revista 8

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revista 8
REGIS CONSULTORUM
Revista de assuntos jurídicos e sócio-económicos
Director:
Adalberto Costa
Ano: 2
Número: 8
Janeiro/Fevereiro/Março de 2013
SUMÁRIO
A CRISE DA JUSTIÇA
Alcindo Ferreira dos Reis
A LIVRE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
CUIDADOS DE SAÚDE TRANSFRONTEIRIÇOS
Directiva 2011/24/UE
Isaura Ramalho
BANCO DE HORAS
Adalberto Costa
O ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
Alcindo Ferreira dos Reis
BALCÃO NACIONAL DE ARRENDAMENTO
PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO
Dec. Lei n.º 1/2013
Adalberto Costa
RC
Revista de assuntos jurídicos e sócio-económicos
A CRISE DA JUSTIÇA
IV
A JUSTIÇA E A CONSTITUIÇÃO
* Alcindo dos Reis
1. A constituição de um estado é um instrumento jurídico-político. Juridicamente inculca as noções de "lei-suprema", "lei-fundamental", "lei-base",
"lei-das-leis"; politicamente a noção de constituição
associa-se às noções de liberdade, igualdade, justiça e
democracia. A palavra constituição associa-se ainda a
noções naturais (constituição como organização dos
seres vivos) e artificiais, culturais ou civilizacionais (a
constituição das coisas edificadas, de uma ideia escrita ou sonora, etc.). Em justaposição, a noção jurídico-política é tributária de todas aquelas noções, inculca a possibilidade de descoberta da identidade íntima
da comunidade e de instituição de uma organização
que promova o bem-estar, a justiça e a felicidade entre os membros dessa comunidade, sem quebra dessa identidade originária. Assim, àquelas perspectiva
ou noções, junta-se-lhe a componente utópica (a constituição como "panaceia"). A ideia de constituição, sendo
assim fulcro de tantas noções, nem sempre convergentes, quer no sentido quer nos interesses com que
tangem, não pode escapar à controvérsia. Isso talvez
implique a "razão" por que a mudança de regimes provoca, em regra, a mudança de constituição. O que
parece confirmável pela estabilidade política dos regimes inglês e americano; onde desde há mais de 200
anos, não há problemas constitucionais, porque o essencial desses regimes é maioritariamente assumido
pelos respectivos povos.
A ideia de constituição é, contudo, de formação recente. E anda associada à autonomização das
FICHA TÉCNICA
Regis Consultorum
Revista de Assuntos Jurídicos e Sócio- Ecónomicos
noções de povo, nação e estado que se formaram na
Idade Moderna, mormente na fase em que o absolutismo, encarnado no "príncipe", procurou vencer o
feudalismo medieval. A ideia de constituição apareceu
como forma de combater os excessos do absolutismo, entretanto vencedor.
A Idade Moderna começa a formar-se com o
Renascimento (séculos XV e XVI) e tem o seu apogeu com o iluminismo (século XVIII), podendo-se
até dizer que a Idade Moderna penetrou no século
XX, período em que as mundividências que gerou
entraram em declínio. O Renascimento afirmava a
(re)descoberta da autêntica natureza do homem (pela
ciência, pela arte e pela técnica), alienada no gregarismo
medieval, que culmina no (re)conhecimento iluminista
da força da razão, pela qual o homem se libertaria da
ignorância, do obscurantismo e da superstição. O
constitucionalismo é fruto dessa razão triunfante. E
por isso não surpreende que comece a afirmar-se nos
finais do século XVIII, com as revoluções americana
e francesa, podendo-se, até, configurar o Agreenment
of People (em 1643) e o Instrumento of Government
(em 1654), em Inglaterra, como pródromos da ideia
de constituição. Com a constituição procurava-se organizar uma realidade sócio-histórica, que era um
povo, em forma de nação num dado território, e sócio-política, que era o Estado que garantia a estabilidade dessa formação social. A constituição era assim,
a um mesmo tempo, o estatuto da nação e o estatuto
individual dos seus membros (onde se definiam e rePreço
Portugal Continental ........................
Regiões Autónomas ..........................
Europa (U E) .....................................
Outros Países ....................................
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conheciam os direitos, garantias e deveres fundamentais destes, que assim eram os cidadãos da "grandecidade", que era a nação)… O tempo revelou a insuficiência do conceito, mormente no que tangia com o
estatuto do cidadão: formalmente livre e igual, na prática sujeito à estratificação em classes hierarquizadas,
entre a miséria económica, social e cultural e as fortunas obscenas. O constitucionalismo não podia ficar
imune à pressão de tão graves e injustas contradições, que, por si, também eram contraditórias com a
generosa ideia de constituição. Por isso o
constitucionalismo não pôde evitar as convulsões sociais que o mundo vem registando, apesar de tantas
constituições que foram existindo em cada país, a
quase todas generalizadas, mesmo até às tiranias. Também por isso o constitucionalismo nunca deixou de
estar em crise, sendo duvidoso que, enquanto categoria jurídico-política, tenha virtualidade para vencer
os desajustamentos das sociedades, apesar do "alargamento" da noção de constituição, que, de estatuto
do Estado e do cidadão, passou a consagrar, em muitos sítios, como é o caso português, a democracia
económica, social e cultural, com os seus direitos e
deveres, também em forma fundamental. Ainda no
caso português, e numa livre síntese, pode-se até dizer que ela consagra o ideal social proposto por Agostinho da Silva: o direito de todos ao Sustento, à Saúde
e à Sabedoria.
2. Na sua intencionalidade actual, o conceito
de constituição, enquanto "lei-suprema", "lei-fundamental", "lei-base" ou "lei-das-leis", é um conceito intrinsecamente ligado ao princípio de justiça e ao princípio de direito. A constituição é ainda forma de aferição da validade das leis que se vão promulgando e da
justeza das decisões que se vão proferindo (assim se
ligando ao princípio de justiça) nas suas correlações
com o princípio de direito, que supõe a desenvolução
desse princípio num corpo mais ou menos vasto de
normas. As suas normas, respeitadoras daqueles dois
princípios, em forma de conceitos puros, são como
os grandes traços por que se compreende e regula o
"corpo social". No mundo das normas positivas, são
normas de primeiro grau. E por isso todos os demais
graus legislativos, são sucessivamente, normas legais
de valor reforçado, normas legais ordinárias e regulamentares, que não só não podem contrariar as disposições constitucionais como devem promover o programa que estas disposições contêm. E por isso as
decisões judiciais e administrativas, sob pena de
inconstitucionalidade, não podem aplicar normas que
violem a constituição, nem podem deixar de cumprir,
na sua acção, o programa constitucional. Naturalmente, dirão os que isto lerem, que a constituição é violada de forma continuada e constante. E é. Desde logo
pelo Estado. Que, antes dos Filhos-da-Nação, tem os
Filhos-do-Estado para atender. Depois - e os "últimos
são os primeiros" - pelos poderes fácticos que controlam a acção do estado, dentro do qual têm os seus
aliados, e comandam e controlam toda a acção sócioeconómica e até cultural, em seu benefício (os últimos tempos têm sido férteis na demonstração prática
da "arte" de roubar populações).
A evolução do conceito constitucional, no sentido da consagração da democracia económica, social e cultural, de pouco tem servido às populações,
como é o caso português. A constituição consagra
essas formas democráticas, a par da democracia política, mas isso não tem impedido o empobrecimento
generalizado do povo, enquanto as castas que dominam, fora e dentro do estado, a economia, enriquecem, feroz e obscenamente. Tais constatações até legitimam a interrogação: não servirá a generosidade do
verbo constitucional para "adormecer" as consciências perante as tiranias que nos consomem em forma
de "português suave"? E até para esconder essa "terna barbárie que sufoca a respiração e tolhe a inteligência"?
3.Os teóricos do constitucionalismo, entre
múltiplas acepções do conceito de constituição falam
de constituição escrita e constituição de facto. A constituição escrita é grupo de normas escritas, que consideram a lei fundamental de um dado estado, cujo
sentido se colhe das palavras que lhe dão forma e o
seu espírito. A constituição de facto é um conjunto de
normas não escritas mas que suplantam as normas
constitucionais escritas, quer pela produção legislativa
quer pela acção dos tribunais. Isto percebe-se por um
exemplo simples: a Constituição proíbe o abuso de
posição dominante na actividade económica e financeira. A lei proíbe a usura a qualquer sujeito económico.
Nos contratos de mútuo, os juros nunca podem ser
superiores a 9% ao ano. Os bancos chegam a exigir
mais de 30% ao ano. E os tribunais não… reparam
nisso. Este breve exemplo mostra que a lei que permite que os bancos apliquem tais taxas de juros viola o
disposto na alínea e), do art.º 81.º da Constituição,
que proíbe o abuso de posição dominante, bem como
o seu art.º 13.º que consagra o princípio da igualdade;
como o legislador e os tribunais "não reparam nisso",
por aqui se vê como a constituição de facto viola a
constituição escrita. E os exemplos são inesgotáveis.
E parecem mostrar que o constitucionalismo está em
crise ou que até seja uma ideia inoperante. Será assim?
4.Enquanto
conceito,
a
crise
do
constitucionalismo é a mesma crise dos conceitos de
justiça e de direito. São crises de natureza fáctica ou
3
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prática, e não de natureza racional ou teórica. Quando
pensamos nas ideias que esses conceitos conformam,
estamos a associá-los à ideia de Bem, do Bom e, até,
da Felicidade. Formam, estas ideias, como que um
contexto, que é um Ideal. E o Ideal supõe o fazer.
Que é, fazer aquilo mesmo: o Bem, o Bom. Para a
Felicidade de… todos. E como pudemos ver, em notas anteriores a propósito da justiça e do direito, essas
coisas alcançam-se com sacrifícios. Que serão tanto
menores, quanto mais forem partilhados. Biológica e
psicologicamente é, contudo, agradável ter mais com
menos sacrifício… Daí o grande problema da justiça,
do direito, da constituição… Que é sempre um pro-
blema político. Incontornavelmente político. E o político é a sede do poder. E o poder é força. Que se
detém e pratica-se com pessoas que aceitam usar a
força e com armas. Contra isto o direito, a justiça e a
constituição nada podem: porque são ideais, são razão. Podem ficar na memória e no pensamento, mas
não matam. A força mata. E por isso mata quem a
tem. Ainda que através da forma mais vil e insidiosa
de matar, que é a fome, a pobreza. Contra o poder da
força, só a força da Razão abre o caminho da felicidade, que é feito com a Paz (que não é armistício), que
é o contrário da força.
*Advogado na AFR - sociedade de advogados
A LIVRE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
CUIDADOS DE SAÚDE TRANSFRONTEIRIÇOS
DIRECTIVA 2011/24/UE
*Isaura Ramalho
Introdução
O ideal de consenso que inspira os sistemas
federativos implica o reconhecimento mútuo, a aprendizagem recíproca, a concertação contínua. Como em
qualquer sistema federativo, os actores políticos envolvidos na integração europeia estabelecem entre si
um compromisso de cooperação, de partilha de entendimento possível. Daqui decorre um Princípio de
Lealdade, segundo o qual a União e os Estados respeitam-se e assistem-se mutuamente no cumprimento
das missões decorrentes dos tratados. E a partir deste
princípio sucedem um conjunto de outros princípios
que são próprios do Direito da União.
A União baseia-se nas soberanias nacionais dos
Estados-Membros e tem como pedra angular a diversidade, definindo-se como uma União de Estados e
Povos, os quais acordaram em partilhar uma parte da
sua soberania. Estamos perante a criação de uma
"democracia supranacional" de natureza sui generis,
diferente da democracia dos Estados com uma lógica
meramente intergovernamental. Trata-se de dar ênfase a uma legitimidade europeia autónoma, baseada na
coexistência entre as soberanias dos Estados. Esta
democracia europeia é legitimada pelos Estados e pelos Cidadãos Europeus. A soberania nacional vai ter
de coexistir e de ser completada com a soberania
4
europeia. O "sentimento de pertença" a identidade nacional, o patriotismo constitucional, a coesão
económica, social e territorial têm de se afirmar num
contexto de fronteiras abertas. A Europa tem de ser
um espaço aberto de paz, de desenvolvimento e de
solidariedade.
A União Europeia assenta numa ordem jurídica
fundada no respeito pelos princípios da liberdade, da
democracia e do Estado de Direito. Fiel à inspiração
pragmática de Jean Monnet, para quem a Europa deveria construir-se com base em solidariedade e práticas comuns entre os países europeus, o Tratado de
Roma fez das quatro liberdades fundamentais (liberdade de circulação de mercadorias, de pessoas, de
estabelecimento, de serviços e de capitais) os fundamentos da Comunidade Europeia. A ideia dos "pais
fundadores" era clara: começar pela economia para
chegar mais longe, sobretudo para chegar às pessoas. Assim à medida que a Comunidade se foi desenvolvendo, foi-se expandindo para esferas como a social, a política, a educação, a cultura e a investigação
científica. Deste modo, esses e outros domínios foram sendo objecto de intervenção comunitária, quer
com base nas revisões dos Tratados, quer com o apoio
da jurisprudência do Tribunal de Justiça.
Ora o processo de integração económica e social em que a União Europeia está empenhada com-
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portou a criação no espaço da União Europeia de um
Mercado Interno cuja plena realização, aprofundamento
e estabilidade futura exigiu a adopção de determinadas
políticas comuns e de uma moeda única, ou seja a
instituição de uma União Económica e Monetária. O
Mercado Interno foi concebido como instrumento da
integração económica e social no espaço europeu. Este
mercado interno assenta na criação de uma União Aduaneira, na livre circulação dos factores de produção e
em regras comuns de concorrência.
A Integração Económica e o Mercado Interno
Inicialmente o mercado era o local onde os vendedores de certas mercadorias, concorrendo entre si,
convidavam os eventuais interessados na compra desses produtos a adquiri-los. Posteriormente, a expressão passou a designar o conjunto dos compradores
que podem ser abastecidos pelos produtores. A extensão do mercado de um dado produto resulta de múltiplas condições, umas dependentes do próprio produtor, outras impostas pela autoridade pública, e outras
ainda decorrentes da legislação aduaneira, fiscal, monetária, ou seja, do quadro jurídico em que as
actividades económicas são exercidas.
Se um produto pretende abastecer apenas a clientela do seu país em sistema de economia de mercado, tudo é relativamente simples numa época em que a
integração económica nacional é em geral plenamente
realizada, mas tudo se complica seriamente se um produtor pretende ultrapassar o quadro nacional, alcançar
a clientela de outro país. Ao longo dos tempos, cada
um dos mercados nacionais europeus foi sendo sistematicamente protegido da concorrência dos produtos
estrangeiros mediante um espessa barreira de leis, de
regulamentos e de práticas administrativas tendentes a
impor restrições quantitativas ou encargos aduaneiros
às mercadorias importadas. Pense-se na complexidade de fazer dos mercados nacionais dos países membros da União Europeia um mercado comum, ou seja
um mercado único, um espaço económico liberalizado
e integrado em que os produtores de cada país possam, com inteira liberdade de movimentos, atingir os
consumidores dos outros países membros, beneficiando, em qualquer deles, de um tratamento não
discriminatório em relação aos seus concorrentes.
A noção de mercado comum, não definida no
Tratado de Roma, foi precisada aquando da revisão
operada pelo Acto Único Europeu, de 1986, ao introduzir o conceito de mercado interno (espaço sem fronteiras internas no qual é assegurada a livre circulação
de mercadorias, pessoas, serviços e capitais). O
acórdão Schul1 (Maio de 1982) havia dado a entender
que a noção de mercado comum visava a eliminação
de todos os entraves às trocas intercomunitárias com
vista à fusão dos mercados nacionais num mercado
único, criando condições tão próximas quanto possível das de um verdadeiro mercado interno. O conceito de mercado interno para além do seu alcance
mediático, trazia a perspectiva do aperfeiçoamento
do regime do mercado comum: realizado este, reconhecia-se que subsistiam obstáculos de ordem física, técnica e fiscal à livre circulação, para cuja supressão se estabeleceu a meta de 31 de Dezembro de
1992, meta essa que foi alcançada.
O TUE no nº 3 do art. 3.º diz que " A União
estabelece um mercado interno", e o art. 26.º do TFUE,
afirma que, "A União adopta as medidas destinadas a
estabelecer o mercado interno ou a assegurar o seu
funcionamento", e o nº. 2 deste artigo, diz-nos que,
"O mercado interno compreende um espaço sem fronteiras no qual a livre circulação das mercadorias, das
pessoas, dos serviços e dos capitais é assegurada de
acordo com as disposições dos Tratados". Estas disposições têm em vista, por um lado, a abolição das
barreiras estatais que se opõem à livre circulação dos
produtos e ao livre exercício das actividades
económicas, e por outro, aquelas que resultam do
dirigismo privado, isto é, as que decorrem de comportamentos anticoncorrencionais das empresas, traduzidos em práticas que implicam, designadamente,
a repartição dos mercados ou formas de exploração
desses mercados atentatórias de um comércio livre
regido pelo princípio da concorrência leal (art.º 101º
e segs. do TFUE). Se a isto acrescentarmos as disposições relativas à política comercial (exterior) comum, constantes dos arts. 206.º e segs., à política
agrícola comum (arts. 38.º e segs.) e à política comum de transportes, (arts. 90.º e segs.), teremos
formado o quadro básico das regras constitutivas do
mercado interno europeu tal como fora inicialmente
concebido.
De relevar que a integração económica apresenta determinadas vantagens entre as quais a criação ou o desenvolvimento de actividades dificilmente
compatíveis com a dimensão nacional, a formulação
mais coerente e rigorosa das políticas económicas,
transformação das estruturas económicas e sociais,
reforço da capacidade de negociação, aceleração do
ritmo de desenvolvimento, atenuação dos problemas
da balança de pagamentos, intensificação da concorrência, benefícios para os consumidores, entre outros. No entanto também são consideráveis as dificuldades, entre as quais as disparidades do desenvolvimento económico e social entre os participantes do
processo de integração, a resistência dos diversos
sistemas nacionais às regras de disciplina colectiva, a
resistência psicológica das populações, e as rivalidades históricas.
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A livre circulação de mercadorias, de pessoas, de
capitais, de estabelecimento e prestação de
serviços
O Mercado Interno é uma realidade correspondente a um grau superior de integração económica, e
que implica não só a livre circulação dos bens mas
também a livre circulação dos diversos factores de
produção: trabalho, capitais e iniciativas empresariais
traduzidas no exercício das liberdades de estabelecimento e de prestação de serviços. A ideia dominante
no que toca à livre circulação dos factores de produção no espaço europeu é a de que a plena realização
do Mercado Interno da União não poderia assentar
apenas na eliminação dos entraves à livre circulação
das mercadorias.
A livre circulação de Mercadorias
A noção de "livre circulação das mercadorias"
resulta dos arts. 28.º, 34.º e 35.º do TFUE. Segundo o
art. 28.º, a livre circulação implica a proibição entre
os Estados-Membros, de direitos aduaneiros de importação e de exportação e de quaisquer encargos de
efeito equivalente. Os arts. 34.º e 35.º proíbem também as restrições quantitativas à importação e à exportação entre Estados-membros, bem como todas
as medidas de efeito equivalente2,3.
A livre circulação de mercadorias constitui a
base da integração europeia. Envolve a realização da
união aduaneira, com eliminação dos direitos aduaneiros e outros entraves ao comércio entre os países
membros, e a adopção de uma tarifa exterior unificada,
de que decorre a harmonização das relações comerciais com terceiros países (política exterior comum).
A livre circulação de Pessoas
Os arts. 45.º e 46.º do TFUE consagram o direito de livre circulação de trabalhadores por conta de
outrem que sejam nacionais dos Estados-Membros.
O art. 45.º n.º 2, prescreve a "abolição de toda e qualquer discriminação, em razão da nacionalidade, entre
trabalhadores dos Estados-Membros no que diz respeito ao emprego, à remuneração e demais condições
de trabalho". Mas da liberdade de circulação não beneficiam apenas os trabalhadores da União. Essa liberdade é em princípio extensiva a qualquer pessoa,
pois a todas é (actualmente) reconhecido o direito de
livre deslocação, através das fronteiras internas da
União, a título de beneficiários de qualquer serviço e,
mesmo na qualidade de simples turistas. A liberdade
de circulação e de permanência no território dos Estados-Membros é, com efeito, inerente à qualidade de
cidadão europeu (arts. 20.º n.º 2 e 21.º do TFUE)4.
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A livre circulação de Capitais
Durante longos anos, dos quatro princípios
fundamentais do projecto europeu, a que permaneceu
sujeita a maiores restrições foi o relativo aos movimentos de capitais. No contexto da realização do mercado interno, uma directiva de Junho de 1988 determinou a supressão de todos os obstáculos aos movimentos de capitais entre residentes dos Estados-Membros.
O TFUE estabelece uma distinção entre liberdade de circulação de capitais e liberalização dos pagamentos. Assim por força do n.º 1 do art. 63.º "No
âmbito das disposições do presente Capítulo são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais
entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e
países terceiros", já o n.º 2 dispõe que "são proibidas
todas as restrições aos pagamentos entre os EstadosMembros e entre Estados-Membros e países terceiros".
Livre circulação de Estabelecimento e
prestação de Serviços
Os arts. 49.º a 55.º e 56.º a 62.º do TFUE estabelecem o princípio do direito de estabelecimento na
indústria, no comércio, na agricultura e nas profissões independentes em geral, bem como o direito de
livre prestação de serviços em qualquer sector de
actividade económica.
Por um lado, o art. 49.º do mesmo Tratado,
diz-nos que a "liberdade de estabelecimento compreende tanto o acesso às actividades não assalariadas e
o seu exercício como a constituição e a gestão de
empresas e designadamente de sociedades…"e, bem
assim, o direito de criar "agências, sucursais ou filiais" de empresas já constituídas noutro Estado-Membro. Por seu turno, segundo o art. 57.º, "Consideramse serviços as prestações realizadas mediante remuneração, na medida em que não sejam reguladas pelas
disposições relativas à livre circulação de mercadorias, de capitais e de pessoas". Os serviços compreendem, designadamente: actividades de natureza industrial; actividades de natureza comercial; actividades
artesanais; actividades das profissões liberais."
A Livre Prestação de Serviços de Saúde na União
Europeia
De acordo com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o art. 35.º, refere que "Todas as pessoas têm o direito de aceder à prevenção
em matéria de saúde e de beneficiar de cuidados mé-
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dicos, de acordo com as legislações e práticas nacionais. Na definição e execução de todas as políticas e
acções da União é assegurado um elevado nível de
protecção da saúde humana". A União Europeia procura proteger a saúde humana e animal, conferindo
simultaneamente mais direitos aos consumidores e
garantindo a sua segurança. Os sistemas de saúde na
U.E são uma componente essencial dos elevados níveis de protecção social da União, e contribuem para
a coesão e a justiça sociais, bem como para o desenvolvimento sustentável, fazendo igualmente parte do
quadro mais amplo dos serviços de interesse geral.
Por outro lado, no art. 168.º do TFUE, é afirmado que "Na definição e execução de todas as políticas e acções da União será assegurado um elevado
nível de protecção da saúde. A acção da União, que
será complementar das políticas nacionais, incidirá na
melhoria da saúde pública e na prevenção das doenças e afecções humanas e na redução das causas de
perigo para a saúde física e mental. Esta acção abrangerá a luta contra os grandes flagelos, fomentando a
investigação sobre as respectivas causas, formas de
transmissão e prevenção, bem como a informação e a
educação sanitária e a vigilância das ameaças graves
para a saúde com dimensão transfronteiriça, o alerta
em caso de tais ameaças e o combate contra as mesmas. A acção da União será complementar da acção
empreendida pelos Estados-Membros na redução dos
efeitos nocivos da droga sobre a saúde, nomeadamente
através da informação e da prevenção."
Tal como foi reconhecido pela Comissão, no
denominado Livro Branco - "Juntos para a Saúde: uma
abordagem estratégica para a UE" (2008-2013), a saúde é fundamental na vida das pessoas e deve ser apoiada por políticas e acções eficazes, tanto nos Estados-Membros como a nível da Comissão Europeia e
à escala mundial. As competências em matéria de política da saúde e de prestação de cuidados de saúde
aos cidadãos europeus incumbem em primeiro lugar
aos Estados-Membros. A função da Comissão
Europeia neste domínio não consiste em reflectir ou
duplicar o trabalho dos Estados-Membros. Há, no
entanto, domínios em que os Estados-Membros não
podem actuar sozinhos de modo eficaz, tornando-se
indispensável uma colaboração a nível comunitário.
Entre esses domínios são de referir as grandes ameaças para a saúde e as questões com impacto
transfronteiriço ou internacional, como as pandemias
e o bioterrorismo, bem como as questões relacionadas com a livre circulação de mercadorias, serviços e
pessoas. A Comissão estabeleceu por isso alguns princípios fundamentais da acção da UE no domínio da
saúde: 1º- Uma estratégia baseada em valores partilhados: A política de saúde, quer interna quer externa,
deve assentar em valores claros. Um dos valores cen-
trais é a capacitação dos cidadãos. Os cuidados de
saúde são cada vez mais centrados no doente e individualizados, e o doente torna-se um sujeito activo em
vez de apenas o receptor passivo de cuidados de saúde. Com base no trabalho realizado no âmbito da Agenda para os Cidadãos, a política de saúde comunitária
deve tomar como principal ponto de partida os direitos dos cidadãos e dos doentes. Os valores no domínio da melhoria da saúde devem abranger a redução
das desigualdades na saúde. Por último, a política de
saúde deve basear-se nas melhores provas científicas, obtidas a partir de dados e informações sólidas, e
na investigação relevante; 2º- "A saúde é a maior riqueza": A saúde é importante para o bem-estar das
pessoas e da sociedade, mas uma população saudável
é também uma condição fundamental para a produtividade e a prosperidade económicas. Em 2005, o indicador "Anos de Vida Saudável" foi adoptado como
indicador estrutural de Lisboa, a fim de destacar o
facto de que a esperança de vida em boa saúde - e não
apenas o número de anos de vida - constitui um factor
central do crescimento económico.
No seu relatório ao Conselho Europeu da Primavera de 2006, a Comissão instou os Estados-Membros a reduzir o elevado número de pessoas inactivas
por motivo de doença. Este relatório sublinhou o facto de as estratégias adoptadas em muitos sectores
poderem contribuir para a melhoria da saúde, em benefício de toda a economia.
As despesas no sector da saúde não representam apenas um custo - são também um investimento.
As despesas com a saúde podem ser vistas como um
peso económico, mas o ónus real para a sociedade
reside nos custos directos e indirectos relacionados
com a doença, bem como na falta de investimento
suficiente em áreas de saúde relevantes. Estima-se que
o custo económico anual da insuficiência coronária
pode ascender a 1% do PIB e o custo das doenças
mentais a 3-4% do PIB. As despesas com os cuidados de saúde deveriam ser acompanhadas por investimentos na prevenção, protecção e melhoria da saúde física e mental geral da população. De acordo com
dados da OCDE, esses investimentos correspondem
actualmente a apenas 3%, em média, dos orçamentos
anuais da saúde dos países membros desta organização, em comparação com os 97% gastos em tratamentos e cuidados de saúde.
Na UE, o sector da saúde é um importante fornecedor de emprego e de formação: os serviços médico-sociais têm sido um motor essencial da expansão do sector dos serviços desde 2000 (até 2,3 milhões de empregos). O sector da saúde em crescimento é igualmente uma fonte e um utilizador importante de tecnologias inovadoras, constituindo além
disso um sustentáculo da política regional e da coe7
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são económica e social. Importa melhorar a compreensão dos factores económicos relacionados com a
saúde e a doença e do impacto económico da melhoria
da saúde, tanto na UE como à escala mundial,
designadamente mediante o desenvolvimento da informação e da análise na Comissão, bem como através de uma estreita colaboração com parceiros como
os EUA ou o Japão e com organismos internacionais
como a OCDE e o Observatório Europeu dos Sistemas e Políticas de Saúde; 3º- Integrar a dimensão da
saúde em todas as políticas: A saúde da população não
depende unicamente da política de saúde. Outras políticas comunitárias desempenham um papel
determinante, nomeadamente a política regional e do
ambiente, a fiscalidade sobre o tabaco, a regulamentação dos produtos farmacêuticos e dos produtos alimentares, a saúde animal, a investigação e inovação
no domínio da saúde, a coordenação dos regimes de
segurança social, a dimensão da saúde na política de
desenvolvimento, a saúde e segurança no trabalho, as
TIC (Tecnologias da Informação e da Comunicação)
e a protecção radiológica, bem como a coordenação
das agências e dos serviços que regulam as importações. Estabelecer sinergias com estes e outros
sectores é fundamental para uma política comunitária
de saúde sólida, e muitos sectores irão colaborar a
fim de concretizar os objectivos e as acções da presente estratégia. Integrar a dimensão da saúde em todas as políticas implica também envolver novos parceiros na política de saúde. A Comissão estabelecerá
parcerias tendo em vista a promoção dos objectivos
da estratégia, nomeadamente com as ONGs (Organizações não Governamentais), a indústria, o sector
universitário e a comunicação social. Esta abordagem
de integração da dimensão da saúde em todas as políticas deve ser aplicada igualmente nas políticas externas, designadamente a política de desenvolvimento,
as relações externas e o comércio. A globalização significa que tanto os problemas de saúde como as soluções encontradas transpõem as fronteiras e têm muitas vezes causas e consequências transectoriais. Neste
contexto, é de referir, a título de exemplo, a abordagem coordenada de luta contra o HIV/SIDA na UE e
nos países vizinhos e a estratégia de acção da UE relativa à escassez de recursos humanos no sector da
saúde nos países em desenvolvimento. Acções a reforçar a integração das questões de saúde em todas as
políticas a nível da Comunidade, dos Estados-Membros e das regiões, designadamente recorrendo à avaliação de impacto e aos instrumentos de avaliação (Comissão, Estados-Membros); 4º- Reforçar a influência
da UE no domínio da saúde a nível mundial: A CE e os
seus Estados-Membros podem obter melhores resultados no domínio da saúde para os cidadãos da UE e
dos países terceiros através de uma liderança colectiva
8
duradoura em matéria de saúde a nível mundial. A
contribuição da UE para a saúde mundial exige uma
interacção entre domínios políticos como a saúde, a
cooperação para o desenvolvimento, a acção externa,
a investigação e o comércio. Uma coordenação reforçada em matéria de saúde com organizações internacionais - a OMS e outras agências relevantes das Nações Unidas, o Banco Mundial, a Organização Internacional do Trabalho, a OCDE e o Conselho da Europa, por exemplo - e com outros parceiros e países
estratégicos conferirá também à UE uma posição mais
forte no domínio da saúde a nível mundial e aumentará a sua influência e visibilidade, de modo a reflectir o
seu peso económico e político.
A política de saúde desenvolvida à escala comunitária deve promover a saúde, proteger os cidadãos das ameaças à saúde e contribuir para a
sustentabilidade. Por isso, para fazer frente aos grandes desafios da saúde na U.E, a estratégia define três
objectivos como principais domínios de acção para
os próximos anos: promover a saúde numa Europa
em envelhecimento, proteger os cidadãos das ameaças para a saúde, promover sistemas de saúde dinâmicos e as novas tecnologias5.
Cuidados de Saúde Transfronteiriços - A Directiva
2011/24/EU do Parlamento Europeu e do Conselho
de 9 de Março de 2011I.
I. A Jurisprudência do Tribunal de Justiça: do
Acórdão Shumacher ao Acórdão Elchinov
Como podemos verificar o direito de livre circulação de (pessoas) doentes no espaço da União
Europeia assume cada vez mais uma extrema importância. O conflito entre a competência exclusiva dos
Estados-membros em relação à organização e prestação de serviços de saúde e a livre circulação de mercadorias e prestação de serviços tem sido um assunto
bastante discutido por parte do TJCE. Note-se que na
última década vários acórdãos do TJCE, são disso
exemplo o Acórdão Shumacher, Decker e Elchinov,
confirmam que o TUE confere a cada paciente o direito de beneficiar de cuidados de saúde noutro Estado-membro e ser reembolsado no país de origem.
Acórdão Shumacher
Por decisão de 25 de Maio de 1987, que deu
entrada no Tribunal em 14 de Julho seguinte, o
Hessische Finanzgericht colocou ao Tribunal de Justiça, ao abrigo do artigo 177.° do Tratado CEE, uma
questão relativa à interpretação dos artigos 30.° e 36.°
desse Tratado. Esta questão foi colocada no âmbito
de um litígio que opõe Heinz Schumacher ao
Regis Consultorum - Revista
Hauptzollamt Frankfurt am Main.
O caso dizia respeito a H. Schumacher, residente em Frankfurt am Main, que encomendou à farmácia do Dôme em Estrasburgo, para seu uso pessoal, "Chophytol", medicamento à base de extractos de
alcachofra, que era utilizado, designadamente, no tratamento de perturbações dispépticas e como diurético.
Este medicamento fabricado em França, estava autorizado na República Federal da Alemanha, onde era
vendido nas farmácias sem receita médica. Acontece
que o seu preço é mais elevado na República Federal
da Alemanha do que em França. Tendo a administração aduaneira recusado a autorização para a introdução no consumo da encomenda em questão, H.
Schumacher recorreu dessa decisão para o Hessische
Finanzgericht, que colocou ao Tribunal de Justiça a
presente questão prejudicial. A recusa teve por fundamento o disposto no artigo 73.°, n.° 1, da lei que aprova a nova regulamentação sobre medicamentos (Gesetz
zur Neuordnung des Arzneimittelrechts), de 24 de
Agosto de 1976 ( Bundesgesetzblatt I, 1976, p. 2445
e seguintes) que apenas permite a importação de medicamentos provenientes de um país membro da Comunidade Europeia, desde que, por um lado, tratando-se de medicamentos sujeitos a autorização ou
registo, tenham sido autorizados, registados ou dispensados dessa formalidade e, por outro, o importador seja empresário farmacêutico, grossista, veterinário, ou director de farmácia, o que exclui os particulares enquanto tais. Foram previstas algumas
excepções a esta proibição, que não têm aplicação no
caso em apreço no processo principal.
Tendo o órgão jurisdicional nacional algumas
dúvidas sobre a compatibilidade de uma tal disposição, face, designadamente, ao seu carácter demasiado geral, com o disposto dos artigos 30.° e seguintes
do Tratado CEE, colocou ao Tribunal de Justiça a seguinte questão: "A primeira alínea do n.° 1 do artigo
73.° da Gesetz zur Neuordnung des Arzneimittelrechts
(lei que aprova a nova regulamentação sobre medicamentos), de 24 de Agosto de 1976 (Bundesgesetzblatt
I, 1976, p. 2445 e seguintes), é compatível com o
artigo 30.° do Tratado CEE, ao proibir, em termos
gerais, a importação de medicamentos provenientes
dos Estados-membros por entidades privadas?"
Ora de acordo com a jurisprudência constante
do Tribunal, entre os bens ou interesses protegidos
pelo artigo 36.°, a saúde e a vida das pessoas ocupam
o primeiro lugar e compete aos Estados-membros,
nos limites impostos pelo Tratado, decidir do nível a
que pretendem garantir a sua protecção e, em especial, do grau de rigor dos controlos a efectuar.
Mas convém igualmente recordar que, de acordo com a jurisprudência do Tribunal, resulta do artigo
36.° do Tratado CEE, que uma regulamentação ou
prática nacional que tenha ou possa ter efeitos restritivos sobre as importações de produtos farmacêuticos apenas é compatível com o Tratado, desde que
seja necessária à protecção eficaz da saúde e da vida
das pessoas.
Quando um particular compra, para seu uso
pessoal numa farmácia de outro Estado-membro um
medicamento autorizado e fornecido sem receita médica no Estado-membro de importação uma disposição como a do artigo 73.° da lei alemã de 27 de Agosto de 1976, que regula a situação em causa no processo principal, constitui, evidentemente, uma medida que restringe o comércio intracomunitário e que
não encontra justificação em razões de protecção da
saúde pública.
O Tribunal entendeu por isso, que é incompatível com os arts. 30.º e 36.º do Tratado CEE uma
disposição nacional que proíba a importação por particulares, para as suas necessidades pessoais, de medicamentos autorizados no Estado-membro de importação, fornecidos nesse Estado sem receita médica e
adquiridos numa farmácia de outro Estado-membro6.
Acórdão Decker de 1998
Por decisão de 5 de Abril de 1995, que deu
entrada no Tribunal de Justiça em 7 do mesmo mês, o
conseil arbitral des assurances sociales submeteu, nos
termos do artigo 177.° do Tratado CE, uma questão
prejudicial sobre a interpretação dos artigos 30.° e 36.°
do Tratado CE. A questão foi suscitada no quadro de
um litígio entre N. Decker, nacional luxemburguês, e
a Caisse de maladie des employés privés (a seguir
"Caixa") a propósito de um pedido de reembolso de
óculos com lentes de correcção comprados num oculista em Arlon (Bélgica), com uma receita de um oftalmologista estabelecido no Luxemburgo. Por carta
de 14 de Setembro de 1992, a Caixa informou N.
Decker da sua recusa de reembolso dos óculos, pelo
facto de terem sido comprados no estrangeiro sem a
sua autorização prévia. N. Decker contestou esta decisão, invocando designadamente as regras do Tratado respeitantes à livre circulação de mercadorias. A
Caixa, para a qual N. Decker recorreu, manteve a sua
posição por decisão da sua direcção de 22 de Outubro
de 1992, indeferindo assim o pedido de N. Decker.
Este interpôs, pois, recurso para o conseil arbitral des
assurances sociales que, por despacho de 24 de Agosto
de 1993, lhe negou provimento. Em 8 de Setembro de
1993, N. Decker impugnou este despacho junto do
conseil arbitral des assurances sociales, tendo o seu
pedido sido rejeitado por decisão de 20 de Outubro de
1993, designadamente com fundamento no facto de
o processo não ter qualquer relação com a livre circulação de mercadorias, mas sim com o direito da segu9
Regis Consultorum - Revista
rança social, isto é, com o Regulamento (CEE) n.°
1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos
trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade [v. a versão alterada e
actualizada pelo Regulamento (CEE) n.° 118/97 do
Conselho, de 2 de Dezembro de 1996]. Tendo dúvidas sobre a compatibilidade das disposições em causa
com o direito comunitário, mais precisamente com
os artigos 30.° e 36.° do Tratado, o conseil arbitral
des assurances sociales decidiu suspender a instância
e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão
prejudicial: "O artigo 60.° do Código da Segurança
Social luxemburguês, com base no qual um organismo de segurança social de um Estado-Membro A recusa a um beneficiário, cidadão desse mesmo Estado-Membro A, o reembolso de óculos com lentes de
correcção receitados por um médico com consultório no mesmo Estado, mas comprados num oculista
com estabelecimento num Estado-Membro B, com o
fundamento de que qualquer tratamento médico no
estrangeiro deve ser previamente autorizado pelo referido organismo de segurança social, compatível com
os artigos 30.° e 36.° do Tratado CEE na medida em
que penaliza, em geral, a importação por particulares
de medicamentos ou, como no caso em apreço, de
óculos, provenientes de outros Estados-Membros?"
Ora o Tribunal de Justiça invoca que a compra
de óculos num oculista estabelecido noutro EstadoMembro apresenta garantias equivalentes às oferecidas pela venda de óculos e que, no processo principal, a aquisição dos óculos foi efectuada por receita
de um oftalmologista, o que garante a protecção da
saúde pública.
O Tribunal acaba por concluir que uma legislação como a aplicável no processo principal não pode
ser justificada por razões de saúde pública ligadas à
protecção da qualidade dos produtos médicos fornecidos noutros Estados-Membros.
E que por isso os artigos 30.° e 36.° do Tratado se opõem a uma legislação nacional por força da
qual um organismo de segurança social de um Estado-Membro recusa a um beneficiário o reembolso de
um montante fixo para óculos com lentes de correcção
comprados num oculista estabelecido noutro EstadoMembro, com fundamento no facto de que a compra
de qualquer produto médico no estrangeiro deve ser
previamente autorizada por um oculista estabelecido
no território nacional7.
Acórdão Elchinov de 2010
No Acórdão em apreço está em causa o cidadão Georgi Ivanov Elchinov, residente na Bulgária e
10
beneficiário do seguro de doença da Caixa Nacional
de Doença desse país, foi diagnosticada uma doença
maligna do foro oncológico no olho direito. Foi lhe
prescrito, pelo seu médico, um tratamento através da
aplicação de placas radioactivas ou através de uma
terapia protónica. Em 9 de Março de 2007, apresentou, ao abrigo do artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/
71, um pedido de emissão do modelo de autorização
E 112 (documento que autoriza um tratamento médico no estrangeiro) àquela Caixa, para ser submetido
ao tratamento prescrito numa clínica especializada em
doenças oftalmológicas em Berlim, por conta do seu
seguro de doença búlgaro. O pedido baseava se na
impossibilidade de prestação do tratamento prescrito
no país de residência, onde o tratamento possível para
a referida patologia consiste na ablação completa do
olho (enucleação). Atenta a gravidade do seu estado
de saúde e antes de a referida Caixa ter respondido ao
pedido, em 15 de Março submeteu se ao tratamento
na clínica alemã. Decorridas algumas semanas e após
ter recebido um parecer do Ministério da Saúde confirmando que o tratamento prescrito não era realizado
na Bulgária, em 18 de Abril a Caixa decidiu recusar o
pedido. Desta decisão foi interposto recurso
contencioso para o Tribunal Administrativo de Sófia
que, em 13 de Agosto do mesmo ano, proferiu acórdão
que deu provimento ao recurso, anulando a decisão
recorrida, e remeteu o processo à Caixa ordenando a
emissão do modelo E 112 e condenando a nas custas.
A Caixa interpôs recurso deste acórdão para o
Varchoven administrativen Sad (Supremo Tribunal
Administrativo) e no decurso da "reapreciação" do
processo pelo Tribunal Administrativo de Sófia, G.
Elchinov requereu que fosse submetido ao Tribunal
de Justiça da União Europeia um pedido de decisão
prejudicial. Em 14 de Maio de 2009 deu entrada no
Tribunal de Justiça o pedido de decisão prejudicial do
Tribunal Administrativo de Sófia, articulado nas seguintes questões: 1) O artigo 22.°, n.° 2, segundo
parágrafo, do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do
Conselho, de 14 de Junho de 1971, […], deve ser
interpretado no sentido de que, quando o tratamento
concreto para o qual é solicitada a emissão do modelo
E 112 não puder ser [ministrado] numa instituição de
saúde búlgara, deve presumir se que esse tratamento
não é financiado pelo orçamento da Caixa Nacional de
Doença (NZOK) ou do Ministério da Saúde, e inversamente, que quando este tratamento é financiado pelo
orçamento da NZOK ou do Ministério da Saúde, deve
presumir se que o tratamento pode ser ministrado numa
instituição de saúde búlgara? 2) A expressão ["os mesmos tratamentos não puderem ser dispensados no [...]
Estado Membro de residência"], constante do artigo
22.°, n.° 2, segundo parágrafo, do Regulamento (CEE)
n.° 1408/71, deve ser interpretada no sentido de que
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abrange os casos em que o tratamento existente no
território em que o beneficiário reside é um tipo de
tratamento muito menos eficaz e muito mais radical
do que o que existe noutro Estado Membro, ou apenas os casos em que o interessado não pode ser
atempadamente tratado? 3) Tendo em conta o princípio da autonomia processual, o tribunal nacional está
obrigado a acatar as indicações vinculativas que lhe
foram dadas por uma instância superior que revogou
a sua decisão anterior e lhe remeteu o processo para
reapreciação, quando existam fundamentos para se
pensar que essas indicações estão em contradição com
o direito comunitário? 4) Quando o tratamento em
causa não puder ser prestado no território do Estado
Membro em que o beneficiário reside, para que este
Estado Membro seja obrigado a autorizar o tratamento noutro Estado Membro nos termos do artigo 22.°,
n.° 1, alínea c), do Regulamento (CEE) n.° 1408/71,
é suficiente que o tipo de tratamento em causa esteja
incluído nas prestações previstas na legislação do primeiro, mesmo que essa legislação não mencione expressamente o método concreto de tratamento? 5) Os
artigos 49.° CE e 22.° do Regulamento (CEE) n.°
1408/71 opõem se a uma disposição nacional, como a
do artigo 36.°, n.° 1, da Lei do Seguro de Doença,
nos termos do qual os beneficiários obrigatórios só
têm direito ao reembolso parcial ou total das despesas
de saúde efectuadas no estrangeiro quando tiverem
obtido uma autorização prévia para esse efeito? 6) O
tribunal nacional deve obrigar a entidade competente
do Estado em que o beneficiário da caixa de doença
reside a emitir o documento necessário para a realização de um tratamento no estrangeiro (Modelo E 112)
quando a recusa de emissão desse documento for
considerada ilegal, se o pedido de emissão do documento tiver sido apresentado antes da realização do
tratamento no estrangeiro e o tratamento já tiver sido
ministrado no momento em que foi proferida a decisão judicial? 7) Em caso de resposta afirmativa à questão anterior e se o tribunal considerar ilegal a recusa
de autorização de um tratamento no estrangeiro, como
devem as despesas efectuadas pelo beneficiário da
caixa de doença com o tratamento ser lhe reembolsadas? a) directamente pelo Estado em que está inscrito
como beneficiário do seguro de doença, ou pelo Estado em que foi efectuado o tratamento, mediante a
apresentação da autorização para realização de um tratamento no estrangeiro? b) em que medida, se o montante das comparticipações previstas pela lei do Estado da residência for diferente do das comparticipações
previstas na lei do Estado em que o tratamento foi
realizado, ao abrigo do artigo 49.° CE, que proíbe as
restrições à livre prestação de serviços?"
Ora perante estas questões o Tribunal de Justiça declarou inicialmente que o direito da União opõe
se a que um órgão jurisdicional nacional, ao qual compete julgar um processo que lhe foi remetido por um
órgão jurisdicional superior que decidiu em sede de
recurso, esteja vinculado, de acordo com o direito
processual nacional, pelas apreciações de direito feitas pelo órgão jurisdicional superior, se considerar,
atendendo à interpretação que solicitou do Tribunal de
Justiça, que as referidas apreciações não são conformes com o direito da União. Referiu também que os
artigos 49.° CE e 22.° do Regulamento (CEE) n.°
1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos
trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, na sua versão alterada e actualizada pelo Regulamento (CE) n.° 118/97 do
Conselho, de 2 de Dezembro de 1996, conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.° 1992/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de Dezembro de
2006, opõem se a uma legislação de um Estado Membro interpretada no sentido de que exclui, em todos
os casos, a assunção dos cuidados hospitalares dispensados sem autorização prévia noutro Estado Membro. Tratando se de cuidados médicos que não podem ser dispensados no Estado Membro em cujo território reside o beneficiário da segurança social, o artigo 22.°, n.° 2, segundo parágrafo, do Regulamento
n.° 1408/71, na sua versão alterada e actualizada pelo
Regulamento n.° 118/97, conforme alterado pelo Regulamento n.° 1992/2006, deve ser interpretado no
sentido de que uma autorização solicitada ao abrigo
do n.° 1, alínea c), i), do mesmo artigo não pode ser
recusada: - se, quando as prestações previstas pela
legislação nacional são objecto de uma lista que não
menciona expressamente e precisamente o método de
tratamento aplicado, mas define os tipos de tratamento assumidos pela instituição competente, se determinar, em aplicação dos princípios de interpretação usuais e na sequência de um exame baseado em critérios
objectivos e não discriminatórios, tendo em conta todos os elementos médicos pertinentes e os dados científicos disponíveis, que esse método de tratamento
corresponde a tipos de tratamento mencionados nessa lista; e se um tratamento alternativo que apresente
o mesmo grau de eficácia não puder ser ministrado
em tempo oportuno no Estado Membro em cujo território reside o beneficiário da segurança social. O mesmo artigo opõe se a que os órgãos nacionais chamados a pronunciar se sobre um pedido de autorização
prévia presumam, ao aplicar essa disposição, que os
cuidados hospitalares que não podem ser dispensados no Estado Membro em cujo território reside o
beneficiário da segurança social não figuram entre as
prestações cuja assunção é prevista pela legislação
desse Estado e, inversamente, que os cuidados hospi11
Regis Consultorum - Revista
talares que figuram entre essas prestações podem ser
ministrados no referido Estado Membro. Quando tiver sido demonstrado que a recusa de concessão de
uma autorização pedida ao abrigo do artigo 22.°, n.°
1, alínea c), i), do Regulamento n.° 1408/71, na sua
versão alterada e actualizada pelo Regulamento n.° 118/
97, conforme alterado pelo Regulamento n.° 1992/
2006, não era fundada, os cuidados hospitalares já
tiverem sido prestados e os custos correspondentes
suportados pelo beneficiário da segurança social, o
órgão jurisdicional nacional deve obrigar a instituição
competente, de acordo com as regras processuais
nacionais, a reembolsar ao referido beneficiário o
montante que teria normalmente sido pago por esta
última se a autorização tivesse sido devidamente concedida. O referido montante é igual ao determinado
segundo as disposições da legislação à qual está sujeita a instituição do Estado Membro em cujo território
foram dispensados os cuidados hospitalares. Se esse
montante for inferior ao que teria resultado da aplicação da legislação em vigor no Estado Membro de residência em caso de hospitalização neste último, deve
ainda ser concedido ao beneficiário da segurança social um reembolso complementar, a cargo da instituição competente, correspondente à diferença entre esses dois montantes, no limite das despesas realmente
efectuadas 8.
II. A Directiva 2011/24/EU
Os fluxos de doentes entre Estados-membros
são limitados e assim deverão permanecer, pois a grande maioria dos doentes da União recebe, e assim prefere, cuidados de saúde nos seus próprios países. No
entanto, em certos casos, os doentes poderão procurar algumas formas de tratamento noutro Estado-membro. Tal acontece, com os cuidados de saúde altamente especializados ou cuidados prestados em zonas fronteiriças em que o serviço de saúde mais adequado e mais próximo fica situado no outro lado da
fronteira. Além disso, alguns doentes desejam ser tratados no estrangeiro para poderem estar perto de familiares que residem noutro Estado-membro, ou para
terem acesso a um método de tratamento diferente do
prestado no Estado-membro de afiliação ou por pensarem poder receber um cuidado de saúde de melhor
qualidade noutro Estado-membro.
Ora a Directiva 2011/24/EU de 9 de Março de
2011, tem por objectivo estabelecer regras destinadas
a facilitar o acesso a cuidados de saúde
transfronteiriços seguros e de elevada qualidade na
União, a assegurar a mobilidade dos doentes de acordo com os princípios estabelecidos pelo Tribunal de
Justiça e a promover a cooperação entre os Estados
Membros em matéria de saúde. Daqui decorre o prin12
cípio fundamental da livre prestação de serviços. No
entanto tal como foi confirmado pelo Tribunal de Justiça, nem a sua natureza especial nem a forma como
estão organizados ou são financiados podem excluir
os cuidados de saúde do âmbito de aplicação. O Estado-membro de afiliação está obrigado a reembolsar
os custos de cuidados de saúde transfronteiriços, mas
é claro que esta obrigação de reembolsar deve ser limitada aos cuidados de saúde aos quais a pessoa segurada tem direito nos termos da legislação do seu
Estado-membro de afiliação9. Note-se que o Estadomembro de afiliação também pode limitar o reembolso por motivos que se prendem com a qualidade e a
segurança dos cuidados de saúde prestados, caso isso
se justifique por razões imperiosas de interesse geral
relacionados com a saúde pública. O Estado-Membro
de afiliação pode também tomar medidas adicionais
com base noutros fundamentos (art. 7.º da directiva).
A Directiva não deverá aplicar-se aos cuidados
continuados considerados necessários para que a pessoa que precisa de cuidados possa ter uma vida tão
plena e autónoma, mas pelo contrário deverá aplicarse não só às situações em que o doente recebe cuidados de saúde num Estado-membro diferente do Estado-membro de afiliação, mas também a prescrição, a
dispensa e fornecimento de medicamentos e dispositivos médicos caso estes sejam fornecidos no âmbito
de um serviço de saúde.
Quando um doente recebe cuidados de saúde
transfronteiriços, é essencial que saiba previamente
quais a s normas aplicáveis. Por isso os Estados-membros de tratamento deverão assegurar que os doentes
de outros Estados-membros recebam, a seu pedido,
as informações relevantes sobre as normas de segurança e de qualidade aplicadas no seu território, bem
como sobre quais os prestadores de cuidados de saúde que estão sujeitos a essas normas. É necessária
uma informação adequada sobre todos os aspectos
essenciais dos cuidados de saúde transfronteiriços para
permitir que os doentes exerçam na prática os seus
direitos. Uma das formas de divulgar essa informação
consiste na criação de pontos de contacto nacionais
em cada Estado-membro. Esses pontos de contacto
nacionais poderão estar integrados em centros de informação já existentes ou apoiar-se nas actividades
desses centros, desde que seja claramente indicado
que essas estruturas funcionam simultaneamente como
pontos de contacto nacionais para os cuidados de saúde
transfronteiriços (art. 6.º da directiva).
Dado que os Estados-membros são responsáveis pelo estabelecimento de regras aplicáveis à gestão, aos requisitos, às normas de qualidades e segurança e à organização e prestação de cuidados de saúde, e que as necessidades de planeamento diferem de
Estado-membro para Estado-membro, deverá incumbir
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aos Estados-membros decidir se é necessário introduzir um sistema de autorização prévia e, em caso
afirmativo, identificar os cuidados de saúde que requerem autorização prévia no âmbito do seu sistema,
nos termos dos critérios definidos pela directiva. Os
critérios associados à concessão de autorização prévia deverão ser justificados à luz das razões imperiosas de interesse geral susceptíveis de legitimar os entraves à livre circulação dos cuidados de saúde, tais
como requisitos de planeamento relacionados como
objectivo de garantir um acesso suficiente e permanente a uma gama equilibrada de tratamentos de elevada qualidades no Estado-membro em questão ou
com o desejo de controlar os custos e evitar, tanto
quanto possível, o desperdício de recursos financeiros, técnicos e humanos (art. 8.º).
Para que sejam garantidos os cuidados de saúde transfronteiriços seguros, eficientes e de elevada
qualidade, os Estados-membros deverão facilitar a
cooperação entre os prestadores de cuidados de saúde, os utentes e os reguladores dos diferentes Estados-membros, a nível nacional, regional ou local. Tal
poderá assumir particular importância nas regiões
fronteiriças, onde a prestação de serviços
transfronteiriços pode constituir a forma mais eficiente de organizar os serviços de saúde para as populações locais, mas onde a prestação continuada desses serviços exige uma cooperação entre os sistemas
de saúde dos diferentes Estados-membros (art.10.º).
Para além disso, importa assinalar que a
Directiva consagra o princípio geral do reconhecimento
mútuo das receitas médicas emitidas noutro Estadomembro, bem como o princípio da continuidade dos
tratamentos (art.11.º), devendo a Comissão adoptar
normas de harmonização das próprias receitas médicas, quanto aos seus elementos, à sua
interoperabilidade ou inteligibilidade.
Nos arts. 13.º e 12.º é referido que a Comissão
deverá apoiar o desenvolvimento continuado de redes
europeias de referência entre os prestadores de cuidados de saúde e os centros especializados dos Estados-membros. As redes europeias de referência podem melhorar o acesso ao diagnóstico e a prestação
de cuidados de saúde de elevada qualidade a todos os
doentes cuja condição clínica exija uma concentração
especial de recursos ou de conhecimentos
especializados, e podem também servir de pontos de
contacto de formação e investigação médica, divulgação de informação e avaliação e partícula no caso das
doenças raras.
Por fim note-se que os Estados-membros devem velar por valores comuns, como a universalidade, do acesso a cuidados de saúde de boa qualidade,
da equidade e da solidariedade.
NOTAS:
1
Ac. de 5-5-1982 " A noção de mercado comum, tal
como o Tribunal a pôs em evidência através de uma jurisprudência constante, comporta a eliminação de todos os
entraves às trocas intercomunitárias tendo em vista a fusão dos mercados nacionais num mercado único que funcione em condições tão próximas quanto possível das de
um verdadeiro mercado interno".
2
No Acórdão Dassonville, de 1974, consagrou-se
uma definição ampla de medidas de efeito equivalente:
"toda a regulamentação comercial dos Estados membros
susceptível de entravar, directa ou indirectamente, actual
ou potencialmente, o comércio intercomunitário".
3
O Acórdão Cassis, de 1979, deu um grande impulso à liberalização dos movimentos de mercadorias, por
ter passado a entender-se que um produto legalmente
fabricado e comercializado num Estado-Membro é admitido à livre circulação dentro da Comunidade.
4
O acordo de Schengen (1985), completado por
uma Convenção de Aplicação (1990) e outros textos, facilitou o exercício de circulação dos cidadãos da União
Europeia entre os países nele participantes, ao abolir os
controlos aduaneiros e policiais a que anteriormente estavam sujeitos.
5
http://eurlex.europa.eu/LexUriServ/
LexUriServ.do?uri=CELEX:52007DC0630:PT:NOT
6
Acórdão Schumacher 1989, Processo C-215/87.
7
Acórdão Decker 1998, Processo C-120/95.
8
Acórdão Elchinov 2010, Processo C-173/09.
9
Note-se que a Directiva não deverá afectar os
direitos das pessoas seguradas relativos à assunção das
despesas com cuidados de saúde que se tornem clinicamente necessários durante a estada temporária noutro
Estado-membro em conformidade com o Regulamento
(CE) n.º 883/2004.
13
Regis Consultorum - Revista
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direitos dos cidadãos no espaço comunitário", in Valores da Europa, Instituto de Estudos Estratégicos e
Internacionais, Principia, Lisboa;
14
Acórdão Schumacher 1989, Processo C-215/
87;
Acórdão
Acórdão
Acórdão
Acórdão
Decker 1998, Processo C-120/95;
Elchinov 2010, Processo C-173/09;
Dassonville, de 1974;
Cassis, de 1979.
Legislação:
Tratado de Lisboa - Alessandra Silveira colaboração de Pedro Madeira Froufe;
Directiva 2011/24/EU.
*Advogada estagiária na AFR - sociedade de advogados
Regis Consultorum - Revista
BANCO DE HORAS
*Adalberto costa
A organização do tempo de trabalho vai disciplinada no Código do Trabalho, Capitulo II, Prestação
do Trabalho, Secção II, Duração e Organização do
Tempo de Trabalho, artigo 197.º e ss.
Deste capítulo interessa-nos a matéria que diz
respeito ao "Banco de Horas" e fundamentalmente o
regime que resulta da alteração introduzida pela Lei
n.º 23/2012 que institui o "Banco de Horas Individual"
e o "Banco de Horas Grupal".
Primeiro problema
Banco de Horas - artigo 208.º - CT
O regime jurídico do Banco de Horas vem previsto no artigo 208-º do código do trabalho. Este regime por força das alterações introduzidas pela Lei n.º
23/2012, passou a constituir, como que o regime geral do Banco de Horas, se bem que de uma forma um
tanto desconexa com os novos regimes de banco de
horas individual e grupal.
Nos termos daquele regime geral, a organização do tempo de trabalho pode ter um regime de banco de horas a instituir pela contratação colectiva, normalmente através de instrumento de regulamentação
colectiva de trabalho. Porém, a lei não nos dá a noção
do que podemos entender por banco de horas, pelo
que estamos com o Prof. Jorge Leite que sobre o
assunto nos diz que este banco de horas… será ou
deve ser um qualquer banco equiparado aos bancos
que ajudam à circulação de notas e moedas … e que
pouco ou nada esclarece quanto à matéria de organização do tempo de trabalho, antes vem criar um desvio em tudo prejudicial à disciplina e rigor que deve
presidir a esta matéria tão importante como é a da
organização do tempo de trabalho.
Não devemos esquecer que o tempo de trabalho e a sua organização constitui uma matéria importante para a economia do contrato de trabalho e em
particular para as relações que daí emergem.
Ora, se a lei fala em banco de horas, mas não
diz, o que devemos entender como tal, está de algum
modo a criar dúvidas quanto à organização do tempo
de trabalho, dando ao intérprete a possibilidade de o
entender "a seu gosto", razão que pode afastar e prejudicar a relação laboral.
Seja como for, o banco de horas enquanto regime para a organização do tempo de trabalho pode
ser instituído pela contratação colectiva. Mas para esta
possibilidade, o banco de horas instituído desta forma
deve respeitar e de forma absoluta os seguintes requisitos: o período normal de trabalho pode ser aumentado até 4 horas diárias (prestado até 12 horas diárias),
podendo atingir as 60 horas semanais, sendo que o
acréscimo tem sempre por limite as 200 horas por
ano.
O limite anual das 200 horas pode porém ser
afastado. Contudo, só por IRCT o pode ser e apenas
com o fundamento de que tal regime tem por objectivo
evitar a redução do mínimo de trabalhadores. Este
afastamento ao regime geral das 200 horas anuais,
seja ele qual for, só pode vigor por um período de
doze meses.
Além dos limites expostos e que constam do
artigo 208.º do CT, o IRCT que institui o banco de
horas, tem também de regular outras matérias conexas
com o tempo de trabalho, nomeadamente: a compensação do trabalho que é prestado em acréscimo, podendo esta ser feita com a redução equivalente do tempo de trabalho, ou o pagamento em dinheiro, ou ainda
com a redução do tempo de trabalho e pagamento em
dinheiro; a comunicação do empregador ao trabalhador quanto à necessidade do trabalho; a redução do
tempo de trabalho e o tempo correspondente para
compensação do trabalho que é prestado em acréscimo e o tempo da respectiva comunicação tanto para o
empregador, como para o trabalhador.
Este é, como se disse, o que para nós é hoje o
regime geral do banco de horas. Mesmo assim, entendido isto como regime geral, certo é que ele se
subsume a uma limitação que vai encontrar exaltação
no regime do banco de horas individual e grupal, como
infra veremos.
A conclusão fica porém na ideia de que, em
geral, o banco de horas só pode ser instituído através
da negociação colectiva, salvo o que a seguir trataremos. O banco de horas em geral traduz a ideia de
flexibilização da organização do tempo de trabalho,
mas esta flexibilidade arrasta consigo questões que
podem ser de difícil solução, tendo em conta a natureza da prestação de trabalho em alguns sectores de
economia, natureza que é ou pode ser incompatível
com a filosofia do regime jurídico do banco de horas.
É certo no entanto, que o banco de horas, tanto pode
traduzir-se num acréscimo da prestação de trabalho,
como na sua redução, e esta última enquanto compensação por aquele acréscimo de trabalho decorren15
Regis Consultorum - Revista
te da necessidade de trabalho e consequente alteração
do tempo de trabalho.
Segundo problema
Banco de Horas individual - art.º 208.º -A CT
Com a publicação da Lei n.º 23/2012, criou-se
o "banco de horas individual" que constitui quanto a
nós uma excepção ao regime geral do banco de horas
previsto no art.º 208.º do código do trabalho. O banco de horas individual vem previsto no artigo 208.º-A
e resultará não já da contratação colectiva, mas do
acordo individual, isto é, pode ser criado com o acordo entre empregador e trabalhador.
Com o banco de horas individual, o período
normal de trabalho pode ser aumentado até duas horas diárias, mas não deve ultrapassar as 50 horas semanais, com um limite anual de 150 horas. O acordo
para alteração do tempo de trabalho, não pode por
isso violar os limites diários, semanais e anuais Impostos pela lei, devendo além disso regular aspectos
conexos, quais sejam: a compensação devida, que pode
ser feita com pagamento em dinheiro, com redução
do tempo de trabalho, ou com ambas as formas; a
indicação do prazo para a comunicação de uma parte
à outra de necessidade de trabalho; o modo como a
redução da prestação de trabalho se realizará enquanto forma de compensar o acréscimo decorrente do
banco acordado.
O acordo para a instituição do banco de horas
individual deve ser reduzido a escrito e depende da
proposta escrita remetida pelo empregador ao trabalhador.
A lei presume que, não havendo por parte do
trabalhador oposição à proposta no prazo de 14 dias a
contar da recepção daquela proposta, esta considerase aceite. O banco de horas individual tem assim um
regime muito simples, dependendo exclusivamente do
acordo que se celebrou entre os sujeitos do contrato
de trabalho com as limitações que a lei prevê quanto
aos acréscimos, compensações e comunicações.
Terceiro problema
Banco de Horas grupal - art.º 208.º-B - CT
No seguimento do que supra já dissemos, a Lei
n.º 23/2012 institui o "banco de horas grupal". Este
novo regime tem a sua origem no banco de horas
previsto no artigo 208.º do código do trabalho, isto é,
no banco de horas que é constituído por força da
contratação colectiva - IRCT.
Assim é que, quando o banco de horas é instituído por IRCT, este pode ainda prever que o empregador possa aplicar o regime do banco de horas ao
conjunto de trabalhadores de uma equipa, de uma
16
secção ou de uma unidade económica. Para esse efeito, basta que se verifique que pelo menos 60% dos
trabalhadores daquelas estruturas (secção, equipa ou
unidade económica) sejam abrangidos pelo banco de
horas por força da sua filiação em associação sindical
celebrante do acordo e ou que tal situação se aplique a
uma percentagem de trabalhadores superior a 60%
dos trabalhadores. Resulta daqui, que o banco de horas neste caso pode sempre ser aplicado aos trabalhadores das estruturas referidas, desde que para o efeito se respeite ou se possa respeitar o número de trabalhadores que podem ser sujeitos ao IRCT e respectivo acordo quanto ao banco de horas.
Por outro lado, podemos estar perante um banco de horas grupal, sem estarmos dependentes da
contratação colectiva. Para este caso, não se torna
necessário o IRCT, mas sim que o empregador enderece uma proposta de banco de horas a todos os trabalhadores e, pelo menos 75% deles aceitem o conteúdo da proposta.
Esclarece-se, que aquela percentagem não interessa a todos os trabalhadores da empresa, mas sim
a todos os trabalhadores da equipa, de secção ou unidade económica da empresa, devendo sempre ter-se
em conta qualquer alteração decorrente da entrada ou
saída do trabalhador na composição da equipa, da
secção ou unidade económica para efeitos do cumprimento da percentagem de trabalhadores a serem
abrangidos pelo regime do banco de horas.
Um aspecto particular a ter em conta é o que
diz respeito à aplicação do regime do banco de horas
grupal a um trabalhador abrangido por convenção
colectiva que disponha de modo contrário ao regime
do banco de horas a aplicar ou a trabalhador que é
representado por associação sindical que tenha deduzido oposição a portaria de extensão do CCT em causa, porque nestes casos, o regime de banco de horas
grupal não é, nem pode ser aplicado a esses trabalhadores.
Conclusão:
O banco de horas enquanto instrumento para
que se possa flexibilizar o tempo de trabalho encontra, depois da publicação da Lei n.º 23/2012, um campo de aplicação mais lato, formas de constituição
alargada, mas sempre subordinada a limites e requisitos impostos pela lei. Podemos por isso dizer, que o
banco de horas é um instrumento ao dispor das partes dotes do contrato de trabalho que visa a alteração
esporádica do tempo de trabalho. Este instrumento só
pode ser constituído por via de contratação colectiva,
e ou por proposta do empregador ao trabalhador, compreendendo os limites e requisitos da lei. Daqui se pode
dizer, que o banco de horas responde, ou pode res-
Regis Consultorum - Revista
ponder às flutuações da actividade económica do
empregador, permitindo-lhe utilizar um mapa de tempos de trabalho acordado com os trabalhadores directa
(individual) ou indirectamente (grupal) pelo qual poderá dispor de um acréscimo ou redução do tempo de
trabalho em função das necessidades da empresa.
Temos para nós que o banco de horas tal qual
vai disciplinado na lei traz para as relações laborais
uma incerteza, a de que, tanto o empregador, como o
trabalhador deixam de ter como principio orientador
da organização do tempo de trabalho, o equilíbrio (juslaboral) do tempo enquanto linha mestra do percurso
do contrato de trabalho e da posição do trabalhador
quanto à prestação do seu trabalho.
NOTA: É de v. artigos 208.º; 208-º-A; 208.º-B;
205.º e 206.º do CT.
*Advogado na AFR - sociedade de advogados
O ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
Crime ou contra-ordenação?
* Alcindo dos Reis
INDICE.
PREFÁCIO.
INTRODUÇÃO: O "traço" epistemológico do abuso de
confiança fiscal.
CAPÍTULO 1 - Objecto deste estudo.
CAPÍTULO 2 - A "peregrinação" do crime de abuso de
confiança fiscal.
2.1 - A tipificação do crime de abuso de confiança fiscal.
2.2 - As palavras e as coisas.
CAPÍTULO 3 - A "trivalência do abuso (facto) de confiança
fiscal.
3.1 - Considerações gerais. A substituição tributária.
3.2 - A "valência" patrimonial-civil da substituição
tributária.
3.3 - A "valência" contra-ordenacional da substituição
tributária.
3.4 - A "valência" penal da substituição tributária.
CAPÍTULO 4 - Descrição fáctica do crime de abuso de
confiança fiscal.
4.1 - Considerações introdutórias.
4.2 - Os elementos do facto punível.
4.2.1 - OS elementos do abuso de confiança fiscal na
vigência do RJIFNA.
4.2.2 - OS elementos do abuso de confiança fiscal na
vigência da primeira versão do RGIT.
4.2.3 - Os elementos do abuso de confiança fiscal na
redacção actual do artigo 105º. do RGIT
CAPÍTULO 5 - O perfil dogmático do crime de abuso de
confiança fiscal. Crime de Omissão. 5.1 - As palavras e
o paradigma do crime de abuso de confiança fiscal.
5.2 - O perfil material do crime de abuso de confiança
fiscal.
5.3 - A qualificação jurídico-penal da não entrega da
prestação tributária. Crime de omissão .
5.3.1 - O ilícito típico "abuso de confiança fiscal".
5.3.2 - A culpa no crime de "abuso de confiança fiscal".
5.3.3 - A punibilidade e o crime de "abuso de confiança
fiscal". A natureza dos elementos do nº. 4 do artigo 105º.,4
do RGIT.
CAPÍTULO 6 - A coabitação dos opostos: crime fiscal e
contra-ordenação fiscal.
6.1 - Contradição ou (milagre da) transmutação
6.2 - "Viagem" no tempo ou "salto mortal". O "tempus
delecti".
CAPÍTULO 7 - O fundamento do crime de abuso de
confiança fiscal.
7.1 - O problema do fundamento do direito.
7.2 - A ética e a moral na "rota" do direito penal.
7.2.1 - Ponto de "partida" e ponto de "chegada"
7.2.2 - Perspectiva histórica da ética e da moral.
7.2.3 - Possibilidade (ou devaneio) da existência da ética
e da moral.
7.3 - O fundamento do crime de abuso de confiança fiscal.
CAPÍTULO 8 - Aporias do crime de abuso de confiança
fiscal. Inconstitucionalidades do tipo.
8.1 - Aporias do crime de abuso de confiança fiscal.
8.1.1 - Aporias jurisprudenciais.
8.1.2 - Aporias legais.
8.2 - Inconstitucionalidades do tipo.
8.2.1 - Considerações gerais.
8.2.2 - O crime de abuso de confiança fiscal na rota da
Constituição.
CAPÍTULO 9 - Os casos de abuso de confiança fiscal
17
Regis Consultorum - Revista
ocorridos até 31 de Dezembro de 2006.
CAPÍTULO 10 - Conclusão: crime ou contra-ordenação
de abuso de confiança fiscal?
ANEXO - O Pensamento Único Triunfante (PUT).
ADENDA:
I - A suspensão da execução da pena de prisão
com a condição de pagamento da dívida tributária
II - O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº.
6/2006
A alteração ao artigo 105.º 1 do RGIT em nada
altera, em termos de tese, o que vai escrito, ao longo
deste estudo, porque não é alteração de "mínimo" legal que modifica o sentido que o legislador e os tribunais lhes dá.
INTRODUÇÃO
O "traço" epistemológico do abuso de confiança
fiscal.
PREFÁCIO
Como digo no termo da Introdução, este estudo foi concluído em Março de 2008. Essas palavras
de "encerramento" da Introdução inculcam que era
meu propósito, nessa altura, publicar em livro este
estudo. Ocorre que, também por essa altura, tomei
mais aguda consciência de que, por mais que se evidenciasse o absurdo epistemológico desta figura jurídica dita crime de abuso de confiança fiscal, todas as
instâncias judiciais, da "primeira" ao Supremo Tribunal de Justiça, "derivando" até ao Tribunal Constitucional, não tinham qualquer receptividade para acolher
o que de "novo" viesse. Isso verificava-se na constância da repetição dos argumentos, a que os meios
informáticos até davam uma boa ajuda. Por isso desisti de tal intento. Agora, perguntar-se-á, por que "desisto" da "desistência"? Como não sou tão teimoso
quanto os tribunais, acedi ao conselho do Director
desta revista. E, por isso, aqui têm, os que tiverem
paciência para ler o que os tribunais não lêem nem
ouvem, o que então escrevi, na sequência de outros
escritos sobre a mesma matéria, em laudas judiciais
"sem conta", em livro e outros locais.
O trabalho que trago a lume foi escrito pois há
quase cinco anos. Algum tempo após, ou seja, em 31
de Dezembro de 2008, foi publicada a Lei N.º 64-A/
2008, a qual, entre outras alterações, modificou o disposto no n.º 1 do art.º 105.º do RGIT, acrescentando
ao texto originário as palavras que, a seguir, vão escritas e sublinhadas entre parêntesis, em que as outras eram assim as do texto originário. A redacção
actual é:
"Quem não entregar à administração tributária,
total ou parcialmente, prestação tributária (de valor
superior a •7.500), deduzida nos termos da lei e que
estava obrigatoriamente obrigado, a entregar é punido
com pena de prisão até três anos ou multa até 360
dias".
Com esta alteração passou a ser entendido que
só a partir da não entrega de • 7.500,01, é que o facto
passava de contra-ordenação para crime de abuso de
confiança fiscal, com excepção da não entrega de idênticas quantias à Segurança Social, cujo valor mínimo,
provavelmente, será de •0,01.
18
No ano de 2003 publiquei o livro O CRIME DE
ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL - ou a razão de
Estado contra a razão da verdade?1 Aí confessei expressamente que esse "produto" não era obra de um
penalista, não era obra feita com gosto, mas tentativa
de demonstração de uma mentira em forma de lei,
que os acusadores, defensores de ocasião e julgadores
oficiais, com o silêncio da doutrina, sufragavam. Era
por isso mais expressão "tripálica" (de "tripaliu") do
que acto de devoção. Na altura pensei que, por não
ser penalista (e com isto não quero dizer que sou um
"ista" de qualquer coisa no mundo do direito, no qual
"cavo” o pão de cada dia, sempre, a cada minuto que
passa, com menos gosto e maior dor, e tudo, porque
"primum vivere, deinde philosophare"), talvez tivesse
tido a sorte de ver aquilo que aos penalistas escapava,
ou seja a impossibilidade de existência do facto a que
o legislador atribuía o carácter de elemento central ou
nodal do tipo de ilícito que tipificara, e que consistia,
em termos breves e simples, na apropriação de coisa
alheia, pela via da inversão da posse precária sobre
uma dada "res" em posse jurídica. A minha atenção
para a verificação desse facto impossível foi despertada há mais de 10 anos, ou seja cerca de 5 anos antes
da publicação daquele livro. Nessa altura estava em
vigor o RJIFNA. Como é sabido este diploma foi revogado e substituído pelo chamado RGIT, cuja norma que regula a matéria de que aqui se trata foi alterada pela Lei nº. 53-A/2006, como, adiante, tudo será
melhor esclarecido. A minha referida atenção foi especificamente despertada pelo estudo de uma acusação que se baseava no não pagamento de IVA, na qual,
"mutatis mutandis", era dito o seguinte: a sociedade
arguida, por intermédio do seu gerente também aqui
arguido, recebeu dos seus clientes a quantia de X,
que, assim, lhe foi entregue a título não translativo da
propriedade, e, invertendo o título de posse precária
que exercia sobre essa quantia, dela se apropriou, fazendo-a sua. Alguma experiência de gestão empresarial, acompanhada de algum conhecimento de contabilidade e direito fiscal, despertou-me a atenção para a
análise daquele alegado facto à luz das normas legais
fiscais (da relação jurídica de IVA) e das normas legais por que se processam contabilisticamente aque-
Regis Consultorum - Revista
las relações. A pedra de toque foi a conta 11 do POC.
Estudado o problema a partir daí, verifiquei que havia
equipolência entre as normas do CIVA e do POC. E
uma absoluta divergência das normas destes corpos
normativos com o disposto no RJIFNA, "maxime"
com o seu artº. 24º. Daí parti para a apreciação da
correlação entre a norma que consagrava o tipo e outras normas tributárias e contabilísticas por ela suposta, nomeadamente as que consagram a dita retenção de tributos, em que as de maior destaque e
frequência são as relativas a IRS de trabalho dependente e independente e contribuições devidas à segurança Social por trabalhadores dependentes ou equiparados. As discrepâncias também aí se patenteavam,
ainda que, entre estas e as de liquidação de IVA, haja
uma diferença assinalável: nas relações de IVA o agente que liquida o IVA àquele a quem transmite bens ou
serviços, cobra a quantia liquidada como direito próprio e não do Estado - embora deste se constitua devedor, pelo mesmo montante, no momento da liquidação -, enquanto nas outras relações referidas, no
momento da liquidação, o agente que liquida esses
montantes constitui-se devedor da quantia liquidada
perante a administração tributária, e credor do mesmo montante perante aquele a quem fez tal liquidação.
Ambas as situações têm como denominador comum
o facto de o agente nunca receber qualquer quantia
em dinheiro da parte daqueles que são devedores originários de tributos, a título de pagamento do que estes devem à administração tributária. Isto demonstra
que a apropriação prevista nos artºs. 24º. e 27º.-A do
RJIFNA era uma impossibilidade prática e legal, e que
a "badalada", em constância e persistência, inversão
do título de posse não passava de uma ficção conveniente para o Estado. Foi isto que procurei demonstrar no livro referido, bem como as causas que induziam o legislador-administrador a actuar assim. Por
isso, esse livro não é um livro de direito penal, em
sentido próprio, mas um ensaio onde procurei demonstrar essa impossibilidade jurídica e prática, bem como
o seu significado sociológico e político.
A publicação do presente estudo não coincide
com o estudo que fiz naquele livro. Aqui dou um muito maior acento à questão penal, embora com maior
risco de desacertos, pois não sou especialista. Tomo,
contudo, esta iniciativa pelo facto das alterações que
foram surgindo, nomeadamente com a substituição
do RJIFNA pelo RGIT, e das alterações que este sofreu, introduzidas pela Lei nº. 53-A/2006. Esta iniciativa justifica-se ainda por outras razões: o livro anterior, apesar de publicado depois da revogação do
RJIFNA, assentava no paradigma da apropriação que
dava o "tom" ao crime de abuso de confiança fiscal;
malgrado a substituição de paradigma - a "apropriação" deu lugar "à não entrega", deixando o crime de
ser "comissão por acção" para passar a ser "comissão
por omissão" -. Apesar disso as coisas, com maior ou
menor detalhe, continuaram a ser assim entendidas
pela jurisprudência, como o revela o Acórdão do Tribunal Constitucional nº. 54/04, publicado na Revista
de Legislação e Jurisprudência, nºs. 3931 e 3932, onde
foi comentado pelo Prof. Costa Andrade. Por outro
lado, recentes intervenções doutrinais, provavelmente estimuladas pela alteração introduzida no nº. 4 do
artº. 105º. do RGIT, sem desdouro do acerto das criticas formuladas ao entendimento dominante dos tribunais, continuam a não dar atenção às divergências
ou contradições que existem entre a lei penal e as leis
que regulam a relação subjacente, com novas e absurdas contradições, as quais relevam nos domínios
da lógica da ontologia e da axiologia. Antes, nos domínios do RJIFNA, ficcionava-se a apropriação para
se legitimar a ideia de abuso de confiança. A maleita
era tão forte que o "síndroma" não se extinguiu apesar da alteração da lei penal, pois é patente, na mente
das pessoas, a força do "léxico". Como vamos ver, ao
longo do texto que aqui se oferece, os absurdos não
se esvaneceram, revelando-se em novas formas paradoxais, onde, por exemplo, a desconsideração do
"tempus delicti" arrasta os intérpretes para a
"legitimação" dos aludidos absurdos. Por isso, a jurisprudência esquece a gnoseologia e deixa-se prender
por uma episteme em conflito com uma outra, ambas
dadas em lei: a episteme fixada na lei que induz a constituição das relações tributárias por substituição - p.
ex., o Código do Imposto sobre o Rendimento das
Pessoas Singulares e as leis que regulam o sistema
contributivo para a Segurança Social e o Plano Oficial
de Contabilidade - e a episteme fixada na lei penal - o
Regime Geral das Infracções Tributárias.
Ao desconsiderar essas duas e antagónicas
epistemes, a jurisprudência (e a doutrina também parece nisso não ter reparado) não só não explica, como
evita a explicação, por que é que um mesmo facto,
por um período não determinado na lei com precisão
(veja-se o disposto nas alíneas a) e b) do nº. 4, do
artº. 105º. do RGIT, na sua versão em vigor), é, durante esse determinado período, mera contra-ordenação, e, depois de determinado esse prazo pela administração tributária, de forma mais ou menos discricionária, a mesma realidade se convola ou transmuta
(ou transubstancia?) em crime de abuso de confiança
fiscal, quando nenhuma relação de confiança se constituiu (Porque a confiança pressupõe o "consensus"
entre o confiante e aquele em que se confia).
A desconsideração do "tempus delicti" não só
revela para perceber a aporia causada por aquela dupla episteme, como impede a percepção de outros
19
Regis Consultorum - Revista
fenómenos que a jurisprudência confunde constantemente. Refiro-me, concretamente, aos pressupostos
de procedibilidade penal que relevava nos domínios
do RJIFNA (Nº. 6 do seu artº. 24º.) e que desaparecem do regime penal em vigor, bem como aos pressupostos objectivos de exercício da acção penal (como
é o exemplo do agente se encontrar em Portugal) que
vêm sendo confundidos com os pressupostos ou requisitos de punibilidade, de que fala Figueiredo Dias,
ou elementos ou pressupostos adicionais de
punibilidade, de que fala Taipa de Carvalho, que ainda
são elementos do tipo. Estas confusões têm servido a
preceito para não ser reconhecida a despenalização
operada pela Lei nº. 53-A/2006, quanto aos factos
ocorridos até 31 de Dezembro de 2006, "apodados"
de crime de abuso de confiança fiscal.
Importa salientar, nestas notas preliminares, que
a interpretação dominante, quer da versão originária
quer da actual, coloca uma questão ética
incontornável. Na verdade, do ponto de vista ético, é
insuportável que a lei considere uma dada conduta
ético-socialmente neutra durante um dado período,
controlado este pela administração pública, passando
a considerá-la ético-socialmente relevante, quando a
administração pública "acorda do sono". Uma lei que
assim considera as coisas, faz baixar a ética da zona
do fundamento para a zona do instrumento. A ética
deixa de ser "axia" para ser "ferramenta"; a ética deixa
de ser expressão do bem para ser elemento estratégico e táctico ao serviço das conveniências e oportunidade do poder. A ética deixa assim de ser força ideal
de defesa dos desprotegidos contra a força física e
lexical dos poderes fácticos e formais instituídos, para
ser verbo e logos por estes manipulados ao serviço de
estratégias iníquas, mesmo quando dissimuladas pelo
manto diáfano da norma dita jurídica. E isto é tanto
mais grave quanto é certo que o discurso legal desloca as coisas do seu sítio certo. Na verdade, o que está
em causa não é o facto em que os devedores substitutos delapidam, extraviam, ou desviam o património,
colocando-se, assim, em situação fáctica de
incumprimento; o que está em causa é aquela incapacidade ou falência de forças patrimoniais para cumprir. Na primeira hipótese, já há normas de tutela e
perseguição contra as condutas ilícitas; e, caso as não
houvesse, o problema resolvia-se, criando-as. O que
está em causa é a incapacidade para cumprir, causada
pelas circunstâncias ou conjunturas económicas desfavoráveis, às quais a acção do Estado e daqueles que
protege com o seu "imperium" não é alheia, em regra
e na medida decisiva. Para satisfazer o seu devorismo
e daqueles de quem é vassalo, o Estado lança mão das
ínvias vias penais para submeter aos seus desígnios
aqueles de quem fez "infractores".
20
Tal como disse atrás, aqueles que tiverem a
bondade de ler o que se segue não vão encontrar obra
de penalista, nem obra feita com gosto. É por isso
fácil notar os defeitos que a "exornam". Contudo foi
feita por amor à Justiça. E é expressão de quem milita
mais noutros campos, ainda que muito modestamente. Creio, todavia, que o facto de ser "estrangeiro" me
ajudou a topar "detalhes" que têm escapado aos
penalistas. Por isso ofereço-os aqui àqueles que "são
da arte", para que estes os possam tratar com a sua
sabedoria. Melhor que o modesto autor, queiram eles
procurar a (má) razão que leva o legislador a desvirtuar os factos, nomeadamente através do uso impróprio de palavras, tais como apropriação (impossível),
apesar de, posteriormente, ter "caído" da lei, abuso de
confiança - quando o pretenso violador nunca disse,
expressa ou tacitamente, que nele podiam confiar, retenção, quando nada é retido, reversão, quando as
coisas não voltam atrás, não entrega de prestações, a
sugerir que a prestação é uma "res" e não um dever de
prestar quantia pecuniária, etc., bem como o motivo
que leva a jurisprudência, quase mimeticamente, a
seguir as pisadas do legislador, obnubilando a análise
e a crítica, e não menos a lógica do sistema jurídico,
abraçando uma teleologia que a justiça e o direito (enquanto princípio do justo) não aprovam. A comunidade exige aos juristas uma explicação séria destas questões. Doutro modo terá que as procurar noutros domínios do conhecimento, quiçá numa possível
ecossociologia, já que tal abuso da linguagem não é
inocente, quase parecendo emergência biótica em meio
muito especial.
O autor confessa que este seu modesto trabalho não pôde escapar à sua mundividência, nem ao
seu jeito. Naquela está sempre presente o princípio
negativo - "não julgarás" - e o princípio positivo - decorrente do Mandamento Novo -; neste, no jeito, a
tendência (incontida) para dizer as coisas como as
vê. Por isso acredita na pena como instrumento útil à
edificação da cidade. Não me repugna que o homem
julgue e regule as coisas da vida, enquanto não chega
a ERA DA PLENITUDE (Agostinho da Silva); mas
que o homem condene o homem, por mais que diga
que é o seu facto, é coisa que rejeito liminarmente. E
rejeito, porque não acredito que, sob a iluminação do
Mandamento Novo, haja homem que mate o homem.
A morte do homem é fruto sazonado da circunstância
que cria Santos e Pecadores. É circunstância que se
faz no Prémio e Castigo. Que postula a violação do
imperativo "não julgarás", que confunde paz com
armistício, fala mas não pratica o Amor e a Caridade.
Por isso não é Mundo de Liberdade, muito menos de
Igualdade e Fraternidade.
Regis Consultorum - Revista
Ao publicar mais este "tripaliu", eu sei que nada
vou mudar. Tal como, há já muitos anos, a propósito
de um título de crédito (o cheque) a que,
doutrinadores, acusadores, assistentes, julgadores e
doutrinadores, chamavam "meio de pagamento", muita
gente tem sido e continuará a ser condenada. Nesse
tempo, recusei-me a alinhar nessa "equipa". Quando
tal matéria - que também assentava numa realidade
ficcionada - foi reconhecida como não sendo o que
nunca fora, não faltaram agentes económicos a insurgir-se contra a alteração legislativa, cujas vias administrativas moralizaram o sistema, sem que ele ficasse menos eficaz. Na altura não faltaram também
advogados a lamentar a extinção de um "segmento do
mercado", que antes já devia ter sido extinto se os
acusadores e julgadores tivessem levado em conta os
mais fortes princípios de direito e de justiça. Como os
não levavam em boa conta, esse "bioma" propiciou
usuras e extorsões desenfreadas e consequentes prisões, por muitos anos, das vítimas dos beneficiários
do sistema, sem que, até hoje, tivesse havido um pedido de desculpa às vítimas. Esse exemplo mostrame que, também neste actual "segmento de mercado", as coisas assim vão continuar, enquanto a lei o
quiser. E não vai deixar de querer, porque aqui impera
o "interesse institucional". Eu sei que o que vem dizer
vai ser considerado uma heresia. Mas quem tiver a
coragem de querer perceber o que significa a "deformação profissional", por um lado, e o instituto de sobrevivência, pelo outro, talvez possa perceber melhor
as coisas, mesmo que esteja dentro do sistema e dele
viva. É sabido que a deformação profissional induznos a ver o real pelos "olhos" da nossa profissão,
mormente quando ela é muito exigente. A própria conversa trivial o demonstra; a propósito de "tudo" e de
"nada", lá temos "nuances" do que professamos. O
instituto de sobrevivência, por seu lado, arrasta-nos
para a realização ou conservação das coisas que asseguram a manutenção da vida e do bem-estar. As coisas são assim. Na minha experiência pessoal já li milhares de peças escritas de acusadores, assistentes
(segurança social), defensores e julgadores, bem como
ouvi alegações orais. Com muitos também já tive largas conversas sobre essa matéria, por vezes bem animadas. Pois bem; em todos os que acusam, assistem
(segurança social) e julgam, sempre notei a convicção profunda de que estamos perante matéria a merecer sanção penal. E, em todos, nunca senti a mais
pequena predisposição para investigar as contradições
existentes entre a lei de natureza patrimonial (aquelas
que estabelecem as diversas espécies de impostos e a
lei que ordena as operações contabilísticas, coerentes
entre si) e a lei de natureza-penal. Mesmo quando a
questão é colocada por escrito, e coloco-a constantemente, nunca tive o prazer de ver o assunto tratado,
quer pelo lado dos acusadores quer dos julgadores
(nem dos advogados que representam a segurança
social), de modo a demonstrar-se que a contradição
não existe e que eu não tenho razão. Por exemplo, eu
digo que, no que respeita às relações de IVA, o dito
devedor substituto, quando recebe o IVA que líquida
ao adquirente de bem ou serviços, quer nas transacções
a contado quer nas transacções a prazo, recebe o valor liquidado como direito próprio, e não como coisa
do Estado; e faço a afirmação com base nas normas
do CIVA e do POC (quanto a este, contas 11 e 12).
Ora, nunca vi alegações do MP, nem sentenças nem
acórdãos, a pegarem naquelas normas e, através da
sua análise, demonstrarem-me que elas dizem o contrário do que eu digo. Nunca vi isso ser feito. Vejo,
sim, a evitação da questão colocada, e a constância
da glosa da relação de abuso da confiança que nunca
foi constituída. E por isso fico sem saber se essa
evitação resulta de falta de à-vontade no trato dessas
matérias ou resulta do facto de as julgarem
despiciendas. Seja qualquer for a causa, tal silêncio é
forma de denegação de justiça: na primeira é hipótese,
cobrindo a ignorância, na segunda hipótese, é sintoma de arrogância.
A explicação de tal "atitude" dos poderes judiciais, como de tantas outras (como foi o caso dos
crime de cheque sem provisão, mormente quando na
origem estava o famoso "cheque pré-datado"), só pode
ser alcançada por via multidisciplinar, nomeadamente
a histórica e uma como que via "ecossistémica" (esta
com componentes sociológicas, ideológicas,
naturalísticas). A perspectiva histórica mostra-nos a
resistência do positivismo supostamente científico,
cuja emergência teve justa relevância na protecção da
liberdade, mas que cristalizou, como não podia deixar
de ser, nos seus próprios pressupostos, ou seja, por
ter feito "direito" uma "voluntas" condicionada por
interesses dominantes, postos em texto. O caudal
legislativo, prenhe de incoerências e experimentações,
mostra o que vale essa "voluntas" e a insegurança que
daí resulta, como é próprio dos caudais
descontrolados. A perspectiva "ecossistémica" mostra-nos, mormente se nela considerarmos a força da
"deformação profissional" e do "instinto de sobrevivência" (em que este recrudesce nas sociedades ditas
avançadas ao ponto de esbater o instinto de preservação da espécie, como o demonstra a quebra da natalidade em tais sociedades), como se desenvolvem determinados biotas, com suas "práticas" de vida (perspectiva social) e seus "signos" legitimadores (perspectiva ideológica). Como explica Eugene Odum (Fundamentos da Ecologia, p. 273), "uma comunidade
biótica é qualquer conjunto de populações que vivem
numa determinada área ou "habitat" física, "organizada frouxamente, na medida em que possui caracterís21
Regis Consultorum - Revista
ticas adicionais às dos indivíduos e populações que a
compõem", que "são as que têm tamanho suficiente e
organização tão aperfeiçoada que se tornam relativamente independentes das comunidades vizinhas", e
"comunidades inferiores" que "são aquelas que se
mostram mais ou menos dependentes das agregações
vizinhas", mas ambas correlacionadas trópica e
energeticamente.
A formação e aplicação do direito percebem-se
pelos factores naturais e sociais envolvidos. A zona
da sua formação - onde está o poder - é a zona mais
forte. A sua força revela-se no modo (o tal caudal)
como se faz e desfaz o direito, assente numa legitimidade "indiscutível": hoje a "vontade popular", ontem a
"iluminação divina do príncipe", antes-de-ontem a "lei
dada por Deus". E assim temos o "biota-superior",
dentro do sistema jurídico. Em face deste, emergem
os "biotas-inferiores" - acusadores, administradores,
julgadores - e os "biotas-inferiores-inferiores" - advogados, solicitadores -, em forma de sistema judicial e administrativo, todos com as suas dependências
"trópicas" e "energéticas". Para que não haja rupturas, mormente nestes sistemas "bióticos", não faltam
os mecanismos homeostáticos e de recomposição dos
"tecidos" afectados, quando a entropia cresce. E até
foram treinados, na "fase da educação", para servirem o sistema, mesmo aqueles que recalcitram. Por
isso, uns entram na vida (e agora cinjo-me ao sistema
judicial) aprendendo a acusar ou julgar os que já estão na vida, quando a ela chegam; outros aprendendo
a "recalcitrar" hoje o que ontem aprovaram, também
quando a ela chegam. Embora com uma diferença:
estes são escolhidos, aqueles foram impostos. Sendo
assim as coisas, como é que o sistema e o seu saber
podem deixar de ser sistema e saber subservientes?
Por isso a "justiça em nome do povo", mais que mito
é lamentável ironia. Também por isso, continuamos a
ouvir falar de confianças não estabelecidas, de abusos e apropriações impossíveis. Com a certeza de que
só na história, que não na existência, serão julgados
os que proclamam o que não é ou é impossível. Como,
nessa altura, já cá não estarão, isso não os incomoda.
E como, enquanto cá estão, estão convencidos, só a
destruição do "bioma" poderá salvar a vida. Platão
tinha razão quando dizia que a justiça "consiste em
dizer a verdade" (República, Livro I). Mas as coisas
são assim e não podem ser doutra maneira, para segurança do próprio "sistema maior", de aparência democrática, cuja garantia de sobrevivência é dada pelos aparelhos administrativo e judicial, antidemocráticos
por definição. O "sistema maior" louva-se na escolha
democrática, periodicamente legitimada na aparência,
mas predeterminada, "ciberneticamente", no mandato e na "teleologia", pelo "Dominus" que comanda a
22
constituição fáctica, ainda que sob o manto diáfano da
constituição formal, pela qual se cumprem as estratégias determinadas por aquela. Para o efeito, não faltam as escolas adequadas, nas quais se aprende, antes
de na vida se estar, a "governar", a "administrar", a
"acusar" e "julgar" os que na vida já estão! Ora, seria
suposto que o sistema judicial tivesse força e saber
próprios para escrutinar e julgar a lei e os factos. Mas
como pode ter esses poder e saber quem, também
"ciberneticamente", foi "educado" para conhecer e
exercer formalmente o poder de outros? Tal como no
"sistema maior", também aqui a questão se coloca no
campo da legitimidade democrática. Na verdade, o sistema é que escolhe e sindica os executores, ou seja os
escolhe e sindica os que vão velar pela Constituição e
pela Legalidade, bem como os que vão curar da validade e aplicação da Lei, sem que o povo, em nome de
quem o fazem, em forma de mandato sem representação, tenha uma palavra a dizer. Em grande medida,
esses mandatários, antes de saberem o que custa ser
povo, saber que se adquire com o sofrimento da existência na história, aprendem a dizer o que é lei e a
julgar o modo de ser povo.
Se entendo as coisas assim, compreendo que
me perguntem: " e porquê a recidiva?" Porque "a missão de cada jurista exigente - e de cada homem fraternal e consciente - é a de prosseguir esta luta em todos
os lugares e situações" (Orlando Carvalho), mesmo
contra todas as recriminações e consequências que
caem sobre quem teima em manter-se de pé. E quanto
seria mais fácil - e muito mais produtivo -, se a opção
fosse pela política e pelo "direito" dominantes…
Mais duas palavras finais são aqui devidas, uma
e outra correlacionadas. O estudo que segue não escapa à marca do advogado inconformado (e nada fiz,
confesso, para a evitar) e ao modo como o "suporte
físico do licenciado para o ser vê o mundo - o mundo,
melhor dizendo o mundo com que nos confrontamos,
na nossa efémera existência terrena e o mundo, e o
mundo do meu imaginário aspirado. Disto dirão os
cientistas - das sociais ciências que acrisolam - que a
atitude é pouco científica. Confesso, também, que
nada, rigorosamente nada, me incomodam tais opiniões, pois os nossos mundos não são os mesmos. E o
meu também tem a sua ciência. Que, se para mais não
serve, basta para evidenciar-se as contradições daquela. Só não vê quem não quer.
Regis Consultorum - Revista
CAPITULO I
Objecto deste estudo
É objecto deste estudo demonstrar, em modo
tópico, por isso não exaurido, as aporias do tipo de
crime de abuso de confiança fiscal (e do crime de
abuso de confiança em relação à segurança social)
gerado pelo inefável legislador português, a cujo enredo não escapam as instâncias que aplicam a lei, tãopouco aqueles que investigam estas realidades.
Subjacente a essa questão epistemológica está uma
ideologia que se esconde sob um discurso
logomáquico, que invoca um fundamento - o da justiça social - que, incoerentemente, não concretiza, deslocando a sua acção para outro interesse que obnubila,
mas concretiza. O discurso constitucional do sistema
tributário aponta como seus fins "a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades
públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da
riqueza" (art.º 103.º, 1 da Constituição). O Estado - e
outras entidades públicas - tem como tarefas fundamentais, nos termos do art.º 9º. da Constituição, "garantir a independência nacional e criar as condições
políticas, económicas, sociais e culturais que a promovam", "garantir o direito e as liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito
democrático", "defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais", "promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a
igualdade real entre os portugueses, bem como a
efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais", "proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o ambiente, prescrever os
recursos naturais e assegurar um correcto
ordenamento do território", "assegurar o ensino e a
valorização permanente, defender o uso e promover a
difusão internacional da língua portuguesa", "promover o desenvolvimento harmonioso de todo os território nacional, tendo em conta, designadamente, o
carácter ultraperiférico dos arquipélagos dos Açores
e da Madeira", "promover a igualdade entre homens e
mulheres". Como o sistema fiscal incide directamente
sobre o sistema económico, ou dele é subsistema, e
como, sem um bom sistema económico, aquelas tarefas fundamentais do Estado não se concretizam, importa reparar em alguns princípios fundamentais e incumbências prioritárias do Estado, relativos à organização económica da Nação. Assim, "inter alia", "a organização económico-social" deve assentar na: "subordinação do poder económico ao poder político democrático", "coexistência do sector público, do sector
privado e do sector cooperativo e social de proprieda-
de dos meios de produção", "liberdade de iniciativa e
de organização empresarial no âmbito de uma economia mista", "propriedade pública dos recursos naturais e de meios de produção, de acordo com o interesse colectivo", "planeamento democrático do desenvolvimento económico e social", "protecção do sector
cooperativo e social da propriedade de meios de produção", "participação das organizações representativas dos trabalhadores e das organizações representativas das actividades económicas na definição das principais medidas económicas e sociais" (art.º 80º. da
Constituição"; "promover o aumento do bem-estar
social e económico e da qualidade de vida das pessoas em especial das mais desfavorecidas, no quadro de
uma estratégia de desenvolvimento sustentável", "promover a justiça social, assegurar a igualdade de oportunidades e operar as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento, nomeadamente através da política fiscal", "assegurar a plena utilização das forças produtivas,
designadamente zelando pela eficiência do sector público", "orientar o desenvolvimento económico e social no sentido de um crescimento equilibrado de todos os sectores e regiões e eliminar progressivamente
as diferenças económicas e sociais entre a cidade e o
campo", "assegurar o funcionamento eficiente dos
mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de
organização monopolista e a reprimir os abusos de
posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral (art.º 81º., als. a) a e), com sublinhados
meus).
Com a concretização destas tarefas fundamentais do Estado, com a observância dos aludidos princípios de organização económica e a incumbência
prioritária da sua concretização, perante o Estado perfila-se a "sociedade livre, justa e solidária", "baseada
na dignidade - eminente e essencial - da pessoa humana e na vontade popular", proclamada no pórtico constitucional (art.º 1º. da Constituição).
Todavia, confrontando os desígnios constitucionais com a realidade sócio-económica e cultural,
ou seja, fazendo-se a comparação entre a Constituição formal ou escrita e a constituição real ou fáctica
do País, não se torna necessário analisar, ponto por
ponto, as normas constitucionais ora descritas, com
a realidade específica a que cada uma respeita, para
não só vermos o logro dos últimos 34 anos, que nos
mostra que o Estado está ao serviço de duas realidades bem visíveis: de um lado o hipercapitalismo que
concentra o poder económico em escassas dezenas
de grupos económico-financeiros que dominam todas as actividades estratégicas da finança, da indústria, do comércio e dos serviços, e, do outro lado, o
23
Regis Consultorum - Revista
pessoal de Estado, formado por titulares dos poderes
estatais e funcionários, com vinculo que é "seguro de
vida", e por "comissários" que pululam entre as empresas e o poder político, em regra pela via partidária,
no exercício do tráfico de influências. Sem qualquer
preocupação de ordem sistemática, constatamos: enquanto a concentração capitalista se hipertrofia, as
micro, pequenas e médias empresas desagregam-se
graças à pressão fiscal e à pressão dos grupos
económicos estratégicos. O parco crescimento
económico do Pais reverte, apenas, para os grupos
económicos dominantes, que ainda se aproveitam do
empobrecimento constante das famílias e da desagregação das pequenas e médias empresas. As famílias
perdem, de ano para ano, poder de compra, e o seu
endividamento não pára de crescer, graças à usura do
sistema financeiro (há situações de taxas de juros próximas dos 30%). O sistema de saúde, que,
inacreditavelmente, permite, no seu seio, que a maior
parte dos seus profissionais concorram com o patrão, já se tornou pasto dos grupos económico-financeiros. Apesar do seu enorme peso no orçamento, a
esses custos orçamentados da saúde acrescem os que
as pessoas pagam, fora do sistema, enquanto a sua
lógica de serviço universal gratuito, caminha para a
desagregação. O sistema educativo, apesar da legião
de profissionais que alberga, e apesar da proclamada
democratização, está cindido em duas lógicas: uma
ao serviço dos instalados, que renovam as elites do
conhecimento, outra ao serviço da formação de fornadas de "doutores" e "engenheiros" que vão servir o
exército dos desempregados. E o que se passa nos
sistemas de saúde e da educação, repete-se nos demais onde "este Estado" floresce. Entretanto, os efeitos da corrupção são visíveis. Basta reparar no custo
das obras públicas, nos empregos por favor, nos sinais de riqueza de muitos (mesmo muitos) que vivem
no interior e na orla do Estado. Por obra deste Estado
- dos que nele mandam, de fora, dos que nele actuam
(dentro), como braço armado daqueles -, já vamos
em 2 milhões de pobres entre cerca de 10 milhões de
portugueses; aparte o pessoal de Estado e dos
hipergrupos económicos, a maioria dos que integram
esse grupo tende para a proletarização. O fenómeno
atinge os micro, pequenos e médios empresários, quadros técnicos, profissionais liberais e trabalhadores
em geral. Enquanto isso, o Estado arrecada metade
do produto, para se alimentar e alimentar os grandes
grupos económicos, das mais diversas formas, nomeadamente os "elefantes brancos": as Otas e TGV
de hoje e de ontem, ficando umas migalhas para, talvez, mais de 8 milhões de portugueses, que aliena com
essas migalhas. A terminar, mais um pequeno exercício, com pequena margem de erro. O País tem cerca
de 10 milhões de habitantes. Cerca de 5 milhões estão
24
no activo laboral; 750 mil são pessoal de Estado; 4250
mil estão "cá fora". O pessoal de estado custa 15% do
PIB; pela lógica da igualdade, os 4250 mil, como uma
regra simples de três o demonstra, deveria custas 85%
do PIB. A igualdade levaria a que o PIB de cada ano se
destina, integralmente, a remunerar o factor trabalho!
Por tudo isto se vê como o princípio fiscal do
nº. 1 do art.º 103º. da Constituição se cumpre, na sua
primeira parte (e de que maneira), e como é defraudada a sua segunda parte. Ou seja, "o sistema fiscal (real)
visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas" (dos que nele agem,
bem remunerados ou não, pouco importa, e dos que
nele mandam, com vínculo formal ou com poder
efectivo, também pouco importa), e renega a "repartição justa dos rendimentos e da riqueza". Sem
directiva formal, ou seja, sem norma na Constituição
escrita, mas com comandos da constituição real ou
de facto, o sistema fiscal está, sobretudo, ao serviço
do povo-de-estado e contra o povo-da-nação. O sistema de impostos está assim a cindir o povo português em duas categorias ou classes: "os filhos do Estado" e os "filhos da Nação".
É por isso que, quando vejo fundamentações
penais, com base nos ditos crimes de abuso de confiança fiscal (não se confunda, aqui, tal dito crime com
outros crimes, p. ex., burla, cujo tratamento não precisava de lei especial que até é favorável ao agente),
com o argumento do Estado social e da justiça social,
não consigo conter os frémitos da revolta e da indignação, apesar de não ter "razões" para surpresas.
Naturalmente, as coisas podem-se atenuar, mas
não serão corrigidas. E, quiçá, qualquer atenuação não
passará de momento para que o sistema tome novo
balanço. É esta a natureza do sistema. Como dizia
Michel Foucault, "numa dada cultura e num dado
momento, nunca há mais de uma episteme que define
as condições de possibilidade de todo o saber, quer
seja o que se manifesta numa teoria ou aquele que é
silenciosamente investido numa prática"2. As palavras
constitucionais que aqui transcrevi não têm qualquer
força perante a "episteme" que nos sufoca. Da economia à socialidade, da cultura à política, a "episteme"
real viola e violenta, em forma continuada, a "episteme
constitucional". Tal facto justificaria que a Constituição fosse revogada e substituída por outra que fosse
expressão da constituição real. Tal revogação expressaria alguma nobreza e seriedade. E porque não surge
tal movimento, por parte do "pessoal dominante"? Não
surge porque faria alarido e espertaria consciências,
sem proveito para os que fruem a constituição real, já
que a Constituição formal até serve para contrariar os
Regis Consultorum - Revista
recalcitrantes, cuja voz se perde no vozeirar atroante
dos donos da fazenda. Se se perguntasse, um a um, a
todos os portugueses pela correspondência da sua vida
com os princípios constitucionais, a resposta, de
maioria esmagadora, seria a de que não correspondia.
Apesar da maioria ser esmagadora, talvez, quase coincidentemente, essa maioria seria um universo de
conformados, facto que revela a iniquidade do sistema, ao retirar às pessoas a capacidade de reagir contra um sistema que as aniquila.
Obviamente não faltará verbo democrático para
"demonstrar" que o sistema é consequência da vontade popular, expressada, frequentemente, em "eleições
livres e justas", na qual o povo escolhe os seus representantes. Sem relevar, agora, o significado das abstenções, basta reparar no modo como, em poucas
décadas, a "maioria popular" passou da "fraternidade
socialista" para a sôfrega sociedade "da inovação e
competitividade", em que cada um "cuida do seu quintal" que, em vez de couves, produz abrolhos. Reduzido a esse crasso egoísmo individual, cada um vota,
em função da "moda publicada", que é reflexo do que
deixou de ser opinião pública para ser opinião publicada.
E como tudo é moda, experimenta-se a moda anunciada, e ninguém se rala com o facto de uma promessa
de baixa de impostos ser "cumprida" com o seu contrário, ou se uma garantia solene de que os impostos
não subirão e o emprego vai crescer, também se tornarem no seu contrário, logo que o eleito seja
empossado. Desde que o eleito cumpra os ditames
dos poderes instalados e não eleitos, formais ou de
facto, a mentira faz-se virtude, e a opinião pública
publicada, que é voz de quem manda e comanda, aplaude o feito e chama corajoso ao mentiroso. Por seu
lado, a outra face formal do sistema, que perdeu as
eleições, sem perder estatuto, discute detalhes, porque, na próxima, a vez é sua.
O crime de abuso de confiança fiscal é bicho
(com o devido respeito pelos bichos) natural deste
bioma, em forma de paroxismo ou indicador
apopléctico do sistema. O sistema sócio-económico
e cultural português teve dificuldades em adaptar-se,
após a Revolução de Abril de 1974, ao sistema
hipercapitalista mundial que, já nessa cultura, tendia
para o exacerbamento em que hoje está mergulhado.
Para acompanhar os sinais dos tempos, o sistema
económico do País, que desde 1959 crescia à taxa
média anual de 6,8, não podia ter alterado drasticamente, como o fez, a organização económica nem ter
hipertrofiado o Estado. Devia por isso manter tal estrutura sócio-económico, e não lhe ter introduzido a
lógica socialista. Para exponenciar o sistema devia
democratizar e qualificar o sistema de ensino e
universalizar o sistema de saúde. As coisas foram feitas ao contrário, ou quase. O sistema económico foi
palco de lutas, e a sua lógica foi destruída, vencendo,
ao longo de cerca das duas décadas seguintes, a lógica capitalista. O Estado hipertrofiou-se para satisfazer clientelas de todos os matizes políticos. O sistema
de saúde tendeu para a universalização e gratuitidade,
mas tornou-se pasto de interesses existentes no seu
interior e exterior. O sistema de ensino evoluiu no sentido da democratização, mas desqualificou-se alarmantemente. Disto resultou o que, atrás, se deu nota. Por
tudo isso o País não acompanhou os sinais dos tempos. (Não quero significar, com estas breves notas
que elas são expressão da minha mundividência de
organização da comunidade.) Enquanto o Estado, à
medida que o tempo avançava, se endividava e não
tinha meios para saciar tantos estômagos, muitos deles maiores que os das baleias, outra solução ele não
encontrou que não fosse a de tributar, tributar. E para
que, em alguns sectores que ocupavam mão-de-obra
que ele não qualificou, como era seu dever, o desemprego não crescesse exponencialmente, tacitamente
estimulou a fuga aos impostos para que essas
actividades fossem ocupando aquela mão-de-obra. E,
assim, o orçamento não tinha as receitas daquelas
actividades, mas não tinha as despesas do desemprego. Todavia, tempo houve em que o tacticamente conveniente, deixou de o ser. Tecnicamente falido, o Estado esqueceu-se daqueles cuja actividade, fiscalmente
ilegal, estimulou. E, daí, o fenómeno do crime de abuso
de confiança fiscal, como o da emergente eficácia em
cobrar o que devia estar esquecido, pouco importando ao Estado a proletarização que está a induzir em
sectores económicos, incapazes de corresponder às
exigências fiscais, sem haver condições para
requalificar a mão-de-obra que ocupava e sem o Estado ter condições para amparar tanta gente, sendo
certo que o Estado age assim porque a "opinião pública publicada" legitima a sua acção.
Neste caldo sócio-económico e cultural está a
etiologia daquilo a que o discurso jurídico-político vem
chamando crime de abuso de confiança fiscal.
CAPITULO II
A "peregrinação" do crime de abuso de
confiança fiscal.
As palavras e as coisas
2.1. A tipificação do crime de abuso de confiança
fiscal.
O denominado crime de abuso de confiança
fiscal viu a "luz do dia", através do Dec. Lei nº. 20-A/
90, de 15 de Janeiro, cujo artigo 24º., tinha a redacção
25
Regis Consultorum - Revista
seguinte:
Artigo 24º.
(Abuso de Confiança fiscal)
1 - Quem se apropriar, total ou parcialmente,
de prestação tributária deduzida nos termos da lei e
que estava legalmente obrigado a entregar ao credor
tributário será punido com pena de prisão até três anos
ou multa não inferior ao valor da prestação em falta
nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o
limite máximo abstractamente estabelecido.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi
deduzida por conta daquela, bem como aquela que,
tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar,
nos casos em que a lei o preveja.
3 - É aplicável o disposto no número anterior
ainda que a prestação deduzida tenha natureza
parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 - Se no caso previsto nos números anteriores a entrega não efectuada for inferior a 250 000$, o
agente será punido com multa até 120 dias.
5 - Se nos casos previstos nos números anteriores a entrega não efectuada for superior a 5 000 000$,
o crime será punido com prisão de um até cinco anos.
6 - Para instauração do procedimento criminal
pelos factos previstos nos números anteriores é necessário que tenham decorrido 90 dias sobre o termo
do prazo legal de entrega da prestação.
A Lei nº. 15/2001, de 5 de Junho, revogou aquele
Dec.-Lei nº. 20-A/90. E, no seu art.º. 105º., alterou a
estrutura do tipo. Esta lei passou a dispor assim, sobre o crime de abuso de confiança fiscal:
Artigo 105º.
Abuso de confiança
1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida
nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a
entregar é punido com pena de prisão até três anos ou
multa até 360 dias.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que
foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que,
tenho sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar,
nos casos em que a lei o preveja.
3 - É aplicável o disposto no número anterior
ainda que a prestação deduzida tenha natureza
parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90
26
dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação.
5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a
(euro) 50 000, a pena é a de prisão de um a cinco
anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas
colectivas.
6 - Se o valor da prestação a que se referem os
números anteriores não exceder (euro) 1000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da
prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima
aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo
legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela
administração tributária.
7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos
da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.
A Lei nº. 53-A/2006, de 29 de Dezembro, através do seu artigo 95º., introduziu várias alterações à
Lei nº. 15/2001. Entre essas alterações, modificou o
disposto no nº. 4 do art.º. 105º. O seu teor actual é o
seguinte:
Artigo 105º.
[…]
1……………………………………………
2………………………………………………
3………………………………………………
4Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o
termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for
paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da
coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação
para o efeito.
5- ……………………………………….
6- ……………………………………….
7- ………………………………………
Ainda na vigência do Dec.-Lei nº. 20-A/90
(RJIFNA), foi introduzido o crime de abuso de confiança em relação à segurança social, por aditamento
do art.º 27º.-B, o qual se mantém na Lei nº. 15/2001,
art.º 107º. Como é sabido, quer aquele art.º 27º.-B
quer este art.º 107º., apenas têm de específico o facto
de se referirem às deduções feitas pelas entidades pa-
Regis Consultorum - Revista
tronais ao valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais. Por isso, os
elementos do tipo de abuso de confiança fiscal ou de
abuso de confiança em relação à segurança social, são
basicamente os mesmos.
Ao longo dos anos de vigência da lei que
tipificou o dito crime de abuso de confiança fiscal,
esgrimiram-se argumentos da mais diversa índole, que
iam da tentativa de demonstrar a impossibilidade da
existência da realidade aludida na lei até ao facto de se
incriminar condutas cuja prática era forçada pelo poder do Estado, até a inconstitucionalidade. Os tribunais, de "baixo" a "cima", incluindo o Tribunal Constitucional, com argumentos mais ou menos infelizes,
mas sem nunca afrontarem o cerne da questão, lá
foram afastando o argumentário dos recalcitrantes.
Independentemente disso, a "resistência" das
acusações públicas e das decisões judiciais às
"investidas" dos que sofriam na "pele" as consequências
dos desmandos fiscais do Estado, este lá foi sentindo
as aporias e incongruências dos textos a que ia dando
forma de lei, tentando remediar o que remédio não
tem, pelo menos no campo da inteligência. E por isso,
entre outras mexidas, deixou cair a palavra "apropriar"3, dada a evidência da impossibilidade de registo
desse facto, que deu azo a muitas laudas
jurisprudenciais, em que, aí, se afirmava, de forma
dramaticamente acrítica, que os arguidos nesses processos estavam investidos na função de depositários
de quantias alheias, a que nem faltava, por vezes, o
adjectivo de "fiel", para quem essas quantias tinham
sido objecto de tradição, etc. Como isso não passava
de uma grosseira ficção, de todo imprópria do direito
penal, o infinitivo do verbo "apropriar", na forma reflexa, lá foi banido, mas o paradigma continua a produzir os seus efeitos. Entretanto, as ficções mantêmse, e o cerne do problema continua a não ser afrontado, tudo continuando a ser olhado pela "rama".
2.2- As palavras e as coisas
Confesso que tomei o título deste ponto da
célebre obra de Michel Foucault: As Palavras e as
Coisas, na tradução portuguesa de António Ramos
Rosa; Les Mots et les Choses, no original em Francês. Não o fiz, contudo, por mero mimetismo verbal,
mas por me parecer que o objecto deste estudo é um
daqueles casos da realidade sócio-jurídica que melhor
salienta a pertinência das análises de Foucault. A obra
de Foucault não é uma obra jurídica. Nela, Foucault
procura compreender o homem no mundo e na sua
história, e compreender o papel que a linguagem teve
na construção desse mundo e dessa história.
Percebe-se, assim, que aquela obra tem um alcance mais vasto. Contudo, não sendo uma obra de
análise jurídica, nem por isso deverá ser indiferente
ao jurídico, mormente por duas razões: o jurídico foi
(e é) instrumento eficaz na construção do mundo e da
história do homem, a linguagem e a palavra são elementos centrais desse instrumento. Na formação e
conhecimento do direito, a linguagem e as palavras
com que cada específica língua se faz não podem
deixar de ter um papel também central. E o modo próprio ou impróprio - como são usadas na formação
e explicitação das diversas zonas do direito, contribui
para a compreensão da estrutura e sentido da zona
que se pretende conhecer. Independentemente da adesão ou recusa do pessimismo e mundividência evidenciados por Foucault na sua obra, é inegável que
ela fornece instrumentos de análise da realidade sócio-jurídica de elevado valor, mormente para o estudo
do abuso de confiança fiscal, pelos prismas da linguagem e da palavra. Através destes instrumentos podemos constatar como a lei, com o seu uso impróprio,
procura iludir aspectos essenciais do jurídico, para
alcançar finalidades perversas. Foucault atribui à linguagem um papel decisivo na "formação" do homem
e da (sua) realidade social. A linguagem aparece na
sua obra como que o factor que provocou a "eclosão"
do homem, no seu específico modo-de-ser, e, através dele, tem "fabricado" as diversas formas da sua
expressão colectiva ao longo da história. Perante esta
visão das coisas, não admira que o autor tenha privilegiado a linguagem, as palavras, para compreender
as "coisas-do-homem". Não me parece que esse "instrumento" ou critério baste para surpreendermos toda
a densidade social, no seu mais amplo sentido nem
que seja suficiente para demonstrar que o homem vive
totalmente "enjaulado" dentro das formas do seu
linguarejar. Se assim fosse, talvez tivesse havido maior homogeneidade em cada momento histórico, sem
se perder de vista que este nosso tempo parece aumentar as suas razões, graças à instantaneidade das
comunicações e da tendência para universalização da
linguagem. Por isso, a linguagem não terá sido tudo
por que o homem se fez, sem que isso desminta que
foi pela palavra que muito se fez e que, sem ela, talvez
a antropogénese tivesse sido um acto falhado. Com a
palavra o conhecimento transmite-se e recebe-se, pela
palavra se cruzam as experiências. É ainda pela palavra que se legitima a força das instituições sociais,
ainda no seu mais amplo sentido; sem a palavra não
haveria o comando, a obediência e o reconhecimento.
Ou seja, sem a palavra, o mundo do homem - que
pela palavra o fez - não teria sido ordem (instituição);
e, sem ordem, o mundo do homem não teria acontecido. A palavra foi assim decisiva na construção deste
"mundo-do-homem". Este mundo assim feito, do qual
dizemos que tem coisas boas e coisas más, que nomeamos (ainda) com palavras. Atingido este ponto,
27
Regis Consultorum - Revista
parece ser aqui que a obra de Foucault merece uma
especial atenção, mesmo para os que não partilham
do seu pessimismo e da sua mundividência. Na verdade, se as palavras tivessem propriedades coincidentes com as propriedades das coisas e dos factos, não
fossem elas formas convencionais cujo sentido se altera (evolução semântica) e não fossem passíveis de
uso perverso, por elas compreenderíamos as coisas
na sua objectividades, bem como o sentido objectivo
dos factos; assim, com elas, faríamos coisas "apropriadas" e praticaríamos factos "inequívocos". Mas
essa coincidência não existe. Por isso a palavra tanto
serve a virtude como serve a perversão, independentemente da intencionalidade (imprimida ou não). Com
o que fica dito não pretendo dizer que, para Foucault,
a realidade social de cada momento ou época histórica tivesse sido a linguagem; ele não diz isso. O que ele
diz é que, "numa dada cultura e um dado momento,
nunca há mais de uma episteme, que define as condições de possibilidade de todo o saber, quer seja o que
se manifesta numa teoria ou aquele que é silenciosamente investido numa prática"4. Essa episteme é a
marca desse momento histórico, como foi o carácter
dos seres quando despontou o interesse pela história
natural, a troca com o despertar da revolução industrial, quiçá a informação nesta nossa indefinida era,
em que tudo se demonstra e justifica com palavras,
mesmo quando silenciadas, cuja plasticidade as adapta a todas as conveniências, e que terá levado Foucault
a dizer que o "homem compôs a sua própria figura
nos interstícios de uma linguagem em fragmentos"5,
que mais não é que "o esfacelamento do rosto do homem no riso e o retorno das máscaras", qual "dispersão da profunda corrente temporal pela qual" ele "se
sentia transportado e de que suspeitava a pressão no
próprio ser das coisas", que mais não será que "a identidade do Retorno do Mesmo e da absoluta dispersão
do homem"6.
A história mostra-nos como a palavra é o primeiro instrumento utilizado para assegurar suseranias
- esclavagistas, feudais, capitalisticas, burocráticas -,
nos mais diversos domínios de expressão, nomeadamente políticos, religiosos, económicos e até culturais e filosóficos, mormente para afirmar legitimidades, quer antes quer depois do uso da força.
A palavra não é a coisa nem o facto. Mas é
uma realidade entre as coisas e os factos. E realidade
humana. Palavra, língua e linguagem são noções intimamente conexionadas, que não vou aqui procurar
compreender, nem analisar. Para a economia deste
estudo basta reter aquilo que empiricamente verificamos quanto ao seu uso, quer na perspectiva lexical
quer na perspectiva textual, ou seja na maior ou menor propriedade com que a palavra é utilizada (a correspondência entre o significado - o que nomeia - e o
28
significante - a palavra ou símbolo da realidade que
significa) e a propriedade do discurso (a realidade mais
vasta ou envolvente, nas suas correlações, feita dos
elementos que as palavras utilizadas nomeiam) falado
ou escrito (o texto). Essa realidade serve a comunicação entre humanos; mas é uma representação da realidade que pode ser comungada (por isso é comunicação) por todos os intervenientes no discurso, quer
em forma activa quer em forma passiva, que implica
a existência do comunicador ou emissor e do receptor, que podem estar em posição recíproca (p. ex.,
em atitude dialógica). Como já se deu nota, implicitamente, a comunicação linguística pode ser falada ou
escrita. A comunicação entre humanos, contudo, não
se faz apenas pela palavra escrita ou falada, como
tem sido demonstrado pela semiologia, que demonstra que a palavra, ou a linguagem, é um símbolo, ao
lado de outros símbolos que servem a comunicação
em que esta se faz, p. ex., através da música, da moda,
da fotografia, de expressões artísticas, etc. Sem entrar nestas questões, bastas pois concluir que a palavra (a linguagem) é a forma mais forte e mais extensa
da comunicação humana, mas que, enquanto forma,
é um símbolo que pode ser utilizado com maior ou
menor propriedade; que, por ser símbolo, nunca é
um "retrato" absoluto do que representa; e que, pela
sua plasticidade, até pode ser utilizada de forma
abusiva, em que o perigo do abuso, mormente por
parte do emissor, é tanto maior quanto maior for a
sua conveniência.
Ainda neste ponto, e atenta a economia deste
estudo, importa deixar aqui uma breve observação,
no que respeita ao uso da palavra e à formação do
discurso. Esta observação não levará em conta o falar
corrente das coisas do dia-a-dia; esta observação é
dirigida ao falar e ao discurso com pretensões científicas. Para simplificar as coisas consideremos o discurso das ciências naturais, das ciências humanas e
das ciências sociais. Pois bem; parece ser uma evidência que o discurso e o falar das ciências naturais
procuram a propriedade do discurso e do falar com a
realidade que representam; as humanidades, andam
próximas daquele discurso, quando actuam no campo analítico-crítico, e quando fazem arte não escondem o "abuso"; por seu lado, as ciências sociais, mormente a politologia, a economia e o direito (não poderemos dizer o mesmo, p. ex., da sociologia, da antropologia, etc., salvo quando se deixam engajar por ideologias), abusam como nenhumas outras do desvirtuamento da palavra e da linguagem. É por isso que
tenho manifestado noutros escritos (e aqui o reitero)
o meu sentimento da sua subserviência face aos poderes que marcam cada episteme histórica. Devemos
pois estar atentos sobre essa impropriedade no uso da
linguagem no campo desses saberes, pois parece se-
Regis Consultorum - Revista
guro que eles, muitas vezes, sem disso se darem conta, outro deus não servem que aquele que domina a
comunidade. Na captura e consolidação do poder (a
politologia), na formação e canalização da riqueza (a
economia) e na legitimação dos poderes (o direito),
esses saberes têm estado longe de cumprir o seu dever (porque são saberes normativos e não neutros),
porque, mais que a humanidade, têm servido o poder.
O chamado crime de abuso de confiança fiscal, na palavra e no discurso do legislador,
doutrinadores e jurisprudentes, é fruto sazonado de
abuso da palavra e do discurso. E, como já notei, quando provocados (no sentido de convocados para a
acção, para o debate ou diálogo), quando chamados a
pronunciar-se sobre a impropriedade das palavras e
discurso usados, mormente pela lei, os jurisprudentes
ou "respondem" com o silêncio, ou, olimpicamente,
repetem ou glosam as palavras da lei. Em ambas as
atitudes fogem à demonstração de que a arguição da
impropriedade enferma de erro. Isso outra coisa não
significa, em verbo jurídico, que denegação de justiça.
A lei que me proponho analisar é um manancial
de impropriedades verbais e textuais. E não foi por
deixar cair o verbo "apropriar" que o legislador deu
vida às coisas que nomeia com palavras impróprias,
antes revela a sua incoerência e o modo como actua
desproporcionadamente contra a sociedade que vem
modelando e até contra a unidade do sistema
normativo, em cujo nome é suposto falar.
Os elementos fundantes do alegado crime de
abuso de confiança fiscal e em relação à segurança
social, constam respectivamente, dos artºs. 105º. e
107º. do RGIT. Como já foi dito, o essencial está no
nº. 1 do art.º. 105º.. Abstraindo a sanção, e até o que
agora consta do seu nº. 4, está aí escrito: "Quem não
entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei
e que estava legalmente obrigado a entregar é punido
(…)", enquanto o nº.2 diz que, "para efeitos do disposto no número anterior considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela,
bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o
preveja". Sublinhei as palavras "entregar", "deduzida",
e "recebida", e importa considerar que a epígrafe da
norma é feita com as palavras "abuso de confiança".
Importa sublinhar ainda, já que estamos a falar de
coisas e das palavras por que o legislador as nomeia,
que as realidades em causa são, no essencial, impostas sobre o valor acrescentado, impostos sobre o rendimento sobre pessoas singulares e contribuições devidas pelo trabalho prestado a outrem, pelo trabalhador ou equiparado. As normas que regulam essas situações tributárias utilizam palavras, tais como dedu-
ção, e retenção na fonte. E também falam de entrega
de prestação tributária.
Essas normas utilizam, na composição do seu
discurso, que não devia desinserir-se da unidade do
sistema jurídico, palavras impróprias para descrever
os fenómenos a que as normas aludem, mormente
aquelas que ora foram sublinhadas.
As normas que estabelecem as relações de imposto sobre o valor acrescentado, bem como as que
estabelecem situações em determinadas entidades devem pagar ao Estado prestações devidas por outrem,
não estabelecem relações em que a obrigação devida
por aqueles que incrimina seja uma obrigação de entrega de coisa fungível ou não fungível, sendo sim
obrigação de prestação de quantia pecuniária. Por isso,
o jogo com o verbo entregar é um jogo interessado, e
que provoca a impressão de que a realidade é outra.
Depois, essas normas aludem a prestações deduzidas
e quantias retidas. Quando nada disso acontece. Na
verdade, nas relações de IVA, que se estabelecem entre transmitentes e adquirentes de bens ou serviços, a
generalidade dos transmitentes e adquirentes (destes
últimos retiram-se os consumidores, que estão no fim
da cadeia produtiva) liquida imposto sobre o valor
acrescentado àqueles que lhe adquirem bens ou serviços, e paga esse imposto aos que lhe fornecem, também, bens ou serviços. No termo de um determinado
período (um mês ou trimestre), o sujeito passivo deverá pagar ao Estado a diferença do que recebeu a
mais que o que pagou (se tiver liquidado mais IVA aos
seus clientes que aquele que lhe foi liquidado pelos
seus fornecedores), ou constitui-se no direito de receber do Estado o que pagou a mais aos seus fornecedores, que aquilo que liquidou aos seus clientes.
Esta relação tributária tem uma estrutura idêntica à do
contrato de conta corrente, e que, só no momento em
que se opera a liquidação da conta, é que é exigível
um saldo, em que o credor desse saldo tanto pode ser
o Estado como o dito sujeito passivo. Por outro lado,
e por ser essa a estrutura das normas, o sujeito passivo, quando liquida IVA aos seus clientes, constitui-se
credor, perante estes, pelo valor dessa quantia, e quando lhe é liquidado IVA pelos seus fornecedores, constitui-se devedor perante estes. Por isso, para o sujeito
passivo ser devedor de prestação deduzida, as coisas
teriam que se passar de outro modo, o que não é fácil
de verificar, sendo, tal fenómeno, praticamente impossível. Seja como for, nestas operações não há dedução a quem quer que seja: o sujeito passivo faz liquidações que debita aos seus clientes, creditando simultaneamente o Estado, enquanto que, nas suas aquisições, credita o seu fornecedor pelo valor do imposto que este lhe liquidou, e debita o Estado por esse
valor. Em relação ao Estado, em cada momento em
que liquida ou lhe é liquidado IVA, é feita a compensa29
Regis Consultorum - Revista
ção entre ambos. A ser de outro modo, o sujeito passivo deveria pagar o IVA ao Estado apenas quando o
recebesse dos seus clientes, e não antes, como, quase sempre acontece7. Nas relações de imposto sobre
o rendimento de pessoas singulares (IRS) ou de contribuições para a segurança social, em que os devedores originários são terceiros, ao contrário do que algumas normas dizem não há qualquer retenção. O
verbo reter significa a acção de não largar da mão o
que nela está: do retentor ou de terceiro. Ora, não é
legítimo censurar alguém por reter o que é seu, mas
apenas quando retém ilicitamente o que é de outrem.
Como vamos ver, nestas situações nada é passado
para a mão do alegado retentor. Num dado momento,
um devedor originário de IRS ou um trabalhador por
conta de outrem, constitui-se credor do sujeito passivo, em regra, por prestação de trabalho. Nesse mesmo momento, o devedor originário constitui-se na
obrigação de pagar ao Estado ou à segurança social
uma dada parte do seu crédito sobre o sujeito passivo. Por força de lei, o devedor originário fica
desonerado dessa obrigação, ficando o sujeito passivo, em regra o dador de trabalho, constituído na obrigação de pagar esse montante ao Estado e constituído
no direito de exigir ao devedor originário o valor da
dívida que lhe foi transmitida por força de lei. Ainda
por força de lei, o dador de trabalho tem o direito de
compensar esse crédito na obrigação que tem perante
o trabalhador. Estes fenómenos têm nome no sistema
jurídico. Por isso não há retenção nem dedução, há
uma transmissão singular de dívida e um direito de
compensação.
A realidade tributária que pode induzir a prática
do chamado crime de abuso de confiança fiscal é esta:
não é outra. É uma realidade induzida ou predisposta
pela lei. E, como vimos, apesar da confusão do discurso legislativo, impresso nos referidos nºs. 1 e 2
(mormente neste) do art.º 105º., não há outra realidade. Por isso, esse discurso tem como palavras-chave
as palavras prestação deduzida, prestação não entregue, prestação recebida. Pura e simplesmente, a lei
quer dizer que o devedor directo recebeu do devedor
originário uma quantia em dinheiro que pertence ao
credor tributário. Como as coisas não são assim, o
legislador abusando da aparência (pois, prima facie",
parece que é assim), afirma o que não existe, pois o
que existe são relações de natureza patrimonialobrigacional, com os típicos poder de exigir (crédito
de natureza pecuniária) e dever de prestar (obrigação
de pagamento de uma quantia pecuniária). É por isso
que nas relações de IVA o devedor tributário é devedor ou credor, num determinado momento, de uma
quantia pecuniária e, quando recebe quantias de IVA,
recebe-as como direito próprio, e, quando as paga,
paga ao seu credor (que não é o Estado); nas demais
30
situações (p. ex., IRS e Segurança Social), por força
de lei, assume dividas de outros perante o credor tributário, e adquire os direitos deste perante o devedor
originário. Por isso é falso que receba prestações do
credor tributário, como é falsa a afirmação legal de
que a "não entrega" de prestação tributária é uma prestação recebida de outrem. Para que a confusão
linguística tenha foros de veracidade, a lei pretende
fazer crer que existe uma dedução tributária em termos de subtracção. O que é outra falsidade. Nas relações de IVA, só pode falar-se de dedução em termos
de liquidação, na acepção de cálculo; enquanto nas
demais, cujos exemplos mais frisantes são os que se
operam nas relações de IRS e contribuições para a
segurança social, a dedução não pode ter outro sentido que não seja o de liquidação (cálculo) e compensação do devido ao devedor originário do crédito que o
credor tributário tem sobre esse devedor originário, e
que se transmitiu para o devedor directo como
contrapartida da divida do devedor originário que o
devedor directo assumiu.
A dita confusão legal, objectivamente, só tem
uma explicação: obnubilar a prisão por dívidas.
A impropriedade linguística não se fica por aí.
Apesar de já ninguém acreditar na suposta relação de
depositário - fiel ou infiel, pouco importa -, o legislador insiste - e os doutrinadores e jurisprudentes, também - nas noções de abuso e de confiança.
Ora, a noção de confiança implica relação e
conhecimento directo entre a pessoa que confia e aquela em que confia. A confiança tem dimensão psicológica e ética. Também se fala na confiança pública.
Mas, aqui, em sentido translaticio. A confiança, em
direito, que é um sistema de responsabilizações, implica a imputação. E o mesmo se poderá dizer da confiança na ordem moral. Na relação directa de confiança, o confiante acredita na boa fé daquele em quem
confia, acredita que ele é sério, honesto, leal. Para
que alguém confie noutro, este deverá manifestar sinais de que é pessoa que merece confiança. E por
isso o confiante entrega-lhe coisas para este guardar,
dá-lhe crédito material ou espiritual. Quando aquele
em quem o confiante acreditou não age da forma esperada ou prevista, tornou-se indigno da confiança
que nele foi depositada. Foi desleal, desonesto, traidor. E a sua responsabilidade, jurídica ou só moral, é
tanto maior quanto maiores tiverem sido as manifestações que ele fez no sentido de elevar a confiança
naquele que em si confiou. Mas, ao contrário, talvez
não se possa falar de confiança quando o confiante
confiou em quem nada fez para merecer a confiança.
E por isso, quando o comportamento deste é igual,
objectivamente, ao da violação da relação de confiança, não é possível falar da violação da relação de confiança, mas em que esta nada fez para a merecer, não
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é possível falar da violação de tal relação. Em tal circunstância, na ordem moral não haverá violação da
relação de confiança; na ordem jurídica, poderá haver
outra coisa (p. ex., um furto) mas não há violação da
relação de confiança. Sendo assim a relação de confiança, só há abuso dessa relação quando se formou
essa dimensão psicológica entre o que confia e o que
mereceu confiança àquele. No dito abuso de confiança fiscal, nem translaticiamente se pode falar de confiança. Muito menos de abuso. Contra isto, poder-seá dizer, que a ordem social é, por definição, uma ordem de confiança, uma ordem que pressupõe regras
morais e sociais de comportamento, cuja observância, mais ou menos espontânea, é previsível, pois,
doutro modo, a vida comunitária tornava-se impossível. É facto que as coisas são tendencialmente assim.
Mas só tendencialmente; pois, por isso, por ser apenas tendencial, é que se instituiu a ordem jurídica, que
prevê a coercibilidade, para que esta se imponha quando falha o "previsível-tendencial". Por isso, esta "confiança-geral" ou "confiança-social" não se confunde
com a "confiança-individual": aquela assenta na
"previsibilidade-tendencial", esta supõe a "certezacomportamental". A relação de confiança entre indivíduos não pode ser, assim, estabelecida de "fora"; de
fora apenas pode haver tutela moral, social ou jurídica, porque o específico modo-de-ser do homem depende muito das relações de confiança, tanto da "geral" como da "individual". E por isso compreende-se
que a ordem jurídica tutele as relações de confiança
individual, na acepção que aqui lhe dou, de forma específica, nomeadamente através da criminalização das
condutas que violem a confiança. Todavia, na
criminalização da violação das relações de confiança
individual, e até por força do princípio da tipicidade, o
legislador não pode desvirtuar as coisas através do
mau uso das palavras. Abusar da confiança é trair a fé
que alguém, em concreto, depositou noutro alguém,
fé que este suscitou inequivocamente naquele. Mas,
por ser fé, foi crença não foi imposição - nem de um
nem de outro. Foi, repita-se, crença absoluta na existência de uma coisa ou na prática de um facto. Não é
disto que trata o tipo legal de abuso de confiança fiscal; do que este trata é de imposições. De imposições,
até, de trabalho não remunerado, não escolhido livremente, ainda que uma imposição prenhe de pretextos
retóricos, como continuaremos a ver ao longo deste
estudo.
3
No livro referido na “Breve nota introdutória”,
tal como neste livro, esclareci que o meu estudo não era
obra de especialista em direito penal, mas contributo para
o estudo desta matéria pela perspectiva de quem vinha
de outros “mundos”, com o qual ela tocava de forma
acentudada. Procurei, aí, demonstrar, sobretudo, duas
coisas: a primeira era a da impossibilidade jurídica e
empírica do elemento central da tipificação da conduta a apropriação; a segunda era a da motivação do legislador para tipificar tal conduta, ou seja das causas sóciopolíticas e económicas para assim legislar. Aquele primeiro aspecto é estudado no capítulo III daquele livro, e
tem por base as normas das leis tributárias e do Plano
Oficial de Contabilidade que regulam os factos e relações jurídicas tributárias por substituição que provocam
a emergência das situações do dito abuso de confiança
fiscal; o segundo aspecto é estutado nos Capítulos II e
IV e no Anexo VI daquele livro.
4
Foucault, ob. cit., p.215
5
Ibidem, p.421
6
Ibidem, p.420
* Advogado na AFR - sociedade de advogados
NOTAS:
1
Edição de VIDA ECONÓMICA, Ano 2003
2
As Palavras e as Coisas; tradução port. de
António Ramos Rosa, Edições 70, p.215
31
Regis Consultorum - Revista
O BALCÃO NACIONAL DE ARRENDAMENTO
PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO (EM NOTÍCIA)
Dec. Lei n.º 1/2013
*Adalberto Costa
1 - O procedimento especial de despejo vem
consagrado na Lei n.º 31/2012 que procedeu à revisão do regime jurídico do arrendamento urbano. No
país dos procedimentos, este é mais um que procura
adaptar (bem ou mal) a legislação nacional em sede de
arrendamento urbano à realidade da vida dos portugueses que têm nas suas relações o contrato de arrendamento urbano, seja porque se é senhorio, seja porque se necessita de habitação e por isso se é inquilino.
O texto que se apresenta não visa apontar mais
uma opinião ou sequer comentário, antes procura
noticiar com espírito técnico jurídico e alguma crítica, uma matéria com aspetos novos que está a partir
de agora a fazer parte do ordenamento jurídico nacional.
O procedimento especial de despejo é assim de
aplicar a um conjunto de situações que ponham em
causa a vida do contrato de arrendamento, quais sejam:
1 - a cessação do contrato por;
a) revogação,
b) caducidade pelo decurso do prazo,
conhecido o seu resultado prático.
Este procedimento especial é de aplicar, não
apenas quanto ao arrendamento para habitação, mas
também a todos os arrendamentos independentemente do seu fim, bastando para o efeito, que se verifique
que o inquilino não desocupa o local arrendado na
data que está prevista na lei ou no acordo existente
entre as partes, nomeadamente o que está
convencionado no próprio contrato de arrendamento.
Nesta perspectiva e para prosseguir com este
procedimento especial, é também criado o Balcão
Nacional do Arrendamento (BNA) que para o efeito
tem competência exclusiva quanto ao tratamento desta
matéria e com competência alargada a todo o território nacional. Por isso, o BNA é um balcão que tem
competência para o tratamento das questões do arrendamento que lhe são cometidas e que provenham
de todo o território nacional, a exemplo, diga-se, do
Balcão Nacional de Injunções.
2 - O procedimento há-de iniciar-se pela apresentação junto do Balcão Nacional de Arrendamento
(BNA), de um requerimento - em suporte de papel e/
ou digital - que por sua vez deve ser acompanhado
dos seguintes elementos documentais:
c) oposição à renovação
d) denúncia livre do senhorio,
a) Contrato de arrendamento e acordo escrito
de revogação,
e) denúncia do senhorio para sua habitação ou
dos seus filhos,
b) Contrato de arrendamento onde consta a
causa de caducidade,
f) denúncia pelo senhorio para a realização de
obras profundas,
c) Contrato de arrendamento e a comunicação
ou o seu comprovativo de oposição à renovação do
contrato, por parte do senhorio ou inquilino,
g) denúncia pelo inquilino,
h) resolução pelo não pagamento da renda há
mais de 2 meses,
i) resolução do contrato por oposição do inquilino à realização de obras coercivas.
Estamos aqui perante uma grande panóplia de
situações que podem fundar o recurso ao procedimento noticiado, o que facilita, como infra veremos a
resolução das questões que se podem suscitar, mormente o problema da justiça lenta que Portugal tem
conhecido nos últimos anos, apesar de não ser ainda
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d) Contrato de arrendamento e a comunicação
ou o seu comprovativo quanto à duração do contrato,
e) Contrato de arrendamento e a comunicação
para resolução do contrato,
f) Comunicação ou comprovativo da comunicação do senhorio ou inquilino e suporte deste, quando a denúncia do contrato seja efetuado por este,
g) Comunicação do senhorio ao inquilino, quando haja também pedido de pagamento de rendas, en-
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cargos e despesas que corram por conta do inquilino.
A falta destes ou de parte destes elementos que
devem instruir o requerimento conduz inevitavelmente à recusa do requerimento do procedimento.
O regime jurídico do procedimento especial de
despejo prevê ainda que, para os casos em que o objeto do contrato, é a casa de morada de família, o
requerimento inicial para o despejo deva ser também
ser dirigido ao cônjuge do inquilino que não tenha assinado/outorgado o contrato de arrendamento, sendo
este notificado para o endereço que constar do requerimento, com as especialidades que constam das normas relativas à notificação e citação previstas no código de processo civil, endereço que em principio deverá coincidir com o correspondente ao do arrendado.
Uma particularidade cujo objetivo se não alcança, é a de que, o pedido de pagamento de rendas, de
encargos e despesas que se encontram em atraso,
dever apenas ser deduzido contra os arrendatários, e,
se o arrendamento disser respeito à casa de morada
de família, aquando do pedido, tem de ser deduzido
contra ambos os cônjuges, o que de todo, faz sentido. Na verdade, a quando da primeira situação referia, o que acontece se no contrato existir a figura do
fiador?! A lei, salvo melhor opinião não é claro, pelo
que, será de aplicar as regras gerais do processo civil
e consequentemente o requerimento tem também de
ser dirigido ao fiador ou fiadores que contrato contemplar. Só assim se dará pleno cumprimento ao contrato, procurando também a responsabilidade do fiador. Esta mesma ideia não poderá vingar quando se
trate do despejo a requerer. Aqui, compreende que o
fim tido em visto com a desocupação, só pode atingir
o inquilino e não outras pessoas, mesmo que tenham
a sua posição de corresponsáveis pelo bom cumprimento do contrato.
A lei impõe que, em cada procedimento especial de despejo, só possa ser pedido o despejo ou a
desocupação de bens imóveis. Outra solução parece
não ser possível, pois que, se o objeto do contrato de
arrendamento é um imóvel, só este pode ser objeto de
despejo ou desocupação. Mas a lei esclarece este princípio processual. É que, num mesmo procedimento,
pode ser requerida a desocupação de mais do que um
imóvel, se estiverem reunidos os seguintes requisitos:
a) se os vários imóveis se localizarem dentro
do mesmo Concelho,
b) se existir uma dependência funcional entre
os vários imóveis, por ex., tratando-se de imóvel para
habitação e garagem ou arrecadação descritos em frações autónomas (distintas),
c) desde que as partes (inquilinos) sejam as
mesmas.
Deste modo, nos casos supra referidos, o requerente do despejo deve identificar no requerimento
para o despejo apenas e só o bem (imóvel) principal,
mas esclarecendo que quanto aos demais eles constam de contrato de arrendamento, devendo o contrato ou contratos ser por isso juntos com o requerimento inicial. De igual modo, a renda que se indique
no requerimento, não deve se individualizada, antes
deve corresponder à soma das rendas dos diversos
imóveis (ou parte deles).
Outra particularidade que o regime do procedimento especial de despejo prevê - e dizemos nós - a
esclarecer, é a de que a falta de indicação do número
de identificação civil do inquilino requerido, não obsta
a que o pedido seja recebido, sendo porém necessário
que o requerente esclareça que o indicará posteriormente, porque o desconhece.
Damos por vista a matéria que diz respeito ao
requerimento inicial para despejo e a formalidade que
o mesmo deve respeitar para que não seja recusado.
Ao falarmos aqui em recusa, esta só pode ser a
que é levada a cabo pela secretaria do Balcão Nacional do Arrendamento e não outro. A recusa é da secretaria e não de um magistrado, pois que o BNA não
tem magistrados ao seu serviço, tratando-se antes de
um serviço público sem competência jurisdicional, mas
apenas a que a lei de forma restritiva lhe confere.
Importa levantar o problema da competência e
legitimidade da secretaria para recusar o requerimento inicial de despejo. Porém, deixamos este assunto
para outro texto onde apreciaremos outras questões
deste procedimento especial, bem como do próprio
regime do Balcão Nacional do Arrendamento.
Ao requerimento inicial para despejo pode haver oposição por parte do respectivo inquilino.
Sendo apresentada oposição ao requerimento
inicial de despejo, que é entregue, tal como o requerimento inicial no BNA, este remeterá o procedimento
para o Tribunal competente havendo aqui de proceder
à respectiva distribuição. Se assim é, relativamente à
força e ao fim do requerimento inicial, o seu objeto
não merecerá qualquer apreciação por parte do BNA.
A entidade com competência para apreciar da
oposição, nomeadamente da sua oportunidade processual é por isso o Tribunal havendo lugar ao pagamento da taxa devida e a caução quando legalmente
exigível.
Para além do requerimento para despejo e da
força a conferir ao requerimento, a lei identifica outras peças processuais que o procedimento especial
de despejo pode comportar, quais sejam:
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Regis Consultorum - Revista
a) requerimento de autorização judicial para entrada indireta no domicilio, (…)
b) requerimento de suspensão da desocupação
do locado, (…)
c) pedido de deferimento da desocupação de
imóvel arrendado para habitação, (…)
d) impugnação do titulo para desocupação do
locado, (…)
e) desistência do pedido, (…)
f) qualquer outro requerimento ou ato processual (…).
As peças processuais assim referidas, só existem enquanto o processo estiver pendente junto do
BNA e só a ele devem ser enviadas ou remetidas. Temos para nós, que esta matéria levanta um sem número de questões de natureza processual que entretanto na prática futura do procedimento irá constituir
obstáculo ao regular funcionamento do procedimento
e consequentemente trará para os cidadãos, nomeadamente senhorios e inquilinos problemas que prejudicarão uns e outros. Contudo, como já supra dissemos para outros aspetos relacionados com o procedimento, a seu tempo voltaremos ao problema para aí
contribuir para a sua crítica. Por último, o BNA é sempre responsável pelo envio para o Tribunal das peças
processuais (incluindo a oposição) devendo a mesma
ser feita quanto possível por via eletrónica e de forma
automatizada, sendo esta forma obrigatória quando
se trate de autorização judicial, suspensão da desocupação, diferimento da desocupação do imóvel arrendado para habitação e impugnação do título para desocupação.
3. A execução. O requerimento de despejo pode
ser convertido em título de desocupação do locado.
Esta conversão, como se vê é feita pelo BNA,
que só o poderá fazer após ser notificado pelo Tribunal da decisão judicial relativa ao respectivo pedido de
diferimento. Mesmo assim, feita a conversão, o BNA
disponibilizará a decisão judicial ao agente de execução que seja indicado, ou ao notário ou oficial de justiça, assim como o próprio título de desocupação.
Nos casos em que haja sido pedido o pagamento de rendas, encargos e despesas, o BNA depois
de proceder à conversão do pedido de despejo em
título bastante para desocupação do locado ou proferida decisão judicial para a desocupação do imóvel,
deve, sem qualquer outro formalismo: disponibilizar o
título ou a decisão judicial remetida pelo Tribunal;
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notificar o requerente para que no prazo de 10 dias
junte ao procedimento o comprovativo de pagamento
de taxa de justiça relativo à execução para pagamento
de quantia certa e no mesmo prazo indique mandatário, se ainda o não tiver feito, com a junção da respectiva procuração, tudo sob pena de, não sendo cumprido o prazo, se considerar ter havido desistência.
Uma vez cumprido aquele prazo para a prática
dos atos exigidos para o efeito, o BNA deve remeter o
procedimento e por via eletrónica para o tribunal. Aqui
surge mais uma novidade - o procedimento, que é
constituído pelo requerimento de despejo, titulo ou
decisão judicial para desocupação do locado, o
comprovativo de pagamento de taxa ou apoio judiciário (e eventualmente a procuração do advogado) é tido
como requerimento executivo (?) e diz mais a lei, requerimento executivo idóneo que inicia assim - no tribunal - a execução para pagamento de quantia certa.
Deste envio para o Tribunal é devido recibo para o
requerente (agora exequente) que é acompanhado das
referências para o pagamento dos honorários ao agente
de execução.
Mais um aspeto particular a atender relativamente ao procedimento especial de despejo, e em particular no que diz respeito à hipótese de execução para
pagamento de quantia certa, é o que cabe ao requerimento do procedimento especial de despejo indicar
logo nesse requerimento, o agente de execução responsável pela execução de quantia certa quanto a rendas, encargos ou despesas em atraso. Assim é que,
parece que o agente de execução deve logo (ou não)
ser indicado no requerimento inicial para despejo, não
podendo sê-lo depois da conversão ou para a execução. Quando não é indicado o agente de execução, o
BNA designará um da lista oficial e nos termos da lei.
4. A desocupação e a autorização para entrada
imediata no domicílio. A entrada imediata no arrendado depende e como já se viu, de autorização judicial.
Há porém em exceção a esta regra. Tratando-se de
arrendamento para habitação, e o agente de execução
o notário ou oficial de justiça verifiquem que no imóvel arrendado não se encontram pessoas e que para
além disso existem indícios de que o mesmo está abandonado, a entrada no imóvel para a tomada de posse
não carece de prévia autorização judicial.
Neste caso porém, o agente de execução, o
notário ou o oficial de justiça devem afixar no local
um aviso do qual conste dia e hora para a entrada no
local, aviso que deve ser afixado com pelo menos 20
dias de antecedência, lavrando sempre o respectivo
auto.
Em suma, o procedimento especial de despejo
tem o seu regime jurídico previsto e disciplinado nos
artigos 15.º a 15.º -S do Novo Regime do Arrenda-
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mento Urbano (NRAU) para onde se remete, constituindo o Dec. Lei nº 1/2013 parte da sua regulamentação, que diz respeito ao Balcão Nacional de Arrendamento e também do procedimento especial. Voltaremos a esta matéria em próximo artigo desta revista.
* Advogado na AFR - sociedade de advogados
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