Fraturas da tuberosidade tibial anterior em

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Fraturas da tuberosidade tibial anterior em
Fraturas da tuberosidade tibial anterior em adolescentes
Relato de casos e revisão da literatura*
1
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LÚCIO HONÓRIO DE CARVALHO JÚNIOR , WILEL ALMEIDA BENEVIDES , FRANCISCO CARLOS SALLES NOGUEIRA ,
2
4
WAGNER VIEIRA DA FONSECA , RONALDO PERCOPI DE ANDRADE
RESUMO
Os autores relatam três casos raros de fratura da tuberosidade tibial em adolescentes. Após revisão da literatura, são detalhados a embriologia, a classificação, o mecanismo da lesão e a melhor forma de tratamento desta
infreqüente lesão.
Unitermos – Fraturas da tuberosidade tibial; avulsão; fraturas do
adolescente
SUMMARY
Avulsion fractures of the tibial tuberosity in adolescents.
Case reports and literature review
Three rare cases of avulsion fractures of the tibial tu berosity in adolescents are described. After a literature review, the embriology, the classification, the mechanism and
the best treatment are detailed.
Key words – Tibial tuberosity fractures; avulsion; fractures of the
adolescent
INTRODUÇÃO
A porção cartilaginosa da epífise proximal da tíbia estende-se anteriormente entre a 12ª e a 15ª semanas de gestação. No final do desenvolvimento fetal, a tuberosidade é bem
definida, porém toda cartilaginosa em sua estrutura. Esta tuberosidade cartilaginosa situa-se no mesmo nível de epífise,
isto é, mais alta do que sua posição final. Extensão distal ou
(11)
migração da tuberosidade ocorrem após o nascimento .
* Trab. realiz. no Hosp. das Clín. da UFMG, no Hospital da Baleia-FBG e
no Hosp. Madre Tereza de Belo Horizonte
1. Prof. Aux. do Dep. do Apar. Locom. da Fac. de Med. da UFMG
2. Ortoped. do Hosp. da Baleia da Fund. Benjamin Guimarães.
3. Prof. da Fac. de Ciências Médicas de Belo Horizonte; Ortoped. do Hosp.
da Baleia da Fund. Benjamin Guimarães.
4. Chefe do Serv. de Ortop. do Hosp. Madre Tereza, Belo Horizonte
Rev Bras Ortop – Vol. 30, Nºs 1-2 – Jan/Fev, 1995
O tubérculo da tíbia desenvolve-se ordinariamente da
epífise proximal da tíbia por um centro de ossificação que é
como uma projeção estendendo-se inferiormente sobre a su(12)
perfície anterior da diáfise . Raramente há um centro separado de ossificação para o tubérculo, o qual desenvolve-se
separado da epífise, unindo-se a esta durante o fim da ado(12)
lescência .
A fratura-avulsão da tuberosidade tibial anterior é uma
(2,3,5-11,13-17)
, respondendo por menos de 3% de todas
lesão rara
(1)
as epifisiólises . A linha de fratura é através da epífise da
(8)
tuberosidade, profundamente ao seu núcleo de ossificação .
Em contraste, na doença de Osgood-Schlatter ocorre avulsão
isolada da parte anterior da epífise da tuberosidade, superficialmente ao núcleo de ossificação.
Na adolescência, qualquer atividade esportiva
que envolve salto
e/ou recepção de
saltos pode levar
a fraturas da tuberosidade. O esporte mais freqüentemente envolvido
é o salto em altu(9)
ra e, em ordem
decrescente, futebol, handebol, ginástica olímpica e
(9)
basquete . Esportes como natação e ciclismo são
raramente impliFig. 1 – A) Tipo I - A: avulsão simples sem desvio.
cados como cauB) Tipo 1- B: avulsão simples com desvio. C) Tipo
sadores.
2-A: separação da tuberosidade anterior D) Tipo
2-B: separação com cominuição. E) Tipo 3-A:
A classificaextensão à articulação do joelho; F) Tipo 3-B:
ção das avulsões
extensão à articulação com cominuição.
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L.H. CARVALHO JR., W.A. BENEVIDES, F.C.S. NOGUEIRA, W.V. FONSECA & R.P. ANDRADE
da tuberosidade tibial anterior foi estabelecida por Ogden
(14)
em 1980 (fig. 1), completando a de Watson-Jones em função da extensão da cominuição da lesão.
Tipo I
– Avulsão simples do centro de ossificação
A - sem desvio
B - desviada
Tipo II - A - Separação da tuberosidade tibial anterior
B - Cominuição do centro de ossificação
Tipo III - A - Extensão do traço de fratura à articulação do joeIho, freqüentemente a frente das inserções meniscais.
B - Cominuição dos fragmentos
Recentemente, foram relatados três casos de fratura do
tipo I, com ruptura associada do tendão rotuliano (tipo I(14)
C) . Uma extensão do deslocamento da epífise tibial até a
sua parte posterior só foi observada recentemente (1985) por
(15)
Ryu , que propôs sua colocação com um 4º tipo.
A extensão da fratura é determinada pelo grau de flexão
(9)
do joelho durante a contração violenta do quadríceps . Isso
pode ocorrer em três situações:
– Salto com joelho quase estendido, quando a avulsão
ocorre durante o impulso final, o qual resulta em hiperextensão do joelho, imediatamente antes do pé deixar o chão;
– Amortecer a queda após o salto em somente um pé,
com o joelho estendido por um quadríceps contraído;
– Quando há perda da flexibilidade em qualquer das duas
circunstâncias anteriores, o que é freqüente nos atletas não
(9)
treinados .
Com o joelho em flexão, a força exercida pelo tendão
patelar é direcionada contra a face anterior da epífise tibial.
Quanto maior o grau de flexão, maior a quantidade de
energia transmitida. Quando uma fratura-avulsão ocorre nesta
circunstância, a fratura é freqüentemente fragmentada (tipo
(9)
B) .
RELATO DE CASOS
Caso 1
Adolescente (15 anos), sexo masculino, durante partida
de basquete, ao amortecer sua queda após um salto, sentiu
estalido acompanhado de dor e incapacidade funcional absoluta do membro. A patela mostrava-se alta e o paciente
não conseguia estender o joelho esquerdo contra a gravidade.
O exame radiológico mostrou fratura-avulsão na tuberosidade tibial tipo I-B de Ogden (fig. 2).
Após acesso ântero-medial, o fragmento foi reconduzido
a seu leito e fixado com três fios metálicos de Kirschner.
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Fig. 2 – Caso 1. RX do joelho esquerdo em AP e perfil no pré-operatório
Fig. 3 – Caso 1. RX do joelho esquerdo em AP e perfil após a fixação
O paciente evoluiu satisfatoriamente no pós-operatório,
iniciando apoio parcial com seis semanas pós-cirurgia e apoio
total dois meses pós-fixação (fig. 3). Com três meses de póso
operatório, já apresentava flexão de 140° e extensão de 0
(em simetria com o lado contralateral).
Caso 2
Adolescente (15 anos), sexo masculino, com relato prévio e inequívoco de D. de Osgood-Schlatter, durante partida
de futebol teve seu chute bloqueado quando ainda se encontrava com o joelho fletido. Apresentou impotência funcional
absoluta, com incapacidade imediata de estender o joelho
ativamente. Avaliado no serviço de urgência, apresentava patela alta e dor intensa por sobre a tuberosidade tibial anterior
do joelho esquerdo. Estudo radiográfico mostrou fratura tipo
II-B de Ogden (fig. 4).
Por via de acesso ântero-medial, foi realizada a redução
do fragmento fraturado, o qual foi fixado com dois fios metálicos de Kirschner. Para fixar alguns fragmentos cominutiRev Bras Ortop – Vol. 30, Nºs 1-2 – Jan/Fev, 1995
FRATURAS DA TUBEROSIDADE TIBIAL ANTERIOR EM ADOLESCENTES
Fig. 4 – Caso 2. RX do joelho esquerdo em AP e perfil no pré-operatório.
Fig. 6 – A) Caso 3.
RX do joelho
esquerdo em AP
no pré-operatório.
B e C) Radiografias
do joelho esquerdo
em AP e perfil, no
pós-operatório, após
a retirada do
parafuso de fixação.
Fig. 5 – Caso 2. RX do joelho esquerdo em AP e perfil após a fixação.
vos localizados proximalmente, foi realizado um amarrilho,
seguindo o princípio das bandas de tensão, com fio inabsorvível Ethibone nº 2 junto aos fios de Kirschner (fig. 5).
Imobilizado com gesso longo no pós-operatório (em extensão) por três semanas, sendo então retirado o gesso e iniciada mobilização do joelho. Apoio parcial foi liberado com
seis semanas. Com dois meses de pós-operatório, apresentao
O
va flexão de 110 e extensão de 0 .
Caso 3
Paciente do sexo masculino, 15 anos, sem relato prévio
de D. de Osgood-Schlatter, teve seu chute bloqueado por adversário durante disputa de bola no futebol.
Queda imediata acompanhou-se de dor sobre a tuberosidade e patela alta com quadro radiológico mostrado na fig.
6.
Submetido a fixação com parafuso seguindo o princípio
da compressão interfragmentar, apresentava com cinco anos
O
de pós-operatório flexão de 135° e extensão de 0 .
Rev Bras Ortop – Vol. 30, Nºs 1-2 Jan/Fev, 1995
DISCUSSÃO
O primeiro caso descrito na literatura deve-se a Paul Vogt,
(12)
que publicou seus achados em 1869 . Levantamento realizado no final de 1993 mostrava 123 casos publicados na lite(13)
ratura mundial .
Apesar de pequena, nossa casuística contrariou a literatura, pois segundo esta entre adolescentes mais velhos (entre
15 e 17 anos) as fraturas são principalmente do tipo III, enquanto as fraturas dos tipos I e II são mais comuns em ado(1)
lescentes mais jovens (entre 12 e 14 anos) .
Todos os nossos pacientes eram do sexo masculino. Isso
parcialmente se deve ao maior número de homens envolvidos em esportes vigorosos e parcialmente a uma idade tardia
de fechamento da epífise tibial proximal nos homens. Buhari,
(1)
em 1993 , encontrou após a revisão da literatura 82% dos
casos em homens, 3% em mulheres e 15% em pacientes cujo
sexo não foi relatado.
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L.H. CARVALHO JR., W.A. BENEVIDES, F.C.S. NOGUEIRA, W.V. FONSECA & R..P. ANDRADE
O tipo III de Ogden forma a maioria dos relatos. O mes(1)
mo Buhari, em 1993 , encontrou após a revisão da literatura
25% sendo do tipo I, 11% do tipo II e 43% do tipo III. Em
21% dos relatos não foi possível identificar o tipo.
(1,2)
Vários autores notaram a predominância do lado não
(2)
dominante. Chow (1990) apresentou 16 pacientes destros,
sendo que 13 haviam lesado o lado esquerdo.
Doença de Osgood-Schlatter é freqüentemente associada com fraturas da tuberosidade tibial e tem sido colocada
como possível causa predisponente, porque a lesão nesta circunstância é freqüentemente proveniente de traumatismo ba(14)
nal. Polakoff (1986) encontrou 5 de seus 12 pacientes com
esta doença e desencorajou adolescentes masculinos com D.
de Osgood-Schlatter, sintomáticos ou não, de participarem
de esportes onde o salto é uma constante. Não existem dados
percentuais precisos na literatura mundial sobre quantos pacientes apresentavam D. de Osgood-Schlatter antes da fratura.
Muitos autores tratam as fraturas do tipo I-A e II-A conservadoramente, aproveitando a quase integridade do meca(1,2,9,12)
. Este tratamento requer seis a oito semanismo extensor
nas de imobilização com gesso longo em extensão. Muitos
(9,14)
pacientes retornam à atividade normal após três meses .
Todas as fraturas do tipo III devem ser tratadas com redução aberta e fixação interna. Muitos autores preferem parafusos com bandas de tensão, além de suturas, grampos, pi(1,2,9,12,14)
.
nos e fios de Kirschner
A fixação com parafusos promove uma fixação segura,
permitindo mobilização precoce, sem se acompanhar de atrofia da musculatura. Fixação inadequada com somente um
(8,9)
parafuso pode resultar em reavulsão .
As complicações podem ser divididas em menores e em
maiores, de acordo com a limitação que produzem e a freqüência com que acontecem.
Entre as complicações menores, citamos: dor por sobre
(7)
a tuberosidade tibial ; frouxidão do ligamento cruzado an(7)
(7)
terior ; calcificação do tendão rotuliano ; insensibilidade
(11)
(1)
cutânea residual ; diminuição da amplitude da flexão ;
(1)
erosão cutânea .
Entre as complicações maiores, citamos: lesão vascular
(6)
(2)
(1)
poplítea ; não união/reavulsão ; patela baixa ; síndrome
(13)
(7)
compartimental ; genu recurvatum .
Concluindo, devemos lembrar que se trata de patologia
rara, porém não tão rara a ponto de qualquer profissional não
deparar-se com ela durante sua prática diária. São muitos os
relatos de erro diagnóstico, confundindo-a com fratura do
próprio inferior da patela.
90
Há consenso(9) de que aqueles pacientes envolvidos com
esportes de risco que desenvolvam uma D. de Osgood-Schlatter particularmente agressiva (com edema local, diminuição da amplitude de movimentos, com dificuldade em realizar a extensão ativa, etc. ) devem ser orientados a tomarem
medidas preventivas. Isso é particularmente importante iniciando-se na idade de 14 anos, quando o adolescente está no
estágio de pré-fechamento da epífise.
As medidas preventivas são ainda mais justificáveis se
considerarmos a similaridade clínica entre a apofisite tibial
e uma fratura sem desvio da tuberosidade tibial anterior.
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Rev Bras Ortop – Vol. 30, Nºs 1-2 - Jan/Fev, 1995

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