DE A FILOSOFIA NA ALCOVA

Transcrição

DE A FILOSOFIA NA ALCOVA
“EDIÇÃO PRIVADO E FORA DO COMÉRCIO” DE A FILOSOFIA NA ALCOVA:
UM ESTUDO DE CASO DA OBRA SADEANA CLANDESTINA NO BRASIL
Hilton Tonussi de Oliveira
Universidade Estadual de Londrina – UEL
Resumo: O presente artigo é parte da dissertação de mestrado – em
desenvolvimento –, cujo título é Edição e publicação da tradução anônima de A
filosofia na alcova: o mercado editorial clandestino da obra sadeana no Brasil.
Objeto de pesquisa, a edição “clandestina” de A filosofia na alcova, cujos
responsáveis por sua produção abstiveram do mérito da autoria, apresenta
dificuldades para a realização de um trabalho em História pela condição anônima de
sua produção. Este artigo tem como intuito investigar o livro para além do conteúdo
do texto estabelecendo conexões com a análise das características técnicas de
produção (edição e impressão) da obra. Para isto, dialogamos com a bibliografia –
uma disciplina atenta aos processos de produção de textos. D. F. McKenzie, em
Bibliography and a sociology of texts, destaca a importância dos aspectos formais do
texto como agentes de sentido que expressam aspectos da condição e do contextohistórico que envolvem a produção do livro. A metodologia proposta para o
desenvolvimento da análise neste artigo é de grande relevância para a dissertação,
uma vez que a partir dela nós indagamos sobre as características da “edição privado
e fora do comercio” de A filosofia na alcova atentando-se para as relações existentes
entre a obra de Sade, os responsáveis pela edição em questão e as especificidades
do contexto editorial brasileiro.
Palavras-chaves: Marquês de Sade; História do Livro; Bibliografia; Mercado
Editorial Clandestino.
A recepção da literatura sadeana desde sua produção, em finais do século
XVIII, até a atualidade possui características muito peculiares se comparada com
outras obras libertinas do período. De início podemos refletir brevemente como a
1464
trajetória biográfica de Sade, que é marcada por constantes ameaças de prisão – e
muitas foram executadas –, interferiu na produção intelectual (escrita dos
manuscritos) e nas escolhas editoriais (edição e produção dos livros) do autor.
Donatien Alphonse-François de Sade, mais conhecido como o Marquês de Sade,
aristocrata francês e escritor libertino, viveu entre 1740 e 1812. Na França, ele foi
perseguido tanto pelo Antigo Regime, quanto pelos revolucionários vitoriosos de
1789 e, posteriormente, por Napoleão. No total conta-se mais de 25 anos que Sade
foi mantido em cárcere nas prisões e hospícios franceses, além de duas
condenações à pena de morte, porém nenhuma delas foram executadas.
Em 1763, no ano em que ele se casou com Renée-Pélagie de Montreuil, o
marquês foi condenado à prisão pela primeira vez de muitas outras que
aconteceriam ao longo de sua vida. Neste caso, Sade foi encarcerado em Vincennes
por quinze dias sob a acusação de práticas libertinas e teve a sentença agravada
por atos de blasfêmia. No entanto, não só foi este tipo de escândalo que lhe rendeu
tantos anos de clausura. A última de suas apreensões ocorreu no escritório do editor
Nicolas Massé em 1801, quando o marquês era acusado de ser o autor do romance
L’histoire de Juliette. Sade foi mantido em cárcere sem ser julgado até 1804, quando
ele foi convocado para se defender diante um júri, enquanto o editor foi libertado no
dia seguinte à apreensão dos exemplares obscenos. A comissão de julgamento
determinou que o marquês era culpado pela autoria da obra, e sob a pena desta
audição ele foi mantido preso na prisão-hospício de Charenton até o dia 2 de
dezembro de 1814, dia de sua morte.
Ao examinar, mesmo que brevemente, a trajetória biográfica de Sade, é
possível ter ao menos uma noção de quão presente foram as medidas repreensivas
em sua vida, desde as prisões por práticas libertinas às acusações pela redação de
obras “obscenas”, e que, portanto, marcaram os procedimentos de produção de
seus livros. A edição e circulação da literatura sadeana entre fins do século XVIII e o
início do século XIX ocorreu de dois modos: através das publicações oficiais – de
acordo com as leis francesas – e por vias clandestinas. Robert Darnton (1990: 126)
destaca que “desde o século XVI até nossos dias, a literatura não-ortodoxa tem sido
transportada clandestinamente em enormes quantidades, de modo que sua
influência varia conforme a eficiência do contrabando”. No caso de A filosofia na
1465
alcova, sua primeira edição é de 1795, supostamente impressa em Londres, aux
dépens de la Comagnie, e na capa não trazia o nome do autor, sua autoria era
creditada como “obra póstuma do autor de Justine”.
Sade, aos 55 anos, dos quais quinze haviam se passado em cárcere, com a
experiência de ter sido alvo tanto da crítica quanto da censura oficial, optou pela
disseminação de sua obra por meios clandestinos. No entanto, apesar de buscar
despistar os órgãos estatais reguladores do mercado de livros na França abstendose do mérito da autoria, o marquês não negligencia a fama de sua obra anterior,
Justine, ou les malheurs de la vertu, provavelmente para atrair mais leitores.
No Brasil foi necessário esperar quase um século e meio após a morte de
Sade para que as editoras brasileiras começassem a publicar suas obras em
versões traduzidas. O primeiro registro que temos da atividade editorial no Brasil que
envolve a publicação da produção literária de Sade é a antologia Contos Galantes,
compilada por Pierre Dufond e publicada pela Edições Spiker em 1956. O livro é
composto por textos e trechos de obras de autores brasileiros e estrangeiros.
Destacamos a tradução de seis páginas de um fragmento de A filosofia na alcova
intitulado Teoria da Libertinagem.
Após este início tardio até os dias de hoje, A filosofia na alcova é a obra de
Sade que possui o maior número de edições no Brasil, apesar de durante a década
de 1980 a edição de este texto ser nula. Em 1968, na primeira edição da revista
Veja, a Filosofia na alcova publicada pela editora Contôrno foi destacada como o
quinto livro mais vendido, porém os idealizadores da pesquisa não identificaram o
recorte temporal e geográfico de seu levantamento sobre o mercado editorial. Entre
1968 e 1969, quando há uma intensificação da atividade editorial envolvendo as
obras sadeanas no Brasil, foram produzidas quatro edições de A filosofia na alcova
ou cinco se contabilizar a edição da Contôrno, porém não tivemos acesso a algum
exemplar desta edição para confirmar se trata-se de uma publicação deste período.
O sucesso na venda dos exemplares de A filosofia na alcova no Brasil pela
Coordenada Editôra de Brasília é enfatizado no prefácio, em um texto sem autoria
identificada, da terceira edição da obra.
Quando lançamos a primeira edição dêste livro, no mês de agôsto, tivemos não
poucas dúvidas sôbre o destino dos primeiros cinco mil exemplares. Temos aqui
1466
uma súmula do pensamento de Sade, sòmente superada em outro livro seu, o
terrível 120 Dias de Sodoma, que estaremos lançando nos próximos dias [...].
Nossas dúvidas foram dissipadas quinze dias após o lançamento do livro, quando
essa primeira edição já ameaçava esgotar-se. (A FILOSOFIA, 1969)
Em 1968 os editores da Coordenada planejavam a publicação da tradução
das obras completas do Marquês de Sade – o que permanece inédito no Brasil –,
provavelmente pelo êxito da edição já citada. No entanto, em 1969, a empresa
recebe um “golpe”, que nos parece decisivo para o futuro da publicação de obras do
marquês pela editora. Os exemplares de A filosofia na alcova e dos 120 dias de
Sodoma, ambos publicados pela Coordenada, foram apreendidos por determinação
do ministro Gama e Silva, provavelmente sob a acusação de atentar à moral e aos
bons costumes. E é neste cenário que se insere a produção literária sadeana, ora
celebrada pelo público e pelos produtores de livros ora perseguida e condenada pela
censura editorial e moral.
Edição e reedição da tradução anônima de A Filosofia na Alcova
No início de 2013, poucos meses após eu ter defendido o meu Trabalho de
Conclusão de Curso, cujo estudo era voltado para a presença do Marquês de Sade
no mercado editorial brasileiro durante a década de 1960, encontrei junto com o
grupo de Iniciação Científica A recepção da obra do Marquês de Sade no Brasil
[1961-2010] um exemplar de A filosofia na alcova à venda em um portal virtual de
comercialização de livros usados que era anunciado como de edição clandestina e
possivelmente a primeira tradução de uma obra do Marquês de Sade publicada no
Brasil entre 1950 e 1960. O vendedor, quando questionado sobre a última
informação, alegou que a identificação do período de publicação se dava pelo estilo
de encadernação utilizado. Com o livro em posse, iniciou-se um trabalho de
levantamento de dados sobre esta edição.
A única informação que tínhamos naquele momento sobre uma possível
edição clandestina de A filosofia na alcova no Brasil era a edição desta obra
sadeana pela editora Ágalma de 1995. Naquele ano comemorava-se os 200 anos do
lançamento do livro La philosophie dans le boudoir no mercado editorial clandestino
1467
francês, e a editora investiu na publicação da revisão, realizada pela pesquisadora
da obra sadeana, Eliane Robert Moraes, de uma tradução anônima de A filosofia na
alcova. Em Nota sobre a tradução, Eliane Moraes (1995: 23) comenta sobre a
origem do livro que foi utilizado como base para a edição da Ágalma:
Esta tradução de A filosofia na alcova tem uma história digna de seu autor. Foi
encontrada, há alguns anos, repousando nas prateleiras de um antigo sebo
paulistano, em meio aos mais variados títulos e a uma densa névoa de poeira. O
volume discreto, de sóbria encadernação verde escura, traz na capa somente o
nome da obra e de seu criador. Nenhuma informação adicional nos reserva a
página de rosto, onde se lê apenas “Edição privada e fora do comércio”.
Com os dois livros em posse, a edição clandestina e a publicada pela Ágalma,
comparamos os textos para verificar se eram compatíveis, ou seja, se o livro vendido
como edição clandestina e a primeira de A filosofia na alcova publicada no Brasil era
o mesmo utilizado por Moraes na edição rememorativa dos 200 anos de publicação
de La philosophie dans le boudoir. Logo, verificamos que os textos eram quase
idênticos com poucas alterações de revisão e correção. A única diferença expressiva
entre a edição adquirida no sebo virtual e a obra reeditada pela editora Ágalma é a
descrição de Moraes (1995: 23) sobre a capa do livro: “[...] de encadernação verde
escura, traz na capa somente o nome da obra e de seu criador”, enquanto a capa do
livro, objeto de estudo desta pesquisa, não é verde escura e apresenta, além do
título e o autor da obra, alguns elementos iconográficos (ver imagem 1). Contudo, tal
diferença é pouco representativa para se pensar que se trata de edições diferentes
diante a quantidade de semelhanças que elas apresentam. A primeira é a similitude
entre as folhas de rosto, onde se apresenta o nome do autor e da obra, e a seguinte
informação “edição privado e fora do comércio”; a segunda é a similaridade entre os
prefácios1; e, por fim, a semelhança das traduções de A filosofia na alcova.
1
Na edição da Ágalma é apresentado o prefácio da versão original.
1468
Imagem 1 – Capa e folha de rosto de A filosofia na alcova
Fonte: SADE, Marquês de. A filosofia na alcova. [S.l.: s.n., 19--].
A edição clandestina
A filosofia na alcova de “edição privado e fora do comércio” possui certas
características. Os produtores do livro tiveram o “cuidado” em ocultar toda e
qualquer informação sobre quem esteve envolvido com o processo de fabricação da
obra. Logo, pela simples análise da folha de rosto e nem mesmo ao longo do livro é
possível identificar o nome do tradutor, prefaciador ou da empresa. Além disto, não é
informado o local ou a data de publicação. Em vista de tais ausências, pretendemos,
neste momento, identificar o período de produção desta obra através da análise
ortográfica, mas, também, trazer questões sobre como as diferentes edições de A
filosofia na alcova possuem características próprias que contribuem para a reflexão
sobre o contexto de produção de cada uma delas, além de compreender a
materialidade do livro como agente de sentido.
Em Nota sobre a tradução, Eliane Moraes (1995: 24) afirma que “Pela
ortografia de algumas palavras e pelo uso de certas expressões, pode-se supor que
o livro tenha sido traduzido e publicado entre os anos 40 e 50”. No entanto, ela não
apresenta dados que fundamentem a sua afirmação.
Para a análise ortográfica fazemos uma observação através da origem
etimológica de ortografia. A palavra vem do grego orto, o que significa reto, direito,
1469
correto, normal, e grafia significa a representação escrita da palavra. “Ortografia é o
conjunto de regras, na gramática de uma língua, destinadas a orientar a maneira
correta de escrever as palavras e de usar corretamente os sinais de acentuação e
pontuação” (LUIZ, 2009). Logo, nos defrontamos com outro problema, as normas
ortográficas são conjuntos de regras, porém muitas vezes não são obedecidas
fielmente por diversas razões.
Por se tratar de uma pesquisa meticulosa e, no entanto, em seu
desenvolvimento inicial, restringirei a análise ortográfica principalmente à parte
correspondente ao prefácio. Logo na primeira página encontramos o exemplo mais
nítido de ortografia que nos possibilita questionar a afirmação de Moraes, que afirma
que esta edição foi produzida entre às décadas de 40 e 50. Trata-se do pronome
pessoal correspondente a terceira pessoa do singular, a palavra ele, que até 1971
era escrito com o acento circunflexo na primeira letra e (êle), e, no entanto, nesta
edição aparece sem o acento.
O prefácio é constituído por quatro páginas, e nele 107 palavras – que se repetem –
não estão de acordo com a norma ortográfica anterior à de 1971. Outra
característica é que não encontramos no prefácio nenhuma palavra, entre as que a
forma de escrever foi alterada pela Lei nº 5.765, de 18 de dezembro de 1971,
preservando a norma ortográfica anterior.
Conforme o art. 1º da lei nº 5.765 de 1971 aboliu-se o uso do trema nos hiatos
átonos; o acento circunflexo diferencial na letra e e na letra o, a sílaba tônica das
palavras homógrafas de outras em que são abertas a letra e e a letra o, exceção
feita da forma pôde, que se acentuava por oposição a pode; o acento circunflexo e o
grave com que se assinalava a sílaba subtônica dos vocabulários derivados em que
figura o sufixo mente ou iniciados por z. Todas as alterações da norma ortográfica
estavam relacionadas com a exclusão da acentuação conforme o caso, o que
contribui para pior na análise ortográfica da “edição privado e fora do comércio” de A
filosofia na alcova. Com exceção de apenas um erro tipográfico que não envolve
problemas de acentuação, todas as 57 palavras, que aparecem com a ortografia
diferente a da norma vigente anterior à 1971, estão diretamente relacionadas com
questões de acentuação.
1470
Conforme pode ser observado no gráfico 1, o total de palavras não
acentuadas (36 de acordo a ortografia de 1971, e 56 palavras se somado com as da
norma ortográfica anterior) é expressivo quando comparado com o número de
palavras acentuadas (85 no total). Logo, nos defrontamos com mais um obstáculo
para a datação da “edição privado e fora do comércio” de A filosofia na alcova: a
irregularidade na acentuação do texto. E, como já foi comentado anteriormente, as
alterações na ortografia brasileira de 1971 são exclusivamente de acentuação, o que
devido a prática do(s) compositor(es) em não acentuar(em) dificulta a compreensão
destas possíveis alterações no texto. No entanto, ao analisarmos quais são as
palavras acentuadas pode-se perceber um possível padrão (ver gráfico 2). O
tipógrafo preocupou-se em acentuar os verbos conjugados, nomes e expressões
curtas (p. ex. aí, alá, até, só, etc.), porém não atentou-se às outras categorias de
palavras. As palavras não acentuadas – neste caso contabilizando apenas as que
não obedecem à norma ortográfica de 1971 – são, em sua grande maioria (89,6%),
palavras trissílabas e polissílabas, apenas três são dissílabas. Tal recorrência pode
ser um indício de que, caso o livro fosse impresso antes de 1971, o tipógrafo
acentuaria o pronome pessoal correspondente a terceira pessoa do singular, que até
1971 era escrito com o acento circunflexo na primeira sílaba, êle. Outra
característica ortográfica que podemos identificar ao período é o erro na acentuação
de algumas palavras específicas ao longo da tradução.
Gráfico 1 – Acentuação no prefácio da “edição privado e fora do comércio” de A
filosofia na alcova
1471
Gráfico 2 – Classificação das palavras acentuadas
Obs.: somente foram contabilizadas as palavras cuja acentuação seria correspondente à
norma ortográfica de 1971.
No prefácio, com exceção às palavras não acentuadas, não há nenhum erro
de acentuação, porém, ainda que numa análise superficial, ao longo do restante da
obra encontramos dois erros de acentuação que correspondem justamente a
palavras que tiveram sua ortografia modificada em 1971. É o caso de somente, que
anteriormente era acentuado com a crase no primeiro o (sòmente), porém na
“edição privado e fora do comércio” é escrito com o acento agudo (sómente), e o
adequado seria escrevê-lo sem acento algum, caso a impressão da tradução tenha
ocorrido após a mudança da norma ortográfica de 1943. O segundo caso, trata-se
da palavra sozinha, que apresenta o mesmo erro, como podemos observar quando
comparamos a forma de escrever a palavra na edição clandestina com a da
Coordenada Editôra de Brasília de 1969:
MADAME DE MISTIVAL a Madame de Saint-Ange – Queira perdoar-me, chego
sem prevenir, mas soube que minha filha estava aqui. Ela não deve andar sózinha
na sua idade. Vim reclamá-la, espero que não desaprovará o meu ato, minha
senhora (SADE, 19--: 2004. Grifo nosso).
Mistival – (falando a Saint-Ange) Peço desculpa, senhora, por visitar-vos sem
prevenir. Acontece que minha filha se encontra aqui e, sendo ela menor, e não
podendo, portanto, ficar sòzinha, peço que me seja entregue sem que
desaprovem os meus cuidados (SADE, 1969: 169. Grifo nosso).
No caso da falha na acentuação da palavra somente, que aparece craseada
vinte e quatro vezes ao longo da obra e três sem acentuação, pode ser um indício
de que a edição foi impressa no período inicial de execução da nova ortografia de
1971. O tipógrafo, cuja capacitação profissional não era das melhores, e penso isto
1472
justamente pela a irregularidade da acentuação, não teria o total domínio sobre as
mudanças ortográficas e se equivocou quanto à acentuação destas duas palavras.
Apesar de citar algumas possíveis evidências que podem contribuir para a
datação do livro, a análise meticulosa da ortografia será estendida a todo o restante
da obra ao longo do desenvolvimento da dissertação de mestrado a fim de construir
uma melhor argumentação sobre a identificação do período de produção do livro.
Além disto, o parecer sobre a datação do texto articulará a análise ortográfica com o
estudo da materialidade do livro. Por este motivo, dialogamos com a Bibliografia –
uma disciplina atenta para a descrição física, comparação, classificação e
contextualização de livros.
As características técnicas de fabricação, além do tipo de papel, tinta e
maquinário utilizado, contribuem para identificar o período de produção do livro. No
entanto para além da datação da obra este estudo pretende analisar o aspecto
simbólico da “edição privado e fora do comércio”. Por exemplo, a qualidade do livro
de edição clandestina é inferior se comparada com a dos Contos Galantes de 1956.
Esta inferioridade se dá pela baixa qualidade da acentuação do texto, do papel
utilizado e da guilhotinagem do livro. Tais características podem ser indícios do
contexto
de
produção
do
livro.
Os
aspectos
materiais
podem
rastrear
intenções/motivos que estão para além da finalidade de proteger o miolo ou facilitar
o manuseio do livro.
Em 1966 a editora portuguesa Afrodite publicou em um ato de afronte ao
regime autoritário de Salazar, cujo governo era associado aos princípios religiosos e
morais, a célebre Filosofia na alcova. Naquele contexto de repressão editorial,
publicar uma obra de Sade era no mínimo um ato audaz. Fernando de Mello,
fundador e editor da Afrodite, e que no mesmo ano seria condenado a oito meses de
prisão ou a pagar uma multa de 2000$00 por tal publicação, dispunha de poucos
recursos financeiros para a edição de uma obra volumosa de Sade como Juliette ou
Os 120 dias de Sodoma, e por este motivo optou por publicar a renomada Filosofia
na alcova, cujas dimensões correspondiam às possibilidades da editora (Cf. MELLO,
2006).
Segundo o editor (2006), o livro possuía as seguintes características:
1473
[...] austera na sua capa de cartolina escura lavrada e com letras de um amarelo
dourado a envolver com solenidade quase fúnebre aqueles 2000 exemplares a
80$00 (preço elevado para a época), com muitas gralhas a complicar para pior
uma ilustração de João Rodrigues. Mas não fazia mal; mas não fazia, ao cabo e
ao resto, muito mal; estava-se perante a uma provocação de dimensões inéditas
às regras de Salazar, girava subitamente no ar um sintoma de sarilho próximo que
convocava a incondicional afirmação de muitas solidariedades.
Neste caso, a relevância da obra se destacara pelo discurso políticoideológico em depreciação da qualidade material do livro. A publicação da Filosofia
na alcova pela editora Afrodite representava e constituía um ato de confronto entre
intelectuais que reivindicavam por liberdade de expressão e o Governo de Portugal.
A baixa qualidade material da edição possui uma nítida relação com as intenções do
editor e o contexto de sua produção. A censura à obra era iminente, logo realizar
grandes investimentos na edição seria incoerente diante o prejuízo financeiro
evidente. No entanto a repressão editorial não se limita às obras de edições
precárias.
Durante a década de 1950 o editor Jean-Jacques Pauvert era processado
pelo Governo Francês pela edição das obras do Marquês de Sade. Os depoimentos
da promotoria e da defesa transitavam, de forma geral, em torno de duas alegações,
respectivamente: a ameaça da literatura sadeana “corromper” seu leitor e a
importância da obra de Sade para o conhecimento mais profundo da condição
humana. Entretanto, ambos os discursos coincidiam em um ponto:
Me parece certo que a leitura de Sade deva ser reservada. Eu sou bibliotecário; é
claro que não colocaria os livros de Sade à disposição de meus leitores sem
determinadas formalidades. Mas uma vez cumpridas tais formalidades – a
autorização do encarregado e as demais precauções – acredito que, para
qualquer um que queira ir ao fundo do que significa o homem, a leitura de Sade
não é apenas recomendável, mas também indispensável (PAUVERT, 1957, apud
MORAES, 2011, p. 150.).
Pauvert concordava que a regulamentação do acesso às obras do marquês
era indispensável. A precaução com a disseminação da literatura sadeana nos dá
indícios que, ao menos diante de um júri, a defesa de Pauvert admitia a existência
do perigo das obras de Sade. Entretanto, sustentavam a possibilidade de que o
conhecimento dessas obras fosse útil a “um público restrito de espírito prevenido”,
para o qual o interesse pela literatura do marquês era puramente intelectual.
1474
Pauvert só se envolverá com a edição das obras completas do Marquês de
Sade em 1986 junto com a editora Fayard. Entretanto, mais próximo ao julgamento
de Pauvert, entre 1966 e 1967 a editora Cercle du Livre Précieux publicou as
Oeuvres completes du Marquis de Sade em uma coleção de oito volumes. Este é o
primeiro empreendimento editorial que ousou reunir todas as obras do marquês –
aquelas que sobreviveram ao tempo e a censura tanto do governo, quanto dos
próprios membros da família Sade – numa única edição. No entanto, tal iniciativa
não se deu livre de entraves. Na última folha do primeiro tomo percebe-se que a
venda do livro da editora Cercle du Livre Précieux ocorreu por subscrição, ou seja,
através de um compromisso assumido, por escrito, tanto referente ao pagamento do
livro, mas principalmente em guardar tal edição dos olhares despreparados para as
obras de Sade. Trata-se de uma edição volumosa e luxuosa, ou seja, o acesso à
obra também se restringia àqueles que teriam condição financeira para adquiri-la.
No Brasil há registros sobre uma demanda de controle aos livros com
potencial de corromper seus leitores muito anterior à primeira publicação de uma
obra de Sade por uma editora brasileira. Na primeira metade do século XIX o Barão
de Moroguy (1836: 3) comentara sobre a necessidade de um Código Penal severo
às obras, as quais o barão classificara como “abomináveis”.
Mas ha huma sorte de delicto contra o qual o Codigo Penal deve ser mui severo, e
mui activa a vigilancia do Misterio Publico; e eh a publicação de doutrina
subversivas da ordem social, e attentatorias da Moral Publica, taes como as que
proclamão o Atheismo, ou que propagão o crime. Se as producções espantosas
dos de Sade, dos Arentinos, e de muitos outros authores, cujos principios podem
ser igualmente funestos, não forem prescriptos e punidos pelas mais fortes penas,
será impossível, e até mesmo injusto, punir os maiores crimes, bem como o
assassinio, o roubo, a violação, o incendio, o envenenamento, e todos os generos
de attentados os mais encandalosos; porque há livros abominaveis, em que todos
os crimes são justificados, até mesmo recommendados, e cujos detestáveis
authores, erigidos em professores de atrocidades, são os mais perigosos e mais
crueis inimigos da Sociedade. Contra elles a Lei se deve armar, e sobre elles deve
pezar todo o seu rigor.
E é justamente este medo de uma obra “maldita” que legitima, e continua
legitimando, grande parte da censura às obras sadeanas.2
2
À exemplo de como permanece atual a censura às obras sadeanas ver: COREIA do Sul proíbe
livro de Marquês de Sade por „obscenidade extrema‟. 2012. Disponível em:
<http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2012/09/coreia-do-sul-proibe-livro-do-marques-de-sade.html>.
Acesso em: 20/07/2014.
1475
A identificação do período de produção da “edição privado e fora do
comércio”, cujo termo permanece um enigma, contribui para a compreensão sobre
as especificidades que envolveram os indivíduos responsáveis por esta publicação
clandestina. Pretendemos no decorrer do desenvolvimento da dissertação de
mestrado articular a análise do livro com o contexto de sua produção destacando as
influências intelectuais, publicitárias, políticas e legais que o cercara; e compreender
que dentro deste processo de comunicação um mesmo texto literário pode adquirir
diversos significados, não só para os leitores, mas também para os responsáveis por
sua produção. Pela especificidade de minha fonte, um livro cujo editor atentou-se em
não deixar vestígios de sua produção, optei por uma pesquisa que dialoga com os
contextos de diferentes edições das obras de Sade, pois investigar as conexões
possíveis entre as diversas publicações de A filosofia na alcova nos oferece
possibilidades que a investigação isolada da edição clandestina não poderia nos
oferecer.
Referências Bibliográficas
A FILOSOFIA na alcova ou escola de libertinagem. Brasília: Coordenada Editôra
de Brasília, 1969. Texto da orelha do livro.
DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.
LUIZ,
José.
Ortografia.
2009.
Disponível
<http://www.dicionarioinformal.com.br/ortografia>. Acesso em: 16 jul. 2014.
em:
MELLO, Fernando Ribeiro. Acerca da edição de 1966 da Filosofia na alcova.
2006. Entrevista concedida a António Carmo Luís. Disponível em: <editoraafrodite.blogspot.com.br>. Acesso em: 21 jul. 2014.
MORAES, Eliane Robert. Nota sobre a tradução. In: SADE, Marquês de. A filosofia
na alcova. Salvador: Ágalma, 1995.
MOROGUY, Barão de. Puniçaõ dos delictos da imprensa. Correio Official, s.l., 23
abr. 1836. Artigos naõ officiaes, p. 3.
______. Lições de Sade: ensaios sobre a imaginação libertina. São Paulo:
Iluminuras, 2011.
1476
SADE, Marquês de. A filosofia na alcova. Tradução anônima. [S.l.: s.n., 19--].
______. A filosofia na alcova ou escola de libertinagem. Brasília: Coordenada
Editôra de Brasília, 1969.
1477

Documentos relacionados

A libertinagem e a violência em Sade

A libertinagem e a violência em Sade Donatien-Alphonse-François, o Marquês de Sade, nasceu em meio à tribulada monarquia absolutista instaurada por Luís XIV. Ainda hoje esse autor – esquecido por todo o século XIX – é objeto de crític...

Leia mais

A filosofia na Alcova

A filosofia na Alcova será arquitetado entre Saint-Ange, aquela que representa e determina a lei a ser executada, e seu irmão e amante, o Cavaleiro de Mirvel. Trata-se dos rumos da educação da virgem Eugénie, à qual Sai...

Leia mais