a reconstruo revisitada

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a reconstruo revisitada
A RECONSTRUÇÃO REVISITADA
Robert L. Pyles, M. D.
Não existe provavelmente outro conceito, na técnica analítica clássica, tão ambíguo,
tão cheio de perigos e tão velado em mistério como o da reconstrução. O próprio Freud
se debateu com ele toda a vida, como nós continuamos a fazer. O busílis do problema é
que esta é talvez a única intervenção clínica que levamos a cabo em que, nem nós nem o
paciente temos conhecimento direto de se esta representa a “verdade”, ou que tipo de
“verdade”. È uma especulação, baseada no material analítico e na transferência
reencenada, acerca do que pode ter sucedido com o paciente.
Por outro lado, não sabemos se a interpretação especulativa, mesmo quando aceite
pelo paciente, representa a verdade literal de eventos realmente ocorridos, ou se
representa uma verdade emocional, “afetiva”, ou uma combinação das duas. Depois há
ainda a questão de determinar objetivamente se o paciente de fato aceitou
terapeuticamente a interpretação, ou apenas se submeteu.
Clinicamente, o aspeto de longe mais importante da reconstrução enquanto técnica, e o
mais difícil de avaliar, é provavelmente aquilo que podemos definir, por falta de uma
expressão melhor, como a questão da “contra-transferência”. Uma vez que esta
intervenção é, em sua essência, uma especulação, embora informada, está
particularmente sujeita a influências como as do ponto de vista teórico do analista,
inclinações pessoais, e real contra-transferência para o paciente.
Quando Freud iniciou seu trabalho, partiu do princípio de que os relatos de seus
pacientes, particularmente acerca de experiências sexuais precoces e abusos, eram
lembranças fidedignas de acontecimentos reais. Como sabemos, sua viragem para a
teoria da fantasia foi um feito pioneiro. Em suas palavras, “é a realidade física e não a
material” o objeto próprio da psicanálise. Este ponto permaneceu controverso, enquanto
a prevalência generalizada do abuso sexual se tornou mais clara. No entanto, o próprio
Freud continuou relutante em relação a esta matéria, frequentemente criticando, como
veremos à frente, ambas as posições.
O que eu pretendo focar neste artigo, contudo, é não apenas a falta de clareza do que é
reconstruído, como a posição de força do analista, que atua, até certo ponto, como
árbitro e historiador da experiência do paciente. Da perspetiva do paciente, o analista
ocupa agora o lugar que antes pertencia ao progenitor, enquanto guardião e intérprete da
experiência interior do paciente, e, mais relevante até, de sua realidade precoce. Com
isto, vou agora virar-me para algum material clínico.
O paciente, uma mulher jovem, é uma escritora profissional talentosa. Veio fazer
análise por causa de dificuldades em suas relações, mas, em primeiro lugar, porque
sentia sua criatividade bloqueada. Ganhava o suficiente para levar uma vida confortável
e era respeitada por suas crónicas em revistas de viagens. Sua frustração e seu desespero
advinham do fato de não conseguir realizar, apesar de sentir que tinha capacidade para
tal, um trabalho de escrita sério e introspetivo. Sempre que tentava trabalhar em seu
romance sentia que “uma neblina se fechava sobre a minha mente”.
Na fase inicial da análise ela demonstrava dificuldade considerável na livre associação,
e uma quase total amnésia em relação à sua infância. À medida que o tratamento ia
progredindo, ela bloqueava, se esquecia rapidamente do material, e não raramente das
marcações. No entanto, sua confiança foi aumentando gradualmente, a aliança
terapêutica fortaleceu-se, e fomos capazes de compreender suas dificuldades, tanto em
análise como na escrita, como um medo de recordar, ou, por outras palavras, como um
medo de conhecer. À medida que cuidadosamente fomos acompanhando seus padrões
associativos, acabámos por perceber que a “neblina mental” descia sobre ela quando sua
escrita a conduzia perto de um derivativo de um conflito reprimido doloroso, e uma vez
que estes derivativos de conflito eram precisamente aquilo sobre o qual ela sentia
necessidade de escrever, não conseguia lidar com temas que não fossem “seguros” e
superficiais.
Este material altamente condensado é retirado de várias sessões ocorridas cerca de dois
anos após o início da análise.
Paciente: “Me pediram para fazer uns discursos. Talvez seja uma honra, mas odeio fazêlo. Fico tão ansiosa, e, no entanto, parece que não consigo dizer não. Tenho tanto medo
que as pessoas pensem que sou chata. Nem consigo falar aqui; como é que vou fazer um
discurso?”
(Silêncio)
“Estava pensando como sou gorda. Só pensei nisso o fim de semana inteiro. Ele [seu
marido] se cansou de me ouvir falar sobre o assunto. Faço dieta, depois me encho de
comida, depois me martirizo e me condeno. Você deve achar-me gorda e chata,
também”.
Analista: (Se tentar pensar nisso com cuidado, como é que realmente se sente perante a
ideia de fazer os discursos?)
“Fico ansiosa, mas pensando bem, acho que na verdade gosto da ideia. Me sinto
aterrorizada antes da altura, mas depois quando já lá estou...”
Analista: (Sabe, as crianças naturalmente adoram se exibir. Exibem seu corpo, seus
trabalhos de casa. Você, no entanto, se sente envergonhada e receosa de seu desejo de se
exibir aqui, nos discursos, e em sua escrita. Quando você tem estes sentimentos,
invariavelmente se diminui a si própria. Tenho mesmo a impressão de que devem ter
existido episódios específicos em sua infância em que você foi severamente censurada
por se ter exibido.)
A resposta da paciente evidenciava uma liberdade de associação invulgar. “Quando diz
isso, aquilo que me vem ao pensamento é algo que eu tinha esquecido completamente,
uma lembrança de um primo meu. Ele tinha quatro anos, e eu devia ter seis ou sete.
Tirei minha calcinha, e ele tirou sua cueca. A minha tia entrou, levou-o do quarto e lhe
deu uma sova, mas ninguém me disse nada. Isso me fez sentir ainda mais
envergonhada.”
“Uns meses mais tarde, ele foi atropelado por um caminhão e morreu. Fiquei
horrorizada. Minha tia lhe batia muito. Minha mãe dizia que era por isso que ele tinha
morrido, que ele estava melhor morto, e que essa era a vontade de Deus.”
“Agora consigo me lembrar de tudo, e é horrível. Meu Deus, como ela lhe batia
[chorando]. Ele dizia, ‘Eu porta-se bem, eu porta-se bem’[soluçando].”
“Senti que era tudo culpa minha.”
A paciente então começa a recordar-se de que uma série de mulheres em sua família
ficaram grávidas fora do casamento, com resultados desastrosos tanto para as mães
como para os filhos, no sentido de uma maldição inexorável que pairasse sobre a
família, “como se fosse tudo parte do destino da família”. Era por isso, dizia ela, que
decidira nunca ter filhos – fazê-lo seria condenar-se a si própria e à sua criança a um
destino infeliz, “como assinar uma sentença de morte”.
Dada a amnésia quase total da paciente em relação à sua infância, era curioso o modo
quase casual como ela aceitava esta e outras lembranças dolorosas à medida que
surgiam, como se soubesse de sua existência o tempo todo, mas estas fizessem parte de
um estado de consciência paralelo e separado. Outro aspeto surpreendente era a
vivacidade e a clareza dessas lembranças.
Durante a hora seguinte, a paciente continuou numa torrente de raiva e tristeza
alternadas, recordando muitos exemplos da incapacidade de sua mãe para ajudá-la.
Paciente: “Minha mãe de algum modo soube que eu ia fazer este discurso. Me disse,
‘Porque é que você foi convidada?’ Meu Deus! Depois disse, ‘Me lembro de quando
você foi naquele banquete na faculdade, com o vestido castanho de veludo que eu lhe
fiz’.
“Fiquei muda. Eu nunca tive vestido de veludo, e ela nunca fez nada para mim. È tudo
inventado por ela, para se sentir bem consigo própria.”
“É raro ouvi-la dizer algo que seja completamente verdadeiro. Ela reconstruiu o passado
à sua maneira [suas palavras], sem qualquer ligação com a verdade.”
“Se eu a confrontava, ela entendia isso como um ataque e na mesma ignorava o
assunto.”
“Quando o homem me atacou na sala de espetáculos [12 anos – outra lembrança que
havia sido reprimida], ela me disse que nunca falaria no assunto. Fingiu que não tinha
acontecido, e nunca mais ninguém falou nisso. Eu própria quase me perguntei se teria
mesmo acontecido.”
“Mesmo nas pequenas coisas. Quando minhas notas na escola começaram a descer
depois disso, ela se limitava a mentir para toda a gente, dizendo que eu estava muito
bem. Mas nunca tentou compreender porquê eu estava tendo problemas, e eu também
não sabia a razão.”
“Ela tinha sempre de culpar alguém. A culpa era sempre de outra pessoa, mas nunca era
o que tinha acontecido.”
“Isto se aplicava até a minha existência – eu era a prova viva de que ela cometera um
erro [a paciente era filha ilegítima]. Ela nunca me explicava acerca de meu pai. Quando
eu dizia que os outros garotos queriam saber de meu pai, ela dizia, ‘Diga-lhes que você
não tem pai’, e, mais tarde, ‘Diga-lhes que seu pai morreu’.”
“Era tudo histórias, e nem sequer consistentes. Eu tentava recordar as coisas do jeito que
ela queria, mas não conseguia. Apagava tudo da minha cabeça, apenas.”
Escolhi apresentar este material pela forma clara como ilustra o papel do analista e do
progenitor como intérprete e definidor da realidade interna e externa para o paciente e
para a criança. Tanto o paciente analítico como a criança são vulneráveis e
interrogativos, e devem poder depender da maturidade e do juízo são do analista e do
progenitor para obter uma resposta cabal. A responsabilidade que recai sobre o analista
e sobre o progenitor é simultaneamente tremenda e solitária, porque só raramente existe
uma avaliação externa das percepções de qualquer deles.
As respostas do analista e do progenitor ao material apresentado pelo paciente e pela
criança – lembranças, fantasias, observações, especulações – terão um efeito, ou
promotor do crescimento ou dilacerante das capacidades sintéticas e integradoras do
ego, dependendo da adequação dessas respostas.
No material comovente e poderoso que acima apresentei, vemos que a progenitora
oferece uma série de “reconstruções” à paciente, observações que estão em tal
desarmonia com suas percepções que esta, em criança, sentia que não tinha outra
escolha que não enevoar sua consciência, de modo a salvaguardar a relação entre as
duas. As percepções da mãe tinham obviamente eram muito mais uma resposta às suas
próprias necessidades do que às de minha paciente, o que resultava numa submissão
depressiva crónica por parte desta.
Por contraste, a reação da paciente ao comentário reconstrutivo do analista não era nem
concordância direta, nem desacordo, mas antes a evocação de uma lembrança
significativa e a libertação de afetos dolorosos que estavam até então reprimidos, o que
vai ao encontro de parte dos critérios de Freud a respeito da correção de uma
reconstrução. Todavia, a própria reconstrução não era completamente exata, ou, o que
talvez seja mais rigoroso, era “inexata”, pois, como viemos a aperceber-nos, não
“exibia” o fato de a mãe da paciente se opôr a virtualmente qualquer demonstração de
pensamento independente por parte desta.
O que é, afinal de contas, uma reconstrução, e o que é que determina sua eficácia?
Freud realçou, em 1937, em seu último e mais importante artigo sobre o tema que, antes
de mais nada, uma reconstrução é uma “conjetura” acerca do passado que “suscita
averiguação, confirmação, ou rejeição.”
A importância central desta posição técnica e comportamental adoptada pelo analista
não pode ser exagerada, uma vez que , enquanto conjetura (mesmo que, espera-se,
baseada em dados históricos e transferenciais), os comentários reconstrutivos são
particularmente susceptíveis à influência da predisposição teórica e pessoal do analista.
De relevo é o fato de o termo “reconstrução” ter, para além de sua aceção analítica, um
significado histórico importante, o que certamente sugere que a ideia por trás da palavra
existe numa poderosa metáfora paralela. Historicamente, o termo é muitas vezes usado
para referir o período de reedificação após uma guerra. Vindo do Sul dos Estados
Unidos, tenho uma noção particular do período da história da América do Norte que se
seguiu à Guerra Civil e a que chamamos a Era da Reconstrução (1867 – 1877). Parece-
me interessante que o termo “reconstrução”, no sentido histórico, implique conflito e
estrutura, tal como parece fazer quando usado na aceção analítica.
Levando a analogia mais longe, poderíamos perguntar, “O que é reconstruído?” No caso
do Sul, o que o Ministro da Guerra do Norte, Stanton, e outros, tinham em mente
construir (essencialmente uma ditadura) era sem dúvida muito diferente de qualquer
coisa que tivesse existido até então no Sul, e também radicalmente oposto à vontade do
povo. Pode-se pensar que não havia uma aliança terapêutica que permitisse uma
verdadeira reconstrução. O resultado previsível aparece no segundo uso do termo
“reconstrução” no Oxford English Dictionary (1880) – E. Kirke (“Garfield”) – “depois
de a guerra acabar, e a reconstrução estar concluída, a mesma hierarquia política do Sul
voltou ao poder em Washington”.
Este cenário de reconstrução falhada, resultante da resistência que surgiu por falta de
uma aliança e cumplicidade de objetivos, é algo de familiar, a que eu gostaria de voltar
mais à frente.
O Oxford English Dictionary define desta forma o termo “reconstrução”: 1) “construir
de novo”; 2) “construir de novo no pensamento; recuperar (algo passado) mentalmente
(1962) – Marivale, (“Império Romano”) (1965) – “Talvez não seja impossível
reconstruir a verdadeira natureza do caráter de Tibério.” (1962) – Tyndall –
(“montanhês”) – “ele deve observar os fatos, determinar sua relação, e a partir deles
reconstruir o mundo que já passou.”
Mais à frente, o OED diz-nos que “construir” vem do latim “construo”, que significa
“acumular” ou “juntar”. Os usos do inglês antigo parecem muito mais próximos no
nosso “construo” – atribuir um significado a alguma coisa, erguer uma construção
particular sobre ela, uma definição de algo “mental”, mais do que a de um “objeto”. O
dicionário de 1755 de Samuel Johnson define “construir” como “formar através da
mente”. O uso do segundo sentido paralelo, pertencente às estruturas físicas, parece terse vulgarizado no século XVIII e, mais ainda, no XIX.
Voltando ao nosso conceito analítico de reconstrução, convém dizer que, tão importante
como o sonho de Irma (o primeiro sonho analiticamente interpretado), é a primeira
reconstrução analítica conhecida. Esta parece ter dado origem a um dos maiores insights
da auto-análise de Freud, que usa porções do seu resultado como exemplos centrais no
artigo “Lembranças Encobridoras” e no capítulo sobre lembranças encobridoras do livro
A Psicopatologia da Vida Quotidiana. A importância deste insight, para Freud,
aumentou ainda pelo fato de, em seu trabalho definitivo sobre a matéria, em 1937, este o
ter usado (apesar de não o identificar como seu) como seu exemplo central de uma
reconstrução. “Até o seu nono ano, você viu-se a si próprio como o único e ilimitado
possuidor de sua mãe; depois apareceu outro bebê e trouxe consigo sua desilusão. Sua
mãe deixou-o durante algum tempo, e mesmo após seu regresso, nunca mais se dedicou
a si exclusivamente. Seus sentimentos em relação sua mãe tornaram-se ambivalentes,
seu pai adquiriu uma importância nova para si...”
Claramente o melhor exemplo dos esforços reconstrutivos de Freud ocorrem no caso do
Homem Lobo, em que a análise de Freud do famoso pesadelo com lobos conduziu à
reconstrução de uma cena primitiva (pela retaguarda), presumivelmente testemunhada
pelo Homem Lobo aos dezoito meses e elaborada em grande detalhe, incluindo a hora
exata e o local, assim como o fato de o Homem Lobo ter defecado enquanto observava.
Certamente o curso da transferência ( e possivelmente também da contra-transferência)
foi ditada a partir da primeira entrevista, quando, segundo Jones, o Homem Lobo se
propôs a defecar em cima da cabeça de Freud e para ter sexo anal com ele.
Freud debate extensamente, a propósito deste caso, uma questão que o absorveu durante
toda sua carreira – nomeadamente, se estas reconstruções representavam eventos reais,
ou apenas eventos reativados e sexualizados regressivamente sob o impacto de fantasias
universais envolvendo cenas primitivas. Criticando expressamente ambas as posições,
escreveu que tais cenas são “inquestionavelmente” um produto da fantasia universal,
“mas podem também facilmente ser adquiridas pela experiência pessoal”. Este caso em
particular, no entanto, “pode ser explicado de um modo cabal e perfeitamente natural se
considerarmos que a cena primitiva, que noutros casos pode ser uma fantasia, foi uma
realidade neste caso”.
Arrumando o assunto na passada, Freud escreveu que esta “não era, de fato, uma
questão de grande importância”, pois as crianças “preenchem as lacunas da verdade
individual com a verdade pré-histórica”.
Freud procedeu a uma reconstrução de uma cena primitiva semelhante quando analisava
a Princesa Marie Bonaparte. A biografia feita por Celia Bertin relata, “Quando, depois
de cinco meses de análise, regressou a Paris, Marie não descansou enquanto não obteve
de Pascal (seu lacaio), então com 82 anos, uma confirmação das interpretações e
construções de Freud – depois de muita hesitação, o velho homem confirmou as
deduções de Freud com grande detalhe; sua relação – iniciada quando o bebê tinha seis
meses – durou até Mimi ter três anos e meio de idade.”
Imaginando este confronto entre a Princesa e seu idoso lacaio leva-nos certamente a
aplaudir a injunção de Freud contra a busca de verificação histórica para as
reconstruções.
Reconstruções semelhantes ocorrem no caso de Katerina, Dora e o Homem Ratazana.
O conceito inicial de reconstrução de Freud baseava-se em seu entendimento inicial da
histeria como consequência de um trauma de infância real (sedução), a lembrança do
qual era depois recalcada. O objetivo da reconstrução era recriar e trazer para a
consciência o acontecimento real, o que resultaria num alívio dos sintomas – o método
catártico.
Em sua carta de 1897 a Fliess, quando anunciou que não acreditava já em sua
“neurótica”, o modelo tornou-se um de conflito intrapsíquico, e as reconstruções feitas
de acordo com linhas genéticas, económicas e topográficas. Freud descreve, primeiro
em seu artigo de 1898 “O Mecanismo Psíquico do Esquecimento”, e, um ano mais
tarde, no emocionante “Lembranças Encobridoras”, a repressão de lembranças
importantes da infância e o deslocamento dos afetos para outras mais neutras, que aí
ganham uma claridade invulgar.
No entanto, novamente aqui Freud diz, por um lado, “Pode-se de fato questionar se
possuímos lembranças da infância; é possível que tenhamos apenas lembranças
relacionadas com a infância. As lembranças de infância mostram os primeiros anos não
como estes aconteceram, mas como parecem ter acontecido quando as lembranças são
estimuladas”, e, por outro lado, “mas estou preparado para concordar consigo [com ele
próprio como paciente] que a cena é genuína”.
Na Psicopatologia da Vida Quotidiana (1901), o capítulo intitulado “As Lembranças de
Infância como Lembranças Encobridoras”, Freud afirma categoricamente: “As
lembranças de infância devem ser consideradas lembranças encobridoras”. Na mesma
linha, declara em seu trabalho de 1910 “Leonardo da Vinci e uma Lembrança de sua
Infância”, “É muitas vezes assim que as lembranças de infância surgem. Diferentemente
das lembranças conscientes da maturidade, não são fixadas no momento em que são
vividas, e mais tarde repetidas, mas apenas evocadas numa idade posterior, quando a
infância já passou; no processo, são alteradas, falsificadas e postas ao serviço de outros
interesses, de modo que, de uma maneira geral, não se pode dizer que se distinguem
perfeitamente de phantasias”.
Em 1914, com “Recordar, Repetir e Elaborar”, a análise da resistência e da transferência
começa a ser a tarefa prioritária do analista. Este está encarregue de “preencher as
lacunas da memória”, ultrapassando as resitências. Freud Diz, “Não apenas uma parte,
mas tudo o que é essencial na infância está retido nestas lembranças. É simplesmente
uma questão de saber como extraí-las de lá através da análise.”
A ação é equivalente à memória – “o paciente não se lembra de nada do que se
esqueceu e recalcou, mas atua-o. Reprodu-lo, não enquanto lembranças, mas enquanto
ação.” A ação repetitiva substitui a memória – “enquanto o paciente está em tratamento
não consegue fugir a seu impulso de repetir, e acabamos por compreender que esta é sua
maneira de recordar.”
A transferência é uma ação repetitiva que substitui a lembrança – “Depressa
percebemos que a transferência em si própria é apenas um ato de repetição, e que a
repetição é uma transferência do passado esquecido que é dirigida, não apenas ao
médico, mas a todos os outros aspetos da situação atual.”
O que repete o paciente? “Tudo o que já encontrou seu caminho desde a fonte do
reprimido até à sua personalidade manifesta: suas inibições, suas atitudes impróprias e
seus traços de caráter patológicos.”
A transferência é agora “o principal travão da compulsão do paciente para a repetição e
para tornar esta num motivo para recordar”.
Freud introduz, então, o conceito de “neurose de transferência” – “somos
frequentemente bem sucedidos ao conferir a todos os sintomas da doença um novo
significado transferencial, quando substituímos a neurose comum por uma “neurose de
transferência” da qual o paciente pode ser curado através do trabalho terapêutico... A
nova condição adquire então todas as caraterísticas da doença; mas representa uma
doença artificial, que em qualquer altura é acessível à nossa intervenção. É uma
experiência verdadeiramente real.”
É importante observar que, aqui, a transferência é o instrumento, sendo a finalidade
claramente a recuperação da memória.
Contudo, a reconstrução é apenas um passo preliminar. Em 1920, em seu “Psicogênese
de um Caso de Homossexualidade Feminina”, Freud escreve: “Uma análise divide-se
em duas fases claramente distintas. Na primeira, o médico busca no paciente a
informação necessária, familiariza-o com as premissas e os postulados da psicanálise, e
revela-lhe a reconstrução da gênese de sua perturbação, deduzida a partir do material
surgido na análise. Na segunda fase, é o próprio paciente que pega no material que tem
à sua frente – trabalha-o, recorda aquilo que é capaz das lembranças aparentemente
reprimidas, e tenta repetir o resto como se, de algum modo, estivesse a vivê-lo
novamente. Desta forma, confirma, complementa e corrige as inferências feitas pelo
médico. É somente durante este trabalho que o paciente experirncia a mudança interior
que se pretende, e adquire para si próprio as convições que o tornam independente da
autoridade do médico.”
Em seu último e mais importante trabalho sobre o assunto, “Construções em
Psicanálise” (1937), Freud afirma que a matéria bruta para a recuperação das
lembranças perdidas se encontra nos sonhos, nas associações, na ação, e na
transferência. Repare-se que aqui, uma vez mais, a transferência é vista como um meio,
entre outros, para um determinado fim.
Sua ambivalência em relação à realidade versus fantasia, apesar disto, parece ter
continuado. “O que procuramos é um quadro dos anos passados do paciente que seja
conforme, fidedigno e completo.”
A tarefa do analista mantém-se a de “descortinar o que foi esquecido a partir de seus
vestígios – ou, mais corretamente, construí-lo.”
Freud usa os termos “construção” e “reconstrução” indiferentemente, e compara o
trabalho do analista ao do arqueólogo, salientando apenas a diferença de que o passado
com que o analista lida é continuamente recriado no presente e é, por isso, uma força
viva, vital. Freud esclarece a diferença entre construção e interpretação – “a
interpretação aplica-se ao que é feito a respeito de um elemento individual do material,
tal como uma associação ou uma parapráxis. Mas trata-se de uma ‘construção’ quando
se apresenta ao analisando uma parte recuada de sua história por ele esquecida.”
Freud trata extensamente a questão de como se pode determinar se a reconstrução é
correta ou errónea. Parece-lhe que uma reconstrução incorreta simplesmente não tem
efeito, a menos que o analista se comporte “incorretamente”, não “permitindo que os
pacientes emitam sua opinião.” Salienta que uma reconstrução é uma “conjetura” que
“aguarda averiguação, confirmação ou rejeição.”
A correção de uma reconstrução não é determinada pelo acordo ou desacordo do
paciente, porque ambos podem ser uma forma de resistência. A correção é indicada pela
continuação da produção de lembranças análogas ou associações, ou pela resistência ou
atuação.
Freud debruça-se, de seguida, sobre o problema de as reconstruções aparentemente
corretas muitas vezes não chegarem a produzir recuperação de memória. O paciente, no
entanto, deverá atingir um “senso de convição” sobre a verdade da reconstrução, o que
produzirá o mesmo efeito terapêutico.
Uma série de artigos de Phyllis Greenacre, nos anos 40 e 50, reexamina o conceito de
lembrança encobridora e reconstrução, particularmente do ponto de vista do trauma real
versus conflito puramente intrapsíquico. Ela atribui um papel importante ao trauma real,
ocorrido durante o desenvolvimento infantil, na patogênese da doença. Eventos
traumáticos reais, em seu entender, funcionam como experiências “organizadoras”, e
geram um grau maior de fixação, sentimento de culpa, vitimização, tendência para a
atuação, e capacidade diminuída de experienciar conflito a nível intrapsíquico. A
distinção clínica pode ser feita com base em provas credíveis, particularmente através
da transferência. Greenacre considera crucial a recuperação e a elaboração de tais
traumas (sempre sexuais em sua natureza).
As observações de Anna Freud (1951) do efeito telescópico da memória e do jogo coital
pré-formado de crianças criadas em creches de guerra lançam novas dúvidas sobre a
ideia de que a neurose tem origem num único choque traumático.
Um artigo de Kris, em 1956, grandemente influenciado por tais observações diretas de
crianças, e em total desacordo com Greenacre, enfatiza o papel da pressão continuada,
ao invés do “choque”. “É um engano pensarmos que é possível, excepto em raras
circunstâncias, descobrir os episódios da tal tarde nas escadas em que a sedução se deu.”
Experiências individuais são transformadas numa “rede de multi-determinações quase
infinita” e “impossível” de reconstruir mais tarde. Kris acreditava que a importância da
reconstrução de acontecimentos específicos era exagerada e uma relíquia anacronística
do conceito primitivo de histeria e do modelo topográfico, ultrapassados entretanto pelo
modelo estrutural e pela psicologia do ego.
Kris concluiu que acontecimentos de infância reais são moldados de acordo com
padrõess significativos, e que são estes padrões o objeto próprio do esforço
reconstrutivo. A lembrança de eventos específicos transforma-se em “pontos nodais”,
que são condensações destes padrões, aparentemente semelhantes a lembranças
encobridoras.
O poder terapêutico da reconstrução, segundo Kris, jaz em sua capacidade para levantar
“contracatéxias”, permitindo que as energias libertadas sejam usadas pelo ego nas
funções integrativas, o que, por sua vez, facilita um levantamento das contracatéxias. A
energia pulsional neutralizada, “liberta pela exploração analítica da defesa e da ideia
reprimida, deve ser veiculada para a capacidade de trabalhar e de amar.”
Em seu afamado artigo “As Duas Análises do Sr. Z”, Heinz Kohut relata duas análises
com o mesmo paciente, a primeira das quais ele considera ter sido feita de acordo com o
ponto de vista freudiano, enquanto a segunda espelha sua recém adoptada posição
teórica, que enfatiza o conceito do “self”.
Na primeira análise, Kohut refere-se repetidamente às reconstruções e interpretações
“com as quais confrontou o paciente diversas vezes” e descreve “esta atitude consistente
e persistente da minha parte”. Após quatro anos de insistência, o paciente tornara-se
complacente e submisso, de modo semelhante à experiência de minha paciente com sua
mãe.
Tendo desenvolvido seu conceito de um défice primitivo no investimento narcísico do
self, na segunda análise Kohut foi capaz de entender o comportamento do paciente de
modo diferente. “Enquanto na primeira análise o entendi [o comportamento do paciente]
como defensivo – e me fui opondo crescentemente a ele -, agora concentrava-me nele
com a seriedade respeitosa de um analista face a face com material anlítico importante.”
Aparentemente, compreender que o paciente sofria de um défice permitiu a Kohut “pôr
de parte o meu objetivo – ambições terapêuticas pré-definidas.”
Kohut pôde então refletir que, na primeira análise, “as minhas convições teóricas
tinham-se tornado para o paciente uma réplica da neurose oculta de sua mãe, de uma
perspetiva distorcida sobre o mundo a que ele se adequara na infância e que aceitara
como realidade – ele restabelecera essa atitude de submissão e aceitação em relação a
mim e à minha convição aparentemente inabalável.”
O paciente de kohut viveu a insistência do analista no seu próprio ponto de vista teórico
como uma reconstituição da relação com sua mãe narcisista. As reconstruções e
interpretações de Kohut eram entendidas pelo paciente como tão distantes de si próprio
que só lhe restava, de modo a preservar a relação, submeter-se, tal como a minha
paciente relativamente a sua mãe. Kohut concluiu que o problema era causado pela
própria teoria, e não por uma observância dogmática desta de sua parte; a falha estava
no raciocínio que conduzia da teoria ao paciente, e não no que conduzia do paciente à
teoria.
Alguns autores recentes têm enfatizado crescentemente o papel da transferência, a
“análise do aqui-e-agora”, como sendo o mais importante elemento de modificação
terapêutica, aparentemente até em detrimento da reconstrução e da interpretação
genética. No livro de Leavy de 1980 O Diálogo Psicanalítico, este descreve “um
passado que é criado à medida que é dito”.
Para Schafer, em seu trabalho de 1983, A Atitude Analítica, a chave é a aceitação do
paciente de um “arbítrio pessoal”, que é alcançada pelo “relato perspicaz do analista
tanto da reivindicação excessiva como da recusa de arbítrio”. Schafer defende que
“descrições do presente (do aqui-e-agora) são reconstruções tal como atos do passado –
só diferem destes na medida em que se referem a atos de percepção ao invés de atos de
lembrança.” E mais, cada percepção é em si própria uma “construção”, na medida em
que é “uma seleção, uma ordenação e uma formulação interpretativas”.
Finalmente, “considerando o conhecimento analítico, confontamo-nos com esta tripla
circularidade: distinções convencionais entre sujeito e objeto, entre observação e teoria,
e entre passado e presente, já não têm sustentação. Disto se pode concluir que a
lembrança do passado infantil é uma descrição temporalmente deslocada e
artificialmente linearizada da análise do aqui-e-agora.”
Schafer e leavy enfatizam veementemente o papel da transferência, em particular a
perspetiva da análise como um processo de interação entre duas pessoas, em que o jogo
dinâmico entre analista e paciente deve ser considerado de forma prioritária. Os dois
autores não parecem rejeitar completamente a reconstrução do passado do ponto de
vista genético; o destaque, no entanto, é dado claramente ao aqui-e-agora.
Uma série de artigos de Valenstein e Rangell, entre outros, sublinham a distinção entre
cura “experiencial”, a sobreconcentração na análise de transferência como fator de
modificação em psicanálise, mais do que a interpretação e a reconstrução
ideacionalmente explicativas. A minha impressão é que ambos os aspetos são essenciais
e se reforçam mutuamente. Uma interpretação ou uma reconstrução razoavelmente
correta que só possui valor ideacional e explicativo pode, ainda assim, ajudar o paciente
a sentir-se apoiado, valorizado e ouvido com atenção na relação analítica, em contraste
com a antiga relação parental.
O fundamental da controvérsia foi explorado em dois artigos de 1980, um da autoria de
Rangell e outro, “O conceito de Análise Clássica”, de Valenstein. Ambos os autores
apontam uma tendência corrente para a cura pela “experiência”, em vez de pelo insight
e pela interpretação. Ambos atribuem a origem deste movimento a um artigo de 1934,
por Strachey, em que este elege a interpretação da transferência como o principal agente
“mutativo”, em detrimento do ponto de vista genético. Nas palavras de Strachey,
“conflitos do passado precoce mantêm-se ocupados com circunstâncias mortas e
personalidades mumificadas.”
Apontando o que ele considera ser “o erro de pensar a transferência não como meio,
mas como fim”, Rangell prossegue, discutindo os que vêem “a história passada, o
pensamento intrapsíquico e o material histórico como secundários e defletores da
verdadeira análise, isto é, a análise do jogo transferencial em curso.” Como exemplo de
um autor que privilegia a transferência sobre a defesa, Rangell cita Merton Gill, “O
problema é, de fato, o modelo geral do processo analítico. Será a análise da
transferência um auxiliar da análise da neurose, ou será que a transferência se torna a
representação atual da neurose, de forma que sua análise [da transferência] se torna o
equivalente da análise da neurose? A minha posição é a de que o último modelo é o
melhor.” Gill, com efeito, define a análise como “qualquer terapia em que o objetivo
seja a interpretação da transferência.”
A posição de Rangell é radicalmente diferente. “Senti a necessidade de incluir a
resolução, tanto da transferência como da transferência infantil, como o objetivo da
análise...Compreendi de uma forma esmagadora que não se atinge um senso de
convição somente a partir a da análise da transferência - sem uma ligação às suas
raízes.” E conclui, “Pois a direção presente é mais clássica do que a clássica, na medida
em que o mundo externo que é eliminado inclui tanto o passado interno como o passado
externo do paciente.”
Relativamente a este assunto, Valenstein acrescenta, “O agente terapêutico principal da
psicanálise é a interpretação, que conduz então ao insight”, e prossegue definindo a
interpretação como “intervenções verbais apropriadas com natureza explicativa que, no
que respeita ao tempo em que ocorrem, à sua forma e especificidade, parecem corretas
no contexto dos dados clínicos tal como estes se vão desenvolvendo.”
Valenstein considerou importante “a confluência de uma teoria da cura pelo insight –
através da ideação – com o conceito da aprendizagem pelo concreto – através da
experiência. Isto pode ser feito se se tiver em conta que o pensamento, isto é, a ideação,
é símbolo da ação experimental. Através da transferência ocorre um certo tipo de
experiência em que a ação é expressa como pensamento verbalizado... Isto deve ser,
suficientemente, ação em essência e efeito capaz de causar alterações por meio da
modificação e reeestruturação do ego.”
Valenstein volta-se, então, para a discussão do efeito causado pelo artigo de Strachey.
“Muitos analistas parecem ter entendido que este artigo contempla implicitamente a
possibilidade de que tudo está contido na transferência, de que tudo deve ser entendido
como ocorrendo no ‘aqui-e-agora’...A consequência, na minha opinião, é a diluição da
importância do ponto de vista genético, no que respeita à interpretação e ao insight.”
Valenstein refere o interesse no tratamento de patologias narcísicas e borderline, e
sugere que “a intenção, talvez imprevidente, é modificar tecnicamente a análise de
modo a analizar-se pacientes que até agora eram considerados não analizáveis.” E
resume a perspetiva de Kohut relativamente à falha no desenvolvimento ou “défice no
normal investimento narcísico do self...”: “Tecnicamente, parece seguir-se que [ainda
sumarizando as palavras de Kohut] uma auto-representação narcisicamente
empobrecida deverá ser modificável estruturalmente através da recapitulação da falha
no desenvolvimento dentro de um contexto de uma transferência de espelho
experiencialmente corretivo.” Os aspetos experienciais da transferência, que ele designa
por “internalizações transmutantes”, terão por si próprios um efeito estruturador.
Deste ponto de vista, portanto, “a intenção primeira da análise torna-se o desfazer e/ou
completar do desenvolvimento defeituoso por meio do que, em essência, se assemelha a
uma experiência emocional corretiva [Alexander] num cenário de completa
interpersonalização da transferência:”
Assim, “o... conceito de conflito intrapsíquico inconsciente... dificilmente parece ter
cabimento. E, presumivelmente, a teoria da técnica psicanalítica como, antes de mais
nada, um procedimento interpretativo articulado que depende, em última instância, de
meios racionais e explicativos de resolução de conflito psíquico – antes inconsciente
mas agora tornado consciente; predominantemente, mas não exclusivamente, por meio
da neurose de transferência – deixa de ter importância central.”
“Kohut desvaloriza declaradamente o papel do insight na construção de estrutura... Não
é a interpretação que cura o paciente.” Valenstein sugere que tais curas através da
“experiência emocional corretiva” são, na verdade, curas pela transferência, “curas pelo
amor”, que, apesar de benéficas, devem ser consideradas psicoterapia psicanalítica e não
psicanálise.
Valenstein discute então Kernberg, que “atribui a estrutura defeituosa do ego a uma
falha na integração de objetos cindidos introjetados durante as fases iniciais do
desenvolvimento.” Valenstein não concorda com a posição de Kernberg de que tais
pacientes possam ser curados somente pela interpretação, e afirma que “o tratamento de
tais problemas no decurso de uma fase pré-analítica prolongada deve ser sumamente
experiencial e reparadora do desenvolvimento.”
Desta forma, no contexto do desenvolvimento histórico analítico, é tentador afirmar que
na “reconstrução” do conceito de reconstrução estão contidas as sementes das acesas
controvérsias que decorrem atualmente no mundo analítico, isto é, trauma versus
fantasia, psicologia monádica versus psicologia relacional, estrutura e conflito versus
défice, a clássica psicologia “freudiana” versus a escola de Chicago de Kohut.
Certamente, como refere Guntrip, que a teoria é um bom lacaio mas um mau amo,
especialmente no que respeita à reconstrução. Fazendo menção ao fato de que,
geralmente, a metapsicologia de de cada um é baseada em sua filosofia pessoal, Guntrip
recorda-nos que “a nossa teoria deve estar enraízada na nossa própria psicopatologia – a
ideia de que podemos elaborar uma teoria da estrutura e do funcionamento da
personalidade sem qualquer relação com a estrutura e o funcionamento da nossa
personalidade é uma impossibilidade evidente.” E que a teoria é importante, operando,
como é suposto, como organizadora auxiliar das funções sintéticas e integrativas do
ego do analista, servindo para o conduzir a um entendimento mais próximo da
experiência do paciente, o que, afinal de contas, é o objetivo de tudo isto.”
É certo que o “senso de convição” que Freud acreditava levar à modificação terapêutica
só pode ocorrer se a reconstrução se aproximar suficientemente, em termos de fato e
afeto, da experiência do paciente, para que este possa retirar valor tanto do conteúdo
ideacional como da experiência de ser reconhecido e compreendido, cada aspeto
encorajando um maior crescimento e exploração. Ideação e experiência existem, então,
numa relação recíproca, em que a experiência reduz a resistência à ideação e a ideação
confere sentido à experiência.
O livro de Marie Balmarie, Psicanalizando a Psicanálise, embora padeça de uma
sobredosagem de influência lacaniana, contém, no entanto, uma interessante discussão
da palavra “símbolo”, que deriva da palavra greaga “sumbolon”, que significa, em
primeiro lugar, “sinal de reconhecimento”, e que significava originalmente “um objeto
partido em dois, do qual dois amigos guardam cada um uma metade – estas duas
metades identificando seus portadores quando estes se encontram.” As duas partes da
palavra “sum” – “junto” – e “bolon” – “lançar” – , significam lançar junto ou chegar ao
mesmo ponto. O antónimo de simbólico” em grego é “diabólico”, que significa lançar
para longe ou separar. É também a raíz de “diabólico” no sentido de “demoníaco”.
Encontra-se um conceito similar em diversas esculturas fascinantes no Museu Rodin em
Paris. Rodin criou duas imagens muito semelhantes – em cada uma delas uma mão
gigantesca emerge de uma rocha viva. Na primeira, intitulada “A mão do Diabo”, uma
única figura está representada na palma da mão. Na segunda, “A mão de Deus”, as
figuras interlaçadas de um homem e uma mulher estão aninhadas protetoramente. É
como se Rodin também nos estivesse dizendo que o isolamento é diabólico (La Main du
Diable), ou demoníaco, enquanto estar unido evoca uma sensação de conexão com
outro, e com a parte cindida do nosso próprio passado, o que resulta numa sensação de
bem-estar espiritual.
Se tivermos em conta que a raíz latina da palavra “construir” é “construo” – “acumular”
ou “juntar” – , e que, portanto, “reconstruir” é “voltar a juntar” ou “reunir”, torna-se
claro que uma interpretação reconstrutiva é aquela que reúne o paciente com sua
experiência passada, e o liga à sensação de ser conhecido e compreendido pelo analista.
Torna-se claro, também, a razão pela qual o poder curativo potencial de uma
reconstrução bem sucedida é tão grande, na medida em que, por um lado, ajuda a
construir uma narrativa afetiva explanatória útil e, por outro, auxilia o paciente a
experienciar a distinção curativa entre a relação analítica e aquela que o liga aos objetos
primários.
Assim, tendo em conta o que foi discutido, podemos dizer que a reconstrução é um
dispositivo técnico através do qual o paciente é trazido para junto de (reunido com) seu
passado, ideacionalmente no que respeita ao passado e experiencialmente por meio da
relação analítica. Ao experienciar o interesse medidativo e “interrogativo” do analista
em si e em seu passado, o paciente é encorajado a interrogar-se sobre si próprio, seu
passado, o analista e o mundo lá fora. Parece, desta forma, que na palavra existe latente
um conceito de cura pela reunião – a reunião do presente do paciente com seu passado,
ideacionalmente e experiencialmente, no contexto da relação analítica.
E quanto a minha paciente? Liberta da ambivalência paralizante que sentia por sua
intensamente narcísica e incorporadora mãe, casou bem e se tornou uma autora de
sucesso de romances sérios e introspetivos.
Robert L. Pyles, M.D.
367 Worcester St.
Wellesley Hills, MA., U.S. 02481
Nota: A versão portuguesa das citações é da responsabilidade da tradutora.
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