l`o sse rvator e romano - Paróquia Nossa Senhora da Conceição

Transcrição

l`o sse rvator e romano - Paróquia Nossa Senhora da Conceição
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L’OSSERVATORE ROMANO
EDIÇÃO SEMANAL
Unicuique suum
EM PORTUGUÊS
Non praevalebunt
Cidade do Vaticano
Ano XLVII, número 30 (2.424)
quinta-feira 28 de julho de 2016
Durante o voo rumo a Cracóvia para a Jmj Francisco falou dos últimos acontecimentos dramáticos
Não é uma guerra
de religião mas de interesses
O Papa Francisco está em Cracóvia.
Recebido por centenas de milhares
de jovens provenientes do mundo
inteiro para a trigésima primeira jornada mundial da juventude, o Pontífice chegou na tarde do dia 27 de julho àquela cidade polaca, primeira
meta da viagem — a décima quinta
realizada por Francisco fora das
fronteiras italianas — que o levará
também a Częstochowa e a Auschwitz, e que se concluirá no domingo 31.
«Vivamos juntos a Jmj de Cracóvia» escreveu num tweet lançado pelo account @Pontifex poucos minutos antes de partir de Fiumicino.
Precedentemente, o Pontífice desejou fazer uma oração junto do túmulo de João Paulo II, na basílica
vaticana, acompanhado por um grupo de crianças e adolescentes doentes de tumor assistidos pela associação Peter Pan onlus. Outro momento significativo de oração, realizou-se
no final da tarde de terça-feira,
quando o Pontífice foi à basílica de
Santa Maria Maior a fim de rezar
diante da imagem da Salus populi
Romani, confiando-lhe esta viagem.
Durante o voo, saudando como é
habitual os jornalistas e referindo-se
à atual situação mundial, o Pontífice, retomando as palavras do padre
Lombardi, disse que «uma palavra
que se repete muito é “insegurança”.
Diante do mal
GIOVANNI MARIA VIAN
Assustam e enchem de dor as notícias que se vão multiplicando do
último ataque atroz, reivindicado
pelo autoproclamado Estado islâmico, a inocentes reunidos para rezar.
Na França setentrional, na paróquia
de uma pequena cidade como tantas, um sacerdote idoso com 84
anos, padre Jacques Hamel, foi assassinado sem piedade, como o servo sofredor descrito pela antiga
profecia judaica, e um fiel gravemente ferido; depois os dois responsáveis deste ato horrendo e ignóbil foram mortos pelas forças se
segurança.
Ainda sangue, sangue sobre sangue, que se acrescenta ao que foi
derramado em muitos lugares, desde há muito tempo, mas sobretudo
no Médio e no Próximo Oriente, na
África, agora também na Europa,
muitas vezes ostentando e portanto
profanando abertamente o nome de
Deus, contudo ofendido e ferido todas as vezes que se mata um ser humano. «A voz do sangue do teu irmão brada até mim da terra» exclama Deus na dor estupefacta diante
do assassínio de Abel, numa das
narrações que estão na base das
crenças monoteístas, demasiadas vezes erradamente consideradas responsáveis de violências e guerras.
Deve ser dito e repetido mais
uma vez, com a maioria dos representantes religiosos de todas as
crenças, que as religiões em si não
estão na origem da violência, mas
ao contrário, que nelas existem as
Angelus de domingo
Violência contra
inocentes
PÁGINA 3
Padre Jacques Hamel
sementes da convivência e da paz.
Sementes que podem e devem ser
cuidadas e cultivadas por todos os
seres humanos que professam uma
crença religiosa, juntamente com
cada mulher e homem de boa vontade. Contudo, não se devem fechar os olhos face às instrumentalizações violentas da religião: o ódio
semeado para fomentar o confronto
entre culturas e religiões evocando
e agitando fantasmas do passado
deve ser de todas as maneiras rejeitado e prevenido por todos.
Um site laico observou que a
igreja onde o padre Hamel foi assassinado está dedicada a santo Estêvão, o primeiro mártir de Cristo,
e pode-se acrescentar que o idoso
sacerdote se chamava como o apóstolo Tiago, também ele testemunha
da fé até ao sangue. Diante do mal
infligido a resposta dos cristãos só
pode ser a do seu Senhor e dos
mártires de todos os tempos. Recordou abalado o arcebispo da diocese tão cruelmente atingida, que
decidiu regressar de Cracóvia, onde
inicia nestas horas a jornada mundial da juventude, para estar com
os seus fiéis. Jornada convocada no
sinal da misericórdia, coração do
Evangelho, como repete sem se
cansar o Papa que reza e desta maneira está próximo das vítimas, de
cada vítima.
Mas a palavra verdadeira é “guerra”.
Desde há tempos que vimos dizendo: “o mundo está em guerra aos
pedaços”. Esta é guerra. Talvez não
seja tão orgânica (organizada, sim;
digo… orgânica), mas é guerra. Este
santo sacerdote [padre Jacques Hamel], que foi morto mesmo no momento em que oferecia a oração por
toda a Igreja, é um; mas quantos
cristãos, quantos inocentes, quantas
crianças... Pensemos na Nigéria, por
exemplo. “Mas aquela é África...”. É
guerra. Não tenhamos medo de dizer esta verdade: o mundo está em
guerra, porque perdeu a paz».
«Muito obrigado pelo vosso trabalho — disse aos jornalistas — nesta
Jornada da Juventude! A juventude
sempre nos fala de esperança. Esperemos que os jovens nos digam algo
que nos dê um pouco mais de esperança, neste momento».
«A propósito do facto de ontem —
prosseguiu — gostaria também de
agradecer a todos aqueles que me fizeram chegar as suas condolências,
de modo especial ao Presidente da
França que me quis telefonar, como
um irmão. Agradeço-lhe». E acrescentou que «gostaria ainda de dizer
uma palavra para esclarecer. Quando
falo de guerra, falo de guerra a sério, não de guerra de religião. Há
guerra de interesses, há guerra por
dinheiro, há guerra pelos recursos da
natureza, há guerra pelo domínio
dos povos: esta é a guerra. Alguém
poderia pensar: “Está a falar de
guerra de religião”. Não. Nós de todas as religiões queremos a paz. A
guerra, querem-na os outros. Entendido?».
Entrevista ao secretário de Estado
Caminho
de misericórdia
PÁGINA 2
Sobre a «Amoris laetitia»
Fidelidade criativa
PÁGINAS 6
E
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NA PÁGINA
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«Vultum Dei quaerere»
A formação é o futuro
NICOLA GORI
L’OSSERVATORE ROMANO
página 2
quinta-feira 28 de julho de 2016, número 30
Entrevista ao secretário de Estado sobre a viagem à Polónia
Caminho
de misericórdia
Publicamos a transcrição da entrevista ao secretário de Estado, cardeal
Pietro Parolin, realizada pelo Centro
televisivo do Vaticano por ocasião
da viagem do Pontífice à Polónia,
de 27 a 31 de julho, para as celebrações da jornada mundial da juventude.
ALESSANDRO DI BUSSOLO
O Papa encontrar-se-á com os jovens
de todo o mundo em Cracóvia, cidade
de são João Paulo II, criador das Jmj.
Retomará os temas principais do magistério de Karol Wojtyła para os jovens?
O Papa Francisco por-se-á no
mesmo caminho iniciado por João
Paulo II e depois, naturalmente, percorrido também por Bento XVI. Um
caminho com os jovens, uma vereda
de fé, esperança e caridade. Uma via
com uma meta, que é sempre a mesma, isto é, o encontro com Jesus
Cristo: eis a proposta que o Papa
continuará a fazer a todos os jovens
que participarem na Jornada mundial. Um caminho que tem um mapa — o Evangelho — e o ensinamento — o magistério da Igreja — e também um pão, um nutrimento, que é
a Eucaristia. Portanto, mudam os cenários, obviamente são diversos os
continentes, os países, mas digamos,
o caminho continua, há uma continuidade nesta estrada. E parece-me
que no que diz respeito ao magistério de João Paulo II podemos evidenciar também o facto de que esta
jornada mundial da juventude se insere no coração do Ano santo da misericórdia. Dizer misericórdia significa fazer referência a uma parte fundamental da herança magisterial e
espiritual do Papa Wojtyła, de são
João Paulo II, que dedicou uma das
suas primeiras encíclicas, Dives in
misericordia, precisamente à realidade
da misericórdia, e depois promoveu
muitas iniciativas para evidenciar este aspeto, seria suficiente recordar a
canonização de santa Faustina, no
Ano santo, e ainda a instituição do
Domingo da divina misericórdia, in
albis, segundo Domingo de Páscoa.
Por conseguinte João Paulo II frisou
este aspeto, que será retomado precisamente pelo Papa Francisco durante esta jornada, a fim de acender a
centelha da misericórdia nos corações dos jovens, e fazer com que o
fogo da misericórdia se espalhe em
todo o mundo segundo o tema da
jornada: «Bem-aventurados os misericordiosos porque encontrarão misericórdia».
Cracóvia é também a cidade de santa
Faustina Kowalska, a apóstola da divina misericórdia. A passagem pela
porta santa em Łagiewniki será um
dos momentos importantes deste jubileu?
Sem dúvida, precisamente na dimensão deste vínculo com o tema da
divina misericórdia. O Papa disse
claramente, inclusive na mensagem
enviada aos jovens que participarão,
que esta passagem será um caminhar
ao encontro de Jesus Cristo e um
deixar-se olhar por ele, um encontrar o seu olhar misericordioso, para
lhe poder dirigir com toda a confiança e abnegação a oração que
santa Faustina nos ensinou «Jesus,
confio em ti». Diria que esta será
também a experiência do Papa: ele
será o primeiro a realizar esta experiência de encontro pessoal com o
Senhor, esta experiência da divina
misericórdia. Portanto, o Papa visitará o santuário da divina misericórdia
e ali ouvirá algumas confissões, exercerá o ministério da misericórdia, rezará também nos lugares onde santa
Faustina viveu, sobretudo na capela
onde teve a maior parte das suas visões e escreveu os seus diários dos
quais nasceu precisamente esta particular espiritualidade de Jesus misericordioso, e depois, juntamente com
os peregrinos, passará pela Porta
santa.
O Papa volta ao coração da Europa e
com a Polónia visita o primeiro grande
país europeu depois da viagem a Estrasburgo. Qual mensagem lançará ao
continente?
Esta é uma viagem à Jornada
mundial da juventude, portanto imagino que o Papa não se dirigirá só à
Polónia, país que hospeda esta iniciativa, nem à Europa, porque diante de si estarão os jovens representantes do mundo inteiro. Mesmo se
é verdade que esta jornada se realiza
num país que está no coração do
continente e penso que a maior parte dos jovens participantes provenham sobretudo da Europa. No que
diz respeito à Europa o Papa repetirá a estes jovens, penso, a mensagem
que já expressou ao Parlamento de
Estrasburgo e depois por ocasião da
entrega do prémio Carlos Magno.
Diria que se pode resumir esta mensagem em duas palavras: uma mensagem de esperança, face ao futuro
da Europa, e também aos muitos desafios que são postos diante da construção europeia; e uma mensagem
de coragem, no sentido de redescobrir as autênticas raízes cristãs da
Europa, que permitiram que a Europa se tornasse o que é. O Papa recordava sobretudo este espírito humanista que sempre a caracterizou e,
ao mesmo tempo, também a coragem que significa saber anunciar o
Evangelho nas mudadas condições
de vida nas quais se encontra e dian-
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GIOVANNI MARIA VIAN
diretor
Giuseppe Fiorentino
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Jan Komski, «Chegada a Auschwitz»
te das grandes questões que deve enfrentar diariamente, sobretudo o
problema das grandes pobrezas, tanto espirituais como materiais.
criativa e aberta para encontrar modalidades novas inclusive para responder a estes problemas novos.
Em Częstochowa diante da Nossa Senhora negra, Francisco recordará o
1050º aniversário do batismo da Polónia. A comunidade católica polaca ainda é testemunha fiel e corajosa desta fé,
ou o secularismo está a aumentar?
Os horrores de Auschwitz e Birkenau e
os sofrimentos dos pequenos doentes do
hospital pediátrico de Cracóvia. Sentindo de perto os sofrimentos de ontem e
de hoje, recordará o Papa o testemunho
de quem deu a vida pelos outros, como
são Maximiliano Kolbe?
Sinto-me muito feliz por este facto, porque o Santo Padre me privilegiou com a nomeação em abril passado como seu legado, por ocasião
da mesma circunstância e por conseguinte estive em Poznań e em Gniezno e presidi às celebrações pelos
1050 anos de batismo da Polónia,
que num certo sentido completam o
que faltou na celebração do milénio
quando, dada a situação política, foi
impedido que Paulo VI participasse
como tinha desejado fervorosamente.
Portanto haverá quase uma continuidade com esta celebração de há 50
anos, e é uma comemoração antes
de tudo de ação de graças: o Papa
vai dar graças, juntamente com a
Igreja polaca, com os pastores e
fiéis, por estes mil anos de fé cristã,
e diria também pelo que aconteceu
nestes últimos 50 anos: a redescoberta da liberdade e da possibilidade de
exprimir livremente a própria fé.
Acredito que a Igreja polaca, pelo
que pude ver também durante a visita que realizei e nas precedentes, é
uma Igreja ainda vigorosa, viva, que
unida aos seus pastores continua a
testemunhar a fé também nas diversas circunstâncias atuais. Há muitas
famílias boas, muitos jovens que se
comprometem na formação e na vida cristã, há o impulso missionário e
o desejo de apostolado. Ainda há
vocações à vida sacerdotal e religiosa. Portanto um tecido que fundamentalmente ainda se mantém; sem
dúvida é chamado a responder aos
novos desafios e como o senhor recordou antes, o desafio principal é o
secularismo, a perda do sentido de
Deus e viver como se Deus não existisse nas nossas sociedades. Neste
sentido a Igreja polaca deverá ser
É interessante que o Papa, desde
o início, quando se programava esta
viagem, desejou estes dois momentos, que eu definiria como o lugar
do horror e da dor. O lugar do horror, Auschwitz e Birkenau, o testemunho de são Maximiliano Kolbe, o
holocausto do povo judeu, mais horror do que isto! E é uma presença
que significa sobretudo uma evocação, uma chamada silenciosa, porque o Papa não pronunciará discursos nessas circunstâncias. Penso que
diante dos horrores o silêncio às vezes é mais eloquente do que as palavras. E a recordação de todas estas
vítimas do ódio e da loucura humana, para recordar que também hoje
infelizmente existem situações de
violência, de desprezo da vida humana, da pessoa, situações nas quais
se fomenta a divisão, situações nas
quais se usa o terror, o terrorismo,
para interesses pessoais ou para a
construção de interesses económicos
e políticos. Por outro lado, o hospital como proximidade à dor das pessoas. O Papa evoca com frequência
que a Igreja deve estar próxima, a
Igreja deve ser o próximo de todos
os que se encontram no sofrimento.
Quem mais do que as crianças doentes se encontra nesta situação de necessidade de ter alguém perto, como
o bom samaritano? Penso que a visita ao hospital tem precisamente este
significado. O Papa realizou outras.
Lembro-me que no México, pareceme, quando visitou outro hospital
pediátrico falou sobre a terapia do
afeto, a afetoterapia. Também desta
vez usará a mesma terapia e exortará
todos nós a fazê-lo, a estas crianças
e a quantos sofrem.
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número 30, quinta-feira 28 de julho de 2016
No Angelus dedicado à oração o Papa falou da
página 3
JMJ
Jovens do mundo rumo a Cracóvia
Pesar pelos atentados de Munique e Kabul
«A oração é o primeiro e principal
“instrumento de trabalho” nas nossas
mãos. Recordou o Papa Francisco no
Angelus de domingo 24 de julho na
praça de São Pedro, comentando o
trecho evangélico de Lucas (11, 1-13)
dedicado ao Pai-Nosso.
Queridos irmãos e irmãs, bom dia!
O Evangelho deste domingo (Lc 11,
1-13) tem início com o episódio no
qual Jesus reza sozinho, separadamente; quando acaba, os discípulos
pedem-lhe: «Senhor, ensina-nos a
rezar» (v. 1); e Ele responde: «Quando orardes, dizei: “Pai...”» (v. 2). Esta palavra é o «segredo» da oração
de Jesus, é a chave que Ele mesmo
nos oferece a fim de podermos en-
As relíquias da santa
Maria Madalena
na Polónia
Maria Madalena entre os padroeiros dos jovens que participam na
Jmj em Cracóvia: os organizadores decidiram inserir o nome da
«apóstola dos apóstolos» — da
qual no dia 22 de julho a Igreja
celebrou a nova festa litúrgica desejada pelo Papa Francisco — entre aqueles aos quais os jovens
podem dirigir-se em oração durante os dias que passarem na Polónia.
Para a ocasião as relíquias da
santa, provenientes de FréjusToulon (França), foram levadas
por voluntários dominicanos à cidade polaca e ali expostas na
igreja franciscana de São Casimiro.
Venerada como «testemunha
da misericórdia», Maria Madalena não é a única santa cujas relíquias serão expostas à veneração
dos jovens em Cracóvia. Com
efeito, também as dos padroeiros
oficiais da trigésima primeira Jmj,
Faustina Kowalska, João Paulo II
e Maximiliano Kolbe, mártir em
Auschwitz. E da Itália, também
nesta edição como já aconteceu
no passado, foram levadas as relíquias do beato Piergiorgio Frassati que, na Polónia desde meados
de julho, passaram em peregrinação por diversas dioceses e no dia
23 chegou à sede da Jmj, acolhidas no mosteiro dominicano da
rua Stolarskiej. «Piergiorgio era
um jovem — escreveu o Papa
Francisco em setembro na tradicional mensagem de convite à Jmj
— que compreendeu o significado
de ter um coração misericordioso,
sensível aos mais necessitados. A
eles doava muito mais do que
coisas materiais; doava-se a si
mesmo, dedicava-lhes tempo, palavras e capacidade de escuta.
Servia os pobres com grande discrição, sem se pôr em mostra».
Enfim, um jovem — falecido com
24 anos — será proposto como
modelo aos seus coetâneos.
trar também nós na relação de diálogo confidencial com o Pai que
acompanhou e amparou toda a sua
vida.
Ao apelativo «Pai» Jesus associa
duas solicitações: «santificado seja o
vosso nome, venha a nós o vosso reino» (v. 2). Portanto a oração de Jesus — a oração cristã — é antes de
tudo dar lugar a Deus, deixando
que ele manifeste a sua santidade em
nós, fazendo com que se aproxime o
seu reino, a partir da possibilidade
de exercer o seu senhorio de amor
na nossa vida.
Outros três pedidos completam
esta oração que Jesus ensina, o «PaiNosso». Três solicitações que exprimem as nossas necessidades fundamentais: o pão, o perdão e a ajuda
contra as tentações (cf. vv. 3-4). Não
podemos viver sem pão, sem perdão,
sem a ajuda de Deus contra as tentações. O pão que Jesus nos ensina a
pedir é o necessário, não o supérfluo; o pão dos peregrinos, o justo,
um pão que não se acumula nem se
desperdiça, que não pesa durante a
nossa marcha. O perdão, antes de tudo, é aquele que nós mesmos recebemos de Deus: só a consciência de
sermos pecadores perdoados pela infinita misericórdia divina pode tor-
nar-nos capazes de realizar gestos
concretos de reconciliação fraterna.
Se uma pessoa não se sente pecadora perdoada, nunca poderá fazer um
gesto de perdão nem de reconciliação. Começa-se pelo coração, onde
nos sentimos pecadores perdoados.
O último pedido, «não nos deixeis
cair em tentação», exprime a consciência da nossa condição, sempre
exposta às insídias do mal e da corrupção. Todos sabemos o que é uma
tentação!
O ensinamento de Jesus sobre a
oração prossegue com duas parábo-
Carta da presidente da Ucei
Silêncio como um trovão
NOEMI DI SEGNI
Caríssimo Papa Bergoglio!
O destino quer que uma terra
bendita nos una nos sentimentos e
nas intenções, a Terra de Israel.
Mas, ao mesmo tempo, e com
imenso sofrimento, o destino quis
que houvesse também uma terra
maldita, a dos campos de extermínio, onde no coração da Europa,
nos anos do Shoah foram exterminados milhões de inocentes.
Escrevo-lhe, em nome dos judeus italianos, poucos dias antes
da sua visita ao campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau.
Um evento muito esperado, que
chamará a atenção de milhões de
pessoas para a página obscura da
história que é uma ferida aberta no
coração da Europa e continua a
questionar as consciências de todos
os cidadãos preocupados, do fundo
do coração, com a defesa da paz,
da liberdade e da democracia.
Gostaria de lhe dizer que apreciei muito a sua escolha de não
pronunciar um discurso formal mas
concentrar a emoção desta visita,
tão significativa, num longo e intenso silêncio. Uma forma de oração que clama e fará eco, tenho
certeza, aos gritos e à dor das muitas crianças, mães, jovens, homens
que daquela terra nunca voltaram.
Uma sua oração que, unida às
muitas nossas, transformará aquela
terra de sofrimento em lugar de
culto.
A sua visita torna-se o emblema
de um percurso introspetivo de redescobertas e defesa de valores
mais profundos — respeito pelo outro e pela vida — que hoje novos e
terríveis inimigos parecem pôr em
questão juntamente com as formidáveis conquistas que a Itália, a
Europa e o mundo inteiro souberam realizar a partir do pós-guerra.
Fruto de um pacto entre gerações
nascido precisamente das cinzas de
Auschwitz-Birkenau e de outros lugares de morte daquela época, a
democracia, a integração europeia
e a existência de Israel são a prova
do longo caminho percorrido a fim
de não esquecer a dramática lição
do Shoah e para garantir a todos,
sem excluir ninguém, um futuro
próspero e melhor.
Nunca como hoje as religiões e
os seus líderes são chamados a ser
um exemplo para todos os cidadãos, prescindindo de cada pertença ideal, espiritual e cultural.
Por conseguinte, à sua espera
tem um longo caminho de compromisso e colaboração na consciência
de que os elementos que nos unem
são mais numerosos e significativos
do que os que nos dividem. Só assim as terras malditas do extermínio e do ódio poderão assumir a
santidade de todos os mártires que
em nome do amor e da tolerância
aí sacrificaram a própria vida.
Bendita seja a nossa recordação.
*Presidente da União
das comunidades judaicas italianas
las, com as quais Ele cita a atitude
de um amigo em relação a outro
amigo e a de um pai em relação ao
seu filho (cf. vv. 5-12). Ambas pretendem ensinar-nos a ter plena confiança em Deus, que é Pai. Ele conhece melhor do que nós as nossas
necessidades, mas quer que lhas
apresentemos com audácia e com insistência, porque este é o nosso modo de participar na sua obra de salvação. A oração é o primeiro e principal «instrumento de trabalho» nas
nossas mãos! Insistir com Deus não
serve para o convencer mas para fortalecer a nossa fé e a nossa paciência, isto é, a nossa capacidade de lutar juntamente com Deus pelo que é
deveras importante e necessário. Na
oração somos dois: Deus e eu, lutando juntos pelo que é importante.
Entre as coisas mais importantes
que Jesus diz hoje no Evangelho, há
uma, na qual quase nunca pensamos, é o Espírito Santo. «Concedeime o Espírito Santo!». E Jesus diz:
«Se vós, pois, sendo maus, sabeis
dar boas coisas aos vossos filhos,
quanto mais o vosso Pai celestial dará o Espírito Santo aos que lho pedirem!» (v. 13). O Espírito Santo!
Devemos pedir que o Espírito Santo
venha a nós. Mas para que serve o
Espírito Santo? Para viver bem, com
sabedoria e amor, fazendo a vontade
de Deus. Que bonita oração seria,
nesta semana, se cada um de nós pedisse ao Pai: «Pai, concedei-me o
Espírito Santo!». Nossa Senhora demonstra-o com a sua existência, inteiramente animada pelo Espírito de
Deus. Que ela nos ajude a pedir ao
Pai, unidos a Jesus, para viver não
de maneira mundana, mas segundo
o Evangelho, guiados pelo Espírito
Santo.
Depois da oração mariana, o Pontífice
expressou a sua dor por causa dos
atentados de Munique e Kabul e pediu
aos fiéis para o acompanhar com a
oração durante a próxima viagem à
Polónia por ocasião da trigésima
primeira jornada mundial da
juventude.
Nestas horas o nosso espírito foi de
novo abalado por tristes notícias relativas a deploráveis atos de terrorismo e de violência, que causaram dor
e morte. Penso nos dramáticos eventos de Munique na Alemanha e de
Kabul no Afeganistão, nos quais
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quinta-feira 28 de julho de 2016, número 30
Aimee Perez
«Maria Madalena» (detalhe)
ROBERT SARAH*
A 22 de julho, por decisão do Papa
Francisco e no ano da misericórdia,
celebramos santa Maria Madalena
como festa litúrgica. O novo prefácio, intitulado De apostolorum apostola («apóstola dos apóstolos»), seguindo Rábano Mauro e são Tomás
de Aquino, apresenta a santa amada
pelo Senhor como testis divinae misericordiae («testemunha da divina misericórdia»), primeira mensageira
que anunciou aos apóstolos a ressurreição do Senhor (cf. João Paulo II,
Mulieris dignitatem, 16). Pretendo
analisar duas atitudes da santa que
estão no centro do novo prefácio e
dos textos da missa e que podem
ajudar todos os cristãos, homens e
mulheres, a aprofundar a tarefa de
seguidores de Cristo: a adoração e a
missão.
No prefácio apresenta-se a Madalena que amou apaixonadamente
Cristo enquanto estava viva, que o
viu morrer na cruz, o procurou
quando jazia no sepulcro e foi a primeira que o adorou ressuscitado dos
mortos. O texto ressalta que a santa,
honrada com a missão de ser apóstola dos apóstolos, anuncia a boa
nova de Cristo aos apóstolos, que
por sua vez difundiram esta notícia
até aos confins da terra.
É o amor que caracteriza a vida
de Maria Madalena. Amor apaixonado, como recordam as duas leituras possíveis da missa: «Procurei o
meu amado; procurei, porém não o
encontrei. Levantar-me-ei, pois, e rodearei a cidade; pelas ruas e pelas
praças buscarei aquele a quem ama a
minha alma» (Ct 3, 1-2), porque «o
amor de Cristo nos constrange» (2
Cor 5, 14). Um amor que leva a procurar o Senhor, como cantam o salmo responsorial e o prefácio da fes-
Primeira festa litúrgica desejada pelo Papa Francisco
Testemunha
da divina misericórdia
ta: «Ó Deus, tu és o meu Deus; de
madrugada te buscarei; a minha alma tem sede de ti; a minha carne te
deseja muito numa terra seca e cansada, onde não há água» (Sl 63, 1).
Por isso, dilexerat viventem e quaesierat in sepulcro iacentem («amou-o
quando estava vivo» e «procurou-o
quando jazia no sepulcro»). Com
efeito, «foi ao sepulcro de madrugada, sendo ainda escuro» (Jo 20, 1).
É o amor que deve caracterizar a
nossa vida de cristãos, de verdadeiros amigos de Jesus. Um amor que
nos leva a procurar o Senhor. É este
o único programa válido para a
Igreja, como recordava João Paulo
II: «não se trata de inventar um
“programa novo”. O programa já
existe: é o mesmo de sempre, expresso no Evangelho e na Tradição
Jovens do mundo rumo a Cracóvia
CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 3
perderam a vida numerosas pessoas
inocentes.
Sinto-me próximo dos familiares
das vítimas e dos feridos. Convidovos a unir-vos à minha oração a
fim de que o Senhor inspire propósitos de bem e de fraternidade em
todos. Quanto mais insuperáveis
parecerem as dificuldades e obscuras as perspetivas de segurança e
paz, tanto mais insistente deve ser
a nossa oração.
Queridos irmãos e irmãs!
Nestes dias muitos jovens, de todas
as partes do mundo, encaminhamse rumo a Cracóvia, onde terá lugar a trigésima primeira Jornada
Mundial da Juventude. Também
eu partirei na próxima quarta-feira
para me encontrar com estes jovens
e celebrar com eles e para eles o
Jubileu da Misericórdia, com a intercessão de são João Paulo II. Peço-vos que me acompanheis com a
oração. Desde já saúdo e agradeço
a quantos estão a trabalhar para receber os jovens peregrinos, com
numerosos bispos, sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos.
Dirijo um pensamento especial
aos seus numerosos coetâneos que,
não podendo estar presentes, seguirão o evento através dos meios
de comunicação. Estaremos todos
unidos na oração!
E agora saúdo-vos, queridos peregrinos provenientes da Itália e de
outros países. Em particular os de
São Paulo e de São João da Boa
Vista, no Brasil; o Coro «Giuseppe
Denti» de Cremona; e os participantes na peregrinação de bicicleta
de Piumazzo a Roma, enriquecida
pelo compromisso de solidariedade. Saúdo os jovens de Valperga e
Pertusio Canavese, Turim: continuai a viver e não a ir vivendo, como escrevestes na vossa t-shirt.
A todos desejo um bom domingo. E por favor não vos esqueçais
de rezar por mim. Bom almoço e
até à vista!
viva. Concentra-se, em última análise, no próprio Cristo, que temos de
conhecer, amar, imitar, para n’Ele viver a vida trinitária e com Ele transformar a história até à sua plenitude
na Jerusalém celeste. É um programa que não muda com a variação
dos tempos e das culturas, embora
se tenha em conta o tempo e a cultura para um diálogo verdadeiro e
uma comunicação eficaz. Este programa de sempre é o nosso programa para o terceiro milénio» (Novo
millennio ineunte, 29).
Procurar Cristo para o amar, como fez Maria Madalena. Nisto ajudam-nos as palavras do Papa Francisco quando nos confidencia: «Como é doce permanecer diante de um
crucifixo ou de joelhos diante do
Santíssimo Sacramento, e fazê-lo
simplesmente para estar à frente dos
seus olhos! Como nos faz bem deixar que Ele volte a tocar a nossa vida e nos envie para comunicar a sua
vida nova! Sucede então que, em última análise, “o que nós vimos e ouvimos, isso anunciamos”» (1 Jo 1,
3)» (Evangelii gaudium, 264). Procurar Cristo para o amar e dá-lo aos
outros. É o programa para a Igreja e
para cada um dos seus filhos.
Santa Maria Madalena procura o
Senhor e quando o encontra adorao. É a primeira que adora o Senhor,
como canta o prefácio: quaesirat in
sepulcro iacentem, ac prima adoraverat
a mortuis resurgentem. Em primeiro
lugar a adoração. Madalena recordanos a necessidade de recuperar a primazia de Deus e a primazia da adoração na vida da Igreja e na celebração litúrgica. Este era um objetivo
fundamental do concílio Vaticano II
e ainda hoje o continua a ser. Deus
deve ocupar o primeiro lugar, mas
isto não se pode dar por certo. João
Paulo II, no vigésimo quinto aniversário da Sacrosanctum concilium, recordava: nada de quanto fazemos na
liturgia pode parecer mais importante de quanto Cristo faz invisível,
mas realmente por obra do seu Espírito. A fé viva pela caridade, a adoração, o louvor ao Pai e o silêncio
de contemplação, serão sempre os
primeiros objetivos a alcançar para
uma pastoral litúrgica e sacramental» (Vicesimus quintus annus, 10).
Adorar Deus, como afirma o bispo de Roma, em «cada cerimónia litúrgica», o que é mais importante é
a adoração» e não «os cânticos e os
ritos», por mais bonitos que sejam:
«Toda a comunidade reunida olha
para o altar onde se celebra o sacrifício e se adora. Mas eu penso, digo
isto com humildade, que talvez nós
cristãos perdemos um pouco o sentido da adoração. E pensamos: vamos
ao templo, reunimo-nos como irmãos, e é bom, é agradável. Mas o
centro é onde está Deus. E nós adoramos Deus» (22 de novembro de
2013). O Papa pergunta: «Tu, eu,
adoramos o Senhor? Vamos ter com
Deus só para pedir, para agradecer,
ou vamos também para o adorar?
Que significa então ir ter com Deus?
Significa aprender a estar com ele, a
parar para dialogar com ele, sentindo que a sua presença é a mais verdadeira, a melhor, a mais importante
de todas» (14 de abril de 2013).
Meio século depois da Sacrosanctum concilium é ainda o Pontífice
quem nos recorda a necessidade de
dar a Deus o primeiro lugar: «Não
serve perder-se com tantas coisas secundárias ou supérfluas, mas concentrar-se na realidade fundamental,
que é o encontro com Cristo, com a
sua misericórdia, com o seu amor e
amar os irmãos como ele nos amou.
Um encontro com Cristo que é também adoração, palavra pouco usada:
adorar Cristo» (14 de outubro de
2013).
Maria Madalena é a primeira testemunha desta dúplice atitude, adorar Cristo e dá-lo a conhecer. Como
diz ainda o prefácio, seguindo o
evangelho do dia: prima adoraverat a
mortuis resurgentem, et eam apostolatus
officio coram apostolis honoravit ut bonum novae vitae nuntium ad mundi fines perveniret. «Vai ter com os meus
irmãos e diz-lhes que eu subo para
meu Pai e vosso Pai, meu Deus e
vosso Deus. Maria Madalena foi e
disse aos discípulos de Jesus: “Eu vi
o Senhor!”. E contou o que Jesus
lhe tinha dito» (Jo 20, 17-18).
Em síntese, trata-se de centrar a
nossa vida em Cristo e no seu Evangelho. Na vontade de Deus, despojando-nos dos nossos projetos para
poder dizer com são Paulo: «Já não
sou eu que vivo, é Cristo que vive
em mim» (Gl 2, 20). A apóstola dos
apóstolos, Maria Madalena, sai de si
mesma para ir ao encontro de Cristo
com a adoração e com a missão.
Nesta mesma linha afirma o Papa
Francisco: «Este “êxodo” de si mesmos significa pôr-se num caminho
de adoração e de serviço. Um êxodo
que nos leva a um caminho de adoração do Senhor e de serviço a ele
nos irmãos e nas irmãs. Adorar e
servir: duas atitudes que não se podem separar, mas que devem caminhar sempre juntas. Adorar o Senhor e servir os outros, nada retendo
para si» (8 de maio de 2013).
*Cardeal prefeito da Congregação
para o culto divino
e a disciplina dos sacramentos
número 30, quinta-feira 28 de julho de 2016
L’OSSERVATORE ROMANO
página 5
Meditações sobre Maria Madalena apóstola
Um olhar internacional
e ecuménico
«A recente iniciativa do Papa Francisco de elevar à dignidade de festa
a memória litúrgica de 22 de julho,
consagrada a Maria Madalena, foi
profética», lê-se no editorial de introdução do último número de
«Ihu», a revista brasileira do Instituto Humanitas Unisinos, inteiramente
dedicado a Maria de Magdala, apóstola dos apóstolos, com uma coleção
de textos variegada e rica, com um
forte cunho ecuménico.
Com efeito, as contribuições provêm do mundo inteiro; além dos
textos de duas estudiosas como
Wanda Deifelt, coordenadora do
Departamento de religião do Luther
College de Decorah no Estado de
Iowa, nos Estados Unidos, e Ivoni
Richter Rainer, teóloga luterana que
ensina na Pontifícia Universidade
Católica de Goiás, o número inclui
também artigos assinados por Marcela Zapata-Meza, arqueóloga bíblica e egiptóloga que ensina na universidade mexicana de Anáhuac e
trabalha nas escavações em Magdala, e do sacerdote jesuíta belga
Johan Konings, professor de estudos
bíblicos e exegese na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje)
de Belo Horizonte.
Há inclusive um artigo do autor
do livro intitulado Marie-Madeleine.
De la pécheresse repentie à l’épouse de
Jésus (Les Éditions du Cerf), Régis
Burnet, que ensina Novo Testamento na universidade católica de Lovaina. A memória de Maria Madalena
nunca esmorece, porque às mulheres
Jesus reserva um lugar que não se
encontra nos demais contextos religiosos. Por conseguinte, recuperando a memória desta personagem bíblica — põe em evidência o estudioso — o Papa Bergoglio volta a abrir
o debate na sociedade e na Igreja: o
gesto do Pontífice parece uma maneira de reconhecer o lugar, extraordinário para aquela época, que as
mulheres ocupavam ao lado de Jesus, «mas sobretudo um apelo a um
seu maior reconhecimento no seio
da Igreja de hoje». A liderança de
Maria Madalena — escreve a teóloga
Elizabeth Johnson, religiosa da congregação das Sisters of Joseph e docente de teologia na Fordham University of New York — desafia a
Igreja inteira a converter-se à participação das mulheres, como discípulas, a um nível de igualdade no século XXI. A pesquisa bíblica a partir
de uma perspetiva feminina torna
claro que inclusive a literatura bíblica nasceu num contexto patriarcal.
Portanto, os autores antigos prestavam atenção aos homens, sem ter
em conta figuras então consideradas
de menor importância como as mulheres ou escravos de sexo masculino.
Por conseguinte, se as mulheres
são citadas num determinado texto é
provável — na opinião da estudiosa
— que sejam importantes, a tal ponto que a história não poderia ser
narrada se elas fossem ignoradas; em
síntese, qualquer mulher mencionada nos livros da Bíblia deve ser con-
siderada como a ponta de um iceberg. Estes e outros instrumentos interpretativos fazem com que Maria
Madalena, chamada «apóstola dos
apóstolos», assuma finalmente o seu
lugar legítimo na história como discípula amada de Jesus, e protagonista de relevo na Igreja primitiva.
Seguem-se ainda artigos assinados
por Wilma Steagall De Tommaso,
do Museu de Arte Sacra de São
Paulo, por Salma Ferraz, professora
na Universidade Federal de Santa
Catarina, por Chris Schenk, religiosa
das Irmãs de São José, diretora da
Future Church, organização promotora do culto de santa Maria Madalena como primeira testemunha da
Ressurreição, por Katherine L. Jansen, professora em Washington, coautora de The Making of the Magdalen: Preaching and Popular Devotion
in the Later Middle Ages, por Thomas Stegman, docente de Novo Testamento no Boston College, e por
Elisabeth Schüssler Fiorenza, teóloga feminista e biblista. Mas também
não faltam autores italianos: Gianfranco Ravasi, Antonietta Potente,
Lucetta Scaraffia, Lilia Sebastiani e
Carlo Molari.
«Noli me tangere», ícone cretense (séc.
XVI)
No Studium para a vida consagrada
Formação no centro
Foi delineado o programa do novo
ano académico da Escola interdisciplinar para a formação ao magistério eclesial e à normativa canónica
sobre a vida consagrada (Studium),
que terá início em meados de outubro na Pontifícia universidade Urbaniana. É uma iniciativa promovida pela Congregação para os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica destinada
a confirmar a importância da formação contínua.
Entre as novidades do ano académico de 2016-2017, os cursos lecionados pela subsecretária do dicastério, Ir. Nicla Spezzati, sobre a vida
consagrada nos processos socioculturais, e por Simona Paolini, sobre
a teologia da vida consagrada à luz
dos princípios hermenêuticos e examinados a partir do Vaticano II.
Sem esquecer os cursos de Dario
Vitali sobre os prolegómenos de
eclesiologia, de Giorgio Zevini sobre os fundamentos bíblicos da vida consagrada no magistério eclesial, de Xabier Larrañaga Oyarzabal sobre o magistério pontifício e
eclesial relativo à vida consagrada e
de Giovanni Grosso sobre a vida
consagrada na história da Igreja.
Na secção prática, distinguem-se os
cursos de Marcella Farina e Orlando Manzo sobre a mulher consagrada na Igreja e de Amedeo Cencini e Sandro Perrone sobre os planos institucionais (Ratio institutionis
et formationis, ordo studiorum) nos
institutos de vida consagrada e nas
sociedades de vida apostólica. O
Studium propõe, in Ecclesia et cum
Ecclesia, um percurso formativo de
alta qualidade para acompanhar a
vida consagrada nas sociedades
atuais. A sua metodologia interdisciplinar une pesquisa e prática e relaciona a Traditio da Igreja aos impulsos das instâncias culturais contemporâneas, ajudando a viver, segundo o Evangelho, a eclesiologia
de comunhão. É acreditado junto
das universidades e dos ateneus
pontifícios com sede em Roma e
concede o diploma em especialista
em magistério eclesial e normativa
canónica da vida consagrada. Prevê
lições, exercícios, exames em cada
disciplina e elaboração de uma tese
final em matéria didática e prática.
O Studium destina-se aos responsáveis de serviços atinentes ao
governo dos institutos de vida consagrada, como secretários e secretárias-gerais e provinciais, procuradores e procuradoras, superiores e superioras, aos vigários episcopais e
aos delegados para a vida consagrada, aos responsáveis pela formação
e programação formativa nos seminários diocesanos e nos colégios internacionais. Está aberto também
aos presbíteros que desempenham
um papel de animação e de acompanhamento da vida consagrada,
aos consagrados que desejam aprimorar a própria formaçãopermanente e aos leigos. Tem uma estrutura bienal, articulada em duas secções complementares: interdisciplinar e prática. As lições semanais
realizam-se às quartas-feiras enquanto a secção prática tem lugar
na primeira e terceira terças-feiras
do mês. As lições apresentam as diversas formas de vida consagrada,
analisadas sob o ponto de vista histórico, teológico e jurídico.
Para obter informações e fazer as
inscrições pode-se contactar a secretaria telefonicamente (06.69892509)
ou através do correio eletrónico ([email protected]).
L’OSSERVATORE ROMANO
número 30, quinta-feira 28 de julho de 2016
página 6/7
São Tomás de Aquino
(1600, esmalte, Toulouse)
Da reflexão de Karol Wojtyła à exortação «Amoris laetitia»
Fidelidade criativa
RODRIGO GUERRA LÓPEZ*
eve lugar em Cracóvia a 16 e 17
de dezembro de 1970 um importante debate. O arcebispo Karol
Wojtyła tinha escrito um denso livro
que, entre outras coisas, procurava
mostrar a antropologia que está na base
da Gaudium et spes, a constituição pastoral do concílio Vaticano II. O livro
intitulava-se Pessoa e ato (1969) e para
debater este intenso esforço especulativo foi convidado um numeroso grupo
de filósofos.
É muito interessante examinar os diversos contributos daquele encontro publicados pouco
tempo depois por An-
T
drzej Szostek. Por um lado havia importantes consensos ao novo livro; de
facto, todos os que tinham estudado a
fenomenologia e o personalismo viram
em Wojtyła o início de um novo percurso: o reconhecimento objetivo da
subjetividade não é subjetivismo. Aliás,
a ação humana é um momento privilegiado para aprender a verdade sobre a
pessoa. Esta intuição permitia que o arcebispo polaco adiantasse uma hipótese
acerca de como superar a unilateralidade da teoria marxista acerca da primazia da prática revolucionária através de
uma renovada antropologia da ação e
da comunhão.
Mas por outro lado havia quantos consideravam com reserva
e/ou com evidente desconfiança a refle- ça com Deus tendo como base as faculxão de Wojtyła. Alguns deles eram im- dades superiores do ser humano, como
portantes professores de orientação to- a inteligência, a vontade livre e assim
mista que não estavam habituados a por diante.
A lista dos exemplos poderia ser
voltar às mesmas coisas, mas antes a repetir um certo cânone de ortodoxia fi- imensa, tão longa como a doutrina crislosófica. Em vez de afirmar a verdade tã. A realidade natural e a do depósito
como adequação da inteligência à reali- da fé possuem sem dúvida alguma uma
dade, pareciam afirmar implicitamente estrutura definida e objetiva. Contudo,
que a verdade é a adequação da inteligência a
são Tomás. Para eles tuUma hermenêutica da rutura,
do parecia insatisfatório
em Wojtyła: o método, a
como a que alguns estão a procurar introduzir
linguagem, a proposta.
com as críticas ao Papa Francisco
Quis recordar este episódio para mostrar que
na nossa opinião, incorre nalguns erros
não é estranho encontrar
Não existe de facto uma fratura no magistério
resistências no momento
em que o pensamento
papal dos últimos decénios
cristão dá um novo passo
em frente. Estas resistências, em geral, aduzem como seu motivo a falta de fi- a sua compreensão admite desenvolvidelidade à herança recebida, o mentos orgânicos, que exploram novas
uso de uma linguagem renovada virtualidades e que pedem para ser reque se considera ambígua e os conhecidas nalguns períodos particulamuitos riscos que podem derivar res. Por conseguinte, a leitura atenta
adotando uma ou outra iniciativa dos sinais dos tempos não é alheia ao
a partir do novo ponto de vista esforço de reflexão necessário quando
fazemos uma reflexão filosófica, teolóescolhido.
Teríamos podido não recordar o gica ou pastoral.
Tenho a impressão de que isto faz
caso da obra Pessoa e ato de
Karol Wojtyła e recorrer a parte de quanto acontece quando o
outros exemplos. Antes de Pontífice nos oferece a exortação apostudo, a controvérsia so- tólica Amoris laetitia. O Papa Francisco
bre a noção de liberda- não muda a doutrina essencial da Igrede religiosa, na qual ja. Não o faz porque sabe bem que o
uma aparente oposi- depósito da fé não é uma invenção arção entre a encícli- bitrária que se pode transformar com
ca Libertas de ideias mais ou menos felizes.
Leão XIII e a deO depósito da fé é um dom que se
claração Dignita- deve preservar. Mas esta preservação
tis humanae do não consiste em colocar o mesmo deVaticano II teria pósito da fé num congelador de maneilevado alguns a ra a hiberná-lo e fazer com que o seu
classificar como he- metabolismo se interrompa. Ao contrárético o próprio con- rio, é o dinamismo de um Deus vivo
cílio. Ou a introdução do que entra e se compromete com a nossa
significado unitivo e pro- história a fim de a redimir a ter que se
criativo do ato sexual na abrir todos os dias através da atividade
Humanae vitae no lugar pastoral da Igreja e, em particular, do
da teoria tomista de ministério do sucessor de Pedro. O
um fim primário e Pontífice trairia a sua vocação e o seu
dois
secundários. serviço se sufocasse a presença real de
Ou ainda a novi- Deus na história, lá onde ela se encondade do reconhe- tra: na sagrada Escritura, nos sacramencimento que o tos e no povo, em particular em quanser humano é tos sofrem exclusão e dor.
Por este motivo algumas das críticas
imagem e semelhança de Deus que o Papa recebeu ultimamente nos
a partir da «uni- parecem infundadas e injustas. Amoris
dualidade rela- laetitia é um verdadeiro ato de magistécional» entre ho- rio pontifício. É muito imprudente,
mem e mulher além de ser teologicamente inexato, inrealizada por são sinuar que esta exortação apostólica é
João Paulo II, uma espécie de opinião pessoal, quase
que completa e privada. O Pontífice exerce o seu muamplia a tradi- nus docendi de muitas maneiras: pensecional compre- mos nas suas mensagens, discursos, hoensão da ima- milias e, sem dúvida, nas suas encícligem e semelhan- cas ou exortações apostólicas pós-sino-
dais. Depois, estas últimas nascem pre- ficadas situações
cisamente de um amplo exercício de si- «irregulares»,
nodalidade, e este facto não deve ser eventualmente videscuidado.
vidas por alguns
Além disso, Amoris laetitia não impli- casais, com o peca rutura nem descontinuidade com o cado mortal, feEvangelho, com as exigências da lei na- chando deste motural ou com o magistério pontifício do a porta ao
precedente. Em particular, o tão co- acesso à eucarismentado oitavo capítulo da exortação tia. Afirmar de
apostólica é um bom caso que exempli- maneira tácita ou
que
fica aquilo que Bento XVI ensinou de explícita
maneira geral no seu discurso à Cúria qualquer situação
romana a 22 de dezembro de 2005. «irregular» é por
Mutatis mutandis, permitimo-nos dizer definição pecado
que a doutrina sobre a natureza do sa- mortal
e
priva
cramento do matrimónio, da eucaristia quantos a vivem da
e sobre as condições para que exista graça santificadora,
realmente um pecado mortal não mu- parece-nos um erro
dou no magistério pontifício mais re- grave que não está em
cente. Mas é necessário que esta doutri- conformidade com o
na verdadeira e imutável, à qual se de- Evangelho, com a lei nave prestar obediência, seja aprofundada tural e com o ensinamene exposta com base nas exigências da to autêntico de são Tomás
mudança da época que estamos a viver. de Aquino.
Amoris laetitia é isto: um desenvolviO Papa Francisco publicou uma
mento orgânico com fidelidade criativa. exortação que não resolve nem dissolve
Uma hermenêutica da rutura, como a estrutura da vida ética da pessoa nua que alguns estão a procurar introdu- ma acentuação unilateral de certos abzir com as críticas ao Papa Francisco, solutos morais, nem sequer dilui a dina nossa opinião, incorre nalguns erros, mensão universal da norma no meracomo os seguintes.
mente factual, concreto e contextual.
Antes de tudo, há uma interpretação Sob este ponto de vista, o Pontífice escarente de são Tomás de Aquino. O Dou- creveu uma exortação profundamente
tor Angélico soube compreender e tomista que recupera de maneira sadia
amar com paixão o singular. Todas as a participação e a analogia e permite
categorias universais que utiliza, incluí- encontrar um caminho para responder,
das as da ordem moral, diminuem na além das teorias, ao drama das pessoas
sua necessidade e aumentam na sua reais nas suas situações concretas.
contingência à medida que se realizam
Há depois uma interpretação carente
de são João Paulo II. O Papa Wojtyła,
em realidades cada vez mais concretas.
A compreensão carente
de alguns tomistas precisamente sobre este ponto
Os críticos do Papa Francisco
pode tornar-se mais visível de diversas maneiras.
mostram uma interpretação carente
Permito-me
frisar
só
de são Tomás de Aquino
uma: a tendência mais ou
menos difundida a interMas também de são João Paulo II
pretar a razão como uma
e de Bento XVI
faculdade que diz respeito ao universal, descuidando as contribuições
importantes do Aquinate para o reconhecimento da ratio particularis e o seu
papel no conhecimento teórico e prático. O caminho do conhecimento começa no singular, passa pelo universal,
mas volta de novo ao concreto. Descuidar metodologicamente este ingrediente
elementar produziu uma espécie de
ahistoricidade de grande parte da reflexão tomista contemporânea e uma dificuldade em compreender o nível no
qual se encontram a preocupação pastoral da Igreja e muitíssimos comentários, indicações e avaliações que o Papa
Francisco desenvolve fundadamente na
sua exortação apostólica.
Como exemplo, pense-se em como
alguns identificam, de maneira mais ou
menos unívoca, as complexas e diversi-
primeiro como filósofo e depois como
Pontífice, conseguiu abrir uma porta
importante no processo de refundação
da antropologia e da ética. Uma consideração puramente objetivista da pessoa humana não é suficiente para apreciar aquilo que possui de irredutível.
É necessário olhar com atenção para
a experiência humana fundamental a
fim de encontrar no seu interior o
mundo amplo e rico da subjetividade e
da consciência.
No interior deste mundo, a lei natural, para João Paulo II, não aparece como uma dedução a partir de algumas
inclinações, mas é o seu fundamento
normativo que se encontra na razão
prática entendida como capacidade de
reconhecer, pouco a pouco, a verdade
acerca do bem. Encontra-se precisamente neste último terreno a gradualidade pastoral, ou seja, a paciência com
a qual é preciso ouvir e compreender
uma pessoa que não entendeu plenamente um determinado valor moral
e/ou as suas exigências práticas.
A gradualidade pastoral que acabamos de mencionar em Familiaris consortio adquire maior densidade quando se
veem os conteúdos de toda a exortação
Amoris laetitia. É claro que para interpretar corretamente esta gradualidade é
necessário não só não a confundir como se fosse uma forma de gradualidade
doutrinal mas também assimilar que o
discernimento é necessário em cada caso concreto. Uma repetição puramente
formal do magistério de João Paulo II
que não dê espaço ao acompanhamento, ao discernimento e à eventual integração atraiçoa a índole pastoral de
qualquer ato magisterial.
Por fim, há uma interpretação carente
de Bento XVI. Poderíamos dedicar muito espaço a este tema. Simplesmente
observo que não é conforme com a verdade interpretar o Papa Ratzinger como uma espécie de justificação pontifícia para afirmar o rigorismo. Alguns
gostariam de fazer parecer o bispo
emérito de Roma como um defensor
apaixonado de valores inamovíveis em
contraste com o Pontífice. Não é assim.
A realidade é muito mais complexa. O
Papa Francisco está em continuidade
com Bento XVI. Um dos exemplos mais
comovedores para o mostrar é um trecho no qual Joseph Ratzinger reconhece claramente que até no âmbito de
uma imperfeita adesão a Jesus Cristo é
possível descobrir e cultivar um caminho de vida cristã.
«Uma pessoa continua a ser cristã —
escreveu Ratzinger em Fé e futuro (1971)
— quando se esforça por prestar a sua
adesão central, quando procura pro-
nunciar o sim fundamental da confiança, mesmo se não sabe situar bem ou
resolver muitos aspetos particulares.
Haverá momentos na vida nos quais,
na multíplice obscuridade da fé, nos
deveríamos realmente concentrar no
simples sim: creio em ti, Jesus de Nazaré, confio que em ti é mostrado o sentido divino pelo qual posso viver a minha vida seguro e tranquilo, com paciência e com coragem. Se este centro
está presente, o ser humano está na fé,
mesmo se muitos dos seus enunciados
concretos lhe resultam obscuros e no
momento impraticáveis. Porque a fé,
no seu núcleo, não é, digamo-lo mais
uma vez, um sistema de conhecimento,
mas uma confiança. A fé cristã é «encontrar um tu que me ampara e que,
não obstante a imperfeição e o carácter
intrinsecamente incompleto de cada encontro humano, doa a promessa de um
amor indestrutível que não só aspira à
eternidade, mas que também a concede».
Portanto, a nosso parecer, não existe
uma rutura no magistério dos últimos
Pontífices. O que temos diante de nós
é uma fidelidade criativa que permite,
em termos práticos, ver quanto é importante dar a primazia ao tempo e
não ao espaço, como ensina o amado
Papa Francisco. Só assim é possível viver a paciência com quantos são atingidos e feridos, só assim é possível acompanhar-nos reciprocamente sem nos escandalizarmos pelas nossas misérias e
ao mesmo tempo descobrir que na
Igreja, verdadeira presença de Jesus
Cristo na história, existe um caminho
pleno de ternura para a reconstrução
da vida, para a cura de todas as nossas
feridas, até das mais profundas.
*Professor e pesquisador
Centro de Investigação Social Avançada
(Querétaro, México)
L’OSSERVATORE ROMANO
página 8
quinta-feira 28 de julho de 2016, número 30
Diálogo com o secretário da Congregação para os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica
A formação é o futuro
NICOLA GORI
Mais de quarenta mil mulheres dedicadas à vida contemplativa são as
destinatárias da nova constituição
apostólica Vultum Dei quaerere do
Papa Francisco. É um documento
que chega a mais de cinquenta anos
do precedente, Sponsa Christi de Pio
XII. No novo texto são introduzidas
algumas novidades, em especial sobre a formação, sobre a autonomia e
sobre o papel das federações, incluindo a clausura, explicou o arcebispo José Rodríguez Carballo, secretário da Congregação para os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica, nesta
entrevista ao nosso jornal.
Quem são os destinatários da constituição apostólica?
As monjas contemplativas ou inteiramente contemplativas, também
chamadas claustrais, da Igreja latina.
Segundo as últimas estatísticas, no
total são 43.546 e vivem em cerca de
4.000 mosteiros. Deles, a Europa
conta com a presença mais maciça,
aproximadamente 2.000. E o resto
do mundo, os outros 2.000. As quatro nações com mais mosteiros são:
Espanha com 850, Itália com 523,
França com 257 e Alemanha com
119. Neste momento os mosteiros estão organizados em 166 federações,
47 associações e 5 congregações. Algumas ordens como as redentoristas,
ou partes de ordens como as carmelitas descalças da Polónia, não têm
vínculo algum entre os mosteiros.
Muitos mosteiros estão ligados à
correspondente ordem masculina,
outros estão sob a «vigilância» do
ordinário do lugar. Este vínculo com
a ordem masculina, que de resto é
recomendada pela própria constituição apostólica, está a aumentar, tendo em consideração o mesmo carisma que ambos professam. Nisto há
que ter presente a vontade dos fundadores. Em algumas ordens este
vínculo, que comporta também conotações jurídicas, é questão de fidelidade.
Qual é a atual tendência «demográfica» da vida monástica feminina?
Dado que a presença dos mosteiros está na Europa e dois terços da
população monástica feminina vivem
na Espanha e na Itália, a demografia
das monjas contemplativas ou inteiramente contemplativas segue o andamento geral das vocações no continente e nestes dois países, ou seja:
tendência ao envelhecimento e à diminuição. Este trend parece evidente
tendo presente o número de supressões de mosteiros e de novas aberturas. De 2003 a 2015 foram suprimidos 185 mosteiros e abertos 154. No
total, o país onde mais mosteiros foram fechados é a Espanha: 95. Seguem-se a França com 22, a Itália
com 19, a Grã-Bretanha com 11, os
Estados Unidos com 8, a Bélgica
com 7, o Canadá com 6, o México
com 3, a Venezuela e a Irlanda com
2, Holanda, Alemanha, Portugal,
Dinamarca, Peru, Uruguai, Chile,
Brasil, Japão e Líbano com 1. Na
América Latina foram abertos 62
mosteiros, na Ásia 35, na África 24,
na Europa 23, na América do Norte
9 e na Oceânia 1.
Quantas são as monjas contemplativas
ou inteiramente contemplativas?
Neste momento as monjas, segundo os dados de que dispomos, pertencem a 43 ordens. Por famílias carismáticas, a mais numerosa é a franciscana que conta 13.066 monjas,
distribuídas nas seguintes ordens:
clarissas irmãs pobres de Santa Clara, 7.201; clarissas capuchinhas, 2.127;
clarissas urbanistas, 873; concepcionistas franciscanas, 1.584; coletinas,
563; terciárias regulares franciscanas,
690; terciárias franciscanas isabelinas, 28. A segunda família mais numerosa é a carmelita com 11.175 monjas: as carmelitas descalças com as
constituições de 1990 são 1.739, as
que têm as constituições de 1991 são
8.778 e as carmelitas de antiga observância 671. A seguir, entre as ordens
com o maior número de monjas, estão as beneditinas com 6.627, as cistercienses com 2.622, as dominicanas
com 2.614, as visitandinas com 1.851,
as agostinianas com 1.192. Entre os
grupos mais pequenos recordamos o
das cartuxas: 32 e as batistas: 13. Há
depois outras pequenas comunidades que contam todas juntas cerca
de 60 membros.
Quais são as principais novidades do
documento? Há diferenças substanciais
com a «Sponsa Christi» de Pio XII?
Por um lado, a constituição retoma e reitera elementos que são desde sempre típicos da tradição monástica, já contidos na Sponsa Christi; por outro, responde a algumas
instâncias das quais se fizeram voz
os próprios mosteiros, sentidas como
lacunas na legislação precedente, em
particular no que se refere a três temas: formação, autonomia e papel
das federações, clausura. No que diz
respeito à formação, recomenda-se
grande atenção ao discernimento,
sem se deixar levar «pela tentação
do número e da eficiência», e ao
acompanhamento das vocações, pedindo um «acompanhamento personalizado das candidatas» e promovendo «percursos formativos adequados» (VDq, 15). Uma nova indi-
cação, ligada ao particular momento
sociocultural, é a de não recrutar
candidatas de outros países só para
garantir a sobrevivência do mosteiro
(cf. art. 3 § 6). Outras duas recomendações referem-se primeiro ao
cuidado pela formação inicial, à qual
se deve reservar um amplo espaço de
tempo (cf. art. 3 § 5). Sobre este aspeto certamente influiu o elevado
número de abandonos da vida religiosa, que hoje atinge até as irmãs
professas de vida contemplativa; e
depois a formação das formadoras,
para cuja dedicação as irmãs poderão participar também em cursos fora do mosteiro, contanto que estejam
atentas a preservar um clima adequado e coerente com o carisma
(art. 3 § 3). Outro elemento importante da nova constituição apostólica
é o convite a promover a colaboração entre os mosteiros para garantir
uma formação adequada a esta época, quer na formação permanente
(cf. art. 3 § 2. 4), quer na inicial,
promovendo casas comuns de formação (cf. art. 3 § 7). No que se refere ao equilíbrio delicado autonomia/federação, devemos à Sponsa
chado (art. 8 § 1.2). Um tema que
se refere à autonomia é a relação entre as ordens monásticas femininas e
as ordens masculinas correspondentes, pedindo explicitamente que seja
favorecida «a associação, também
jurídica, dos mosteiros à ordem masculina correspondente» (art. 9 § 1).
Terceiro tema importante tratado pela constituição é a clausura, que já
tinha sido revisitada pela Sponsa Christi segundo as exigências do tempo. A exortação apostólica Vita consecrata de são João Paulo II (cf. n.
59) e a seguir a instrução Verbi sponsa (cf. nn. 9-13) já se expressaram ulteriormente sobre este tema, preparando a indicação que é dada na
atual constituição. Esta distingue
quatro tipos de clausura: a comum a
todos os institutos, a papal, a constitucional e a monástica (cf. n. 30). A
novidade é a possibilidade dada aos
mosteiros de fazer o pedido à Santa
Sé para abraçar uma forma de clausura diversa da vigente, depois de
um discernimento atento e respeitando a própria tradição (cf. art. 10 §
1). A nova constituição insiste muito
sobre a vida fraterna em comunidade, como elemento constitutivo da
vida religiosa e da vida monástica
em particular (cf. nn. 24-27) e indica
como elementos próprios desta forma de vida também o trabalho (n.
32), o silêncio (n. 33), a ascese (n.
35). Além disso, aborda o tema dos
meios de comunicação (n. 34) e do
testemunho das monjas (cf. nn. 3637), dando na parte dispositiva indicações claras sobre todas estas temáticas. À luz destas considerações,
não me parece totalmente correto falar de «diferenças substanciais» em
relação à Sponsa Christi, mas antes
da evolução dos temas e das normas
que ela contém, por um lado, à escuta do caminho fecundo e importante que a Igreja percorreu à luz
dos ensinamentos do concílio Vaticano II nos últimos decénios e, por outro, do rápido progresso e das mudanças socioculturais recentes, como
o próprio Papa Francisco evidenciou
na constituição.
Christi a primeira legislação em relação à finalidade e ao papel das federações. Mas enquanto inicialmente a
adesão a uma federação era muito
recomendada mas não imposta, hoje
pede-se a todos os mosteiros que façam parte de uma federação, exceto
em casos particulares em relação aos
quais o juízo é reservado à Congregação para os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida
apostólica (cf. art. 9 § 1). O receio
do isolamento dos mosteiros é grande porque se viram os efeitos deletérios que isto comporta. E ainda, dado que até agora o critério de formação das federações foi essencialmente geográfico, a nova constituição
prevê que elas se possam configurar
também com base em afinidades de
espírito e de tradições, segundo modalidades que a Congregação indicar
(cf. art. 9 § 2). Além disso, no respeitante à autonomia, afirma-se que
«à autonomia jurídica deve corresponder uma real autonomia de via»,
indicando critérios a fim de que ela
seja possível. Caso contrário, dão-se
normas para que o mosteiro se torne
filial de outro mosteiro ou seja fe-
Quais são os principais desafios com
que se depara neste momento a vida
monástica feminina?
O primeiro desafio que vejo na vida monástica feminina neste momento é comum à vida consagrada
em geral: a formação, sobretudo a
permanente, verdadeiro húmus da
formação inicial. Sinto-me muito feliz por a nova constituição apostólica insistir sobre isto. Sem formação
permanente não se pode falar de
formação inicial. Dado que uma das
finalidades principais da formação é
transmitir a beleza do seguimento de
Cristo a um determinado carisma, isto só é possível se a formação permanente for levada a sério. Sempre
no âmbito da formação, um desafio
importante é o discernimento vocacional das candidatas à vida monástica. O critério para acolher novas
vocações não pode ser a necessidade
de um número suficiente para manter o mosteiro aberto. Deve ser evitada a tentação do número e da eficiência. O que conta é a qualidade
evangélica de vida e em vista desta
devem-se aceitar as candidatas.
número 30, quinta-feira 28 de julho de 2016
Atenção depois ao acompanhamento
das novas vocações. Nem todas as
comunidades são idóneas para
acompanhar. Por isso, a nova constituição encoraja a ereção de casas de
formação federais ou interfederais.
Não se pode sacrificar a qualidade
da formação em vista de ter mão de
obra disponível. Outro desafio é
harmonizar a justa autonomia com a
interdependência entre os mosteiros.
Penso que será necessário dar mais
autoridade à presidente de uma federação com o seu conselho, de maneira a evitar o isolamento. Por fim,
entre muitos outros desafios que podem ser indicados, vejo que é urgente atuar uma reestruturação das presenças monásticas. Pelo menos na
Europa, não se pode continuar com
tantas presenças. São insustentáveis.
Por vezes para as manter sacrifica-se
a vida monástica com todas as suas
exigências (liturgia, oração pessoal,
vida fraterna) ou acolhem-se vocações estrangeiras sem critérios adequados, dando a impressão de que
são chamadas para servir de «assistentes». Se assim fosse, isto seria
«tráfico de noviças», ou «inseminação artificial», como disse o Papa
Francisco. O que seria simplesmente
inaceitável, evangélica e carismaticamente falando. Isto não pode ser
permitido na Igreja.
Voltando à constituição apostólica, foi
acolhida a voz das monjas em fase de
redação?
Certamente. Há mais de um ano a
nossa Congregação para os institutos
de vida consagrada e as sociedades
de vida apostólica predispôs um
questionário enviado a todos os
mosteiros do mundo sobre a formação, a autonomia e a clausura. Houve muitíssimas respostas. Destas respostas foram feitas diversas sínteses,
que depois serviram para a redação
do texto atual que, como se sabe,
trata fundamentalmente os mesmos
temas do questionário: formação, autonomia e clausura. Pelo que conheço, no esboço do texto colaboraram
diversas contemplativas mesmo se,
como é lógico, o texto tem claramente a «marca» do Papa Francisco,
como se pode constatar de uma simples leitura. Partindo de quanto eu
sei, posso afirmar que o texto da
constituição reflete plenamente o parecer das monjas que responderam
ao questionário. Isto não significa
que satisfaz todas. Como se pode
compreender, as respostas eram muito diversas, acima de tudo sobre o
tema da autonomia e da clausura.
Havia quem queria mudar tudo e
quem não queria que se tocasse uma
só vírgula dos documentos prece-
L’OSSERVATORE ROMANO
dentes. O texto da constituição é
equilibrado e oferece muitas possibilidades para que cada mosteiro possa encontrar com responsabilidade e
discernimento o seu caminho, por
exemplo sobre o tema da clausura.
Faz-se referência com frequência ao
projeto de vida de cada comunidade. Isto é sinal também da confiança
que a Igreja tem nas nossas irmãs
contemplativas.
Existem sinais exteriores da clausura.
No documento são revistos?
Como já disse nas respostas a algumas perguntas precedentes, a
constituição fala certamente da clausura. Exige-se uma separação do
mundo, mas não entra nos pormenores de como deve ser garantida.
Por outro lado já agora há uma
grande variedade no respeitante aos
sinais da clausura, aliás, há muita diversidade no próprio modo de viver
a clausura, dependendo da tradição
carismática de cada mosteiro, da
própria cultura e também de outros
fatores que influem sobre a vida de
cada mosteiro. Em relação aos sinais,
há mosteiros que usam as grades,
outros que usam uma corda ou um
simples muro que, garantindo a
clausura, permitem uma comunicação mais fácil. Contudo, dado que a
constituição remete para uma instrução por parte da Congregação para
os institutos de vida consagrada e as
sociedades de vida apostólica que
será elaborada a seguir, talvez este
documento seja mais explícito. O
importante é que cada uma viva a
clausura do coração e que cada mosteiro, com responsabilidade e em clima de profundo discernimento, tendo em conta a tradição genuína do
próprio carisma, possa optar por
uma determinada forma de clausura
e a respeite. Que não se brinque.
Num mosteiro que escolhe viver a
clausura papal as monjas vivam-na,
e não «carreguem a grade às costas», como disse numa ocasião o Papa Francisco. Também em relação à
clausura a chave é a responsabilidade e a maturidade: quando se deve
sair que se saia, quando não se deve
sair permaneça-se dentro. Por outro
lado, as irmãs contemplativas ou inteiramente contemplativas têm diante de si um desafio importante que
diz respeito aos meios de comunicação. Como usá-los? Quando? Quais
usar e quais evitar? A constituição
fala deste desafio. Competirá à instrução do dicastério dar indicações
ulteriores e mais claras.
Às vezes não há muita participação
das comunidades contemplativas na vida das Igrejas locais. Procurou-se envolvê-las mais?
Para a vida contemplativa ou inteiramente contemplativa é válido quanto se afirma
acerca da vida consagrada em geral: nasce
na Igreja, vive-se na
Igreja, cresce na Igreja. A comunhão e a
inserção na Igreja é
um elemento essencial
também por este modo de sequela Christi.
Mas a maneira de inserir e de manifestar a comunhão é
diversa de outras formas de vida
consagrada. Reside também aqui a
beleza da vida consagrada. Na vida
da Igreja nem todos somos chamados a fazer o mesmo ou a fazê-lo do
mesmo modo. Por outro lado, recorde-se que a Igreja não se edifica
apenas com aquilo que se faz, mas
sobretudo com aquilo que se é. A
importância da vida consagrada, e
menos ainda a importância da vida
contemplativa, não se pode julgar
apenas pela sua funcionalidade. Esta
é uma grande tentação na nossa sociedade, que procura apenas eficiência e resultados visíveis. E isto é um
grande erro que está a levar a consequências não indiferentes, quer na
Igreja quer na vida consagrada. As
monjas contemplativas ou inteiramente contemplativas colaboram
com a Igreja particular e com o
mundo com a sua oração de intercessão, que na constituição é bem
evidenciada (cf. nn. 16-18.36). A oração é plenamente missionária. Não
se deve esquecer que a padroeira das
missões é uma contemplativa, santa
Teresinha do Menino Jesus, a qual
viveu grande parte da sua vida em
clausura. Clara de Assis dá às suas
irmãs como missão apoiar com as
suas orações os membros débeis da
Igreja, como é recordado pela mesma Constituição. Depois, não se deve esquecer que com o próprio trabalho, realizado com devoção e fidelidade, elas partilham o destino dos
pobres da terra fazendo-se instrumento de evangelização na Igreja e
no mundo (cf. n. 32), e com o seu
testemunho de vida contemplativa
são um «necessário complemento
daquela de quantos, contemplativos
no coração do mundo, dão testemunho do Evangelho permanecendo
imersos nas realidades e na construção da cidade terrena» (n. 36).
Que papel desempenharão os bispos e
os superiores dos institutos religiosos na
vida dos mosteiros?
Tanto uns como outros continuarão a desempenhar o papel de ordinários dos mosteiros, com as mesmas
competências que lhes foram atribuídas pela normativa particular e pelo
Código de direito canónico, e segundo os cânones 615, 625 § 2, 628
§ 2, 1º, 637, 638 § 4, 688 § 2, 699 §
2. Deve-se recordar contudo que
nem os bispos nem os superiores
dos institutos religiosos são os superiores dos mosteiros. A abadessa ou
a priora é sempre a superiora maior,
analogamente a um superior provincial de qualquer outro instituto de
vida consagrada (cf. cân. 620). Os
bispos e os superiores dos institutos
página 9
religiosos — e com mais razão os vigários/delegados ou os assistentes
religiosos — não devem por conseguinte interferir na vida ordinária
nem no governo dos mosteiros. Tais
intervenções de bispos ou de superiores de institutos religiosos, se não
forem explicitamente estabelecidas
ou permitidas pela normativa particular e/ou universal da Igreja, devem ser consideradas impróprias e
contudo ilegítimas. O superior hierárquico da abadessa é unicamente a
Sé Apostólica, não outras autoridades da Igreja, não obstante a normativa lhes atribua competência sobre
os mosteiros e sobre cada uma das
religiosas que a eles pertencem. Em
consideração da minha experiência
no dicastério, posso dizer que surgem muitos problemas devido às interferências impróprias na vida interna dos mosteiros, por parte quer de
alguns bispos quer de alguns superiores de institutos religiosos ou assistentes. Sobretudo nos casos de supressão de um mosteiro, não são raros os interesses e as finalidades económicas pessoais por parte de muitos, sem excluir os eclesiásticos.
Contudo, deve ser considerado que
as monjas não são «menores» ou
contudo pessoas não totalmente
competentes, que precisam de ter alguém ao seu lado, para ser apoiadas,
aconselhadas e contudo para não
adotar escolhas erradas. São também
elas pessoas adultas que devem gerir
com autonomia e responsabilidade a
sua vida. Diria que os bispos e os
superiores maiores dos institutos devem ater-se unicamente às competências e ao papel que lhes é atribuído pela normativa da Igreja. Também sob este aspeto, a futura instrução que o dicastério está para publicar, a fim de pôr em prática a constituição apostólica (cf. art. 14 § 2),
conterá esclarecimentos a este propósito, a fim de evitar intervenções
com conotações mais ou menos evidentes de um verdadeiro controle —
ou até de autoritarismo antievangélico — acerca dos mosteiros.
O que pediria a uma monja contemplativa ou inteiramente contemplativa?
Respondendo com palavras da
nova constituição: «Que as vossas
comunidades ou fraternidades sejam
verdadeiras escolas de contemplação
e oração. Não cesseis de interceder
constantemente pela humanidade,
apresentando ao Senhor os seus temores e esperanças, as suas alegrias
e sofrimentos. Não vos priveis desta
vossa participação na construção de
um mundo mais humano e por conseguinte também mais evangélico.
Unidas a Deus, ouvi o brado dos
vossos irmãos e irmãs (cf. Êx 3, 7: Tg
5, 4) que são vítimas da «cultura do
descarte», ou que simplesmente precisam da luz do Evangelho. Exercitai-vos na arte de ouvir, “que é mais
do que sentir”, e praticai a “espiritualidade da hospitalidade”, acolhendo no vosso coração e levando
na vossa oração tudo o que diz respeito ao homem criado à imagem e
semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26).
Obrigado pelo vosso grande serviço
à Igreja, ao mundo e a toda a vida
consagrada».
L’OSSERVATORE ROMANO
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quinta-feira 28 de julho de 2016, número 30
Apresentação da constituição apostólica sobre a vida contemplativa feminina
Uma oração sem confins
JOSÉ RODRÍGUEZ CARBALLO
Entre os muitos frutos de graça que
o Ano da vida consagrada, que se
concluiu há pouco tempo, deu à vida da Igreja, devemos destacar a nova constituição apostólica que o Papa Francisco destinou a quantos
professam a vida contemplativa ou
integralmente contemplativa. Esta
«porção eleita do rebanho de Cristo», como são Cipriano gostava de
definir, circundada desde sempre por
particulares cuidado e atenção por
parte da Igreja, da qual constitui o
coração pulsante de fé e de amor pelo Senhor e por toda a humanidade,
nas últimas décadas viu-se negligenciada a nível legislativo, a ponto que
usava ainda a regulamentação da
constituição apostólica Sponsa Christi, que remonta a 1950, por conseguinte ao Pontificado de Pio XII:
portanto, a constituição é ainda mais
preciosa porque vem preencher uma
lacuna dos anos pós-conciliares, da
qual se começava a sentir deveras as
consequências.
Deve-se a isto a solicitude do Papa Francisco, pastor atento à vida
do seu rebanho, e a decisão de doar
um novo documento a quantos na
Igreja «homens e mulheres, chamados por Deus e apaixonados por
Ele, vivem a sua existência totalmente orientados para a busca do seu
Rosto, desejosos de encontrar e contemplar Deus no coração do mundo» (Vultum Dei quaerere = VDq 2).
O seu título é Vultum Dei quaerere,
significando o que mais especificamente caracteriza esta forma de consagração especial: se de facto «a
busca do rosto de Deus atravessa a
história da humanidade desde sempre chamada a um diálogo de amor
com o Criador» (número 1), é também verdade que os contemplativos
cumprem a sua especial missão na
Igreja, como evidencia o documento
repetidamente nas páginas iniciais.
«Sois faróis, para os próximos e,
sobretudo, para os distantes. Sois
chamas que acompanham o caminho
dos homens e das mulheres na noite
escura do tempo. Sois sentinelas da
manhã que anunciam o sol que surge» (número 6): foi a exortação inicial do Papa, frisando a estima que
nutre por esta forma de particular
consagração, chamada a iluminar
misteriosamente a humanidade inteira através do silêncio e do recolhimento do claustro.
Assim o Papa ofereceu indicações
exatas relativas aos vários elementos
essenciais para uma vida de contemplação: elementos por si só fundamentais para cada vida consagrada
mas declinados pelo Papa com um
acento particular, considerando justamente uma vida dedicada à contemplação como tarefa e missão fundamentais. Não só. Se é verdade que
a vida contemplativa não é atributo
só das mulheres, também é verdade
que foi e ainda é «em grande parte
declinada no feminino» (número 5):
portanto, ao delinear os elementos
essenciais não faltam referências explícitas às contemplativas, às quais é
entregue o ícone de Maria como
summa contemplatrix.
Não é por acaso que o primeiro
elemento a ser evidenciado é a formação, nos seus dois momentos —
permanente e inicial — já há alguns
anos objeto de atenção particular
por parte do Magistério. A este propósito o Pontífice, enquanto por um
lado recordou que o lugar frequente
de formação para uma comunidade
contemplativa deve ser o mosteiro,
por outro exortou a colaboração entre os mosteiros, através de várias
modalidades: intercâmbio de material, uso prudente dos meios digitais,
casas comuns de formação inicial,
disponibilidade dada por religiosas
preparadas para ajudar mosteiros
com menos recursos. É importante
que a fantasia da caridade contribuam para estreitar vínculos de ajuda recíproca, sempre salvando as
normas que regulam uma vida contemplativa (números 13-14). No documento não falta uma recomendação, fruto de constante preocupação
do Papa: «se evite absolutamente recrutar candidatas à vida contemplativa de outros países, só com a finalidade de manter a sobrevivência do
mosteiro» (número 15).
Amplo espaço — e não poderia ser
diferente — foi dedicado à oração
como elemento essencial. Se é um
desejo do fundo do coração do Papa
Francisco construir uma «Igreja em
saída» (cf. Eg 20-24), isto vale também para as pessoas chamadas a dedicar a própria existência dentro das
paredes de um claustro: a atenção
do coração, na sua solicitude materna, deve dilatar continuamente os
confins da oração, para que não só
haja um impulso para o alto, a contemplar o Rosto santo de Deus, mas
para que desça na profundidade, a
fim de se encontrar com a dor do
homem mais sozinho e marginalizado. Depois, para nutrir a vida de
oração o Pontífice recomendou a
centralidade da Palavra de Deus,
«primeira fonte de toda a espiritualidade» (Vv 39), mantendo vivo o hábito já muito difundido nos mosteiros da lectio divina. A tal propósito
espera-se que os mosteiros se tornem
verdadeiras escolas de oração, onde
os irmãos possam formar-se, encontrar Deus e entabular um diálogo
com Ele, que permeie toda a vida
(VDq 17.21).
Serão também nutrimento da vida
de oração a celebração da Eucaristia
e do sacramento da reconciliação,
como vias privilegiadas para encontrar o Senhor vivo e presente e fazer
experiência da sua misericórdia, para
Assinado o Avenant sobre Trinità dei Monti
Entre a Santa Sé e a França
No dia 25 de julho, no Palácio
Apostólico do Vaticano, foi assinado entre a Santa Sé e a República
francesa, representadas respetivamente por D. Paul Richard Gallagher, Secretário para as Relações
com os Estados e por Philippe Zeller, Embaixador da França junto
da Santa Sé, um «Avenant» às
Convenções diplomáticas de 14 de
maio e de 8 de setembro de 1828 e
os «Avenants» de 4 de maio de
1974, de 21 de janeiro de 1999 e de
12 de julho de 2005, relativos à
igreja e ao covento de «Trinità dei
Monti».
Um claro exemplo «do excelente
espírito de entendimento bilateral
que existe entre Santa Sé e França», disse o arcebispo Gallagher. De facto, segundo
Philippe Zeller, trata-se do «novo testemunho» de uma
«relação antiga e forte» a favor de «um lugar único
para a difusão da presença espiritual e cultural francesa
na Roma pontifícia».
Recordando o caráter francês de «Trinità dei Monti», o presente Acordo internacional exprime reconhecimento pela obra ali realizada pela Ordem dos Mínimos entre os séculos XV e XVIII, pela Sociedade do Sa-
grado Coração de Jesus a partir do século XIX até 2006
e pela Fraternité monastique des Frères de Jérusalem e
pela Fraternité monastique des Soeurs de Jérusalem de
2006 até hoje. Dada a impossibilidade das mencionadas Confrarias de continuar tal missão, a igreja e o
convento da «Trinitá dei Monti» serão confiados a partir de 1 de setembro à Comunauté de l’Emmanuel, associação pública internacional de fiéis de direito pontifício, fundada na França em 1972.
se tornar instrumentos de paz e perdão em toda a Igreja e na humanidade inteira (números 22-23). Do
perdão recebido de Deus e doado
aos irmãos o Pontífice passou naturalmente a falar sobre a vida fraterna, como elemento essencial irrenunciável para uma vida de contemplação, porque «quem não ama o próprio irmão que vê, não pode amar
Deus que não vê» (1 Jo 4, 20). O
Pontífice recomendou que se construam comunidades que sejam reflexo límpido e legível do amor trinitário por parte dos irmãos e irmãs. Em
seguida, o Papa Francisco tratou
dois elementos que atualmente para
todos os mosteiros de vida contemplativa são fonte de discernimento e
reflexão: a autonomia, à qual está ligado o papel das federações, e a
clausura.
A propósito das autonomias, foram evidenciados dois aspetos: a
atenção para que a autonomia não
se torne sinónimo de isolamento e
auto-referencialidade; e a verificação
de que a autonomia jurídica corresponda a uma real autonomia de vida, com critérios claramente delineados. Dado que o tema é delicado e
debatido, já foram traçadas algumas
linhas de comportamento que os sujeitos interessados devem seguir no
caso em que já não haja autonomia
de vida, mesmo se depois se recorra
à Congregação para os institutos de
vida consagrada e as sociedades de
vida apostólica para a última decisão
(números 28-29).
Todos os mosteiros, exceto casos
particulares a juízo da Santa Sé, deverão ser federados; é interessante a
possibilidade contemplada de que as
federações sejam configuradas já não
só segundo um critério geográfico,
mas «de afinidade de espírito e de
tradições». Deseja-se também a consociação jurídica dos mosteiros com
a ordem masculina correspondente,
assim como a formação de confederações e de comissões internacionais
das diversas ordens (número 30).
Em relação à clausura, foram redefinidos os três tipos de clausura já
contemplados num certo modo pela
Vita consacrata 59, isto é, clausura
papal, constitucional e monástica,
permitindo a cada mosteiro um discernimento atento, que respeite o direito próprio, a fim de pedir eventualmente à Santa Sé para poder
abraçar uma forma de clausura diversa daquela vigente.
número 30, quinta-feira 28 de julho de 2016
L’OSSERVATORE ROMANO
página 11
Em diálogo com o subsecretário do Pontifício Conselho Cor unum
A caridade do Papa
para com os indígenas e camponeses
MAURIZIO FONTANA
Oitenta microprojetos de apoio às populações indígenas, afro-americanas e camponesas na América Latina
acabaram de ser aprovados pela fundação Populorum
progressio que se reuniu recentemente em Bogotá, informou monsenhor Segundo Tejado Muñoz, subsecretário do Pontifício Conselho Cor unum que nesta
entrevista a L’Osservatore Romano falou sobre a recente viagem realizada à Colômbia e ao Equador para levar a caridade do Papa.
Quais intervenções foram decididas na capital colombiana?
Trata-se de pequenos projetos, muito diferentes entre si por tipologia, idealizados para ir ao encontro
das necessidades das pequenas comunidades. Por
conseguinte, não são empreendimentos faraónicos,
mas um apoio concreto para a vida diária das pessoas
nas áreas rurais ou nas periferias das grandes metrópoles da América Latina. Por exemplo, a Fundação
Populorum progressio ajuda a dar início a atividades
de pecuária, agricultura ou artesanato. Os financiamentos que não superam 25.000 dólares americanos
para cada projeto às vezes servem para comprar ani-
tão previstas no Cone Sul (Argentina, Uruguai e Paraguai) e na América Central, sobretudo no Caribe:
muitos no Haiti. Como é nosso costume, serão levados em frente pela população local através da coordenação dos bispos das respetivas dioceses e da ajuda
dos missionários que depois farão um relatório do
trabalho realizado e dos resultados obtidos.
Poucos dias antes da reunião em Bogotá o senhor esteve
também no Equador para planificar as intervenções de
Cor unum depois do devastador tremor de terra de abril
passado.
Habitualmente o nosso dicastério, em casos de calamidades como o sismo no Haiti, o furacão nas Filipinas ou o tsunami no Japão, manda em nome do
Papa uma primeira ajuda para enfrentar a emergência. Depois de alguns meses, com base na situação do
país, realizamos uma visita para identificar um projeto de reconstrução a apoiar através das ofertas recebidas. No Haiti, por exemplo, construímos uma escola;
nas Filipinas, o centro para idosos e órfãos que depois foi benzido pelo Papa Francisco durante a visita
em janeiro de 2015. Trata-se de um sinal de presença
e proximidade do Pontífice. Mas tais projetos não esgotam a intervenção da Igreja em cada país: obviamente é muito mais ampla,
envolvendo as Cáritas e outras
organizações. Levamos um
dom do Papa que deseja estar
presente também na fase de
reconstrução, depois da grande tragédia. Geralmente, as
intervenções nesta fase envolvem escolas e hospitais.
E qual foi o resultado da sua
visita ao Equador?
Acompanhado durante toda
a viagem pelo núncio, arcebispo Giacomo Guido Ottonello,
visitei três circunscrições eclesiásticas: o vicariato apostólico
de Esmeraldas, a diocese de
Babahoyo e a arquidiocese de
Portovejo. Sem dúvida, esta
última foi a mais atingida pelo sismo. Por conseguinte o
Pontifício Conselho decidiu
Casas destruídas pelo tremor de terra no Equador
destinar os fundos angariados,
cerca de 600.000 euros, à
mais, como vacas, ou instrumentos, maquinarias ou construção de uma escola gerida por uma congregacomputadores. Além disso, aprovámos projetos que ção religiosa. Mas estamos também na expectativa de
preveem a construção de centros nos quais além das outros dois projetos que envolvem as dioceses de Esatividades sociais também se pode celebrar a missa. É meraldas e Babahoyo. Prevê-se a edificação de alguimportante mencionar que no conselho de adminis- mas casas para famílias pobres. Nisso contamos semtração de Populorum progressio há seis arcebispos la- pre com a atenção e a generosidade das pessoas: estino-americanos: uma representação que garante um peramos encontrar um ulterior financiador porque a
perfeito conhecimento da realidade e das exigências situação é deveras difícil.
locais.
Que realidade encontrou?
Qual é o âmbito mais solicitado?
O sismo foi muito forte, devastador. Algumas reEm grande parte trabalhamos no campo da educa- giões foram completamente arrasadas, muitas estrutução: preparação do pessoal, aquisição de material di- ras desabaram, inclusive muitas igrejas. Isto preocupa
dático, reestruturação ou construção de locais e salas. bastante os bispos locais, porque é ainda mais difícil
É importante evidenciar que as intervenções em geral encontrar fundos para reconstruir ou reparar os edifínão incidem exclusivamente na vida social das pescios sagrados. E em muitos lugares já não há lugar
soas, mas procuram prever uma ajuda integral: quereonde celebrar. Durante a viagem pude verificar de
mos prestar atenção ao homem na sua integridade e
portanto estão envolvidos também aspetos pastorais e perto o esforço, a dedicação amorosa e a eficiência da
Igreja equatoriana na organização e ofertas das priespirituais.
meiras ajudas de emergência para a população atingida, assim como a tenacidade e a vontade de apoiar a
Qual é o papel de Cor unum?
reconstrução apesar das muitas dificuldades, inclusive
Recebemos os projetos, fazemos uma avaliação, e burocráticas. Passando por cidades e aldeias pude ense forem aprovados, são financiados pela Conferência contrar-me com pessoas, procurando levar-lhes o
episcopal italiana. De facto, somos uma ponte entre amor e a solidariedade do Papa e da Igreja. Eles ainas necessidades destas populações e as ajudas que po- da mantêm viva a recordação da visita que o Pontífidem chegar de quem tem maiores possibilidades.
ce realizou ao país há um ano: é uma lembrança suave e belíssima. As pessoas sentem com vigor a proxiQuais países foram destinatários dos projetos aprovados midade do Papa e para eles esta presença de Cor
este ano?
unum significa a continuação, se não física contudo
Sobretudo os andinos: Peru, Colômbia, Equador e muito concreta, do afeto que Francisco lhes demonsBolívia. Algumas intervenções em número menor es- trou.
INFORMAÇÕES
Audiências
O Papa Francisco recebeu em audiências
particulares:
A 22 de julho
D. Nunzio Galantino, Secretário-Geral
da Conferência Episcopal Italiana.
Renúncias
O Santo Padre aceitou a renúncia:
No dia 25 de julho
De D. Tomé Makhweliha, S.C.I., ao governo pastoral da Arquidiocese de
Nampula (Moçambique), em conformidade com o cânone 401 § 2 do Código
de Direito Canónico.
Nomeações
O Sumo Pontífice nomeou:
A 25 de julho
Administrador Apostólico «sede vacante et ad nutum Sanctae Sedis» da Arquidiocese de Nampula (Moçambique),
D. Ernesto Maguengue, até à presente
data Auxiliar da mesma Sede metropolitana.
Bispo de Kidapawan (Filipinas), D. José Colin Mendoza Bagaforo, até agora
Auxiliar de Cotabato.
Membros do Conselho diretivo da
Agência da Santa Sé para a Avaliação e
a Promoção da Qualidade das Universidades e Faculdades Eclesiásticas (Avepro), para o quinquénio de 2016-2021:
Pe. Franco Imoda, S.I., Presidente da
Agência; Doutor Riccardo Cinquegrani, Diretor interino da Agência; Pe.
Friedrich Bechina, F.S.O., Subsecretário
da Congregação para a Educação Católica; Doutor Sjur Bergan; Professor
John H. Garvey, Presidente da «Catholic University of America»; Doutor
Achim Hopbach, Diretor da AQ da
Áustria («Austrian Quality Assurance
Agency»); Pe. Roberto Repole, Presidente da Associação Teológica Italiana;
Doutor Jan Sadlak; e Mons. Guy-Réal
Thivierge, Secretário-Geral da Fédération internationale des Universités catholiques (FIUC).
Início de Missão
de Núncios Apostólicos
D. Peter Bryan Wells, Arcebispo Titular de Marcianopolis, na África do Sul
(13 de maio).
D. Peter Bryan Wells, Arcebispo Titular de Marcianopolis, em Botsuana (31
de maio).
L’OSSERVATORE ROMANO
página 12
quinta-feira 28 de julho de 2016, número 30
MARGARET S. ARCHER
Desde que o Papa Francisco escreveu uma nota de próprio punho
(maio de 2013), na qual nos pedia
«para estudar o tráfico humano e a
escravidão moderna», tive a clara
impressão de que se pediria à Pacs
para sair da sua comfort zone feita de
debates teóricos abstratos, ligados de
modo ténue, para usar um eufemismo, à realidade.
Portanto, a Pacs encontrou-se
diante de três tarefas. Primeira, a
construção do consenso interno; segunda, a formação de alianças externas; e, terceira, a avaliação de onde
e como exercer uma pressão política
eficaz. Mas antes de enfrentar estes
três pontos, era necessário que nós
educássemos a nós mesmos: relativamente aos 30 milhões de pessoas vítimas do tráfico (segundo as estimativas da Onu), ao trabalho e à prostituição forçados, ao tráfico de órgãos e à escravidão doméstica. Por
conseguinte, o workshop inicial (novembro de 2013), consistiu em ouvir
os ensinamentos e as informações de
ilustres representantes das Nações
unidas, da Organização internacional do trabalho (Ilo), da União europeia, da Interpol e de comissários
de polícia encarregados de prender
os traficantes. Aprendemos muito
Contributo da Pontifícia academia das ciências sociais na luta contra o tráfico
Para romper as cadeias
das escravidões modernas
Como especialistas em ciências
sociais, os nossos horizontes ampliavam-se graças à colaboração
com os peritos em ciências naturais
na nossa antiga academia irmã, a
Pontifícia academias das ciências
(Pac); juntos, tínhamos enfrentado
Injustiças intoleráveis
«Calcula-se que no mundo aproximadamente 40 milhões de pessoas
são vítimas das modernas formas de escravidão e do tráfico de seres
humanos destinados ao trabalho forçado, à prostituição, à venda de
órgãos e ao narcotráfico. Ao mesmo tempo, como consequência das
guerras, do terrorismo e das mudanças climáticas, contam-se cerca de
60 milhões de deslocados e 130 milhões de refugiados»: eis os
números terríveis recordados pelo bispo Marcelo Sánchez Sorondo,
chanceler da Pontifícia academia das ciências sociais (Pacs),
apresentados durante o encontro internacional que no início do
passado mês de junho reuniu, na Casina Pio IV no Vaticano, juízes e
magistrados para um confronto sobre as temáticas do tráfico de
pessoas e do crime organizado. Agora, a Pacs imprimiu um livrete
com as principais intervenções feitas naquele congresso, entre as
quais o discurso proferido no dia 3 de junho pelo Papa Francisco.
Na sua conferência, D. Sorondo sublinhou que diante de uma
situação tão dramática como esta, «nenhuma instância de justiça
pode tolerar a violência da escravidão ou do crime organizado», e
que «nenhum poder deve corromper a justiça». Os juízes,
acrescentou, «são chamados a adquirir consciência deste desafio, a
compartilhar as suas experiências pessoais e a trabalhar juntos para
abrir novos caminhos de justiça e promover a dignidade humana, a
liberdade, a responsabilidade, a felicidade e a paz». O prelado
concluiu dirigindo um convite a salvar as vítimas da escravidão e do
crime organizado, alcançando deste modo a paz social, a começar
pela justiça na sociedade global. Publicamos nesta página o discurso
da senhora presidente, inserido no mencionado livro da Pacs.
destes generosos especialistas. No
entanto, eles concentravam-se na
identificação, na criminalização e na
ação penal, ou seja, na «oferta» e
nos fornecedores, mais do que a
«procura» que a alimenta; sobre os
«maus» e não sobre as vítimas; sobre a «repatriação» dos sobreviventes como habitual êxito jurídico em
muitos casos e lugares.
o tema «humanidade sustentável;
natureza sustentável» (abril de
2014), apreendendo os rudimentos
de uma «ecologia integral». A construção de alianças tinha começado
«em casa», mas já no final daquele
mesmo ano o consenso «humanista» permitisse que os chefes religiosos mundiais se encontrassem e assinassem uma Declaração conjunta
para condenar o tráfico humano
(dezembro de 2014).
A assembleia plenária da Pacs
(abril de 2015) representou a obtenção da nossa maturidade. As nossas
Recomendações foram vigorosas e
todas centradas nas vítimas. Assim,
não obstante tenhamos concordado
plenamente que a «criminalização»
dos traficantes é uma condição necessária para a eliminação do tráfico,
contudo pusemos em evidência que
não era uma condição suficiente para erradicar as suas consequências
para os sobreviventes. Além dos esforços envidados por agências de voluntariado e por ordens religiosas,
fazia-se pouco para restituir aos sobreviventes a dignidade e para os
reinserir no tecido humano como seres livres. Por conseguinte, os pontos de vista da Pacs tornaram-se
mais específicos; se as nossas Recomendações tinham um lema, era:
«Reinserção, não repatriação».
A Pacs tinha esclarecido as suas finalidades, mas não os seus meios.
Além disso, a Onu teria renovado os
objetivos de desenvolvimento do milénio no mês de agosto, portanto naquele mesmo verão, e assim nós haurimos novamente da nossa colaboração com a Pac para fomentar conjuntamente a redução das emissões
de dióxido de carbono e a eliminação do tráfico humano, em vez de os
tratar como dois movimentos separados e unívocos. Quando, vários dias
mais tarde (28 de abril de 2015), o
secretário-geral da Organização das
nações unidas, Ban Ki-moon, visitou
a sede das Academias, proferiu palavras encorajadoras a favor de ambas
as causas, mas admoestou ao mesmo
tempo que era quase impossível alterar um parágrafo do Esboço dos novos objetivos de desenvolvimento
sustentável. Procurando superar este
impasse, o nosso incansável Chanceler propôs e organizou uma assembleia dos presidentes das câmaras
municipais de algumas grandes cidades, «que deveriam enfrentar as dificuldades»; sessenta deles assinaram
a favor. Contudo, aquilo que se
aproximava não era um temporal
mas um dilúvio que nos atropelava
sob a forma de «crise migratória», a
qual confundiu ainda mais a compreensão por parte do público das
diferenças entre tráfico, contrabando
e migração por motivos económicos,
sobretudo por causa das informações
transmitidas pelos meios de comunicação. Simultaneamente, aumentou
também o apoio aos partidos e aos
movimentos políticos de extrema direita, surdos à emergência humanitária.
O que impediu que também as esperanças da Pacs fossem sufocadas?
Somente a publicação, com sincronismo perfeito, da carta encíclica do
Papa Francisco Laudato si’ (18 de junho de 2015), que insistia sobre a necessidade que todos têm de cuidar
da nossa «casa comum», o planeta
Terra, ressaltando inclusive que o
bem-estar social no mundo globalizado é completamente incompatível
com a tolerância em relação a uma
atitude que julga os seres humanos
como indivíduos «descartáveis». Esta encíclica social é provavelmente
mais lida e citada pelos intelectuais
leigos, do que qualquer outra que a
precedeu.
No dia 1 de setembro de 2015 foi
adotado o texto definitivo dos objetivos de desenvolvimento sustentável
da Onu que, no número 8.7, auspicia «medidas imediatas e eficazes
para erradicar o trabalho forçado,
pôr fim à escravidão moderna e ao
tráfico de seres humanos, garantindo
a proibição e a eliminação das piores
formas de trabalho infantil».
Que rumo deveria tomar a Pacs
para ser útil? Voltando a construir
alianças externas, das quais a assembleia de juízes internacionais, comprometidos mais diretamente nas
sentenças mas também nas medidas
a favor dos sobreviventes, deu um
testemunho eloquente quando 103
deles assinaram a Declaração definitiva.