03. metodologia para análise de estereótipos em filmes
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03. metodologia para análise de estereótipos em filmes
1 REVISTA HISTÓRIA HOJE. SÃO PAULO, Nº 5, 2004. ISSN 1806.3993 METODOLOGIA PARA ANÁLISE DE ESTEREÓTIPOS EM FILMES HISTÓRICOS Johnni Langeri Resumo: O presente artigo concede alguns elementos básicos para a análise de estereótipos em filmes com conteúdo histórico, proporcionando também uma discussão inicial sobre a propagação de estereótipos no imaginário popular sobre a História. Palavras-chave: História – cinema - estereótipo Abstract: The present article grants some basic elements for the analysis of stereotypes in films with historical content, also providing an initial quarrel on the propagation of stereotypes in popular imaginary of History Keywords: History – cinema - stereotype História e Imagem Com as diversas metodologias historiográficas inauguradas durante o século XX, o documento escrito deixou de ser a única fonte para as pesquisas. Novos meios e novos objetos aos poucos foram sendo incorporados ao instrumental do historiador: histórias em quadrinhos, artes plásticas (pinturas, ilustrações, esculturas), arquitetura, fotografia, música, televisão. Mesmo as tradicionais fontes escritas, como o jornal, já tinham incluído em sua estrutura muitas imagens (constituídas por ilustrações e fotografias), que, no início foram omitidas de qualquer análise, mas posteriormente, tiveram seu lugar como corpus privilegiado de interpretação pela historiografia – separada ou incluída em conjunto com o texto jornalístico. Vivemos em uma era de imagens. Saber interpretar signos visuais tornou-se mais que uma necessidade para os acadêmicos e profissionais do ensino, mas uma necessidade. E justamente, o cinema se tornou uma das ferramentas mais utilizadas pelos historiadores para efetuar seu trabalho tanto em sala de aula como em pesquisas. Mas antes de simplesmente manipular o filme como um apêndice ou um simples ilustração de suas aulas ou discussões, o pesquisador deve entender o filme dentro de alguns parâmetros teóricos, pensar o cinema como um conjunto de imagens – nivelando-o num primeiro momento com as HQs, a televisão e as artes plásticas como um todo. 2 A semiologia clássica interpreta a imagem como um ícone, isto é, um signo que substitui a realidade (ou as realidades). Um objeto que reproduz ou imita algo, mesmo que imaginário. Um quadro pintado pode ser a representação de uma floresta real, assim como pode representar um animal mitológico (como um dragão), ou como uma escultura pode conceber algo totalmente fantasioso. A imagem visual (existem também imagens literárias e orais, com padrões em comum mas também com diferenças estruturais) “é um texto-ocorrência em que a iconocidade tem a natureza de uma conotação veridictória (um juízo) culturalmente determinada: se se quiser, uma espécie de ‘faz-de-conta’ realista de fundo cultural”.ii Isto é, narrativas em que o receptor ou emissor do discurso visual interpreta as mesma como sendo representações fiéis da realidade, mas que são estruturadas pela cultura. Alguns dos mais famosos semiólogos e teóricos da Arte, interpretam as imagens dentro deste princípio, possuindo propriedades culturais que determinam a sua forma final: “uma cultura, ao definir seus objetos, remete a códigos de reconhecimento que indicam traços pertinentes e caracterizantes do conteúdo (...) um esquema gráfico reproduz as propriedades relacionadas de um esquema mental”.iii Para Gombrich, todo artista visual (pintor, escultor, arquiteto, fotógrafo – e podemos incluir nesta lista o cineasta) é condicionado em seu trabalho por padrões culturais de fundo inconsciente – as schematta – que acabam por interferir mesmo em seu estilo artístico (padrões estéticos e sociais vigentes de forma consciente).iv Assim, um pintor do século XIX pode ter sido influenciado pela estética romântica ou impressionista (de forma consciente), mas também por códigos culturais, as schematta (de origem inconsciente): ao pintar uma cena envolvendo mulheres da mitologia clássica, ele pode empregar técnicas de iluminação e sombreamento impressionista, mas os códigos em que as mulheres foram definidas pertencem muito mais ao contexto social em que o autor viveu ou estava inserido (relações de gênero, religiosidade, ideologias políticas, familiares, etc). No caso da representação de uma mulher real (modelo ou um retrato encomendado), o pintor não necessariamente pode estar reproduzindo fielmente o que vê, mesmo dentro de uma estética acadêmica formal: a posição do corpo, os traços da face, a postura, as vestimentas, a sua posição dentro de um cenário, podem ter sido estruturadas por referenciais culturais. Mesmo a fotografia nunca é a captação total da realidade e neutra: a posição do enquadramento, o recorte da paisagem, o contexto entre o fotógrafo e o fotografado, as intenções previamente estabelecidas pelo fotografado, podem ser indicativos de uma schematta. Alguns tipos específicos de schematta são os estereótipos, denominados por Elias Thomé Saliba de imagens canônicas.v Constituem em representações de uma 3 realidade social ou histórica, tomadas como verdadeiras mas que constituem quase sempre em fantasias ou produtos da imaginação. Alguns estereótipos são produtos eruditos (como o famoso capacete de chifre dos guerreiros Vikings, criado no século XIX), que foram popularizados pelas artes plásticas (pinturas românticas) perpetuando-se com outros meios artísticos (as óperas oitocentistas) e que tiveram formato definitivo com a literatura, história em quadrinhos e finalmente, tomando forma definitiva com o cinema.vi Com isso podemos perceber também os circuitos pelo qual as imagens circulam e algumas fontes imagéticas do cinema: HISTÓRIA HISTÓRIA ↓ ↓ HISTÓRIA HISTÓRIA ↓ ↓ Estereótipos → Artes plásticas → Histórias em quadrinhos ↔ Literatura ↔ Cinema ↓ ↕ Cinema Cinema ↕ ↕ IMAGINÁRIO POPULAR SOBRE HISTÓRIA ↕ Literatura As fontes imagéticas do cinema também podem acabar colaborando para desenvolver o imaginário popular sobre História: “O fenômeno do cinema cria uma outra história contra a qual os livros não podem muita coisa, se se considerar o condicionamento da visão das massas”.vii A imagem fílmica Marc Ferro já atentava para a percepção do filme tanto como fonte e objeto imagético. Não se pode simplesmente contrapor as imagens cinematográficas com a tradição escrita. É necessário perceber o filme enquanto testemunho/documento, integrando-o ao contexto social em que a obra surge: autor, produção, público, regime político, etc. Mas um filme não é feito apenas de imagens, mas também de textos escritos (legendas), sons (falas gravadas e trilha sonora), formando então um conjunto de representações visuais e textos (no sentido semiótico). Analisar ou descodificar esses conjuntos de mensagens terá a ver: 4 “com a historicidade das convenções, espécie de contrato tácito – variável no tempo – entre quem produz o filme e quem vê, sem o qual não se cumpririam as significações segundo certos padrões: estado da arte (tecnologias e limitações envolvidas em cada época, visões de mundo, ideologias.”viii Modelo de análise de estereótipos em filmes históricos Existem várias categorias de filmes que podem ser enquadrados, em menor ou maior grau, como históricos. Mesmo produções que aparentemente não possuem um contexto relacionado a História, podem ser utilizadas como documentos da época em que foram criadas. Definimos filmes históricos como as produções que contenham em sua estrutura narrativa alguns conteúdos relacionados diretamente com fatos históricos. Assim, existem obras de reconstrução histórica (Rainha Margot, Spartacus, O que é isso companheiro?), biografias (Olga, Cromwell, Lamarca, Rosa Luxemburgo), ficção histórica (O Quatrilho, O nome da rosa, A guerra do fogo) e adaptações literárias com fundo histórico (O Guarani, O cortiço, Os miseráveis, Luciola: o anjo pecador, Henrique V) ou quadrinísticas (Príncipe Valente; Corto Maltese) Etapas da análise de estereótipos em filmes históricos: A. Definição do objeto e tema de pesquisa: O pesquisador deve em primeiro lugar escolher qual tema, período e contexto histórico vai ser trabalhado. Deve possuir conhecimento bibliográfico sobre o assunto pretendido, exemplo: ao escolher analisar um filme sobre gladiadores, deve-se conhecer o tema (a diversão/espetáculo e a sociedade romana) e suas implicações teóricas e estudos analíticos. Segundo a historiadora Cristiane Nova, “um filme diz tanto quanto for questionado. São infinitas as possibilidades de leitura de cada filme.”ix Uma razoável quantidade de problemáticas e hipóteses colaboram para a efetivação de uma pesquisa com resultado satisfatório. B. Seleção do filme: A seleção individual de um único filme ou diversos títulos deve privilegiar o conteúdo temático, valor estético, artístico e comercial da obra a ser analisada. 5 C. Crítica externa do filme: - Resgate da cronologia da obra (período de produção e de lançamento) - Verificação e comparação da versão da película (no caso de existirem mais versões). - Verificação se a obra foi baseada diretamente na literatura, histórias em quadrinhos, teatro ou outra expressão artística. - Alterações realizadas pela censura ou pelo Estado. - Custos de produção, fontes financiadoras - Biografia dos produtores, diretores e roteiristas (classe social que pertencem, tipos de filme que já realizaram, outras produções que fizeram parte). - Elementos estéticos: estilo artístico de cada obra; caráter subjetivo dos modelos estéticos; linguagem cinematográfica (movimentos da câmara, planos, enquadramentos, iluminação, sonoplastia).x - Estilo de produção: o filme histórico tradicional (hollywoodiano), por exemplo, enfatiza a emoção em detrimento ao aspecto racional da trama (a noção de espetáculo). - Análise do cartaz e da propaganda do filme ou sua veiculação pela mídia: muitos estereótipos são propagados diretamente pelos cartazes, ou então, pela seleção de algumas cenas específicas do filme. Também a escolha de certos personagens ou situações do filme nos cartazes podem revelar ideologias específicas dos produtores ou dos patrocinadores. D. Crítica interna do filme: - Conteúdo objetivo (sentido mais geral ou o que é percebido de forma mais direta): diálogos, indumentária, gestos, enredo, estrutura arquitetônica e cenários. A análise do roteiro original pode ser um excelente documento, além das críticas cinematográficas (geralmente realizadas na época de lançamento dos títulos, em jornais e revistas). - Conteúdo implícito: o que está presente de maneira implícita (conteúdo existente nas entrelinhas), “tudo aquilo que os produtores queriam que chegasse ao espectador, mas não o fizeram, por algum motivo particular, direta e claramente” (NOVA: 5). Geralmente tratam-se de representações ideológicas, a exemplo do filme Alexandre Nevsky (dirigido por Eisenstein): que trata da invasão da Rússia pelos 6 teutônicos durante o século XIII. Como o filme foi produzido na década de 1930 pelos russos (no momento em que os alemães ameaçavam o seu território), ele representa claramente uma transposição do tipo passado-presente. Outro exemplo de conteúdo implícito (em uma obra de ficção científica) é Invasores de Corpos: o planeta é invadido por extraterrestres que tomam o corpo dos humanos e estes agem como “zumbis”. Uma alusão implícita ao perigo do comunismo perante as famílias norteamericanas. A ideologia macarthista também produziu obras de caráter um pouco mais explícito e histórico, como Cortina de ferro, Sob controle, Sob o domínio do mal. Em contrapartida, temos exemplos de filmes denunciadores do macarthismo, como a peça teatral As bruxas de Salem (posteriormente filmada), onde a intolerância religiosa do século XVII torna-se uma metáfora política para o presente. Produções brasileiras também manifestaram diversas ideologias políticas, especialmente durante a ditadura. Filmes da década de 1970, como Independência ou morte! Os inconfidentes, Anchieta, perpetuaram diversos estereótipos criados durante o Oitocentos e que foram popularizados com a literatura do início do século XX. O uso político dos estereótipos pelo cinema brasileiro ainda é praticamente inexplorado, aberto a várias possibilidades de investigação.xi Filmes com alto custo de produção e cenografia, como El Cid, também não fogem a essas influências. Apesar de retratar o período medieval, esta obra muitas vezes recorreu à representações dos mouros em trajes escuros e com atitudes “nazistas” (gestos e expressões inferindo a conquista do mundo), enquanto que os espanhóis representam os heróis da civilização ocidental (um maniqueismo típico do período pós-guerra). Mais um bom exemplo de ideologia implícita é a produção Erik, o Viking, que retrata a Idade Média, mas que na realidade evoca metaforicamente o cenário mundial de final dos anos 1980 (a corrida armamentista entre EUA e Rússia e outras questões geopolíticas daquele momento), conforme excelente análise do prof. Dr. José Rivair Macedo: “A posição do diretor em relação aos dilemas contemporâneos revela-se ao longo de todo o filme, no modo pelo qual desenvolveu as atitudes daqueles que de algum modo tentaram impedir a concretização da jornada em busca da paz.”xii Com isso percebemos as possibilidades de leituras teóricas de conteúdos aparentemente apenas centrados no passado, mas que revelam muitas conexões com o momento em que o filme foi realizado: “na verdade, esses filmes acabam por falar mais sobre seu presente, não obstante seu discurso esteja aparentemente apenas centrado no passado. Mesmo assim, eles desempenham um papel significativo na divulgação e na polemização do conhecimento histórico.”xiii 7 Modelos de representações ideológicas: a ideologia da representação burguesa, por exemplo, muito comum em filmes norte-americanos até a década de 1960, criticada após o surgimento das escolas cinematográficas surrealistas, psicodélicas, Nouvelle Vague, Neo-realista entre outras. Outros modelos muito constantes foram as representações do estilo de vida norte-americano (American way of life) e da representação da família ideal, esta última surgindo até mesmo em animações e Histórias em Quadrinhos.xiv Influências típicas do período neo-colonialista, estas representações também foram incorporadas ao cinema brasileiro, especialmente no período pós-guerra. Modelos heróicos e patrióticos: uma função semelhante aos livros didáticos de História e dos monumentos em geral – a de glorificar sacrifícios e heroísmos individuais pelo bem da coletividade. Alguns filmes tem a função objetiva (mas muitas vezes subjetiva) de fazer com que os espectadores amem seu país, sua pátria, ou de legitimarem as instituições que governam uma sociedade. Algumas obras possuem esse conteúdo ideológico de maneira muito mais óbvia (Independência ou morte!, A batalha de Guararapes, Os inconfidentes, Álamo, O patriota, O resgate do soldado Ryanxv) que a média das produções, mas mesmo filmes ingênuos como os musicais norte-americanos da década de 1950 (enaltecendo a sociedade dos EUA como promissora, feliz e perfeita no mundo pós-guerra) possuem conteúdo ideológico latente: o desfecho final da produção pode conduzir a uma moral, a uma situação que crie um referencial de comportamento ou de pensamento entre o público em geral. A de que viver e morar nos Estados Unidos é a melhor opção existente! Público-alvo e receptividade: alguns filmes conseguem mais sucesso em outros países que nos próprios locais de produção: “Na França, por exemplo, fez sucesso o neo-realismo italiano, filmes de Fassbinder e Woody Allen que nos seus próprios países estão longe de serem os mais populares. Será que é porque eles descrevem com crueldade e humor as taras de suas próprias sociedades?”xvi Muitas obras cinematográficas não fizeram nenhum sucesso na época em que foram exibidas, mas anos depois transformaram-se em cult movies (como Easy Rider, Blade Runner) nos próprios países de origem. Seriam obras com alto teor crítico ou apenas obras de arte não compreendidas no seu meio original? Estereótipos: em muitas produções a ocorrência de estereótipos pode decorrer tanto por questões ideológicas como por motivos técnicos. A fantasia dos guerreiros Vikings portando chifres no filme Príncipe Valente (adaptação de História em Quadrinhos homônima) pode significar o referencial britânico anglo-saxônico de ser uma “sociedade mais civilizada e próspera”, enquanto os escandinavos foram “povos mais atrasados” que aportaram neste país para pilhagens e saques. O capacete 8 representaria esse estado de plena selvageria. Já em outras produções mais recentes, como Gladiador e A lenda de um guerreiro, a presença de germanos e celtas portando capacetes com cornos pode ser simplesmente uma questão de reutilização de figurinos de filmes mais antigos. Enquanto os soldados romanos estão bem reconstituídos, os germanos mais uma vez foram estereotipados. Outros tipos de estereótipos muito presentes no cinema das décadas de 1940 a 1970 foram as produções envolvendo a África, a Ásia e a América do Sul. Em filmes de aventura, o continente africano e asiático foi interpretado como um local misterioso, idílico, selvagem, com habitantes exóticos e muito mais “atrasados” que os europeus, animais terríveis (As minas do rei Salomão, Tarzan, Jim das selvas). Relacionados diretamente com a literatura do Oitocentos, esses estereótipos proliferaram o referencial de que a civilização ocidental possuía legitimidade no processo de conquista e colonização das terras selvagens.xvii Um modelo muito próximo desta relação são produções envolvendo a Amazônia peruana, venezuelana e brasileira. Filmes recentes como Anaconda, nada mais fazem do que perpetuar estereótipos já presentes nos anteriores O segredo dos incas, Manhunt in the jungle, entre outros. Neste último, aventureiros percorrem o Mato Grosso no Brasil, apesar dos habitantes locais falarem espanhol e portarem trajes semelhantes aos peruanos... Para o imaginário norte-americano, não existem diferenças culturais na América Latina. E a todo momento, a floresta apresenta inúmeros perigos que devem ser vencidos pelos heróis (piranhas, jacarés, morcegos, onças, tempestades, etc). Herdeira direta dos modelos colonialistas e imperialistas da literatura ocidental do século XIX, os filmes de aventura incorporam a ideologia de que os europeus e seus descendentes devem ser os legítimos representantes da ordem civilizacional no mundo contemporâneo. Lembramos ainda os épicos religiosos, muito comuns na década de 1950 e 1960: Quo Vadis?, Ben Hur, Os 10 mandamentos, O manto sagrado, e muitos outros, refletem a concepção de que a história do cristianismo só foi feita por perseguição, morte e condenação aos seus adeptos, resultando no triunfo pelo sacrifício da fé. Praticamente nenhuma produção até hoje enfocou o período de consolidação do cristianismo no ocidente romano (Antiguidade Tardia), onde percebemos que a própria a Igreja e seus adeptos perseguiram e mataram publicamente os seguidores do paganismo (uma inversão do que acontecia no Principado, onde os perseguidos eram os cristãos). A eleição de um recorte específico da História pelos enredos cinematográficos, também nos permite perceber as ideologias tanto do público-alvo quanto dos produtores. Isso também é bem explícito na filmografia norte-americana sobre os judeus (com enredos sobre a Antiguidade ou o Holocausto nazista durante a 9 Segunda Guerra Mundial, quanto na formação e consolidação do Estado de Israel), onde estes sempre são apresentados como vítimas, omitindo seu caráter de algozes durante a História (na questão da Palestina moderna). Mesmo recentes produções brasileiras, como Olga, trataram de disseminar os mesmos estereótipos. - Conteúdo inconsciente: os elementos que ultrapassaram as intenções de quem realizou e produziu o filme. Podem ser tanto elementos de ordem individual quanto ideologias da sociedade como um todo: contexto social, econômico, político, cultural e religioso de uma época. Representam o aspecto fílmico mais complexo de ser analisado. É o que Marc Ferro denomina de “zonas ideológicas não visíveis da sociedade.”xviii Exemplos são juízos de valores e de moral expressos pelas culturas, como a forma de alimentação, de se vestir, a maneira de um ocidental contemporâneo em pensar e de seguir determinados comportamentos – principalmente quando contrastado com outros povos ou culturas. E. Comparação e análise de conteúdos: O analista deve comparar os conteúdos do filme com o conhecimento histórico e sociológico da sociedade em que o filme foi produzido, com o tema histórico que ele retrata e com outras produções que retratam a mesma temática. Qualquer filme histórico (não importando a época do enredo) é um documento do momento em que foi produzido. Mesmo que o interesse do pesquisador não seja a época da produção da obra, esse enfoque jamais deve ser abandonado, tanto em questões de ensino-aprendizagem de História como de pesquisas aplicadas: “Qualquer representação do passado existente no filme está intimamente relacionada com o período em que este foi produzido (...) todo filme histórico é uma representação do passado e, portanto, um discurso sobre o mesmo e, como tal, está imbuído de subjetividade.”xix A leitura do filme como documento: o analista deve procurar encontrar as similitudes e representações do filme como os fatos históricos (historiografia escrita). O filme foi totalmente adaptado pelo autor? Que critérios foram utilizados para essa versão da História? Ocorrem anacronismos na obra? Epílogo: Os estereótipos e o imaginário popular sobre História. Em uma época onde a leitura tornou-se minoritária perante tecnologias como a tv e a computação, o cinema dissemina os referenciais populares sobre História com muito mais rapidez e eficácia que qualquer historiador. Isso reflete diretamente no 10 ensino, visto a grande utilização do recurso por parte dos professores. Desta maneira, conseguir analisar produções cinematográficas, desconstituir seus estereótipos e criar um referencial crítico nos estudantes é uma meta importante para qualquer educador. E o campo está aberto para novas investigações acadêmicas, com imensas possibilidades de temas e pesquisas. Assim como o desfecho fílmico muitas vezes foi representado por “FIM” (The End”), acreditamos que este pequeno artigo aponte novos desafios para o historiador nos dias de hoje. FILMOGRAFIA – estereótipos em filmes históricos 1. Estereótipos na História do Brasil - Xica da Silva (1980) - Quilombo (1979) - Os inconfidentes (1971) - Anchieta (1978) - O Guarani (1955) - Ganga-Zumba (1988) - Carlota Joaquina (1994) - Independência ou morte! (1971) - Guerra dos pelados (1975) - O cangaceiro (1956) - Memórias do cárcere (1984) - Aleluia Gretchen! (1976) 2. Estereótipos sobre os bárbaros (Vikings, Celtas e Germanos) - Kull, o conquistador (1992) - Espírito guerreiro 2 (1994) - A rainha da idade do bronze (2003) - Átila o huno (2000) - Highlander (1985) - A lenda de um guerreiro (2001) - Sangue bárbaro (1955) - O Viking (1978) - As brumas de Avalon (2001) - Príncipe Valente (1954) 11 - Erik, o Viking (1989) 3. Estereótipos sobre História Antiga - O egípcio (1954) - A múmia (2000) - Quo Vadis? (1955) - Escorpião rei (2002) - Asterix e Obelix contra César (1954) - O vale dos reis (1954) 4. Estereótipos sobre Idade Média - Merlin (1998) - Lancelot, o primeiro cavaleiro (1995) - Conquista sangrenta (1984) - El Cid (1956) - Coração de cavaleiro (2002) - O monge (1990) - Loucuras na Idade Média 5. Estereótipos sobre conflitos modernos - Fomos heróis (2003) - Midway (1958) - Pearl Harbor (2001) - Coragem e glória (1998) - Esperança e glória (1971) - Rambo II (1995) 6. Estereótipos sobre a Amazônia brasileira e peruana - Amazon, fúria selvagem (1999) - Meu filho das selvas (1996) - O segredo dos incas (1956) - Manhunt in the jungle (1958) - Anaconda (1998) 12 i Doutor em História pela UFPR. Professor de História da Universidade do Contestado (UNC), SC. Editor do boletim Notícias Asgardianas, membro do Grupo Brathair de Estudos Celtas e Germânicos. E-mail: [email protected] ii CARDOSO, Ciro Flamarion & MAUAD, Ana Maria. História e Imagem: os exemplos da fotografia e do cinema. In: CARDOSO, Ciro Flamarion & vainfas, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 404. iii Idem, op. cit., p. 404-405. iv GOMBRICH, Ernest. Arte e ilusão: um estudo da representação pictórica. São Paulo: Cia das Letras. v SALIBA, Elias Thomé. As imagens canônicas e o ensino de História. In: III ENCONTRO: Perspectivas do ensino de História. Curitiba: UFPR, 1999 vi Sobre o estereótipo dos Vikings no cinema ver: GLOT, Claudine. Drakkars sur grande écran. In: GLOT, Claudine & LE BRIS, Michel (org.). L’Europe des Vikings. Paris: Éditions Hoebeke, 2004, p. 188-190; LANGER, Johnni. O cinema e os bárbaros. Boletim do Laboratório de Ensino de História, UEL, n. 25, 2002. A respeito da origem e popularização dos estereótipos sobre os escandinavos no imaginário ocidental consultar: LANGER, Johnni. Rêver son passé. In: GLOT, Claudine & LE BRIS, Michel (org.). L’Europe des Vikings. Paris: Éditions Hoebeke, 2004, p. 166-170; LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. In: Viking Heritage Magazine, Gotland University, n. 4, 2002; LANGER, Johnni. Os Vikings e o estereótipo do bárbaro no ensino de História. História e Ensino, UEL, v. 8, 2002; LANGER, Johnni. Fúria odínica: a criação da imagem oitocentista sobre os Vikings. Varia História, UFMG, n. 25, 2001. vii NÓVOA, Jorge. Apologia da relação cinema-história. In: Olho da História, UFBA, n. 1. www.olhodahistoria.ufba.br viii CARDOSO, op.cit., p. 413. ix NOVA, Cristiane. O cinema e o conhecimento da História. Olho da História, UFBA, n. 3. www.olhodahistoria.ufba.br x A respeito de teoria e estética do cinema ver: BRASIL, Assis. Cinema e Literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967; COSTA, Antônio. Compreender o cinema. São Paulo: Editora Globo, 1989; RITTNER, Maurício. Compreensão de cinema. São Paulo: Editora São Paulo, 1965. xi Os filmes históricos no Brasil apresentam vários estereótipos, dos quais destacamos: 1 Imagem indígena: criada durante a década de 1850, a imagem estereotipada do ameríndio concentrou-se na idealização de um tipo ideal (o Tupi, que era considerado passível de ser cristianizado e civilizado) e o bárbaro (o Botocudo, canibal e primitivo segundo o imaginário da época). A estética literária influenciou as artes plásticas e a ópera oitocentista do Brasil, que deu origem a várias imagens errôneas dos habitantes originais do país. Dentre os vários aspectos estereotipados que ainda permanecem no cinema, tanto nacional quanto estrangeiro, podemos citar: vestimentas, comportamento, aspectos físicos. Sobre o tema ver: LANGER, Johnni & SANTOS, Sérgio. Império selvagem: a arqueologia e as fronteiras simbólicas da nação brasileira (1850-1860). Dimensões: revista de História da UFES, Espírito Santo, v. 14, 2002. 2 – A família imperial: os personagens relacionados com o primeiro reinado. D. Pedro I, sempre representado como um conquistador incorrigível, semi-analfabeto, aventureiro; a Marquesa de Santos, concebida como uma poderosa influenciadora dos rumos políticos do país; D. João VI, representado como um rei balofo e tolo, despreocupado com política. Estes estereótipos proliferaram nos meios artísticos modernos, a exemplo da mini-série Quinto dos Infernos. Sobre o assunto consultar: BASTOS, Lúcia & NEVES, Guilherme. Retrato de um rei. Nossa História, Biblioteca Nacional, v. 1, n. 1, 2003. 3 – A imagem de Tiradentes: criada pelos republicanos, a representação do alferes como sendo um mártir cristão, barbudo e cabeludo (características inexistentes no personagem histórico) é uma das mais difundidas e populares imagens heróicas de nosso país. Vide: CARVALHO, Murilo de. A formação das almas. São Paulo: Cia das Letras, 1990. 4 – A imagem do gaúcho: o combatente da guerra dos Farrapos, idealizado como herói invencível, nacionalista, defensor da democracia social e racial. Essas imagens tornaram-se populares no cinema e tv (a exemplo da mini-série A casa das sete 13 mulheres). Sobre o tema ver: PESSAVENTO, Sandra Jatahy. Fibra de gaúcho, tchê! Nossa História, Biblioteca Nacional, v. 1, n. 2, dez. 2003. xii MACEDO, José Rivair. Cinema e mitologia nórdica: considerações em torno de As aventuras de Erik, o Viking. In: ALMEIDA, Neri De Barro (org.) A Idade Média no cinema. São Paulo: Editora da Unesp (no prelo). xiii NOVA, op. cit. xiv Para análise dos modelos familiares e teoria do gênero no cinema consultar: KAPLAN, E. Ann. A mulher e o cinema. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. xv Sobre a relação entre cinema de guerra e progaganda política consultar: DREWS, Jairo Hepp. O cinema como arma de guerra. Nethistória, 2004. www.nethistoria.com ; CASTRO, Nilo (org.). Cinema e Segunda Guerra. Porto Alegre: UFRGS, 1999; VIRILIO, Paul. Guerra e cinema. São Paulo: Scritta, 1993. xvi FERRO, Marc. O conhecimento histórico, os filmes, as mídias. Olho da História, UFBA, n. 6, 2004. www.olhodahistoria.ufba.br xvii A respeito desta relação, consultar as obras: SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo: Cia das Letras, 1995; PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. São Paulo: Edusc, 1999. xviii FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. xix NOVA, op. cit. Para maiores informações sobre a relação entre História e Cinema, ver: FREIRE, Larissa Almeida & CARIBÉ, Ana Luiza. O filme em sala de aula: como usar. Olho da História, UFBA, n. 6, 2004. www.olhodahistoria.ufba.br ; NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2003; PINTO, Luciana. O historiador e sua relação com o cinema. In: Olho da História, UFBA, n. 6, 2004. www.olhodahistoria.ufba.br ; ROSSINI, Miriam de Souza. As marcas da História no cinema, as marcas do cinema na História. Anos 90, n. 12, 1999; SALIBA, Elias Thomé. História e Cinema: a narrativa utópica no mundo contemporâneo. Lições com o Cinema, n. 2. São Paulo: FDE, 1994; SALIBA, Elias Thomé. A produção do conhecimento histórico e suas relações com a narrativa fílmica. Lições com o Cinema, n. 1. São Paulo: FDE, 1994; SALIBA, Elias Thomé. Robôs, dinos e outros simulacros: o limiar da utopia no cinema e na História. Revista de Cultura Vozes, v. 7, n. 13, 1994; SALIBA, Elias Thomé. Experiências e representações sociais: reflexões sobre o uso e o consumo das imagens. In: BITTENCOURT, Circe (org.) O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 1998.