Do mar à Marinha Primeiro Grumete da Marinha Portuguesa

Transcrição

Do mar à Marinha Primeiro Grumete da Marinha Portuguesa
exigente e fez com que, novamente, eu
decidisse faltar às aulas de matemática.
Do mar à Marinha
Primeiro
Grumete
da
Marinha
Portuguesa, Manuela Azevedo é uma
entre várias jovens que optaram pela
vida militar. Nesta entrevista, Manuela
faz o retrato de uma juventude pautada
por erros, lutas para os corrigir e
objectivos a cumprir.
Ana Taveira
Passado algum tempo, os meus pais
receberam uma carta na qual constava a
informação de que eu estaria reprovada
por ter ultrapassado o limite de faltas.
Após a segunda desilusão que lhes tinha
dado, decidi tomar um rumo e concorri à
Marinha.
P. - Que processo teve que seguir para
fazer esse ingresso na Marinha?
R. - Depois de me ter informado na
Internet
sobre
os
procedimentos
necessários, enviei a documentação e
aguardei pela resposta. No mês seguinte,
recebi uma carta para fazer os testes.
Porém, antes disso, já tinha começado a
minha preparação num ginásio. Realizei
testes médicos, físicos, psicotécnicos e
Ana Taveira - Manuela, o que a incentivou
escritos, por etapas. Só passaria à
a seguir a carreira militar?
“Decidi tomar
seguinte se tivesse aprovação na
Manuela Azevedo - Bom, eu
um rumo e
anterior.
estava no 12º ano com notas
concorri
à
P. - Qual o teste que considera ter
relativamente boas, mas com o
Marinha”
sido mais exigente?
problema
geral
chamado
matemática. O meu pai resolveu inscreverR. - Apesar de nada ter sido fácil, os testes
me em explicações, mas com a minha
físicos foram, sem dúvida, os mais
rebeldia inerente à adolescência faltava às
exigentes.
explicações e ia para a praia fazer
skimming. Resultado: 1.8 no exame
P. - Por que motivo teve mais dificuldades
nacional de matemática.
nesses testes?
“O prazer de uma tarde a fazer
skimming não compensa o tempo que
se perde depois a tentar compensar os
erros da juventude”
No ano seguinte, supostamente, iria
concluir o ensino secundário e teria apenas
aulas da disciplina à qual não tinha tido
aproveitamento. Por conseguinte, resolvi
trabalhar nos tempos livres. Numa tarde
como tantas outras, fui lanchar com
amigos e vi que estavam a precisar de
funcionários naquele estabelecimento.
Preenchi a ficha, fui chamada para
entrevista e comecei a trabalhar logo no
dia seguinte. O horário era bastante
R. - Os testes físicos revelaram-se mais
exigentes, porque além da resistência era
necessário ter uma capacidade de
resiliência maior e um estado psicológico
consistente.
P. - Apesar do cansaço e da exigência
sentiu-se
sempre
motivada
para
continuar?
R. - Sim, sempre. Era um objectivo a
cumprir.
P. - Após ter concluído os testes voltou a
trabalhar enquanto aguardava resposta?
R. - Dificuldades? Imensas! Estive sem
contactar a família e passava os dias
fechada numa escola sem acesso a
R. - Sim. Regressei a casa e continuei a
qualquer informação do exterior. Acordava
exercer a minha actividade como
às seis horas para fazer o cross matinal que
cozinheira.
consistia em correr três quilómetros, fazer
30 flexões, 30 abdominais e 30
P. - Os seus pais tiveram
“Cheguei mesmo a
pulos de galo. Depois disso tinha
conhecimento desse desejo
prometer que iria a pé
aulas até às 18h30. Eram aulas
de ingressar na Marinha antes
a Fátima caso
de tiro, armamento, marinharia,
de saber se seria admitida?
conseguisse entrar na
natação, educação física e
Marinha”
R. - Antes de saber se iria
organização. A exigência além
ingressar na Marinha sim, mas
de física era exercida também a
apenas no dia antes de realizar os testes. O
nível psicológico. No fim das aulas ainda
meu pai apoiou a minha decisão e
tinha que fazer serviço de cozinha ou
acompanhou-me na viagem até Lisboa.
serviço ao mestre. Este último consistia na
limpeza de jardins, escritórios, casas de
P. - Estava confiante que seria admitida?
banho… Enfim. O que houvesse para limpar
eu limpava! De seguida jantava e após o
R. - Sinceramente, não. Apesar de os testes
jantar tinha aulas novamente. Só ia para o
terem corrido bem senti sempre alguma
coté às 22h30.
insegurança. Cresci num seio familiar
bastante religioso e, por isso, cheguei
mesmo a prometer que iria a pé a Fátima
caso conseguisse entrar.
P. - Qual foi a sua reacção e a dos seus
pais quando voltou pela primeira vez a
casa?
P. - Como é que soube que tinha
ingressado?
R. - Logo que saí da Escola de Fuzileiros,
segui num autocarro da marinha até ao
terminal fluvial do Barreiro.
R. - Estava no café com uma
“Sempre que via
Liguei o telemóvel ao fim 15 dias
amiga e o meu pai ligou-me e
algum civil sentia-me
de recruta e tive a sensação de
deu-me a notícia. Fiquei
um verdadeiro
que já nem sabia como trabalhar
completamente
eufórica.
extraterrestre”
com ele. Liguei ao meu
Naquela altura era tudo o que
namorado e ao meu pai e assim
eu queria. Sentia necessidade
que ouvi a voz deles comecei a chorar.
de dar um orgulho ao meu pai.
Depois estive horas na estação de
P. - A recruta começou logo de seguida?
comboios de Santa Apolónia e sempre que
via algum civil sentia-me um verdadeiro
R. - A recruta começou duas semanas
extraterrestre. Quando vi os meus pais
depois de ter recebido a notícia e só me
nem queria acreditar que estava de volta!
despedi no dia antes de ter ido para a
margem Sul, onde esta se viria a realizar.
A reacção da minha mãe foi bem diferente
P. - Sentiu dificuldades durante os meses
que passou na recruta?
da minha. Não achou que eu era um
extraterrestre, mas implorou-me que não
voltasse para a recruta por ter visto as
minhas mazelas físicas e psicológicas. O
meu pai apoiou-me novamente e
incentivou-me a voltar. Recordo-me de ele
ter dito que eu era suficientemente forte
para aguentar e que iria conseguir. Depois
desse dia, a minha mãe nunca mais me
levou à estação. Preferia evitar o
sofrimento de me ver partir.
P. – Quanto aos meses de recruta, tem
alguma história que a tenha marcado?
R. - Os meses de recruta são, sem sombra
de dúvida, os tempos mais complicados de
uma carreira académica militar. Somos
sujeitos a testes físicos e psicológicos
extremamente difíceis nos quais os nossos
limites emocionais são levados ao extremo.
Por outro lado, são tempos em que
ganhamos um sentido humano, de
camaradagem e entreajuda que jamais
poderíamos ganhar no ensino civil.
Uma outra história que não esquecerei é
de uma aula de Educação Física, na qual o
formador, quando estávamos a exercitar
numa pista de obstáculos, nos disse (às
mulheres) que nunca, em dez anos,
nenhuma mulher tinha conseguido
ultrapassar aquele obstáculo. Na altura
pensei que iria conseguir. A primeira
tentativa falhou. Pedi para repetir e não fui
autorizada. Após todas as mulheres terem
tentado, sem sucesso, pedi novamente se
poderia repetir o exercício. O formador
com um sorriso sarcástico disse “”podes
tentar, mas não vais conseguir”. Na altura
senti tanta raiva que tive a certeza que iria
conseguir. E assim foi! Esta é uma prova de
que o nosso estado psicológico é
preponderante em todas as ocasiões da
nossa vida. Nem o facto de sentir que não
havia expectativas positivas na minha
execução me fez desistir. Actualmente,
sempre que sinto alguma dificuldade
recordo-me desse episódio.
Eram dias extremamente cansativos e
exigentes. Recordo-me de uma noite em
que estávamos a dormir e, por volta das
P. - O que fez quando terminou a recruta?
duas horas, fomos brutamente acordadas.
Exigiram que saíssemos de fato de
R. - Jurei bandeira e ingressei no curso de
ginástica e quando chegámos ao exterior
Comunicações na Escola de Tecnologias
ordenaram-nos que voltássemos ao coté
Navais (ETNA).
para trocar o fato de ginástica pelo de
exercício. A situação repetiu-se
P. - Em que consistia o curso de
“Nessa altura perdi os
cerca
de
quatro
vezes
Comunicações?
sentidos.”
consecutivas. Passámos a noite
R. - O curso consistia na
a fazer exercício físico em
aprendizagem de métodos visuais, escritos
completa
escuridão.
Estava
e
sonoros
que
proporcionam
a
completamente apavorada.
comunicação entre navios militares,
Exercício terminado, tivemos que formar
mercantes, civis e pesqueiros. Tive cerca de
diante do comandante de batalhão para
20 disciplinas, entre as quais, Organização,
este nos ser apresentado. Nessa altura
Reconhecimento visual, Procedimentos
perdi os sentidos. Só me recordo de
Radiotelefónicos, Informática, Educação
acordar já no coté, de manhã. Foi a
Física, Natação, Segurança, Cifra, Morse
experiência
mais
assustadora
e
acústico, visual e escrito, Inglês…
traumatizante. Após essa noite, sempre
que ouvia um mínimo ruído acordava
sobressaltada.
P. - Caso as notas não fossem as mais
satisfatórias, poderiam sofrer algum tipo
de sanção?
R. - Sim, mas não no mesmo pólo.
Anteriormente estava em Alfeite e agora
estou no pólo de Monsanto.
R. - Sim. Os castigos eram variadíssimos.
Quem tivesse notas abaixo das desejadas
pelos formadores podia ficar detido
durante o fim-de-semana ou fazer serviços
extra ao departamento. Havia ainda
castigos colectivos, nos quais poderíamos
ter que marchar em acelerado, fardados e
ao sol durante toda a hora de almoço.
Noutros casos poderiam mandar a turma
capinar (limpar valetas).
P. - Continua, portanto, a trabalhar com a
Radiodifusão?
P. - Alguma vez sofreu um desses
castigos?
R. - Relativamente às notas não. Sempre fui
a melhor aluna da turma, modéstia à parte.
Sofri várias vezes castigos colectivos pois
bastava um aluno não obedecer às regras
que todos padecíamos por isso.
P. - Findo o curso, o que teve que fazer?
R. - Após ter terminado o curso fiz estágio
no Centro de Comunicações Dados e Cifra
da Marinha (CCDCM) durante duas
semanas. Foi nessa altura que pus em
prática o que tinha sido leccionado na
Escola de Tecnologias Navais (ETNA), mais
especificamente no Departamento de
Comunicações e Sistemas de Informação
(DCSI).
P. - Após o estágio foi encaminhada para
algum serviço específico?
R. - Sim, fui trabalhar para a Radiodifusão,
sistema de comunicações terra-navio, que
pertence ao Centro de Comunicações do
CCDCM.
P. - É ainda no CCDCM que presta
serviços?
R. - Não. Agora exerço funções na central
transmissora onde opero antenas,
emissores, fonia em HF e VHF e um sistema
designado MMHS. Mais especificamente
associo cada emissor a uma antena e
oriento-a para a posição do navio que
necessita de uma determinada frequência
para estabelecer comunicações. Dou ainda
as informações meteorológicas em
Português e em Inglês, em dois períodos
do dia, e tenho também que prestar
atenção a qualquer pedido de auxílio
através do canal e frequência internacional
de socorro.
P. - Alguma vez foi destacada para outra
unidade?
R. - Em linguagem militar, afirmativo! Fui
destacada para o Centro de Comunicações
da Madeira (CCMA), no qual a comissão
duraria dois anos.
É importante referir que os destacamentos
na Marinha não são de decisão opcional. É
obrigatório aceitar. Porém, tive uma
camarada que demonstrou interesse em
fazer permuta comigo. No caso, ela foi para
o CCMA e eu permaneci no lugar dela no
CCDCM.
P. - Caso não tivesse surgido essa
oportunidade, como teria reagido?
R. - Mal! Quando me falaram no
destacamento nem queria acreditar.
Seriam dois anos longe de todas as pessoas
importantes para mim e não saberia como
superar essa saudade. Só estaria
autorizada a vir ao continente de três em
três meses.
P. - Essa situação fê-la pensar que poderia
estar a seguir uma carreira que não era
realmente aquela com que sonhava?
R. - Talvez. Pela vivências e pelo que
aprendi não estou, de todo, arrependida.
Por outro lado, sinto que foi uma perda de
tempo porque o meu sonho não passa pela
carreira militar. Neste momento, tenho
ainda um ano de serviço para cumprir e o
meu objectivo não é o mesmo que há dois
anos. Penso que me sentiria mais realizada
se tivesse aproveitado as oportunidades de
terminar o ensino secundário e ingressar
no ensino superior.
P. - Actualmente, tem o sentimento de
dever cumprido?
R. - Sim. Continuo a exercer aquilo a que
me propus, apesar de já estar numa fase
mais madura da minha vida e de saber que
tenho outras ambições de futuro.
P. - Luta, agora, pelas suas verdadeiras
ambições?
R. - Sim. Este período da minha vida deu
para amadurecer e para aprender que
nunca se pode desistir do que queremos e
que é preciso lutar, lutar e lutar. Fica ainda
a mensagem de que o prazer de uma tarde
a fazer skimming não compensa o tempo
que se perde depois a tentar compensar os
erros da juventude.
Abril de 2010