03. metodologia para análise de estereótipos em filmes

Transcrição

03. metodologia para análise de estereótipos em filmes
1
REVISTA HISTÓRIA HOJE. SÃO PAULO, Nº 5, 2004. ISSN 1806.3993
METODOLOGIA PARA ANÁLISE DE ESTEREÓTIPOS
EM FILMES HISTÓRICOS
Johnni Langeri
Resumo: O presente artigo concede alguns elementos básicos para a análise de
estereótipos em filmes com conteúdo histórico, proporcionando também uma
discussão inicial sobre a propagação de estereótipos no imaginário popular sobre a
História.
Palavras-chave: História – cinema - estereótipo
Abstract: The present article grants some basic elements for the analysis of
stereotypes in films with historical content, also providing an initial quarrel on the
propagation of stereotypes in popular imaginary of History
Keywords: History – cinema - stereotype
História e Imagem
Com as diversas metodologias historiográficas inauguradas durante o século XX,
o documento escrito deixou de ser a única fonte para as pesquisas. Novos meios e
novos objetos aos poucos foram sendo incorporados ao instrumental do historiador:
histórias em quadrinhos, artes plásticas (pinturas, ilustrações, esculturas), arquitetura,
fotografia, música, televisão. Mesmo as tradicionais fontes escritas, como o jornal, já
tinham incluído em sua estrutura muitas imagens (constituídas por ilustrações e
fotografias), que, no início foram omitidas de qualquer análise, mas posteriormente,
tiveram seu lugar como corpus privilegiado de interpretação pela historiografia –
separada ou incluída em conjunto com o texto jornalístico.
Vivemos em uma era de imagens. Saber interpretar signos visuais tornou-se
mais que uma necessidade para os acadêmicos e profissionais do ensino, mas uma
necessidade. E justamente, o cinema se tornou uma das ferramentas mais utilizadas
pelos historiadores para efetuar seu trabalho tanto em sala de aula como em
pesquisas. Mas antes de simplesmente manipular o filme como um apêndice ou um
simples ilustração de suas aulas ou discussões, o pesquisador deve entender o filme
dentro de alguns parâmetros teóricos, pensar o cinema como um conjunto de imagens
– nivelando-o num primeiro momento com as HQs, a televisão e as artes plásticas
como um todo.
2
A semiologia clássica interpreta a imagem como um ícone, isto é, um signo que
substitui a realidade (ou as realidades). Um objeto que reproduz ou imita algo, mesmo
que imaginário. Um quadro pintado pode ser a representação de uma floresta real,
assim como pode representar um animal mitológico (como um dragão), ou como uma
escultura pode conceber algo totalmente fantasioso. A imagem visual (existem
também imagens literárias e orais, com padrões em comum mas também com
diferenças estruturais) “é um texto-ocorrência em que a iconocidade tem a natureza de
uma conotação veridictória (um juízo) culturalmente determinada: se se quiser, uma
espécie de ‘faz-de-conta’ realista de fundo cultural”.ii Isto é, narrativas em que o
receptor ou emissor do discurso visual interpreta as mesma como sendo
representações fiéis da realidade, mas que são estruturadas pela cultura. Alguns dos
mais famosos semiólogos e teóricos da Arte, interpretam as imagens dentro deste
princípio, possuindo propriedades culturais que determinam a sua forma final: “uma
cultura, ao definir seus objetos, remete a códigos de reconhecimento que indicam
traços pertinentes e caracterizantes do conteúdo (...) um esquema gráfico reproduz as
propriedades relacionadas de um esquema mental”.iii
Para Gombrich, todo artista visual (pintor, escultor, arquiteto, fotógrafo – e
podemos incluir nesta lista o cineasta) é condicionado em seu trabalho por padrões
culturais de fundo inconsciente – as schematta – que acabam por interferir mesmo em
seu estilo artístico (padrões estéticos e sociais vigentes de forma consciente).iv Assim,
um pintor do século XIX pode ter sido influenciado pela estética romântica ou
impressionista (de forma consciente), mas também por códigos culturais, as schematta
(de origem inconsciente): ao pintar uma cena envolvendo mulheres da mitologia
clássica, ele pode empregar técnicas de iluminação e sombreamento impressionista,
mas os códigos em que as mulheres foram definidas pertencem muito mais ao
contexto social em que o autor viveu ou estava inserido (relações de gênero,
religiosidade, ideologias políticas, familiares, etc). No caso da representação de uma
mulher real (modelo ou um retrato encomendado), o pintor não necessariamente pode
estar reproduzindo fielmente o que vê, mesmo dentro de uma estética acadêmica
formal: a posição do corpo, os traços da face, a postura, as vestimentas, a sua posição
dentro de um cenário, podem ter sido estruturadas por referenciais culturais. Mesmo a
fotografia nunca é a captação total da realidade e neutra: a posição do
enquadramento, o recorte da paisagem, o contexto entre o fotógrafo e o fotografado,
as intenções previamente estabelecidas pelo fotografado, podem ser indicativos de
uma schematta.
Alguns tipos específicos de schematta são os estereótipos, denominados por
Elias Thomé Saliba de imagens canônicas.v Constituem em representações de uma
3
realidade social ou histórica, tomadas como verdadeiras mas que constituem quase
sempre em fantasias ou produtos da imaginação. Alguns estereótipos são produtos
eruditos (como o famoso capacete de chifre dos guerreiros Vikings, criado no século
XIX),
que
foram
popularizados
pelas
artes
plásticas
(pinturas
românticas)
perpetuando-se com outros meios artísticos (as óperas oitocentistas) e que tiveram
formato definitivo com a literatura, história em quadrinhos e finalmente, tomando forma
definitiva com o cinema.vi Com isso podemos perceber também os circuitos pelo qual
as imagens circulam e algumas fontes imagéticas do cinema:
HISTÓRIA
HISTÓRIA
↓
↓
HISTÓRIA HISTÓRIA
↓
↓
Estereótipos → Artes plásticas → Histórias em quadrinhos ↔ Literatura ↔ Cinema
↓
↕
Cinema
Cinema
↕
↕
IMAGINÁRIO POPULAR SOBRE HISTÓRIA
↕
Literatura
As fontes imagéticas do cinema também podem acabar colaborando para
desenvolver o imaginário popular sobre História: “O fenômeno do cinema cria uma
outra história contra a qual os livros não podem muita coisa, se se considerar o
condicionamento da visão das massas”.vii
A imagem fílmica
Marc Ferro já atentava para a percepção do filme tanto como fonte e objeto
imagético. Não se pode simplesmente contrapor as imagens cinematográficas com a
tradição escrita. É necessário perceber o filme enquanto testemunho/documento,
integrando-o ao contexto social em que a obra surge: autor, produção, público, regime
político, etc. Mas um filme não é feito apenas de imagens, mas também de textos
escritos (legendas), sons (falas gravadas e trilha sonora), formando então um conjunto
de representações visuais e textos (no sentido semiótico). Analisar ou descodificar
esses conjuntos de mensagens terá a ver:
4
“com a historicidade das convenções, espécie de contrato tácito –
variável no tempo – entre quem produz o filme e quem vê, sem o qual
não se cumpririam as significações segundo certos padrões: estado da
arte (tecnologias e limitações envolvidas em cada época, visões de
mundo, ideologias.”viii
Modelo de análise de estereótipos em filmes históricos
Existem várias categorias de filmes que podem ser enquadrados, em menor ou
maior grau, como históricos. Mesmo produções que aparentemente não possuem um
contexto relacionado a História, podem ser utilizadas como documentos da época em
que foram criadas. Definimos filmes históricos como as produções que contenham em
sua estrutura narrativa alguns conteúdos relacionados diretamente com fatos
históricos. Assim, existem obras de reconstrução histórica (Rainha Margot, Spartacus,
O que é isso companheiro?), biografias (Olga, Cromwell, Lamarca, Rosa
Luxemburgo), ficção histórica (O Quatrilho, O nome da rosa, A guerra do fogo) e
adaptações literárias com fundo histórico (O Guarani, O cortiço, Os miseráveis,
Luciola: o anjo pecador, Henrique V) ou quadrinísticas (Príncipe Valente; Corto
Maltese)
Etapas da análise de estereótipos em filmes históricos:
A. Definição do objeto e tema de pesquisa:
O pesquisador deve em primeiro lugar escolher qual tema, período e contexto
histórico vai ser trabalhado. Deve possuir conhecimento bibliográfico sobre o assunto
pretendido, exemplo: ao escolher analisar um filme sobre gladiadores, deve-se
conhecer o tema (a diversão/espetáculo e a sociedade romana) e suas implicações
teóricas e estudos analíticos. Segundo a historiadora Cristiane Nova, “um filme diz
tanto quanto for questionado. São infinitas as possibilidades de leitura de cada filme.”ix
Uma razoável quantidade de problemáticas e hipóteses colaboram para a efetivação
de uma pesquisa com resultado satisfatório.
B. Seleção do filme:
A seleção individual de um único filme ou diversos títulos deve privilegiar o
conteúdo temático, valor estético, artístico e comercial da obra a ser analisada.
5
C. Crítica externa do filme:
- Resgate da cronologia da obra (período de produção e de lançamento)
- Verificação e comparação da versão da película (no caso de existirem mais
versões).
- Verificação se a obra foi baseada diretamente na literatura, histórias em
quadrinhos, teatro ou outra expressão artística.
- Alterações realizadas pela censura ou pelo Estado.
- Custos de produção, fontes financiadoras
- Biografia dos produtores, diretores e roteiristas (classe social que pertencem,
tipos de filme que já realizaram, outras produções que fizeram parte).
- Elementos estéticos: estilo artístico de cada obra; caráter subjetivo dos
modelos estéticos; linguagem cinematográfica (movimentos da câmara, planos,
enquadramentos, iluminação, sonoplastia).x
- Estilo de produção: o filme histórico tradicional (hollywoodiano), por exemplo,
enfatiza a emoção em detrimento ao aspecto racional da trama (a noção de
espetáculo).
- Análise do cartaz e da propaganda do filme ou sua veiculação pela mídia:
muitos estereótipos são propagados diretamente pelos cartazes, ou então, pela
seleção de algumas cenas específicas do filme. Também a escolha de certos
personagens ou situações do filme nos cartazes podem revelar ideologias específicas
dos produtores ou dos patrocinadores.
D. Crítica interna do filme:
- Conteúdo objetivo (sentido mais geral ou o que é percebido de forma mais
direta): diálogos, indumentária, gestos, enredo, estrutura arquitetônica e cenários. A
análise do roteiro original pode ser um excelente documento, além das críticas
cinematográficas (geralmente realizadas na época de lançamento dos títulos, em
jornais e revistas).
- Conteúdo implícito: o que está presente de maneira implícita (conteúdo
existente nas entrelinhas), “tudo aquilo que os produtores queriam que chegasse ao
espectador, mas não o fizeram, por algum motivo particular, direta e claramente”
(NOVA: 5).
Geralmente tratam-se de representações ideológicas, a exemplo do filme
Alexandre Nevsky (dirigido por Eisenstein): que trata da invasão da Rússia pelos
6
teutônicos durante o século XIII. Como o filme foi produzido na década de 1930 pelos
russos (no momento em que os alemães ameaçavam o seu território), ele representa
claramente uma transposição do tipo passado-presente. Outro exemplo de conteúdo
implícito (em uma obra de ficção científica) é Invasores de Corpos: o planeta é
invadido por extraterrestres que tomam o corpo dos humanos e estes agem como
“zumbis”. Uma alusão implícita ao perigo do comunismo perante as famílias norteamericanas. A ideologia macarthista também produziu obras de caráter um pouco
mais explícito e histórico, como Cortina de ferro, Sob controle, Sob o domínio do mal.
Em contrapartida, temos exemplos de filmes denunciadores do macarthismo, como a
peça teatral As bruxas de Salem (posteriormente filmada), onde a intolerância religiosa
do século XVII torna-se uma metáfora política para o presente.
Produções brasileiras também manifestaram diversas ideologias políticas,
especialmente durante a ditadura. Filmes da década de 1970, como Independência ou
morte! Os inconfidentes, Anchieta, perpetuaram diversos estereótipos criados durante
o Oitocentos e que foram popularizados com a literatura do início do século XX. O uso
político dos estereótipos pelo cinema brasileiro ainda é praticamente inexplorado,
aberto a várias possibilidades de investigação.xi
Filmes com alto custo de produção e cenografia, como El Cid, também não
fogem a essas influências. Apesar de retratar o período medieval, esta obra muitas
vezes recorreu à representações dos mouros em trajes escuros e com atitudes
“nazistas” (gestos e expressões inferindo a conquista do mundo), enquanto que os
espanhóis representam os heróis da civilização ocidental (um maniqueismo típico do
período pós-guerra).
Mais um bom exemplo de ideologia implícita é a produção Erik, o Viking, que
retrata a Idade Média, mas que na realidade evoca metaforicamente o cenário mundial
de final dos anos 1980 (a corrida armamentista entre EUA e Rússia e outras questões
geopolíticas daquele momento), conforme excelente análise do prof. Dr. José Rivair
Macedo: “A posição do diretor em relação aos dilemas contemporâneos revela-se ao
longo de todo o filme, no modo pelo qual desenvolveu as atitudes daqueles que de
algum modo tentaram impedir a concretização da jornada em busca da paz.”xii
Com isso percebemos as possibilidades de leituras teóricas de conteúdos
aparentemente apenas centrados no passado, mas que revelam muitas conexões com
o momento em que o filme foi realizado: “na verdade, esses filmes acabam por falar
mais sobre seu presente, não obstante seu discurso esteja aparentemente apenas
centrado no passado. Mesmo assim, eles desempenham um papel significativo na
divulgação e na polemização do conhecimento histórico.”xiii
7
Modelos de representações ideológicas: a ideologia da representação burguesa,
por exemplo, muito comum em filmes norte-americanos até a década de 1960,
criticada após o surgimento das escolas cinematográficas surrealistas, psicodélicas,
Nouvelle Vague, Neo-realista entre outras. Outros modelos muito constantes foram as
representações do estilo de vida norte-americano (American way of life) e da
representação da família ideal, esta última surgindo até mesmo em animações e
Histórias em Quadrinhos.xiv Influências típicas do período neo-colonialista, estas
representações também foram incorporadas ao cinema brasileiro, especialmente no
período pós-guerra.
Modelos heróicos e patrióticos: uma função semelhante aos livros didáticos de
História e dos monumentos em geral – a de glorificar sacrifícios e heroísmos
individuais pelo bem da coletividade. Alguns filmes tem a função objetiva (mas muitas
vezes subjetiva) de fazer com que os espectadores amem seu país, sua pátria, ou de
legitimarem as instituições que governam uma sociedade. Algumas obras possuem
esse conteúdo ideológico de maneira muito mais óbvia (Independência ou morte!, A
batalha de Guararapes, Os inconfidentes, Álamo, O patriota, O resgate do soldado
Ryanxv) que a média das produções, mas mesmo filmes ingênuos como os musicais
norte-americanos da década de 1950 (enaltecendo a sociedade dos EUA como
promissora, feliz e perfeita no mundo pós-guerra) possuem conteúdo ideológico
latente: o desfecho final da produção pode conduzir a uma moral, a uma situação que
crie um referencial de comportamento ou de pensamento entre o público em geral. A
de que viver e morar nos Estados Unidos é a melhor opção existente!
Público-alvo e receptividade: alguns filmes conseguem mais sucesso em outros
países que nos próprios locais de produção: “Na França, por exemplo, fez sucesso o
neo-realismo italiano, filmes de Fassbinder e Woody Allen que nos seus próprios
países estão longe de serem os mais populares. Será que é porque eles descrevem
com crueldade e humor as taras de suas próprias sociedades?”xvi Muitas obras
cinematográficas não fizeram nenhum sucesso na época em que foram exibidas, mas
anos depois transformaram-se em cult movies (como Easy Rider, Blade Runner) nos
próprios países de origem. Seriam obras com alto teor crítico ou apenas obras de arte
não compreendidas no seu meio original?
Estereótipos: em muitas produções a ocorrência de estereótipos pode decorrer
tanto por questões ideológicas como por motivos técnicos. A fantasia dos guerreiros
Vikings portando chifres no filme Príncipe Valente (adaptação de História em
Quadrinhos homônima) pode significar o referencial britânico anglo-saxônico de ser
uma “sociedade mais civilizada e próspera”, enquanto os escandinavos foram “povos
mais atrasados” que aportaram neste país para pilhagens e saques. O capacete
8
representaria esse estado de plena selvageria. Já em outras produções mais recentes,
como Gladiador e A lenda de um guerreiro, a presença de germanos e celtas portando
capacetes com cornos pode ser simplesmente uma questão de reutilização de
figurinos de filmes mais antigos. Enquanto os soldados romanos estão bem
reconstituídos, os germanos mais uma vez foram estereotipados.
Outros tipos de estereótipos muito presentes no cinema das décadas de 1940 a
1970 foram as produções envolvendo a África, a Ásia e a América do Sul. Em filmes
de aventura, o continente africano e asiático foi interpretado como um local misterioso,
idílico, selvagem, com habitantes exóticos e muito mais “atrasados” que os europeus,
animais terríveis (As minas do rei Salomão, Tarzan, Jim das selvas). Relacionados
diretamente com a literatura do Oitocentos, esses estereótipos proliferaram o
referencial de que a civilização ocidental possuía legitimidade no processo de
conquista e colonização das terras selvagens.xvii
Um modelo muito próximo desta relação são produções envolvendo a Amazônia
peruana, venezuelana e brasileira. Filmes recentes como Anaconda, nada mais fazem
do que perpetuar estereótipos já presentes nos anteriores O segredo dos incas,
Manhunt in the jungle, entre outros. Neste último, aventureiros percorrem o Mato
Grosso no Brasil, apesar dos habitantes locais falarem espanhol e portarem trajes
semelhantes aos peruanos... Para o imaginário norte-americano, não existem
diferenças culturais na América Latina. E a todo momento, a floresta apresenta
inúmeros perigos que devem ser vencidos pelos heróis (piranhas, jacarés, morcegos,
onças, tempestades, etc). Herdeira direta dos modelos colonialistas e imperialistas da
literatura ocidental do século XIX, os filmes de aventura incorporam a ideologia de que
os europeus e seus descendentes devem ser os legítimos representantes da ordem
civilizacional no mundo contemporâneo.
Lembramos ainda os épicos religiosos, muito comuns na década de 1950 e
1960: Quo Vadis?, Ben Hur, Os 10 mandamentos, O manto sagrado, e muitos outros,
refletem a concepção de que a história do cristianismo só foi feita por perseguição,
morte e condenação aos seus adeptos, resultando no triunfo pelo sacrifício da fé.
Praticamente nenhuma produção até hoje enfocou o período de consolidação do
cristianismo no ocidente romano (Antiguidade Tardia), onde percebemos que a própria
a Igreja e seus adeptos perseguiram e mataram publicamente os seguidores do
paganismo (uma inversão do que acontecia no Principado, onde os perseguidos eram
os cristãos). A eleição de um recorte específico da História pelos enredos
cinematográficos, também nos permite perceber as ideologias tanto do público-alvo
quanto dos produtores. Isso também é bem explícito na filmografia norte-americana
sobre os judeus (com enredos sobre a Antiguidade ou o Holocausto nazista durante a
9
Segunda Guerra Mundial, quanto na formação e consolidação do Estado de Israel),
onde estes sempre são apresentados como vítimas, omitindo seu caráter de algozes
durante a História (na questão da Palestina moderna). Mesmo recentes produções
brasileiras, como Olga, trataram de disseminar os mesmos estereótipos.
- Conteúdo inconsciente: os elementos que ultrapassaram as intenções de quem
realizou e produziu o filme. Podem ser tanto elementos de ordem individual quanto
ideologias da sociedade como um todo: contexto social, econômico, político, cultural e
religioso de uma época. Representam o aspecto fílmico mais complexo de ser
analisado. É o que Marc Ferro denomina de “zonas ideológicas não visíveis da
sociedade.”xviii Exemplos são juízos de valores e de moral expressos pelas culturas,
como a forma de alimentação, de se vestir, a maneira de um ocidental contemporâneo
em pensar e de seguir determinados comportamentos – principalmente quando
contrastado com outros povos ou culturas.
E. Comparação e análise de conteúdos:
O analista deve comparar os conteúdos do filme com o conhecimento histórico e
sociológico da sociedade em que o filme foi produzido, com o tema histórico que ele
retrata e com outras produções que retratam a mesma temática.
Qualquer filme histórico (não importando a época do enredo) é um documento
do momento em que foi produzido. Mesmo que o interesse do pesquisador não seja a
época da produção da obra, esse enfoque jamais deve ser abandonado, tanto em
questões de ensino-aprendizagem de História como de pesquisas aplicadas:
“Qualquer representação do passado existente no filme está intimamente relacionada
com o período em que este foi produzido (...) todo filme histórico é uma representação
do passado e, portanto, um discurso sobre o mesmo e, como tal, está imbuído de
subjetividade.”xix
A leitura do filme como documento:
o analista deve procurar encontrar as
similitudes e representações do filme como os fatos históricos (historiografia escrita).
O filme foi totalmente adaptado pelo autor? Que critérios foram utilizados para essa
versão da História? Ocorrem anacronismos na obra?
Epílogo: Os estereótipos e o imaginário popular sobre História.
Em uma época onde a leitura tornou-se minoritária perante tecnologias como a
tv e a computação, o cinema dissemina os referenciais populares sobre História com
muito mais rapidez e eficácia que qualquer historiador. Isso reflete diretamente no
10
ensino, visto a grande utilização do recurso por parte dos professores. Desta maneira,
conseguir analisar produções cinematográficas, desconstituir seus estereótipos e criar
um referencial crítico nos estudantes é uma meta importante para qualquer educador.
E o campo está aberto para novas investigações acadêmicas, com imensas
possibilidades de temas e pesquisas. Assim como o desfecho fílmico muitas vezes foi
representado por “FIM” (The End”), acreditamos que este pequeno artigo aponte
novos desafios para o historiador nos dias de hoje.
FILMOGRAFIA – estereótipos em filmes históricos
1. Estereótipos na História do Brasil
-
Xica da Silva (1980)
-
Quilombo (1979)
-
Os inconfidentes (1971)
-
Anchieta (1978)
-
O Guarani (1955)
-
Ganga-Zumba (1988)
-
Carlota Joaquina (1994)
-
Independência ou morte! (1971)
-
Guerra dos pelados (1975)
-
O cangaceiro (1956)
-
Memórias do cárcere (1984)
-
Aleluia Gretchen! (1976)
2. Estereótipos sobre os bárbaros (Vikings, Celtas e Germanos)
-
Kull, o conquistador (1992)
-
Espírito guerreiro 2 (1994)
-
A rainha da idade do bronze (2003)
-
Átila o huno (2000)
-
Highlander (1985)
-
A lenda de um guerreiro (2001)
-
Sangue bárbaro (1955)
-
O Viking (1978)
-
As brumas de Avalon (2001)
-
Príncipe Valente (1954)
11
-
Erik, o Viking (1989)
3. Estereótipos sobre História Antiga
-
O egípcio (1954)
-
A múmia (2000)
-
Quo Vadis? (1955)
-
Escorpião rei (2002)
-
Asterix e Obelix contra César (1954)
-
O vale dos reis (1954)
4. Estereótipos sobre Idade Média
-
Merlin (1998)
-
Lancelot, o primeiro cavaleiro (1995)
-
Conquista sangrenta (1984)
-
El Cid (1956)
-
Coração de cavaleiro (2002)
-
O monge (1990)
-
Loucuras na Idade Média
5. Estereótipos sobre conflitos modernos
-
Fomos heróis (2003)
-
Midway (1958)
-
Pearl Harbor (2001)
-
Coragem e glória (1998)
-
Esperança e glória (1971)
-
Rambo II (1995)
6. Estereótipos sobre a Amazônia brasileira e peruana
-
Amazon, fúria selvagem (1999)
-
Meu filho das selvas (1996)
-
O segredo dos incas (1956)
-
Manhunt in the jungle (1958)
-
Anaconda (1998)
12
i
Doutor em História pela UFPR. Professor de História da Universidade do Contestado (UNC),
SC. Editor do boletim Notícias Asgardianas, membro do Grupo Brathair de Estudos Celtas e
Germânicos. E-mail: [email protected]
ii
CARDOSO, Ciro Flamarion & MAUAD, Ana Maria. História e Imagem: os exemplos da
fotografia e do cinema. In: CARDOSO, Ciro Flamarion & vainfas, Ronaldo. Domínios da
História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 404.
iii
Idem, op. cit., p. 404-405.
iv
GOMBRICH, Ernest. Arte e ilusão: um estudo da representação pictórica. São Paulo: Cia das
Letras.
v
SALIBA, Elias Thomé. As imagens canônicas e o ensino de História. In: III ENCONTRO:
Perspectivas do ensino de História. Curitiba: UFPR, 1999
vi
Sobre o estereótipo dos Vikings no cinema ver: GLOT, Claudine. Drakkars sur grande écran.
In: GLOT, Claudine & LE BRIS, Michel (org.). L’Europe des Vikings. Paris: Éditions Hoebeke,
2004, p. 188-190; LANGER, Johnni. O cinema e os bárbaros. Boletim do Laboratório de Ensino
de História, UEL, n. 25, 2002. A respeito da origem e popularização dos estereótipos sobre os
escandinavos no imaginário ocidental consultar: LANGER, Johnni. Rêver son passé. In: GLOT,
Claudine & LE BRIS, Michel (org.). L’Europe des Vikings. Paris: Éditions Hoebeke, 2004, p.
166-170; LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. In: Viking Heritage Magazine,
Gotland University, n. 4, 2002; LANGER, Johnni. Os Vikings e o estereótipo do bárbaro no
ensino de História. História e Ensino, UEL, v. 8, 2002; LANGER, Johnni. Fúria odínica: a
criação da imagem oitocentista sobre os Vikings. Varia História, UFMG, n. 25, 2001.
vii
NÓVOA, Jorge. Apologia da relação cinema-história. In: Olho da História, UFBA, n. 1.
www.olhodahistoria.ufba.br
viii
CARDOSO, op.cit., p. 413.
ix
NOVA, Cristiane. O cinema e o conhecimento da História. Olho da História, UFBA, n. 3.
www.olhodahistoria.ufba.br
x
A respeito de teoria e estética do cinema ver: BRASIL, Assis. Cinema e Literatura. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967; COSTA, Antônio. Compreender o cinema. São Paulo: Editora
Globo, 1989; RITTNER, Maurício. Compreensão de cinema. São Paulo: Editora São Paulo,
1965.
xi
Os filmes históricos no Brasil apresentam vários estereótipos, dos quais destacamos: 1 Imagem indígena: criada durante a década de 1850, a imagem estereotipada do ameríndio
concentrou-se na idealização de um tipo ideal (o Tupi, que era considerado passível de ser
cristianizado e civilizado) e o bárbaro (o Botocudo, canibal e primitivo segundo o imaginário da
época). A estética literária influenciou as artes plásticas e a ópera oitocentista do Brasil, que
deu origem a várias imagens errôneas dos habitantes originais do país. Dentre os vários
aspectos estereotipados que ainda permanecem no cinema, tanto nacional quanto estrangeiro,
podemos citar: vestimentas, comportamento, aspectos físicos. Sobre o tema ver: LANGER,
Johnni & SANTOS, Sérgio. Império selvagem: a arqueologia e as fronteiras simbólicas da
nação brasileira (1850-1860). Dimensões: revista de História da UFES, Espírito Santo, v. 14,
2002. 2 – A família imperial: os personagens relacionados com o primeiro reinado. D. Pedro I,
sempre representado como um conquistador incorrigível, semi-analfabeto, aventureiro; a
Marquesa de Santos, concebida como uma poderosa influenciadora dos rumos políticos do
país; D. João VI, representado como um rei balofo e tolo, despreocupado com política. Estes
estereótipos proliferaram nos meios artísticos modernos, a exemplo da mini-série Quinto dos
Infernos. Sobre o assunto consultar: BASTOS, Lúcia & NEVES, Guilherme. Retrato de um rei.
Nossa História, Biblioteca Nacional, v. 1, n. 1, 2003. 3 – A imagem de Tiradentes: criada pelos
republicanos, a representação do alferes como sendo um mártir cristão, barbudo e cabeludo
(características inexistentes no personagem histórico) é uma das mais difundidas e populares
imagens heróicas de nosso país. Vide: CARVALHO, Murilo de. A formação das almas. São
Paulo: Cia das Letras, 1990. 4 – A imagem do gaúcho: o combatente da guerra dos Farrapos,
idealizado como herói invencível, nacionalista, defensor da democracia social e racial. Essas
imagens tornaram-se populares no cinema e tv (a exemplo da mini-série A casa das sete
13
mulheres). Sobre o tema ver: PESSAVENTO, Sandra Jatahy. Fibra de gaúcho, tchê! Nossa
História, Biblioteca Nacional, v. 1, n. 2, dez. 2003.
xii
MACEDO, José Rivair. Cinema e mitologia nórdica: considerações em torno de As aventuras
de Erik, o Viking. In: ALMEIDA, Neri De Barro (org.) A Idade Média no cinema. São Paulo:
Editora da Unesp (no prelo).
xiii
NOVA, op. cit.
xiv
Para análise dos modelos familiares e teoria do gênero no cinema consultar: KAPLAN, E.
Ann. A mulher e o cinema. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
xv
Sobre a relação entre cinema de guerra e progaganda política consultar: DREWS, Jairo
Hepp. O cinema como arma de guerra. Nethistória, 2004. www.nethistoria.com ; CASTRO, Nilo
(org.). Cinema e Segunda Guerra. Porto Alegre: UFRGS, 1999; VIRILIO, Paul. Guerra e
cinema. São Paulo: Scritta, 1993.
xvi
FERRO, Marc. O conhecimento histórico, os filmes, as mídias. Olho da História, UFBA, n. 6,
2004. www.olhodahistoria.ufba.br
xvii
A respeito desta relação, consultar as obras: SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São
Paulo: Cia das Letras, 1995; PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e
transculturação. São Paulo: Edusc, 1999.
xviii
FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
xix
NOVA, op. cit. Para maiores informações sobre a relação entre História e Cinema, ver:
FREIRE, Larissa Almeida & CARIBÉ, Ana Luiza. O filme em sala de aula: como usar. Olho da
História, UFBA, n. 6, 2004. www.olhodahistoria.ufba.br ; NAPOLITANO, Marcos. Como usar o
cinema na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2003; PINTO, Luciana. O historiador e sua
relação com o cinema. In: Olho da História, UFBA, n. 6, 2004. www.olhodahistoria.ufba.br ;
ROSSINI, Miriam de Souza. As marcas da História no cinema, as marcas do cinema na
História. Anos 90, n. 12, 1999; SALIBA, Elias Thomé. História e Cinema: a narrativa utópica no
mundo contemporâneo. Lições com o Cinema, n. 2. São Paulo: FDE, 1994; SALIBA, Elias
Thomé. A produção do conhecimento histórico e suas relações com a narrativa fílmica. Lições
com o Cinema, n. 1. São Paulo: FDE, 1994; SALIBA, Elias Thomé. Robôs, dinos e outros
simulacros: o limiar da utopia no cinema e na História. Revista de Cultura Vozes, v. 7, n. 13,
1994; SALIBA, Elias Thomé. Experiências e representações sociais: reflexões sobre o uso e o
consumo das imagens. In: BITTENCOURT, Circe (org.) O saber histórico na sala de aula. São
Paulo: Contexto, 1998.

Documentos relacionados