Salafismo no Egito

Transcrição

Salafismo no Egito
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
SALAFISMO NO EGITO: DO SILÊNCIO À PARTICIPAÇÃO POLÍTICA
Autor: José Antonio Lima
Disciplina: Islã e Ocidente: intervenções e reações, 1990-hoje. Debates Ideológicos e
Políticas Internacionais no Mundo Muçulmano Contemporâneo. Curso de pósgraduação – 2º semestre de 2013 (paper final).
Responsável: Prof. Dr. Peter Robert Demant
São Paulo
2013
1
ABSTRACT
This study addresses the debate of Salafism in Egypt. The discussion begins with an
analysis of the history of Salafism, accompanied by reflections on which traces of this
ideology are present today. The study also addresses the importance of Wahhabism, the
Saudi version of Salafism, and its influence in Egypt. Then, this paper discusses the
various changes undergone by the Egyptian Salafism during the political opening
occurred after the overthrow of Hosni Mubarak in February 2011. The changes in the
speech of the main Salafi leaders and groups are outlined, as is a picture of how the
various strands of this group were inserted in the political scenario of the country.
Finally, this study tries to answer what is the impact of the Salafists entry into politics
for the future of Egypt.
Keywords: Egypt, salafism, salafist, wahhabism, Saudi Arabia, Middle East
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SUMÁRIO
Introdução .............................................................................................................. 3
1. O que é o salafismo? ......................................................................................... 4
1.1 Ibn Taymiyya e as origens do salafismo ............................................
4
1.2 Como os salafistas se definem? .........................................................
5
2. Wahabismo e a Arábia Saudita ........................................................................
7
2.1. Qutb e a deslegitimação dos governos ..............................................
8
3. Salafismo no Egito ............................................................................................
10
3.1. Silêncio x ativismo ....................................................................................
13
3.2. Os salafistas durante as manifestações contra Mubarak ...........................
15
3.3. A entrada na política .................................................................................. 17
4. Considerações finais ........................................................................................... 20
5. Bibliografia ......................................................................................................... 23
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INTRODUÇÃO
O tema deste estudo é uma análise a respeito do salafismo, um movimento religioso
muçulmano ultraconservador que ganhou grande destaque no cenário político do Egito
após a derrubada do ditador Hosni Mubarak, em 2011.
A discussão é iniciada com uma tentativa de definir o salafismo e suas principais
características. Para isso, é traçado um histórico do salafismo como movimento
religioso, no qual são abordadas as ideias dos pensadores Taqi al-Din ibn Taymiyya
(1263-1328) e Muhammad ibn ‘Abd al-Wahhab (1703-1792), e também o
estabelecimento do salafismo no Egito.
O estudo se concentra, então, em mostrar como a abertura política no Egito
permitiu que a vertente ativista do salafismo ganhasse corpo diante da natureza quietista
do movimento. Isso se deu por meio de adaptações do discurso religioso que passaram a
justificar e incentivar a participação política após décadas defendendo que os salafistas
deveriam se postar às margens da disputa por poder. Tal transformação ocorreu de
forma rápida e pode ser resgatada por meio de uma análise de declarações de líderes e
grupos salafistas feitas antes, durante e depois dos 18 dias de levante anti-Mubarak.
Este trabalho, então, mostra como, após a queda de Mubarak, os salafistas
passaram a se organizar em partidos políticos. Nesta empreitada, o movimento avançou
bastante na capacidade de centralizar seu discurso e ações, como revela seu sucesso
eleitoral, mas isso não foi suficiente para superar as contradições geradas pelo embate
entre suas vertentes quietista e ativista. Ainda que essas divisões permaneçam dentro do
movimento, está claro que os salafistas são uma força política que não voltará a seu
papel de mero proselitismo religioso. Os salafistas serão, daqui para frente,
protagonistas na política egípcia, pois representam setores importantes da população.
A ascensão deste movimento altamente conservador, no entanto, cria inúmeros
desafios para o Egito, em questões como democracia, direitos humanos e política
externa. Um debate a respeito das perspectivas dessas questões para o futuro do Egito
conclui esta pesquisa.
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1. O QUE É O SALAFISMO?
O termo salafista ganhou proeminência nas análises internacionais feitas no Ocidente
após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2011. Depois da descoberta de que a
Al-Qaeda estava por trás dos atentados contra os Estados Unidos, se tornou comum ler e
ouvir a respeito do movimento religioso que preconiza uma interpretação bastante rígida
do Islã e cuja versão mais extremista tem tendências violentas. Com o passar do tempo,
o termo esteve confinado a discussões a respeito da ideologia da Al-Qaeda, mas voltou
ao mainstream, chegando ao jornalismo diário, dez anos depois do 11 de Setembro.
A partir de 2011, com a abertura política ocorrida em alguns países do Oriente
Médio, em meio ao que se convencionou chamar de Primavera Árabe, o termo salafista
voltou a ganhar destaque. A palavra passou a ser usada de forma corriqueira para
designar grupos bastante variados, mas marcados por uma postura ultraconservadora,
visão iliberal da sociedade e uma surpreendente capacidade de mobilização política. O
papel desses grupos no contexto sócio-político do Egito é o objeto deste estudo. Antes,
porém, é preciso tentar definir com o máximo de acurácia possível o que é o salafismo e
o que ele representa hoje em dia.
1.1 Ibn Taymiyya e as origens do salafismo
O termo salafista vem da expressão árabe al-salaf al-salih (“antepassados veneráveis”).
Entre os muçulmanos sunitas, o termo pode ter uma conotação muito positiva pois é
uma referência ao período inicial e, portanto, “mais autêntico” do Islã (Haykel, 2009),
aquele iniciado pela revelação do profeta Maomé, levado a cabo pela três primeiras
gerações de muçulmanos e encerrado no período da morte de Ahmad ibn Hanbal (780855), um dos principais teólogos muçulmanos de todos os tempos.
A formação do salafismo como doutrina remete aos trabalhos de Taqi al-Din ibn
Taymiyya (1263-1328). Teólogo muçulmano de grande importância, Ibn Taymiyya
viveu durante um período de inúmeras crises e derrotas do Islã, marcado
definitivamente pela tomada de Bagdá em 1258 pelos mongóis. Este evento
efetivamente acabou com o Califado Abássida, baseado no que hoje é o Iraque. A
dominação mongol era encarada por Ibn Taymiyya tanto como uma forma de punição
por parte de Deus diante do comportamento condenável dos muçulmanos quanto prova
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de que os mongóis não eram muçulmanos de verdade (Cooper, 2005). Este era, assim,
um período em que os muçulmanos buscavam entender o fracasso de sua civilização e
encontrar uma forma de retomar as glórias do passado. Para Ibn Taymiyya, isso se daria
por meio do retorno às origens do Islã. O período em que ele vivia era semelhante ao
encontrado por Maomé após a revelação: um ambiente de ignorância, a jahiliyya.
Em seus trabalhos, Ibn Taymiyya retomou os ensinamentos de Hanbal e
desenvolveu uma tese fundamentalista por meio da qual defendia a interpretação literal
dos versos do Corão e das hadiths (os atos e palavras de Maomé). Ibn Taymiyya
chegou a suas conclusões por meio de um debate teológico com outros grupos, no qual
tentava retirar do Islã os rituais e as práticas consideradas por ele heréticas, por terem
sido incluídas nos costumes dos muçulmanos ao longo do tempo.
A influência do pensamento de Ibn Taymiyya pode ser verificada nos dias de
hoje. Para os salafistas a crença verdadeira tem uma dupla origem (Haykel, 2009). Ela é
constituída pela fé interior e pelas formas de manifestação desta fé. Atos como visitar
túmulos de antigos líderes ou comemorar o aniversário de Maomé são vistos como
heréticos. Assim, para muitos salafistas, quem não possui a fé interior ou não a
manifesta da maneira considerada correta, não demonstra a “crença verdadeira” e não é
um muçulmano de verdade. Este tipo de interpretação abre a possibilidade de
excomunhão (takfir) dos infiéis.
1.2 Como os salafistas se definem?
Segundo Haykel, os salafistas se definem e, portanto, se diferem, por meio de três
dimensões diferentes. A primeira delas é a teologia, na qual há um enorme grau de
similaridade entre todas as vertentes do salafismo. Os seguidores de Ibn Taymiyya
consideram seu trabalho escrito a “palavra definitiva em polêmicas teológicas”:
“Por conta disso, muitos salafistas modernos não mais consideram
necessário travar um debate teológico detalhado com outros muçulmanos,
pois este foi vencido por Ibn Taymiyya. Em vez disso, os salafistas
continuam hoje com o esforço de expurgar da tradição sunita traços e
influências não salafistas” (HAYKEL, 2009, pp. 40).
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Em uma segunda dimensão, os salafistas se definem por meio da adesão ou não a
uma das quatro escolas de jurisprudência religiosa (madhahib, no singular madhhab).
Neste aspecto, há uma disputa entre dois conceitos diferentes de comportamento. O
primeiro é o taqlid, a adesão automática a uma dessas quatro escolas, por meio da qual o
fiel acata as decisões de um líder religioso sem questionar de onde partiram a
argumentação e as provas para embasá-las. A versão do salafismo da Arábia Saudita, o
wahabismo (que será analisado mais adiante), é conhecida por ser aderente à escola
Hanbali (a que deriva do pensamento de Ahmad ibn Hanbal).
Muitos outros salafistas, no entanto, rejeitam por completo o taqlid e defendem a
interpretação independente das fontes legais por parte de cada indivíduo (ijtihad). Ainda
de acordo com Haykel (2009), esta posição provavelmente deriva do pensamento de Ibn
Qayyim al-Jawziyyah (1292-1350), discípulo de Ibn Taymiyya, segundo quem os
muçulmanos comuns não só devem realizar o ijtihad como não deveriam ter a obrigação
de realizar o taqlid. Cabe notar que, nesta disputa interna está uma questão sobre a
natureza do movimento: qual posição é mais parecida com a dos “antepassados
veneráveis” e, portanto, é a única correta?
O iemenita Muhammad al-Shawkani (1759-1834) reforçou a posição de Ibn
Qayyim ao afirmar que a busca por provas da jurisprudência não consistia em taqlid,
mas sim em outro conceito, ittiba, cujo significado é “seguir” (Haykel, 2009). Assim,
Al-Shawkani ensinou a seus seguidores que as escolas de jurisprudência teriam se
tornado um obstáculo entre o fiel e Deus, ou seja, eram uma inovação que deveria ser
combatida. Ao se verem livres do taqlid, eles estariam, portanto, mais perto do
comportamento das primeiras gerações de muçulmanos e seriam, assim, detentores da
única versão correta do islã.
A terceira característica que define os salafistas é a mais polêmica delas. É o
conceito de manhaj, a forma como cada um vive sua vida. Basicamente, este conceito
determina de que forma o salafista vai ou não participar da vida política, e divide os
salafistas em três grupos distintos: os silenciosos, que condenam a participação na vida
política; os que defendem um ativismo não-violento; e os chamados jihadistas, para os
quais a luta armada é a forma correta de lidar com o mundo.
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2. Wahabismo e a Arábia Saudita
É impossível analisar o salafismo hoje em dia sem discutir a importância e a influência
de Muhammad ibn ‘Abd al-Wahhab (1703-1792), um reformista salafista pré-moderno
que deu origem ao wahabismo, a grosso modo a versão saudita do salafismo.
Integrante da tribo Banu Tamim, Al-Wahhab pertencia a uma família de
religiosos e foi bastante influenciado pelo pensamento de Ibn Taymiyya, com o qual
teve contato durante suas viagens pelo mundo muçulmano. Como seu antecessor, AlWahhab via o mundo a seu redor como sendo uma reprodução da jahiliyya com a qual o
profeta se deparou após a revelação. A única forma de combater este estado de
ignorância era, para Al-Wahhab, buscar a glória antepassada por meio da “reconstrução
da espiritualidade e moralidade islâmicas a partir de um retorno à antiga ‘pureza’ do
islã” (Rahman, 1984).
No oásis de Uyaynah, onde deu início a sua carreira de pregador, Al-Wahhab se
notabilizou pela defesa do monoteísmo (tawhid) e pela condenação do ato de agregar
inovações e heresias ao Islã (bid’a). Ele também estava disposto a classificar todos
aqueles que não aderissem às determinações do monoteísmo de infiéis (kafir) e
condená-los à excomunhão (takfir). Para conseguir seus objetivos, Al-Wahhab
determinou a aplicação de uma severa versão da sharia, a lei islâmica, na qual havia
punições duras aos que não rezassem e apedrejamento de mulheres acusadas de traição.
A rigidez fez os governantes de Uyaynah expulsarem Al-Wahhab da região (AlRasheed, 2010), mas logo ele encontrou guarida em outro oásis, o de Diriyah, sob a
proteção de Muhammad ibn Saud.
Em 1744, Ibn Saud e Al-Wahhab firmaram um acordo que lançou as bases
expansionistas para a criação de um Estado religioso na Península Arábica (projeto
consolidado apenas em 1932, com a fundação da Arábia Saudita) e que está em vigor
até hoje, como conta Meijer.
Por meio do pacto Ibn Saud poderia atrelar o fervor religioso de um movimento
revivalista às ambições políticas de sua família. O território que era liberado era
expurgado de ulemás que se opunham à missão, enquanto a população era forçada
a aderir ao novo credo e uma nova classe de ulemás era treinada para aplicá-lo. Os
descendentes de ibn ‘Abd al-Wahhab estabeleceram uma dinastia religiosa,
chamada al-Shaykh (família do xeique), que ganhou poder sobre o establishment
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religioso, enquanto al-Saud (a família Saud) forneceu a elite política do novo
estado. (MEIJER, 2009, pp. 8)
O pacto Saud-Wahabista foi uma simbiose entre dois projetos complementares,
mas o passar do tempo e as vicissitudes da história criaram desafios que mostram as
contradições entre eles. Como vimos acima, há um debate interno no salafismo a
respeito da participação ou não de seus fiéis na política. O Wahabismo inicialmente
escapou desta dicotomia devido ao acordo com a família Saud – o auxílio político era
necessário para espalhar sua ideologia. Contribuiu para a convivência entre as duas
partes o conceito de wali al-amr, desenvolvido pelos clérigos wahabistas, segundo o
qual o fiel deve respeitar o governante desde que ele seja muçulmano e se afastar da
política. A fragilidade deste equilíbrio entre o poder religioso e o poder político,
entretanto, foi escancarada a partir de 1948, quando a Arábia Saudita passou a exportar
petróleo e se transformou em um ator internacional de grande importância.
A proeminência da Arábia Saudita fez o Estado, e o wahabismo, entrarem em
contato com o mundo moderno. O impacto foi de grande monta, como conta Meijer:
De um movimento sectário, excluído, localizado, paroquial e marginal, o
wahabismo foi jogado para dentro do mundo moderno por pensadores e grupos
independentes mais sofisticados e diversos do ponto de vista ideológico e cultural,
que o transformaram para confrontar o mundo moderno. Eles trouxeram para a
equação suas próprias doutrinas, interesses, temas e backgrounds para criar um
salafismo multifacetado, que é refletido em uma diversidade de correntes, das
apolíticas e quietistas, incluindo movimentos de identidade e estilo de vida, a
movimentos políticos ativistas e redes jihadistas violentas (MEIJER, 2009, pp. 9)
2.1. Qutb e a deslegitimação dos governos
A partir deste momento estava aberto o caminho que faria da Arábia Saudita um país
altamente contraditório. Como vimos, o wahabismo foi fundamental na formação do
Estado saudita e até hoje é essencial para garantir a legitimidade da monarquia. Como
veremos adiante, no entanto, a troca de experiências e ideologias entre os salafistas
sauditas e os salafistas de outras nacionalidades, incluindo os egípcios, criou desafios
monumentais para a Arábia Saudita. Hoje, a principal contestação ao regime da família
Saud vem de wahabistas que não consideram o governo suficientemente islâmico. Este
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desafio é agravado pelo fato de as facetas mais recentes do salafismo permitirem, ao
contrário do wahabismo original, ativismo político e, no caso mais radical, o uso da
violência. Esta situação cria um impasse: de onde deveria vir a legitimação do regime,
passam a vir as críticas que deslegitimam sua existência.
Na região mais extrema do espectro político salafista estão os seguidores do
pensador egípcio Sayyid Qutb (1906-1966). Em seus trabalhos, Qutb retomou o
conceito de jahiliyya de Ibn Taymiyya, mas levou-o a outro patamar. Uma análise
aprofundada da teologia de Qutb foge ao escopo deste trabalho, mas basta sabermos
que, como escreve Kepel (2003), Qutb fez o que pensadores religiosos anteriores não
tiveram a coragem de fazer: estendeu o conceito de jahiliyya para as sociedades e
regimes dos países muçulmanos atuais, além de criar as justificativas teóricas para
classificar os líderes políticos que atuam descumprindo a sharia como infiéis (kafir) e
declará-los excomungados (takfir), passíveis de serem alvo da jihad.
O pensamento de Qutb influenciou de forma acentuada a rede terrorista AlQaeda, por meio de seu ideólogo, o egípcio Ayman al-Zawahiri. Antes de ser o número
dois de Osama bin Laden, Zawahiri liderou grupos jihadistas em seu país, como a Jihad
Islâmica, que se caracterizou pela extrema violência. A estratégia do terror, ainda que
tenha se espalhado pelo mundo por meio da Al-Qaeda, não deu frutos no Egito. Ainda
assim, como ocorreu em outros países, parte do legado de Qutb sobrevive. Ele é um dos
ideólogos que justifica o ativismo político de parte dos salafistas, em detrimento do
caráter quietista defendido por outros.
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3. SALAFISMO NO EGITO
O salafismo chegou ao Egito no início do século XX. Diversos autores apontam a AlGam’iyya Al-Shar’iyya – fundada em 1912 por Sheikh Mahmoud Khattab Al-Sobky e
hoje responsável por uma das mais proeminentes redes de filantropia do país – como a
primeira instituição salafista criada no Egito. Gauvin (2012), no entanto, rejeita esta
ideia, afirmando que os principais líderes da Al-Gam’iyya Al-Shar’iyya jamais
reivindicaram este rótulo. A organização tem hoje cerca de 5 mil mesquitas no Egito
que, segundo Gauvin (2012), estudam e ensinam também textos clássicos sufistas,
vertente do islã rejeitada por salafistas. Assim, afirma o autor, ainda que o salafismo
prospere na estrutura da Al-Gam’iyya Al-Shar’iyya, por conta de sua rejeição às
inovações (bid’a), ele não é a “ideologia dominante do grupo”.
Outro argumento de Gauvin (2012) a respeito da natureza não-salafista da AlGam’iyya Al-Shar’iyya são as críticas que seus líderes fazem ao grupo considerado a
principal organização salafista do Egito, a Ansar al-Sunna. Fundada em 1926 por
Sheikh Mohamed Hamed El-Fiqi, a Ansar al-Sunna tem foco nos ensinamentos do
monoteísmo (tawhid) de Ibn Taymiyya e na proteção da Sunna, mas também uma
marcada hostilidade ao sufismo. Esta característica divide as duas organizações, afirma
Gauvin, apesar do sentimento de parceria existente entre elas. Esta “camaradagem”
deriva da fusão realizada pelo governo egípcio em 1960, quando foram detectadas na
Ansar al-Sunna características para se tornar “terreno fértil para o pensamento
revolucionário”.
É importante notar que há uma série de suspeitas a respeito da relação entre
essas duas organizações e a Arábia Saudita. De acordo com Gauvin (2012), a “relação
calorosa com o clero wahabista saudita” é uma característica definidora da Ansar alSunna, o que levanta críticas a respeito da natureza egípcia da organização.
Oficialmente, a Ansar al-Sunna rejeita acusações de ser manipulada pela Arábia
Saudita, e diz que a relação se dá no sentido inverso: os ideólogos egípcios é quem
teriam exercido influência na situação religiosa saudita.
Ainda que líderes salafistas de todo o mundo neguem, não faltam indícios a
respeito de como o dinheiro saudita flui para organizações wahabistas/salafistas. O tema
apareceu até mesmo em um cabo diplomático da embaixada dos Estados Unidos no
Cairo enviado para Washington em fevereiro de 2009, cujo tema era “o crescimento do
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salafismo no Egito”. Os diplomatas norte-americanos afirmavam que “o alegado
financiamento saudita” seria um dos responsáveis por este fenômeno, e que a “sabedoria
convencional” indicava que Ansar al-Sunna e Al-Gam’iyya Al-Shar’iyya eram
financiadas “a partir da Arábia Saudita e de egípcios ricos morando no Golfo”. O
documento cita, ainda, a fala do então ministro de Assuntos Religiosos do Egito,
Hamdy Zakzouk, segundo quem as duas organizações recebem “financiamento
significativo da Arábia Saudita” (Telegraph, 2011).
Em dezembro de 2011, relatório do governo do Egito mostrou que a Al-Sunnah
al-Mohammadiya (outro nome da Ansar al-Sunna), recebeu naquele ano cerca de US$
50 milhões de associações no Catar e no Kuwait (Hubbard e Michael, 2011). Segundo o
jornal Akhbar al-Youm, citado pela Associated Press, apenas um décimo deste valor foi
para caridade, enquanto o resto foi usado em “projetos de desenvolvimento”.
A chegada de dinheiro do Golfo por esses meios é de difícil estudo pois ela não
se dá às claras e, muitas vezes, nem a partir das contas do governo. “Tradicionalmente o
dinheiro é dado por membros da família real, investidores ou líderes religiosos, e
escoado por meio de instituições de caridade muçulmana e organizações humanitárias”,
afirmou o cientista político Karim Sader ao canal francês France24 (Daou, 2012). De
acordo com a reportagem, são os mesmos “canais opacos” usados para fornecer armas a
grupos extremistas, muitos dos quais compartilham de ideologias semelhantes às de
grupos não-violentos.
Reportagem do jornal The New York Times feita em 2010 com base em
documentos divulgados também pelo WikiLeaks mostrou a dificuldade do governo dos
Estados Unidos na luta contra o financiamento de grupos terroristas. Um dos
documentos, afirma o Times, concluía que “doadores da Arábia Saudita constituem a
mais significativa fonte de financiamento para grupos terroristas sunitas no mundo”
(Lichtblau e Schmitt, 2010). Os documentos mostram que o dinheiro não parte apenas
da Arábia Saudita, mas também de outros países ricos da região, como Catar, Emirados
Árabes Unidos e Kuwait. A reportagem indica como o financiamento do terrorismo
passa também pelo financiamento de grupo não-violentos. Em determinado momento,
afirma o jornal, o governo do Kuwait reclamou das medidas “draconianas” dos Estados
Unidos contra uma “proeminente instituição de caridade”. Ou seja, o combate ao
financiamento do terror esbarrou em uma suposta instituição beneficente.
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No caso do Egito, o financiamento saudita ao salafismo não-violento ocorre
também de outras formas. Uma das mais importantes é por meio da manutenção de
canais de televisão com programação parcial ou totalmente salafista. Um estudo de
2009 avaliou como principais emissoras salafistas do Egito a Al-Nass e a Al-Rahma. A
primeira pertence ao investidor saudita Mansur Bin Kadasah e a segunda ao clérigo
egípcio Mohamed Hassan, que estudou na Arábia Saudita e hoje é um dos principais
ideólogos do Chamado Salafista (o grupo será analisado abaixo).
A educação, como a de Mohamed Hassan, é uma das formas mais efetivas
usadas pela Arábia Saudita para espalhar sua ideologia. A já citada reportagem da
France24 afirma que boa parte do dinheiro saudita vai para estudantes árabes que
participam de cursos religiosos em universidades de cidades como Riad, Medina e
Meca. “A maior parte dos estudantes da Universidade de Medina são estrangeiros que
se beneficiam de generosas bolsas de estudos dadas por patrocinadores sauditas, assim
como acomodação gratuita e passagens de avião”, afirmou ao canal Samir Amghar,
autor de Le salafisme d’aujourd’hui. Mouvements sectaires en Occident. “Quando se
formam, os melhores são contratados pela monarquia saudita, enquanto o resto volta a
seus respectivos países para pregar o wahabismo”.
O fluxo de dinheiro do Golfo para o resto do Oriente Médio cresceu de forma
exponencial a partir do início dos anos 1970, período marcado pelo embargo das nações
produtoras de petróleo – a maioria árabe/muçulmana – ao Ocidente, em represália ao
apoio dos Estados Unidos a Israel na Guerra do Yom Kippur. A crise elevou de forma
dramática o preço do petróleo, ampliando o poder econômico das nações produtoras da
commodity, especialmente da Arábia Saudita.
Foi neste contexto que surgiu o Chamado Salafista (al-Dawa al-Salafiyya), o
mais importante ator político salafista do Egito hoje em dia. Os fundadores do Chamado
Salafista eram integrantes do Grupo Islâmico (al-Gamaa al-Islamiyya), uma rede de
islamistas que ganhou espaço durante o governo de Anwar al-Sadat (1970-1981), cujo
objetivo na época era contrabalancear o poder de esquerdistas e nasseristas, fortalecidos
no mandato de seu antecessor, Gamal Abdel Nasser (1956-1970). O Grupo Islâmico era
bastante diverso ideologicamente e a facção que montou o Chamado Salafista era
composta basicamente de estudantes da Universidade de Alexandria. A organização foi
criada “em grande parte por conta de diferenças políticas e ideológicas com outros
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islamistas, particularmente a Irmandade Muçulmana, que tentava dominar a cena
islamista egípcia nos anos 1970” (Al-Anani, 2012). A influência saudita sobre o
Chamado Salafista é inegável. Seu fundador principal foi Mohamed Ismail al-Moqadim,
cirurgião educado na Arábia Saudita e influenciado por Abdel Aziz bin Baz e Mohamed
ibn Saleh al-Othaimin, dois líderes religiosos do wahabismo saudita.
3.1 Silêncio x ativismo
Como vimos acima, os salafistas podem ser definidos a partir de três dimensões
diferentes: a teológica, na qual há grande convergência entre os movimentos de todo o
mundo; a jurisprudencial, na qual há uma diferença básica entre a escola wahabista e o
restante dos salafistas; e a política, responsável por grandes dilemas a respeito do
comportamento do salafista.
A tensão básica deriva da contradição entre explicar uma rigorosa doutrina de
submissão a Deus (...) e as demandas que isso exige do fiel para aderir a esse credo.
(...) Pode o fiel implementar esta determinação ao aceitar o poder político, mesmo
que o governante não adira à lei islâmica (...), a sharia (...) ? Ou deve o verdadeiro
fiel corrigir o governante depravado, repreendendo-o verbalmente ou mesmo se
insurgindo contra ele? Em outras palavras, o salafismo é primariamente quietista
ou ativista, e em qual grau deve ser uma dessas duas coisas? (MEIJER, 2009, pp.
4)
A emergência da democracia como forma de governo aprofundou as tensões a respeito
da participação política dentro do salafismo. O salafismo tem como característica
importante uma rejeição aos valores do Ocidente e, no processo de afirmação desta
rejeição, a hostilidade à democracia ganha destaque. Como afirma McCants (2012),
muitos salafistas veem a democracia como uma fraude ou como antítese ao islã, uma
vez que “usurpa o papel de Deus como fazedor das leis”.
Pouco antes do início do levante contra Hosni Mubarak, em 2011, líderes
salafistas importantes reforçaram esta rejeição. Em 2008, Yasser Borhami, do Chamado
Salafista, afirmou que “participar do jogo político implica no sacrifício de princípios” e,
assim, se os islamistas participassem da política, iriam abandonar seus “princípios e
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identidade islâmica em troca de um cargo ou de uma oportunidade” (Abdel-Latif, 2012).
Em 2009, o fundador do Chamado Salafista, Mohamed Ismail al-Moqadim, reforçou a
pregação contra a política na mesma base de argumentação. Segundo ele, ao ajustar seus
valores para participar da negociação política, os salafistas perderiam a integridade, a
fonte de sua influência sobre a sociedade (McCants, 2012).
Muitos pensadores salafistas influentes, entretanto, avaliavam a questão de
forma diversa. O egípício Ahmad Shakir, nos anos 1940, e o albanês Muhammad Nasir
al-Din al-Albani, nos anos 1990, consideravam a democracia um mal necessário, pois
ao se engajar nas eleições, os salafistas poderiam eleger “candidatos tementes a Deus
que evitariam o mal maior do estado secular e pressionariam pelo estabelecimento de
um estado islâmico” (McCants, 2012). A existência de justificativas para participar de
processos eleitorais fez alguns salafistas se engajarem na política. Em 2005, em eleições
flagrantemente fraudulentas organizadas pelo regime Mubarak, o líder salafista Hazem
Salah Abu Ismail foi candidato ao parlamento. Ismail conquistou uma vaga, mas o
resultado acabou modificado e ele ficou fora do Legislativo egípcio. Em 2010, Yasser
Borhami, o mesmo que dois anos antes havia condenado o sacrifício de valores que a
democracia provocada, cogitou lançar candidatos do Chamado Salafista na eleição
daquele ano (McCants, 2012).
É importante notar que, apesar do quietismo oficial, não se deve classificar os
salafistas egípcios como totalmente apolíticos. Em sua pesquisa, Gauvin (2012) afirma
que todos os contextos salafistas que estudou eram altamente politizados e que a divisão
básica se dava entre os Qutbistas (seguidores de Sayyid Qutb, analisado acima) e os
Madkhalistas, seguidores do saudita Rabi Al-Madkhaly, segundo quem não é permitido
se insurgir contra nenhum líder muçulmano, sob nenhuma hipótese (Bakr, 2012). A
questão central deste debate era: “até que ponto deve um salafista reconhecer a
legitimidade do regime Mubarak (e, implicitamente, a de qualquer regime político que
não governe pela sharia)?” (Gauvin, 2012).
Aqui, cabe notar que, como ocorre na Arábia Saudita, o lado quietista do
salafismo no Egito favoreceu o fortalecimento do governo autoritário de Mubarak.
Segundo Revkin (2011), Mubarak tolerava e se beneficiava da propagação da influência
salafista, pois muitos ideólogos do movimento pregavam a obediência incondicional ao
líder. Um fato emblemático deste favorecimento à ditadura foi a fatwa emitida em
15
dezembro de 2010 pelo pregador salafista Lutfi Amir na qual condenava críticas a
Mubarak feitas pelo ex-chefe da Agência Internacional de Energia Atômica, o egípcio
Mohamed El Baradei, e autorizava o governo a prender ou até mesmo matar Baradei se
ele não voltasse atrás de suas declarações (Brown, 2011). Poucos dias antes do início do
levante contra Mubarak, decretos religiosos (fatwas) defendendo que Gamal Mubarak
(filho de Hosni) herdasse o poder e alertando sobre a proibição de protestos contra o
governante foram emitidos.
O levante contra Mubarak, iniciado em 25 de janeiro de 2011, iria provocar
mudanças colossais no cenário político egípcio e, com os salafistas, não seria diferente.
3.2 Os salafistas durante as manifestações contra Mubarak
No período final do regime Mubarak, o foco da repressão política era a Irmandade
Muçulmana. Os únicos salafistas incomodados pelos serviços de segurança eram
aqueles que tinham ligações com grupos proibidos, como al-Gamaa al-Islamiyya
(Brown, 2011), enquanto os outros exerciam seu proselitismo de forma relativamente
tranquila. As mudanças ocorridas a partir de 25 de janeiro eram, assim, consideras
perigosas pelos salafistas, por dois motivos.
Em primeiro lugar, a instabilidade provocada pelo levante poderia prejudicar a
atuação dos movimentos. Com Mubarak, não havia uma série de liberdades, mas os
salafistas podiam fazer suas pregações e não desejavam perder esta facilidade. Em
segundo lugar, cabe notar que as manifestações populares eram, desde o início, de
cunho secular. Foram ativistas sem vínculos religiosos os organizadores dos primeiros
protestos. Assim, a liderança salafista de início condenou o levante. Três documentos
públicos mostram as posições do Chamado Salafista.
No primeiro, datado de 29 de janeiro, quatro dias após o início do levante contra
Mubarak, portanto, o Chamado Salafista determinou a seus seguidores que eles estavam
proibidos de participar das manifestações. Os salafistas deveriam “cooperar para a
proteção das propriedades públicas e privadas” e ter cuidado com “sabotagem,
pilhagem, roubo e ataques a pessoas”. (Abdel-Latif, 2012).
16
Dois dias depois, o Chamado Salafista continuava enxergando as manifestações
como um ataque bárbaro. Seus seguidores, assim, deveriam proteger “o sangue, as
almas e as propriedades” de violações e “se armar com qualquer ferramenta possível”
para dissuadir os criminosos (Abdel-Latif, 2012). Cabe notar que, neste período, o Egito
estava em convulsão social. Para conter as manifestações, o regime Mubarak ordenou
que a polícia deixasse as ruas (Zaeyd e El-Madany, 2011) e usou criminosos para
aterrorizarem os bairros residenciais. O resultado foi uma onda de vigilantismo nas ruas
do Cairo, em que os moradores pegaram em armas para proteger suas ruas e bairros.
O Chamado Salafista não estava sozinho na pregação contra os protestos. Como
conta Brown, Mohamed Hassan (da TV Al Al-Rahma) fez, em 25 de janeiro, uma
pregação pedindo para os egípcios não deixarem o país rumar ao caos, enquanto em 4
de fevereiro o pregador Mustafa Al-‘Adawi pediu na televisão estatal que os
manifestantes fossem para casa, acrescentando que aqueles mortos em lutas com outros
muçulmanos não morreriam como mártires.
Em 1º de fevereiro, as posições do Chamado Salafista já estavam bastante
diferentes. Nesta data, pode-se dizer que o grupo abandonou seu lado quietista para
entrar de vez na política. O comunicado daquele dia afirmava que mudar a situação
anterior às manifestações era uma “necessidade” e que aqueles “responsáveis por levar
o país à beira do abismo não poderiam continuar” (Abdel-Latif, 2012). O grupo pediu
união entre os partidos políticos e lançou um pacote de mudanças necessárias, todas
políticas, que incluía “a extinção da lei de emergência, o fim do despotismo, da
repressão, da tortura, da prisão e detenção sem julgamento; reforma da educação; uma
radical reforma da mídia; e a suspensão da repressão direcionada a islamistas nos
campos do emprego, educação, mídia e outros” (Abdel-Latif, 2012).
Parte da mudança de posição do Chamado Salafista se deu por conta da atuação
independente de salafistas no levante contra Mubarak. Como nota Al-Anani (2012), o
salafismo, como outros movimentos egípcios, possui uma clara “divisão geracional” e
enquanto os mais velhos tentavam proibir os protestos, muitos jovens estavam na praça
Tahrir, no Cairo, pedindo a saída de Mubarak. Um grupo particularmente importante
nesta empreitada foi o Movimento Salafista pela Reforma, cujas posições são próximas,
porém não idênticas, às do Chamado Salafista. Em 21 de janeiro de 2011 (quatro dias
antes do início dos protestos), este movimento emitiu comunicado pedindo que seus
17
integrantes participassem das manifestações “para denunciar os pecados e crimes do
regime contra o povo egípcio, seu fracasso em promover a sharia, o desrespeito pelos
direitos humanos e a pilhagem de dinheiro público” (Abdel-Latif, 2012).
3.1.2 A entrada na política
Logo após a derrubada de Mubarak, o Egito iniciou aquela que talvez tenha sido a sua
primeira votação democrática de expressão nacional: um referendo constitucional para
elaborar uma Carta que prevaleceria até o encerramento dos trabalhos de uma
Assembleia Constituinte. Os salafistas se mobilizaram para garantir que o projeto fosse
aprovado, uma vez que ele mantinha em seu artigo segundo a previsão de que princípios
da sharia fossem uma fonte principal de legislação.
Para o Chamado Salafista, a campanha pelo referendo foi uma “plataforma a
partir da qual poderia anunciar a si mesmo e sua presença na cena política” (AbdelLatif, 2012). Em 22 de março, dois dias depois da aprovação da Constituição, o
Chamado Salafista anunciou que participaria formalmente do processo político egípcio.
Segundo McCants (2012), a lógica articulada publicamente era a não dominação do
Egito por secularistas. A lógica mais privada era lutar pelo poder com outros islamistas,
como a Irmandade Muçulmana.
Com a abertura política e a perspectiva de exercer poder, líderes salafistas
passaram a usar a mesma estratégia de sempre, só que na direção inversa: princípios
religiosos passaram a explicar a entrada na política. Conta Brown que Abd Al-Minam
Shahhat, uma importante personalidade salafista, justificou a formação de partidos
salafistas lembrando o princípio de “interesse público” presente na sharia. Outros
seguiram a tese de que, quanto menos fraudulenta a democracia parlamentar, mais
necessário é participar do processo eleitoral (McCants, 2012). Yasser Borhami foi um
deles. Segundo Borhami, o alto grau de liberdade presente no Egito “protegia o
movimento [da necessidade] de fazer concessões”. Além disso, disse Borhami, os
salafistas foram obrigados a participar das eleições para “guiar o povo egípcio de uma
maneira correta para seu ponto de vista islâmico” (Abdel-Latif, 2012).
A formação de partidos políticos de cunho salafista espelhou a natureza
decentralizada do movimento. Diversos partidos foram formados após a queda de
18
Mubarak, sendo o principal deles o Al-Nour, o braço político do Chamado Salafista.
Inicialmente, o Al-Nour fez parte da Aliança Democrática, uma coalizão capitaneada
pelo Partido Liberdade e Justiça (da Irmandade Muçulmana) para as eleições
parlamentares de novembro/dezembro de 2011 e janeiro de 2012. A aliança incluía
também facções liberais e esquerdistas, mas ruiu antes mesmo das eleições. O Al-Nour,
então, concorreu liderando uma coalizão salafista com outros dois partidos: o Al-Asala
e o Partido Construção e Desenvolvimento (braço político do al-Gamaa al-Islamiyya).
O trio conquistou 123 das 498 cadeiras do Parlamento (cerca de 25%), sendo 107 do AlNour. O desempenho parlamentar dos salafistas não foi observado, uma vez que o
Parlamento acabou dissolvido em junho 2012, por conta de uma disputa judicial a
respeito da legalidade das eleições.
A movimentação política dos salafistas não cessou após a dissolução do
Parlamento. Ao contrário, continuaram sendo fundados partidos ligados ao movimento.
No momento em que este texto é escrito, a situação é bastante fluída, mas há diversas
siglas salafistas no Egito, entre eles o Al-Fadila, o Al-Shaab, Islah, Nahda e Al-Tawhid
Al-Arab. A maior dúvida sobre esses partidos é como eles pretendem atuar em um
ambiente político democrático, tendo em vista sua histórica rejeição a este sistema.
O Al-Nour, o principal dos partidos salafistas, possui uma plataforma com
espaço para princípios democráticos. Brown (2011) e McCants (2012) notam que o AlNour defende a separação entre Executivo, Legislativo e Judiciário; a liberdade de
formar partidos políticos e eleger governantes; e a liberdade de expressão e associação.
Diversos líderes desses partidos, no entanto, veem a democracia não como um fim em
si, mas como “ferramenta” ou “instrumento” para a implementação da sharia (AlAnani, 2012). Abdel-Latif (2013), numa análise das plataformas dos partidos salafistas,
segue pelo mesmo caminho, afirmando que há poucas diferenças ideológicas entre eles.
As diferenças se concentram na forma como os objetivos serão alcançados – há partidos
mais pragmáticos e outros mais confrontadores. Segundo Abdel-Latif, a linha
predominante nas plataformas desses partidos é a de que a democracia e a liberdade só
podem existir enquadradas pela lei islâmica.
Este arcabouço islâmico certamente será antiliberal. Em análise de três siglas –
al-Nour, al-Fadila e al-Asala –Al-Anani (2012) avalia a ideologia das três como
“intransigente” e diz que eles “advogam a rígida aplicação da sharia que, acreditam,
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envolve a segregação de gêneros, um código de vestimenta estrito para as mulheres e
restrições sociais como a proibição do álcool”. Causa particular preocupação o
tratamento ao qual o movimento salafista gostaria de submeter as minorias. McCants
(2012) nota que há uma tendência dos salafistas em defender que questões pessoais de
cristãos e outras minorias (como divórcio e outros assuntos de família) tenham uma
legislação própria. Al-Anani (2012) nota, entretanto, que é preciso fazer uma distinção
entre direitos civis e direitos políticos. Para muitos líderes salafistas, afirma, os cristãos
coptas (cerca de 10% da população egípica) não podem concorrer a cargos públicos.
Do ponto de vista externo, os salafistas parecem ser um tanto mais pragmáticos.
O Al-Nour advoga relações com outros países com base no respeito e na coexistência
pacífica, e já defendeu publicamente o respeito a tratados internacionais, o que inclui a
aliança com os Estados Unidos e os acordos de Camp David com Israel (Al-Anani,
2012). O Al-Asala, entretanto, advoga o fim da paz com Israel (McCants, 2012), mas
sua posição não parece ser majoritária e nem mesmo factível, tendo em vista que a paz
com Israel é assunto dos militares, ainda muito influentes na política egípcia.
Uma grande dificuldade para os salafistas do Egito é o relacionamento entre as
organizações religiosas e os partidos políticos. Brown (2011) nota com razão que é
possível verificar uma grande centralização do discurso salafista após a queda de
Mubarak, mas é possível notar também uma crescente tensão entre o discurso religioso
e o discurso político. Essa tensão se dá de duas formas. Em primeiro lugar, ainda há
líderes salafistas que condenam a participação de seus seguidores na política e
enxergam a disputa por poder como mecanismo responsável por solapar a mensagem de
puritanismo do salafismo (Abdel-Latif, 2013). Em segundo lugar, há inúmeros líderes
que defendem propostas insustentáveis politicamente, como o hudud, punições brutais
para crimes graves. Por enquanto o ruído mais grave provocado por essas cizânias foi a
criação do partido Al-Watan, em janeiro de 2013. A sigla foi fundada por Emad AbdelGhafour, ex-presidente do Al-Nour. Ghafour liderou uma facção reformista no Al-Nour,
mas deixou o partido devido a divergências com a liderança do Chamado Salafista.
Diante dos enormes problemas pelos quais o Egito passa e do tamanho da novidade que
o processo democrático significa para os salafistas – teológica e praticamente – é seguro
dizer que a busca por unidade e por um discurso coerente será o maior desafio deste
grupo daqui para frente.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A chegada dos salafistas à política egípcia representa um duplo desafio. Sua
participação nas eleições e sucesso eleitoral são, como mostra o estudo, consequências
surpreendentes da abertura política pela qual passou o país, para a qual não estavam
preparados as potências mundiais e regionais, os setores seculares do Egito e nem
mesmo islamistas mais moderados, como os da Irmandade Muçulmana. Nem mesmo os
salafistas estavam preparados, como revelam as divergências entre seus grupos
religiosos e partidos. Diante disso, todos os atores envolvidos com a política do Egito,
interna e externa, precisarão tentar entender os salafistas ao mesmo tempo em que serão
obrigados a acomodá-los na política. Será uma tarefa cheia de antagonismos.
O segundo desafio é mais importante. A partir de agora, uma ideologia
extremamente radical, que serve de base também para grupos terroristas como a AlQaeda, passa a ter legitimidade política. Líderes religiosos defensores de ideias
extremistas podem, a partir daqui, ser votados e levar seus ideais para o Parlamento.
Isso significa que o mundo não mais poderá olhar para teses salafistas como
pertencentes a um grupo marginal ou de pequena importância. Em muitas dimensões, os
salafistas (mas não apenas eles) respondem aos anseios da população egípcia, uma em
que 58% das pessoas dizem querer leis que sigam estritamente os ensinamentos do
Corão e em que 27% desejam grande influência de líderes religiosos na política.
Isto levanta questões fundamentais. Ao disputar votos e ocupar cargos públicos
os salafistas vão tornar a política egípcia ainda mais radical? Ou vão, obrigados pelos
acordos e concessões, inerentes ao fazer político, moderar suas posições?
Brown (2011) prevê moderação dos salafistas e, para isso, usa dois argumentos.
O primeiro é o pragmatismo das plataformas partidárias das siglas salafistas, que
passaram a aceitar a democracia e as eleições como formas legítimas de governo, como
vimos acima. O segundo foi a cessação dos ataques contra templos sufistas após
lideranças salafistas condenarem a prática, em meio a uma onda de violência, em 2011,
contra esta vertente do islã considerada herética pelos salafistas. Isso significa, diz
Brown, que os salafistas “amadureceram rapidamente” e desenvolveram uma
“disciplina moderadora”. Assim, afirma ele, “o processo democrático, o envolvimento
político e a responsabilização eleitoral vão continuar a moderar as visões e políticas
salafistas a longo prazo”.
21
Outros autores avaliam a questão de forma diferente. McCants (2012) afirma
que os salafistas não devem realizar grandes concessões em questões sociais, pois isto
faria com quem perdessem apoio de sua base eleitoral, firmemente conservadora na
doutrina religiosa. Exemplo disso teria sido a falta de apoio dos eleitores salafistas a
Abdel Moneim Aboul Fotouh na eleição presidencial do Egito. Apoiado pelo Al-Nour,
o islamista Aboul Fotouh não conseguiu, segundo McCants, convencer o eleitor
salafista a respeito de suas credenciais religiosas. Por isso, não teve sucesso. Na mesma
linha vai Gold (2012), segundo quem é mais provável os salafistas fazerem concessões
em temas como as relações com os Estados Unidos (parceria militar) e Israel (tratado de
paz) em troca de influência na educação e nos sistemas social e religioso do Egito.
De fato, como afirmam McCants e Gold, não parece provável que os salafistas
moderem posições sociais. Ainda que os ataques a templos sufistas tenham sido
mitigados, há mais violência atribuída a salafistas, como aquela direcionada aos cristãos
coptas (cerca de 10% da população), ainda bastante visível em 2013. Também é
possível verificar hostilidade aos xiitas egípcios (cerca de 1% ou 2% da população). Em
abril de 2013, cartazes com as inscrições “rejeitamos a existência de xiitas iranianos no
Egito” e “o islã não tem xiitas” foram expostos por manifestantes salafistas durante a
visita de um funcionário do governo do Irã ao Cairo (Dagres, 2013). No mês seguinte,
um integrante salafista do Senado egípcio (Conselho Shura) afirmou que os xiitas “são
mais perigosos que mulheres nuas” e pediu o fim do turismo iraniano ao Egito, por
temer a penetração do xiismo no país (Al-Ahram, 2013). Não só as “mulheres nuas”
preocupam os salafistas. Também em maio, parlamentares salafistas sugeriram que o
país deveria proibir o ballet e fechar o Conselho Nacional das Mulheres (Egypt
Independente, 2013), responsável pelos direitos das mulheres no Egito. Há ainda
preocupações de setores seculares da sociedade egípcia sobre a possibilidade de
salafistas e outros islamistas, em particular a Irmandade Muçulmana, avançarem sobre
questões sociais, culturais e comportamentais, como a venda de bebidas alcoólicas e as
vestimentas.
Não é possível afirmar com certeza, entretanto, que os salafistas terão
moderação ao tratar de questões como a política externa e a economia. Em agosto de
2012, Yasser Borhami (Chamado Salafista) concedeu “autorização” para que o governo
contraísse um empréstimo no Fundo Monetário Internacional para sanar dívidas, mas
outros líderes salafistas condenaram a prática pois ela envolvia o pagamento de juros,
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prática considerada proibida pelos salafistas (Egypt Independent, 2012). Outro sinal
neste sentido foi dado em maio de 2013. Emad Abdel-Ghafour (Al-Watan) concedeu
entrevista a um jornal israelense na qual dizia que o Egito “não tinha nenhum problema”
com a paz com Israel. No dia seguinte, Ghafour negou as declarações e seu partido
emitiu um comunicando acusando o veículo de fabricar a entrevista (Miller, 2013).
Como se vê, as posições dos salafistas sobre diversos assuntos estão sendo
construídas. Ainda assim, a análise feita até aqui permite vislumbrar quatro
características da atuação política do movimento no período de transição do Egito. Em
primeiro lugar, deve se aprofundar a divisão entre os grupos religiosos salafistas e os
partidos políticos ligados a eles. Enquanto a tendência dos primeiros é resistir com uma
doutrina mais inflexível, os políticos sabem que não poderão fazer avançar suas causas
sem dialogar e fazer concessões. Em segundo lugar, os salafistas devem conseguir
conter a violência de seus seguidores com o passar o tempo. Este movimento tem a
imagem atrelada à violência, local e global, e acabar com eventos que tirem
legitimidade do salafismo deve ser uma causa que une tanto os religiosos quanto
políticos. Em terceiro lugar, a visão ativista do salafismo deve prevalecer sobre a
quietista. Isso deve consolidar a participação do movimento em eleições democráticas,
mas a democracia deve continuar a ser vista como ferramenta e não como fim em si. Em
quarto lugar, é de se esperar que o fato de os salafistas verem a democracia como meio
para avançar suas causas faça com que tentem aprovar legislações contra minorias ou
que firam direitos civis, provocando choques com valores considerados democráticos
por setores seculares do Egito e também por islamistas moderados. Neste ponto, pelo
fato de os salafistas atingirem o “núcleo” ideológico da Irmandade Muçulmana (Topol,
2012), sua pureza religiosa, vão tentar fazer com que os irmãos muçulmanos adotem
políticas ainda mais conservadoras. O sucesso desta empreitada, entretanto, dependerá
da interação entre a Irmandade Muçulmana e os partidos seculares. Se esses dois grupos
conseguirem encontrar meios termos para conciliar suas visões de mundo, hoje bastante
diversas, o Egito pode andar para o caminho da moderação. Caso a Irmandade se
encontre num ambiente político no qual seus únicos aliados sejam os salafistas, o
espectro
político
do
Egito
deve
rumar
quase
que
certamente
para
um
ultraconservadorismo.
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