MANGÁ E OS MODOS DE SUBJETIVAÇÃO
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MANGÁ E OS MODOS DE SUBJETIVAÇÃO
MANGÁ E OS MODOS DE SUBJETIVAÇÃO BINSFELD ABEL, Joana – UCS¹ Grupo de Trabalho - Práticas e Estágios nas Licenciaturas Agência Financiadora: Não contou com financiamento Resumo O presente artigo apresenta uma pesquisa resultante de estágio docente na Universidade de Caxias do Sul, realizado nos anos iniciais do Ensino Fundamental no segundo semestre de 2012, para o curso de Licenciatura em Pedagogia. Traz um recorte da proposta realizada pela autora, sendo esta a disparadora da pesquisa, por meio de Temas Culturais², com o tema de Mangás, histórias em quadrinhos em estilo japonês, e os modos de subjetivação, com teorização em Foucault. Deste modo, buscou-se analisar os modos de subjetivação atravessados pelas produções midiáticas na lidação com os mangás em sala de aula, especificamente em se tratando das questões de gênero, uma vez que esta surgiu como forte e imponente entre os estudantes participantes do estágio, tornando-o uma possibilidade de trabalho entre os mesmos nas produções coletivas e individuais de mangás. Considerou-se aqui como gênero sendo também um recorte dos modos de subjetivação, conceituados pela autora Swain, sendo o local onde encontramos a diferenciação entre feminino e masculino estes criados a partir de uma divisão binária, onde podemos ver que outras sexualidades também são encontradas, sendo estas outras irregulares, o que ajuda a reforçar as primeiras como modelos. Esta divisão binária cria imagens de feminino e masculino para a sociedade, essas imagens são repassadas pelas mídias e creditadas por elas, criando uma natureza imutável, normatizando essas sexualidades. A partir disso, coloca-se a questão a ser aqui problematizada neste artigo: quais os efeitos da problematização de subjetivação e gênero na produção de mangás, no ambiente escolar? Sendo este artigo uma pequena contribuição para o campo dos estudos culturais, em se tratando de planejamento escolar e gênero, principalmente para a educação básica, já que parte de uma proposta de docência, resultando nesta pesquisa. Palavras-chave: Subjetivação. Gênero. Mangás. 100% Morango Tem dias que pulo a corrente, ignorando a placa de “entrada proibida”. O estágio teve como tema os mangás (HQs em estilo japonês) e os modos de subjetivação (com teorização em Foucault), dentro deste trazendo o recorte de gênero, com o auxílio de Swain. O estágio faz parte da proposta do currículo do curso de Licenciatura em 23414 Pedagogia da Universidade de Caxias do Sul, sendo realizado nas séries iniciais do Ensino Fundamental, sendo este aqui apresentado o relato em uma turma de 5º ano de uma escola da rede pública estadual. A turma era composta por 27 alunos entre 10 e 11 anos, de uma escola de classe média baixa, na cidade de Caxias do Sul. O estágio foi operado via Temas Culturais², como escolha da estagiária. Durante o processo diferentes atividades foram realizadas, levando a produção de um mangá por parte dos alunos, que divididos em grupos realizaram uma variedade de escritas e leituras, discussões e pensamentos para a produção do mesmo. Durante estas escritas e leituras fez-se as discussões Foucaultianas sobre os modos de subjetivação, gênero e diferença, para a qualificação de suas produções. Dentre estas discussões a que prevaleceu foi a de gênero e, portanto, foi escolhida para encabeçar a pesquisa aqui estudada. O artigo mostra alguns pensamentos acerca dos procedimentos, discussões, e aquisições do estágio. Bem – vindo a NHK! No mundo existem conspirações... e eu sou vítima de uma delas... será? A estagiária percebeu que os alunos utilizavam dizeres e maneiras de falarem sobre si, como meninas e meninos, se comportavam e se portavam como as categorias dominantes, dentro dos gêneros, lhes diziam para fazê-lo. Meninas, que deveriam ser meigas, educadas e estudiosas, em sua maioria, eram. Meninos, que deveriam ser mais malandros, falantes e por vezes até mal-educados, em sua maioria também eram. Mas essas características não prevaleciam o tempo todo, sendo trocadas ou invertidas diversas vezes por outras e até entre si, durante o período em que o estágio foi realizado. Nos mangás, por eles produzidos, essas características apareceram na criação de seus personagens e nas histórias que os mesmos viviam. Mesmo tentando diferenciar da lógica de gênero conhecida, por vezes, e em muitos mangás, tanto os lidos quanto os produzidos, as mulheres eram mais frágeis e passivas, enquanto os homens tomavam a frente e eram responsáveis pelas decisões que mudariam o rumo das histórias. Essas imagens de feminino e masculino são fortemente pregadas entre os alunos. Por alguns momentos, e em algumas discussões, o discurso produzido por eles foi de que homens 23415 e mulheres, meninos e meninas, não são iguais, apenas em alguns conceitos biológicos, contudo de outras maneiras, e em outras áreas, podem sim concordar ou discordar, agir e reagir, de maneira igual, parecida, diferente. Na produção dos mangás isso era visível na hora de decidir o rumo das histórias, o que iria acontecer com os personagens, qual era o destino deles. As meninas do grupo tomavam a frente na hora das decisões, e opinavam sobre como se daria a produção, mas por fim, os meninos foram campeões ao fazer a fala final, tendo “dominado” as decisões que iriam compor a estrutura do mangá, da história, das características de cada personagem, e até da representação gráfica dos mesmos. Demonstrando uma das características tão difundidas no gênero masculino: a de liderança. Uma das questões levantadas nestas discussões foi a das categorias utilizadas pelos alunos para falar de si, são inventadas? Poderiam ser outras? Essas questões levaram a grandes discussões, que levaram a grandes respostas, tais como: “meninas também são fortes, e meninos também são fracos”; “não tem nada a ver isso, meninos e meninas podem ser do jeito que quiserem”, “eu choro quando fico triste profe, mas eu não sou menos homem por causa disso”. Contudo nos momentos de agir, caiam na lógica do comportamento pré-disposto, préestabelecido, preposicionado, preferencial. Essa lógica não era recebida por todos, alguns deles fugiam da regra e agiam conforme preferiam, ou acreditavam preferir, o que nem sempre correspondia a esta conduta antes relatada. A grafia dos mangás também é um forte indício das discussões de gênero. Meninasmangás tem traços doces, meigos, leves. Meninos-mangás tem traços fortes, marcantes, quase rústicos. E quando isso se inverte são considerados meninas masculinizadas e/ou meninos feminizados. A diferenciação na grafia dos mangás foi percebida e comentada por eles, que diziam: “essa personagem é feia, olha o jeito como se veste”, “gostei desse menino, que olhos mais lindos”, sempre pontuando as características que marcavam o personagem como sendo belo ou não, dentro desta mesma concepção de gênero anteriormente citada, onde as caraterísticas de meiguice e doçura eram consideradas como beleza física nas meninas, bem como a demonstração de liderança e força, nos meninos. Fairytail Agora que dei uma boa olhada, é um trabalho bem simples. 23416 Mangá é a palavra utilizada para nomear as histórias em quadrinho de estilo japonês, no Japão são usadas para todas as histórias. Sua origem está no antigo Teatro das Sombras (Oricom Shohatsu) que percorria o país contando lendas com fantoches. Essas histórias começaram a ser escritas e ilustradas em rolos de papel, dando origem aos hoje tão conhecidos mangás. O estilo inicial dos quadrinhos não era parecido com os que conhecemos hoje. Eram desenhos mais simples, com o texto visivelmente separado da imagem. O estilo contemporâneo surgiu no século XX com influência de revistas ocidentais, como a Punch Magazine, uma revista inglesa que trazia humor e sátiras sociais e políticas, em quadros únicos ou em quatro. Na década de 40 a influência americana, causada pela Segunda Guerra, levou Osamu Tezuka a revolucionar o estilo ao introduzir características faciais exageradas, sobretudo olhos e sobrancelhas (características observadas também em desenhos da Disney), onomatopeias em meio aos desenhos, e linhas que dão impressão de movimento e velocidade. Assim as histórias começaram a ficar mais longas e serem divididas em capítulos. Criando inclusive séries para a televisão como Astro Boy em 1963, Tezuka pôde explorar outras linhas do Mangá, que era voltado ao público infanto-juvenil, criando mangás para adultos, e produzindo temas mais complexos com histórias mais elaboradas. Os mangás dividem-se em shounen (para meninos), shoujo (para meninas), gekijá (adultos), seinen (jovens adultos), josei (jovens adultas). Nestes três últimos, não encontramos as características mais conhecidas dos mangás referentes a suas representações gráficas, os olhos exagerados e expressões caricatas. Muitos mangás acabaram se tornando animações, que são conhecidas como animes, e viraram também jogos eletrônicos. Hoje em dia os mangás são conhecidos no mundo todo, difundindo em muitos locais a cultura e tradições japonesas. As características gráficas, conhecidas dos mangás ressaltam as questões de gênero. Qualificando meninas e meninos, caracterizando-os de maneira a corresponder ao que a mídia os apresenta, mesmo que a mídia representada seja a oriental, diferente da ocidental, ainda encontram-se marcas igualitárias nas duas, a feminilidade e a masculinidade dos personagens vêm da cultura oriental, mas pode-se pensá-los em uma lógica ocidental sem nenhum problema. Não obstante pode se perceber o quanto são próximas, apesar da expressão cultural diferenciada, vê-se que há uma separação no papel social de homens e mulheres. As mulheres 23417 conquistaram um visível espaço dentro da sociedade ocidental, um espaço diferenciado da oriental, contudo algumas situações e vivências ainda se coincidem. Swain (2009) fala desta diferenciação entre mulher e homem, como sendo causada pela falta do falo: A ausência do falo seria, portanto, definitiva na demarcação dos papéis e atribuições sociais, causa e consequência da inferioridade "natural" das mulheres, de sua falta de razão, de tino, de força, de criatividade, exclusividades de quem é dotado de um pênis. Este pressuposto, oculto sob os discursos de verdade sobre o humano, é uma das tecnologias do sexo, uma das estratégias de instauração de poder. Ao se questionar, porém, a natureza binária e hierárquica do humano, fica claro que esta "verdade" é uma construção social. (Swain, 2009) A autora também aponta os sexos (feminino e masculino) como sendo criados por uma divisão binária, onde se encontram outras sexualidades, anômalas, reforçando-as como modelo (SWAIN, 2000) e completa ao dizer que “Os matizes do desejo sexual são codificados em corpos definidos cuja biologia não é apenas classificatória mas um operador simbólico de inserção e identificação do humano” (SWAIN,2000, p. 152). As relações de gênero que vivemos hoje estão marcadas por uma relação de desigualdade social e pessoal baseada na diferença entre os sexos e legitimada em nome de um determinismo biológico da superioridade de um dos sexos, o masculino, e de uma determinada forma de viver a sexualidade, a heterossexual. O ambiente escolar encarregava-se de estabelecer normas em que se podia identificar o comportamento de meninos e meninas. As representações disto foram visíveis na produção dos mangás, nas discussões feitas em sala de aula, nos questionamentos trazidos pelos estudantes, que faziam perceber essa existência binária em sala de aula, como sendo a escolhida, por quase todos, talvez e até provavelmente de maneira involuntária. Um programa educacional de ética e cidadania deve abordar questões de gênero, de forma a evidenciar os pactos velados contidos nos conflitos interpessoais. Deve também promover o diálogo no cotidiano escolar, pois através dele outros olhares poderão surgir para algumas práticas que com o tempo acabaram por ser naturalizadas. A escola, por excelência, é o local privilegiado para tais diálogos e problematizações, onde aspectos sociais, psicológicos e culturais que estão presentes nos conflitos de gênero podem gerar ações preventivas, que identifiquem e atuem contra exclusões, preconceitos e discriminações oriundas das diferenças de sexo. 23418 A “verdade”, da qual fala anteriormente Swain, é especificada por Foucault (1988, p. 14) como sendo “um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados", especifica também a produção de condutas e regras de como ser, agir e pensar ligadas ao “sexo”. Swain pontua que: Os discursos das certezas e das verdades apoiam-se nas narrativas históricas – que sabemos fundadas em pressupostos – como expressão da realidade humana, de um passado mais ou menos remoto, restituindo-nos continuamente a diferença sexual como a marca indelével de um humano que criou deus à sua imagem e semelhança para melhor fundar o poder e autoridades masculinos. (SWAIN, 2009) Swain (2009) fala que esta sociedade, a qual menciona Foucault, está impregnada de um senso comum e vive “instalando imagens de feminino e masculino no imaginário social como se fossem expressão precípua de uma natureza imutável.” E a escola como parte inerente desta sociedade recebe cargas destas instalações de diversas maneiras, por intermédio de seus alunos, professores, funcionários, materiais, espaços, por produções midiáticas que chegam a todo instante na escola, as quais a escola não tem como controlar. Essas produções midiáticas produzem modos de subjetivação nos estudantes, como maneiras e métodos de agir e reagir a situações por eles vivenciadas, o gostar e não gostar de certas coisas, levando-os a um sistema binário dessas verdades inventadas que se tornaram comuns, esses métodos e maneiras são possíveis de se ver dentro e fora da escola, pois não se separam como estudantes, filhos, amigos, colegas. São verdades que nos produzem de diferentes maneiras em diferentes narrativas históricas. Foucault (2002, p. 262) conceitua esses modos de subjetivação como sendo “O processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito, mais precisamente de uma subjetividade, que evidentemente não passa de umas das possibilidades dadas de organização de uma consciência de si”. O autor também diz não crer na existência de um “sujeito soberano, fundador, uma forma universal de sujeito que poderíamos encontrar em todos os lugares” (FOUCAULT, 2002, p. 291). Não havendo um modelo, a partir do qual pensamos, e no qual queremos chegar, mas sim um “sujeito que se constitui através das práticas de sujeição, ou de uma maneira mais autônoma, através de práticas de liberação, de liberdade” (FOUCAULT, 2002, p. 291). 23419 Os modos de subjetivação de que nos fala Foucault, foram perceptíveis entre eles, principalmente ao se escolher as atitudes que seus personagens deveriam ter em relação às situações vividas dentro das histórias, eles acabaram sendo ponto crucial na produção das mesmas, pois produziram de diferentes maneiras esses personagens, suas histórias, suas escolhas, seus rumos, assim como produziam a seus autores. Pois, como nos é dito por Swain (2009): É a diferença da diferença, pois todas somos diferentes, de outrem, de nós mesmas, em nosso presente somos apenas o simulacro de nossas representações passadas, que não servem de referentes nem para nosso próprio ser. Quem pode ter a pretensão de ser referente geral do humano, sem derivar para o ridículo? (SWAIN, 2009) A escola infelizmente não se utiliza de sua potência como criadora e reprodutora de cultura e ao invés de mostrar as inúmeras possibilidades do que sexo, sexualidade e gênero podem ser, sente dificuldade em trabalhar com a ideia das relações de poder de gênero e sexualidade, não traz estes temas para debate e não os utiliza como uma possibilidade de aprendizagem. Angel Sanctuary Aqueles que tingem o mar da cor de zinco, transformam as florestas verdejantes em ocre do deserto, turvam os ventos de fumaça e chamuscam os céus. Trabalhar os modos de subjetivação e gênero em sala de aula é um desafio para o professor. Esses conceitos nos fazem perceber a existência de tais verdades, aquelas creditadas e produzidas midiaticamente, e então questioná-las. Mesmo assim o papel do professor em relação a elas é tentar compreender por que essas verdades se tornaram o que são, como chegaram ao status de verdade, e como essas verdades, aliadas as produções da mídia produzem os estudantes que estão em nossas mãos. Ao perceber que o mangá é uma dessas mídias, percebemos também que o mesmo repassa valores de um certo tipo de sociedade, a oriental, mesmo que possamos perceber algumas características relacionadas a gênero como sendo comuns a ocidental. Seleciona as caracterizações de meninos e meninas, e trabalha com modos de subjetivação e gêneros analisáveis. Encontrar essas questões em meio aos mangás pode, também, ser outro desafio, já que não fazem parte da cultura ocidental, mesmo já estando dentro da realidade desta parte do 23420 mundo ainda são lidos por um grupo específico, e pequeno, de pessoas. Como fazer deles um instrumento de trabalho em sala de aula, sem normatizá-lo? Modos de subjetivação, gênero, diferença, Foucault. Foram muitas as novidades, as possibilidades. Momentos de discordância, de concordância, de formulação. Como pensar diferente da lógica identitária? Como fugir do binarismo e pensar de forma rizomática, sem esgotamento de possibilidades? Quanto mais perguntas se respondem, muitas outras surgem, e como o intuito não é apenas responder a pergunta principal, (Quais os efeitos da problematização de subjetivação e gênero na produção de mangás, no ambiente escolar?), mas também encontrar outras pertinentes a ocasião, pode-se dizer que o objetivo foi bem colocado. Os alunos discutiram e analisaram novas possibilidades a partir dos mangás, observaram os conceitos de subjetivação e gênero, bem como o de diferença, conversaram, formularam, visualizaram e perceberam novas possibilidades em sua existência escolar. Se isso se tornou concreto e será levado com eles é uma pergunta muito pessoal, não sendo possível que uma simples observadora a responda com tranquilidade e certeza. Que tenha valido a pena a tentativa. REFERÊNCIAS CORAZZA, S. Cadernos Pedagógicos nº 5. Secretaria Municipal de Educação, Porto Alegre: 1995, p. 41-46. FOUCAULT, M. Ditos e Escritos V – Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense, 2002. FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1988. MATOS, SÔNIA. Conjectura, v.14, n. 1, Caxias do Sul: 2009, p. 93-134. NAVARRO-SWAIN, T. Por uma vida libertária para além das evidências; em: <http://www.tanianavarroswain.com.br/chapitres/bresil/FOUcualt2009.htm>. Acesso em: 28/11/2012. NAVARRO-SWAIN, T. Quem tem medo de Foucault: feminismo, corpo e sexualidade. In: PORTOCARRERO, V.; CASTELO BRANCO, G. (Orgs) Retratos de Foucault. Rio de Janeiro: Nau, p. 138-158, 2000.
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