028 textos do RV (citado aqui sempre segundo a edição de T. Aufrecht [1968]), constituindo desse modo a terceira palavra de maior freqüência da lista. A recorrência do emprego da palavra não é casual. Em X, 125, a vâc é louvada como uma divindade, atribuindo-se-lhe uma série de epítetos, que a transformam num poder cósmico onipresente. Diz-se que ela, nascida nas águas e deposta no céu e na terra, é a “parceira e sustentáculo dos deuses”, “intermediária entre os deuses e os homens”, “morada, alento e alimento dos homens”, “fonte da inteligência”. Enquanto conceito, vâc designa, em princípio, a “voz” ou a “fala” dos seres humanos, ou a “fala” produzida, quando antropomorfizados, por seres não humanos, por objetos ou por fenômenos da natureza. Eis alguns exemplos. Em II, 43, 2, afirma-se que Indra, “à maneira de um cantor, emite a fala (em dois tons), de acordo com as regras” (ubhe vâcau vadati sâmagâ – 128 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 125-136, 1998. iva [...] cânu râjati/). Em VII, 103, 1, mencionam-se as rãs que, à semelhança dos brâmanes, adormecidas durante um ano, e banhadas pela chuva, “levantam sua voz, incitadas por Parjanya”, o deus das chuvas (vâcam parjanyajinvitâm pra mandukâ avâdisuh/). Em X, 76, 7, “as pedras de moer, macerando as folhas do soma, elevam sua voz, por entre o sacrifício”(sute adhvare adhi vâcam akratâ/). E em X, 23, 5, evoca-se o trovão que, como a “voz”de Indra, “tendo como arma o relâmpago, mata os perversos, extraindo-lhes gritos injuriosos” (yo vâcâ vivâco mrdhravâcah purû sahasrâçivâ jaghâna/). Nestas passagens – que são paradigmáticas –, pode-se assinalar que a “fala”, proferida por seres humanos ou por não humanos e inanimados, apresenta sempre um conteúdo significativo, denotando a idéia de que o som produzido pela linguagem se vincula a um significado – ou seja, as rãs falam para louvar a recorrência das chuvas; as pedras falam para entoar o elogio do soma; o trovão fala a fim de manifestar a ira de Indra. Neste sentido, vâc opõe-se a nâda, substantivo que traduz o significado de “grito”, “barulho”, “rumor” e que se aplica, exclusivamente, a objetos inanimados, ou a animais e fenômenos naturais desprovidos de personificação mítica. É correto, portanto, propor que a palavra vâc designa no RV, em suma, a linguagem – ou, precisando melhor, a linguagem articulada, provida de uma face verbal, que se manifesta, como voz, por meio de signos vocais, e de uma face mental (v. mati, adiante), em que se articula o sentido. Proposta de tradução: “linguagem”. manman.Oriundo de inusitada composição por redobro da raiz MAN, “pensar”, “considerar”, “compreender”, o vocábulo manman (que se atesta exclusivamente no RV, em 63 ocorrências) constitui, em princípio, um sinônimo de vâc, na medida em que, como esta palavra, designa a “linguagem” (= som + sentido) manifesta no rito. Nesta acepção, pode-se rastreála em diversas passagens. Destas, a mais esclarecedora é a que consta em VI, 38, 4, em que se pede ao soma que incite Indra, “exaltado pelos melhores cânticos”, a “propiciar” o sacrifício, no qual estão aninhados o canto (gira), a fórmula (brahman), a sentença (ukthâ) e o manman (vardhâd yam yajña uta soma indram vardhâd brahma gira ukthâ ca manma/). A oposição neste passo entre as quatro palavras – que são sinônimos parciais de – 129 – FERREIRA, Mário. Elementos para a configuração do campo léxico da “linguagem” (Vâc)... vâc) – sugere que manman constitui, tal como o canto, a fórmula e a oração, um recorte da linguagem – possivelmente, a linguagem dotada de um formato, como a estrofe, ou talvez como o texto composto de estrofes. O sentido de “texto”ou de “fala metrificada” é, porém, reconstrução incompleta do termo. Para completá-la, deve-se recorrer a outra série de passagens – assim, I, 121, 6; I, 129, 6; I, 148, 2; I, 151, 8; I, 165, 13; II, 4, 8; III, 14, 5; IV, 6, 1; VI, 5, 6; VII, 10, 2; X, 57, 3. Nesta última ocorrência, que sintetiza as anteriores, lê-se: “Evocamos nossa mente, por meio do soma e do fogo, e também por meio dos textos (manmabhis) compostos pelos Pais” (mano nv â huvamahe nârâçamsena somena/ pitrnâm ca manmabhih//). Neste passo, observa-se a conjunção de manman com o adjunto pitrnâm (“relativo aos Pais/Ancestrais) , a qual ocorre, também, nas estrofes citadas, como tal, ou com substituição do adjunto por adjetivo sinônimo (uçija, “arquetípico”; prathama, “primordial”; pûrva, “ancestral”). Para o mesmo termo, Renou (1959: 75; 1964: 22, 38; 1966: 34; 1969: 42) propõe as traduções “evocação poética”, “lembrança poética”, “evocação (na forma de) hino”, “palavras (produzidas) por um pensamento concentrado” – com o que se pontua o trabalho mental da enunciação da linguagem. Cumpre porém acrescentar a tais acepções a referência – recorrente nas passagens antes mencionadas – à presentificação da fala como criação intertextual (pois que radica ela na memória da linguagem), à concepção de que a fala, ao se manifestar, se projeta num eixo de formas paradigmáticas, desdobradas, desde o princípio, pelos poetas ancestrais. Propostas de tradução: “texto regido por um cânone”; “intertexto”. mati. Derivado igualmente da raiz MAN, mati (135 ocorrências) designa, em princípio, o “pensamento”, a “intenção” ou a “devoção” do ritualista, por ocasião da celebração do sacrifício. Mas, no texto, são várias as passagens em que, correlacionando-se a linguagem e o pensamento, esta palavra se emprega como sinônimo, também parcial, de vâc, de que mati assinala a face mental – ou simbólica, para empregar um termo contemporâneo. Gonda (1963: 109) propõe, neste sentido, para o termo, a glosa “pensamentos que adquiriram o molde de fórmulas hínicas”. Para Renou (1961: 95), mati opõe-se a dhî (v. adiante), significando, esta, “intuição” e, aquela, – 130 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 125-136, 1998. “manifestação concreta [do pensamento] num poema”. As ocorrências do termo permitem estabelecer as correlações entre linguagem e pensamento, tal como entendidas no texto. Conforme aí se atesta, a fonte do pensamento localiza-se na mente (manas) e esta, no coração (cf. III, 39, 1: indram matir hrda â vacyamânâchâ/, “Em louvor de Indra, procede o pensamento do coração.”). É a ação da luz (cf. III, 30, 20), do fogo (cf. III, 26, 8) ou do soma (cf. IX, 21, 7: eta u tye avîvaçan kâsthâm vâjino akrata/ satah prâsâvisur matim/, “As gotas [do soma], gritando, tumultuosas, quais corcéis em carreira, trazem à vida o pensamento do homem liberal”) que extroverte o conteúdo depositado no coração, e tal conteúdo – a “devoção”, o “pensamento” ou outra forma de cognição – , quando derramado, se molda na forma de hino. Ou seja, a atividade mental, quando manifesta (quer dizer, revestida duma face sonora – composta dos “sons” [çabda] da sílaba [âksara], da palavra [pâda] ou da sentença [ukthâ]), transforma-se em linguagem. (Cf. I, 141, 1: yad im upa hvarate sîdhate matir rtasya dhenâ anayanta sasrutah/, “Quando, oriunda dos bastões friccionados, brota, no sacrifício, a divindade ígnea, torna ela, fecundo, o pensamento, o qual enseja hinos que, manando, mantêm as flamas coesas.”) Linguagem e pensamento são assim funções homólogas da mente, contrastando-se mediante o diferencial da presença ou da ausência da face fônica. Proposta de tradução: “pensamento manifesto”. dhî/dhîti. (Ocorrências: 240 e 82, respectivamente.) Dhî e dhîti, vocábulos oriundos ambos da raiz DHÎ, denotam no RV, como mati, a atividade de manas. Ao passo porém que mati denota a atividade dirigida da mente – assim, o “raciocínio”, o “desígnio”, a “devoção” –, os dois termos assinalamlhe a atividade espontânea e autônoma, orientada por mecanismos que escapam ao controle do ritualista. Trata-se, portanto, duma atividade cognitiva, do tipo “intuição” (cf. C. G. Jung [1974:529-530) – devendo-se ressaltar que, no RV, ela se circunscreve ao contexto do rito, ao qual parece estar ligada, em razão dos estímulos da luz, do fogo e do soma. À semelhança de mati, dhî e dhîti constituem também a face virtual de conteúdos que, quando manifestos, se transformam em linguagem. Eis três abonações para o sentido proposto: I, 161, 7: niç carmano gâm arinitadhîtibhir/, “por meio das intui– 131 – FERREIRA, Mário. Elementos para a configuração do campo léxico da “linguagem” (Vâc)... ções, criastes, (ó Rbhus,) a vaca, revestindo-a com a pele [= criastes a Terra, dando-lhe forma]”; X, 31, 3: adhâyi dhîtir asasrgram amçâstîrthe na dasman upa yanty umâh/, “Obtida a intuição, compomos o hino, irmanando-nos, íntimos, com os imortais.” – passo que se glosa em VI, 9, 6, em que se descreve o processo do arrebatamento poético: vi me karnâ patayato vi caksur vîdam jyotir hrdaya âhitam yat/ vi me manaç carati dûra âdhih kim svid vaksyâmi kim u nû manisye//, “Lançam-se ao vôo minhas orelhas, abremse meus olhos; desperta (a intuição) a luz deposta no coração. Avança a mente, sem limites. O que deverei dizer? O que deverei pensar?”; e VII, 64, 4, em que se percebe claramente a relação de causa e efeito projetada sobre o vínculo inspiração–fala: yo vâm gartam manasâ taksad etam ûrdhvâm dhîtim krnavad dhârayaç ca/, (Ó Mitra-Varuna,) bênção vos peço, em favor daquele que molda vosso trono [= o texto do rito], com a intuição, que ergue o hino e o mantém”. Proposta de tradução: “intuição”. dhisanâ. (Ocorrências: 30.) Associado diretamente a vâc e a manman, o vocábulo dhisanâ alinha-se entre os conceitos que particularizam o processo de criação da linguagem, denotando a “inspiração” por meio da qual a fala do rito se articula. A análise etimológica confirma o sentido básico do termo. Dhisanâ provém da raiz DHIS, a qual consta no Nirukta (ed. Sarup: VIII, 3) (que a aproxima de DHÂ) e que traduz a noção de “soar” – ou, conforme a modalidade causativa inerente à forma, “fazer soar”. No contexto das ocorrências no RV, a raiz indica uma das atividades de manas, a qual “faz vibrar” a linguagem. Como dhî/dhîti, dhisanâ é também uma função mental, sendo neste sentido função correlata à do pensamento e da intuição (em VIII, 15, 7, diz-se que a inspiração aguça a “pujança, a força e a inteligência de Indra” [tava tyad indriyam brhat tava çusman uta kratum]). Cognitiva e intuitiva, a dhisanâ difere do pensamento, por não ser totalmente dirigida, e da intuição, por não ser totalmente espontânea. Com efeito, ela depende, ao contrário da intuição, de estímulos específicos – como a recitação de textos, a memorização de estrofes e o estudo – para realizar-se. Em analogia a mati e dhî, a dhisanâ é a linguagem em estado virtual – não provida de face sonora. Para a abonação do sentido do – 132 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 125-136, 1998. conceito, confiram-se as seguintes passagens: III, 32, 14: vivesa yan mâ dhisanâ jajâna stavai purâ pâryâd indram ahnah/, “A Indra louvarei, quando a inspiração me penetrar, gerando o (texto de) louvor”; VI, 11, 3: dhanyâ cid dhi tve dhisanâ vasti pra devân janma grnate yajadhyai/, “(O poeta,) sábio entre os sábios, cantando com regra, no sacrifício, articula a intuição (do texto), por obra da inspiração.”; e VIII, 15, 7: tava tyad indriyam brhat tava çusman uta kratum/ vajram çicâti dhisanâ varenyam//, “A inspiração aguça a pujança de Indra, sua força, sua inteligência, o desejado relâmpago.” Proposta de tradução: “inspiração”. vip. (Ocorrências: 18.) Derivada da raiz VIP, “vibrar”, vip, como adjetivo, designa “o que vibra” e, nesta acepção, constitui ele adjunto freqüente de vâc, dhî e manas. Seu sentido é análogo ao de dhisanâ. A palavra denota a “vibração” da mente, representando esse “tremor” o processo a que se entrega o homem ou o deus, no propósito de “gerar” o hino. Ao contrário de dhisanâ, vip, porém, desborda por sobre a linguagem, incutindo-lhe a vibração oratória, que a inspiração, por si só, não produz. Linguagem + ênfase oratória, esse o sentido do conceito, conforme se pode constatá-lo analisando-se-lhe as ocorrências. Cf. VIII, 6, 7: imâ abhi pra nonumo vipam agresu dhîtayah/ agneh çocir na didyutah//, “Semelhante a um relâmpago, a vibração, à testa dos pensamentos, incendeia os cânticos”; IX, 96, 7: prâvîvipad vâca ûrmim na sindhur girah somah pavamâno manîsah/, “O soma, purificando as canções e as orações, faz vibrar as ondas da palavra, como ao oceano.”; e IX, 73, 3: samyak samyañco mahisâ ahesata sindhor ûrmâv adhi venâ avîvipan/, “Os poetas fazem o soma vibrar em seu íntimo, extraindo das ondas do oceano o seu cântico.” Propostas de tradução: “vibração oratória”; “eloqüência”. dhâman. (Ocorrências: 93.) Derivado da raiz DHÂ, que significa “estabelecer”, “instituir”, “dispor”, “criar”, o substantivo dhâman tem significados múltiplos no RV. Ele expressa, primariamente, a “sede” (em que permanecem os deuses), a “regra”, a “ordem estabelecida”, o “poder” (especialmente, do rito) e, secundariamente, a “forma que se manifesta” ou, – 133 – FERREIRA, Mário. Elementos para a configuração do campo léxico da “linguagem” (Vâc)... também, a “função concretizada numa forma”. Nestas duas últimas acepções, dhâman denota também uma instância virtual da língua. Diferentemente de dhisanâ e vipâ, tal instância resulta do poder sagrado emanado da “ordem” (rta) – da regra que o rito, ao se realizar, configura. Assim, em VIII, 101, 5.6, mencionam-se os “poetas imortais” que, responsáveis pelo curso do [sol, o] tesouro vermelho [e, portanto, custodiadores da ordem], perfazem as formas produzidas pelos homens” (te hinvire arunam jenyam (...)/ te dhâmâny martyânâm adadbha abhi caksate//). Em I, 85, 11, são os Marutas, os deuses alados do vento, que, “socorrendo à inspiração (vipra) do poeta”, preenchem de amor a forma da fala” (kâmam viprasya tarpayanta dhâmabhih/). Conforme se pode entender nas passagens mencionadas, dhâman conjuga, portanto, duas idéias complementares: de um lado, à semelhança de mati, pontua o caráter de forma manifesta da linguagem; de outro, marca a linguagem como sede da “potência” (çakti) do rito. Trata-se, assim, da forma que, enraizada na mente pelo impulso da ordem – derivada esta do rito –, desencadeia o poder da fala. Proposta de tradução: linguagem-poder como ordem manifesta. Esquematizando-se as notas aduzidas no que antecede, compõe-se o seguinte campo léxico: Conceito nuclear: vâc [a faculdade da linguagem, própria dos seres humanos, provida de duas faces articuladas: som + sentido] Conceito nuclear paralelo: dhâman [vâc como forma e poder manifestos da ordem (rta)] Particularizações do conceito nuclear: manman mati dhî/dhîti dhisanâ vip [vâc como [vâc como [vâc como [vâc como [vâc como cadeia pensamento intuição] inspiração] vibração oratória] de intertextos] manifesto] – 134 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 125-136, 1998. Observa-se, no quadro, a riqueza dos conceitos projetados, no texto do RV, sobre a linguagem – e, também, a dificuldade de traduzir, de forma simétrica, as acepções analisadas acima nos tópicos. Espera-se que estes elementos possam contribuir para o estudo da reflexão lingüística vazada na obra nuclear do vedismo. BIBLIOGRAFIA AUFRECHT, Theodor (1968). Die Hymnen des Rig-Veda.Wiesbaden, Otto Harrassowitz. BERGAIGNE, Abel (1878). La réligion védique d’aprés les hymnes du Rig-Veda.Paris, F. Vieweg. DUBOIS, Jean et alii (1973). Dicionário de lingüística. São Paulo, Cultrix. FERREIRA, Mário (1997). “Procedimentos retóricos na poesia sânscrita védica”, in MOSCA, Lineide do Lago Salvador (org.). Retóricas de ontem e de hoje. São Paulo, Humanitas, p. 85-97. GONDA, Jan. (1963). The vision of the vedic poets. Haia, Mouton. JAKOBSON, Roman. (s.d.). Lingüística e comunicação. São Paulo, Cultrix. JUNG, Carl Gustav (1974). Tipos psicológicos. Rio de Janeiro, Zahar. KNIPE, David M. (1976). In the image of fire. Delhi, Motilal Banarsidass. KRISTEVA, Julia (s.d.). História da linguagem. Lisboa, Edições 70. PINAULT, George-Jean (s.d.). “La tradition indienne”, in AUROUX, Sylvain (org.). Histoire des idées linguistiques. Liège-Bruxelles, Pierre Mardaga, tomo I, p. 293-400. RENOU, Louis (1955). Études védiques et paninéennes. Paris, Éditions E. de Boccard, tomo 1. ________. (1959). Études védiques et paninéennes. Paris, Éditions E. de Boccard, tomo V. ________. (1961). Études védiques et paninéennes. Paris, Éditions E. de Boccard, tomo VIII. ________. (1964). Études védiques et paninéennes. Paris, Éditions E. de Boccard, tomo XII. ________. (1966). Études védiques et paninéennes. Paris, Éditions E. de Boccard, tomo XV. ________. (1969). Études védiques et paninéennes. Paris, Éditions E. de Boccard, tomo XVII. SARUP, L. (ed.) (1967). The Nighantu and the Nirukta. Delhi, Motilal Banarsidass. – 135 – FERREIRA, Mário. Elementos para a configuração do campo léxico da “linguagem” (Vâc)... Abstract: Nowadays it is consentaneous the certification that the Rgvedasamhitâ (= RV) constitutes, at the body of its expressions and metaphorical turnings, a vast reflexion upon the powers of the language. This paper has the purpose of studying, pointing analogies with linguistic concepts, eight words that are used recurrently at the RV and that shape a lexical field centered at the topic of “language” (vâc). Keywords: language lexical field at Rgvedasamhitâ, vâc. – 136 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 137-142, 1998. O CONTO-CRÔNICA DE YEHUDIT HENDEL: UM RETRATO DO ARTISTA ISRAELENSE Nancy Rozenchan* Resumo: Ao abordar um conto de uma das mais conhecidas escritoras israelenses, Yehudit Hendel, pretende-se indicar como elementos de um gênero, a crônica, servem para abranger aspectos da vida pessoal da narradora/escritora, transformando o relato num conto em que se imbricam, aparentemente, elementos destoantes. Palavras-chave: Literatura hebraica, Gêneros literários, Hendel,Yehudit. Foi comprar jornal, falou com o cachorro, apagou o cigarro no pé descalço da moça feia, foi destratada, pediu desculpas, não adiantou, sentiu-se mal, o cachorro correu atrás da ambulância, ela morreu. Estes são os elementos iniciais do conto “Sipur bli ktovet” (Uma história sem endereço), de Yehudit Hendel, que nos propomos a abordar aqui. Pelos ítens mencionados, temos um simulacro de crônica que bem poderia ter surgido em qualquer dos nossos jornais ou revistas. Na crônica, gênero estritamente ligado ao jornalismo, segundo Afrânio Coutinho em seu Notas de Teoria Literária, menos importa o assunto, em geral efêmero, do que as qualidades de estilo: menos o fato em si do que o pretexto ou a sugestão que pode oferecer ao escritor para divagações várias. Partindo dos elementos e narrativa mencionados, Yehudit Hendel, uma das veteranas autoras de Israel, escreveu este primoroso conto em que os aspectos locais entremeiam uma escritura que conduz a um retrato do artista israelense. Yehudit Hendel com freqüência fala para a rádio e televisão de seu país a respeito de temas variados. Sua vivência e expressão sobre assuntos aparentemente “pequenos” transparecem nos seus livros, alguns dos quais, justamente por isto, são de definição impossível quanto à questão de gênero e * A autora é Profª. Associada do Departamento de Línguas Orientais da FFLCH/USP. – 137 – ROZENCHAN, Nancy. O conto-crônica de Yehudit Hendel: um retrato do artista israelense. forma. “Uma história sem endereço”, em que a crônica dá origem a um conto, é um bom exemplo destes temas e abordagens. Neste conto, seguindo-se à morte da mulher, o sofrimento e o desaparecimento do cachorro, a narradora-escritora introduz vários outros motivos. Estes motivos, aparentemente desconectados, ao mesmo tempo em que conduzem, por pinceladas, a alguns aspectos da sociedade israelense, levam à exposição da figura da própria escritora-artista, suas observações da poética, da morte, temática sempre recorrente em sua obra, do sentido da existência através das memórias conscientes e inconscientes em que as experiências pessoais são revistas. A narradora (que podemos identificar com a escritora) testemunha os fatos que mencionamos inicialmente, inclusive o desfalecimento da dama de branco que comprava jornal. A morte desta é atestada no hospital. Até aí, a crônica. O que se segue nos faz penetrar numa ligação de detalhes e associações que conduzem ao âmago existencial da narradora. A narradora viu o cãozinho acompanhar a ambulância. Ela própria, movida por sentimentos diversos não mencionados, dirige-se ao hospital mais tarde, para se informar do ocorrido e lá encontra o animal. Os seguintes fatos e detalhes são alguns dos narrados em seqüência: sugestão de que o cachorro identifique a falecida que não tem documentos, narradora voltando pela Avenida David Hamelech, penumbra, rapaz à sua frente de walkman usando camiseta vermelha, menção da construção da muralha da China feita por um milhão de pessoas, lembrança de que os egípcios tocavam os olhos do morto e a boca e assim tentavam devolver-lhe os sentidos, comentário do rapaz de camiseta vermelha dizendo que não havia cachorro nenhum por ali, em casa, na televisão, reportagem sobre o enterro de um soldado israelense morto no Líbano ao pisar numa mina, reflexões sobre o suicídio do poeta Paul Celan, cujo corpo boiou no rio Sena e a indagação de que roupa estaria ele usando então, lembrança de Zvi, mostrando olhos de vidro em Veneza, volta ao hospital, desaparecimento do cachorro, lembrança da própria mãe e de sua morte há muitos anos, descrita apenas como partida e não como morte, volta para casa, programa de rádio abordando manchas solares, conversa com o rádio, volta o hospital, volta à avenida. – 138 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 137-142, 1998. Como e por que a narrativa passa da crônica para o conto composto de fragmentos isolados, fios de memória desconectados, sendo o bloco maior destes fios, o relacionado com a mãe, quase no fim do texto? A empatia inicial dirige-se à mulher de branco que compra o jornal: a moça desagradável cujo pé é queimado pelo cigarro não desperta simpatia; o cachorro, abandonado depois da morte da dona, é o alvo maior das atenções da narradora. Ela acompanha o seu comportamento quando a dona desfalece, quando fica rondando o hospital, quando se dirige ao necrotério para “reconhecer” o corpo, quando anda pela avenida, como se fosse um animal morto. Ele desaparece. O estranhamento começa a ser mais marcado a partir da figura do cão. No nível estilístico o leitor defronta-se com frases como “atrás de mim, mudo e paciente, vinha o cachorro. Seu pequeno corpo era grande e ele andava morto”. Os oxímoros aqui presentes, “pequeno corpo grande” e “andava morto” são um ponto divisor entre a crônica aparente e o que se desenrola em seqüência. O cão, que tanto sofre com o impacto da morte da sua dona, desperta na narradora-escritora toda uma série de imagens concretas ou não tão concretas e lembranças acionadas através do subconsciente. Alguns dos ítens mencionados anteriormente, a morte do poeta, o enterro do soldado mostrado na televisão, Zvi apontando peças de vidro em Veneza (Zvi é Zvi Maierovitch, o falecido marido de Yehudit Hendel; era pintor) servem de preâmbulo à menção da morte da mãe da narradora-escritora, na verdade tema principal desta narrativa, ainda que somente lhe ocupe um capítulo. Ela havia morrido jovem, aos quarenta anos e à pequena filha órfã isto não foi comunidado textualmente. O avô apenas lhe disse “ela não morreu... ela só partiu”. O desfalecimento da dama de branco na loja de jornais serviu para trazer à lembrança a mãe, também vinculada à cor branca (“penteava-se diante de um espelho pequeno num quadro de maderia com verniz branco”) e a sua morte, tão despropositada quanto a daquela. O desconcerto da situação percebido particularmente através do animal que fica desacorçoado (é assim que narradora o vê, enquanto o rapaz de camiseta vermelha diz que não há nenhum cachorro) faz com que a narradora passe a retrabalhar os seus sentimentos relacionados à morte da mãe. Estes sentimentos, principalmente a sensação de abandono inexplicado, ainda que a tivessem acompanhado durante toda a – 139 – ROZENCHAN, Nancy. O conto-crônica de Yehudit Hendel: um retrato do artista israelense. vida, não tinham aflorado ao seu consciente e lhe causaram uma certa sensação de incompreensão e de desconhecimento de tudo o que se referia à mãe e à sua morte (“Que idade ela tinha então? Quantos anos ela tem agora? O que é que eu sabia então? O que é que eu sei hoje?”) Nestes sentimentos fundem-se, além da profunda dor, também muita raiva e fortes sensações de culpa. Daí, por exemplo, temos a importância da cena do apagar o cigarro no pé da moça descalça. Apesar da mulher elegante ter feito o que fez, apagou o cigarro sem prestar atenção a onde o fazia, a narradora nos faz simpatizar com ela: era elegante, de branco, cuidava do cachorrinho. Mas ela surge na história para brigar com a moça descalça, uma metamorfose da narradora quando menina, transformada numa briguenta grosseira. É verdade que a moça tem razão em reclamar. O confronto criado pela narradora é chocante; choca também porque a narradora, identificando-se com a dor e a raiva da moça (desagradável, feia, de pés grandes e nada elegantes), não consegue perdoar a dama elegante, mesmo que o ato tivesse sido cometido involuntariamente, e talvez por isto mesmo. Paralelamente, a narradora se envergonha com a raiva que refreia o perdão, uma raiva desabonadora, que se liga à morte da mãe. É como se esta ira, resultante da morte da mãe (ira representada pela queimadura no pé e a sensação subjetiva de desprezo), fosse, na realidade, a causadora da morte. Na parte que denominamos de crônica, a dama morre aparentemente devido a um ataque cardíaco em conseqüência da discussão. O principal foco emocional do conto não se concentra, porém, na morte da mãe e nos sentimentos que se seguiram, mas no que ocorreu mais tarde, no decorrer dos anos. A figura da mãe continuou a dominar os aspectos emocionais da vida da filha. Da mãe foi dito que não havia morrido, só partido. A filha passou a carregar a morte da mãe dentro de si. Daí, a sua identificação com o cachorro e com o seu caminhar estranho. Quando a dama de branco desfaleceu, o cão assumiu, de certa maneira, a impossível missão de salvá-la. A narradora menciona como ele estreitou a mulher, em desespero, com o focinho e as patas. Ela não teve a oportunidade de fazer isto com a mãe. Mais adiante ela se lembra como os antigos egípcios tocavam olhos e boca do morto para tentar reanimá-lo, exatamente como fizera o animal. Depois ela o descreve, dizendo para si própria, “o cachorro con– 140 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 137-142, 1998. tinuou a andar atrás de mim morto, e eu disse a mim mesma que, como ele está morto, andará atrás de mim eternamente.” Por esta colocação temos que o cão é então uma representação da mãe (que não morreu, mas partiu, andou, portanto anda morta, eternamente atrás dela). Mas, sem dúvida, mais do que isto, é uma representação da filha, que deve continuar a caminhar carregando a morte dentro de si. Este é o motivo pelo qual a narradora faz convergir grande parte da carga emocional para o animal no decorrer da narrativa. E quando ela se zanga com os funcionários do hospital por não darem maior atenção ao animal, é sobre si própria que ela pretende chamar a atenção. Quando ele desaparece, o que não significa que seus problemas estão resolvidos, ela passa a outros elementos/saídas. O rapaz do walkman, ao mencionar a construção da muralha da China a respeito do que ouviu no aparelho, pode ser entendido como um astronauta (pela aparência com os fones de ouvido) que, do planeta Terra, não enxerga outras minúcias, só a muralha. Outra saída diferente é aquela representada pelo suicídio do poeta Paul Celan. Como estas soluções não podem ser satisfatórias, ela transfere seu ressentimento aos objetos que, mortos, guardam a beleza: os olhos de vidro de Veneza comentados pelo falecido marido e uma velha árvore morta citada pela mãe. Por fim, a menção ao enterro do soldado. É algo mais concreto, este morre mesmo, não parte, é enterrado, há uma mãe presente, sofredora. Os outros presentes ao enterro, as autoridades, estão todos de óculos escuros, alheios, enxugando o suór. Apesar da morbidez, o enterro verdadeiro pode simbolizar alguma saída. É o único caso em que ao menos existe uma pessoa viva sofrendo, extremamente oposta, como nos outros casos, aos presentes alheios, aqui as autoridades impassíveis que, com seus óculos escuros, parecem vir de outro planeta e a quem esta morte não toca. O conto se encerra com a narradora no espaço aberto da avenida, entre as árvores, no calor. Sobre as árvores, uma estreita senda branca. É um caminho? “Uma história sem endereço”, como as outras obras de Yehudit Hendel, traz uma energia explosiva que irrompe de um espaço interior ardente à procura de expressão, e nele a escritora revela sua face mais dolorosa. Concluímos com Afrânio Coutinho, quando este diz, referindo-se à crônica, que é um gênero altamente pessoal, uma reação individual, íntima, – 141 – ROZENCHAN, Nancy. O conto-crônica de Yehudit Hendel: um retrato do artista israelense. ante o espetáculo da vida, as coisas, os seres, motivo pelo qual o cronista é um solitário com ânsia de comunicar-se. Se conseguirmos entender as mensagens e códigos de Hendel, teremos aprendido muito sobre nós mesmos. Somos os destinatários. BIBLIOGRAFIA HENDEL, Yehudit (1988) “Sipur bli ktovet” in Késsef katan. Keter & Hakibutz Hameuhad, Jerusalém. Versão brasileira: “Uma história sem endereço” (tradução de Nancy Rozenchan), maio de 1994. Shalom n. 301, p. 64-68. COUTINHO, Afrânio (1976) Notas de Teoria Literária. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro. Abstract: By approaching a story of one of the leading Israel’s writers, Yehudit Hendel, this paper intends to point out how chronicle-genre’s elements are used to encompass aspects of the narrator /writer’s personal life, transforming the narration into a story where apparently discording elements mingle together. Keywords: Hebrew literature, genres, Hendel, Yehudit. – 142 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 143-150, 1998. ARMÊNIA: ROTA DE MUITOS POVOS Yêda de M. Camargo* Resumo: Armênia, país da Ásia Menor, orgulha-se pela sua trajetória histórico-cultural há mais de trinta séculos. Foi muito visada, durante muitos séculos, por romanos, gregos, árabes, turcos, etc., por situar-se, geograficamente, numa “encruzilhada”, obrigando a passagem de povos vizinhos nesta região, objetivando transações comerciais. As maiores influências deixadas nos costumes, arquitetura, vocabulário... são de gregos, siríacos e árabes. Em contrapartida, influenciou consideravelmente a Geórgia. Estabeleceu o Cristianismo – como religião oficial do país – em 301, firmado, a partir de então, a base social-política para sustentação do povo. Palavras-chave: nacionalidade, civilização, influência, religião, alfabeto. O armênio orgulha-se de sua antigüidade de mais de trinta séculos – desde 1.200 a.C. – que viveu num setor delicado da Ásia Menor, numa pátria sujeita às guerras contínuas, por ser sua posição geográfica uma “encruzilhada”que serviu de rota de trânsito de diversos povos e ponto de choque entre Ocidente e Oriente. A causa de todas as suas desgraças foi a de estar no caminho dos grandes impérios, na charneira das civilizações rivais e de ideologias opostas. A Armênia teve – como vizinhos – povos e impérios numericamente e materialmente superiores a ela, com os quais teve relações históricas, culturais e comerciais, e muitos deles estão hoje desaparecidos da face da Terra e o povo armênio, apesar de suas desvantagens e de sua inferioridade numérica e os acontecimentos trágicos de sua história moderna, sobreviveu e continua com dignidade sua existência do mundo civilizado, tendo representantes dignos em cada setor das ciências e da arte e até nas mais altas esferas do mundo atômico. * A autora é Profa. Assistente do Departamento de Línguas Orientais da FFLCH/USP. – 143 – CAMARGO, Yêda de M. Armênia: Rota de muitos povos. A posição geográfica da Armênia, historicamente, está sempre ligada aos três rios: Araxes, Eufrates e Tigre, onde, segundo a Bíblia, estava situado o Éden. Os etnólogos e os antropólogos concordam com o fato de que os antigos povos da Ásia Menor: hititas, urartus, frígios, armênios, troianos etc. pertencem ao mesmo grupo racial indo-europeu, e tiveram o mesmo lugar de origem, ou seja, a vasta região que se estende entre os mares Báltico e Cáspio, que foi a pátria comum dos povos indo-europeus em geral. Portanto, a base da língua armênia é indo-européia. Do ponto de vista: a) fonético – está no centro, entre os grupos eslavo, lituano e albanês; b) do vocabulário – oferece semelhanças surpreendentes com o grego. O armênio era falado muito antes da invenção do alfabeto, se não pelo povo, mas, pelo menos, pela corte, nobreza e o clero. A prova está na rapidez em que as obras foram traduzidas e a quantidade apresentada, após a invenção do alfabeto: sem hesitações, nem revisões e nem correções. Se a primeira tradução da Bíblia foi mais revisada não ocorreu pela imperfeição do estilo, mas por se preocuparem com uma tradução mais precisa. E, assim, no princípio do século V, assistiu-se ao florescimento de um idioma não somente puro e harmonioso, mas também maravilhosamente desenvolvido para permitir a tradução, em admirável estilo, das melhores obras gregas e siríacas. O armênio antigo, o clássico, conhecido como “grabar”(língua escrita), que foi o literário durante muitos séculos, esteve em uso até final do século passado.O outro, chamado “rancoren”(língua vulgar) foi empregado, a partir do século X, da nossa era. No século XIX, esse idioma deu nascimento ao “ashjarabar” (fala do povo), voltado ao grabar, como o francês e o italiano têm origem no latim. Hoje, o “grabar” é utilizado na liturgia. – 144 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 143-150, 1998. No entanto, hoje, o “ashjarabar”- o armênio moderno – é adotado universalmente. Fala-se na Armênia e nas colônias armênias que se estendem desde a Índia até a América. É, igualmente, o idioma da literatura moderna. Distinguem-se dois grupos de armênio: a) o armênio ocidental; b)o armênio oriental. O armênio ocidental se fala e se escreve na Ásia Menor e nas partes da Armênia conquistada pela Turquia, como também nas colônias originárias deste país. O armênio oriental se fala na Armênia e em outras comunidades armênias da ex-União Soviética, principalmente Rússia, Geórgia, Azerbaijão, Irã, como também nas colônias armênias da Polônia, Hungria e Extremo Oriente. RELIGIÃO O Cristianismo havia começado sua penetração na Armênia, muito antes de 301. As bases da igreja Armênia foram estabelecidas por dois apóstolos de Jesus Cristo: Tadeu e Bartolomeu, que pregaram a nova doutrina no país e foram martirizados. Por essa origem, a igreja se intitulou Apostólica. A obra dos dois apóstolos foi prosseguida por outros evangelistas provenientes das regiões de Edesa e Cesaréia. Em fins do século II, o número de cristãos na Armênia era bastante numeroso. Como os armênios não tinham letras próprias até então, empregavam o grego e o siríaco nos rituais das igrejas, incompreensíveis para a maioria do povo. Somente depois da invenção do alfabeto armênio (em 405 ) é que o armênio foi a língua oficial empregada em todas as igrejas do país. – 145 – CAMARGO, Yêda de M. Armênia: Rota de muitos povos. O povo armênio estava intimamente ligado a seus deuses pagãos e foram necessários muitos anos de árduo trabalho para convertê-lo à doutrina cristã. Por esse motivo, Trdat (monarca armênio) e São Gregório1 – o Iluminador – (catholicós de 302 a 325 )foram obrigados a recorrer a meios mais severos contra o paganismo, até mesmo com a força das armas. Mas não era somente o fanatismo religioso o que impelia Trdat a adotar medidas de força: o Cristianismo era uma arma política poderosa para defender a independência da Armênia e a existência nacional de seu povo. Mais tarde, quando a Armênia enfrentava uma grave crise política, o Cristianismo e as letras armênias foram as únicas armas que permitiram preservar o povo armênio do perigo de sua fusão com os persas e os maometanos. Somente adotando o Cristianismo, puderam os armênios manter sua existência como entidade nacional. Com a queda de Constantinopla, em 1453, e a subseqüente islamização da Ásia Menor, os armênios – que recusaram a conversão ao Islamismo que os incorporaria naturalmente à Grande Porta – adquiriram o “status” precário de povo e religião minoritários, piorando muito sua situação legal. Essa situação delicada influiu consideravelmente no destino dos armênios, conduzindo-os a nichos de especialização funcionais no Império2, Quando as dinastias turcas praticavam políticas internas de tolerância, a situação dos armênios era razoável, formando um contraste com paí- 1 2 Fez seus estudos em Cesaréia e exerceu seu apostolado na Armênia. Com o apoio moral e material do rei converteu o povo armênio à fé cristã. Convencido da necessidade de ter sacerdotes instruídos para ajudá-lo em sua ação de propagar o Cristianismo, solicitou ao rei que abrisse escolas em todos os distritos, nas quais milhares de adolescentes receberam não somente o ensinamento religioso mas também se iniciaram nas ciências profanas e aprenderam o grego e o siríaco. “Nesta sociedade muçulmana turca, alguns armênios assumiram o papel de alguma forma parecido com o que os judeus ocupavam na Europa predominantemente cristã: eles transformaram-se em banqueiros, artesãos habilidosos, burocratas e homens de negócio, alguns mesmo chegando ao papel de conselheiros dos sultãos.”(Mirak, 1980: 137) – 146 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 143-150, 1998. ses da Europa Ocidental. E, nesse momento, os turcos acolheram diversos judeus, expulsos da Península Ibérica pela Inquisição. No período mais grave da história da Armênia, quando esta perdeu sua autonomia política e esteve completamente submetida ao jugo das potências (séc. XV e XIX ), a Igreja assumiu a responsabilidade da direção política do mundo armênio. A aceleração da decadência do Império, no final do século XIX, tornou problemática a situação dos povos minoritários, acelerando uma política de assimilação dos povos não muçulmanos, tidos como enfraquecedores da fibra guerreira dos turcos e como causadores da não-ajuda de Deus para os empreendimentos do governo. Nessa época, começa uma série de progrons que tinham nos armênios um dos alvos principais que, em conseqüência desses infortúnios, começam a emigrar. Em 1908, com o advento do regime dos “Jovens turcos” o processo se acelera, unindo-se às tradicionais tentativas de conversão e “turquificação” do Império a ideologia moderna do nacionalismo, ampliando o alcance das políticas assimilacionistas como justificativa à intolerância religiosa que aparece de maneira intermitente. O cerne desse processo foi o massacre em 1915: os turcos mataram cerca de 1,5 milhão de armênios e milhares de sobreviventes, principalmente mulheres e crianças, foram deportados para a Síria e Líbano. Os alvos realmente desses massacres eram os religiosos e intelectuais, o que demonstrava a ânsia de desestabilizar a produção cultural da nação armênia. A adoção do Cristianismo é um dos fatores mais importantes da história do povo armênio, possibilitando mais ainda a união do povo pela fé única que sempre lutou pela não-divisão de suas terras e pela preservação de sua identidade cultural, tão rica, tão marcante. Na Diáspora Armênia há a igreja protestante, católica e apostólica. Os protestantes são minoria; os apostólicos são maioria; os católicos ocupam a segunda posição. Estes remontam-se à origem do cristianismo armênio e jamais deixarão de existir pela sua missão, pela sua crença. A imensa maioria dos armênios deve obediência à Igreja gregoriana, ou seja, apostólica. A expressão própria para designar a Igreja dita gregoriana é Igreja armênia apostólica. Na verdade, o ritual é que é gregoriano. – 147 – CAMARGO, Yêda de M. Armênia: Rota de muitos povos. O ALFABETO ARMÊNIO Os armênios não dispunham de uma escritura própria, ou melhor, de um instrumento de expressão escrita de sua própria língua e, então, viam-se forçados a escrever na língua de povos vizinhos. Portanto, a língua grega e a siríaca foram utilizadas em documentos oficiais da época e como veículo de expressão literária e teológica, criando uma situação constrangedora, assim como produzindo riscos para a identidade cultural e nacional. Muito se pensava sobre qual caminho tomar. O grego foi analisado para servir como fonte para um alfabeto nacional. Foi Mesrob Mashdotz (360-440) e seus colaboradores, com apoio de autoridades políticas (rei Vramshabuh) e religiosas (catolicosse Sahague) 1 que criou, por volta do ano de 405,o alfabeto armênio. Para salvaguardar a “armenidade”, a arma da escrita própria era a solução que garantiu, para a nação, a intangibilidade de sua alma e assegurar-lhe uma reserva de forças para os dias vindouros. Os fatos não tardariam a confirmar a sabedoria desta criação. Portanto, foi nessa base cultural que o povo armênio organizou a vida em previsão das vicissitudes de sua história política, naquela adversa composição étnico-geográfica. Passando mesmo os limites, colocou a religião a par com a nacionalidade, fazendo da “Igreja” um sinônimo de “Escola” e desta a trincheira da sobrevivência nacional. A criação do alfabeto armênio teve razões políticas e sociais que objetivava a guarda da cultura dos ancestrais. Jamais coube, em qualquer época e em qualquer país, à escrita, ou seja, a um alfabeto, papel tão relevante e significativo na vida políticosocial de um povo, como ao armênio. 3 Sahague, chamado “O Grande”, era filho do catholicós Nersés – o Grande. Sucedeu seu pai com a colaboração de Mesrob, dando um grande impulso à instrução do povo. Independente da ação diplomática que exerceu diante dos persas ou dos gregos, a pedido do rei e dos príncipes feudais, revelou-se como um grande animador do novo espírito cristão. Realizou profundos estudos em Bizâncio e Cesaréia. Era muito respeitado pela sua eloqüência e seus escritos. Sabemos que participou das traduções das obras gregas, especialmente à da Bíblia. – 148 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 143-150, 1998. INFLUÊNCIA GREGA, SIRÍACA E ÁRABE • A cultura grega na Armênia data da conquista de Alexandre Magno, mas o helenismo concebido por esse monarca progrediu muito lentamente. Foi Tigran II (94-54 a.C.) quem estabeleceu o grego como língua de sua corte. Seu filho Artabast (56-34 a.C.) foi autor em língua grega, compondo nesse idioma tragédias e discursos. A Armênia deu boa acolhida aos monges gregos que penetraram ali pelo lado oeste. • O princípio das relações com a Síria foi mais freqüente que com os gregos, devido às tradições comuns entre o povo armênio e o siríaco de Edesa, com suas célebres escolas. Foram nestas escolas que os armênios buscavam o equilíbrio espiritual e o conhecimento intelectual que lhes faltava. Ao retornar à Armênia, liam a Bíblia nas igrejas nacionais e praticavam os ritos na língua siríaca. A partir do momento em que os armênios apreciaram a superioridade da cultura greco-romana, partiram de Edesa e dirigiram-se às escolas de Bizâncio, Atenas e Alexandria. No século VII, os estudos gregos foram retomados, todavia, sem muito empenho. A influência grega e siríaca tinha se manifestado: no vocabulário: pela adoção de palavras gregas e siríacas; na sintaxe e no estilo: pelo emprego de gírias próprias dessas línguas. Os monges siríacos penetraram na Armênia pelo lado sul, com o objetivo de evangelizar o país. • Segundo muitos críticos armênios, a língua e a literatura armênia foi influenciada pela literatura árabe. Alguns autores transpareceram muita prodigalidade e prolixidade: próprio do árabe. Estes permaneceram na Armênia por um século e meio. Contudo, não se tem registro de que os autores que sofreram a influência árabe conheciam o árabe. Além da influência grega, siríaca e árabe, a Armênia recebeu influências de outros povos, assim como também influenciou outras localidades, como a Geórgia, por exemplo, na religião, na cultura, na arquitetura. – 149 – CAMARGO, Yêda de M. Armênia: Rota de muitos povos. BIBLIOGRAFIA ALEM, J. P. L’Arménie. Paris, Presses Universitaires de France, 1959, p. 88-104. ARTZRUNI, A. História do Povo Armênio. Editora da Comunidade da Igreja Apostólica Armênia do Brasil, 1976. GRÜN, R. Negócios & Famílias: armênios em São Paulo. S.Paulo, Editora Sumaré, 1992. NERSESSIAN, S. Os armênios. Editorial Verbo, 1973. SAPSEZIAN, A. História da Armênia. S.Paulo, Paz e Terra, 1988, p. 15-35. ________ Literatura Armênia. S. Paulo, Paz e Terra, s/d KEROUZIAN, Y. O. “O povo armênio e sua evolução histórica”. Revista de História, Ano XV Vol. XXVIII, n. 58, DH/FFLCH/USP, abril-junho, 1964. THOROSSIAN, H. Historia de La Literatura Armenia. Buenos Aires, Organización Juvenil de la Iglesia Armenia, 1959. Abstract: Armenia possesses historical and cultural trajectory embracing more than thirty centuries. Romans, greeks, arabs and turks all invaded Armenia with the objective of conquerting it, besides taking advantage of its stratetig posicion on the commercial route between East and West which crossed Armenia with an established religion, with own alphabet it was able to defend itself and exists until today. Keywords: nationality, civilization, influince, religion, alphabet. – 150 – TRADUÇÃO REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 153-159, 1998. LETRADOS E ALMOCREVES: UM TRATADO ÁRABE DO SÉCULO VIII Mamede Mustafa Jarouche* Resumo: Em língua árabe, a epístolografia de caráter profano começou a desenvolver-se a partir de finais do século VII – as manifestações anteriores são de importância reduzida. Foi com cAbd-ul-Hamíd, al-Kátib, que o gênero ganhou características por assim dizer “literárias”. Neste artigo, apresenta-se uma tradução de seu principal trabalho, denominado “Epístola aos letrados”, composição na qual se apresentam regras de comportamento a esse grupo. Palavras-chave: Epístologia árabe, literatura árabe, letrados, islamismo, poder e letras, política muçulmana medieval. Primeiro em data, ou mais propriamente fundador da epistolografia em língua árabe, são poucos os dados concretos a respeito de ’Âbú Ghálib c Abd-ul-Hamíd bin Yahya bin Sacd bin cAbd-Illáh bin Jábir bin Málik bin Hajr bin Mucís bin cÁmir bin Lu’í bin Ghálib, ou simplesmente cAbd-ulHamíd, al-Kátib (“o escriba”, por antonomásia). Sabe-se que descendia de uma das inúmeras famílias de clientes persas que se agregaram a clãs árabes (no caso, os Banú cÁmir) durante a expansão islâmica. O historiador e crítico libanês cÛmar Farrúkh presume que tenha nascido por volta de 680 d.C. (60 H.) na cidade de al-’Anbár, às margens do rio Eufrates. Após ter trabalhado como professor na cidade de Kúfa, estabeleceu-se como escriba dos califas da dinastia omíada desde cAbd-ul-Mâlik (685-705) até Marwán (744-750), tendo sido morto em 756 d.C., após a deposição desse último pela dinastia abássida. Contam os relatos históricos que ele teria sido ligado por fraternal amizade a Ibn-ul-Muqaffac, o tradutor do Livro de Kalíla e Dimna. Nos textos que a tradição atribui a Ibn-ul-Muqaffac – basicamente, o Livro de Kalíla e Dimna, o Grande livro da boa conduta e a “Epístola sobre os companheiros [dos califas]” –, o estilo é muito semelhante. * O autor é Prof. Dr. do Departamento de Línguas da FFLCH/USP. – 153 Orientais – JAROUCHE, Mamede Mustafa. Letrados e almocreves: um tratado árabe do século VIII. Além do texto cuja tradução ora se apresenta, parece que cAbd-ulHamíd redigiu diversas outras epístolas, uma das quais sobre a caça e outra sobre o jogo de xadrez. Desde as observações do crítico e escritor egípcio Táha Husayn (1889-1973), houve quem atribuísse a cAbd-ul-Hamíd conhecimentos da língua grega; trata-se porém de suposição. Só se tem certeza de que o mestre com quem ele supostamente estudou – Sálim bin cAbd-Illáh, também seu cunhado e, como ele, agregado persa – conhecia o grego; o autor, por outro lado, não ignoraria a língua de seus ancestrais, o persa. A data exata de composição da “Epístola aos letrados” é desconhecida, podendo-se apenas situá-la na primeira metade do século VIII. Deve-se observar, contudo, que algumas de suas comparações são trans-históricas, diga-se assim; além do mais, a obrigação dos letrados de servir ao Poder – muito explicitamente colocada – reveste-se de notável atualidade. Nada de velho no front. Para a tradução, foi utilizada a excelente edição crítica estabelecida pelo escritor e crítico saudita cAbd-ul-cAzíz ar-Rifácí.1 É um texto que se afasta bastante da única versão conhecida no Brasil, e que está contida nos Prolegômenos, de Ibn Khaldún, traduzidos por José Khoury na década de 60. A versão que Ibn Khaldún reproduziu em seu livro do século XIV, e que foi largamente utilizada no Mundo Árabe, apresenta diversas falhas, incongruências e embaralhamentos que ar-Rifácí corrigiu ao estabelecer sua edição crítica, cotejando todos os textos da tradição antiga que contêm a “Epístola aos letrados”. EPÍSTOLA AOS LETRADOS2 c Abd-ul-Hamíd, al-Kátib ’Amma bacd3 : Ó gente que pratica este mister, que Alláh vos preserve, proteja, dê sucesso e oriente, pois Alláh exalçado e poderoso criou as pessoas 1 2 Rifácí, cAbd-ul-cAzíz ar- (org. e intr.). Min cAbd-il-Hamíd al-Kátib ’ilàl-kuttábi-wal-muwazzafína. Riad (Arábia Saudita), al-Mâktabatus-Saghíra, 1973 (texto às p. 49-62). O tradutor agradece ao Prof. Dr. Helmi Nasr e à Profa. Safa Jubran pelo esclarecimento de diversas passagens obscuras do texto original, bem como à Profa. Dra. Aida Hanania pelo estímulo e pela revisão da versão final. Em sentido estrito, a expressão “kuttáb” (plural de “kátib”) pode significar “escribas”, “escreventes” ou “escritores”. Preferiu-se aqui a expressão “letrados”, mais abrangente que as demais. –154 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 153-159, 1998. – após os profetas e os enviados, que suas preces estejam sobre eles todos, e após os reis veneráveis – como um rebanho, e as distribuiu em várias atividades das quais retiram seu sustento4 . Ele assim vos colocou, ó letrados, na atividade mais digna: gente educada, viril, ajuizada, ponderada, grave, laboriosa, capacitada nos méritos e nas dádivas. É convosco que o reino se organiza, e os assuntos dos reis são tratados corretamente; é com vosso preparo e condução que Alláh faz que o poder dos reis seja bem exercido, seu imposto, bem recolhido e seu país, bem construído. O rei precisa de vós nas graves questões de seu reino, e o governante, nos altos e baixos desígnios de seu governo. Ninguém pode dispensar-se de vós, pois só entre vós se encontram pessoas capazes para isso. Vossa posição relativamente a eles é a da audição com a qual escutam, da visão com a qual vêem, da língua com a qual falam e das mãos com as quais arremetem. Vós – caso as coisas estejam em seus devidos lugares – sois as pessoas de sua confiança, logo abaixo dos membros de sua casa, dos filhos, dos parentes e dos conselheiros. Alláh, que vos privilegiou com o mérito de vossa atividade, não vos privará do manto da benesse. Ninguém, dentre todas as outras atividades, tem mais necessidade de se apropriar das louváveis porções do bem, e das lembradas e limitadas frações do mérito, do que vós, ó letrados. Se acaso tiverdes as mencionadas qualidades aqui citadas, sabei que o letrado necessita em seus graves assuntos, para si mesmo e para o colega que nele acredita, ser generoso quando a generosidade for adequada, sábio quando a sabedoria for adequada, arrojado quando o arrojo for adequado, cauteloso quando a cautela for adequada, afável quando a afabilidade for adequada e rude quando a rudeza for adequada; inclinado à honestidade, justiça e eqüidade, discreto e solidário nas adversidades. Sabedor do que deve ou não ser feito, coloca todas as questões em seu lugar pertinente, após ter observado e dominado todas as espécies de conhecimento, se não na totalidade, ao menos na parte suficiente, a tal ponto que prevê, com a espontaneidade de sua inteligência, com a excelência de sua educação e com o mérito de sua experiência, o que lhe ocorre antes de sua ocorrência, planejando para cada caso uma solução e pre3 4 Expressão que se utiliza quando se vai entrar diretamente no assunto tratado. Em alguns manuscritos, consta a observação de que “as pessoas, na verdade, são iguais”. – 155 – JAROUCHE, Mamede Mustafa. Letrados e almocreves: um tratado árabe do século VIII. parando para cada problema uma saída. Acorrei, pois, ó letrados, a todos os ramos do conhecimento e da educação; aprimorai-vos na religião, começando pelo livro de Alláh5 poderoso e exalçado, pelos preceitos religiosos, pela jurisprudência e pelo direito de herdade, e a seguir pela língua árabe, que é a ferramenta de vossas línguas; lapidai a caligrafia, que é o ornamento de vossos escritos, e recitai as poesias, não sem lhes conhecer as obscuridades e os sentidos, e as guerras dos árabes e dos persas, suas histórias e biografias, e isso vos auxiliará a elevar-se em vossas missões. Que vossas vistas não vacilem de forma alguma no que se refere ao cálculo, que é a base do livro de impostos. Afastai-vos das altas e baixas ambições, e das questões baixas e vis, que produzem cervizes inclinadas e letrados corrompidos. Aperfeiçoai vossa atividade e afastai vossos espíritos da maledicência, da intriga e dos demais procedimentos das gentes pérfidas e ignorantes. Muito cuidado com a arrogância e a autosuficiência, que são inimizade conquistada sem ódio6 . Queirai-vos bem, em Alláh poderoso e exalçado, no âmbito de vossa atividade; recomendai-vos a ela, que é peculiar, entre vossos predecessores, às pessoas de mérito e nobreza. Se o destino for cruel com algum de vós, solidarizai-vos e acorrei a ele, até que retome seu antigo estado. Se a velhice impedir algum de vós de sustentar-se e conviver com os colegas, visitai-o, louvai-o, consultai-o e demonstrai o mérito de sua opinião, sua experiência e seus conhecimentos há tanto tempo adquiridos. Que cada um de vós seja, para quem foi generoso e ajudou num momento de necessidade, mais amável e solícito do que para um irmão ou um filho; assim, caso ocorra em vosso trabalho algo louvável, deveis atribuí-lo ao colega, e, caso ocorra algo adverso, deveis carregá-lo sozinhos. Acautelai-vos do erro, deslize e pessimismo quando a situação estabelecida se modifica. Para vós, ó letrados, a desonra chega mais rápido do que à mulher7 , e a vós é mais danosa do que a ela. Já sabeis que cada um de vós deve, inicialmente, compreender as pessoas com a quais convive mediante sua presteza, gratidão, tolerância, paciência, bons 5 6 7 Refere-se ao Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos. Entenda-se: quem se comporta de forma arrogante e auto-suficiente conquista inimigos entre pessoas contra as quais não nutre qualquer ódio. Em algumas edições consta “espelho” em vez de “mulher”. A grafia de ambas as palavras é quase idêntica em árabe. –156 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 153-159, 1998. conselhos, discrição, sobriedade e prevenção, mas a partir do que as pessoas fazem quando tais virtudes não são necessárias8 . Doai – que Alláh vos dê sucesso – de si mesmos, tanto nos momentos de abundância quanto de dificuldade, de penúria ou de favorecimento, de melhora ou de piora, de revolta ou de satisfação, de riqueza ou de pobreza, pois esses sinais caracterizam as pessoas dessa digna atividade. Se alguém dentre vós for empossado no Poder, e lhe for conduzida uma questão de algum dos servos e criaturas de Alláh, que Alláh vigie a decisão a respeito, e que a obediência a ele influencie tal decisão; que seja amigo do fraco, e justo com o oprimido, pois as criaturas são adoradoras de Alláh, que tanto mais as ama quanto mais sejam generosas com os adoradores dele. Que governe com a verdade, dignifique e reconheça as pessoas dignas, economize o dinheiro público, faça o país prosperar, e seja amistoso com o rebanho, humilde em seu conselho, generoso e afável, e indulgente na coleta de seus impostos e na cobrança de seus direitos. E quando alguém dentre vós estiver com um companheiro, que procure examinar seu caráter da mesma forma que examina uma roupa que compra para si, pois distinguir suas qualidades de seus defeitos ajuda a beneficiar-se das primeiras e a evitar os últimos; isso deve ser feito com a mais sutil estratégia e a maior dissimulação e doçura. Já sabeis que, quando hábil e experiente, o almocreve procura conhecer as características da azêmola: se ela for dada a coices, tomará cuidado com suas patas traseiras; se for teimosa, evitará deixá-la agitada; se for violenta9 , prevenir-se-á de suas patas dianteiras. Caso tema uma mordida, precaver-se-á de sua cabeça; se ela for recalcitrante10 , não a provocará, deixando-a seguir o caminho até que se acalme. Assim, seu trabalho estará facilitado. Nessa descrição – do almocreve e de sua habilidade – há lições e educação para quem conduz as pessoas, ou serve, lida e convive com elas. 8 9 10 Entenda-se: as virtudes citadas (presteza, gratidão etc.) só são válidas quando o contexto em que se dão não as exige. Ou seja, quando não se é coagido a demonstrá-las. Postula-se, aqui, a naturalidade na afetação. Usa-se, no original, a palavra “šamús”, que indica o animal que, erguendo-se, golpeia com as patas dianteiras. Usa-se, no original, uma palavra intraduzível (“harún”), que indica o animal que repentinamente pára de correr e começa a voltar para trás. – 157 – JAROUCHE, Mamede Mustafa. Letrados e almocreves: um tratado árabe do século VIII. Com o mérito de suas opiniões, a dignidade de sua atividade, seu sutil trato e estratégia em relação àqueles com quem dialoga e discute, ou com quem lhe pede explicações, ou com quem o teme, o letrado é mais capaz de dominar, dissimular e avaliar os defeitos das pessoas com as quais convive do que o almocreve, pois a azêmola não fala nem discerne o certo do errado, e depende do caminho que lhe é imposto pelo condutor, ou por quem nela esteja montado. Assim, que Alláh tenha misericórdia de vós, aguçai a visão, utilizai a reflexão e o pensamento, e dessarte evitareis, com a permissão de Alláh, o desdém, o tédio e a rudeza das pessoas com as quais conviveis, assegurando-vos, pelo contrário, de sua concórdia, amizade e solicitude, se Alláh quiser. Que nenhum homem dentre vós ultrapasse, em sua maneira de sentar-se, vestir-se, montar, comer e beber, e em sua prole e serviçais, e em outros assuntos que lhe sejam atinentes, os limites impostos por sua condição, pois vós – apesar do mérito que Alláh vos concedeu em vossa digna atividade – sois também serviçais em cujo trabalho não se suportam falhas, e tesoureiros e guardiões dos quais não se toleram dilapidação ou desperdício. Orientai-vos honestamente no bom caminho em tudo que vos enumerei. Para vós a melhor assistência é a manutenção de vossa religião, a preservação de vossa segurança e a obtenção de vosso sustento. Precavei-vos das desgraças da ostentação e das más conseqüências do exibicionismo, que prenunciam a pobreza, fazem a cerviz inclinar-se e expõem quem as pratica ao escândalo, sobretudo os letrados. Para cada assunto há um outro que lhe é similar, e uns fornecem indícios para os outros; assim sendo, orientai-vos, nos assuntos novos, em vossa experiência prévia, e depois percorrei, na senda de seu planejamento, aquela cujos caminhos sejam os mais claros, cujas justificativas sejam as mais corretas e cujas conseqüências sejam as mais louváveis. Sabei que cada forma de planejamento implica transtornos e problemas que não se concentram jamais numa só delas. É essa a característica que atrapalha a execução do trabalho e as reflexões sobre ele. Que cada um de vós seja, portanto, no seu local de planejamento, o mais reservado possível, que só fale o essencial, que seja breve ao iniciar as exposições, que leve em consideração todas os aspectos da questão: disso decorrerá benefício para seu raciocínio, ajuda para sua inteligência e economia de seu tempo; que se –158 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 153-159, 1998. humilhe diante de Alláh rogando sucesso e bom desempenho, por temor de cometer erros perniciosos no que se refere a sua religião, inteligência ou educação. Se algum dentre vós pensar ou disser que sua eficiência no trabalho e seu intenso desempenho somente se devem ao mérito de sua estratégia, à correção de seus pontos de vista e a seu bom planejamento, estará exposto a ser abandonado sozinho por Alláh, ficando assim sem ter quem o valha. Que nenhum de vós alegue ser mais educado, inteligente ou capaz de planejar e trabalhar do que o colega de atividade, pois, entre dois homens, o mais inteligente será, para as pessoas ajuizadas, aquele que diz que o colega é mais inteligente, e o mais néscio será aquele que acredita ser ele próprio mais inteligente que o colega, [e isso porque o último ostenta autoadmiração e faz pouco caso da capacidade do outro. Essa é uma das grandes calamidades da inteligência.]11 Isso não impede, porém, que o homem reconheça os méritos do bem-estar que Alláh lhe proporcionou, sem que isso implique necessariamente auto-admiração por seus pontos de vista ou prosápia ou arrogância para com colegas e companheiros, e sim, humildemente, gratidão e louvor a Alláh por sua grandeza. E aqui finalizo citando um provérbio já conhecido, “quem aceita conselhos trabalha bem”, e que constitui a essência deste escrito e a parte principal de sua argumentação, logo após a citação de Alláh poderoso e exalçado. É por isso que a pus no final e com ela finalizo, que Alláh nos proteja e a vós, ó letrados, da mesma forma que protegeu quem já conheceu sua felicidade e orientação. Tudo isso pertence a ele e está nas mãos dele. Que a paz e a misericórdia de Alláh estejam sobre vós. Abstract: In Arabic, epistography in a profane manner has begun developing towards the end of seventh century as earlier manifestations are of less importance. Tanks to cAbd-ul-Hamíd, al-Kátib, the genre has gained somewath “literary” characteristics. The study will focus on a translation of his main work – “Epístola aos letrados” (“Epistle to learned men”), wich includes rules of behaviour for this group. Keywords: Arabic epistography, Arabic literature, learned men, Islamism, power and letters, Medieval Muslim politics. 11 O trecho entre colchetes é obscuro e sua tradução, duvidosa. – 159 – ENTREVISTA REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 163-169, 1998. GEORGES NIVAT OS ESTUDOS ORIENTAIS O Professor Georges Nivat é diretor do Departamento de línguas e literaturas mediterrâneas, eslavas e orientais da Universidade de Genève e esteve no Brasil a convite do CEPST (Centro de Estudos sobre os Países Socialistas em Transformação) e do IEA (Instituto de Estudos Avançados) para participar do Seminário Internacional “Revolução de Outubro – 80 anos” que ocorreu de 3 a 5 de novembro/97 na USP, sob a coordenação da Profa. Dra. Lenina Pomeranz, diretora científica do CEPST. O professor Nivat é especialista em literatura e cultura russas e proferiu também, a convite da Área de Russo e do Departamento de Línguas Orientais, uma palestra sobre o tema “A dissidência e a “inteliguêntsia” na Rússia”. Ele concedeu, em sua rápida passagem por São Paulo, uma entrevista à Profa.Dra. Arlete Cavaliere, coordenadora do Curso de Russo da FFLCHUSP, que a traduziu do Francês ao Português. A.C. Como o senhor vê hoje os estudos de línguas orientais na Europa diante das condições políticas, econômicas e sociais desse final de milênio? G.N. Mais do que nunca as línguas orientais são necessárias. Elas dizem respeito a um vasto arco continental que vai da Europa ao Pacífico, isto é, o imenso arco eurásico, no centro do qual está a Rússia. O árabe, o russo, o chinês, o japonês são línguas e culturas chaves do futuro do mundo, na medida em que se pode prever que, num fututo próximo, será lá que vai se dar o próximo drama geopolítico, tendo a China como eixo. Além disso, essas culturas do futuro estão também entre as mais antigas da humanidade, como a chinesa, a coreana ou a japonesa. Eu mesmo tive contacto com a cultura japonesa, sem saber o japonês, infelizmente. Publiquei dois livros no Japão e fiquei bastante seduzido pela mistura estranha de modernismo e arcaísmo que há–nesse 163 – país. NIVAT, Georges. Os Estudos Orientais. A.C. Que papel desempenham, ou deveriam desempenhar, os estudiosos da arte e da literatura desses países do oriente, cujo interesse mundial parece hoje recair muito mais nas oscilações de seus mercados de capitais? G.N. Nenhum intercâmbio econômico profundo pode se dar sem um intercâmbio cultural. Penso que é totalmente falso pensar que o inglês “global”, este dos traders e dos pilotos de avião, pode ser suficiente para o bom andamento da economia. Pelo contrário, pode-se constatar que não existe penetração duradoura, importante e significativa sem o conhecimento do espírito característico desses países, o que implica o conhecimento da língua e da sua civilização. Assim, evitaremos a criação de esteriótipos grotescos sobre os quais o Ocidente exerce frequentemente um triste monopólio a respeito desses países longínquos: as formigas laboriosas do Japão, a homogeneidade da China são verdadeiros absurdos. Quanto ao diálogo das culturas, para retomar a bela fórmula de Denis de Rougemont, ele nos é absolutamente necessário para compreendermos a nós mesmos e para podermos escapar à essa falsa globalidade de produtos culturais enlatados, provenientes unicamente dos Estados Unidos. A.C. Com relação à Rússia, quais seriam os seus prognósticos para um futuro a médio e longo prazo? Que país está surgindo depois da queda da URSS? Há progressos? Há retrocessos? G.N. Penso que a Rússia está indo definitivamente rumo ao progresso. Sair do comunismo foi extremamente difícil, já que o comunismo havia destruído todo o antigo regime: não havia mais sociedade civil no sentido ocidental deste termo. A crise não acabou, mas dois fatos se impõem: primeiro a estabilização política e a instauração de uma democracia política, imperfeita, de onde desapareceu o medo e onde o pluralismo plantou raízes. Em segundo lugar, a estabilização econômica, no sentido de que a inflação foi controlada e que o crescimento econômico acaba de de ser retomado, mas sobre novas bases econômicas que são as do mercado*. Os vários votos significativos da Rússia desde que a ditadura comunista acabou confirma– 164 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 163-169, 1998. ram, de maneira surpreendente, que a maioria dos russos não quer dar um passo atrás, e, como consequência, tem aceito as privações e desordens sociais graves que resultaram do fim daquilo que eu chamaria de o “welfare” do pobre soviético. As eleições presidenciais foram um referendum contra ou a favor da volta dos comunistas, e confirmaram esse voto. Por outro lado, as eleições parlamentares dispersaram as vozes e mostraram uma maioria de descontentes, mas que, infelizmente, não representa muito bem as queixas das diferentes classes sociais da Rússia. A.C. Como se situaria hoje a Rússia em relação ao oriente, já que, como sabemos, sua história tem raízes e vínculos profundos com o mundo oriental? G.N. A Rússia é uma grande potência asiática. Ela tem uma brilhantíssima escola de orientalistas. Hoje ela mantém com a China uma política de cooperação bastante cínica, uma espécie de prolongamento das alianças do século XIX. Com a Europa, sua cooperação é muito mais profunda porque há numa parte da sociedade russa, um profundo desejo de se tornar europeu em pé de igualdade com a Europa ocidental. Um terceiro sonho geopolítico russo é o de se tornar uma grande potência do Pacífico. Teoricamente, isto não é impossível e o Extremo Oriente russo se transformaria numa espécie de Califórnia siberiana, com a ajuda dos japoneses. Mas isto é ainda apenas uma longínqua música do futuro, e a questão ridícula das ilhas disputadas com o Japão é um obstáculo atualmente a qualquer progresso real.. Mas eu não excluo absolutamente que durante o século XXI esse sonho do pacífico da Rússia não se tornará realidade. A.C. E com relação ao ocidente? Ainda prevalece a antiga querela “ocidentalistas X eslavófilos”? G.N. Numa parte ainda pouco modernizada da Rússia de hoje a clivagem Ocidentalistas-Eslavófilos existe e persiste, na medida em que, depois do * Esta avaliação se refere à situação da Rússia em fins de 1997, quanto foi feita a entrevista ao Prof. Nivat, antes portanto dos recentes acontecimentos que vêm abalando a economia russa e a mundial. N. da T. – 165 – NIVAT, Georges. Os Estudos Orientais. desaparecimento da ideologia soviética, o nacionalismo serviu para a parte pobre e desamparada da sociedade como uma ideologia de substituição, com uma aliança entre comunistas e nacionalistas de diferentes escolas. Mas a metade ativa, e sobretudo jovem da Rússia, nem mesmo se coloca o problema: está determinado, a Rússia é “ocidentalista”, no sentido de que ela quer entrar no mercado mundial, numa sociedade de abundância, e no livre comércio e circulação das coisas e das pessoas. O problema talvez seja mais: a Rússia vai se tornar mais européia ou mais americana? A.C. Que avaliação o senhor faria dos resultados das discussões que ocorreram no Seminário Internacional: “Revolução de Outubro: 80 anos”? G.N. A conferência de São Paulo nos ajudou a fazer um balanço moral da Revolução de Outubro à luz das transformações atuais, e de ver aquilo que há de cinismo político, de utopia, e também as outras utopias que existiam na Rússia em 1917. Como, por exemplo, a utopia de Tchaianov sobre quem nos falou um de nossos jovens colegas brasileiros, Ricardo Abramovay1 . Ou ainda, a utopia cristã-socialista, aquela de Pierre Pascal, que foi meu mestre, e sobre o qual falou o professor Carone2 , evocando a figura de Jacques Sadoul. De fato, existia uma abundância de utopias, de sonho utópico na Rússia durante todo o século XIX e a utopia “cientista” marxista que impôs o seu monopólio era apenas uma das fórmulas do sonho social russo. O enfoque regional dado pelo professor Raleigh3 foi também muito interessante e redimensionou a questão. O professor Afanássiev4 tentou indicar todos os caminhos que ainda podiam ser explorados e enfatizou a via cultural, que é um pouco a minha. Ele 1 2 3 4 Professor do Departamento de Economia da FEA-USP e seu tema foi “O cosmopolitismo da utopia camponesa da Alexander Chaianov”. N. da T. O Professor Edgar Carone do Departamento de História da FFLCH-USP falou sobre “Duas visões sobre a Rússia: André Marty e Jaques Sadoul”. N. da T. Donald Raleigh, Professor de história russa da Universidade de North Carolina expôs sobre o tema “A Revolução de Outubro na Rússia provinciana”. N. da T. Iuri Afanássiev, Reitor da Universidade Estatal Russa de Humanidade, apresentou uma exposição sobre “Outubro de 1917 na herança histórico-cultural do século XX”. (N. da T.) – 166 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 163-169, 1998. teve razão em demonstrar que tudo deveria ser repensado depois da queda do dogma soviético e de sua aura em todo o mundo, inclusive no Brasil. A.C O senhor é diretor do Departamento de línguas e literaturas mediterrâneas, eslavas e orientais da Universidade de Genève. Quais são as áreas de estudos de língua e literatura que integram o seu Departamento? G.N. Nossas áreas são muito variadas e trabalhamos com plena autonomia, mas eu diria que a orientação geral é a orientação da História da Cultura e também a História da Religião, na medida em que os modos de pensamento religioso são marcos importantes de uma civilização. Em minha área de russo, estudamos particularmente a emigração russa enquanto fenômeno cultural e social, assim como a vanguarda cultural soviética, igualmente enquanto fenômeno social e político. Estudei bastante também a dissidência russa dos anos 60 e 70, enquanto fenômeno anunciador, sem o qual não se pode compreender a evolução ulterior da URSS e o desmoronamento da ideologia soviética. A.C. Há áreas mais concorridas do que outras no que se refere ao número de estudantes? Quais seriam elas e qual o número médio de alunos? G.N. Numa ordem estatística podemos classificar nossas áreas da seguinte forma: russo (por volta de 150 alunos), chinês (quase o mesmo), japonês, árabe, grego moderno e armênio. Meus estudantes estudam com frequência autores russos contemporâneos, como Pietsoukh ou Makanin, Petruchevskaia, ou um autor de que gosto muito e que eu fiz conhecer na França: Mark Kharítonov. A.C. E o número de docentes? Há um número suficiente de professores para cada área? G.N. Temos dois titulares de russo, um de chinês, um de japonês, um de árabe e um número razoável de assistentes. O grego moderno e o armênio – 167 – NIVAT, Georges. Os Estudos Orientais. não possuem titulares. Temos grandes dificuldades em convencer os outros departamentos da Faculdade de Letras à qual nós pertencemos, que cada área é em si um departamento e que seriam necessários seis orçamentos para a biblioteca, seis cotas de pesquisa distintas etc. Além disso, a Universidade de Genève está em crise orçamentária, com reduções anuais na ordem de 3%. É muito. A.C. O seu Departamento mantém intercâmbios com outros centros de estudos europeus ou americanos? Há regularmente professores visitantes? G.N. Nossos intercâmbios são principalmente pessoais, iniciativas de cada professor. Há intercâmbios com Tokyo, Moscou, Pekin. Com os colegas americanos são contactos pessoais (eu mesmo passei um ano em Harvard). Recebo colegas do Leste num acordo com o Instituto Europeu de nossa Universidade, do qual me ocupo também: todo ano dois professores por três ou quatro meses, sobretudo russos e ucranianos. Consegui estabelecer todo um programa de intercâmbio e de convites com a Universidade de Kíev que retomou o velho e prestigioso nome de Academia Mohyla. A.C. Quais as principais linhas de pesquisa que o seu Departamento desenvolve em nível de pós-graduação? G.N. Neste momento tenho alguns doutorandos que trabalham sobre a emigração russa (a revista Vozrozdenie), sobre o satirista e sociólogo Zinoviev, sobre o filósofo eslavófilo Leontiev. Tenho também um trabalho em desenvolvimento sobre as relações entre a maçonaria de Genève e a maçonaria russa no início do século XVIII. Recentemente foi defendida uma tese sobre Mallarmé na Rússia. Os problemas da recepção de um poeta numa outra cultura tem sido frequentemente objeto de meus seminários de pesquisa. A.C. E quanto à sua própria linha pessoal de investigação? Sobre o que o senhor está escrevendo no momento? – 168 – REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 163-169, 1998. G.N. Em janeiro próximo vai sair um livro de 300 páginas intitulado “ Um olhar sobre a Rússia do Ano VI”que é uma reflexão muito pessoal, ao mesmo tempo um ensaio histórico e um diário de viagem sobre a Rússia de hoje. Trabalho num livro sobre a história do nacionalismo russo em suas expressões artísticas. A.C. Apesar de sua rápida passagem pelo Brasil, é possível fazer alguma análise sobre o país a partir dessas suas primeiras impressões? G.N. A Universidade de São Paulo me impressionou fortemente pelo seu tamanho, por sua arquitetura monumental. A cidade que eu pude ver me surpreendeu pelo funcionamento relativamente regular de seu movimento interno. Apesar de gigantesca a cidade me pareceu possível de ser viver, graças a uma certa heterogeneidade. Eu esperava encontrar muito mais guetos sociais. Minha viagem pela costa de São Paulo até o Rio de Janeiro, com paradas em Ilha Bela e Paraty foi um encantamento e guardo a lembrança da primeira noite num pequeno pátio de um restaurante baiano, se não me engano, o Soteropolitano, como um momento muito agradável da descoberta da pinga, excelente mesmo! – 169 – REVISTA DE LÍNGUAS ORIENTAIS. Título Revista de Estudos Orientais n. 2 Normalização Técnica Márcia Elisa Garcia de Grandi – SBD/FFLCH-USP Caligrafia da capa Hassan Massoudy Editora de Arte Eliana Bento da Silva Amatuzzi Barros Coordenação editorial Mª Helena G. Rodrigues Projeto gráfico Walquir da Silva Digitalição de imagens e diagramação Selma Mª Consoli Jacintho Revisão dos autores Arte-final e capa Erbert Antão da Silva Divulgação Humanitas Livraria – FFLCH/USP Tipologia Times New Roman 11 e Futura 16 e 12 Mancha 11,5 x 19 cm Formato 16 x 22 cm Papel off-set 75 g/m2 (miolo) cartão branco 180 g/m2 (capa) Impressão da capa Pantone 4625U, 145U, amarelo escala e preto Impressão e Acabamento Gráfica – FFLCH/USP Número de páginas 170 Tiragem 500– exemplares 7–
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