Ceratite eosinofílica proliferativa felina: Revisão de literatura

Transcrição

Ceratite eosinofílica proliferativa felina: Revisão de literatura
Revisão de Literatura
Ceratite eosinofílica proliferativa felina: Revisão
de literatura
Proliferative feline eosinophilic keratitis: Literature review
Bernardo Stefano Bercht – Médico Veterinário, pós graduando em Ciências Veterinárias, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. E-mail:
[email protected]
Luciana Vicente Rosa Paccico Freitas – Médica Veterinária, pós graduanda em Ciências Veterinárias, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
Luciane de Albuquerque – Acadêmica de Medicina Veterinária, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
Paula Stieven Hünning – Médica Veterinária, pós graduanda em Ciências Veterinárias, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
Fabiana Quartiero Pereira – Médica Veterinária, pós graduada em Ciências Veterinárias, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
João Antonio Tadeu Pigatto – Médico Veterinário, Doutor, Professor Adjunto, Departamento de Medicina Animal, Faculdade de Veterinária, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
Bercht BS, Freitas LVRP, Albuquerque L, Hünning PS, Pereira FQ, Pigatto JAT. Medvep - Revista Científica de Medicina Veterinária - Pequenos Animais e
Animais de Estimação; 2011; 9(31); 608-611.
Resumo
A ceratite eosinofílica proliferativa felina é uma ceratopatia infiltrativa incomum, que acomete principalmente felinos domésticos. As lesões apresentam uma aparência granular e inflamatória e comumente se originam no quadrante temporal superior do limbo. É comum histórico de desconforto
ocular e lesões não responsivas aos colírios antimicrobianos.A etiologia é desconhecida, embora se
especule que o herpesvírus felino tipo 1(HVF-1) possa desempenhar papel desencadeante. O diagnóstico é confirmado com a citologia da córnea afetada, comumente revelando eosinófilos e mastócitos.
O tratamento é realizado com colírios contendo corticosteróides, embora possa ser complicado por
úlceras e pelo HVF-1. O uso do colírio de ciclosporina a 1,5% é uma alternativa terapêutica segura. As
recidivas são comuns, e muitas vezes terapia por longos períodos é necessária.
Palavras-chave: Ceratite eosinofílica, gatos, ceratopatia, córnea.
Abstract
Proliferative feline eosinophilic keratitis is an uncommon infiltrative and progressive keratopathy of
the domestic cat. The lesions have a granular and inflammatory appearance and often originate from
the limbus at the superior temporal quadrant. Often a history of ocular discomfort and lesions not
responsive to antibiotic eye drops is presented. The etiology is unknown, although it is speculated
that the feline herpes virus type 1(FHV-1) may play a role triggering the disease. The diagnosis is
confirmed with the cytology of the affected cornea, often revealing eosinophils and mast cells. The
treatment is performed with the use of eye drops containing corticosteroids, but may be complicated
by ulcers and the FHV-1. The use of eye drops containing 1.5% of cyclosporine is a safe alternative
therapeutic. Relapses are common; often therapy for long periods, even for lifetime is required.
Keywords: Eosinophilic keratitis, cats, keratopathy, cornea.
608
Medvep - Revista Científica de Medicina Veterinária - Pequenos Animais e Animais de Estimação 2011;9(31); 608-611.
Ceratite eosinofílica proliferativa felina: revisão de literatura
Introdução
A ceratite eosinofílica proliferativa felina (FEK), também
chamada de ceratoconjuntivite proliferativa, é uma doença
crônica e progressiva que ocorre na córnea de felinos domésticos (1,2,3,4,5,6,7,8).Os eqüinos também podem ser acometidos (7). Gatos machos castrados jovens são freqüentemente
acometidos (4,5,6).Acredita-se que não exista predisposição
racial, afetando comumente gatos de pelo curto (4,5,6).A FEK
já foi relatada em gatos das raças Persa, Siamês, Himalaio, e
outros (1,4,5,6).
Inicialmente observa-se na córnea a presença de vasos
sanguíneos e deposição de material com coloração brancoavermelhado.Muitas vezes a FEK não está associada a processo ulcerativo (4,5,6). Porém, desconforto ocular pode estar
presente.Caso não tratada corretamente tem potencial para
causar cegueira(4,5,6). Poucos são os relatos dessa enfermidade na literatura brasileira (8). Este trabalho é uma revisão de
literatura sobre ceratite eosinofílica felina, incluíndo etiopatogenia, sinais clínicos, diagnóstico, tratamento e prognóstico
desta afecção.
Etiologia
O paciente com FEK apresenta histórico clínico de irritação ocular crônica, comumente não responsiva a colírios
antibióticos, podendo estar associado com ulceração corneal
prévia (1,2,3,4,5,6,8). A etiologia precisa da doença ainda é
uma incógnita.Tem se hipotetizado que a FEK pode ser uma
doença imunomediada ou uma resposta alérgica a certos estímulos agressores (4,5,6,9). A detecção do herpes vírus felino
tipo 1(HVF-1) na córnea através da PCR e da imuno fluorescência sugere que o vírus tem um papel inicial importante
como desencadeador da doença e da infiltração corneal por
eosinófilos (9). Análise realizada pela PCR de material ocular de felinos com FEK revelaram positividade em 76.3% dos
pacientes para o HVF-1, contrastando com 5% em felinos sem
alteração ocular (9). A FEK tem a sua nomeclatura derivada
da presença de eosinófilos na córnea dos pacientes acometidos, revelados através da histologia ou citopatologia.
Sinais clínicos
A FEK comumente apresenta de forma unilateral, embora possa ocorrer em ambos os olhos (1,4,5,6). A lesão típica
da FEK é uma massa proliferativa, ou grânulos, de coloração esbranquiçada à rosada, afetando porções variáveis da
córnea, podendo se originar do limbo, córnea periférica ou
conjuntiva bulbar (Figura 1)(4,5,6). As lesões ou placas têm
consistência de depósitos arenosos e podem ser removidos
por raspagem. A localização mais comum da lesão inicial é
na região superior temporal da córnea (Figura 2), seguida por
lesões na porção ventro-nasal (4,5,6). As lesões podem evoluir para múltiplos quadrantes da córnea (Figura 1). A córnea
pode apresentar edema estromal, vascularização e úlceras superficiais (4,5,6).Blefarospasmo, secreção mucóide e protru-
são da terceira pálpebra também podem ocorrer (3,4,5,6). Em
recente estudo envolvendo 35 felinos, a vascularização corneal estava presente em todos os casos, a presença de placas
esbranquiçadas em 50% dos casos e 28.6%apresentava úlcera
de córnea (6). A lesão foi unilateral em 70% dos casos. Ainda,
31% dos pacientes apresentavam conjuntivite, simbléfaro e
úlcera de córnea de difícil cicatrização, sendo também tratados para o herpesvírus felino tipo 1 (6).
Figura 1 - Olho esquerdo de felino acometido por FEK. Nota-se
vascularização, presença de placas esbranquiçadas, bem como moderada
opacidade de córnea.
Figura 2 - Olho direito de felino acometido por FEK. Nota-se quemose,
vascularização, presença de placas esbranquiçadas, bem como leve
opacidade de córnea em região temporal superior.
Diagnóstico
O diagnóstico da FEK é baseado na anamnese, sinais clínicos, na aparência das lesões e no exame citológico da córnea
Medvep - Revista Científica de Medicina Veterinária - Pequenos Animais e Animais de Estimação 2011;9(31); 608-611.
609
Ceratite eosinofílica proliferativa felina: revisão de literatura
afetada (4,5,6,10). Para tanto, deve se proceder à avaliação
oftálmica, incluindo: teste lacrimal de Schirmer, tonometria
e biomicroscopia com lâmpada de fenda. Deve-se instilar o
corante vital fluoresceína, para confirmar ou descartar a presença de úlceras de córnea.Para realizar o exame citológico
das córneas deve-se instilar colírio anestésico a base de tetracaína ou proparacaína e após 30 segundos, usando o verso
de uma lâmina de bisturi, deve-se procederá raspagem superficial da córnea, que deve ser realizada na área afetada e
quando presente, das placas esbranquiçadas (4,5,6,10).Podese utilizar a coloração de Wright ou panótico rápido (8,10).
A citologia do raspado corneano de felinos acometidos pela
FEK comumente revela eosinófilos e grânulos eosinofílicos,
não encontrados na córnea de animais hígidos. A presença de
um eosinófilo ou mastócito em um raspado de córnea é considerado diagnóstico de ceratite eosinofílica (4,5,6,10). Foram
observados eosinófilos em 97.1% dos raspados de córnea de
animais acometidos pela FEK, enquanto os mastócitos foram
evidenciados em 71% dos exames (6).
O diagnóstico diferencial para FEK inclui ceratite herpética, ceratomicose, granuloma por micobactéria, neoplasia de
córnea e granuloma por corpo estranho (4,5,6).
Tratamento
Quando for realizado o diagnóstico da FEK, o tratamento
deve ser instituído de forma imediata e consistente,em virtude do potencial da afecção em causar cegueira se não tratada
de forma adequada (4,5,6).
Devido à eficácia, alta concentração local e mínimos efeitos colaterais o tratamento inicial para a FEK consiste no uso
de colírios corticosteróides (1,2,3,4,5,6,7,8). Estes são utilizados durante períodos prolongados,após, descontinuados de
forma gradual, ou mesmo mantidos na menor dose efetiva.
Os princípios ativos mais utilizados são o acetato de prednisolona a 1% e dexametasona a 0,1% (4,5,6). Dependendo da
gravidade do caso os intervalos de aplicação variam de cada
4 horas e a cada 8 horas (1,2,3,4,5,6,7,8).
Na maioria dos gatos com ceratite eosinofílica o tratamento inicial costuma ser eficaz (Figura 3), embora as taxas de recorrência serem elevadas. Morgan et al., realizaram o acompanhamento de 65 gatos portadores de FEK e relataram 64%
de recidiva (4).Nestes casos, o tratamento deve ser mantido
de forma contínua (4,5,6,8).
610
Figura 3 - Olho direito do felino da figura 2 após 14 dias de tratamento
com colírio a base de dexametasona. Nota-se transparência de meios.
O potencial dos corticosteróides para reativar infecções
do herpesvirus já é conhecido. Em casos de piora do quadro
clínico, úlceras que não cicatrizam, úlceras dendríticas ou geográficas pode ser necessário utilizar terapia antiviral como
colírios de idoxuridina a 0,5%, trifluridina a 1% ou,ainda,
suplementação oral com L-lisina 500mg (6,11,12). Foi necessária a utilização de antivirais locais concomitantemente
ao tratamento da FEK em 31% dos felinos acometidos pela
enfermidade(6).
Nos casos em que úlceras superficiais de córnea estão
presentes,estas lesões devem ser tratadas, e quando não mais
houver a retenção de fluoresceína, instituir a terapia correta (6,8). Alguns autores sugerem que tais úlceras possam ser
causadas pela degranulação dos eosinófilos, e sugerem o uso
dos corticóides mesmo na presença destas (13). Muita cautela
deve ser empregada no caso desta modalidade de tratamento, sendo necessário acompanhamento diário para monitorar
a evolução do tratamento (13).
Recentemente foi avaliada a eficácia do uso do colírio
de Ciclosporina a 1,5% em veículo oleoso no tratamento da
FEK em 35 felinos (6). A resposta da terapia foi considerada
adequada após três semanas de uso em 88,6% dos pacientes
quando utilizada com intervalos de 8 ou 12 horas. Em 22,6%
dos casos houve a recorrência das lesões ao longo dos meses.
Em todos os casos isto ocorreu devido à interrupção do tra-
Medvep - Revista Científica de Medicina Veterinária - Pequenos Animais e Animais de Estimação 2011;9(31); 608-611.
Ceratite eosinofílica proliferativa felina: revisão de literatura
tamento por parte dos proprietários. As vantagens do uso do
colírio de ciclosporina estão ligadas ao fato desta não interferir com a reepitelização da córnea e por não ser citotóxica
(6, 14, 15).Também já foi evidenciado que o uso de colírios
de corticosteróides pode causar bloqueio no eixo hipotálamohipófise-adrenal, bem como alterações hepáticas (12).Logo,
o colírio de ciclosporina é possivelmente mais seguro como
terapia de manutenção. Sua ação ocorre devido à inibição seletiva dos linfócitos T, reduzindo a produção de eosinófilos e
bloqueando a degranulação dos mastócitos, bem como suas
citocinas (6,14,15). Talvez a principal desvantagem seja de
natureza econômica. O efeito adverso mais relatado foi uma
leve blefarite, em 5% dos felinos (6).
Outra terapia utilizada com sucesso para FEK, principalmente em casos refratários ou de recidiva inclui o uso do
acetato de megestrol por via oral na dose de 5mg/animal/
dia durante 5 dias. Após 3 doses de 5mg em dias intercalados e então uma terapia de manutenção de 5mg uma vez na
semana (16). A terapia com o acetato de megestrol, fármaco
progestênico com elevado poder anti-inflamatório, deve ser
instituída com cautela devido aos diversos efeitos colaterais,
tais quais polifagia, mudança no temperamento, diabetes
transitória,hiperplasia mamária,tumores mamários e supressão adrenal cortical em gatos (4,5,6,17,18).
Conclusão
A ceratite eosinofílica proliferativa felina é uma afecção
corneana crônica, pouco relatada na literatura brasileira.A
etiologia é indeterminada, embora seja especulado papel
imunomediado, podendo ser o HVF-1 um dos estímulos desencadeantes. Logo, o tratamento da enfermidade é realizado
mediante o uso de imunossupressores, principalmente na
forma de colírios. O prognóstico é favorável, embora a alta
taxa de recidiva, muitas vezes, demande tratamento vitalício.
A FEK deve ser considerada diagnóstico diferencial das afecções crônicas de córnea nos felinos domésticos.
Referências
1.
Colitz CMH, Davidson MG, Gilger BC. Bilateral proliferative keratitis in a Domestic Long-haired cat. Vet Ophthalmol 2002; 5:137-40.
2.
Simonazzi B. La cheratite eosinofilica/proliferativa nelgatto. Ann. Fac. Medic.
Vet. di Parma 2004; 14: 143-150.
3.
Spiess BM, Leber A, von Beust BR, Hauser B. Chronic eosinophilic keratitis in
the cat. Schweiz Arch Tierh 1991; 133: 113-118.
4.
Morgan RV, Abrams KL, Kern TJ. Feline eosinophilic keratitis: a retrospective
study of 54 cases:(1989-1994). Vet Comp Ophthal 1996; 6: 131-134.
5.
Paulsen ME, Lavach JD, Severin GA, Eichenbaum JD. Feline eosinophilic keratitis: a review of 15 clinical cases. J Am Anim Hosp Assoc 1987; 23: 63-69.
6.
Spiess AK, Sapienza JS, Mayordomo A. Treatment of proliferative feline eosinophilic keratitis with topical 1.5% cyclosporine: 35 cases. Vet Ophthalmol
2009; 12: 132-137.
7.
Yamagata M, Wilkie DA, Gilger BC. Eosinophilic keratoconjunctivitis in seven
horses. J Am Vet Med Assoc 1996; 209: 1283-1286.
8.
Pereira FQ, Faganello CS, Bercht BS, Lacerda LA, Pigatto JAT. Feline eosinophilic
keratitis. Acta Sci Vet 2009; 37: 393-396.
9.
Nasisse MP, Glover TL, Moore CP, Weigler BJ. Detection of feline herpesvirus 1
DNA in corneas of cats with eosinophilic keratitis or corneal sequestration. Am
j vet res 1998; 59: 856-858.
10.
Prasse KW, Winston SM. Cytology and histopathology of feline eosinophilic keratitis. Vet Comp Ophthal 1996; 6: 74-81.
11.
Nasisse MP. Anti-inflammatory therapy in herpesvirus keratoconjunctivitis.
Prog Vet Comp Ophthal 1991; 1: 63-65.
12.
Roberts SM, Lavach JD, Macy DW, Severin GA. Effect of ophthalmic prednisolone acetate on the canine adrenal gland and hepatic function. Am J Vet Res
1984; 45: 1711-1714.
13.
Hodges A. Eosinophilic keratitis and keratoconjunctivitis in a 7-year-old domestic shorthaired cat. Can Vet J 2005; 46: 1034-1035.
14.
Grecory CR, Hietala SK, Pedersen N, Gregory TA, Floyd-Hawk INS, Kim A et al.
Cyclosporine pharmacokinetics in cats following topical ocular administration.
Transplantation 1989; 47: 516-519.
15.
Gilger BC, Allen JC. Cyclosporine A in veterinary ophthalmology. Vet Ophthalmol 1998; 1: 181-187.
16.
Gelatt KN. Veterinary Ophthalmology. 3rd
Wilkins,Philadelphia, 1999, 261: 391-1016.
17.
Chastain CB, Graham CL, Nichols CE. Adrenocortical suppression in cats given
megestrol acetate. Am J vet res 1981; 42: 202-209.
18.
Allgoewer I, Schäffer E, Stockhaus C, Vögtlin A. Feline eosinophilic conjunctivitis. Vet Ophthalmol 2001; 4: 69-74.
ed.,
Lippincott
Williams
&
Recebido para publicação em: 28/06/2011.
Enviado para análise em: 20/07/2011.
Aceito para publicação em: 04/10/2011.
Medvep - Revista Científica de Medicina Veterinária - Pequenos Animais e Animais de Estimação 2011;9(31); 608-611.
611