S Ó - O IT A V A E D IÇ Ã O , A N O 2 , S E T E M B R O

Transcrição

S Ó - O IT A V A E D IÇ Ã O , A N O 2 , S E T E M B R O
S Ó - O I TAV A E D I Ç Ã O , A N O 2 , S E T E M B R O / O U T U B R O D E 2 0 0 9 I P R E Ç O C O L A B O R AT I V O R $ 1 , 0 0
Expediente
Edição, reportagem e diagramação - Lucas Rodrigues de Campos
Ilustrações e arte - Chuck Dedo Amarelo
Edição e revisão de texto - Tatiane Klein
Colaboração - Elton Amorim,
Paulo Fávero, e Fábio Batistine e Raymundo Raine
6000 cópias
Centro Cultural Popular Consolação
http://so0jornal.wordpress.com
Consolação, 1897, (11) 2592-3317
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Contato
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Endereço - Rua Navarro de Andrade, nº 20, ap. 22
05418-020, São Paulo, SP
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por Lucas Rodrigues de Campos, Chuck Dedo
Amarelo e Paulo Fávero
Dentro de um curso de música que atende
a regras antiquadas na música, o surgimento
de novos sons: A Banda do CANIL _ registra
momentos importantes de nossa música; Fé
cega e faca amolada, é um deles. Há dois
anos, a música surgia na versão dos Doces
Bárbaros. Hoje se assemelha à viagem e
competência exploradas na gravação original da canção grafada no long play Minas,
do Milton Nascimento de 1975.
A forma de lidar com os sons é ingênua privilegia o primeiro contato no ato. Em meio
ao show, os músicos parecem tocar a expressão das faces. O agrupamento de tardes improvisadas tornou o som físico, quase
palpável, um estalo musical na pele. Provoca
coletivizando o entendimento musical que só
pode ser sensível aos olhos dos ouvidos, coisa
de organismo. Mesmo. A música, autoral e de
domínio público, é produzida por todos os
presentes no espaço público.
Dança das vísceras, gritos, luzes, fogo, atuações, pulmões, tinta, câmeras, ação! Por vezes
ação, mais ação, pausa, libertação! Muitas
outras mais: Gil, Lênin, Gordin, Lanny, Trosky,
Jim, Sauno, Gal, Soul, latidos e grunhidos.
Sugestão ao grito para os que conhecem e
os que avistam a ilha pela primeira vez. Piratas caolhos, a ilha tem cerveja, o rum é sonho,
paulo fávero
aos malditos
Segundo número em parceria com o Centro Cultural Popular; oitava do coletivo sÓ - a primeira foi lançada em
2005, em formato revista -, sétima edição como jornal: um especial sobre o Rock da Mortalha.
Diferente dos últimos números, esta edição de coletivo sÓ dá destaque às entrevistas, uma das ferramentasm mais
importantes no registro da memória. Em nosso caso, aplicamos-na na recuperação do passado e no registro do presente:
um que surge das catacumbas do Rock da Mortalha e outro que vem do instrumental Mama Gumbo e da fluência de sons e
uivos vindos de um canil forjado à marretadas.
Parceiros de Arnaldo Baptista no grupo Patrulha do Espaço, Dudu e Koko Genari são lembrados pelo amigo Giácomo
Paolo, espécie de manager do Rock da Mortalha. Ambos são fundadores do Patrulha, e Kokinho, como era conhecido no
meio musical, fez sua última aparição em vida em Loki. O documentário trabalha de forma dúbia; enquanto constrói o
mito de Arnaldo, amaldiçoa o termo rock progressivo e as contribuições do mutante Sérgio Dias em “Tudo foi feito pelo
Sol”. Na época em que floresciam Iacanga, outros malditos do progressivo - alguns já relatados aqui (Som Nosso de Cada
Dia e Terreno Baldio) - o trio de hard macabro da Vila Liviero, São Bernardo do Campo, causava espando no público do
Festival de Águas Claras. Em Loki, aqui apresentado por uma resenha crítica, é possível notar a dificuldade de se tornar
artista com obra reconhecida. No caso de Arnaldo Baptista, o reconhecimento veio após uma sucessão de traumas: foi
preciso voar e ficar em exílio durante anos. Hoje o filme alça Arnaldo à confusa extratosfera dos gênios.
também nostalgia. Mas o grupo é de piratas públicos e sonoros às quartas-feiras.
O número das caravelas sonoras que já aportaram no porto é hoje, quase incontável. Alfândega originária em Haight-Ashbury, com tarifas um
pouco mais baixas. Meretrio, Saunoflex, Baratas
Organolóides, Soul Barbecue, Zé Brasil, Banda de
Argila, Gangsters, além da banda batizada pelo
local, estão na história do espaço apossado pelo
ímpeto e pela autogestão.
Jams, treinos, músicos acadêmicos e bêbados
loucos de plantão. Com todo respeito à etimologia mundrunga, sempre hippie, suja, louca, e
contestadora.
Consagradas sejam as quintas feiras de boa
música e cerveja sem entrada. Até o sol raiar,
ou às vezes, até mais. É nas QuintasiBrejas do
CANIL _ Espaço Fluxus de Cultura, onde
o fenômeno acontece, a balada é mesmo eter-
na: a fossa, o atraso preguiçoso no serviço, sono
entorpecido: o mundo das idéias em efervescêcia analgésica, antitérmica e proparoxítona. O
cansaço...levantai-vos!
Isso remete, em devaneio, à tradição perdida
da Escola de Comunicação e Artes. Aos anos
setenta. Vilanova. Arrigo e companhia, como
muitos outros, não são nostalgia, são criatividade
presente em um CANIL _, grunhindo contemporaneamente, mas, experimentando por conta. Aí
está o passado atual, compor e experimentar
como antes. Reciclagem não de riffs, mas de uma
formar de enxergar o que se ouve. Música boa
é música viva. Isso os integrantes da matilha Zé
Motta (vocal e percussão), Ed Woiski (guitarra),
Kiko Woiski (baixo), Henrique Gomide (teclado) e
João Fideles (bateria) e o iluminador Paulo Fávero
sabem muito bem. É como se a boa música ainda
fosse de alguma maneira valorizada pela maté-
CANIL_
ria humana que a executa durante todos os
procedimentos. Ou seja, o lance é criar.
O espaço recebia o gerador de eletricidade da antiga REI_toria. O gerador não
funcionava, o espaço era obsoleto. Virou
canil. Dezenas de cães bastardos amontoavam-se, latiam, degladiavam-se presos.
Marretadas políticas, marteladas de dimensões críticas, diversas, abriram outro
caminho. Arte que virou vídeo, música. Em 04
_05 _006, estudantes reocuparam o espaço
público. Arquitetura de vanguarda, dita de
Artigas: abandonada, porca, nula, amarela,
fantástica, nave espacial indestrutível, possibilitou o redondo aberto horizontal, sem
portas, grades ou jaulas para novas articulações criativas.
Mais nostalgia, a prova da nostalgia válida. Armaram um palco no teto. Hoje o teto
é questionado. Agüenta ou não agüenta?
Agüentou todas as esferas de Dark Side of
The Moon. O lançamento ao Espaço Fluxus
de Cultura.
Os cães da matilha hoje são livres ao menos no seu CANIL _: correm no verde, perseguem carros. E se os deuses da música ainda
rezam por algo, os cães ainda mijam livres
nos postes. Isso sim é resistência!
As vontades coletivas de Mama Gumbo
(ou retrato de um artista quando jovem)
Lucas Rodrigues de Campos: Vocês [Mama
Gumbo] participaram do festival PIB [Produto Interno Bruto, festival que já está em sua
segunda edição e que este ano aconteceu
no clube Belfiori (CB Bar), Barra Funda].
Em 2007 vocês concorreram e ganharam, e
nesse ano foram a banda madrinha, tocando inclusive com uma lixadeira elétrica. Há
quanto tempo vocês estão trabalhando o set
apresentado?
AC: Temos cerca de 20 músicas prontas,
todas criadas de um ano e meio pra cá.
São as que tocamos nos shows, variando
conforme o público. Dez entraram no novo
CD.
LRC: Como as influências musicais de cada
integrante aparecem no processo de criação
das músicas?
AC: Nós tivemos três formações e em cada
uma delas o som foi diferente, apesar de
continuar com uma essência. Cada vez que
entra uma pessoa muda tudo, pois é outro
universo, com referências diferentes. Todos
contribuem de alguma forma. Geralmente
eu faço os temas, proponho no ensaio e
vamos mudando, adequando. Às vezes [o
tema] aparece em uma brincadeira e vamos seguindo aquilo, lapidando. As músicas
acabam sendo a expressão dessa vontade
coletiva que é a banda. Por mais que eu
faça um tema, ele acaba sendo construído
por todos. E o Mama tem um direcionamento, desde o primeiro disco, uma cara. Isso é
incorporado pelos integrantes.
LRC: Qual é essa cara?
AC: É a de uma música instrumental livre
de populismos, dançante, mas também tensa, com referências variadas que passa por
uma estrutura de composição idealizada.
Temos um conceito de jazz e somado a isso
temos uma camada de influências que se
sobrepõe: como o rock, a música de vanguarda, o blaxploitation. É um jazz mais
visceral, mais simples, com um pouco de
afrobeat, com uma estrutura às vezes or-
Alex Cruz tem 32 anos. Está há 16 na empreitada musical. Bacharel em Filosofia,
hoje participa de diversos projetos musicais, em que se afasta de um emprego alienado e manifesta seu profundo desejo de criar. O combo Mamma Gumbo pode ser
considerado o carro chefe da carreira musical de Alex. Nesse coletivo, ele desfila um
arsenal de teclados psicodélicos e manifesta a música mundial no palco; só no último foram quase sessenta shows. No Dharma Samu, outro de seus projetos musicais, ele se digladia com os deuses do rock e remodela canções de Led Zeppelin em
pranchas instrumentais. Em suas participações no Zói de Gato, trabalha os caminhos modernos da MPB. Em entrevista ao Coletivo Só, Alex Cruz revela uma personalidade musical gritantemente citadina, critica a indústria cultural e mostra um
pouco do que é estar no circuito underground de São Paulo. Leia abaixo, na íntegra.
questral e que se apóia nas dinâmicas. Uma espécie
de montanha russa, com partes bem definidas. Não
ficamos apenas “fritando”, existem muitas partes organizadas que se misturam às partes livres para dar
um respiro...
LRC: Quando diz populismo em música você se refere
exatamente a quê?
AC: Sobre o populismo, eu digo essa mania de
sempre se misturar a música regional brasileira que
está na moda no momento. Hoje em dia tudo tem um
pouco de regionalismo nordestino, toques de MPB e
resquícios de jazz brasuca chato. Não que isso seja
um problema quando é natural, mas geralmente não
é. Existe uma necessidade de sermos extremamente
brasileiros e para quem mora em uma cidade como
São Paulo é um pouco difícil ser tão regional. Mas
sempre aparece um pouco da música brasileira, não
tem como fugir disso.
LRC: A música do Mama Gumbo traz poucas referências à música nacional? No Brasil há uma linhagem de
jazz bem autoral...
AC: Nós fugimos dessa linhagem. Somos uma mescla
com outros estilos: não podemos ser apenas jazz. Mas
temos influências de nomes como Sansa Trio, Zimbo
Trio e todos esses nomes conhecidos (principalmente
desse samba-jazz dos anos 60). Não sei se isso aparece tanto, mas em algumas músicas fica claro que
temos um pé no Brasil. Não ficamos presos só nisso:
procuramos outras áreas; é aí que a coisa começa a
mudar. Somos uma banda mundial [risos].
LRC: De quais outros grupos você faz parte?
AC: Eu toco em mais dois projetos: um se chama
Dharma Samu, que é uma banda que faz versões
instrumentais jazzísticas e funkeadas das músicas do
Led Zeppelin; e um projeto novo, um trio de jazz ainda sem nome. Tem outro projeto, de que participo
como convidado, chamado Zói de Gato, uma coisa
mais MPB.
LRC: Hoje você dedica todo seu tempo produtivo em
prol da música?
AC: Não. Infelizmente tenho que trabalhar em um
emprego fora da música. O que ganho com a música
ainda não me proporciona uma vida sequer razoável.
LRC: Você sonha em ser músico profissional?
AC: Músico profissional... Estranho isso... Sou músico.
Não compreendo essa coisa de profissional. Só não
ganho dinheiro suficiente com isso, mas viver de música
é o que nós pretendemos.
LRC: Você acompanha com afinco a cena musical aqui
da cidade ?
AC: Bastante. Vou a muitos shows e escuto a maioria das bandas undergrounds, que é a parte boa da
música brasileira atual.
LRC: Ultimamente algum grupo ou músico tem chamado a sua atenção?
AC: Gosto mesmo é dos undergrounds. A grande
cena não me traz nada, me parece tudo muito falso
e sem alma. Atualmente tenho ouvido uma banda
chamada Malditas Ovelhas, de São Carlos; eles são
muito bons. Há uma ótima cena de bandas instrumentais no Brasil de agora; bandas como Retrofoguetes,
Gasolines, Reveba Trio, Aerotrio, Elma, Fantasmagore,
Macaco Bong e muitas outras. Instrumentais ou não,
como Sotádicos, Vaca de Pelúcia, Mamma Cadela,
Biggs, enfim. Muitas bandas bacanas, em diferentes
por Lucas Rodrigues de Campos
níveis de produção, mas que estão meio escondidas, com um espaço restrito para aparecer.
LRC: Como você vê o underground? Como entende esse termo?
AC: É um vício de linguagem, né? [risos]. Eu
vejo como as bandas que tocam por aí. Sem
vínculo com as grandes empresas ou a grande
mídia, geralmente bandas que se autoproduzem, gravam seus discos, correm atrás de
shows. É claro que no momento, aqui no Brasil, isso está meio confuso. Existem bandas que
estão no meio termo e mesmo o circuito “independente” não é tão underground assim.
Já temos a Abrafin [Associação Brasileira de
Festivais Independentes] e um monte de bandas que já rodam o Brasil – aparecem na mídia e são meio independentes. O negócio está
bem confuso. Se juntar essa caça desesperada
pelas leis de incentivo, pessoas que vivem
dessa galinha de ovos de ouro. Mesmo pra
você ser independente é complicado hoje. Tem
que entrar nesse meio, o que não é assim tão
simples, nos festivais, nos coletivos, na Abrafin,
nas leis de incentivo. Você tem que ser meio
burocrata para ser músico hoje no Brasil – digo
músico “independente”. Os undergrounds são
mais livres, se viram, fazem música e pronto.
LRC: Você acha que a cidade de São Paulo
influencia seu modo de fazer música?
AC: Totalmente. Eu nasci e cresci aqui. O
mais longe que fui foi para Brasília, tocar em
um fim de semana; de resto nunca sai daqui.
O meu regionalismo é ônibus lotado de uma
hora e meia para o centro, terreno baldio [o
mais perto que eu cheguei da natureza, de
pegar frutas, essas coisas], asfalto, prédio,
violência, sujeira, poluição, cinema, música,
baladas, periferia, subemprego, instrumentos
“classe C”, faróis, trânsito, Santos em feriados,
hot dog, comercial com fritas, escritórios, Zona
Leste, moradores de rua, trem, metrô, calçadas
quebradas, pracinha do bairro, happy hour,
antenas de TV etc.
LRC: O que seriam “instrumentos classe C”?
AC: Você não tem grana para comprar uma
quarta, dia 7/10
LEANDRO BONFIM E MAMA GUMBO
LEANDRO, A PARTIR DAS 22:00
MAMA, A PARTIR DAS 23:00
CENTRO CULTURAL P OPULAR C ONSOLAÇÃO 1897
guitarra Gibson (que custa de 6 a 20 mil reais). Então você tenta uma Epiphone, mas ela
também custa uns três mil ou dois. Então você vai abaixando, até comprar uma de 500
contos. Isso com os teclados, com a bateria, com o baixo, a percussão etc. É impossível ter um
instrumento descente aqui no Brasil, pelo menos para minha classe. E olhe que eu gasto toda
a minha grana em instrumentos. Já deve ter uns 20 mil em instrumentos “C” e alguns “B”.
LRC: Como é essa adaptação técnica dentro do Mama Gumbo?
AC: Fazemos com o que temos. Sempre queremos ter mais e vamos acumulando instrumentos e técnicas. Felizmente temos um equipamento razoável, que dá pra se expressar bem.
Eu toco com três teclados: um stage piano, um synth de orgãos, rhodes e coisas assim. E um
synth maluco, estilo moog e tal. É o que eu levo para os shows. Em casa e para gravar eu
tenho um suette dos anos 80 (uma espécie de rhodes nacional que pesa uns trocentos quilos).
um piano de parede; e dois teclados pipoquinhas para uns timbres mais bizarros. Eu ainda
uso um wahwah e uma distorção. O baixista usa uma distorção também, tipo um fuzz. Tem a
percussão com um milhão de coisinhas que fazem os barulhos mais malucos; um sax esquizofrênico a que se soma a flauta; e uns efeitos tipo rádio, lixadeira elétrica e chapas de metal
e o batera que toca um didgeridoo, às vezes... Ufa!
LRC: Atualmente você tem ouvido o quê? Algum som na linha dessas últimas doideras?
AC: Como eu disse, estou ouvindo o Malditas Ovelhas, que usam uns efeitos de synth e
outras maluquices, e tudo soa bem bacana. Gosto do Ananda Shankar (coisa antiga), do
Frank Zappa. Estou ouvindo e conhecendo o Weather Report (nem tudo é bom, mas tem
umas coisas demais); tem os discos do Miles [Davis] da fase fusion; os do Herbie Hancock,
umas trilhas de filmes eróticos dos anos setenta, muito blaxploitation, jazz fritadeira, Black
Sabbath, Stones, Silver Apples, Santana, muita coisa e coisas diferentes.
LRC: Voltando a falar de São Paulo. Quais os melhores shows que vocês protagonizaram nas
casas daqui?
AC: Todas as vezes que tocamos no Berlin [casa de shows na Barra Funda] foram demais.
No festival PIB, no CB Bar [Clube Belfiori] foi muito bom também. Temos shows no Teta [Jazz
Bar], que são mais intimistas, mais jazz, que são bem bacanas e diferentes. Tem as festas na
Gruta [Bar, na Vila Buarque],que são muito viscerais e malucas. Em cada lugar nós reagimos
diferente. Dependendo da proposta da casa, da reação do público,
do nosso bom humor no dia [risos].
LRC: Você gosta desses espaços?
AC: Gostamos da maioria desses lugares. Cada um tem sua particularidade. A única coisa que tem e comum é que não dão muita grana
[risos].
LRC: Você acha que existe uma solução para que os músicos noturnos
aqui de Sampa tenham melhores condições de trabalho?
AC: Claro que existe. É só os donos das casas serem mais humanos
e levarem em consideração o trabalho e a importância da música do
estabelecimento deles. Quando você quer servir alguém você paga um
garçom; para limpar tem a faxineira; tem o barman para atender e o
músico para entreter. A questão é que músico sempre ganha menos do
que qualquer um desses profissionais. As pessoas confundem arte com
brincadeira. Não acham que existe profissionalismo, nem esforço, nem
investimento, nem gastos. Eles acham que estão dando uma oportunidade e estão fazendo muito em repassar algum valor pra você. Isso
em 99% das casas de Sampa. Poucas são as que sabem lidar com os
músicos, são honestas, repassam o que combinaram – muitas roubam
descaradamente nas contas, alterando as comandas, escondendo os
números reais, não pagando o cachê descaradamente, enrolando dias
pra pagar etc. Não é fácil ter uma casa noturna, bar ou qualquer coisa
desse tipo, mas temos que ser vistos como profissionais. A maioria das
casas que mexem com música nem equipamento têm [risos]. É nossa
obrigação levar [risos]... É uma piada. Só maluco entra em um negócio
destes [risos].
LRC: Qual é sua motivação para entrar nessa maluquice?
AC: A música é uma coisa superior, difícil de explicar. É o que faz as
coisas fazerem sentido. Algumas pessoas têm a religião, o trabalho,
os filhos, sei lá. Pra mim é a música, o ato criador da coisa. O fato de
ter esse poder de trazer algo ao mundo, de gravar uma coisa que
você pesquisou, executou, criou. Além da questão ritualística da coisa, o
clímax, uma coisa transcendental, o desprendimento na hora do show,
quase como um êxtase religioso, a catarse mesmo, difícil explicar. Mas
o negócio vicia, como uma droga mesmo... Além da alegria de ter algo
pronto, das pessoas poderem ouvir o que você fez... Coisa de louco
[risos].
LRC: Sua vida profissional está amparada em que hoje?
AC: Tenho um subemprego burocrata qualquer, free lancer total. O
que me ajuda a tocar por aí.
LRC: Há uma oposição entre trabalho alienado e trabalho criativo?
AC: Total. É uma venda corpórea. Na verdade não é nem uma
venda, pois não se pode negociar. É uma necessidade de subsistência. Não há nada de criativo ou de digno nisso. É um outro
nome para escravidão, pois a maioria das pessoas não escolhem
em que vão trabalhar. A maioria só tem que trabalhar. Eu faço
parte disso como muitos outros. O que sou, só passa a existir
quando estou fora de lá e se manifesta em alto grau quando
toco.
LRC: Tocar é um manifesto contra tal situação para você?
AC: Funciona como um modo de vida, então também entra esse
lado manifesto. É uma maneira de você sair, gritar, ir contra de
uma maneira talvez lúdica demais, mas ainda sim importante. É
como se quando você tocasse, vingasse todas as coisas ruins do
mundo, inclusive as que estão em você mesmo.
LRC: Sente que hoje em dia tem diminuiu a vontade das pessoas,
e dos jovens em geral de se manifestar?
AC: Não sei se diminui, mas mudou. Todos querem se manifestar, mas como e para quê é que são as chaves da coisa.
Hoje em dia, as pessoas começam a tocar para imitar alguém,
para ganhar dinheiro ou para comer meninas. O que é um erro.
Não que não se possa fazer nada disso [risos]; é que as coisas
começam errado. Quando comecei, pensava em criar músicas
tão boas quanto as dos [Rolling] Stones; pensava até em ser
melhor que eles, em criar melodias, em inovar, usar instrumentos
estranhos, mudar a maneira de como se vê música, de como se
ouve, de como se vende. Queria dizer que o mais importante é
ser verdadeiro e criativo. Tinha 16 anos e queria mudar todo o
mundo. Hoje tenho 32 e ainda quero.
LRC: Você já se pegou elocubrando sobre como seria fazer música em outra época, em que parecia haver um público mais seletivo
quanto ao gosto musical?
AC: Já pensei e quando era mais novo esse era meu sonho
[risos]. Mas depois percebi que queria era estar aqui e agora,
fazendo exatamente o que eu faço, atingindo as pessoas agora
e com esse tipo de som. Gosto de ser um fruto da minha época,
um apanhado de influências de tempos e pessoas distantes, mas
que se somaram em mim e se mesclaram com a minha maneira
de ver o mundo – que, por sua vez, é influenciada por diversos
fatores do mundo de hoje e de ontem. Além do mais, acho que
em todas as épocas existiram um público que gosta de “música
de verdade” e escuta as coisas mais bizarras. E tem o fato também de que hoje é um momento muito bom, a internet abriu
as portas para muita coisa, para muitas possibilidades. Eu não
queria estar em outra época [risos]. As gravadoras desabaram;
ninguém sabe o que fazer direito; estamos entrando em uma
nova fase; é um momento crucial, de mudança. Hoje você tem
acesso a milhões de tipos de música, tem como ir atrás e só ouvir
aquilo que te interessa. Há 10 anos era foda comprar um CD ou
disco; era caro e não se achava nada. Ficávamos presos ao que
a indústria achava que deveríamos consumir e muitas bandas
genias caíram no esquecimento. Hoje podemos ouvir quase tudo
e estudar a obra de diversos malucos que estavam perdidos. É
uma espécie de resgate, de abertura cultural. Tem pessoas que
têm bibliotecas gigantes nos computadores e liberam isso pra
outras – pode-se ouvir diversas bandas undergrounds e boas
pelo MySpace . Hoje só engole essa merda toda mercadológica
quem quer.
LRC: Você acha que os músicos de hoje estão preparados para
propor uma nova situação depois da quebra do status quo das
grandes gravadoras?
AC: Apesar de esse ser um momento crucial, eu não acho que
essas organizações independentes estejam preparadas. Todas
as ações são marcadas por uma politicagem forte, uma burocratização, uma dependência do estado. No fundo eles estão agindo de maneira análoga. O que é um problema, pois quando
as grandes sacarem que esse negócio é extremamente rentável,
vamos voltar para o mesmo lugar ou quase para o mesmo.
entrega de ter. a dom., das 18:00 às 24:00
PIZZARIA POLLY, Av. João XXIII, 05
Vila Formosa, 2911-5087 e 2216-0446
30/10 no CCPC
SEGUNDA EDIÇÃO
UDIGRUDI EM FESTA
aquecendo as turbinas
para o P S I C O D Á L I A
J A Z Z , R$2,00
JONATAS JAZZ QUARTET
No mês de setembro, a banda
Jonatas Sansão (Bateria), Lucas Macedo (Sax), André Soratti/Kiko (Baixo) e Davi
Sansão (Piano) - comemorou um ano de jazz no CCPC. Para celebrar, a banda
recebera, como convidado, no dia 14, o exímio guitarrista Michel Leme, que tem
em sua Firma, grupo que o acompanha, a presença de Jonatas. Há um ano, quem
passa às segundas pelo CCPC distorce o triste início da semana ao tomar contato
com temas clássicos do jazz, como Maiden Voyage e Cantaloupe Island, ambas
de Herbie Hancock, influência declarada dos músicos. Além do quarteto liderado
por Jonatas, outro grupo bate cartão às segundas-feiras: o instrumental Água
Viva, que destila o melhor do instrumental brasileiro.
Sexta Samba Rock
projeto Groove à Brasileira
O principal objetivo do Groove à Brasileira é trazer a música negra brasileira e internacional desde a década de 70, como o soul e o funk, para a noite paulistana. Entre
outras vertentes, será explorado o que há de mais contemporâneo neste cenário musical, abrindo espaço a cada noite para convidados que fazem a cena da música negra
paulistana. Toninho Crespo e Banda trazem seu samba rock e influências da música
negra brasileira, soul music, rap e dub, todos presentes no recém-lançado CD Estilo
Samba Rock. O Dj Adauto Dhemix, atuante desde os anos 70 na arte da discotecagem em São Paulo, traz em seus vinis os clássicos do samba rock e também mixagens
de produções inéditas da black music de diversos estilos e épocas. Dj Guinho contribui
com sua experiência com os clássicos do breakbeat, do hip hop, do funk e do soul .
w w w . m y s p a c e . c o m / t o n i n h o c r e s p o
sáb., 11h00
qua., 19h30
seg., 18h l os documentários produzidos,
serão exibidos em uma sessão especial
no mês de dezembro
qui., 19h30 l curso de percepção a partir
da experiência com escaleta
qui., 19h30
Além da extensa e
contínua programação musical, som ao
vivo todos os dias
emendando semana a
semana, o Centro Cultural possibilita tomar
contato com diversas
criações que mesclam
capacitação na áerea
de produção de cultural: Rádio, Documentário, Teatro, Orquestra de Escaletas. Ao
oficinas
final, as
,
que duram de um a
três meses, transformam a experiência
laboratorial em projetos concretos. Veja
a descrição completa
de cada atividade
em www.ccpc.org.br
qui., 19h30
L o k ia construção de um gênio
por Erich Jones
Estudante de Ciências Sociais, baixista do MudShark e fã inveterado de Mutantes
RESENHA DO DOCUMENTÁRIO LOKI, EM CARTAZ NO CANAL BRASIL E LANÇADO EM FORMATO DVD
FICHA TÉCNICA
BRASIL, 2008, 120 MIN.
DIREÇÃO / ROTEIRO / EDIÇÃO: PAULO HENRIQUE FONTENELLE
PRODUÇÃO EXECUTIVA: ANDRÉ SADDY
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: ISABELLA MONTEIRO
PRODUÇÃO DE FINALIZAÇÃO: TEREZA ALVAREZ
DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA: MARCO MOREIRA
EDIÇÃO DE SOM: CARLOS TORÉ
PRODUÇ ÃO: CANAL BRASIL
Um conto sobre um garoto de extrema criatividade, nascido e criado no bairro ítalo-paulistano da Pompéia. Cercado e maravilhado
pela cultura ocidental produzida em larga
escala nos meados da década de 60, o filme
alça o menino à condição de um gênio. Fã de
histórias em quadrinhos, Três Patetas, discos
voadores; fã de rock and roll próximo das
bandas bairristas que imitavam os Beatles. Ele
foi além: criou, inovou e foi ponta-de-lança do
movimento tropicalista, segundo as palavras do
maestro Rogério Duprat ao falar sobre a vida
de Arnaldo Dias “Loki” Baptista. Dirigido por
Paulo Henrique Fontenelle, o documentário Loki
apresenta um apanhado de depoimentos de
personagens curiosos, que acompanharam ou
eram próximos d´Os Mutantes.
Um deles é Raphael Vilardi, que foi um dos
que participou da criação do maior conjunto
de rock brasileiro, que ainda em 66, integrante
d’O´Seis - célula inicial da banda - compôs
“Não vá se perder por aí” e “O Suicida/
Apocalipse”. Vilardi trocou o grupo para ser
um “tremendão” de Erasmo Carlos – no documentário ele revela não ter assimilado o som
brasileiro de “Domingo no Parque”, quando foi
apresentado ao som de Gilberto Gil através
de Arnaldo. Outro depoente fundamental é
o artista plástico Antônio Peticov, quem apresentou o LSD aos Mutantes para embarcar
na lisergia, durante sua alucinada excursão
em Paris, para a gravação de Technicolor, em
1970; e quatro anos depois, na Itália, conviveu
durante dez dias com um Arnaldo cosmonauta
que o convidou para planejar a construção de
um disco voador.
Ganham destaque as imagens de época. O
Festival Internacional da Canção, produzido
pela Rede Record, posiciona o nascimento do
sentimento tropicalista a partir da antológica
parceria de Os Mutantes com Gilberto Gil, em
“Domingo No Parque”. Esse fato é reforçado
pelas análises do jornalista Tárik de Souza e
pela visão filosófica de Tom Zé. Imagens ra-
ras feitas por uma câmera Super8 (do acervo
do Canal Brasil) mostram o trio ainda imberbe,
tirando uma onda em Walt Disney, com alegria e
molecagem. A mistura tropicalista: Disney e Mutantes. Para os aficionados pelos trabalhos do
músico e compositor Arnaldo Baptista, as imagens
mais valiosas são os registros de banda e palco:
já sem Rita, Os Mutantes da época de “O A e o
Z” mandando “Ainda vou transar com você”; um
longo e notável trecho de “Será que eu vou virar
bolor?”, canção presente no disco Loki - estréia
de Arnaldo como artista solo; a execução da
então inédita em vídeo “Sunshine”, apresentando
o super-grupo Patrulha do Espaço (Koquinho, John
Flavin e o ex-Aeroblues Rollando Castelo Jr), que
gravou com o protagonista do documentário o
disco Elo Perdido. Nesta peça, a interpretação de
Arnaldo e banda são de pirar o mais frio espectador.
Ainda sobre o quesito estritamente musical, o
filme mostra como a entrada de Dinho [Leme]
na bateria e de Liminha [Arnolpho Lima Filho] no
baixo transformou e amadureceu musicalmente
o grupo, em um movimento de emancipação dos
pais biológicos e padrinhos musicais. Um renomado crítico inglês – responsável por trazer a
banda de volta depois de décadas de esquecimento, em 2006, para uma apresentação em um
evento sobre a Tropicália em Londres – ressalta a
superioridade do conjunto brasileiro em relação
aos Beatles, pelo fato de entre esses não haver
uma mulher. Segundo o crítico, isso diferencia e
torna os Mutantes um conjunto mais completo e
versátil. Apesar de sua importância, Rita Lee, a
mulher de que se fala, não participa do longa sobre a vida do ex-companheiro de grupo e vida,
Arnaldo Baptista.
Sérgio Dias, irmão de Arnaldo, mostrou-se maduro ao tratar da ex-Mutante do mesmo modo que
Arnaldo se refere à ex-esposa Rita. Em partes, é
visível que o declínio dos Mutantes se deu pela
saída da vocalista e pelas condições da saúde
emocional de Arnaldo – agravada pela conturbada separação do casal. Até a definitiva
“queda”, ocorrida durante a virada do ano de
1982 – marca maior da quinta internação de
Arnaldo –, há diversas tentativas frustradas de
retomar o sucesso de antes, o que resultou no
amargo esquecimento por parte da mídia, da
crítica e dos fãs, tudo associado à depressão
de Arnaldo.
Nesse momento, surge aquela que realmente
reabilitou o mutante para a vida: sua esposa
Lucinha Barbosa. Ela o acompanhou durante
a recuperação no hospital até a reabilitação
mental e social, no famoso refúgio do artista
em Juiz de Fora (MG). Lá o músico recuperouse durante décadas pintando, desenhando,
escrevendo, compondo e respirando muito ar
fresco. É comovente. São também significativos
os depoimentos daqueles que reergueram ou,
ao menos, não deixaram o artista parar de
criar: Luiz Calanca (produtor do selo Baratos
& Afins), Lobão, Tom Zé, Devendra Banhart,
John (guitarrista do Pato Fu, que produziu o
disco “Let It Bed” de Arnaldo), Kurt Cobain e
até mesmo Sean Lennon – que considera o Mutante Arnaldo um Syd Barrett brasileiro. Sean
levou Arnaldo ao palco no ano de 2000, para
apresentação no Free Jazz Festival, um dos momentos mais catárticos do longa. O sorriso de
Arnaldo gruda na mente.
Concluído em 2008, Loki recupera e ressalta a
importância histórica de Arnaldo Baptista para
a música brasileira, bem como para toda a
cena musical e cultural, embriagada pelo movimento tropicalista da época. Loki acompanha
uma onda de documentários que resgatam e
re-valorizam geniais artistas da época. Artistas
condenados a um longo período de ostracismo,
condenados ao passado, vêm sendo reconhecidos: Fabricando Tom Zé (2007), Loki (2009),
Wilson Simonal (2009), Coração Vagabundo
(2009), sobre Caetano Veloso, e Jards Macalé: Um Morcego na Porta Principal (2008). O
vazio de nossos dias impõe a recuperação dos
artistas e ousadias do passado: a busca para
encontrar o que resta de nossa identidade cultural, autônoma e original.
por Lucas Rodrigues de Campos
com colaboração de Elton Amorim
A cidade de São Paulo reúne
número considerável de pesquisadores musicais, garimpeiros
de grupos que passaram por bares,
boates e, de alguma forma, marcaram
época. Esse roteiro comumente é esquecido. Como em um filme mal guardado,
os fungos da história corróem parte da
película e a narrativa acaba embebida
numa esfera mítica. A combinação de
quadros deixa de ser combinação e
a história é montada de forma fractal,
como cacos colhidos do chão compondo
um mosaico.
Para contar o Rock da Mortalha, o
parágrafo acima é reformulado, carregado de suspense e elementos soturnos. Os agentes são outros. O garimpeiro
se veste com um avental imaculado e
carrega os instrumentos de um investigador forense. A atuação fica por conta
de um lojista que surge detrás da poeira
de vinis velhos, ou de um músico tarimbado, parceiro dos integrantes, quase
todos falecidos antes de completarem
seis décadas, alçados ao céu, ao inferno,
pelo rock. Outra personagem central da
história é àquele que não deixa o corpo
sair do IML antes de uma cuidadosa perícia, papel encenado por aquele que esteve presente em alguma apresentação
épica: Orlando Lui liderava o ritual
empunhando um crânio enquanto evocava avatares oriundos das profundezas.
De repente: explosão e fogo no palco.
Como em um thriller ou um conto de Ed-
gar Allan Poe, esse agente caminha por
uma sala decorada por velas vermelhas.
A mão se aproxima do armário semiaberto vestido de teias. Ao esbarrar no
pegador, caem os corpos, apodrecidos
de esquecimento.
Dentro dessa mística lutam o bem e o
mal. Vence o bem. O investigador, agraciado por um dom clerical, toca os corpos
com um bálsamo. Mesmo mortos pela
penosa vida de rockeiros, aqueles corpos tornam-se vida e história na película
corroída. A divindade do bálsamo é
restaura e apóia-se na necessidade de
rememorar biografias, nomes, cidades.
As informações sobre esse obscuro grupo de hard setentisa circula como boato
na boca de cabeludos aficionados pelo
gênero. A trama é carregada de carga
dramática e envolve alcoolismo, esquizofrenia, show gratuito em uma lage, bateria confeccionada por um operário do
ABC. Aqui ela é contada por três personagens, sobreviventes que vivenciaram
um pouco do submundo que permeou o
cenário do rock underground durante a
segunda fase da década de setenta.
Tem como cenário um braço de suma
importância para o funcionamento da
Grande São Paulo: o industrial ABCD,
em especial São Bernardo, berço do
Rock da Mortalha.
Segundo Filippo Baldassarini, “existia
uma miríade de grupos pequenos no
ABC”. Foi na Vila Liviero, bairro eminentemente industrial, onde ocorreram os
ensaios e surgiu a concepção xamânica,
a la Aleister Crowley, de jovens roqueiros
desafiados por outra banda de berço
industrial. O distrito de Aston, na cidade
inglesa de Birmingham viu o nascimento
do Black Sabbath.
Henrique Meneghini é remanescente de uma estrada tortuosa. Em depoimento enviado a Elton Amorim, o técnico
de som mostra como acompanhou de
perto as misteriosas explosões de equipamentos ocorridas nos palcos do Rock
da Mortalha e hoje dá relevo a nomes
até então cravados somente em lápides
perdidas em cemitérios. Seu depoimento
ajuda a desvendar uma das histórias de
maior impacto do nosso rock.
Filippo Carlos Baldassarini é mais
um nome esquecido na historiografia musical brasileira. Hoje o guitarhero vive na
Itália, onde continua ativo apresentado
em pequenos clubes seu heavy blues. Na
pátria da bota, ele ainda brinca no estúdio ao executar os riffs da banda que
é cabeçalho do capítulo Bandas Obscuras, dentro do extenso Livro Negro do
Rock Brasileiro: o Rock da Mortalha. Em
1975 o músico usufruiu da coqueluche lisérgica, chaga maior da catarse musical
da malucada: subiu ao palco do Festival
de Iacanga e conheceu um trio de rock
pesado que junto de uma lenda viva, o
dançarino Lola (que hoje vive em espécie de retiro na cidade Campinas), foi
ovacionado em Águas Claras.
Lippo, como ficou conhecido no meio
rocker, esteve com Orlando, Baccas, Marcos Carvalhanas entre 77 e 79, quando
a Mortalha mudou seu nome para Xock
e passou a assimilar influências brasileiras -algo semelhante ao início da Cor Do
Som. Como guitarrista, Lippo viveu importante transição dentro da cena musical daquela época, experimentou o rock
progressivo com o performático Fogo de
Santelmo, depois dedicou-se ao heavy
metal. Mais tarde, os abusos naturais de
um jovem músico romântico abateram
o vôo sem asas de Lippo. Ele deixou
um Made In Brazil no auge, as filas de
groupies e os shows organizados junto
de seu irmão Giácomo - que aconteciam
em clubes típicos de grandes metrópoles,
quadras de basquete, teatro, campos
esportivos e festivais pelo interior. Recuperado, registrou participação junto de
outro nome marcante do heavy metal
brazuca, o Harpia. Além de clarear o
céu de nuvens negras que vem à cabeça quando se lembra da Mortalha,
Lippo conta suas experiências durante
anos pouco laureados do rock brasileiro.
Depois da metade da década de 70, o
mercado nacional retraiu-se para lançamentos “puro rock”, o que foi retomado
logo depois do início dos oitenta com o
surgimento de selos independentes e as
invasões do metal e do punk.
Giácomo, o irmão de Lippo, também
vive na Itália e foi amigo próximo de
Orlando Lui, líder e mentor da Mortalha,
além de ter sido agitador cultural da época e manager do grupo que logo veio
incluiu Lippo e alterou seu nome para
Xock. Giácomo foi responsável inclusive
pelo show que deu fim à fúnebre alcunha
“Rock da Mortalha”, em festival ocorrido
na Concha Acústica do Taquaral, em
Campinas, 1977, junto da Patrulha do
Espaço e Fogo de Santelmo.
Confira, os depoimentos e conversas
com as personagens acima citadas e
que dão luz a esse roteiro. Os italianos
Giácomo e Lippo contam das parcerias
com Orlando Lui e dominam a última
perna da história da Mortalha. Henrique esteve junto do grupo naquela
que é considerada a fase áurea da
turma, quando os shows tinham uma
estética puxada para a temática do terror e do misticismo e contava, com Lola
como dançarino e Julinho na bateria.
Na fase em que Lippo acompanhou o
Rock da Mortalha/Xock, o batera foi
Marcos Carvalhanas.
que sair. O som do sintetizador do
meu xará [Henrique Bonvino] e a
imagem do grupo vestindo roupas
pretas e botas douradas eletrizaram o público. Quando o som iniciou, levantou a galera que estava presente. Teríamos que
apresentar três músicas, mas a reação do público
foi motivo para ficar mais tempo no palco e apresentar várias músicas. Foi por esse motivo que saiu
a matéria na revista POP da época; eu guardei
um exemplar por muito tempo, mas sumiu.
A banda, após o festival e a matéria da Revista
POP, se apresentou em vários lugares de SP cujos
nomes eu não me lembro, mas posso citar o teatro
Gloria no Cambuci; Clube Atlético Ipiranga;
um colégio no bairro Taboão (onde o Landinho
morava); o clube Italo Seti em São Bernardo do
Campo; algumas boates etc. Chegamos a tocar
até carnaval no início da carreira para levantar
uma grana, pois na época não havia quem desse
uma força. Chegamos a fazer show numa lage
depoimento de Henrique Meneghini, técnico de som e amigo
próximo dos integrantes da Mortalha
“
Não posso dizer como tudo começou, mas
sei que o Landinho [Orlando Lui] e o Baccas eram
vizinhos, foram criados juntos. O Baccas era filho
único, já o Landinho tem uma irmã que, por coincidência, foi a minha primeira professora. Minha
participação foi como aquele que dava uma
força, pois fui criado com o Julinho (baterista da
formação original da Mortalha). Éramos vizinhos,
então, quando o Julinho foi convidado para ser
o baterista, eu acompanhei. O pai do Julinho (Sr.
Teodoro) era modelador na General Motors e foi
ele quem fez a maior parte da batera do filho,
depois de ter comprado uma batera simples na
GOPE, além de ter feito as caixas de som. Meu
pai, na época, era técnico de rádio e TV e me
dava as coordenadas para a montagem de falantes e ligações das caixas de som.
As composições, as letras e músicas, eram criadas
pelo Landinho e pelo Baccas, acompanhados de
um baseado. Me lembro que o Landinho tinha um
pé de maconha plantado num vaso que ficava no
quintal de sua casa. O Landinho era muito exigente
na hora de compor as músicas, ou seja, queria um
toque diferente no baixo, na guitarra e principalmente na batera. As batidas e as pedaleiras da
batera tinham que ter um toque a mais. Acho que
é por isso que o Julinho foi considerado o melhor
baterista do Brasil, segundo os músicos da época.
Quando o Julinho entrou, o grupo chamava-se
Missa Negra. Acredito que o Landinho se referia a
um Black Sabbath brasileiro (não posso afirmar),
mas o nome passou a ser Rock da Mortalha, por
que o Landinho queria algo maior do que Sabbath. Considerava-se superior.
Meu pai apenas me orientava na parte eletrôni-
ca; ele nunca foi assistir a um ensaio que, no geral,
era feito na garagem, na casa do pai do Julinho.
Minha mãe, Dona Eva, também nunca quis saber,
mas por ser costureira, confeccionava as roupas.
A foto que aparece o grupo com aquela roupa
preta... foi uma das roupas que minha mãe fez e,
foi eu quem bateu aquela foto, por esse motivo
não apareço. Já o pai do Julinho acompanhava
o grupo sem saber o que rolava. Na verdade ele
só queria ganhar as menininhas que apareciam
no show.
A idéia das roupas era sempre do Landinho; a
maquiagem veio por acaso na entrada do Lola,
que surgiu após um show que fizemos em Itu. Lola
acompanhou o grupo em alguns shows (pelo menos
na minha época). Era um maluco, no bom sentido.
Quanto aos instrumentos, já te disse sobre a
batera e as caixas de som. O
Baccas usava uma guitarra que
era uma adaptação de um violão, ele mesmo quem adaptava,
pintava e modificava. Quanto
ao baixo do Landinho, foi construído por ele mesmo; o braço
liso sem as divisões, facilitava
tirar o som que só o Landinho
sabia fazer.
No show em Águas Claras, só
haviam três componentes, Landinho, Baccas e Julinho. A participação do grupo se deu por
ter sido convidado pelo antigo
baterista dos Mutantes, o Dinho.
Foi uma loucura. O grupo teve
que entrar às pressas, porque o
grupo anterior foi vaiado e teve
entrevista com
Giácomo Paolo Baldassarini
Lucas Rodrigues de Campos: Giácomo,
conte um pouco da sua relação com o
Rock da Mortalha.
Giacomo: Eu fiz um festival na concha
acústica do taquaral em 1977, Rock da
Mortalha, Patrulha do Espaço e Fogo de
Santelmo.
LRC: Você já era chegado da banda
nessa época?
Giácomo: Desde o começo. Saía todo
mundo pintado de morcego pela rua...
Coisa de louco (risos)! Pecado que meus
amigos morreram.
LRC: Eram garotos na época... deviam
ouvir muito som. Lembra dos vinis que
ouviam juntos? Quais foram os primeiros discos de hard com que vocês tiveram
contato? Como conseguiam os discos?
Vocês compartilhavam os sons?
Giácomo: No centro de Sampa, alguns
[vinis] eu recebia da Itália, mas o barato
mesmo é que o Orlando e o Baccas
quase não ouviam nada, eles criavam.
Em 80, fui pra Argentina e voltei só cinco
anos depois, quem ficou com eles foi o
Lippo. Acho que da parte original dos
anos 70, ficou só ele mesmo [vivo]. Ele
ainda toca algumas músicas; me dá até
arrepio quando escuto.
LRC: Você acompanhou todo o progresso do grupo? Como foram as transições,
evoluções sonoras do Rock da Mortalha?
Giácomo: Depois que houve o acidente
com o filho do Orlando, que caiu em um
poço, eles pararam com coisas macabras
e montaram o Xock, que era menos hevy
metal macabro e virou mais heavy hard.
Muito, muito bom! Não sei como não ficaram ricos. Era o Iron Maiden dez anos
antes. Tinha o Baccas na guitarra, Orlando no baixo, o Lippo na outra guitarra e
o Marcos Carvalhanas na bateria.
LRC: Giácomo, eu queria saber como foi
seu contato inicial com o Orlando. Qual
FESTIVAL COM
ROCK DA MORTALHA, PATRULHA
DO ESPAÇO, FOGO DE SANTELMO E TIO MELLIUS
era seu envolvimento com música nessa época?
Giácomo: Eu, o Orlando e o Baccas trabalhávamos pelo rock. Eu
fiz vários shows no metrô São Bento e tínhamos a Toca do Rock na
24 de Maio, no Salão Luar Paulista. Tocava todo mundo do underground. Fazíamos também no Sberock, em São Bernardo.
LRC: Esses locais eram alugados? Havia problemas na hora de divulgar o Rock da Mortalha, devido à temática tétrica?
Giácomo: Não era tão tétrica assim, não. O Alice Cooper já tinha
tocado no Anhembi. Os locais eram arrendados pelo dia; tinha rock
no Luar Paulista na quinta e quarta. O resto era rala-bucho (risos),
música careta! No Sberock foi foda. Acabamos todos na delegacia,
com um monte de tapa na orelha. A gente realmente lutou por um
que ficava em cima da casa do pai do Julinho.
Montamos todo equipamento na lage e o público lotou as ruas próximas à casa.
O Landinho era um místico, mas não havia envolvimento com magias ou ocultismo, apenas as
letras das músicas que eram satânicas.
Confesso que fiquei surpreso quando soube
da morte do Baccas, pois a ultima vês que o vi,
era tarde da noite e, ele estava embriagado,
assim como está o Julinho hoje. Aliás, nem sei
se está vivo. A pedido de sua mãe, eu tentei
ajudá-lo, mas não tive como, pois ele bebia
desde as primeiras horas do dia.
Quando encontrei a comunidade Rock da
Mortalha no Orkut, resolvi entrar, pois um dos
membros havia dito que tinha uma fita cassete
com gravação de algumas músicas do grupo.
Até recebi essas gravações por e-mail, mas
apesar de ser um rock pesado, não tem nada
a ver com as músicas do grupo. Eu nunca retornei uma resposta para não entrar em conflito
com o dono das fitas, pois nem as letras das
músicas pertenciam ao grupo.
A última vez que estive com o Landinho, muito
abatido pela doença, ele me contou ter comprado uma carreta dessas “cegonha” para
montar um trio-elétrico com os filhos. Acho que
não chegou a acontecer.
Quanto a mim, moro em Guararema. Estou
em uma cadeira de rodas, sem as duas pernas por ter problemas de falta de circulação
de sangue. Uso um aparelho auditivo por ter
perdido a maior parte da audição, mas estou
feliz. Com 53 anos de idade, estou fazendo
faculdade de pedagogia, dou aulas de Macramé (técnica de entrelaçamento de linhas) e
de LIBRAS (língua brasileira de sinais). A matéria que você tem é verdadeira, tirando alguns
detalhes e colocando outros. Espero ter ajudado de alguma forma”.
sonho. Eu aluguei uma fábrica abandonada
no Morumbi e fizemos todo mundo: Made in
Brazil, Cetro, Rock da mortalha, Mummia, Lírio
de Vidro, Fogo de Santelmo. Era uma época
maravilhosa. Meu amigo Baccas morreu, o
Dudu da patrulha morreu, morreu tambèm a
Deborah [Carvalho]. E agora morreu o Kokinho, que era o baixista da Patrulha, durante
uma excursão que fizemos até Porto Alegre,
em 1979. Olha, o Lippo é um dos poucos que
sobraram.
LRC: E sobre a estética do grupo?
Giácomo: Depois que o Rock da Mortalha
tocou no Festival de Iacanga, eles tiraram
aquelas roupas ligadas ao Black Sabbath e
viraram um grupo de heavy hard voltado à
sonoridade mais nacional. Tipo a Cor do Som,
com duas guitarras muito bem tocadas e vestidos mais normalmente. Mas o Orlando tinha o
vício da mulherada... Aí pegou alguma doença
que jamais ficou muito clara, mas que não era
AIDS. Eu montei um jornal de rock na Teodoro
[Sampaio] chamado Musical Shop. Foi o maior
sucesso, mas eu resolvi voltar pra Itália.
LRC: Qual era a maior virtude do Orlando? Como você o apresentaria para alguém
que nunca soube da existência dele?
Filippo: Cara, fudido ali [na Mortalha]
era o Orlando. Um músico completo, uma
força da natureza como executante - sobre humano. Tive essa impressão mais
vezes: era como houvesse algo por trás,
porque o Orlando ‘espiritava’ o olho e aí
ninguém segurava. Um gênio adiante do
próprio tempo. Fez o que Steve Harris
[baixista do Iron Maiden] fez anos antes.
O problema dele é que foi espezinhado
pelas gravadoras, porque era um maluco
do ABC; [as gravadoras] perderam uma
das maiores chances. A Mortalha como
banda de heavy e com a devida prensa
de um produtor esperto poderia ter atingido o mercado mundial ainda nos anos
70. Tinham tudo: idéias mágicas, força de
produção. O filão era aquele do King Diamond, Black Sabbath, metal clássico épico,
que depois chamaram de doom metal nos
anos 90. Banda veloz. Enquanto estive com
eles, eram guitarras duplas. O resto [do
grupo] escorregava aqui, escorregava ali.
Ele que segurava tudo do início.
LRC: Você esteve com eles de 77 a 79?
Lippo: Isso. Em 80 eu mudei pro Made in
Brazil. Meu irmão esteve com eles depois,
quando se tornaram Coco Loco [trio elétrico de Orlando Lui]. Vendeu shows também.
Aí ele veio pra cá [Itália]. O Orlando ainda quis vir pra Europa com o trio elétrico,
mas aí ele morreu. Lembro dos ensaios lá
na Vila Liviero, quase tudo, época doida.
LRC: Lembra do ambiente da sala de ensaio?
Lippo: Nitidamente. Era uma sala na casa
do Orlando; a aparelhagem ficava na entrada. A casa dele era lá dentro. Imagina...
eu ia a pé de Diadema até lá [Vila Liviero]
com a guitarra nas costas. Tinha a bateria
do Marcos Carvalhanas, uma GOPE de
acrílico azul. O Orlando tinha uma cópia
de um baixo Rickenbacker com uma borboleta. O Baccas tinha uma Sg da Snake,
uma preta. Ele [O Baccas] ia em casa
várias vezes por semana pra me ensinar
as partes das músicas.
LRC: Você também participou de uma banda de rock progressivo, o Fogo do Santelmo.
Como foi essa experiência?
Lippo: Um pequeno fenômeno. Pena
que não durou. “Candidatos para um vôo
sem asas” era um grande espetáculo. O
som era baseado, por proximidade, no
Som Nosso de Cada Dia, mas a guitarra
dominava. Éramos teclado, baixo, guitarra,
batera e vocal.
LRC: Chegaram a ter músicas gravadas?
Lippo: Não que eu me lembre, mas o espetáculo era único: um planeta enorme e
suspenso, tudo escuro, depois luzes violeta
trocando pra laranja e o cantor vestido de
pregador evangélico de 1800, cantando
as letras de um púlpito. Já a encontrei montada. O tecladista era Marcos, o baixista
era o Biaggio D’Amore. Carlinhos era o vo-
entrevista com Filippo Carlo
“UMA MUSICALIDADE ACIMA DA MÉDIA PARA A ÉPOCA. FOI UM FLASH QUE ELES TIVERAM.
ELES CONSEGUIRAM ALCANÇAR NÍVEIS INTERNACIONAIS. A MÚSICA FAZIA ‘VIAJAR’ TODO
MUNDO, FORAM LONGOS INSTRUMENTAIS. ELES PARECIAM FORA DA TERRA, EXTRATERRESTRES,
POSSUÍDOS POR UMA FORÇA INUMANA, COISAS QUE SÓ GENTE COMO O RUSH CONSEGUIA.
MAS EXISTIA PRECONCEITO CONTRA ELES PELO FATO DE SEREM DA VILA LIVIERO E POR NÃO
POSSUÍREM DINHEIRO VISIVELMENTE”.
BACCAS, JULINHO, LOLA (AGAIXADO) E ORLANDO. FOTO TIRADO POR HENRIQUE
MENEGHINI. O MODELO APRESENTADO É REFERENTE À ÉPOCA DO SHOW EM ÁGUAS CLARAS.
cal e eu na guitarra. Porém terminou logo e aí fui pra
Mortalha. De lá pro Made in Brasil.
LRC: Você sempre acompanhou shows e esteve próximo da convivência com os músicos?
Lippo: Sim. Éramos muito loucos. Selvagens porém
inocentes, sem maldade. Em 81, eu parei até 83,
quando entrei na Santa Gang.
LRC: Deixou de ser músico por um tempo?
Lippo: Poucos meses, só pra me limpar de tanto álcool e droga. Aí nunca mais.
LRC: Em 1975 você esteve em Iacanga, certo?
Lippo: Sim. Toquei no primeiro Festival das Águas
Claras, saí até na Veja.
LRC: Tocou já com a Mortalha?
Lippo: Não, não, sozinho. Mas já com o Tibério, futuro baterista do Harpia.
LRC: Lembra como foi o set?
Lippo: Eu não tocava nem a metade do que toco
hoje, nem estava no programa do festival. Foi pedido
pelo público, o improviso. Foi o publico que pediu,
subiu uma lista de assinaturas.
LRC: Então você já era conhecido por uma turma
maior?
Lippo: Não. Eu tinha ido pra ver com minha primeira
esposa e meu neném. Hoje ele tem 35 anos e está
aqui [na Itália]. É cantor de heavy.
LRC: Essa lista rodava nos intervalos dos shows?
Lippo: Sei não. Quando eu vi, o cara tava me chamando lá no palco. Foi um catado lá atrás. Nem lembro que raio que eu toquei, nem a guitarra era a
minha.
LRC: Estava chapado? Por isso não lembra?
Lippo: Bem, na época não tinha quem não es-
tivesse.
LRC: Esse também foi o primeiro contato com o Rock
da Mortalha?
Lippo: Sim. Depois toquei com eles em São Paulo.
Dali entrei no Made chamado pelo Oswaldo Vecchione. Uma estrada longa demais que continua ainda
em 2009.
LRC: O Rock da Mortalha é um mito hoje em dia.
Lippo: É, era uma piração aquilo. Eles curtiam magia negra e tal. No papo né.
LRC: O público ficava impactado com as apresentações?
Lippo: Porra. Tinha cara que desmaiava. Outros
caiam tomados de Exu. Várias vezes os equipamentos incendiavam.
LRC: Você conheceu o Henrique, que foi técnico de
som da Mortalha?
Lippo: Conheci o Peninha, que teve muito o que
fazer com o Orlando.
LRC: Peninha Schmidt?
Lippo: Sim, ele mesmo. Mas meu relacionamento foi
muito superficial, limitou-se a uns poucos encontros.
Ele foi o técnico de som lá do Primeiro Festival de
Águas Claras. A briga com o Peninha foi justamente
essa. Ele não queria gravar a Mortalha, porque copiava o Sabbath, segundo ele.
LRC: Essa história vai precisar de mais vários capítulos.
Lippo: Porque ela se ramifica, se expande. A cena
do ABC era ampla, desorganizada, um exemplo da
época. Mas muito forte. Existia uma miríade de grupos pequenos no ABC. Um dos templos da Mortalha
(Xock) foi o antigo bar Deixa Falar, na Santo Amaro.
Lá eu tive a ocasião de ver o que eles eram
realmente capazes de fazer. Formidável. Na
época eu já não estava mais.
LRC: O que eles apresentaram de formidável
nesse show?
Lippo: Uma musicalidade acima da média
para a época. Foi um flash que eles tiveram.
Eles conseguiram alcançar níveis internacionais. A música fazia “viajar” todo mundo;
foram longos instrumentais. Eles pareciam fora
da terra, extraterrestres, possuídos por uma
força inumana, coisas que só gente como o
Rush conseguia. Mas existia preconceito contra
eles, pelo fato de serem da Vila Liviero e por
não possuírem dinheiro visivelmente. Via-se,
sentia-se no ar que eram grandes mas desprovidos. Não era como a elite da Pompéia:
pais ricos, bons instrumentos, ótimas roupas,
grandes carros... Era [tudo] feito no sacrifício,
rodando na madrugada, romântico e inútil.
Mesmo com o dinheiro que o Coco Loco ofereceu ao Orlando, no final a vaca já tinha ido
pro brejo. Custou a vida a ambos. O Orlando
no fundo se cansou daquilo tudo, mudou de
estilo de propósito, colocou um trio elétrico na
rua, mas já era tarde. E o Baccas o seguiu logo
depois. Coisa que o destino traz. Eu peregrinei
por grupos pequenos, médios e grandes sem
achar sorte também. Estou aqui ainda, lutando cheio de problemas e ainda sonhando em
tocar, ter uma banda de respeito, mesmo que
eu tenha que cruzar o oceano de novo, voltar
ao Brasil e reiniciar do zero.
LRC: Você se lembra de alguma situação em
que esse preconceito detalhado por você ficou
mais claro?
Lippo: Observe a coisa assim: imagine a
Vila Liviero nos anos 70, 1976. Qual o nível
social do lugar? Como um rapaz da Vila Liviero nos anos 70 poderia se expressar? Então
você pega dois músicos da Vila Liviero e leva
bem no meio dos bacaninhas da época, dos
metidinhos que não possuíam o mesmo talento,
nem de longe. A Mortalha criava inveja.
LRC: Você se importa em citar os metidinhos?
Lippo: (Risos) Você sabe quem foram. Vai
querer por aí? Levantar essa energia contra
você? Muitos deles estão vivos ainda. São
os que queriam ser. O Orlando era um tipo
duro, meio brusco, um pouco arrogante. Falava muito, dava ordens. Os outros sentiam-se
meio intimidados. Ele percorria as delegacias
vendendo calçados através de um catálogo.
Veja você: entrava lá e dizia na cara dura:
“E aí doutor, vai um sapatinho?”, e vendia.
Ele dobrava até delegado [mesmo vestido]
com colete, calça justa de veludo, botinha e
camisão. Todo mundo conhecia ele. Os outros
ainda ficavam chorando o carro do pai para
sair com a namorada, sabe.
LRC: Sobre a queima de equipamentos. Isso
acontecia devido à precariedade dos locais em
que a Mortalha tocava?
Lippo: Não. Algo estranho acontecia mesmo.
Mas era tudo junto: pouca manutenção, os locais ainda não eram modernos, rede elétrica
ruim, fraca, não suportava som e luz. Mas
tinha o fator ‘zica’ sim. No show no Sindicato
dos Bancários a iluminação pegou fogo. O
chicote de distribuição se incendiou assustando
todo mundo. Deixou uma risca de queimado
bem no meio do carpete.
LRC: Algum ferido?
Lippo: Não, não. Isso nunca houve. Parava o
som, só isso.
LRC: Por que você decidiu sair da Mortalha?
Lippo: Porque o Made chamou, ué. Eu não
era louco ainda (risos). Aceitei o convite e fui
fazer o teste escondido. Tinham lá uns quatro
guitarristas. Eu fui o primeiro a chegar, ainda de manhã. Sentei na frente da casa do
Oswaldo Vecchione e fiquei lá até as três da
tarde. Abriu a porta e todo mundo entrou. Fui
contratado na segunda música. Nem havia
acabado de tocar e o Oswaldo abriu a porta,
e gritou: “Falou gente! Achei! Muito obrigado
por vocês terem vindo, o pessoal vai anotar os
telefones (...)”. Aí começou minha saga. Morava em Diadema, pegava dois ônibus. Aí o Oswaldo decidiu mexer no visual e tudo: picou
meu cabelo e pintou de vermelho. Malandro,
que coisa chegar em Diadema daquele jeito!
Logo teve o [festival] Rock Jeans do Play Center e saiu na TV, aí eu fiquei um tempão sem
nem pagar na padaria. O cara oferecia todo
alegre, oferta da casa.
LRC: De que bairro você era?
Lippo: Bem eu morava em Diadema, centro,
Jardim Rosinha, apesar de ter chegado ao
Brasil menino e ter sido criado no Ipiranga e
depois na Vila Mariana. Às vezes eu ia a pé
de Diadema até a Vila Liviero pra ficar com
eles lá curtindo.
LRC: Seus pais lidavam bem com a sua opção
de ser músico?
Lippo: Minha mãe sim... meu pai também.
Ambos compraram os instrumentos. Meu paichegou a chamar um maestro do Municipal no
escritório dele e gritou: ‘Diz pra esse imbecil
que ele não tem talento’. O maestro me levou
lá dentro e disse: ‘Toca meu filho’. Eu, muito
envergonhado, cantei e toquei uma música. Ele
levantou de repente. Cara fechada, foi lá no
meu pai e disse: ‘Sem talento é você. O menino
tem ótima voz, sabe tocar bem, é um talento
natural’. Meu pai esfregou as mãozinhas rindo
que nem gato, e disse: ‘Então você vai dar aulas de piano pra ele’. Putz. Sofri oito meses
na mão daquele velho. Até que ele me achou
uma tarde tocando boogie woogie. Acabou
ali. O velho maestro se ofendeu muito. Estava
tocando bem rock and roll mesmo. Mas lá em
casa era uma zona. Meu pai tocava piano,
cantava, trazia os amigos tenores. Uma gritaria
dos infernos. E eu no porão tentando tocar Imigrant Song do Led Zeppelin com os quatro caras
da banda tudo gritando junto. Chamaram a polícia mais de uma vez. Os vizinhos diziam que era
a família dos italianos loucos.
LRC: A partir daí como foi a montagem do primeiro grupo do qual você fez parte?
Lippo: Nas coxas. Foi quando eu voltei da BaBACCAS, FILIPPO, CARVALHANAS
TO.
FORMAÇÃO DO ROCK DA
hia, viajando como hippie. Isso foi um século antes
da Mortalha. Achei uns malucos na praça Sílvio
Romero e falando, falando, acabamos tocando
juntos.
LRC: Esse primeiro grupo não foi pra frente por
quê?
Lippo: Pelos mesmos motivos de todos os outros:
falta de estrutura, indecisão.
LRC: E suas memórias de Iacanga, também estão
ORLANDO EM SHOW
MORTALHA EM TRANSIÇÃO
E
NO
AO
METRÔ SÃO BENXOCK, 1977/79.
conservadas?
Lippo: Apenas uma foto na revista Veja, juntamente com minha esposa e meu filho no colo. Mas
nunca mais encontrei a foto.
LRC: E memórias mesmo, na cabeça?
Lippo: Isso sim. A minha é fotográfica. Desenvolvi
muito este lado. Mas ali foi outra coisa, eu nem
sabia o que estava fazendo ali. Era a época, a
vibração como se dizia. Tocava só com um violão.
Aí pediram pra que eu subisse. Mas eu nem sei
o que foi que toquei. Sei que tinha o Tibério do
Harpia lá. Ele tocava em uma banda chamada
A Pedra.
LRC: Como você ficou sabendo do falecimento do
Landinho?
Lippo: Através do meu irmão. Eu não via o Orlando desde 1979.
LRC: Consegue descrever como recebeu essa notícia?
Lippo: Com uma grande tristeza, porque apesar da época distante, eu fotografei muito bem a
pessoa. Sabia das qualidades e defeitos. Sabia
do valor. Sabia do caminho dele. Porém eu fazia
estrada paralela. Respeito, enfim.
LRC: Em 1979, houve alguma espécie de despedida entre vocês?
Lippo: Não. Os vi na casa do Oswaldo uma vez.
Eles foram lá, pois queriam pedir ao Oswaldo
para abrir os shows algo assim. Pediram minha
interferência junto ao Oswaldo, mas não foi preciso. Mas eu ia assistir a Mortalha (depois Xock,
depois Crisálida) escondido no meio do público.
Eu fiz parte da transição Mortalha/Xock, mas não
foi por muito tempo, um ano mais ou menos. Claro
que eu aprendi muito e até hoje toco as músicas.
LRC: Por que escondido?
Lippo: Porque preferia assim. Não mexer. O
Orlando não era uma pessoa fácil, então eu ficava de longe que era melhor. Conceito meu. Meu
irmão trabalhou muito com ele. Eram realmente
amigos. Eu nem tanto. Toquei com ele, curti e tal,
e dei linha.
LRC: Você acha que sua saída foi uma perda para
o Xock/Mortalha?
Lippo: Imagina. Eu? Nunca fiz falta. Ninguém é
insubstituível. Todos se arranjam, inclusive eu. Uma
questão de adaptação. Só acho uma perda de
tempo você ensaiar um músico, preparar, correr,
estudar e depois ele vai embora.

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