Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo

Transcrição

Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
Mistério Pascal
e Mundo Contemporâneo
Colecção MANRESA
Autoconhecimento e Discernimento Cristão
Domingos Terra, S.J.
2. Espiritualidade Inaciana – 1ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana
AA.VV.
3. Deus e o Homem segundo Santo Inácio – 2ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana
AA. VV.
4. Jesus Cristo na Espiritualidade Inaciana – 3ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana
AA.VV.
5. A Trindade na Espiritualidade Inaciana – 4ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana
AA.VV.
6. Exercícios Espirituais de Libertação Pessoal
José Alves Martins, S.J.
7. Ordenar a Vida – Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loiola
Dário Pedroso, S.J.
8. Manual do Peregrino – Caminhando com os Exercícios Espirituais de Inácio
de Loyola
António Vaz Pinto, S.J.
9. São Francisco Xavier – 450 anos da sua morte (1552-2002) – 5ª Semana
de Estudos de Espiritualidade Inaciana
AA.VV.
10. Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo – 6ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana
AA.VV.
1.
VI Semana de Estudos
de Espiritualidade Inaciana
Mistério Pascal
e Mundo Contemporâneo
Editorial A. O. – Braga
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e Acabamentos:
Pode imprimir-se:
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Joaquim Cannas
Editorial A. O. – Braga
Fabigráfica – Pousa – Barcelos
Nuno Gonçalves, S.J.
Provincial
† Jorge Ferreira da Costa Ortiga
Arcebispo Primaz
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Outubro de 2005
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SESSÃO DE ABERTURA
Sérgio Diz Nunes, S.J.
Estamos aqui para começar mais uma Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana. É já a sexta. Alguns estarão aqui desde a primeira!
Outros estarão aqui pela primeira vez. Creio ser útil que comecemos por
nos interrogar sobre a razão de ser da nossa presença aqui. Esta atitude
de exame, tão querida de Inácio, é fundamental para que a vida não nos
passe ao lado mas para que a possamos sentir e viver ao modo de Deus.
Tomamos como tema para esta Semana «Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo», duas realidades que nos tocam totalmente, duas
realidades às quais não podemos fugir e que são chamadas a tornar-se
caminho de encontro com Deus e com os outros.
Tudo começa no olhar misericordioso com que a Trindade Santa
contempla o mundo, o nosso mundo, não o mundo que gostaríamos de
ter mas o mundo em que vivemos cada dia. É a este mundo que é enviado o Filho, não a outro de que porventura gostássemos mais, mas a este
de todos os dias. Esta declaração de amor é o caminho que nos é revelado
para que nós possamos aprender que para Deus sobe-se, descendo.
O Filho aceita descer aos infernos para que o amor do Pai faça o
contra-fogo que torna possível o caminho para a realização mais plena e
integrada do ser humano.
Um caminho não fácil, um percurso a que muitas vezes procuramos
fugir mas que interiormente sabemos não poder evitar. A esperança colocada única e exclusivamente nas limitadas capacidades do ser humano
leva a deixarmo-nos seduzir por outras propostas de realização, de felici-
6
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
dade, que não são mais que um círculo oco, que como buraco negro nos
vai sugando e esvaziando.
Temos medo do sofrimento, e da morte nem queremos ouvir falar. E
quando aceitamos falar, é quase sempre para falar da dos outros. Mas o
sofrimento e a morte estão aí, o mistério da Paixão e Morte do Senhor
toca todas as realidades do nosso mundo, numa expressão de solidariedade que abraça toda a família humana. Não podemos fugir, mas podemos, sim, abrir-nos à compaixão, saber estar com quem sofre e morrer
com quem morre.
Não me custa a crer que esta realidade é assustadora e que buscamos
a toda a força outras saídas, outros finais para a história. Mas aceitar
o convite de Jesus a partilhar a sua sorte e a com Ele fazer caminho,
implica aceitar descer aos infernos, para perceber aí que o amor é mais
forte do que a morte, e que sem morrer ao nosso amor próprio não há
vida verdadeira!
Esta certeza inabalável, de que vale a pena dar a vida, não é proclamada à sombra da cruz, em Sexta-feira Santa, mas sim no raiar da
manhã de Domingo de Páscoa. O Pai confirma o Filho no seu projecto
de vida e entrega-nos o seu Espírito, para que nós possamos acolher e
viver, em cada dia, o mesmo projecto de Jesus. Aquele Jesus que se pôs a
caminhar com os desiludidos discípulos de Emaús, fechados em esperanças que mais longe não iam que o próprio umbigo – e por isso mesmo se
constituem como a maior fonte de desânimo e a grande porta de entrada
do mau espírito na nossa vida.
Aceitar que Ele nos saia ao caminho e nos mostre, pela sua vida, que
tudo tem sentido e que muitas vezes, talvez mais do que aquelas que gostaríamos, o amor não tem um rosto agradável mas é o ponto de passagem
obrigatório para um nova esperança, a esperança cristã. Esperança que
não é ficar passivamente à espera que as coisas aconteçam, mas é, antes
de mais, colocar os meios para que em cada dia se vá realizando aquilo
em que verdadeiramente acreditamos. Só assim perceberemos que a verdadeira esperança é profundamente transformadora e transfiguradora
deste mundo em que vivemos.
Sessão de Abertura
7
Se nos deixarmos tocar pela realidade e conduzir pelo Espírito de
Deus, veremos que não faltam no nosso mundo construtores e construtoras de esperança1! Estão aí, ao nosso lado, a rasgar caminhos por onde o
Espírito de Deus irá soprar, recriando tudo e todos.
Uma nova era, um novo tempo, uma nova forma de estar que vem
do Alto até nós para nos fazer subir cada vez mais, para nos fazer ascender à imagem e semelhança da Trindade que Se abaixa, esvaziando-Se,
para que nós possamos ali ter lugar e sermos assim lugar de acção e de
partilha do Espírito de Deus.
A Eucaristia, como ponto de partida e ao mesmo tempo como ponto
de chegada de uma vida oferecida, é o espaço privilegiado para que todos possam experimentar que a contemplação para alcançar amor não é
uma consideração abstracta e piedosa da beleza da criação, mas é uma
manifestação de amor por este mundo em que vivemos. Manifestação semelhante à declaração de amor da Trindade ao enviar o Filho ao nosso
mundo, para que neste viver de cada dia percebamos o Mistério Pascal
como nosso primeiro e principal compromisso com o mundo real em que
vivemos e ao qual somos enviados.
Tenho esperança de que no final destes três dias saiamos daqui mais
seduzidos pelo caminho de Jesus. Que aceitemos o seu convite a tomar a
nossa cruz e a segui-Lo, vindo assim a perceber que sem Mistério Pascal
não viveremos verdadeiramente.
Registamos aqui para memória agradecida os testemunhos de Margarida
Teixeira, Rosário Farmhouse, Nuno Oliveira Dias e Ricardo Roncon que nos
manifestaram o seu modo de ser construtoras e construtores de Esperança.
1
ASPIRAÇÕES DO MUNDO MODERNO
E MISTÉRIO PASCAL
Domingos Terra, S.J.
Todo o ser humano quer realizar-se e ser feliz. Desejar, ambicionar, ter aspirações são uma marca estrutural da sua existência. Deus
criador determinou que assim fosse. O ser humano é obrigado a
gerir livremente o mundo das suas aspirações. Pode mantê-lo aberto
ao horizonte que permite a sua plena realização, ou então desviá-lo
para direcções erradas e desperdiçá-lo em objectivos curtos.
Nesta perspectiva, seguir as exigências que decorrem do Mistério
Pascal, não é uma necessidade da natureza humana, mas um acto de
liberdade. Podem escolher-se outros caminhos. Porém, o que aconteceu em Jesus Cristo mostra que o cumprimento de tais exigências
é o que permite ao ser humano alcançar a sua máxima realização.
Temos, pois, de conhecer bem a gramática da existência humana
que o dinamismo do Mistério Pascal nos propõe. Depois, poderemos pô-la em confronto com outras gramáticas que o nosso mundo,
entretanto, tem vindo a adoptar.
1. A gramática da existência proposta pelo Mistério Pascal
1.1. Viver uma esperança apesar da apreensão
Não podemos perder de vista uma verdade que sempre foi óbvia
a nosso respeito: a vida, que temos no presente, terminará necessariamente um dia o seu curso. Meditemos nestas palavras do teólogo
Karl Rahner: «Encontramo-nos todos encerrados no cárcere da
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
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nossa existência como condenados à morte; e esperamos que chegue
a hora da execução. Entretanto, podemos jogar às cartas, gostar do
rancho que nos dão diariamente e esquecer por algum tempo que a
porta se abrirá prontamente e nos chamarão para darmos os últimos
passos»1. Para termos uma ideia adequada do valor da vida, precisamos então de a ir pesando na balança da morte2. Não é por acaso
que Santo Inácio sugere que nos imaginemos às portas da morte, no
momento de fazer uma eleição importante para a condução da nossa
vida3. Pode acontecer que nos tenhamos concentrado em coisas de
pouca monta, sem atender a outras de maior alcance. A morte é um
ponto final na rota da nossa existência, tal como a conhecemos actualmente. Por isso, antecipá-la mentalmente deve levar-nos a olhar a
nossa existência como um todo.
No entanto, o ser humano parece não se conformar com a possibilidade de tudo acabar no momento da morte. Dificilmente suporta a ideia duma existência em que tudo seria declarado provisório,
relativo e, como tal, removível. Anseia por dar um cunho definitivo
ao conjunto das suas intervenções na história. Aspira, consciente ou
inconscientemente, a que nem tudo o que é e faz venha a desaparecer com a morte.
Deste modo, a existência temporal do ser humano é portadora
duma dialéctica estrutural: termina abruptamente com a morte, ao
mesmo tempo que aspira a não desaparecer totalmente com ela. Há
no ser humano um desejo profundo de continuar a ser. Habita-o
uma esperança, porventura até calada, da própria ressurreição. Trata-se duma expectativa na qual ele se projecta como um todo. Nas
situações concretas por que passa, parece ouvir-se a promessa de que
a sua existência vale para sempre como um todo único4. Ora, esta
Karl Rahner, «El escándalo de la muerte», Escritos de Teología, t. VII, Madrid,
Taurus Ediciones, 1969, pp. 155-156.
2
Ibidem, p. 156.
3
Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, nº 186.
4
Karl Rahner, Curso fundamental sobre la fe. Introducción al concepto de cristianismo, trad. de Raúl Gabás Pallás, Barcelona, Editorial Herder, 1979, pp. 315-316.
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Aspirações do mundo moderno e o mistério pascal
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esperança da nossa própria ressurreição é a base que torna razoável
acreditar na ressurreição de Jesus. Ela leva-nos a procurar algures na
história a confirmação daquilo que todos esperamos. Sentimos necessidade de saber se é possível ter acesso à realidade histórica dum
ressuscitado e, por conseguinte, experimentá-lo na fé. Vê-se, então,
que a própria estrutura da existência humana torna legítimo abrir-se
ao testemunho dos que vêm afirmando que Jesus está vivo5.
1.2. Perceber como a esperança sai confirmada
O acontecimento da ressurreição de Jesus dá-nos a resposta ao
problema da morte. Jesus ressuscitado é aquele que efectivamente
morreu, pondo em evidência o que há de positivo na morte. Fez
desta o acto da aceitação do incompreensível, o qual, não se podendo manipular, converte o sofrido em algo de positivo. Tendo Jesus
morrido, deu-se nele aquilo que a morte absurda leva consigo de
feliz mistério. O que nele teve lugar tornou-se, aliás, digno de crédito para nós. Ao olhar para a morte de Jesus, vemos que há qualquer
coisa a acrescentar à brutalidade e ao mesmo tempo banalidade da
morte. Deus comunicou-nos algo em Jesus: no conjunto formado
pela sua existência terrena, morte e ressurreição. Disse-nos que «nesse zero absoluto da nossa vida e da nossa experiência [que a morte
representa] é onde se começa a realizar a verdadeira vida»6.
Ao olhar para o que aconteceu em Jesus, temos razões para crer
que, com a morte, a vida não cai no abismo do absurdo. Cai, sim,
no abismo de Deus. É razoável esperar a verdadeira vida, que virá
a manifestar-se claramente para além do acontecimento da morte.
Mas o facto de essa vida se situar no ‘abismo’ de Deus significa que
não podemos prever os seus contornos. A experiência da verdadeira
vida supõe um acto de entrega radical e absolutamente confiante de
nós mesmos a Deus, à semelhança do que fez Jesus. Não pode haver,
5
6
Ibidem, pp. 316-317.
Rahner, «El escándalo de la muerte», op. cit., p. 158.
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
12
aqui, qualquer atitude de controlo da nossa parte. Com a morte, não
nos é possível guardar a vida do presente, porque nos é subtraída.
Por outro lado, a vida que é plena e eternamente válida está ainda
«escondida naquele futuro silencioso a que nos dirigimos, a que
chamamos ‘Deus’»7. Há, pois, um hiato entre a vida que deixamos e
aquela que nos chega, o qual não nos permite outra atitude que não
seja o abandono total nas mãos de Deus.
A vida futura não é do mesmo género daquela que vivemos no
presente. O para-além-da-morte não é o simples prolongamento da
vida temporal, a qual se poderia sempre corrigir. Apesar disso, a vida
futura constrói-se no seio desta vida temporal. É no próprio tempo,
que se faz a eternidade. Digamos que no exercício da nossa responsabilidade pessoal há o espaço do provisório, revogável, e o espaço do
último, irrevogável. Aquilo que, no decorrer desse exercício, atingiu
o estado definitivo é precisamente o âmbito da eternidade. É assim
que esta se insere no tempo da liberdade e da responsabilidade.
Então, temos de ir trabalhando com a ideia de extrair do tempo a
situação definitiva da nossa existência. Esta situação constrói-se por
uma atitude de abertura fundamental à realidade e pela prática da
liberdade. Precisamos de ir administrando o secundário e provisório,
tendo na mira o que é essencial e definitivo8. Preparamos, assim,
o momento da morte em que a eternidade é libertada do tempo
e adquire a forma ‘destemporalizada’. Pela morte, surge a perfeita
definitividade da nossa existência, que foi sendo livremente realizada
no tempo9. Fica então claro que, ao entrar na implacável solidão da
morte, só há uma coisa que ainda tem valor e se pode levar consigo:
aquilo que cada um foi na profundidade última do seu coração10.
Karl Rahner, «Victoria oculta», Escritos de Teología, t. VII, Madrid, Taurus
Ediciones, 1969, p. 169.
8
Inácio de Loyola, op. cit., nº 23.
9
Karl Rahner, «La experiencia pascual», Escritos de Teología, t. VII, Madrid,
Taurus Ediciones, 1969, pp. 176-177.
10
Rahner, «El escándalo de la muerte», op. cit., p. 156.
7
Aspirações do mundo moderno e o mistério pascal
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1.3. Em síntese
A nossa abordagem do Mistério Pascal permite enunciar os seus
aspectos principais. Em primeiro lugar, apesar de a morte constituir
o fim abrupto da existência presente, o ser humano traz consigo a esperança da sua ressurreição. Em segundo lugar, o que se passou com
Jesus mostra-nos que há um hiato entre a vida temporal que acaba e
a vida eterna que vem a manifestar-se plenamente. Mas mostra-nos
também que a morte não é a queda no abismo do absurdo, mas sim
no abismo de Deus. Em terceiro lugar, construímos a eternidade já
na vida presente, pela forma como nos abrimos à realidade e usamos
a liberdade. É isto que se torna definitivo no momento da morte.
Vemos, então, que o dinamismo do Mistério Pascal nos fornece
uma gramática de compreensão da existência e nos convida a exercer
a nossa capacidade criadora duma determinada forma. A vida é algo
por que temos de trabalhar. Mas Deus é quem tem ultimamente
poder sobre ela. Assim, no quadro desenhado pelo Mistério Pascal,
o ser humano é importante, mas não ocupa o espaço todo.
2. Projectos de felicidade puramente intra-mundana
A história dos séculos mais recentes mostra-nos como o ser humano inventou caminhos de felicidade, sem contar com a intervenção soberana de Deus. Destacam-se fundamentalmente três, tendo
surgido pela ordem seguinte: a aposta absolutamente confiante no
poder da realização humana, o isolamento no espaço do interesse
puramente individual e a busca dum transcendente à medida das
necessidades terrenas. Estas tentativas de felicidade puramente intramundana coexistem actualmente nas nossas sociedades. É certo que
a primeira cria as condições para o aparecimento da segunda e esta é
o terreno donde provém a terceira. Mas uma mutação histórica pode
não significar o total desaparecimento daquilo que existiu antes. Por
vezes, preservam-se tendências geradas em épocas diferentes.
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
14
2.1. O ser humano inteiramente confiante na sua força realizadora
A aposta completa no poder da realização humana inaugurou-se
com a Idade Moderna. Duas ideias-chave traduzem esta mutação
histórica. A primeira é a liberdade. O ser humano deixa de ser um
reprodutor de modelos preestabelecidos, para se tornar produtor de
si mesmo. Antes, tínhamos uma sociedade que olhava para trás: o
importante era a conformidade a um modelo a repetir continuamente. Depois, passámos a ter uma sociedade que olha para a frente,
desenvolvendo-se em função dum ideal a atingir. A segunda ideia-chave desta mutação histórica é a razão. O ser humano já não se
conforma à totalidade do real, tal como está estabelecido à sua volta.
Destaca-se dele, a fim de exercer a sua acção sobre ele e o controlar.
Quer descobrir as leis que explicam aquilo que existe, a fim de as
utilizar para transformar o mundo em seu proveito. Ora, a conjugação da liberdade e da razão faz emergir um sujeito consciente da sua
autonomia. É alguém que se constrói a si mesmo em plena responsabilidade. Empenha-se no avanço da história, movido pelo ideal do
progresso11.
Antes, a existência humana adquiria o seu sentido através da ligação ao divino. Agora, o que importa é habitar o mundo de cá. A
sociedade fica liberta da dimensão vertical que a fundava e fixava. O
sujeito pode então estabelecer as suas relações horizontais conforme
entender. Já não admite que a existência seja configurada pelo mundo do alto. É ele que assume esse papel12.
Ora, o sujeito, que se quer construtor do próprio destino, deve
ser tido como uma conquista da história. Devemos-lhe muitos dos
benefícios que temos hoje ao nosso alcance. No entanto, dois perigos espreitam o exercício da autonomia inteiramente confiante na
sua capacidade realizadora.
Jean-Marie Ploux, Le christianisme a-t-il fait son temps?, Paris, Les Éditions
de l’Atelier/Les Éditions Ouvrières, 1999, pp. 112-116.
12
Ibidem, pp. 117-119.
11
Aspirações do mundo moderno e o mistério pascal
15
O primeiro está na falta de atenção aos limites da razão, inerentes
à própria estrutura do ser humano. Este pode pecar por autoconfiança desmesurada, esquecendo as suas sombras e a sua finitude. De
facto, estamos hoje alertados para a problemática do inconsciente,
isto é, dos mecanismos que influenciam o agir humano, sem que se
esteja na posse deles. Freud chamou a atenção para uma área do nosso psiquismo que é irredutível à consciência (inconsciente psíquico).
Marx alertou para a possibilidade de o nosso modo de pensar ser
condicionado por forças colectivas cujo controlo nos escapa (inconsciente social). Nietzsche defendeu que a realidade não se deixa absorver totalmente pelo nosso esforço de compreensão (inconsciente
ontológico). Ficou, assim, declarada a incapacidade de o sujeito ser
totalmente transparente a si mesmo13. A pretensão dum controlo total de si próprio e da realidade circundante, além de falsa, é perigosa.
O excesso de autoconfiança da parte do sujeito empreendedor pode
produzir opressão e destruição.
O segundo perigo da autonomia empreendedora está na desvinculação da razão face ao próprio sujeito a quem deveria servir.
Vemos que as sociedades modernas tendem a organizar-se segundo
a lógica do interesse e do mercado. Voltadas para a produção e o
consumo, criam um sistema burocrático ao qual o sujeito é obrigado a submeter-se. Até a sua vida privada se vê afectada pela lógica
de funcionamento da sociedade. Deste modo, o sujeito é chamado
a desempenhar uma função, em vez de exercer a plena posse de si
mesmo. Estabelece-se um conflito latente entre ele e o sistema, dado
que a sua autonomia e a sua realização são postas em causa. Ora, a
possibilidade deste divórcio entre o mundo técnico-económico e o
mundo da subjectividade alerta para a necessidade de voltar a introduzir a questão do sujeito no debate sobre as nossas sociedades. Não
podemos esquecer que o avanço histórico para a modernidade se deu
precisamente com a aliança entre a razão e o sujeito livre. É preciso
Alain Renaut, A era do indivíduo. Contributo para uma história da subjectividade, trad. de Maria João Batalha Reis, Lisboa, Instituto Piaget, 2000, p. 17.
13
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
16
mantê-la, para que nem o sujeito se feche na obsessão da sua individualidade, nem a razão se torne um instrumento de poder voltado
contra ele14.
Note-se que, ao fazermos a crítica do sujeito autónomo empreendedor, não pomos de parte as suas virtualidades. Ele tem sido o
grande motor da história recente, concretamente no nosso espaço
ocidental. Não se esqueçam as descobertas científicas e o progresso
da técnica, o desenvolvimento das indústrias, a multiplicação dos
bens e dos serviços, ou a democratização do acesso à educação e
à cultura. Mas as glórias do sujeito empreendedor não escondem
também as suas derrotas. Por exemplo, os seus meios de afirmação
chegaram a produzir duas guerras mundiais e conduziram à beira
dum confronto nuclear. A multiplicação de bens e serviços ainda
não resolveu as carências básicas de vastas camadas de população.
Os avanços da ciência e da técnica, se trouxeram soluções, também
criaram novos problemas; é o caso das questões do ambiente ou
dos perigos da manipulação da vida humana. As nossas sociedades,
chamadas evoluídas, são, em boa parte, fonte de mal-estar: além de
progresso e comodidade, também produzem injustiça e despersonalização. Enfim, o fenómeno da globalização aumenta os intercâmbios entre grupos humanos e continentes. Faz circular pessoas,
bens e informação um pouco por toda a parte. Mas está a acentuar
desequilíbrios económicos e a fragilizar certas sociedades e culturas.
A visão da existência própria do sujeito autónomo empreendedor
pode ser confrontada com aquela que está implicada no dinamismo
do Mistério Pascal. Assim, este sujeito não parece ter presente a perspectiva da morte, como o fim abrupto da existência temporal. Dá
a impressão de viver como se nunca viesse a morrer. Também não
canaliza correctamente a esperança na própria ressurreição, que, de
facto, o habita interiormente. A energia de realização, que decorre
de tal esperança, é investida a pensar só na vida temporal. Glorian-
14
Alain Touraine, Critique de la modernité, Fayard, 1992, pp. 13-15.
Aspirações do mundo moderno e o mistério pascal
17
do-se da autonomia alcançada e confiando inteiramente no poder
da razão, o sujeito não vislumbra outra vida que não seja a temporal.
Sabe teoricamente que um dia esta chegará ao fim, mas não tem o
hábito de antecipar mentalmente o momento da morte. Isso seria
mostrar fraqueza e demitir-se da obrigação de transformar o mundo
e conduzir a história. A existência presente é a única que se conhece
e, portanto, aquela que conta. Não interessa preocupar-se com o definitivo. Julga-se que as acções sobre o mundo e sobre si próprio não
têm consequências transcendentes. Por isso, supõe-se que podem ser
eternamente corrigidas.
2.2. O ser humano que se isola no seu espaço individual
Certas análises, efectuadas na charneira dos anos setenta e oitenta, apontam a existência duma nova mutação histórica. Antes, o ser
humano assumia, na vida e na sociedade, uma atitude que se poderia
classificar de «disciplinar e militante, heróica e moralizante». Agora,
adopta um procedimento «à la carte», mostrando uma preocupação
«hedonista e psicológica, que faz da realização íntima o fim principal das existências»15. O ser humano abandona os grandes ideais e
as grandes realizações, procura libertar-se dos elos sociais e volta-se
para si próprio. Por um lado, está desiludido com os efeitos nefastos
e até desastrosos do exercício da autonomia empreendedora, absolutamente confiante nos seus méritos. Por outro lado, não se limita
a reagir contra os aspectos negativos do passado. Está inteiramente
convencido das virtualidades da nova ampliação da sua liberdade,
face à realidade que se lhe apresenta. Desinveste de projectos que
o obriguem a sair de si e retira-se para o espaço do interesse estritamente individual.
Assim, a subordinação do individual às regras colectivas é pulverizada. O sujeito autónomo empreendedor tinha-se libertado da
Gilles Lipovetsky, L’ère du vide. Essais sur l’individualisme contemporain,
Gallimard, 1993, pp. 315-316.
15
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
18
ligação vertical ao divino, mas dispunha-se a respeitar as normas que
a sociedade deste mundo lhe mandava cumprir. Agora, o indivíduo
quer-se livre, mesmo destas obrigações horizontais. É a passagem da
autonomia à independência16. Já não se é determinado a partir de
fora; mas também deixa-se de o ser a partir de dentro17. Desaparecem as obrigações exteriores e apagam-se os princípios interiores. O
indivíduo desvincula-se de toda a dimensão colectiva da existência
que possa limitar a sua liberdade. Tem dificuldade em aceitar uma
legitimidade que se apresente como anterior a ele mesmo. Também
não se deixa mobilizar facilmente por grandes projectos de sociedade. Parece não acreditar nela e ter perdido a esperança de mudar
o mundo. Por isso, mobiliza-se intensamente em torno do próprio
‘eu’18.
O respeito da singularidade subjectiva torna-se o valor fundamental. É chegada a hora de celebrar o ‘eu’ e de obter a realização
imediata dos seus desejos. Da lógica do dever passa-se ao princípio
do prazer. O bem-estar e a felicidade individuais têm a primazia
sobre o sacrifício, pois já não há nada exterior que lho possa exigir19.
A busca da satisfação privada torna-se até indiferente ao juízo dos
outros. O ego é mais importante do que o reconhecimento social. A
vida quer-se sem imperativos.
Vivemos na «sociedade da hiper-escolha»20. Aumenta o leque das
opções facultadas a cada um. Oferecem-se mais bens e serviços. Propõem-se até crenças e modos de vida. Ora, a multiplicação daqueles
pode ser considerada como consequência normal do desenvolviAlain Renaut, L’individu. Réflexions sur la philosophie du sujet, Paris, Hatier,
1995, pp. 46-47.
17
Gilles Lipovetsky, A era do vazio. Ensaio sobre o individualismo contemporâneo, trad. de Miguel Serras Pereira e Ana Luísa Faria, Lisboa, Relógio d’Água,
1989, p. 55.
18
Ibidem, p. 50.
19
Gilles Lipovetsky, L’individualisme dans les démocraties frivoles, col. «Les
cahiers du S.C.E.J.I. de Montpellier», p. 23.
20
Lipovetsky, L’ère du vide, p. 323.
16
Aspirações do mundo moderno e o mistério pascal
19
mento científico e tecnológico. Já a diversificação das concepções da
existência mostra até que ponto a actividade de escolha ultrapassa
os limites convencionais. Antes, os códigos de vida eram respeitados
enquanto socialmente instituídos. Hoje, mesmo estes são matéria da
preferência de cada um21. Antes, aceitava-se que a ordem objectiva
das coisas pusesse limites à liberdade individual. Hoje, esta quer-se
isenta de qualquer tipo de constrangimentos. Aliás, a própria sociedade encarrega-se de propor cada vez mais, para que o indivíduo
decida cada vez mais. Ele torna-se, assim, «um centro de decisão
permanente»22.
Esta atitude do indivíduo faz com que a realidade que se lhe
apresenta perca peso diante dele. Exemplo disso é o que se passa
com as tradições e os sistemas de pensamento. Em vez de realidades
instituídas, sustentadoras duma coesão social, tornam-se objecto de
livre escolha. Pode-se adoptar este ou aquele conjunto de ideias,
interpretá-lo como convier e mudar para outro quando se quiser.
Um segundo exemplo da perda de peso do real face ao indivíduo
é o que se passa com a figura do ‘outro’. Na condução da própria
vida, conta menos a outra pessoa, assim como Deus transcendente.
As relações humanas e os elos sociais tornam-se instáveis. Não é por
acaso que a coesão da família, o respeito pela autoridade ou o sentido
da responsabilidade pelo bem comum estão em crise. Não admira
também que se diversifique bastante o modo de conceber Deus, com
o intuito de o adaptar aos desejos de cada um23.
Ora, ao quebrar a consistência da realidade exterior, o indivíduo
acaba por debilitar a coesão do próprio ‘eu’. Normalmente, o ser
humano estrutura-se através do diálogo entre a sua interioridade e a
referida realidade. Mas quando se perdem as referências ao mundo
exterior, o centro de gravidade pessoal também se dilui. A consGilles Lipovetsky, O império do efémero. A moda e o seu destino nas sociedades
modernas, trad. de Regina Louro, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989, p.
237.
22
Ibidem, p. 236.
23
Lipovetsky, A era do vazio, pp. 70, 107.
21
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
20
ciência desorganiza-se, por já não ser determinada a partir de dentro. Torna-se mesmo disseminada, devido ao excesso de informação
que capta. A vontade é solicitada em múltiplas direcções, o que até a
pode levar à indiferença. O indivíduo dá a impressão de estar pronto, tanto a tudo como a nada24.
Com a perda de consistência da realidade exterior e a quebra de
coesão do próprio ‘eu’, é o sentido da existência que se estilhaça. Já
não há uma base sólida que o sustente, pois a verdade não tem mais
o direito de se reclamar objectiva. A oposição clássica entre sentido
e não-sentido torna-se mesmo questionável25. O indivíduo não admite que a sua emancipação seja posta em causa. Por isso, entrega-se à instabilidade dos compromissos temporários. O investimento
superficial e provisório prevalece sobre a fidelidade que perdura. O
que conta é a vida no presente: a relação ao passado e a obrigação
perante o futuro perdem importância26. Deixa de haver uma linha
de vida coerente, por falta de tradição e de escatologia. Há opções,
tidas como equivalentes, sucedendo-se em cadeia. O novo é algo que
tem valor em si mesmo. Daí que o indivíduo se lance na constante
aventura dos começos27.
À semelhança do que fizemos com a figura do sujeito autónomo
empreendedor, também a do indivíduo isolado no seu espaço nuclear
pode ser confrontada com a visão da existência que está implicada
no Mistério Pascal. O indivíduo não está aberto à dimensão do
transcendente. Para ele, também não existe outra vida que não seja a
temporal. Mas a retracção do horizonte da existência é agora maior
que no caso do sujeito autónomo empreendedor. Este abandonou o
além para se fechar no aquém. Mas o indivíduo chega ao ponto de
encolher o aquém numa das suas parcelas: o presente. Para o sujeito,
havia ainda uma escatologia estritamente temporal; para o indivíIbidem, p. 54.
Ibidem, p. 37.
26
Lipovetsky, O império do efémero, pp. 354-355.
27
Ibidem, p. 246.
24
25
Aspirações do mundo moderno e o mistério pascal
21
duo, não há sequer escatologia. Para o sujeito, a felicidade construía-se através de intervenções reflectidas e responsáveis no curso da história; para o indivíduo, a felicidade está na sucessão de experiências
de auto-satisfação, mesmo que desconexas entre si. O dinamismo
da esperança na própria ressurreição continua a fazer-se sentir, visto
ser um dado da estrutura do ser humano. Mas a energia realizadora,
que brota de tal dinamismo, nem sequer é aplicada na construção
duma existência coerente, por falta de obrigações que transcendam o
presente. Essa energia realizadora não parece obedecer a uma ordem
da vontade, ajudada por um verdadeiro escrutínio da inteligência.
Dispersa-se em múltiplas direcções, conforme as oportunidades que
se vão oferecendo de gratificação individual.
2.3. O ser humano que busca um transcendente à sua medida
Ao tirar peso às diversas variantes da realidade que se lhe apresenta, o indivíduo julga ter chegado a um grau de emancipação nunca
antes visto na história. Faz a experiência exultante de quem está nos
primeiros anos dum novo escalão de liberdade. Mas o tempo mostrar-lhe-á o preço a pagar. De facto, o dinamismo da independência
individual começa a voltar-se contra o próprio indivíduo. É fácil
libertar-se dos elos de sociedade. Mas é difícil prover-se sozinho de
todo o necessário para viver. O indivíduo descobre agora que precisa
que cuidem dele. Assim, da festa da emancipação, passa ao medo da
exclusão. A vontade de isolar-se dá lugar ao pavor de ver-se abandonado. O indivíduo parece querer agora filiar-se em algum lugar,
assegurar para si uma rede de solidariedades28.
Este novo indivíduo quer, portanto, alargar o seu espaço ao nível
horizontal. Busca um ‘nós’ onde consiga um enquadramento e seja
tido em conta. Já aceita ser determinado em parte a partir de fora,
a troco de protecção e de obtenção duma identidade. Mas ele tamJean-Claude Guillebaud, La refondation du monde, Éditions du Seuil, 1999,
pp. 305-308.
28
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
22
bém procura ampliar o seu espaço na direcção vertical. Não suporta
mais a fragmentação do ‘eu’ e quer recuperar o sentido de unidade
perdido. Por isso, além dum ‘nós’, busca um ‘além’. Só uma instância, que incida verticalmente na existência horizontal, terá a energia
capaz de congregar e orientar de novo o ‘eu’ dissipado e desorbitado. Não basta, pois, uma qualquer conexão social. É preciso uma
referência comunicadora de sentido: a existência precisa de sair do
acaso insuportável, voltando a inserir-se numa série causal29. Deste
modo, para o indivíduo só e perdido no seio da sociedade anónima,
o ideal será encontrar algo que lhe ofereça uma dupla referência: um
‘nós’ que seja animado por um ‘além’, ou, se quisermos, um ‘além’
cuja vivência ganhe corpo num ‘nós’. Este ‘nós’ poderá ser de laços
frouxos e orientação fluida, ou então compacto e apertadamente
dirigido. Exemplo do primeiro caso será o fenómeno da New Age.
Exemplo do segundo serão as seitas.
Não se pense, contudo, que esta busca dum ‘além’ aliado a um
‘nós’ constitui um regresso à sociedade tradicional. O facto de o indivíduo sofrer pela falta daquilo que perdeu com a sua emancipação
não significa que esteja disposto a voltar simplesmente ao estado de
coisas do passado. Ele mantém a atitude instrumental face à realidade que se lhe apresenta. Qualquer cedência no jogo dos elos de
sociedade ou na ligação a uma instância de alteridade visa garantir
algo em benefício próprio. É o indivíduo que dita as regras das suas
novas conexões. Mesmo a entrega, mais ou menos cega, às directivas
duma seita não deixa de partir duma decisão motivada pelo interesse. Assim, conectar-se com o ‘além’ e integrar-se no ‘nós’, que lhe dá
corpo, são preocupações de bem-estar30.
De facto, o estabelecimento desta nova ligação ao ‘além’ não
significa uma contenção da vontade de dominar, para dar lugar à
abertura ao mistério. A atitude que preside a tal ligação não parece
Paul Valadier, L’Église en procès. Catholicisme et société moderne, Flammarion, 1989, p. 81.
30
Ibidem.
29
Aspirações do mundo moderno e o mistério pascal
23
ser a compreensão da existência humana em função da realidade do
mistério transcendente. O mistério é que é encarado em função do
indivíduo, mesmo quando este dá a impressão de se conceber a si
mesmo à luz daquele. Em vez do absolutamente incompreensível, o
mistério é o ainda não conhecido e controlado. Ao conectar-se com
o ‘além’, o indivíduo parece querer entrar onde os progressos científicos não chegam. Não admira que enverede, por exemplo, pelas
chamadas ‘paraciências’. Estão hoje em voga domínios como a astrologia, a parapsicologia (estudo dos fenómenos psíquicos de aparência
sobrenatural: telepatia, pré-cognição…) ou a radiestesia (processo de
detecção de qualquer espécie de radiações ou vibrações)31.
Não se deve confundir, portanto, estas novas manifestações de
ligação ao ‘além’ com a expressão religiosa autêntica e muito menos
com a fé cristã. Em primeiro lugar, na actual nebulosa de fenómenos
de aparência religiosa, há a intenção utilitarista de pôr a vida sob a
dependência ou a protecção dum sagrado. O apoio, neste encontrado, dá aconchego à vida e permite saber a que se agarrar, para o bem
e para o mal32. Porém, no religioso autêntico, existe uma abertura ao
absoluto, explicitamente reconhecido como tal. O ser humano não
vive centrado em si mesmo, mas compromete a sua existência na relação com o absoluto. É uma relação que acarreta para ele exigências.
Em segundo lugar, nos actuais fenómenos de aparência religiosa,
o sagrado apresenta-se sob a forma de forças desconhecidas. Não é
possível identificá-las e designá-las claramente, embora se procure
perceber para onde tendem e tornar a sua força secreta dócil ao que
se quer33. Mas, no religioso propriamente dito, há um processo em
que o ‘além’ sem nome vai sendo designado. Este deve ser identificado a um desígnio que se possa representar de forma mais ou menos
clara, a uma finalidade que ordene o andamento do cosmos e, eventualmente, da história.
Ibidem, pp. 78-79.
Ibidem, pp. 81-82.
33
Ibidem, p. 82.
31
32
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
24
Em terceiro lugar, os actuais fenómenos de aparência religiosa
não têm um território social claro. Desenvolvem-se sem controlo
duma instância reguladora. Nem sempre é fácil identificar o ‘nós’
que dá corpo ao ‘além’ preconizado por estes fenómenos. Em contrapartida, o religioso autêntico ocupa um território de fronteiras
mais nítidas no conjunto da sociedade. Requer a fidelidade a uma
tradição, feita de experiências dum determinado tipo de relação ao
absoluto. Apresenta a forma de património dum crer, a transmitir de
geração em geração34.
Ora, o ser humano, que busca um transcendente à sua medida,
também é uma figura que pode ser confrontada com a visão da
existência implicada no Mistério Pascal. É mais ambígua do que as
outras duas, apresentadas anteriormente. Não nega o ‘além’, para se
concentrar unicamente na vida temporal. Pode até usar algum vocabulário igual ou semelhante ao que é empregue na mundividência
cristã. Refiram-se as ideias de divino e também de vida para além da
morte. Isto pode provocar confusão em certas mentes pouco esclarecidas e bastante afectadas pelo espírito hedonista das nossas sociedades. Há o perigo de sobreporem a figura do indivíduo que busca um
‘além’ para benefício próprio à do cristão que interioriza a exigência
do Mistério Pascal.
Carácter distintivo da espiritualidade cristã é o princípio de que
Deus absolutamente outro toma a iniciativa de intervir na história,
revelando-se e comunicando o seu dinamismo de amor. A própria
cruz de Jesus Cristo resultou do choque violento entre a manifestação de Deus plenamente realizada na sua pessoa e a recusa humana
de lhe abrir espaço. Foi um acontecimento que não terminou com
o aniquilamento puro e simples de Jesus. Deus resgatou-o do reino
dos mortos para a vida eterna, respondendo assim afirmativamente
à forma como ele sempre se abriu à realidade e exerceu a sua liberdade. Ora, este dinamismo do Mistério Pascal é incompatível com a
Pierre Gisel, «Qu’est-ce que croire? Mise en situation théologique», Recherches de Science Religieuse, 77/1 (1989), pp. 67, 79.
34
Aspirações do mundo moderno e o mistério pascal
25
busca dum transcendente à medida da própria pessoa. No Mistério
Pascal, a passagem da vida temporal à plena manifestação da vida
eterna dá-se na sua crueza histórica pessoal. É-se confrontado com
a decisão de se entregar ao abismo de Deus. Em contrapartida, na
relação com um ‘além’ concebido à medida do próprio, a ligação da
existência temporal com o terreno do divino dá-se de forma demasiado suave. Este oferece um espaço psicologicamente apaziguante,
onde a responsabilidade se dilui e a crueza das contradições não tem
lugar. Assim, o divino não é o absolutamente outro pessoal, mas um
reino difuso que serve para prolongar as aspirações do ‘eu’ egocêntrico. A esperança da ressurreição, que, em qualquer caso, habita
interiormente o ser humano, é deturpada. Não se deposita confiança
na eventualidade de ser agarrado por Deus, após a entrega total no
salto da morte. Apenas se trilha o caminho seguro da expansão do
presente.
O ser humano que busca um transcendente à sua medida surgiu
devido ao fracasso das figuras que o precederam. Interessa agora
estar atento também às suas possíveis falhas e procurar antever as
novas possibilidades históricas que daí possam advir. No entanto, há
razões para acreditar que teremos de conviver por muito tempo com
este fenómeno da sedução do transcendente dócil ao imanente. A
tendência a encarar a realidade em função dos próprios interesses parece ter vindo para durar. É um panorama social e cultural que não
nos deve retirar a iniciativa. Como crentes, precisamos de interiorizar melhor o Mistério Pascal de Jesus Cristo. É assim que estaremos
mais aptos a propô-lo vivencial e intelectualmente a outros, como o
caminho sólido da felicidade.
QUE SOFRIMENTO? QUE MORTE?
Dra. Maria Teresa Ribeiro
I – Como olhamos, hoje, para o sofrimento e para a morte?
Pensar na resposta a estas duas perguntas “Que sofrimento? Que
morte?” leva-nos muito longe. E, para confirmar o alcance destas
perguntas bastou estar atenta à reacção de algumas pessoas que sabiam o tema que estava a preparar. As reacções mais habituais eram
de rejeição: “Não arranjas nada mais agradável? Que horror, já bem
basta quando nos vem bater à porta!”, ou de evitamento – “Nisso,
quanto menos se pensar melhor!” ou de negação – “Dá a volta ao
tema, fala antes de optimismo que é mais positivo” , ou de acção
– “O que é se pode fazer para atenuar o sofrimento? E com a morte,
torná-la cada vez mais longíqua e menos dolorosa?”. Também muitas pessoas reagiam com silêncio. E o silêncio é uma grande forma
de comunicar, com a expressão do olhar a transmitir tudo... Outras
reagiam, depois de reflectir um pouco, revelando conhecimento de
causa, experiência vivida – “Quando se sofre, cresce-se” ou “Isso tem
a ver com o sentido da vida. Com a nossa existência, é inevitável!”.
Estas reacções tão diferentes dão muito que pensar.
Como olhamos hoje para o sofrimento e para a morte? Como
reagimos às diversas formas de sofrimento? Com que perspectiva
encaramos a certeza da morte?
Vivemos numa época em que a cultura favorece as primeiras
reacções que descrevi. Os valores dominantes são os: do individua-
28
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
lismo e da independência; do hedonismo, da procura do bem-estar
físico, psicológico, social... porque existe o “direito a ser feliz!!”, do
consumo e do prazer, de recompensas imediatas; do evitamento e
negação de todas as formas de sofrimento; do disfarce e negação do
envelhecimento e da morte – “todos querem viver muitos anos mas
ninguém quer ser velho”; da indiferença, da apatia e do distanciamento, da dificuldade em se comprometer...uma cultura do vazio.
Tão vazio que, por vezes, não alcançando os seus objectivos, a pessoa
acaba por desesperar e desejar a morte porque, para ela, passou a ser
insuportável viver nestas circunstâncias de vazio existencial. Encontramos, também, muitas pessoas que se comportam como se viver
fosse igual a ir a um “mercado de analgésicos”. Para cada frustração,
ao mais pequeno sinal de sofrimento, há-de existir algum analgésico
que ajude a atenuar a dor.
Mas é impossível passar ao lado do sofrimento, das diversas formas de sofrimento.
No sofrimento físico, desde as doenças passageiras às mais prolongadas e fatais, desde as doenças agudas às doenças crónicas e deficiências diversas. Todo o sofrimento provocado pela fome e pelas
guerras.
No sofrimento psicológico, cujas manifestações vemos pelo número crescente de perturbações do comportamento, de perturbações
da personalidade, de dependências (álcool, drogas, ludopatia, internet) e daquela que chamam a doença do século – a depressão. As
autoridades médicas mundiais referem que a depressão passará rapidamente a ser a segunda causa de sofrimento no mundo – as pessoas
com menos de 30 anos já têm hoje quase o dobro das depressões das
que tinham as pessoas da geração anterior.
Há, também, de uma forma crescente, todo o sofrimento físico
e psicológico proveniente das relações entre as pessoas, quase a tornar verdadeira a clássica afirmação de Sartre de que o inferno são
os outros. As incompreensões, as intolerâncias e as indiferenças,
os maus-tratos – tudo, faltas de amor – que se manifestam nos
conflitos graves entre marido e mulher, entre pais e filhos, entre
Que sofrimento? Que morte?
29
gerações, entre pares, entre comunidades e, à escala mundial, entre
países.
Mais ainda, a perda de afectos é uma das premissas básicas da
explicação de situações de falta de assistência no sofrimento e na
doença a um familiar, facto frequente, hoje em dia, com os idosos,
os doentes crónicos, os deficientes. De facto, se não sentimos o amor
dos outros por nós, sofremos. Se não sentimos amor por outro(s),
sofremos mas, também, quando amamos sofremos.
A dor, o sofrimento, assim como a morte fazem parte da vida, são
naturais e inerentes à existência humana.
II – A Dor, o sofrimento e o desenvolvimento de teorias psicológicas sobre o stress familiar
A dor1 é uma experiência pessoal e subjectiva que só conhecemos através da comunicação daquele que sofre. Habitualmente
é um sinal de alarme indicador de que algo não está a funcionar
no organismo. Tem a função de proteger a integridade da pessoa.
Uma vez resolvido o problema que causou a dor, espera-se que esta
desapareça. Nem sempre assim acontece porque a causa pode ser
desconhecida, a medicação ineficaz ou muito complexa a natureza
dos factores envolvidos. A dor pode assim, e de acordo com a distribuição temporal, passar de aguda a crónica2.
Na compreensão da dor é necessário ir além da dimensão neurofisiológica pois sabemos que um mesmo estímulo pode provocar reacções diferentes, dependendo da pessoa e do contexto, provocando
ou não, dor em maior ou menor intensidade. Está em causa a inter“ Dor é uma experiência sensorial e emocional desagradável, associada a um dano
real ou potencial dos tecidos, ou descrita em termos de tais desilusões”, segundo a IASP
– Associação Internacional para o Estudo da Dor.
2
Segundo o DSM-IV(Diagnostic and Statiscal Mental of Disorders, 1994) ,
para a dor ser considerada aguda, a sua duração deve ser inferior a seis meses e no
caso de ser considerada crónica, o período é de seis meses ou mais.
1
30
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
relação entre qualidades sensoriais e componentes afectivos, cognitivos e comportamentais de cada pessoa, em cada contexto – família,
comunidade. A interpretação da dor é individual e depende mais
do significado do que da natureza ou intensidade do estímulo original. A expressão da dor, por sua vez, surge através de alterações
orgânicas e de respostas emocionais que podem ser de negação,
ansiedade, raiva, depressão, impotência, desamparo, dependência,
necessidade de protecção e desesperança (Teixeira, 1998).
Actualmente, defende-se que a experiência dolorosa é composta
pela percepção da dor, associada a reacções emocionais, estados afectivos e manifestações psicofisiológicas secundárias. A ansiedade é o
estado emocional mais associado à dor aguda, sendo que a depressão é mais frequente na dor crónica. Importa referir que diversos
estudos (Alves, Carvalho & Baptista, 1999) concluem que a ansiedade está mais relacionada com emoções como o medo, sentimentos
de preocupação, apreensão e tensão permanente, enquanto que a
depressão se associa a emoções como a tristeza, sentimentos de pena
e de desesperança.
Foi proposto este ano pela Associação Internacional para o Estudo da Dor o primeiro Dia Mundial Contra a Dor, uma vez que,
segundo a OMS, uma em cada cinco pessoas sofre de dor crónica
moderada ou forte e a dor crónica seria um dos problemas mais subestimados pelos serviços de saúde no mundo actual.
Os limites que separam a dor do sofrimento são ténues porque
quase toda a dor tem um sofrimento que lhe é correlato e vice-versa.
Segundo Ricoeur (1994) a dor puramente física seria um caso limite pois faz habitualmente surgir um sofrimento psíquico. Somente
nos casos em que a dor é fulminante (e.g. enfarte de miocárdio) e a
morte súbita, é que não existiria sofrimento psíquico, por não haver
mais vida. Como referia Platão “A dor não surge apenas por estimulação periférica, mas também por uma experiência da alma, que reside no
coração”.
A dor pode ser evitada, reduzida mas o sofrimento não, por ser
inerente à condição temporal do homem. Cada pessoa sofre por ter
Que sofrimento? Que morte?
31
medo de ficar com sequelas, incapacidades, por ter medo de perdas
materiais, afectivas, sociais e principalmente medo da morte. Estes
sentimentos são evidentes em frases como “estou a morrer de dor”
ou “este sofrimento é de morte”.
O modo como a pessoa enfrenta o sofrimento, as perdas (de saúde e de vida) depende, em grande parte, de como foi vivenciando o
sofrimento e outras perdas durante a vida.
Isto conduz-nos ao stress ou síndrome geral de adaptação que foi
definido, pela primeira vez em 1956, por Selye, como um fenómeno
de natureza sistémica que se relaciona basicamente com a resposta
expressa pelo organismo, sempre que confrontado com uma exigência de adaptação ambiental. Assim, neste conceito são considerados
estados emocionais e afectivos, estando bem documentada a sua relação com condições afectivas negativas (Alves et al, 1999). O stress
decorre directamente da nossa actividade diária, sendo vivenciado
como algo insustentável sempre que atinge proporções excessivamente superiores aos nossos recursos.
O ser humano existe sempre em relação com um outro e compreende as suas experiências, atribuindo-lhes significado, dando
sentido à sua existência. Existe na sua condição de ser-no-mundo e
tenta, a todo o instante, manter as suas características individuais e a
sua dignidade existencial. Nascemos, crescemos, desenvolvemo-nos
e passamos por várias crises evolutivas. Vivemos sentimentos ambíguos de amor e ódio, revolta, solidariedade. Ao longo da nossa vida
vamo-nos sucessivamente adaptando às perdas e agressões que sofremos, quer modificando, sempre que possível, as próprias situações,
quer alterando as percepções que temos delas. Habituamo-nos ao
mundo no qual existimos. Um mundo estruturado que, de repente, fica sem sustentação ao esbarrarmos com situações inesperadas
como um acidente, uma doença, uma morte, um desemprego, uma
perda que surge abruptamente na vida da pessoa. São acontecimentos traumáticos que interrompem a nossa rotina. Rompemos com
a previsibilidade e temos muitas vezes de suportar o insuportável.
Temos que nos adaptar e o sucesso deste processo de adaptação varia
32
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
bastante não só porque exige tempo como depende daqueles que nos
rodeiam. Do seu apoio e da qualidade das relações.
Assim, o sofrimento num dos membros da família provocado,
por exemplo, por uma alteração de saúde, é visto como uma ameaça
às estabilidades económica, social, relacional e emotiva de todos. A
primeira reacção é, regra geral, de ansiedade. Muitas vezes verifica-se, posteriormente e como mecanismo de defesa psicológica, uma
projecção da agressividade, regressão e processo depressivo. Facilmente se instala uma crise na família. É importante perceber que,
para além da satisfação das necessidades fisiológicas básicas, a pessoa
que sofre necessita de segurança frente à ameaça, de relações afectivas com a família e os amigos, de consideração e estima (Sandrin et
al, 1989). Na falta deste suporte relativamente ao medo, ansiedade,
agressividade e depressão, a pessoa ainda sofre mais e a crise na família acentua-se.
Diversos modelos teóricos têm sido desenvolvidos para explicar
os mecanismos de adaptação das famílias relativamente a situações
de stress, sofrimento e mesmo crise.
Modelo ABCX Duplo do Stress Familiar (McCubbin e Patterson, 1983)
Assim, por exemplo, o modelo ABCX duplo do stress familiar
Que sofrimento? Que morte?
33
(McCubbin e Patterson, 1983) considera três factores em interacção
no momento antes da crise. O factor de tensão a (stressor) é qualquer acontecimento com impacto no sistema familiar (e.g. morte,
doença, desemprego, adolescência) que produz ou tem o potencial
para produzir alterações no equilíbrio familiar. O factor b, intitulado
recursos da família, consiste na capacidade da família para evitar que
o factor de stress origine perturbações e crises; consiste nas forças da
família. O factor c refere-se à percepção, ou seja, à definição subjectiva que a família faz quanto à gravidade do factor a experimentado,
tendo em conta as exigências inerentes e os efeitos na família. Pode,
então, surgir ou não o factor X, indicador de crise, o qual traduzirá
a incapacidade da família para se adaptar, mudar e restaurar a estabilidade familiar.
O conceito central deste modelo é o de adaptação, representado
num continuum desde adaptação correcta a inadaptação, o qual
pretende descrever o resultado dos esforços para alcançar um novo
nível de equilíbrio depois da crise. O grau de adaptação estaria dependente de outros três factores: a acumulação de outros factores de
stress; os recursos adaptativos (novos e existentes) da família, desde
recursos pessoais (físicos, psicológicos, financeiros, educacionais,
espirituais) a recursos familiares e apoio comunitário; e a percepção
familiar que compreende os significados e as interpretações subjectivas que os membros da família fazem desta interacção de factores.
Evidentemente nestes tempos pré-crise e pós-crise, são utilizadas formas diferentes de lidar com o stress e com o sofrimento, assim como
são activadas estratégias diferentes (e.g. confrontação, distanciamento, autocontrole, procura de apoio social e instrumental, aceitação,
fuga, planificação, humor, reinterpretação positiva, entre outras
estratégias; Vaz Serra, 2002), para restaurar o equilíbrio, estratégias
essas que podem ser muito úteis na prevenção de situações de crise
familiar. Este modelo ajuda-nos a compreender porque é que algumas famílias sob stress e sofrimento se unem e cooperam tentando
apoiar-se, enquanto outras entram em escalada de sofrimento e crise
num ciclo que pode mesmo destruir a família.
34
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
Mais recentemente, Pauline Boss (2002) propôs o modelo contextual do stress familiar, que considera necessário distinguir dois
contextos que, de forma díspar, influenciam o stress familiar: o contexto interno que inclui componentes que a família pode controlar
e mudar (estrutural, psicológico e filosófico); o contexto externo
(componentes face aos quais a família não tem controlo e que influenciam grandemente o modo como percebe os acontecimentos
e os maneja – o chamado ecossistema, meio em que a família está
inserida, tempo e espaço em que se encontra. Ambos os contextos se
influenciam. Neste modelo ressaltam as noções de fronteiras, significados, crenças e valores e sua influência ao nível interno, bem como a
expressão da cultura em que a família se insere. O efeito perturbador
dos acontecimentos está muito relacionado com o significado que se
lhes atribui, e este depende essencialmente do sistema de motivações
e de valores das pessoas, dos seus projectos de vida e dos do sistema
familiar.
Modelo Contextual do Stress Familiar (Boss, 2002)
De acordo com estes modelos, a vivência da família face ao sofrimento de um dos seus membros, ou diante de uma perda ou da
possibilidade iminente desta perda (e.g. doente em fase terminal)
gera reacções diversas, as quais indicam como as relações familiares
foram estabelecidas anteriormente e também exigirão uma reorganização da família. Neste modelo, por exemplo, está contemplada
a importância que as crenças religiosas podem ter na adaptação da
família, constituindo um recurso essencial.
Diversos estudos (e.g. Valle, 2001) demonstram que os pais
manifestam sentimentos ambivalentes de esperança e conformismo,
muitas vezes apoiados numa fé religiosa, face a doenças graves dos
filhos como o cancro. A religião parece contribuir para que se resista
à dor e se atribuam significados às experiências de sofrimento por
se ter uma criança tão pequena com uma doença tão grave ou sem
esperança de vida. (e.g. “Nós ficamos tristes, sofremos, mas temos que
aceitar. Se eu pudesse, livrava-o dessa doença, mas como é impossível,
Que sofrimento? Que morte?
35
temos que confiar em Deus e aceitar o filho que Deus nos deu e conformarmo-nos...”). Se o estado de saúde da criança se agrava e a morte é
iminente, os pais vendo o seu filho em grande sofrimento, apoiam-se
novamente na religião. Não existirá necessariamente rancor mas um
sentimento de que não se espera mais nada da medicina. A família
e os médicos estão a fazer tudo o que é humanamente possível para
salvar a criança que está muito doente, que tem cancro, por exemplo. Resta o conforto em Deus como se vê pelo testemunho “Desde
o dia em que vi o meu filho cheio de picadas, a sofrer sem melhorar,
entreguei-o a Deus. Entreguei e não me arrependo, de corpo e alma. Eu
tenho o meu filho na minha vida mas ele não é meu.” Ou, outro testemunho: “Até hoje, eu não tinha entregue o meu filho a Deus, mas hoje
entreguei-o. Se o Senhor tiver que o levar, desta vez eu aceito porque
chegou a hora, o Senhor preparou-me...Seja feita a sua vontade”.
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
36
III – O medo da morte e o desejo da morte
A dor e o sofrimento trazem habitualmente consigo o medo, o
medo do próprio sofrimento e o medo da morte. Sentimentos de
desespero e de depressão vão sendo manifestados quando se faz a
“descodificação desta dor do ser que dói pela impossibilidade de continuar
a existir no mundo” (Sasdeli & Miranda, 2001, p.99). A doença,
por exemplo, é uma situação que coloca o ser humano diante de
questões existenciais pouco consideradas no dia a dia, como a pessoa
diante da vida, diante de si mesma, diante da perda e também da realidade. Confrontar-se com estas questões é entrar em sofrimento e,
enfrentar este sofrimento, é construir uma organização interna mais
madura e mais próxima da realidade da vida que é a morte.
Quando nos sentimos doídos pelo nosso sofrimento e pela condição de dor e sofrimento do outro, trata-se da nossa dor que nos
remete à nossa existência e naturalmente à nossa morte. Da mesma forma que não podemos sentir pelo outro a sua dor, também
ninguém nos pode representar no momento da nossa morte. Cabe
a cada um morrer a própria morte como sentir a própria dor e o
próprio sofrimento. Podemos retardar a morte mas nunca conseguiremos deixar de morrer. É imprevisível e, também, inevitável. E
este facto é contra a cultura dominante e apavorante, sobretudo para
aqueles que têm a ilusão de poder controlar a sua própria existência.
Mas, de nada serve o esforço das pessoas e da sociedade em geral para
ocultar, negar ou esquecer a morte porque a vivência da finitude está
sempre na consciência e na subconsciência de todos nós. A certeza
da morte deve ser assumida com tranquilidade de modo a tornar-se
um estímulo para viver a vida em plenitude, até ao fim3.
A morte implica, para cada pessoa e para a família,no seu conjunto, um processo onde se podem distinguir as seguintes fases : choque
Estamos a referir-nos à morte natural, embora existam outros particularidades como, por exemplo, a morte violenta, o homicídio, o holocausto, a morte por
acidente, a morte precoce.
3
Que sofrimento? Que morte?
37
e negação; fúria; súplica e arrependimento; depressão e resignação
(Kubler-Ross, cit. in Valle, 2001). Constituem tarefas importantes,
por parte da família, partilhar a consciência da realidade da morte,
partilhar a experiência do sofrimento e da tristeza, reorganizar a família e reinvestir noutras relações e objectivos de vida.
Paradoxalmente há, também, quem neste mundo deseje a morte.
Por razões diferentes e em tempos diferentes da vida. Refiro-me ao
suicídio e à eutanásia. Mas a pulsão para a morte – quer pelo suicídio ou outros comportamentos destrutivos, quer pelo pedido de
eutanásia – só afecta as pessoas quando elas deixaram de atribuir um
sentido às suas vidas.
1. O que é o suicídio? Como podemos compreendê-lo e preveni-lo?
Na formulação de Sto. Agostinho, o suicídio é o homicídio de si
mesmo. É “qualquer acto de morte que resulte de um acto executado pela própria vítima e que ela sabia dever produzir esse resultado”
(Durkheim, 1897) ou, ainda “auto-destruição por um acto deliberadamente realizado para conseguir esse fim” (Vaz Serra, 2001).
Actualmente, consideram-se num grande conjunto, fenómenos
como o suicídio propriamente dito, a tentativa de suicídio e os
para-suicídios. Consideramos a definição da OMS (2000) segundo
a qual as tentativas de suicídio são situações em que o indivíduo
atenta contra a sua vida, mas não conseguiu o seu intento por razões
alheias à sua vontade. Por sua vez, os comportamentos de risco ou
para-suicídios são aqueles que colocam a vida em perigo e podem
preceder tentativas de suicídio (e.g. alcoolismo, toxicodependência,
excesso de velocidade, violência, desportos radicais).
Os comportamentos suicidários constituem um dos maiores flagelos da nossa sociedade contemporânea. Conhecer, desmistificar,
reconhecer os sinais, saber a quem recorrer, onde fazê-lo e como
ajudar quem connosco se cruza mostrando sinais de dor, angústia,
38
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
solidão, desespero, saber lidar com a morte de alguém próximo são
aspectos muito importantes (Saraiva, 1999).
De um ponto de vista epidemiológico:
• o nº de suicídios é dificilmente exacto por causa dos suicídios não
declarados e do não reconhecimento de suicídio na origem da
morte;
• o suicídio é uma das dez causas mais frequentes de morte e, na
Europa, é a segunda causa de morte entre os 10 e os 19 anos
(OMS);
• verificam-se entre 3-10 tentativas por cada suicídio consumado
(OMS);
• raro antes da puberdade (Sampaio, 2002).
Convém, também, reflectir nos seguintes factores suicidários:
enquanto o suicídio é mais frequente no meio rural, a tentativa de
suicídio é mais frequente no meio citadino; o suicídio é mais frequente em situações de exclusão social, de desemprego ou ruptura
profissional e/ou financeira, de velhice, solidão, viuvez e divórcio;
enquanto os adolescentes fazem mais tentativas de suicídio, os
idosos destacam-se no “suicídio conseguido”; enquanto as mulheres fazem mais tentativas de suicídio, os homens destacam-se nos
suicídios conseguidos; os suicídios ocorrem com alguma frequência
na sequência de um acontecimento ‘stressante’ recente e quando há
acesso fácil a métodos de elevada letalidade; embora não exista perfil
psicológico do suicida, toda a perturbação mental é potenciadora de
risco em maior ou menor grau.
Os seguintes dados estatísticos também nos ajudam a reflectir.
Em Portugal, verificam-se 8 a 16 suicídios por cada 100 000 habitantes, uma proporção muito semelhante às que se encontram na
Suécia, nos Estados Unidos da América e na Austrália. No Norte é
onde encontramos taxas de suicídio mais reduzidas e no Sul as mais
elevadas, sobretudo na população idosa, em particular no Alentejo,
onde é 3 a 5 vezes superior à média nacional (constituem factores
explicativos a ruralidade extrema, o isolamento, a fraca densidade
Que sofrimento? Que morte?
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populacional, o afastamento do convívio social, a emigração de filhos e jovens para grandes núcleos urbanos, o envelhecimento e a
viuvez, a pobreza, as doenças dolorosas e incapacitantes). Verifica-se
também que, até 1990, se verificou um aumento das taxas de suicídio e, a partir desta data, uma diminuição de suicídios mas aumento
de tentativas e de comportamentos de risco.
Num estudo recente realizado por Sampaio (2002):
• 34% dos jovens já pensou, uma ou mais vezes, em suicídio;
• 7% já tentou, pelo menos uma vez, o suicídio;
• mais de metade da população inquirida (822 jovens) conhece
alguém que já se matou ou tentou suicídio;
• 80 jovens por ano (15-24 anos) suicidam-se.
Porque é que uma pessoa se suicida? Shneidman (1996) considera que, no essencial, quase todos os casos de suicídio são causados
por sofrimento, um certo tipo de sofrimento: o sofrimento psicológico a que chama dor psicológica. Ora a dor psicológica tende a
ser desvalorizada e subtratada. Dá-se mais atenção às causas da dor
do que à própria dor. E a pessoa tem de a suportar sozinha. Esta dor
provém de necessidades psicológicas frustradas ou distorcidas (Sá
da Bandeira, 2004). Assim, o suicídio é principalmente um drama
na mente (excluindo, evidentemente, os suicídios por razões especiais, históricas e culturais, ou actos de guerra: hara-kiri, atentados
terroristas...)
Existem, evidentemente, factores de risco clínico: depressão,
esquizofrenia; abuso de álcool e/ou drogas; história de tentativa de
suicídio ou ideação suicida; sentimentos de desesperança; ataques
de pânico; ansiedade grave; distúrbio pós-traumático; impulsividade e/ou agressividade. E, embora a natureza essencial do suicídio
seja psicológica também engloba factores biológicos, bioquímicos
(provocando distorções da percepção), interpessoais, intrapsíquicos,
culturais e sociológicos.
40
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
Do latim sui (próprio) e cidium (morte) a palavra suicídio dá-nos
a definição da intencionalidade de se matar a si próprio, mas omite
o papel da dor.
O suicídio não é algo que aconteça subitamente mas antes o fim
de um processo que pode ter começado há muito tempo.A dor psicológica aumenta à medida que a crise, ou a percepção que a pessoa
tem dela, se agrava. O suicídio ocorre quando a dor é sentida de tal
forma insuportável que a morte é o único alívio, a única saída. De
facto, o suicida pretende libertar-se de estados emocionais internos
muito penosos (angústia, depressão, aborrecimento, culpabilidade)
e de problemas externos que sente como inevitáveis, intermináveis e
intoleráveis (Vaz Serra & Pocinho, 2001).
O suicídio é um grito de dor quando a pessoa se sente derrotada,
sente que não pode escapar das circunstâncias nem pode ser ajudada.
Pôr termo à vida é considerado uma possibilidade de fuga.
As crenças e os valores podem fazer a pessoa pensar que está
louca e a sentir-se estigmatizada se desabafar com os outros. Surge a
vergonha, a culpabilidade que levam ao isolamento ou ao silêncio.
E, quando por vezes falam, os outros podem não se aperceber da
gravidade da situação, ou desvalorizá-la totalmente. O sofrimento é
tão grande que parece não haver possibilidade de aguentar ou de encontrar outra solução. No entanto, o suicídio é sempre uma solução
de não retorno para um problema que é temporário.
Um estudo recente realizado em Portugal (Vaz Serra & Pocinho,
2001) encontrou as seguintes características pessoais influentes:
• Impulsividade (50% das pessoas que sobrevivem referem não ter
planeado o suicídio, tendo pensado nisso cerca de 1h antes)
• Pensamento dicotómico (lei do tudo ou nada que dramatiza as
vivências)
• Rigidez (menor flexibilidade, pouca versatilidade, maior extremismo)
• Menor capacidade de resolução de problemas (menor auto-confiança, menor auto-controlo, espera passiva de resolução de problemas)
Que sofrimento? Que morte?
41
• Pouca memória auto-biográfica (memórias vagas e genéricas)
• Sentimento de desesperança (não admite a possibilidade de escapar a acontecimentos adversos, sentimento de derrota)
• Baixa auto-estima
A experiência acumulada permite identificar frases ouvidas em
clínica e que nos alertam para a ideação suicida: “até tenho medo
de mim...”; “passam-me coisas malucas pela cabeça...”; “qualquer
dia ainda faço alguma asneira”; “a vida é um fardo muito pesado”;
“tenho medo de ir à janela”; “quero desaparecer”; “gostaria de adormecer e nunca mais acordar”; “se eu tivesse um desastre de carro e
se acabasse tudo...”; “não andarei cá muito tempo”; “brevemente,
não terão que se preocupar mais comigo”; “tenho-me lembrado da
minha tia...primo...somos parecidos...” (referindo alguém que se
suicidou).
Mas a ambivalência está, muitas vezes, presente e muitas pessoas
dão sinais, na esperança de serem ajudadas. As pessoas com forte
ideação suicida estão incapazes de cuidar de si próprias e os que estão
próximos muitas vezes não se apercebem. Precisam perceber várias
coisas: que o seu sofrimento pode ser ajudado; que o seu problema
é levado a sério; que têm alterações bioquímicas e que precisam de
medicação; que perderam o controlo da situação e precisam de ajuda
(Sá da Bandeira, 2004).
2. A eutanásia
Do mesmo modo, o pedido de eutanásia é a declaração da pessoa
de que a sua vida não tem sentido, é inútil, é um vazio existencial
e, portanto, deve ser eliminada. Se aceito eliminar essa vida estou a
afirmar que, de facto, a vida dessa pessoa é inútil. A busca do sentido
da vida é a resposta que a pessoa pode e deve dar à pulsão de morte
ao pedir eutanásia.
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Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
“Pedi à minha irmã para desligar a máquina. Era uma obsessão que
me atormentou durante quase um ano...Sentia-me ultrajado por esta
vida inanimada, por este corpo sem utilidade que não obedecia às ordens do meu cérebro. Queria acabar com isto.” – o italiano Ambrogio
Fogar (desportista) quando, há 6 anos e na sequência de um acidente
de automóvel, pedia eutanásia. Assim, pedia insistentemente às suas
irmãs que o levassem para a Holanda para poder morrer. “Era difícil,
inacreditavelmente difícil, e eu não queria que isto continuasse. Então
subitamente, uma noite compreendi que agora, para mim, viver era um
dever (...) Agora sei que a vida vale a pena. Porque as emoções estão
dentro de nós, mesmo se somos prisioneiros de um corpo inútil. Tu estás
no mar, num novo mundo, com outras leis. E, por isso, embora os dias se
sucedam sem mudanças aparentes, já não estou aborrecido”. (Corriere
della Sera, 10 de Setembro de 1998).
Há testemunhos de muitas pessoas que, depois de terem perdido
o sentido das suas próprias vidas e começarem a desejar a morte, o
re-descobrem, de certa forma em conjunto com o sentido da vida
humana em geral. Estes testemunhos tornam bem claro que os pedidos de eutanásia como, em muitos casos, as tentativas de suicídio são
o resultado deste vazio de sentido da existência que pode dominar
algumas pessoas em certas situações.
Vitor Frankl (1978) foi um psiquiatra que dedicou grande parte
da sua vida e do seu trabalho clínico e de investigação a reflectir
sobre o sentido da vida e a ajudar os que tinham perdido este sentido a voltar a encontrá-lo – inventou um método psicoterapêutico
designado por “logoterapia e análise existencial”. Foi determinante o
que experimentou enquanto médico nos campos de concentração de
Auschwitz e Dachau no que se refere a humilhação, exploração e extermínio dos seres humanos. Percebeu que a chave para sobreviver,
não apenas fisicamente mas psicológica e espiritualmente, se baseava
na capacidade de encontrar um sentido para a própria vida.
“Sempre que havia uma oportunidade para isso, tínhamos de dar-lhes uma razão, um objectivo para as suas vidas, para lhes darmos
forças para aguentarem o terrível estado das suas existências. Aquele que
Que sofrimento? Que morte?
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com angústia não via na sua vida nenhum sentido, nenhum objectivo
nem propósito e portanto nenhum ponto para continuar, a breve trecho
estava perdido...” refere Frankl (1978, p.76).
Mas não são só os que estão em situação desesperada que perdem
o sentido da vida. As circunstâncias de maior facilidade e conforto
de algumas sociedades, são um meio propício ao desenvolvimento
deste fenómeno. As pessoas que têm que lutar pela vida todos os
dias, raramente perdem o interesse pela vida – também não há anorexias nos países em que há fome, só nos países de abundância é que
encontramos essa perturbação. Frankl (1978) refere-se a esta perda
do sentido da vida causadora de profundo sofrimento como um
“vazio existencial”. Vazio existencial que pode ser mais ou menos
profundo e de duração curta ou prolongada. Habitualmente este
vazio está associado a um tipo de neurose que provém de problemas
de consciência, de choque de valores, de uma frustração existencial.
IV – O sentido da existência da vida como questão nodal para
compreender e viver com o sofrimento e com a morte
1. A unidade do Ser que é, ao mesmo tempo e no espaço único de cada pessoa, corpo e espírito
Cada ser humano é uma unidade dinâmica “corpo-mente-contexto” ou, por outras palavras, devemos sempre considerar no ser
humano a sua globalidade bio-psico-socio-cultural, o que significa
que há uma permanente modificação das proporções entre os factores biológicos, psicológicos e sociais que compõem o quadro actual
de cada pessoa.
Todos nós, seres humanos, tentamos, ao longo da vida, realizar
determinados objectivos pessoais, e fazemos isso de forma consciente ou não. Assim, é possível descrever vários estádios ou fases de
um ciclo de vida, ao longo dos quais se dá a preparação, expansão,
apogeu e declínio da actividade dirigida para atingir esses objectivos.
Na última fase, na velhice, faz-se o balanço da vida passada, e expe-
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Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
rimentam-se sentimentos de realização ou de fracasso, consoante a
percepção de sucesso.
No clássico modelo de ciclo de vida de Erikson (1968) são descritos oito estádios, cada um dos quais envolvendo tensão entre
tendências opostas. A resolução desses conflitos consegue-se por
adaptação activa e faz surgir como síntese dessa antítese determinados valores que podem considerar-se aquilo que cada um alcançou
em cada período da vida. O jovem adulto oscila entre intimidade
e isolamento, na idade em que as interacões sociais e sexuais estão
em pleno e o valor emergente será o amor. Na meia idade, a tensão
estabelece-se entre generatividade e estagnação face a tarefas profissionais e a tarefas de educação da nova geração; dessa dialéctica
surgirão o desvelo e a dedicação. Por último, na fase da velhice, cada
um de nós terá de escolher entre a integridade do Eu e o desespero; é
o tempo do balanço, da atribuição de um significado à vida passada,
da aceitação de si mesmo e do fim último que se avizinha.
No fundo, envelhece-se como se viveu. Como escreveu muito
lucidamente o Prof. João César das Neves numa das suas crónicas “a
razão do medo da velhice advém da perda de sentido da vida...A velhice
não representa a apoteose, a consumação, o coroar de uma vida, porque
não se viveu a vida como um projecto; a velhice é vista, sim, como a
privação dos prazeres, porque se viveu a vida toda para as sensações”
(Neves, J.C., 1999, p.215).
A maior ou menor satisfação com que cada um de nós encara a
vida tem a ver com a representação que faz da vida passada, presente
e futura, sobretudo em função dos objectivos que tinha estabelecido.
Trata-se de uma representação cognitiva que vai conferindo mais
ou menos sentido à vida. Não é algo fixo e definitivo, um produto
acabado.
De facto podemos afirmar que o “significado da vida” é uma percepção muito influenciada pelo estado afectivo – tristeza ou alegria
– e, portanto, algo de mutável e reversível, embora surja como uma
conclusão lógica e definitiva. Portanto, quando alguém se queixa da
falta de uma razão para viver, que a vida deixou de ter sentido, muito
Que sofrimento? Que morte?
45
provavelmente está a atravessar um momento de depressão e precisa
de ser ajudada. Por exemplo, uma pessoa que se sente rejeitada por
aqueles que ama tende a ter uma quebra da sua auto-estima, uma
noção muito negativa de si própria, e pode afirmar convictamente
que a sua vida perdeu todo o sentido para si.
Para Frankl (1978, pp.25-26) “...questionar o sentido da vida é
especificamente humano (...) a possibilidade de procurar este sentido
pertence exclusivamente ao ser do homem. Os jovens, em particular, têm
o privilégio de provocar o seu crescimento e maturação ao porem a questão do sentido da vida e fazendo um amplo e valioso uso deste privilégio.
Segundo Einstein, aquele que considera a sua vida como destituída de
todo o sentido não só é infeliz como é incapaz de viver”. Estamos perante o que Frankl designa por “fenómeno antropológico fundamental”
– “o facto de que ser homem significa ir para algo que está para além de
mim, algo que não sou eu, uma coisa ou alguém: é um sentido a preencher ou outro ser humano para encontrar e amar. O homem realiza-se
lidando com coisas ou amando pessoas. Quanto mais ele cumprir esta
tarefa, quanto mais der de si próprio ao outro, quanto mais se tornar
homem – mais se torna ele próprio”.
É evidente nos nossos dias a perda do sentido em muitas vidas
à nossa volta. E o sentido da vida representa uma profunda necessidade da pessoa. A consciência ajuda muito nesta procura. Frankl
define-a como “a capacidade intuitiva para descobrir o sentido singular e único, escondido em cada situação”. À partida, poderíamos
ser tentados a pensar que a necessidade de encontrar respostas para
questões existenciais era exclusiva das poucas pessoas que sabem
como elevar-se acima da sua vida diária. Sobretudo os crentes poderiam permitir-se o luxo de serem capazes de encontrar um sentido
para a vida especialmente em certas situações de sofrimento sem
finalidade... Frankl, depois de trabalhar com muitas pessoas que designaríamos como ‘casos desesperados’ concluiu que “a possibilidade
de encontrar um sentido para a vida é independente do sexo, do quociente intelectual, do nível cultural, da presença ou ausência de religiosidade, ou, no caso de um indivíduo religioso, independente da confissão
46
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
religiosa particular à qual pertença” (1978, p.31). Evidentemente que
a descoberta do sentido da vida é facilitada por uma visão religiosa e
transcendente da vida, sendo que, quanto mais clara e firme for a fé
da pessoa, tanto maiores serão as possibilidades de manter a lucidez
desta consciênca do sentido da vida.
A capacidade de criar um sentido para a vida, mesmo nas situações mais adversas como paralisias totais ou doenças incuráveis, é a
capacidade que permite aceitar a morte e lidar com o processo de
morrer sem uma angústia intolerável.
2. ‘O sofrimento do outro é também o meu sofrimento – dói-me porque lhe dói...’
De facto, o sofrimento de uma pessoa gera no outro sentimentos
diversos, principalmente nos familiares e amigos mais próximos.
A busca do sentido da vida é difícil para a pessoa isolada. Daí
a importância de desenvolver formas de apoio, acolhimento e ajuda por parte de pessoas singulares e de instituições às pessoas que
sofrem, que se aproximam da morte, que desejam a morte. Ser
terapeuta (terapéuo = servir) é assistir, estar próximo, tratar. Aqui o
diálogo é um factor essencial para o conforto, esperança, terapêutica
e cura da situação de sofrimento.
A ajuda profissional (médica e psicológica), a terapia, pode ter
várias vertentes: ajudar a pessoa a elaborar as perdas que a atingiram,
aproveitar o que ainda possui de positivo, descobrir novos aspectos
gratificantes, reformular objectivos de vida, reinterpretar o passado,
desenvolver competências socio-afectivas... Intervir sobre a temporalidade é outra das vertentes – ajudar a pessoa a reorganizar-se perante
a crise, através de dados do passado, da sua história e da vivência
actual, projectando o futuro. A dor pode ser, assim, um importante
factor de maturação psicológica, a nível familiar e individual.
Mas a ajuda que está ao alcance de cada um de nós, e certamente
a mais eficaz, é bem simples. Consiste em fazer compreender à pessoa
que sofre, que entendemos o que se passa com ela, e que comparti-
Que sofrimento? Que morte?
47
lhamos, de alguma maneira, a sua dor. Fazer-lhe sentir, também, que
a apreciamos, que gostamos dela e que ela tem lugar nas nossas vidas.
Quando tudo parece cair como um castelo de cartas e a existência
parece um deserto ou um inferno, quando se perde o gosto de viver e
se começa a ansiar pela morte, é uma presença amiga que conforta e
permite, apesar de tudo, descobrir que a vida ainda tem sentido.
3. Viver com sofrimento ou viver com o sofrimento?
De facto, a vida não foi dada ao ser humano para sofrer. O sofrimento, qualquer que seja a sua origem, surge-nos, em primeiro
lugar, como um mal, como um obstáculo ao desenvolvimento da
vida. Impossível de se lhe conhecer o porquê, impossível de contornar, permanece um mistério intangível (Silveira Rodrigues, 1990).
E aqui temos uma grande escolha. Podemos viver com sofrimento ou viver com o sofrimento. Se vivemos com sofrimento esse é
o nosso pano de fundo e até o sofrimento vivemos de forma sofrida.
Se, pelo contrário, vivemos com o sofrimento, sofrimento esse que
sabemos ser incontornável, podemos fazê-lo de várias formas: com
resignação, com esperança, com revolta, com coragem, com medo,
dando-lhe ou não um sentido. Oferecendo ou não esse sofrimento.
Viver com o sofrimento, isso é compaixão, conviver (viver com) o
sofrimento. Quando cuidamos de quem sofre com uma equilibrada
proporção de razão e coração, pode, então, falar-se de compaixão.
E é a inteligência que nos mostra que há uma significativa distância
entre viver com o sofrimento e viver com sofrimento...
Quem não sentiu já em si, ou naqueles que o rodeiam, o efeito
“formativo” do sofrimento? As doenças, os desgostos, as deficiências,
as desilusões, as incompreensões, enfim tudo o que causa sofrimento
pode ser ocasião de aprendizagam para a pessoa, podendo ajudá-la a
descobrir valores novos que a fazem progredir. A busca de um sentido para o que está a viver e o apelo à transcendência tornam-se mais
agudos quando a pessoa passa por uma situação de crise que provoca
sofrimento.
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Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
Se a pessoa orienta a sua vida por valores espirituais e, sobretudo,
religiosos, então tudo adquire um sentido, uma razão.
O efeito do sofrimento muda desde que se reconhece que não é
uma realidade sem nome, mas uma presença de Deus operando, em
nós e no mundo, “grandes coisas”. Nas palavras de João Paulo II “o
sofrimento é daqueles pontos em que o homem está, em certo sentido,
destinado a superar-se a si mesmo e chamado, de modo misterioso, a
fazê-lo” (Salvifici Doloris). O sofrimento pode ser vivido com resignação ou, então, atribuindo-lhe um sentido, um valor. A experiência
confirma que, muitas vezes, o sofrimento pode, para além do mais,
constituir um factor de relativização das coisas, de humanização e
de solidariedade. Na valorização do sofrimento encontra-se o único
caminho para fugir da sua força demolidora.
A compaixão permite mais saúde, mais crescimento interior, quer
para quem sofre quer para quem está mais próximo, habitualmente a
família. É assim que podemos afirmar, talvez para espanto de alguns,
que a existência do sofrimento não só é compatível com relações humanas saudáveis, designadamente na família, como pode ser a causa
da saúde das relações!! (Malta, 2003).
Como refere Grandi (1994) no seu livro “Più cuore nelle mani”,
“Devemos ver e tratar de Cristo no irmão doente. Só em Cristo e por
Cristo (através de Cristo), a dor humana adquire um significado, tornando-se um bem..., na medida em que é útil, seja para quem sofre em
união com Cristo, seja pelos Outros (pela salvação do Mundo)”. Nas
sábias palavras de Frankl (1978, p.32) “Nenhuma situação da vida é,
de facto, desprovida de sentido. Isto quer dizer que os mesmos elementos
que parecem carregados com qualidades negativas, como é o caso da
trágica tríade da existência humana – sofrimento, culpa e morte – pode
ser sempre transfomada numa vitória, num autêntico serviço, logo que
sejam objecto de uma atitude e de uma formulação correctas”.
É, pois, fundamental, a liberdade interior de cada pessoa que torna a vida cheia de sentido e de finalidade e que permite, designadamente, transformar a dor em serviço. Lukas (1982, p.134), também
psicoterapeuta, afirma: “Nenhuma dor pode aniquilar o homem que
Que sofrimento? Que morte?
49
está disposto a buscar o sentido dessa dor... Esta é a resposta que devemos
dar ao doente que se nos confia” .
Para Frankl (1978), o pedido da eutanásia é um pedido de anulação voluntária da própria vida, do próprio eu. Dizer que a vida não
tem mais sentido é dizer que a própria pessoa não tem mais sentido.
Assim, a mensagem deverá ser: “Não é verdade que a tua vida não
tenha mais sentido; não estás capaz de o encontrar e eu compreendo-te.
Mas a tua vida, mesmo nestas condições, tem um sentido. Porque tu
tens um valor que não depende do teu estado: tens valor porque és tu
próprio. Continuarei a estar junto de ti e a ajudar-te; e continuarei a
tentar ajudar-te para que possas encontrar o teu sentido e o teu valor até
ao último momento. Simplesmente porque gosto de ti.”
O sentido da vida encontra aqui, no amor, a sua última inspiração. Na experiência de amar ou de ser amado por a(A)lguém. Como
escreve João Paulo II na Redemptor Hominis, n.10: “O homem não
pode viver sem amor. Ficaria incompreensível para si próprio. A sua
vida ficará sem sentido se o amor não lhe for revelado, se não encontrar
amor, se o não experimentar e se o não fizer por si próprio, se não tiver
uma vivida participação nele.”
Na nossa perspectiva cristã, a vida não acaba, apenas se transforma. A morte é, assim, um elo necessário, uma porta de entrada na
Vida.
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Maria Teresa Meireles Lima da Silveira Rodrigues Ribeiro
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação
da Universidade de Lisboa
Instituto de Ciências da Família
da Universidade Católica Portuguesa
30 de Outubro de 2004
A DESCIDA AOS INFERNOS
DA HUMANIDADE
Isabel Carmelo Rosa Renaud
Ninguém gosta de ser «o mau – ou a má – da fita; decididamente,
não é agradável falar do mal, das coisas feias e dos comportamentos
desviantes. Se não se tratasse de uma muito séria Semana Inaciana,
iria propor que passássemos imediatamente para a conferência seguinte, a do Padre Vasco, que de certeza trará aportes positivos e
mais elucidativos sobre a vivência da nossa condição cristã. Mas é
preciso resistir à tentação, diz Santo Inácio após tantos outros; portanto, irei, pelo menos com um olhar teórico, acompanhar a descida
aos infernos do mundo contemporâneo.
Uma outra tentação inicial para escapar ao nosso tema consistiria
em projectar um olhar estetizante e distante sobre o mal, como se
este não nos afectasse. Por exemplo, na leitura da Divina Comédia,
a descrição da descida aos Infernos pode não ter muita piada, pelo
menos quando se trata de descrever as misérias que assolam o nosso
mundo, mas o encanto literário faz-nos esquecer que são homens e
mulheres que sofrem. Do mesmo modo, nos tímpanos dos Pórticos
das Catedrais medievais os tormentos do Inferno tinham mais graça
que as procissões celestes, pelo menos do ponto de vista iconográfico,
como se o movimento desordenado e caótico da queda no inferno
suscitasse mais a nossa curiosidade sorridente que o desfile calmo e
majestoso dos eleitos para o céu. É preciso portanto não ceder à tentação da arte ou da literatura quando se trata da descida aos infernos.
Isso não nos impede todavia de destacar a força do simbolismo dos
infernos. Espontaneamente colocamos o inferno debaixo dos nossos
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Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
pés; São Miguel domina o diabo imobilizando-o no chão com a sua
lança e São Jorge vence o dragão deitado por terra. O mal é mais
que uma descida, ele é uma verdadeira queda, que nos faz cair nas
profundezas tenebrosas do universo.
O nosso propósito consiste em tentar compreender os nós malignos que tornam homens e mulheres do mundo contemporâneo
reféns de si próprios. A figura sob os auspícios da qual podemos
colocar esta apresentação será o preso do Fédon de Platão, o homem
que se põe a si próprio as correntes, ou o homem de Gerasa... do
Evangelho de São Marcos.
As figuras simbólicas dos infernos, da queda, da imobilização no
chão, das correntes ou da prisão apontam para uma realidade exactamente inversa à da criação: o ser humano que se torna presa do mal
perde a capacidade de se endireitar, de manter a sua força vital, de
exercer a autonomia da sua liberdade. O conceito para o qual todas
as imagens simbólicas reenviam é o de alienação. A alienação é uma
vicissitude ou um processo pelo qual o ser humano se torna outro
(alienus), perde a «sua» própria identidade, torna-se «alheio» a si próprio, como se se tornasse estrangeiro. A alienação implica assim uma
dependência de tipo patológico. Existem com efeito dependências
saudáveis, necessárias, que promovem a autonomia. Mas a alienação
é uma não-independência, là onde se estaria à espera do contrário;
é por isso que entra no campo daquilo que gera uma passividade
indevida, assim como uma forma do sofrer que, em muitos casos, é
sofrimento real. A nossa descrição das alienações seguirá uma progressão, partindo das alienações ainda subtis e não necessariamente
dramáticas, para descer como que em espiral para os níveis mais
trágicos das dependências mortíferas. Distinguimos assim quatro
modos de dependências.
1. Primeiro nível. O espaço e o tempo
Vivemos no espaço e no tempo; não se pode dizer exactamente
que dependemos deles, porque esta dependência é tão constitutiva
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que faz parte da nossa identidade. As dependências que procuramos
circunscrever provêm de iniciativas do agir humano e não das condições de possibilidade da sua vida biológica, mental ou espiritual.
Como é que então o tempo se pode tornar lugar de alienação? Conhecemos pessoas que nunca vivem no momento presente; ou estão
no passado ou no futuro, ou nostálgicos dos tempos já vividos, ou
sempre à espera daquilo que ainda não está presente. E mesmo se
estivesse presente o que desejam ver surgir, não estariam satisfeitas e
iriam ainda projectar-se para o futuro. Na verdade, esta maneira de
viver no futuro consiste numa permanente fuga do presente, fora do
presente, uma incapacidade de viver este mistério do instante actual
que vale por si; o presente existe evidentemente em relação com o
passado, no qual se dissolve permanentemente, e com o futuro que
anuncia – a fenomenologia lembra-no-lo de todos os modos possíveis, mas a nossa existência decorre fundamentalmente no presente
e não no futuro. A droga de que falaremos mais abaixo é, à sua
maneira, uma fuga do presente pelo refúgio numa alucinação que
desrealiza o presente.
O espaço pode também ser «lugar» de alienação, embora em
formas menos frequentes. Há pessoas que não estão bem em sítio
nenhum, o que gera a desvalorização do lugar onde se habita e suscita uma permanente mobilidade. É uma espécie de hipercinetismo
psicológico e moral. Deste ponto de vista os conventos contemplativos perceberam um dado importante: a clausura significa hoje, já
não a protecção contra as pessoas ou os invasores de fora, mas a
fé na possibilidade de viver o essencial da vida sem necessidade de
viajar, de sair permanentemente do convento, sem necessidade de
fazer projectos para um futuro espacio-temporalmente diferente do
presente. O sentido da vida contemplativa não pode ser encontrado
fora desta valorização do momento presente, do hic et nunc no qual
se pode realizar o encontro com Deus. A vida contemplativa deve
ser, deste modo, um acto de fé na vivência do momento presente no
lugar sempre actual.
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Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
2. Segundo nível.
As patologias do desejo e as alienações subjectivas
Os traços mais fundamentais do ser humano são os que podem
dar origem às maiores distorções.
2.1. Quanto mais constitutivos forem os desejos no homem,
mais patológicos serão os seus desvios, quanto mais nobres as tendências da realização humana, mais degradantes se tornam as suas
perversões. É por isso que as formas mais comuns do desejo humano
tomam muitas vezes contornos aberrantes; paralelamente à realização saudável dos desejos ou no seu lugar introduzem-se perversões
que constituem autênticas alienações.
Os bens materiais são necessários à nossa vida e é o dinheiro que
lhes dá acesso. Mas o dinheiro, que não é nem bom nem mau em
si, que não se pode portanto considerar em si como maldito, pode
pelo mau uso que fazemos dele tornar-se fonte de alienação. Se se
perguntasse a grandes empresários o que é que move o mundo, talvez
respondessem que é o dinheiro. Aparentemente poderiam ter razão,
dum ponto de vista superficial, mas será que o dinheiro traz a felicidade? Pode contribuir para ela; a ligação do dinheiro com a felicidade é mais perceptível quando ele faz falta; mas a sua presença, por
si própria, está longe de tornar as pessoas felizes. É preciso contudo
uma vida eticamente muito saudável para não pôr a sua felicidade no
dinheiro, na acumulação de bens materiais, casas, carros ou mesmo
nos bens materiais ligados aos cuidados de saúde tais como tratamentos especiais etc. Onde está a nossa felicidade, onde é que ponho a
minha felicidade? Esta questão coloca-se em todas as idades, e não é
apenas na juventude ou no princípio da terceira idade que a questão
tem a sua pertinência. Ora, existem tantas pessoas à nossa volta que
correm quase exclusivamente pelo dinheiro, pelo bem estar material.
É verdade que o bem estar material é agradável, que permite o acesso
a bens culturais, a viagens, etc. Mas existe uma linha quase invisível,
no nosso coração, que marca a fronteira entre um saudável desejo
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de dispor de bens materiais e a crispação alienante sobre o dinheiro,
crispação que se transforma muitas vezes em obsessão. Esta alienação
não precisa de muitos comentários, mas sabemos que se comunica do
plano individual para o terreno empresarial. As formas de alienação
correspondentes modificam então a relação entre a vida profissional
e a vida privada: por exemplo, os jovens que trabalham em bancos,
em empresas transnacionais têm tanto trabalho que já não têm tempo
para a vida de família. Novas formas de alienação tão subtis como
graves nascem desta transformação das condições do trabalho. São o
resultado longínquo do predomínio do ter sobre o ser.
Ouve-se muitas vezes dizer que quem não tem nem dinheiro,
nem poder, nem notoriedade social ou intelectual não é capaz de
influenciar fortemente o curso da história. Noutros termos, o poder
que a maior parte dos homens cobiça vem dessas formas do desejo,
desejo de ter, de dominar, de ser reconhecido. Será que o que uma
pessoa vale depende do poder que lhe vem da sua posição económica, social ou política? Para nós a resposta negativa é evidente; o valor
da pessoa não lhe advém do poder que se mede pela quantidade de
indivíduos que dependem dela. Mas nem todos pensam a mesma
coisa e, na perspectiva do poder, o «peso» de uma pessoa depende da
sua capacidade de influenciar ou orientar o curso das instituições e
das actividades humanas. Aí reside uma nova forma de alienação: a
mulher ou o homem que se deixa cativar pelo poder exercido sobre
os outros acaba por tornar-se dependente dele. O poder aliena quem
se nutre dele ou tira dele a substância íntima da sua existência. Por ser
muitas vezes inconsciente, esta atitude não deixa de ser alienante.
Outras formas de dependências são mais frequentes ainda. O desejo de ser conhecido e reconhecido é um corolário da tese filosófica
da intersubjectividade. Não vivemos isolados e precisamos de sermos valorizados pelos outros. Valorizar os outros é um dom que eticamente podemos e deveríamos reservar-lhes. Mas a patologia deste
desejo, que Kant denunciou também na sua Antropologia (1798),
provoca – principalmente nos Mass Media assim como no mundo universitário ou no mundo da cultura – tropelias geradores de
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conflitos, invejas e recalcamentos profundos. Uma ânsia pelo êxito
social corresponde, a este nível, à ganância na gestão do dinheiro tal
como ao frenesim pela conquista do poder. O que nos impressiona
neste espécie de dependência fanática e quase mórbida é o divórcio
entre a aparência do rosto exterior com o qual a pessoa se apresenta
assim e a pobreza narcísica da sua interioridade. A beleza do rosto,
eventualmente jovem, deixa de ser, como compreendia Levinas em
relação a todo o rosto, o sinal do reenvio para uma riqueza interior
e invisível, o sinal do Infinito. A única riqueza humana é então – do
ponto de vista da ética concreta – a superficialidade das aparências.
Vivemos num mundo de imagens e de estereótipos, por exemplo os
da televisão, de tal maneira que as imagens externas da felicidade se
substituem à própria felicidade. Esta alienação é deste modo sinónima da dependência da imagem externa, na qual se julga, erradamente, que reside todo o êxito da existência. Tantas vedetas do mundo
do espectáculo ou do entretenimento caem na depressão, no álcool
ou no suicídio, quando, por contraste ao seu êxito social, se lhes torna perceptível o vazio da sua existência mundana. Onde se encontra,
pois, a força do espírito?
As grandes configurações do desejo, desejo de ter, de dominar e
de ser reconhecido, são os lugares por assim dizer privilegiados das
grandes alienações humanas, por quanto se possa falar aqui de privilégio, no sentido negativo do termo.
2.2. Existem contudo ainda formas diferentes de dependência
que se deixam abordar numa outra perspectiva. Podemos denominá-las dependências dos sentidos, dos órgãos sensoriais. Múltiplas
são as formas de alienação que elas delineiam, estando a seguinte
enumeração longe de ser exaustiva.
*As patologias e dependências do olhar acabaram de ser referidas
a propósito do desejo de êxito social. As variantes destas dependências são contudo centrífugas. O culto do corpo belo, sempre jovem,
que necessita não só de talassoterapia, mas de cuidados permanentes
desde a juventude, manifesta também o triunfo da exterioridade
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sobre a interioridade. O corpo torna-se assim um autêntico objecto
de culto, como se uma viragem cultural, verdadeiramente dialéctica,
nos tivesse feito passar do antigo recalcamento das inclinações e desejos do corpo para uma adulação de tudo aquilo que outrora – isto
é, há décadas ou séculos – convinha reprimir. Esta insistência social
quase obsessiva sobre o culto do corpo, não será ela uma forma de
alienação? O aparecer que se celebra já não é somente o do rosto, mas
de todo o corpo, embora, nesta celebração, o corpo ainda permaneça
largamente desconhecido na sua função mediadora. Pois, o corpo
é mediador da nossa expressão, do nosso ser profundo e espiritual.
É de recear contudo que ao tornar-se objecto de atenção exclusiva
chegue rapidamente a perder esta função de reenvio, de mediação;
acaba então por não significar nada senão a superficialidade da sua
pele e a objectivação de um rosto inexpressivo.
Situada num grau de alienação mais profundo do olhar encontra-se a pornografia. Esta gera uma dependência, subtil ou acentuada, na qual a força erótica provindo dos corpos é brutalmente
objectivada. O risco maior da pornografia reside na separação que
se instaura progressivamente entre o corpo objecto de prazer e o
corpo expressivo de uma interioridade envolvida no mistério da pessoa. A pornografia na Internet, em determinadas revistas ou filmes
contribui para bloquear o olhar no corpo-objecto, vedando às vezes
dramaticamente a possibilidade do encontro com o outro enquanto
pessoa. Nos casos extremos opera à maneira de uma droga em virtude da dependência que instala no olhar.
* Outras são as alienações do ouvido. Podemos perguntar se a
atracção que o ruído, a omnipresença das músicas da rádio, os ritmos atordoadores e ensurdecedores das discotecas exerce sobre os
nossos contemporâneos não significa uma incapacidade de aguentar
o silêncio e a solidão. Nesta era da globalização a fuga para dentro
dos decibéis é tão característica de uma determinada cultura nivelada
por baixo que o fenómeno não parece meramente inofensivo. Revela
talvez que o ser humano de hoje não aceita facilmente acompanhar
o silêncio das lentas germinações, a solidão na qual se pode ouvir o
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Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
eco de uma palavra mais profunda, a lentidão que educa a paciência
e deixa o tempo realizar a sua obra. Confundimos tantas vezes o
movimento externo com a vida. É verdade que a vida é movimento,
em todos os sentidos da palavra, o que inclui evidentemente o movimento físico, tal como se pode verificar na turbulência das crianças
pequenas ou admirar na dança. Mas o movimento não é só exterior.
Ora, é no atordoamento sonoro que tantas pessoas procuram encontrar a vida, como se o ritmo externo sentido à flor da pele fosse
a única maneira de ouvir as vozes mais profundas do silêncio. Malraux evocava «as vozes do silêncio», metáfora essa que nos permite
compreender que é só das profundezas de um certo silêncio que podemos ouvir ressoar determinadas palavras. Pensemos nas palavras
ricas que são sinais de vida, que solidificam a confiança, que abrem
ou reabrem o futuro, será que é no barulho que se fazem ouvir? Mas
se tal não é o caso, o refúgio no barulho assemelha-se a uma conduta
de fuga que não tarda a ser uma nova alienação, dependência subtil
e talvez espiritualmente mortífera.
* Existirão alienações do toque? Pensemos no gesto de uma enfermeira, de uma médica que tem a arte de tocar o doente, de ter com
ele um contacto cheio não só de saúde física, mas de delicadeza. Face
a este toque, percebemos que não é fácil tocar com respeito e sensibilidade. O toque exige uma arte, quase comparável à arte de «tocar»
piano, violino, como se fosse o instrumento que revelasse a sensibilidade do próprio artista. Mas o toque pode denotar o «tocar» que se
quer apropriar do objecto; para determinadas maneiras de tocar, não
há senão «objectos» tocados, no sentido em que este tocar objectiva
tudo aquilo com o qual entra em contacto. Conhece-se o livro de
Veldman sobre a haptonomia, esta ciência que mostra as riquezas e
maravilhas que o toque pode operar. O autor deu como subtítulo à
sua obra «ciência da afectividade». O toque como mediação da afectividade, não será precisamente uma verdade que nos faz compreender
de modo reactivo todas as alienações que o toque irrespeitoso pode
suscitar? Somos mais uma vez reenviados para a compreensão do corpo como expressão de uma interioridade indizível.
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* Não é necessário erguer exaustivamente o paralelismo entre
os órgãos dos sentidos e as alienações mais frequentes. O gosto é
também um dos cinco órgãos dos sentidos, com as dependências
que já suspeitamos. Aqui não há dúvida que reinam também fugas e
dependências múltiplas. Ao lado de pessoas que passam necessidades
de fome, quantas outras não existem que se tornaram incapazes de
uma certa austeridade em relação ao estilo gastronómico da vida?
Se a obesidade excessiva está a tornar-se num mal endémico nos
Estados Unidos, mal que está a invadir pouco a pouco os nossos países, a razão não se encontra somente no excessos vitaminados com
os quais os produtores americanos enriquecem todos os alimentos!
Na verdade não se trata somente de fazer uma auto-crítica doentia;
quem não gosta, com efeito, de um bom almoço ou jantar num
restaurante atraente? O mal não está aí; a questão portanto é mais
profunda e subtil: como é que conseguirei ser dono de mim próprio
se nunca sou capaz de «dizer não» em face de mesas perfeitamente
recheadas? Como é que poderei viver a solidariedade se não faço passar o outro diante de mim, se não «gosto» dele de modo quase prioritário? O «gostar» português, contrariamente às outras línguas, tem
precisamente esta particularidade de se referir ao gosto que saboreia
assim como ao gosto enquanto forma de amor que implica amizade
ou afectividade. Poderia ser no pano de fundo do «gosto» pelas pessoas que o «gosto» gastronómico deveria inscrever-se. Aliás, é o que
acontece espontaneamente nas famílias saudáveis. Mas esta saúde
não se faz sem exigir uma certa disciplina na atenção ao outro.
3. Terceiro nível.
As patologias sociais e as alienações objectivas
O terceiro plano das alienações coloca-se na interferência entre a
sociedade e a existência de cada um de nós. Ao falarmos desta vez de
alienações objectivas, não queremos dizer que tais alienações não nos
atingem também directamente, mas que a sua origem se situa primordialmente no campo das relações sociais, isto é, da repercussão de
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múltiplos condicionamentos sociais sobre os nossos desejos. De certo
modo, essas patologias são suscitadas em nós por um desejo de mimetismo relativamente às solicitações de que não temos a plena iniciativa.
Estas formas enxertam-se nos desejos fundamentais que já considerámos como desejo de ter, de dominar e de ser reconhecido. Mas sob o
impacto do apelo da sociedade surgem novas formas de alienação.
A mais evidente é o consumismo. Este está na linha directa do
«desejo de ter». Mais uma vez é oportuno lembrar que não podemos
cair num maquiavelismo simplista; é bom ter uma máquina de lavar,
um televisor, um gravador, etc. Quando começa o consumismo? Por
um lado quando o interesse pelos objectos que a sociedade oferece se
torna insensivelmente prioritário sobre o interesse pelas pessoas. O
mimetismo social contém um risco de alienação: se todos os jovens
têm jeans de corte baixo – deixando arejar o umbigo – o jovem que
não os possui sente-se frustrado. Se muitos adultos têm um telefone
da segunda geração, ou daqui a pouco tempo, da terceira, cresce a necessidade de ter também um portátil semelhante. O problema não se
situa primordialmente nos objectos, mas nas dependências sociais que
o seu aparecimento faz surgir. Se a economia vive do consumismo, a
nossa liberdade interior não se mede pela dependência que este gera.
Os prazeres ligados à sexualidade podem ser também fonte de
alienação. Esta observação é evidente e toda a gente o sabe, mas é
estranho que este saber não contribua a melhorar a situação. É quase
o contrário que acontece. Não devemos contudo confundir a força
da atracção sexual, particularmente ardente na juventude – entre
parênteses, quando olhamos à nossa volta poder-se-ia perguntar até
que idade dura a juventude! – com a forma de alienação sexual que
nos ameaça pela insistência dos recados publicitários que nos são
transmitidos ou pelos modelos de comportamentos veiculados pelas telenovelas e outros meios culturais. «O Código da Vinci» parece
inscrever-se na linha destes pseudo-modelos comportamentais. Do
ponto de vista do equilíbrio sexual, não parece exagerado afirmar que
somos todos frágeis. Esta fragilidade é então explorada como meio
para fins lucrativos, de tal modo que tudo o que implica a sexuali-
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dade «se vende bem». O preço pago não é infelizmente meramente
financeiro. Existe uma certa hipocrisia da nossa sociedade que parece
continuar a celebrar a beleza sentimental do casamento e ao mesmo
tempo não só aceita, mas considera normal e quase recomendável o
uso da sexualidade desarticulada de todo o projecto de vida. Quem
assiste a determinados programas televisivos dedicados à sexualidade
obriga-se a ouvir afirmações que são aberrações e enormidades do
ponto de vista educativo, ainda que provenham, não raras vezes,
de psicólogos profissionais aparentemente bem instalados na nossa
praça. Não se trata contudo de cair na facilidade que consiste em
denunciar, do alto da nossa idade eventualmente já adulta, as perversões sexuais da sociedade. Mas é preciso ter a coragem de reconhecer
que o equilíbrio na vivência de uma sexualidade saudável não é nem
frequente nem atingível sem esforço. Pensar o contrário é talvez a via
mais segura de preparar uma nova dependência alienante.
Nas últimas décadas desenvolveu-se um novo tipo de alienação,
a carreira. O que é que não se sacrifica pela carreira? Com estas palavras não contemplamos aqui o duro e louvável esforço de tantos
jovens à procura de emprego, após a conclusão dos seus estudos.
Não falamos dos sacrifícios que se deve aceitar muitas vezes ao encontrar um trabalho num lugar distante da residência. Evocamos
mais exactamente o caso das pessoas que foram levadas a negligenciar a sua vida de família por causa da ambição profissional. Ora, elas
nem sequer têm toda a responsabilidade por esta situação, pois foi
a própria lógica da empresa que as empurrou nessa direcção. Na era
de globalização e numa época em que recua a estabilidade de emprego, são obrigadas a trabalharem quase dia e noite para manterem
o seu lugar profissional. Coloca-se então a difícil escolha entre vida
privada e vida profissional, entre a vida de família com a atenção
aos mais próximos e a corrida para a promoção na carreira. Cada
jovem licenciado encontra hoje, de modo mais crucial que antes,
o desafio de conciliar a vida familiar com a vida profissional. Onde
encontrarão a força de não ceder a uma dependência unilateral, a
qual se transformaria rapidamente numa alienação unilateral? O que
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Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
está no horizonte de uma dependência profissional excessiva é o esvaziamento da pessoa, a sua incapacidade de se reencontrar consigo
própria quando acaba o trabalho. O benefício que se traduz em vencimentos bastante aliciantes reverte-se em malefício, no malefício de
uma pobreza cultural e espiritual.
As solicitações da vida social são responsáveis por outras formas
de pobreza. Quando se mede o vazio de largos sectores da televisão,
o embrutecimento ao qual levam tantos programas de entretenimento, compreende-se que, paralelamente a uma técnica capaz de
realizar maravilhas, a nossa cultura ilustra a «era do vazio», já várias
vezes denunciada. Se a perda de tempo fosse somente pontual, ainda
poderíamos satisfazer-nos com a ideia de podermos recuperar o tempo perdido. Mas a perda de tempo é perda de espírito. Assim como
a falta de ginástica nos enferruja, do mesmo modo a ausência de
treino para as actividades susceptíveis de conferir um conteúdo rico
à nossa existência instala-nos numa mediocridade que, em termos
objectivos, não deve afastar-nos muito da espiritualidade do homem
de Neandertal – se pusermos entre parênteses a diferença devida ao
bem estar material que caracteriza a nossa civilização. A nossa cultura arrisca-se então a perder pouco a pouco a sua alma, pela superficialidade na qual se instala. Com certeza as aparências estão sempre
salvas; mas é precisamente o mundo das aparências que esconde o
vazio, isto é, que se torna o único conteúdo quando as aparências
não remetem para a interioridade esperada. Talvez esta avaliação
seja excessivamente dramática; acrescentaremos portanto que o ser
humano sempre conseguiu enfrentar os desafios que se ergueram no
caminho da sua realização. Oxalá que seja verdade, embora o preço
a pagar por causa do vazio pareça cada vez mais alto.
4. Quarto nível.
As patologias globais e as alienações mortíferas
No seu livro Testemunhas da esperança, o arcebispo vietnamita
Nguyen van Thuan faz um retrato dos progressos e das misérias
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do nosso planeta. Comentando o tema «esta terra dolorosa», ele
enumera as pragas contemporâneas. «No meu trabalho quotidiano
– afirma –, verifico que inúmeros povos sofrem por serem marginalizados e descriminados e não ser respeitada a sua dignidade humana. Há
muitos “Lázaros” à mesa dos ricos, angustiados pela pobreza e insegurança sanitária e cultural». Segue então a lista das estatísticas de 2000
relativas à pobreza segundo o Banco Mundial. Continua então: «E
a pobreza gera outras chagas: a prostituição que abrange 500.000 mulheres, apenas na Europa ocidental; o tráfico da droga entre crianças; a
violência e o crime. A falta de trabalho está na origem de muitos suicídios de jovens desesperados». Após uma referência à dívida externa
dos países da África sub-sariana, evoca a insegurança cultural. «Uma
imagem especial da pobreza é a insegurança cultural. Em 1977 mais
de 850 milhões de adultos eram analfabetos e mais de 260 milhões de
crianças eram excluídas das ecolas primária e secundária. E mais ainda:
o comércio ilícito de droga e armas e a circulação de dinheiro sujo são
também causa de guerras. Entre 1989 e 1998 houve 81 conflitos armados: 3 entre Estados diferentes e 78 civis. Milhares de rapazes com 14
anos apenas foram mobilizados à força e enviados para a guerra como
soldados. Muitos morreram, outros ficaram deficientes, outros ainda habituaram-se ao ódio, à violência, aos massacres.... Vem-nos à lembrança
o Monte das Oliveiras, em frente da cidade de Jerusalém. Nesse lugar
«Dominus flevit» (o Senhor chorou) em presença da sua cidade». Esta
descrição, como tantas outras, constrói um retrato bastante objectivo da situação do mundo, retrato provavelmente ainda insuficiente
no seu elenco das vertentes negativas das sociedades actuais.
O peso destas desgraças é tal que poderia levar-nos a um profundo pessimismo, fazendo-nos perder a alegria de viver. Mesmo sem
chegarmos a este ponto, a tentação consiste em refugiarmo-nos nas
pequenas alegrias diárias, fazendo talvez a política da avestruz como
autodefesa contra o peso das culpas e dos sofrimentos dos seres humanos nossos irmãos.
Mas antes de terminar convém também lançar um olhar lúcido
nas alienações mortíferas que nos circundam de mais perto. O papa
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João Paulo II falou de uma cultura da morte. Referia-se ao aborto, à
eutanásia em particular. É verdade que nem todos os sinais da nossa
cultura se orientam para a morte, mas muitas das nossas alegrias recebem a sua coloração mais do futuro que do passado: pensemos na
alegria que se manifesta em geral no princípio de cada novo ano civil
e que, em geral, para não se esbater, deve esquecer o balanço do ano
anterior. Teremos que repetir com o Qohelet «Vanitas Vanitatum,
vaidade das vaidades [isto é, suprema vaidade], tudo é vaidade»? E
a nossa interrogação volta à carga: porque esta atracção pelo vazio,
pela superficialidade, pela ausência de sentido, pelo isolamento de si
próprio do ser humano, pela atracção para o nada, pela resignação
fácil? Não será que recebemos uma mensagem de paz, de alegria e de
dinamismo, uma palavra libertadora, palavra que nos permitiria, se
tivéssemos fé como um grão de mostarda, deslocar montanhas?
No nosso mundo permanente à beira do abismo – e não iremos
comentar as outras alienações mortíferas tais como o álcool, a droga,
a pedofilia, a poluição da natureza – somos contudo levados por
uma esperança, talvez mais forte que a morte. A esperança de ver
nascer uma aurora nova para o nosso mundo, um novo princípio,
uma reviravolta susceptível de evitar as catástrofes de que os profetas de infelicidade nos garantem a chegada inevitável. De onde nos
pode vir esta viragem súbita, onde enraizarmos esta esperança que
ainda não morreu no nosso coração? Um filósofo como Heidegger,
no fim do seu estudo sobre a Essência da Técnica, via esta abertura
na arte, citando o poeta: «là onde está o perigo, là também cresce
aquilo que salva», «o homem habita em poeta esta terra». Mas este
refúgio na poesia não nos satisfaz fundamentalmente. Precisaríamos
de uma nova iniciativa, parecida com uma recriação do mundo,
precisaríamos de uma terra tal como saiu genuína das mãos de Criador. Poder-se-ia dizer então que o nascimento de uma criança é o
símbolo de uma nova criação do mundo, como se cada criança fosse
portadora de toda a esperança do universo. Não é por acaso que
Hannah Arendt tanto sublinhou a importância do sentido filosófico
do nascimento. Ela tinha e tem razão, ainda que, para esse efeito,
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tenhamos que esquecer as crianças que nascem sem futuro. Oscilamos assim entre a esperança viva e a resignação do desânimo. Será
que o amor se mostrará tão forte como a morte? Será que haverá um
perdão para todo o mal do mundo?
Por um lado podemos responder afirmativamente. Porque é que
um acto de generosidade ou de amor desinteressado não teria mais
força que o egoísmo terrestre? Se o amor verdadeiro existe, ele deve
estender as suas ramificações sobre todo aquilo que a terra produziu
de mais medonho. E existem à nossa volta provas deste desinteresse, desta fé na existência. Não podemos então apenas limitar-nos à
ladainha das alienações subjectivas, objectivas ou mortíferas. Quem
é contudo que nos poderá garantir que este amor, de que sabemos
que existe à nossa volta, terá esta força de vencer sozinho a maldade
e a morte, e não será por sua vez vencido em último lugar? A questão
não é só retórica, porque existem pessoas boas, bem intencionadas,
que conseguiram mesmo levar uma vida recta e que, à beira da
morte, se tornam quase a presa do mais negro desespero quanto ao
sentido final da existência. É como se, nesse instante último, não
conseguissem triunfar do seu inesperado Jardim de Gethsemane. No
fim de contas, o combate entre Eros e Thanatos, entre Vida e Morte,
que ocupa um lugar de destaque nas últimas obras de Freud e que
este referia como uma verdade quase incompreensível, este combate
é aquele que cada morte ilustra, tal como cada nascimento encarnava
toda a esperança do mundo.
Entregue a ele próprio, o ser humano não consegue perder a sua
esperança face a todas as alienações e considera que estas, de direito,
não são necessárias, ainda que, de facto, não consiga escapar-lhes.
Oscilando assim entre a esperança e o vazio, entre a alegria efémera
e a tristeza previsível, o ser humano deseja virar-se para alguém que
o ajude a compreender melhor o seu destino, a fazer deste destino
a recapitulação de uma trajectória sensata; ele pensa no sonho impossível que se manifeste o sentido pleno da existência, ainda que se
não saiba como. Homem ou mulher, ele não perde a sua esperança,
mas também não se pode sozinho entregar totalmente a ela. Será que
68
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
lhe advirá uma resposta ao seu sonho, resposta que não poderia ser
outra senão a de um dom não merecido e sempre esperado? Se assim
for tratar-se-á da graça de um novo itinerário, o itinerário da graça.
Mas na sua solidão com os outros o ser humano fica mudo nessa
expectativa.
A SAÍDA: O AMOR QUE DÁ A VIDA
Vasco Pinto de Magalhães, S.J.
“A Saída”, é este o tema que me deram. Na problemática geral deste
dia, “A descida aos Infernos da Humanidade”, procurámos saídas. Saídas de que prisões; de que morte; de que sofrimento; de que conflito?
Como nos dizia a Profª. Isabel Renaud vamos encontrando saídas, às
vezes por linhas tortas, encontrando às apalpadelas como quase tudo na
vida, pelo menos inicialmente.
Há uma Saída, “A” saída? Parece uma pergunta retórica. Se estamos aqui, é porque acreditamos, certamente, numa saída. E, na
realidade cada um vai encontrando a saída que a sua própria experiência lhe oferece.
– Saída de quê e para quê? Donde e para onde, que saída é essa?
Penso que todos queremos e cremos numa “saída”. E eu creio numa
saída “teológico-espiritual”.
Aliás, as saídas antropológicas, culturais, sociais, e mesmo as saídas
com carácter “teleológico” – as que nos lançam para a frente –, só se
completam se encontrarem uma abertura à transcendência! Transcender-se é “sair de si”... antes de mais nada.
– Mas poderá a pessoa transcender-se sozinha?
Fundamentalmente, e já aqui hoje foi dito, não há uma saída
completamente autónoma, ninguém sai do pecado e do mal sozinho. Nem apenas basta a convicção de que saímos uns através dos
outros, de uma saída heterónoma, ajudados por alguém, por alguma
ideologia. A Saída há-de ser, (esta é a minha primeira afirmação),
também e necessariamente “teónoma” – por Deus e em Deus.
Vou tentar explicar-me.
70
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
0. “Composição vendo o lugar”: pano de fundo bíblico
Comecemos recordando a cena evangélica da reanimação de
Lázaro. Se imaginarmos o quadro, esse ícone de Jesus emocionado
diante do túmulo de Lázaro, que já cheira mal, diziam, ouviremos o
seu grito, a sua ordem, o seu chamamento: Lázaro, sai para fora!
É grito, é ordem, é chamamento: “Lázaro, sai! Vem para fora. E
vós, desatai-o e deixai-o ir” (Jo 11,43). Há aqui um apelo, uma ordem, e uma Graça de Cristo. Tem de haver uma vontade humana, a
de Lázaro, pondo em jogo a sua liberdade. E tem de haver também
um serviço da comunidade, o desatar as cadeias.
São, pois, três, os intervenientes de toda a saída. Ninguém sai
sozinho!
E além disso este chamamento à Vida Nova, como uma saída,
“chamamento de saída”, não é apenas um acto final, mas está já
presente na Criação. Na Criação vista já como Salvação, ordenada
ao encontro pessoal com Deus, pois assim se deve entender.
Este chamamento perpassa todo o relato bíblico, vai-se esclarecendo e acaba por se plenificar no Novo Testamento com “a saída de
Cristo” e a saída que é Cristo. A sua própria Saída (a Ressurreição)
arrasta consigo o Universo. É a sua Morte-e-Ressurreição, que nos
interpela e nos arrasta, porque “fazemos corpo” com Ele... e tudo se
dá na medida em que fazemos corpo com Ele.
Se morrermos com Ele, diz S. Paulo, com Ele sairemos à luz.
E se apurarmos o ouvido podemos ouvir (em nós) a voz de Deus
e dizer a Abraão: “Sai! Deixa a tua terra e vai para a terra que Eu te
indicar” (Gen 12,1).
E de novo a Moisés: “Sai! Tu farás sair do Egipto o meu povo”
(Ex 3,10; 6,26).
– “Eu sou o Eterno que fez sair do Egipto o seu povo” (Ex 20,2;
Lev 22,33; Deut 5,6).
Esta expressão “fez sair” aparece umas 35 vezes no Pentateuco.
A ideia e a força central é esta: – a saída... do mal. Afinal é sempre
e só disto que se trata.
A saída: o Amor que dá a vida
71
Moisés e o povo (já à maneira de Abraão) entram, então, em estado de Êxodo, isto é, em dinâmica de saída, deixando tudo põem-se
a caminho.
A Saída não é um acontecimento; é muito mais que um acontecimento e mesmo mais que um acontecimento continuado. É a
dinâmica da vida: é todo um paradigma de uma Aliança que não é
só um contrato. É promessa a concretizar; promessa em realização
progressiva.
É uma aliança oferecida e conquistada: oferecida por Deus, conquistada por nós, conquistada pela comunidade. É, além disso e de
forma característica, uma Aliança perdida e recuperada. Uma longa
saída; uma profunda peregrinação para a comunhão.
Sair é peregrinar em direcção à comunhão. Sair é deixar tudo por
uma comunhão maior.
E é este “Êxodo”, a palavra-chave que poderíamos, a partir daqui,
tomar como síntese do nosso dia. Êxodo da terra da escravidão para
a terra onde corre leite e mel; saída dos “infernos”, saída da situação
da escravatura para a terra da liberdade.
Êxodo é saída, é passagem, é caminho... e é regresso!
É vocação e travessia do deserto. É chamada de Deus e é resposta
pessoal, bem como caminho de formação da comunidade. E tudo
isto, “sempre balançado”, entre a velha tentação das “cebolas do
Egipto”, de ficar no passado, e a conversão ao “maná” que é primícia
de futuro.
E é assim que, balançando na tentação entre estas duas situações,
somos postos a caminhar, numa saída que não há, mas que vai havendo.
Finalmente e, ainda de um modo bíblico, podemos e devemos
colocar-nos diante da grande imagem – forte ícone de síntese – da
família humana toda, figurada na Sagrada Família, que de novo sai
do Egipto... e é chamada a regressar à Sua Terra. Levada à terra da
escravidão e da exclusão, descida aos infernos por imposição do mal
e perseguição dos infernos da inveja e da idolatria do poder, figurados em Herodes, daí é chamada, de novo, ao deserto: “do Egipto
72
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
chamei o meu Filho”, assim diz Mateus (2,15) falando do regresso
da Sagrada Família, e fazendo eco à voz de Oseias (11,1): “chamei o
meu Filho a sair do Egipto”.
E repare-se na pequenina diferença: primeiro, chamei o “meu
povo”; e agora, chamei o “meu filho”. Já é uma grande saída, passar
de povo a filho.
1. Êxodo, pessoal e comunitário: 3 níveis de um processo
complexo
O Êxodo, mesmo só na perspectiva mais pessoal, que não podemos isolar de toda essa tríplice participação (Deus que tem a iniciativa, cada um e a comunidade) é um processo complexo do qual não
se pode falar de forma linear (como as intervenções anteriores bem
demonstraram).
Assim, importa considerar três níveis.
Há uma primeira saída – um primeiro nível de libertação – que
é aquela que deslinda, que desata e discerne a complexidade da vida
interior egocentrada. Sair dos próprios fantasmas, sair de si, sair dos
conflitos mais/menos patológicos – onde a psicologia tem especial
intervenção: a urgente quebra das cadeias e angústias internas de que
temos grande necessidade.
Há um segundo grau ou segundo nível de prisão-e-saída que é
o processo de superação ou de conversão do pecado ancestral, que
podíamos chamar, explicando depois o termo, “pecado original”. A
saída da condição humana fechada e/ou em conflito, – que é quase
o mesmo, mas tem alguma diferença: estar fechado em si ou em
conflito. Em conflito, sobretudo na relação, que começa logo por ser
“conflito consigo próprio” e exige “sair do desamor”.
Usando uma expressão do Santo Inácio, trata-se de “sair do próprio amor, querer e interesse”. Isto é: sair para o outro. Porque há
um sair de si e um sair para o outro.
Num terceiro nível, por fim, encaramos a saída escatológica, a
que nos apontam os teólogos: uma saída global e globalizante. Uma
A saída: o Amor que dá a vida
73
saída para todo o povo que agora é filho. Uma saída – que é Salvação
– para a Criação, da qual não nos podemos desligar.
– Tem a Criação saída?
Se nós temos saída, a Criação também. A saída para Deus do que
vem de Deus.
Dizendo de outro modo: Um primeiro nível, mais “psicológico-espiritual”; um segundo, que é processo de saída antropológica
que eu diria “ética”, e um terceiro nível, o de uma saída ou de um
regresso “escatológico” do Egipto, um regresso ao Pai.
Não é preciso forçar muito para ver que a primeira saída se faz
pelo Espírito e pelo discernimento: pelo deixar-se conduzir pelo
Espírito de amor e de verdade. Uma segunda saída, tem o seu segredo na comunhão no Filho, na relação saudável com o outro, que
nos leva ao Pai. E esta ida para o Pai leva-nos à terceira saída que
apela à transfiguração de tudo e todos. Para todos ou ninguém, na
globalidade; na globalidade do espaço e do tempo e das pessoas.
Do Espírito Santo, no Filho ao Pai: um processo de transfiguração,
amorização, da realidade.
E são estes três níveis que vão, como veremos, desmascarar as
falsas saídas, que tão subtilmente entram por debaixo da pele. Entram na nossa cultura com uma força enorme, mas enganadora, de
aparente realização, de aparente desenvolvimento, ou de aparente
personalização.
Explicando melhor o que pretendo dizer, vou tentar particularizar e explorar esses três ciclos de cadeias, que deviam gerar três ciclos
de saídas ou três êxodos, que se englobam uns aos outros e que se
completam.
Saída psico-espiritual
Perante as prisões e infernos humanos de angústia e de mal,
consideremos primeiro o ciclo da pessoa fechada sobre si mesma,
em si mesma, nos seus complexos, nos seus desequilíbrios, nas suas
interrogações nunca satisfeitas, na sua angústia, no seu stress, no seu
74
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
medo – estas coisas de que não há quem não tenha alguma experiência – e, por outro lado o apelo fortíssimo do Evangelho à humildade,
podíamos dizer, à aceitação... que, cristãmente, não é resignação.
Entretanto convém introduzir aqui um pequeno inciso, porque,
creio bem, muita coisa se confunde por não termos adaptado suficientemente a nossa linguagem. Nem àquilo que é prisão nem àquilo
que é saída. Estão ou não estão as pessoas desejosas de imortalidade
e de ressurreição? Ou já se esqueceram disso? Acontece muitas vezes
que quando ouvem de nós, cristãos, a palavra ressurreição, ela não
produz eco nenhum, nem faz faísca com aquilo que, no fundo, desejam. Porque se calhar lhes pregámos uma ressurreição não de regresso ao Pai mas de “regresso” aqui à terra, ao espaço-tempo... e que,
portanto, não é a transfiguração da ânsia de fundo da humanidade,
mas lhes parece mais um apetecível e morno recuperar o perdido. E
se assim fosse, seria mais uma ocasião de voltar aos conflitos renovados do que uma porta aberta à verdadeira novidade.
Há um deficit da nossa teologia por não ter sabido encarnar, também na linguagem, como em toda a necessidade humana. Até tinha
as respostas e as saídas, mas nem sempre as soube comunicar! De facto
é real a dificuldade que temos de expor, apelativamente, aos outros a
nossa saída, mesmo quando dizemos que já a experimentamos.
Voltando ao primeiro nível, ao ciclo da saída para nós próprios,
do desentranhar e discernir o conflito interno de cada um de nós,
é certo que podemos recorrer a muitos meios: à psicologia, ao psiquiatra, podemos ir ao padre espiritual, podemos ler um bom livro
e fazer tantas coisas como por exemplo os Exercícios espirituais!... E
Santo Inácio oferece um instrumento muito curioso, um conjunto
de Regras, sábias e práticas, para a tal saída como processo de discernimento, de desenrolamento dos enganos sobre si próprio.
O discernimento é uma grande porta de saída. Porque, personalizadamente, clarifica as situações e abre caminho. Faz entrar no
deserto em ordem à “terra prometida”. E é uma primeira prática
desta saída, que não é um momento nem uma magia. Conta ele,
St.º Inácio, nas Regras para a 1.ª semana dos Exercícios, três peque-
A saída: o Amor que dá a vida
75
nas parábolas, que mostram bem como a pessoa se enrola sobre si
própria na costumada “sequência diabólica” do medo, vergonha,
confusão.
Temos aqui três pólos, três momentos do ciclo da angústia-prisão.
O Medo é sempre o lado dramático da dor e do sofrimento. É no
medo que está a questão porque torna a dor pensada e sem saída no
pensamento, fazendo a pessoa não estar na dor mas no pensamento
sobre a dor e no medo crescente que a ela se associa. O medo suscita
a Vergonha de mim próprio e das situações, por as tornar fantásticas
e fazer desacreditar da sua superação e, assim, de não saber sair e
não poder fazê-lo abre a porta à Confusão no crescente fechamento
sobre mim próprio pela fuga à relação que se torna ameaçadora. “Ai
se soubessem o que eu penso e o que eu sinto! O que fiz! Como é que
eu posso dizer isto a alguém? Quem me vai entender?
A vergonha, o “fechamento” aliado ao medo gera a confusão. E
a confusão tira a visão. Confunde a objectividade sobre si próprio e
sobre os outros...
A primeira grande prisão nasce e cresce pela falta de objectividade connosco próprios. Então, não sabemos dizer quem somos. Não
temos, muitas vezes, capacidade de nos olhar distanciando-nos para
nos ver e, depois, admitir que somos mesmo assim! Mas também
não “somos assim”, acabadamente, como se devêssemos reduzir-nos
a uma definição! A verdade é que estamos sempre em estado de mudança: para ser mais quem somos, isto é, capazes de ser mais.
A realidade da pessoa é “estar em aberto”, sem por outro lado se
negar que se é... A pessoa é mais do que é! E, portanto, nunca me devo
ver limitado, confinado numa experiência estática, que só por isso mataria a possibilidade de sair de mim para ser eu, para ser quem sou.
St.º Inácio vai-nos explicando como entrar nessa estratégia interior, num discernimento que devia ser acompanhado pelo afecto,
como uma forma de oração no Espírito, como um deixar-se conduzir na via espiritual de tal modo que ao enfocar aquilo que é confuso,
possa, cada um, enfrentar os meus medos. Mas só se lá chega através
do risco de passar pela humilhação da vergonha.
76
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
É muito bonito este processo de discernimento, que não é auto-suficiente e que põe a “máquina do enrolamento” a funcionar ao
contrário. Realmente somos muitas vezes como o caracol: só desenrolando sai da casca. Mas, enrolados sobre nós próprios (e quanto
mais pensamos mais nos enrolamos!) vamos do stress à angústia, da
angústia que é aperto à cegueira, e desta ao desespero.
– Como é que se põe esta “máquina” a rolar ao contrário?
Não há solução mágica, nem padre espiritual que saiba tudo e
me passe a receita. Rezar com simplicidade e confiança ajuda muito
a desenrolar o próprio eu. Mas o que me lança no caminho interior
da saída dos apertos e das angústias, começa no enfrentar a realidade
como ela é: ver e descobrir por onde é que entra o “gato” na minha
vida para, depois, frontalmente, lhe pôr um nome e meter tudo
isso nos canais da minha relação corajosa com os outros, e saudável
comigo próprio. Faz muita falta conversar com os nossos próprios
botões.
O que nos “mata” é a relação pouco saudável connosco mesmos.
Cai-se na relação mitificada, relação enganadora, feita de alienações, onde eu quero passar por aquilo que não sou, tentando iludir
a minha própria confusão. É por isso que os psiquiatras nos ajudam
tanto a objectivar, a pôr o preto no branco, a pôr palavras e nomes
naquilo que experimentamos.
Por vezes caímos na tentação de usar outra palavra para aquilo
que – no fundo – sabemos que tem outro nome. Enganos que levam
a prisões douradas. No processo interior da verdade, há que detectar
e enfrentar “a falha na muralha do nosso castelo”, para redimensionar os fantasmas do desconhecido e assim lhes perder o medo. Ora,
isso só acontece plenamente quando saio de mim, arriscando-me a
falar, a abrir-me com outro.
Temos, então, a sequência: objectivar, admitir, relacionar, integrar. É um processo psico-espiritual, que me leva, do “admitir”, isto
é, manter as coisas no consciente sem ter que lhes fugir ou recalcar,
à “relacionação” com outras experiências, que me ajudará a “relativizar” e “integrar”. As coisas, as dores e os sentimentos, não desapa-
A saída: o Amor que dá a vida
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recem, mas aprende-se a viver com eles. Viver sofrendo, ou com o
sofrimento? Esta é a dijuntiva. É preciso aprender a conviver com o
sofrimento.
Queremos livrar-nos de todo o sofrimento, mas esse é um novo
engano. Não se trata de me livrar de tudo; não se trata de deixar de ser
eu; eliminar todas as marcas e traumas como se de repente me pudesse
tornar extraordinariamente saudável, quimicamente puro. Trata-se de
aprender a viver bem com as minhas patologias. Não é o viver patológico, é viver com as patologias, gerindo-as o melhor possível.
E é isto que o St.º Inácio ensina nos Exercícios. A ideia de que
devíamos ser logo santos ou que o bom era sermos todos saudáveis
à partida é uma das coisas mais insanas do mundo, porque é uma
mentira. Saudável é a pessoa que sabe viver com a sua patologia,
tendo consciência dela e tomando os remédios necessários.
Então, não falemos de saídas pela porta mágica! Falemos de processos de êxodo, de travessia do deserto com avanços e recuos, com
tentações, com mistura de desejos de tornar a esconder tudo e andar
para trás, e de-vez-em-quando me lançar e arriscar, me encantar com
“uma cenoura” lá à frente, com algum “maná” não isento de enganos... E o primeiro passo está na coragem de me pôr em processo,
de me pôr em caminho, pobre, humilde, cansado, peregrino com as
suas bolhas.
A grande fantasia é esperar que a saída caia do céu ou de alguém
– como que por milagre. Mas o milagre não é esse. O grande milagre
que Deus faz é pôr-me a caminhar; é que eu queira sair; é que eu
acredite que a comunidade tem meios e sacramentos de saída.
O mundo hoje propõe, (sabemos bem), muitas alternativas, muitas saídas. A “new age”, a cultura “gnóstica” dos nossos dias, propõe
caminhos de espiritismo; juntamente com experiências de apaziguamento, ou recorrendo ao “Yoga”, a um “Zen”, por exemplo,
propondo-me também que me torne sábio na captação das energias
telúricas! Fazem pensar que talvez aí se descubra, finalmente, mágicamente, a harmonia de si próprio. Como que dada de barato;
apenas com uns meros exercícios, por fora, que não me obriguem
78
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
a converter! É certo que se pode obter por aí uma boa ajuda, mas
não toca no âmago da questão, no “eu” que está doente por falta de
Deus; doente por falta de Verdade.
Devíamos estar mais alerta para com estas práticas ditas “espirituais”, de moda. Aparecem-nos “bem embrulhadas” em papel de
ajuda que conforta e podem até criar condições de oração e de vida
interior, mas, depois, não encontrando o sujeito lá dentro, se viram
contra nós, mais ou menos a curto prazo.
Entregando-me a essas práticas, frequentemente individualistas
e apregoando a “paz” do bem-estar por não ter de dar contas a ninguém nem a nenhum valor, posso ir resolvendo alguns problemas de
ansiedade, de stress, rendendo-me às energias, (“só vou a casas com
energias positivas!”). É capaz de haver alguma verdade nisso; mas a
absolutização deste pandemónio, ou destas forças suspeitas, gera um
engano profundo na auto-consciência de mim próprio, na verdade
comigo próprio, trocando a humildade por uma técnica e um “saber” bem oleado.
Saída ético-antropológica
Deixemos por agora este nível psico-espiritual e avancemos para
um 2.º nível de prisões – libertação, um pouco mais exigente de tratar
e que também tem paralelos na experiência inaciana dos Exercícios.
Este segundo ciclo tem a ver com o nosso “mal de fundo”, o pecado
de fundo, o pecado da natureza humana prisioneira, a que (nem sempre adequadamente) chamamos “pecado original”. Como sair daí? É
possível? Ou é também um processo de deserto a percorrer?
A questão de fundo está no desejo, no desejo que temos e somos.
Ou, pelo menos, passa por aí a revelação da questão. Somos “seres
de desejo”, para bem e para mal.
Aceitemos por agora esta antropologia de que aquilo que nos
define, como dinamismo pessoal e relacional, é sermos “seres de
desejo”. E que o problema do desejo está em ser bem ou mal encaminhado. Nada de mal no “ser de desejo”, mas é perigoso! Aliás, o
A saída: o Amor que dá a vida
79
mais interessante desta compreensão de nós próprios é que, ainda
mais que meros seres de desejo, somos “seres de desejo mimético”,
isto é, comparativo.
O que direi, a partir de agora, inspira-se nas teses de René Girard,
no seu livro “Eu Via Satã Cair Como um Raio”, livro magnífico
sobre o problema do mal que, creio bem, pode servir como guia de
uma mais profunda reflexão sobre a Condição Humana, num olhar
bíblico, reinterpretativo de todas as questões sobre o mal.
Realmente no mais fundo de nós há o desejo e é através do desejo
mimético que crescemos. A criança cresce vendo e copiando, mimetizando a mãe, o pai, os irmãos. Mas o desejo mimético pode cegar, impedir-me de ser eu próprio e pode fazer-me tropeçar: pode encontrar
escândalo. Lembremos o que Jesus diz dos escândalos no Evangelho:
os tropeços de violência e de confusão para os mais pequeninos...
Então o desejo pode adoecer e tornar-se “mimético-conflitual”, e aí
se revelaria o nosso “pecado” mais fundo, que é não podermos sair
sozinhos do conflito que nos constitui.
O mal não está em que este conflito exista: o “pecado”, aqui, mal
não-moral, é não poder sair dele sozinho. Falo de “pecado” no sentido existencial, no sentido situacional, – aqui não é do pecado como
acto imoral que se trata, mas da situação humana “que peca”, que é
carente – estruturalmente – de amor, que carece à partida de ajuda e
de graça. Não é que esteja mal feita; é que não é auto-suficiente.
E isto significa que ninguém sai do seu desejo mimético conflitivo sem o amor, sem amar e ser amado!
E, por isso, dizia acima, que não há saída autónoma. Sendo esta a
condição humana, que não é mal (em si), mas revela, pela ausência,
o Deus que lá não está, mas para o qual somos “boca aberta” e apetência.
R. Girard faz uma reflexão muito curiosa sobre o 10.º Mandamento: “Não desejar os bens do outro”.
Depois de “não mates”, “não roubes”, “não mintas”..., surge
“não desejes”! É um grande salto, mas é o que faz a síntese para se ir
à raiz de todos aqueles interditos, daquelas interdições.
80
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
E é muito curioso, porque aí é que está realmente o problema!
Por vezes, até sem dar conta, estou a desejar, – e fortemente! –, a
cobiçar o bem do outro e o bem que é o outro. Como se visse ali a
felicidade e, irresistívelmente, a quero: desejo aquilo que ele tem e
até o que imagino que ele é.
Acontece que chego a desejar os bens ou a coisa que outro tem,
estou a cobiçar a felicidade que vejo em quem tem a coisa! Já não
estou a competir com quem tem; começo a querer ter o outro e ser
o outro.
E este desejo mimético doente, despersonaliza-me. Faz-me querer ser o outro (que eu não sou) porque encontro nele, de alguma
maneira, a felicidade sonhada, desejada. Enfim, é realmente a coisa
mais terrível que nos pode acontecer e a fonte, depois, de todo o
conflito e de toda a angústia de onde sabemos que é difícil sair.
Sempre os santos e os espirituais nos disseram que as comparações eram más. Nem com os Santos nos temos que comparar: eles
são para admirar e não para imitar. É por isso que o desejo comparativo é perigoso; porque transferimos a santidade para eles em vez de
buscarmos a nossa.
Estamos pois perante uma tentação enorme, a chamada “idolatria
do próximo”, que acaba por ser uma idolatria de si próprio. O “Outro” aparece-me realmente como a imagem daquilo que eu poderia
ser e que, se assim fosse, era feliz.... No fundo um culto de mim,
adorando um “outro eu” que vejo no outro.
Resumindo: se por um lado a estrutura de desejo mimético da
pessoa humana é aquilo que lhe permite crescer, é também por ele,
adoecido, que entram os grandes males.
Assim, quando o desejo mimético adoece, cega-se, e não só introduzimos a idolatria do outro, como aparece, em consequência
imediata, a violência. E compreende-se, porque na cegueira despersonalizante a Violência surge como a forma de passar por cima do
outro, de eliminar o outro para que eu seja eu. Nessa situação, o
outro de objecto de desejo passou a ser frontão, que não me deixa
passar. Passou a ser bloqueio e fonte de conflito; isto é, escândalo.
A saída: o Amor que dá a vida
81
O relato bíblico da morte de Abel por Caim que continua a repetir-se nas nossas histórias, demonstra bem o que se acaba de dizer. Se
o primeiro ciclo de prisões-saídas de que falei podia ter alguma coisa
a ver com Adão e Eva, enredados dentro de si mesmos, este agora
tem que ver com Caim e Abel, com os nós nas relações pessoais.
Que cura, que saída para esta idolatria do próximo? É certo que o
não aguentar não ser e não estar bem, leva-me a agir com violência,
a ter que suplantar o outro, a ter eventualmente que o eliminar e leva
à rotura das relações, sendo essa, muitas vezes, a solução que o nosso
mundo apresenta.
Se analisarmos o que é que acontece nas violências domésticas,
ou na escola, no Iraque, ou no desânimo consigo próprio, vemos
o rápido recurso à violência. Apesar de tanto aviso – até do bom
senso – de que é contraditório vencer a violência pela violência. Mas
“quem mas faz, paga-as”... Quando o Outro surge como fonte de
mal estar e me violenta, como superar?
Ao longo de todo o Antigo Testamento, apesar de ser História
de salvação, ressalta continuamente, não só a tentação da violência,
mas até a Lei de pagar o mal com o mal, que vai sendo reflectida até
chegar a essa norma extraordinária de S. Paulo, de “pagar o mal com
o bem!”. Não é uma invenção; é o testemunho de radicalidade de
Jesus que é, aliás, a “chave de saída”.
Esta realidade da violência não é acidental; é mais do que isso, é
estrutural, porque é o modo como funciona naturalmente o desejo
mimético conflitual: ele é conflitivo!
Claro que há antropologias que tentaram negar isto. Konrad
Lorenz, por exemplo, afirma que tudo vem do instinto da agressividade, feito agressão. Mas engana-se, creio eu. Porque a agressividade
é uma coisa boa; é a capacidade de responder aos estímulos. E só a
desproporção entre o estímulo e a resposta é agressão e violência.
Girard, o teólogo-antropólogo que citei mostra que ela vem, não da
agressividade, mas do não ser capaz de condividir os bens, e de me
cegar diante do bem do outro.
82
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
O nosso mundo foi tentando resolver isto de várias formas, uma
delas, típica, consiste em aceitar a lei do poder do mais forte sobre
o mais fraco. É esta “lei” que se exorciza, depois, com a invenção do
“bode expiatório” e que tem atrás de si uma boa tradição bíblica.
Actualmente, aparece em formas muito renovadas.
O mais frequente é assumir a violência explicando-a e pensando
ultrapassá-la, criando bodes expiatórios, ainda que disfarçados. Na
recente questão do Iraque: onde estava a violência instalada: no
próprio Iraque? no seu petróleo? nas suas armas? nos E.U.A.? nos
interesses europeus, nos franceses ou na Palestina? De acusação em
acusação lá foi cada um encontrando seu bode expiatório. E desfocando os problemas se encontra um Maligno, que precisa de ser
exorcizado e enviado para o deserto.
Há quem pense que assim se resolve o problema da conflituosidade mimética. Assim pensou o A.T. criando o Yom Kipour,
celebração (do perdão) que transfere os males do povo para o bode
expiatório e o manda morrer longe no deserto.
Mas há quem proponha outras saídas. Esta que alguns modernos
acham psico-ética, dizendo: afinal é tudo uma falsa questão, cada
um tem é que pensar em si próprio! Se o grande problema é e está na
relação com os outros, não te relaciones! Pensa em ti próprio!
Esta pseudo-saída por um individualismo exacerbado que hoje se
vive e apregoa tem a sua raiz numa fuga (para a frente), intelectual e
cultural, muito elaborada: acima de tudo o indivíduo (não a pessoa)
que se realiza pelo consumo (sem limites), direito que pode justificar
tudo. “Se não me serves, nem sequer me confronto contigo, deixo
de pensar em ti!” É uma saída por desvinculação! E na nossa cultura
aparece expressamente a proposta de erigir uma “nova ética” cujo
primeiro princípio é “a realização individual”.
Nessa ética não se fala de responsabilidade; os outros são os outros, passem bem….
Há poucos dias num debate sobre “Ética da experimentação
animal” um professor, doutor (de que não quero dizer o nome)
afirmava peremptoriamente: “É óbvio que não se podem usar as
A saída: o Amor que dá a vida
83
éticas antigas, que eram éticas de imposição. Hoje eu vivo e toda a
gente devia viver a ética da escolha. Esta ética tem três princípios:
Realização individual, Honestidade e Tolerância.” Fim de citação.
Não se imagina o subjectivismo oportunista que daqui se segue e
pode seguir: tenho direito a que não me incomodes; digo e sigo o
que acho; e tu podes pensar o que te apetecer...
Há o perigo de procurar uma saída por uma “ética” inglória e
desvinculante, transferindo a competição para áreas mais secretas:
cada um é que sabe o que lhe convém; para me sentir bem e realizado qualquer meio é válido. Assim se acabaria, airosamente, com o
conflito.
Mas é a isto tudo que o Evangelho chama o escândalo. Este tropeço na relação com a própria consciência e com os outros instala-se
no nosso coração e gera continuamente violência, nas suas formas
mais variadas, das mais expressas às mais subtis. E em nome destes
princípios a que St.º Inácio chamaria falsas “bandeiras” do inimigo,
propostas com “aparência de bem”, se instala dentro de nós a justificação da violência, da mentira, do abuso.
Onde pode estar, então, a saída, o êxodo destes “infernos” de 2º
nível?
– Está no Sacrifício, no verdadeiro sacrifício.
Não está no eliminar de um culpado, seja o bode expiatório que
for, nem na oferta a Deus de umas quantas pagas e bens, mas na
entrega de si próprio, no Sacrificar-se. “Sacri-ficio” quer dizer “tornar sagrado”; e está no olhar para si mesmo como algo sagrado em
estado de oferta: fazer de si próprio um sagrado ofertório – que é o
verdadeiro sentido do sacrifício. Só supera a doença mimética quem,
com humildade, se aceita e entrega a Deus por amor.
Portanto a saída do “satânico”, ou seja, do “desejo adversário” do
humano está no sacrifício, na Cruz, no Amor adulto. Dizendo de
outro modo: “está na comunhão com Cristo pobre e humilde”. Ou,
como Jesus nos ensinou, cumprindo-o: está em substituir o bode
expiatório, pelo Cordeiro de Deus.
Esta é a saída. E esta é a passagem.
84
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
Saída escatológico-teológica
Passemos então ao 3º nível, começando por resumir os dois ciclos
anteriores encarando-os, agora, sob a perspectiva da culpabilidade ou
da culpa mal resolvida. Os enganos-prisões de primeiro nível levam
a pessoa a ficar enredada em sentimentos de culpabilidade, carga
angustiante, paralizante, introvertida por não reconhecer um Deus
de amor que permite que nos aceitemos e, até, das verdadeiras culpas
tiremos partido. Já num 2º nível parece (mas é engano!) necessário
encontrar um culpado que me livre de quem me faz sombra ou obstáculo. Nestas situações estamos capazes de dar razão a Hobbes que
dizia que, no fundo, “somos todos uns lobos uns para os outros”. E
começamos logo por nos morder a nós próprios... Aponta-se então
a saída da angústia e da comparatividade substituindo os míticos
Bodes expiatórios (o eu, o outro ou o diabo) pelo Cordeiro de Deus,
pela oferta pessoal, pelo verdadeiro Sacrifício (de Amor); isto é, pela
capacidade de nos esvaziarmos à maneira de Jesus Cristo.
A dificuldade desta saída está em que, mais do que para perceber,
é para experimentar. Só no risco de amor há reencontro consigo
próprio que permite a relação e a partilha. Fora disto, em cada outro (e em mim!) não há um “próximo”, mas um inimigo eventual.
Então, mesmo os que me são simpáticos são suspeitos e a violência
mantém-se à espreita: quem é o próximo que tenho de mandar para
o deserto?
Na nossa não entrega de amor chegamos ao 3º nível. O 3.º ciclo
é o da prisão global, que exige uma saída global.
Neste nível a reflexão e a libertação já não é só psico-espiritual,
nem ético-cristã, é teológica. Faz-nos entrar na via trinitária que é a
de Cristo. E cada um de nós é chamado a seguir a Via do espírito,
pelo lado bom do desejo mimético que se encontra no seguimento
de Jesus Cristo, paradigma e Caminho (de regresso!) para a Casa do
Pai.
Depois de Santo Inácio e de R. Girard vou servir-me de Gonzales
Faus, na sua obra “A Humanidade Nova”. Este livro pode levar-nos
A saída: o Amor que dá a vida
85
a ver em traços largos e profundos, o processo dinâmico do Universo
como Criação e Salvação em Cristo.
Pensamos e falamos da Criação, tantas vezes, como uma realidade feita, acabada, um cosmos. Mas a Criação está “a fazer-se” e
mais que um cosmos é uma “cosmogénese”. E, por isso, não estamos
perante um Deus que nos vem salvar da “criação tão má!”, mas de
um Deus que faz corpo com esta criação, para que ela se transforme
em Corpo e Reino de Cristo que é o seu Fim.
Pensar assim pode parecer uma revolução “copérnica” da Teologia. Mas é apenas voltar à teologia, à Cristologia dos Santos Padres, os teólogos dos primeiros séculos.
Mais tarde, depois de S. Tomás, fomos levados por uma Soteriologia (tratado da Salvação) que desligou Criação e Incarnação
de Salvação. Ou melhor, apresentou a Incarnação ao serviço da
Salvação e esta visão trazia consigo um dualismo perigoso, por vezes
maniqueista: somos salvos de um mundo mau, de uma matéria má...
numa saída quase mágica: Deus aterra e tira-nos daqui pelo caminho
da Cruz. Esta forma de ver pode tornar-se mítica. Ora, o que a fé
nos diz é que nada do criado é para perder e a salvação não é sair do
Universo mas transfigurar o Universo, não é sair do mundo, mas do
mundano, do pecado. E Cristo, reafirma S. Paulo, é o primogénito
de toda a Criação. A criação faz-se à luz da Incarnação; e Ele, Cristo,
não vem só como redentor do mal, vem como Cabeça do Universo. Vem encabeçar o êxodo! Essa é a sua forma de redimir. Numa
Incarnação Salvadora assume este Corpo e põe-o em caminho de
transfiguração pela sua (e, então, nossa) morte e ressurreição... que
leva o Universo ao seu acabamento.
Que imagem de Salvação ou de Saída, ou de ir para o Céu, nos
ocorre? Ser tirado como por um “anzol” para fora do mundo? A
alma a levantar voo deixando o cárcere do corpo? Ou Lázaro a ser
chamado (e a receber a graça) para sair do túmulo e “entrar no mundo sem ser do mundo”. Chamados a fazer corpo com Cristo, e com
Ele transfigurar o mundo!
86
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
A transcendência é um “mais além”, mas está já presente na nova
forma do mundo, no Reino!
E porque o Reino começa já no mundo transformado pelo amor,
a Saída desejada é processo pascal de transformação do mundo pelo
amor. É mais que partir para um outro mundo; é este mundo (feito)
outro: Baptizado, cristificado.
Recuperar esta teologia da “incarnação salvadora”, tão claramente
expressa em S. Ireneu, Justino e outros “padres” da Igreja que deram
continuidade às teologias de Paulo e de João corrige a tentação de
uma salvação demasiado verticalista, para nos enviar a sair de nós fazendo corpo de salvação na comunhão com os mais pobres, os mais
necessitados. Aí está a Porta de saída que Jesus aponta.
E a Revelação vem dizer-nos que não só nós, mas toda a criação
encontra em Cristo a realização de seu desejo mimético. Este desejo
descobre que estamos feitos para Cristo, mais do que para o copiar,
para o seguir até à comunhão fecunda. Creio ser disto que nos falam
as parábolas do Banquete e a teologia quando diz que Ele vem desposar a Igreja, a Humanidade, fazendo dela o seu corpo fecundo...
A cosmogénese torna-se cristogénese, dizia o Pe. Teilhard de
Chardin.
E Gonzales Faus resume esta Cristologia da Recapitulação, assim
lhe podemos chamar agora, em três teses sintéticas. Vejamos.
1ª) Para que haja saída, para que o mundo ande em “estado de
êxodo” é preciso considerar toda a realidade como absoluto. Parece
uma heresia, mas não é! É que faz parte do Real a relação com Deus!
E como já dizia K. Rahner, no mundo está presente um “existencial-sobrenatural”: isso significa que, até pela negativa, o mundo nos
mostra que Deus está presente: até pela sua ausência se mostra a
Sua presença. E o mesmo em Bonhoeffer: “A ausência de Deus no
mundo é o sinal e a forma da Sua presença”. Ou ainda a expressão
do P. Domingos Terra: vemos a sua pegada...
A realidade é um absoluto porque tem a marca de Deus. Não é
o anti-Deus, pois mesmo quando alguém se põe contra Deus está a
A saída: o Amor que dá a vida
87
“chamar” por Ele. E o “diabólico” é “não-coisa”, a realidade feita o
que não é.
O que se afirma é que não há relação com a realidade que não seja
relação com Deus em Cristo, ainda que muitas vezes tenha a forma
“kenótica”, isto é, num jogo de “vazio”: Deus como que se esvazia
para estar connosco, abaixo de nós, a suportar-nos. E a pessoa não o
encontra, na sua liberdade, se não se esvaziar do seu ego.
2ª) a segunda tese parece contrariar a primeira, mas segue-se ao
parágrafo anterior: A Realidade como maldição. Isto é: só em Cristo
se chega à dor do Mundo, à dor de Deus no mundo...
É que, realmente, é este mundo concreto que, sem a participação
de Jesus Cristo, é a fonte de todos os conflitos.
É preciso meter os pés na lama! Na terra! E numa lama amaldiçoada – quando sem amor – que faz parte de nós e grita por transformação.
Só é autêntica a relação com Cristo quando adquire a forma de
participação concreta em Jesus, nos seus trabalhos e serviços à dor
do Mundo que é dor de Deus. E a Incarnação é ir até à dor de Deus
no Mundo, pois, de facto, sem descermos aos Infernos – que é o que
Cristo faz –, sem agarrar e “fazer corpo com o Mal”, não podemos
entrar no processo de Bem.
Foi preciso passar na escravatura do Egipto. Foi preciso a Sagrada
Família ter lá ido “comungar” do mal e fazê-lo seu, “tomá-lo sobre
si” para atravessar depois o deserto. E nós nem as mãos queremos
sujar!
3ª) Última tese: Entender a Realidade como Promessa. Isto é,
como história; como História de Aliança; como dinamismo; como
transformação.
A realidade só se entende na medida em que a vemos e apercebemos em transformação, e nós em atitude transformante. Daí que a
participação no ser – para Jesus no serviço à dor do mundo, só possa
acontecer sob a forma de aposta e de compromisso. Compromisso
pela transformação absoluta da realidade, agarrada por baixo, a partir da “lama”, onde Deus fala pela “ausência” em ordem à “mani-
88
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
festação dos filhos de Deus”. Assim ficou expresso – tão bem! – na
Carta aos Romanos, cap. 8, 19: chamados à “participação nas dores
de parto” deste Universo que está a nascer.
A saída é, pois, um “nascer de novo” (Jo 3). E este “de novo”
nada tem a ver com “outra vez”. Mas significa “com novidade”. Para
uma realidade Nova, de uma nova forma.
2 . Concluindo:
Estas três saídas (os três níveis) integram-se e exigem-se umas
às outras. E são o grande desmascaramento duma cultura pós-moderna, actual, que pretende iludir a Realidade receitando-nos umas
mezinhas, mais ou menos baratas, que nos podem enganar sob a
aparência de bem.
O Êxodo (saída e regresso...), afinal, é Quaresma da vida – caminho Pascal! – o fim do Carnaval.
Logo o 1º nível de saída de si pela Espiritualidade desmascara a
pseudo-solução do “espiritismo” e da gestão das “energias” que o
supermercado New Age oferece, barato, como “paz”. A curto prazo
se percebe a alienação e a fuga. As energias cósmicas e os exercícios
respiratórios podem ser complementos, mas não alternativas. Não
substituem o amor participativo na dor do mundo; e a tranquilidade
desvinculante do outro e da guerra, não é Paz. Nem muito menos os
supostos contactos com os “espíritos” podem substituir o discernimento responsável, segundo o Espírito Santo.
Há que distinguir conceitos e experiências.
Não se nega a importância do bem-estar e do prazer. A tentação
(não-saída) é ficar por aí. Mas há que partir em busca da paz e da
felicidade. Porque a felicidade é uma luta, compromisso, de morte!
O 2º nível de saída, tira a máscara ao Individualismo de consumo
e consumista que a cultura New Age promove. Oferece uma “libertação” higiénica apresentada como uma “ética” de não pensar senão
no seu umbigo, de auto-promoção pelos valores que “eu acho” e me
convêm, para que cada um “tenha espaço” para fazer como quiser,
A saída: o Amor que dá a vida
89
usando o método pensado da “violência cirúrgica”... que não se
pode dizer que é mentira porque cada um tem a sua verdade.
A pessoa de Jesus Cristo desmascara completamente este caminho. A Ética da responsabilidade e do respeito não se contenta com
o “política e estatisticamente correcto”. Essa, sim, oferece uma saída
humanizante.
Mas, o caminho de Jesus inclui o Sacrifício no seu verdadeiro sentido que nos humaniza e torna o nosso modo de ver e de viver Eucarístico. Isto é, somos convidados a deixar a competição doente que leva
à violência e, para sair daí, tornar-nos “cordeiros” oferecidos.
O terceiro nível, o que aponta a saída global para toda a realidade, convida-nos a deixar o sonho mítico e paralizante de um Cosmos
acabado para entrar nele incarnando num processo de cosmogénese,
que vai redundar em cristogénese. E é essa Incarnação não desligada
da Criação e que se torna plena pela Ressurreição, que pode desmascarar as falsas esperanças que pretendem saciar o desejo de eternidade com a crença emocional nas Reencarnações.
Estas fazem que saem, mas não saem; não trazem o “Novo”, mas
o “Outra vez”! É perigoso perder o sentido da História, como se fizesse sentido acreditar num rio que corre, mas não desagua. O ciclo
mítico e vicioso do eterno retorno traz uma ilusão de saída. A angústia perante o compromisso e o risco é apaziguada pelo adiamento
indefinido.
A crença na Reencarnação em moldes modernos faz parte do
pacote da cultura “Nova Era” que oferece essa fantasia, mais descansativa que libertadora, e que evita o doloroso do compromisso, da
solidariedade e do juízo ou exame de consciência. Não quer passar
pela morte de amor.
A teoria das reencarnações assenta numa “redenção” – ou saída
– mecânica, mais ou menos “Kármica”, ao fim de tantas voltas sem
ter que escolher e decidir. Pode parecer fácil: felicidade predestinada
sem vínculos nem educação da liberdade.
Mas a dorida História de salvação não vai por aí. Percebe a presença
de Deus pelos gritos da Sua ausência e ouve um apelo ao compromisso
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
90
de amor para, em conjunto, irmos “saindo do próprio, amor, querer e
interesse” pelo Amor (entrega até ao fim) de Cristo, com Ele e Nele.
Parece poder-se ouvir dentro de nós: SAIAM! Sai, da tua terra, da
tua escravidão, do teu túmulo.
O mesmo grito de Deus, na voz do Espírito, na consciência e nos
acontecimentos: Lázaro, sai! Abraão, sai! Moisés, sai!
De quê? Donde? Para onde? Podemos ainda perguntar, resistindo.
O caminho do humano é o divino. Só o sacrifício é glorificante:
só o despojamento mostra mesmo quem somos; de Deus e para
Deus.
Sair é entrar, entrar em Deus, que é Amor. E é a entrada de Deus
no Mundo, a Eucaristia, que nos põe em estado de saída.
Concluindo mesmo: o segredo do amor – disse o P. Teilhard de
Chardin, numa homilia de casamento – tem três tempos: “centrar-se, descentrar-se, sobrecentrar-se”.
Ora estes tempos correspondem aos três momentos de libertação
sobre os quais reflectimos.
(1º) Centrar-se em si mesmo: Encontrar a paz na verdade consigo próprio, – quando fugimos, tantas vezes de ser quem somos e
de desatar os nossos nós interiores: ser eu próprio. (2º) Em seguida:
Centrar-se num igual a si próprio – morrer de amor! –, pôr o seu
centro de gravidade no outro. (3º) Para depois, a dois, se poderem
sobrecentrar num, maior do que eles!
Amar é transcender-se, sair de si para o outro. A entrega de cada
um arrasta os outros. A comunidade que surge torna-se Igreja que
se transcende a ela própria deixando-se guiar por Cristo e assim se
transfigura em Corpo Místico de Deus.
Centrar-se, descentrar-se e sobrecentrar-se.
Bibliografia
Inácio de Loiola, Exercícios Espirituais, AO, 1999, Braga.
René Girard, Je vois satan tomber comme l’éclair, Ed. Grasset, 1999.
González Faus, La humanidad nueva, Sal Terrae, 1984, Santander.
EU SOU A RESSURREIÇÃO E A VIDA
Luís Rocha e Melo, S.J.
Introdução
Descemos aos infernos no dia de ontem, para podermos subir aos
céus no dia de hoje. Não podia ser de outra maneira. Também Jesus
desceu aos infernos do sofrimento e da morte antes de ser elevado
aos céus na sua ressurreição. A tenebrosa descida é consequência do
pecado do mundo. Jesus é vítima dele, mas ao amar os seus até ao
extremo (Jo 13, 1), libertou-os desse mesmo pecado. Não foi o sofrimento nem a morte de Jesus quem trouxe a salvação aos homens,
mas o amor de Deus que, levado até ao fim, não podia salvar de
outra maneira. Jesus enfrentou a iniquidade, personificada nas autoridades religiosas do seu tempo, e pagou bem cara a ousadia divina.
É o amor de Deus assim manifestado quem liberta do pecado. O
dia de ontem foi tão oportuno quanto alguma corrente da cultura
contemporânea pretende desmistificar o pecado e lançar poeiras
sobre a distinção entre o bem e o mal. No seu compêndio de Teologia Espiritual, Saturnino Gamarra lamenta que muitos autores de
espiritualidade contemporânea omitam o tema do pecado nos seus
tratados. Estou de acordo com ele. Talvez o façam para não «chocar»
a sensibilidade dos contemporâneos que não gostam dessa palavra.
Mas o pecado é nome religioso do mal. Deus fica sentido quando
algum dos seus filhos faz mal a si mesmo ou aos seus irmãos. Haverá
pai ou mãe deste mundo que não sofra quando os filhos se maltratam uns aos outros? Se assim é, quanto mais o Pai do céu não fica
tocado e ferido no amor que tem por todos, quando os seus filhos se
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Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
odeiam e se matam, ou se autodestroem. Quando se perde o sentido
de Deus também se perde, naturalmente, o sentido do pecado. Mas
o mal está aí. O dia de ontem foi extremamente elucidativo sobre a
sua existência.
A raiz do mal está em todos nós. Para subir aos céus, é preciso que
o homem, identificado com o amor de Cristo que o leva a descer aos
infernos, deixe que morra o egoísmo (o contrário do amor – o pecado). Purificado no sangue do Cordeiro, pode então com Ele, subir
aos céus. Porque Ele está sentado à direita do Pai, vivo e presente no
meio de nós. Gostaria de começar pelo princípio.
Muita gente conhece bem um trocadilho de palavras que vem do
tempo de Santo Ireneu, do século segundo, e que a Igreja conserva
no depósito da sua fé. A afirmação é escandalosa à primeira vista:
«Deus fez-se homem para que o homem se faça Deus». Um trocadilho de palavras próprio de um estilo literário. Para além dele, a
afirmação de Santo Ireneu, devidamente interpretada, exprime um
ponto central e essencial da fé cristã. A sua interpretação é evidente,
apesar da aparente blasfémia de que o homem se faz Deus. Muito
perto das origens, a pouca distância no tempo da morte do último
apóstolo, o que este grande teólogo da Igreja primitiva queria dizer
é verdade tão simples quanto misteriosa: Deus fez-se homem para
que o homem seja divinizado, participante da natureza divina, na
sequência e como ponto final de um projecto de Aliança: Deus «teve
a bondade de nos dar também os mais preciosos e sublimes bens
prometidos, diz S. Pedro na segunda carta, a fim de que – por meio
deles – vos torneis participantes da natureza divina» (2Pe 1, 4). Deus
é amor e deseja comunicar aos homens a sua própria vida e ser um
só com eles. É próprio do amor fazer-se igual a quem ama – por isso
Deus se faz homem – e fazer com que a pessoa amada seja igual a
si. Jamais seremos iguais a Deus, mas seremos semelhantes, como
diz o livro do Génesis (Gn 1, 26) e repete o Novo Testamento, particularmente em S. João: «agora já somos filhos de Deus, mas não
se manifestou ainda o que havemos de ser. O que sabemos é que,
Eu sou a ressurreição e a vida
93
quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é» (1Jo 3, 2). Seremos deificados ou divinizados
por acção do próprio Deus. É processo que começa no baptismo,
se desenvolve e cresce na vida Igreja pela comunicação da graça, e
atingirá a plenitude quando a Deus aprouver. Aquilo a que chamamos graça não é verniz acrescentado por Deus à natureza humana: é
a vida de Deus em nós que transfigura ou diviniza toda a existência
(«somos transfigurados na sua própria imagem» – 1Cor 3, 18)). É o
que fica em nós da presença, da união e da acção comunicadora de
Deus. S. Paulo e S. João chamam filhos de Deus e seus herdeiros aos
que acolheram o Verbo feito carne e acreditaram nele. No coração
desses foi derramado o Espírito Santo criador, o amor e a vida de
Deus, que geram a nova criatura (Gl 4, 6); somos predestinados para
ser imagem idêntica à do Filho, Jesus Cristo (Rm 8, 29).
Desde o tempo dos Apóstolos se bateu a Igreja pela verdade fundamental da sua fé, contra variadas tendências teológicas que iam
surgindo: que Jesus Cristo é Deus verdadeiro e homem verdadeiro,
numa única pessoa, a do Verbo encarnado no seio da Virgem Maria.
A humanidade de Jesus, igual a nós em tudo excepto no pecado,
está divinizada pela presença do Verbo. Perante o mistério que não
pretendemos desvendar, conclui-se que a divinização do homem é
possível pelo poder de Deus, e que esse é o objectivo de Deus na
criação. Jesus Cristo aparece como figura ou imagem do homem
como Deus o pensa: membro da família trinitária, intimamente unido a si e a seu Filho e participante da sua vida a que S. João chama
«eterna». O Espírito Santo derramado vem tornar possível e real a
configuração de cada um a Jesus Cristo. O fim último da existência
da pessoa – podíamos dizê-lo no Princípio e Fundamento dos Exercícios – é o de que o homem reproduza a imagem do Filho, Jesus
Cristo, Deus verdadeiro e homem verdadeiro, na força criadora do
Espírito Santo que diviniza tudo o que é humano. É assim que o homem louva, reverencia e serve a seu Criador e Senhor, e é assim que
salva a sua alma, ao entrar responsavelmente na Aliança que Deus
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Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
estabelece com a casa de Israel, e em todo o seu projecto salvífico.
Ao comungar o corpo e o sangue de Cristo, dado em sua memória,
somos introduzidos na nova e eterna Aliança que terá consumação
definitiva na comunhão com o Cristo ressuscitado, sentado agora
à direita do Pai. «Vou revelar-vos um mistério, diz S. Paulo: nem
todos morreremos, mas todos seremos transformados; num instante,
num abrir e fechar de olhos… os mortos ressuscitarão incorruptíveis
e nós seremos transformados» (1 Cor 15, 51).
Podemos situar na afirmação de Santo Ireneu o essencial da fé
cristã que responde à questão fundamental que todo o ser humano,
consciente ou inconscientemente, se põe: que sentido tem a vida
que vivemos? Para onde caminhamos? Qual é o nosso destino? Que
significado encontramos nas decisões do presente, no meio de tantas
coisas belas e no meio de todos os absurdos que a vida oferece? Para
que serve a vida?
1. Diálogo com o mundo
Estou profundamente convencido de que, no depósito da
sua fé, a Igreja tem resposta a estas questões também na cultura
contemporânea, embora toda a resposta nos introduza no mundo
do mistério. Como parêntesis, acrescento que o mistério, em linguagem cristã, é um projecto de amor, «escondido ao longo das
gerações e que agora Deus manifestou aos seus santos. Deus quis
dar-lhes a conhecer a imensa riqueza da glória deste mistério entre
os gentios: Cristo entre vós, a esperança da glória» (Cl 1, 25-27). O
mistério de Deus revela-se progressivamente ao longo da história,
e vai-se compreendendo pouco a pouco e tanto quanto o Espírito
Santo no-lo dá a entender. Santo Agostinho diria tratar-se de uma
realidade que se entende mas nunca acaba de ser entendida, por
ser inesgotável. A que já é conhecida compara-se à gota de água
no meio do oceano. Gota de água que pode crescer; quanto mais
Eu sou a ressurreição e a vida
95
cresce, maior é a imensidão do oceano que se intui no coração, mas
nunca se abarca.
A própria vida humana pertence ao mistério. A pessoa, a relação de amor ou de amizade entendem-se, mas o seu entendimento
também é inesgotável. Há mistério onde houver uma relação de
amor. Jesus Cristo vem precisamente revelar (tirar o véu) o mistério de Deus e, ao fazê-lo, desvenda simultaneamente o mistério do
homem. Um dos pontos misteriosos é o do sentido da vida. Estou
convencido, repito-me, de que a Igreja tem resposta para ele, não
uma resposta clara e evidente como se se tratasse de questão científica – porque o mistério pertence a outra ordem – mas também me
parece que ainda a não soube transmitir ao mundo contemporâneo.
Não basta repetir fórmulas, por mais verdadeiras que sejam, nem
mesmo a de Santo Ireneu, para anunciar a Boa-Nova, mas de repensar todo um modo de ser e de estar na vida que seja transparência
de sentido, compreensível na cultura contemporânea. Num mundo
em transformação contínua, onde critérios e valores mudaram radicalmente, onde as instituições que os sustentavam são consideradas
entrave ao progresso da humanidade e são, por isso, postas a ridículo
e rejeitadas, como é que transparece na Igreja questão tão importante como a do sentido e a do significado da existência humana? Será
Deus um rival da liberdade e do progresso, ou será o maior dos seus
promotores?
Não tenho de forma alguma a pretensão de trazer no bolso uma
varinha mágica com respostas para tudo. Mas também não me resigno a dizer simplesmente «não sei»; a Igreja não pode resignar-se
a dizer «não sabemos», mas também não pode apresentar-se diante
do mundo como detentora da verdade absoluta e rejeitar à partida
toda a novidade de pensamento e de propostas da cultura actual.
Temos de separar as águas, evidentemente, sob pena de entrarmos
em confusão que não é boa para ninguém, mas também temos de
entrar em diálogo com a cultura para a entendermos por dentro, e a
partir dela, tentar anunciar a Boa-Nova de Jesus Cristo. Entendendo
como vivem os nossos contemporâneos e os porquês de uma rejeição
96
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
sistemática das instituições e dos valores tradicionais, precisamos de
encontrar formas de viver e linguagens em que se torne compreensível o mistério de Cristo, portador de sentido. A Igreja não pode
entrincheirar-se atrás das suas muralhas, nem sair delas com espírito
de cruzada. Assim faz o documento, já comentado nestes dias, do
Conselho Pontifício da Cultura, Jesus Cristo, Portador de Água Viva,
uma reflexão cristã sobre a Nova Era. Também vale aqui a máxima
de Santo Inácio: «entrar com a deles para sair com a nossa» ou o que
aconselha no pressuposto do Exercícios: «Todo o bom cristão deve
estar mais pronto a salvar a proposição do próximo do que a condená-la» (EE 21). Para isso, precisamos de conhecer qual é a deles ou
qual é a proposição do próximo. Estamos aqui, em Fátima, não para
levar respostas acabadas para casa, mas para tentarmos humildemente, dar um passo em frente. Diálogo com o mundo não significa
pactuar com os seus critérios. Jesus Cristro foi sinal de contradição
e pedra de escândalo, ao desmascarar a mentira e a injustiça dos homens do seu tempo, e ao anunciar um modo de ser e de estar na vida
que se opunha aos costumes dos seus contemporâneos. Por causa
disso é que foi rejeitado e crucificado. Não nos admiremos se a Igreja
também o for. Dialogar não significa baixar a fasquia do Egangelho
para evitar o conflito. Não atraiçoemos a história dos mártires que
fala, por si, desse permanente conflito entre a linguagem de Deus e
a do mundo.
2. A Ressurreição de Cristo e a nossa
Qualquer que seja a resposta cristã aos desafios do mundo contemporâneo, ela terá de ser fundamentada na ressurreição de Cristo.
Se a afirmação de Santo Ireneu pertence à essencia da mensagem
cristã, a ressurreição do homem Jesus está na raiz de todo o mistério.
Seria desnecessário citar um texto de S. Paulo conhecido de toda a
gente: «Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé e somos os mais desgraçados dos homens» (1 Cor 15, 17-19)). Teríamos investido toda
a nossa esperança no vazio da morte. A Igreja estaria fundamentada
Eu sou a ressurreição e a vida
97
em mentira, insustentável ao longo dos séculos. O Espírito Santo
seria um fantasma, e o dinamismo da nova criação uma simples
energia que a vida contém. «Mas se Cristo ressuscitou, como dizem
por aí que não há ressurreição dos mortos?» ( 1 Cor 15, 12), pergunta ainda S. Paulo.
O essencial do essencial da fé cristã não é o mais fácil de entender
nem de viver. Tenho verificado, na experiência pastoral que o Senhor me vai dando, que não é difícil para os que acreditam em Deus,
como ser pessoal e distinto do universo, reconhecê-lo como autor
da criação. Ela está aí diante dos nossos olhos, pertencemos a ela. A
ciência, apesar dos passos gigantescos que deu nas últimas décadas,
não responde até ao fim sobre as origens do mundo e menos ainda
sobre o significado da vida. É relativamente fácil para o crente afirmar
que os homens e o mundo são criados por Deus. Na mesma experiência pastoral, verifico maior dificuldade também nalguns crentes,
mesmo cristãos e católicos, em entender a ressurreição de Cristo e a
nossa. A razão do problema é óbvia: a criação está diante dos nossos
olhos, a ressurreição não. Nunca vimos o Cristo ressuscitado nem a
ressurreição de nenhum morto. Não temos conceitos para entender
o que está fora do espaço e do tempo; a imaginação e o pensamento
discursivo só nos atrapalham quando tentamos desvendar o «além».
Muita gente quer saber por força o que vai acontecer no futuro e,
mais ainda, depois da morte. Não falta quem se aproxime de adivinhos, cartomantes, bruxos e astrólogos, para resolver a inquietação
do amanhã. Respeitemos a inquietação dos homens, mas é bom citar
Jesus Cristo, no sermão da montanha: «Não vos inquieteis com o
que haveis de comer… o vosso Pai celeste bem sabe que tendes necessidade de tudo isso… Não vos preocupeis, portanto, com o dia
de amanhã, pois o dia de amanhã já terá as suas preocupações. Basta
a cada dia o seu problema» (Mt 6, 25-34). Vivei o presente, que o
futuro a Deus pertence.
98
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
Permitam-me dizer, apenas como abordagem cautelosa e humilde do mistério, que a ressurreição dos mortos, a de Jesus Cristo e a
nossa, é uma segunda criação; é uma nova criação. O poder de Deus
que faz do nada todas as coisas, também pode transformar o nada
da morte num ser vivo completo. Quanto a Deus e ao seu poder,
que é poder de amor criador, é pouca a diferença entre a criação e
a ressurreição. Quanto a nós, sim, há diferenças muito grandes: a
primeira é que, se nem Deus nem os nossos pais nos perguntaram se
queríamos vir ao mundo – a nossa liberdade não foi tida nem achada
na criação – Deus pergunta-nos agora se queremos ser nova criação e
se queremos compartilhar com Ele a sua vida – somos inteiramente
responsáveis pela resposta que damos. O elemento liberdade, que
Deus respeita infinitamente, é essencial na nova criação ou na ressurreição. É desejo apaixonado de Deus dá-la gratuitamente a todos os
homens e mulheres do mundo, mas depende da liberdade humana
acolhê-la, aceitá-la e acatá-la e, para isso, entrar deliberadamente na
sua lógica de amor, a que a Escritura chama Aliança.
3. Uma transfiguração da existência
E como é que os mortos ressuscitam? Pergunta S. Paulo. A sua
resposta deixa-nos mais ou menos na mesma, porque nem S. Paulo tem palavras humanas que expliquem o que está para além do
tempo: «semeado corruptível, o corpo é ressuscitado incorruptível;
semeado na desonra, é ressuscitado na glória; semeado na fraqueza,
é ressuscitado cheio de força; semeado corpo terreno, é ressuscitado
corpo espiritual. Se há um corpo terreno, também há um corpo
espiritual. Semeia-se na corrupção e ressuscita-se na incorrupção»
(1 Cor 15, 42-45). Desta «explicação» de S. Paulo, podemos apenas concluir que a ressurreição é uma transfiguração da existência
para outro modo de ser, o de Deus. Não apenas no fim dos tempos.
Ela já começou no dia do baptismo, continuou, continua e há-de
continuar em cada dia na vida de quem aderiu a Jesus Cristo, até à
transfiguração radical da corrupção para a incorrupção. A morte é
Eu sou a ressurreição e a vida
99
passagem. A Páscoa de Jesus é-nos comunicada na Eucaristia, sempre que a celebramos, e será vivida em plenitude no dia em que o
Senhor voltar. O dinamismo da vida na primeira criação também
é de transfiguração: a pessoa adulta não é a criança de outrora que
aumentou em peso e volume; houve transfiguração no seu ser originada por energia a que chamamos simplesmente vida. O idoso de 90
anos é a mesma pessoa que, 90 anos atrás, era criança recém-nascida,
mas está irreconhecível. Não é outra pessoa; é a mesma. Não parece,
porque foi transfigurada pela energia da vida.
Animais e plantas também vivem, nascem, crescem e morrem; «o
grão de mostarda é a mais pequena das sementes; mas depois de crescer, torna-se a maior planta do horto e transforma-se numa árvore,
a ponto de virem as aves do céu abrigar-se nos seus ramos» (Mt 13,
32). A natureza humana ou cósmica é obra do mesmo Deus que envia seu Filho para que todos tenham vida e a tenham em abundância
(Jo 10, 10). A diferença está em que a natureza transfigurada pelo
seu próprio dinamismo está diferente, mas continua natureza. O
homem transfigurado pela acção criadora do Espírito Santo é divinizado, e assemelha-se, por isso, ao Cristo, Deus e homem verdadeiro.
Configurado com Jesus Cristo, não deixa de ser homem, mas é agora
mais homem por estar divinizado. A divinização do homem operada
pela graça arrasta-o também para uma humanização cada vez mais
perfeita. Tendo em conta o poder do amor criador de Deus, será
difícil entender que a morte seja a transfiguração final que leva o
homem à plenitude? «Todos nós, diz S. Paulo, que com o rosto descoberto, reflectimos a glória do Senhor, somos transfigurados na sua
própria imagem, de glória em glória, pelo Senhor que é Espírito» (2
Cor 3, 18). Pessoa cristã e piedosa perguntava-me um dia se o Cristo
ressuscitado continuava a ser homem. Não dei um grito nem um
salto, por respeito para com a pessoa, e respondi-lhe com serenidade,
da maneira mais amável que me foi possível: Claro que sim; na ressurreição é que Jesus Cristo atinge a plenitude do seu ser de homem,
porque totalmente divinizado, como Deus o pensa. A ressurreição, a
de Cristo e a nossa, não é volatilização da pessoa nem a sua transfor-
100
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
mação em anjo. É divinização do homem que o torna imagem e semelhança de Deus. Não esqueçamos que há um homem, por dom e
por graça, no seio da Santíssima Trindade: chama-se Jesus de Nazaré
que, no mundo, pouco antes de partir, formulou ao Pai esta oração,
repassada de ternura que só Deus pode ter: «Pai, quero que onde Eu
estiver estejam também comigo aqueles que Tu me confiaste, para
que contemplem a minha glória, a glória que me deste, por me teres
amado antes da criação do mundo» (Jo 17, 24).
Deus é amor e o seu amor é eterno. «Ele (que) nos escolheu antes
da fundação do mundo para sermos santos e irrepreensíveis na sua
presença… e nos predestinou para sermos adoptados como seus filhos por meio de Jesus Cristo, de acordo com o beneplácito da sua
vontade» (Ef 1, 4-5), amar-nos-á apenas durante cem anos que uma
pessoa viva? Se Deus ama com amor eterno – não tem outro – a
ressurreição pertence à lógica do seu amor criador. Se o homem voltasse ao nada na morte, o amor eterno de Deus entraria em profunda
contradição. Deus não ama o nada e não deixa de amar o que existe;
ao amar cria. Se o homem morre, Deus o cria de novo, o mesmo,
mas noutro modo de existência, o Seu, divino: essa é a ressurreição.
Muitas pesoas se interrogam sobre o «além» e querem respostas,
naturalmente, com linguagem humana inteligível. Pretensão inútil.
Não temos conceitos para expressar o que não passa pelos sentidos;
não podemos dizer mais do que S. Paulo sobre o «como» da ressurreição: «semeia-se na corrupção e ressuscita-se na incorrupção».
Querer imaginar e definir em termos claros e distintos o «como» da
ressurreição é tentação contra a fé. Quem a não vive ou a vive de
modo rudimentar, pouco esclarecido, é natural que se aflija demasiado com o dia de amanhã e, mais ainda, com o chamado «além».
Permitam-me que continue, com linguagem talvez chocante para
alguns ouvidos: não existe nenhum «além». O que existe é a criação
inteira que «se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus… Bem sabemos como toda a criação geme
Eu sou a ressurreição e a vida
101
e sofre as dores da maternidade até ao presente. Não só ela. Também
nós, que possuímos as primícias do Espírito, nós próprios gememos
no nosso íntimo, aguardando a adopção filial, a libertação do nosso
corpo. De facto, foi na esperança que fomos salvos. Ora uma esperança naquilo que se vê não é esperança. Quem é que vai esperar
aquilo que já está a ver? Mas, se é o que não vemos que esperamos,
então é com paciência que o temos de aguardar».(Rm 8, 19-26). O
«além» é aquilo que não se vê, mas não é outro mundo. É mundo
«outro», transfigurado. Já estamos ressuscitados, mas ainda o não
sabemos. Já estamos no céu, mas ainda o não vemos. Segundo Jacques Guillet e Jean-Marie Fenasse, que escrevem no Vocabulário de
Teologia Bíblica, a palavra «céu» significa simplesmente a morada de
Deus. Quando Jesus fala do céu, não fala dele como de uma realidade maravilhosa e longínqua, mas como de um mundo que é o seu e
que é para ele a realidade mais profunda e mais séria da vida que nos
pertence. É Ele quem possui os segredos do Reino dos Céus1. Onde
será essa morada de Deus? Temos resposta em S. João: «Se alguém
me tem amor, há-de guardar a minha palavra; e o meu Pai o amará, e
Nós viremos a ele e nele faremos morada» (Jo 14, 23). Fundamentada nestas afirmações, Isabel da Santíssima Trindade gostava de dizer:
«É no céu da minha alma que gosto de o contemplar». Onde será
então o céu, senão no íntimo do mais íntimo da nossa alma? «Por
agora, diz S. Paulo, vemo-lo como num espelho,de maneira confusa;
depois, veremos face a face» (1 Cor 13, 12). Já estamos no céu que
ainda não vemos; havia a convicção em Israel de que não se podia
ver a Deus sem morrer. Os profetas tinham razão: não se pode ver
a Deus sem uma transfiguração radical da existência, que há-de ser
semelhante ao seu próprio modo de ser. Já estamos divinizados, mas
ainda não totalmente.
A tentação de querer saber tudo sobre o além provém de uma falta de confiança em Deus que pertence à essência da fé. A inquietação
1
VTB, 2ª ed., Ciel, Cerf, Paris, 1970, p. 166-167
102
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
pelo «além», ou mesmo pelo futuro, tem origem na necessidade de
segurança no presente; é preciso controlar os acontecimentos para se
sentir seguro e feliz. O que não se vê nem se conhece não se controla. Tentação compreensível: todos desejam controlar a própria vida,
no presente e no futuro; a do presente controla-se, mas pouco; se a
do futuro não for controlável, o presente fica ainda mais inseguro.
Quem não acredita em Deus ou tem dele uma imagem deteriorada
sente nesessidade de conhecer o amanhã para sua segurança. Daí a
importância que hoje se dá à magia, ao espiritismo, ao ocultismo, à
parapsicologia e aos médiuns.
Entre os crentes também aparece uma subtil tentação: a de
controlar a Deus e a sua relação com Ele. «Nas vossas orações, não
sejais como os gentios, que usam de vãs repetições, porque pensam
que, por muito falarem, serão atendidos» (Mt 6, 7). Pensam poder
controlar a Deus e trazê-lo à sua vontade. Ainda não entenderam o
sermão da montanha: para viver a fé cristã e encontrar o pleno sentido da existência, é preciso deixar de fundamentar a felicidade nas
seguranças do mundo, e colocá-la em Deus somente. Não é preciso
deitá-las fora. É preciso não as tomar como fundamento de felicidade, a não ser de forma parcial e precária. Quem não sabe ou não
acredita que «nem um cabelo da cabeça lhe cairá sem a permissão
do Pai celeste» (Lc 12, 7), inquieta-se com o presente e mais ainda
com o futuro; é normal a tentação de querer saber agora o que vai
acontecer amanhã; frequentam-se os adivinhos, na doce ilusão de
que eles o sabem. Acredita-se neles, porque a insegurança torna-se
insuportável. Não, ninguém sabe nem pode saber o que depende da
liberdade, nas decisões do amanhã, nem a nível pessoal, nem a nível
da comunidade humana. Podem-se prever fenómenos da natureza, a
partir das suas leis, pode-se suspeitar o que vai acontecer amanhã se
o rumo do presente não se modificar, mas ninguém pode adivinhar
uma decisão livre. «Não vos inquieteis com o dia de amanhã, porque o Pai do céu cuida de vós» (Mt 6, 25-34). É com paciência que
devemos aguardar a libertação. Homem pobre, humilde e confiante
prevê e provê o que pode acontecer amanhã, mas não se inquieta por
Eu sou a ressurreição e a vida
103
aquilo que não sabe. Sabe apenas uma coisa: que se Deus alimenta as
aves do céu que não semeiam nem ceifam, e veste tão bem os lírios
do campo que não trabalham nem fiam, como não fará muito mais
por vós, homens de pouca fé? (Mt 6, 25-30).
4. Purificação do amor ou reincarnação
Somos chamados a amar como Deus ama. A transformação progressiva, operada pelo Espírito Santo com a colaboração livre do
homem, há-de ser passagem contínua do amor-próprio ao amor a
Deus e ao próximo. Nascemos egocêntricos. Perante a alternativa
de pactuar com o egocentrismo e viver em direcção contrária ao
amor, temos um desafio que Jesus Cristo e os profetas anteriores
vieram lançar: renunciar à cumplicidade com o egoísmo e deixar
que o amor verdadeiro nasça e cresça por acção do Espírito Santo,
e pela adesão determinada ao caminho apontado por Jesus. Nesse
percurso, que ocupa a vida inteira, tem de haver uma purificação
do amor. Segundo os mestres da espiritualidade, há uma purificação
activa que põe à prova a capacidade de eleger o amor por decisão
deliberada da vontade humana, e uma purificação passiva operada
por Deus na alma dos que lhe são fiéis. É possível ao homem rejeitar o mal e escolher o bem; é possível optar pelo bem maior e mais
universal e renunciar, para isso, a muita coisa de menos valor. Mas
está para além das forças humanas a eliminação completa da raiz
egocêntrica com que se nasce. A partir de certa altura do percurso,
o homem espiritual sente na pele a incapacidade radical para amar
como Deus ama. Mas a Deus nada é impossível, diz o Evangelho,
quando o objectivo é o amor. Jesus Cristo pode destruir em nós a
raiz do mal, se lhe dermos autorização para isso. Destruiu o pecado
com a sua morte na cruz, diz a nossa fé. O pecado e a sua raiz estão
dentro do ser humano: aí tem de ser destruído até ao último vestígio.
«Agora, alegro-me nos sofrimentos que suporto por vós e completo
na minha carne o que falta às tribulações de Cristo, pelo seu Corpo,
que é a Igreja» (Cl 1, 24). A paixão de Cristo vivida dia a dia é agente
104
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
de purificação pessoal e colectiva. O desafio de Jesus é que o homem
persevere sem desfalecer, e lhe dê o direito de entrar e de realizar a
obra que o Pai lhe confiou, até que o homem novo esteja completo.
A purificação terá de ser completa também, porque ninguém entra
em Deus, na plenitude da ressurreição, se não isento de toda a impureza. Só os puros de coração verão a Deus. Se ao chegar o momento
final da vida presente ainda existir egoísmo no coração humano,
Deus terá maneira de o purificar. Também não sabemos como. A
tradição chamou purgatório a esse complemento de purificação que
ainda falta. Tudo o que dissermos sobre ele serão puras conjecturas,
a não ser que já é estado de salvação irreversível e complemento de
purificação. Posso adiantar, quando muito, uma hipótese de trabalho e de reflexão: a imagem do fogo aparece na Bíblia tanto como
metáfora do amor de Deus que consome e abrasa, como de punição intrínseca ao pecado. Baste-nos recordar as línguas de fogo que
descem sobre os Apóstolos e Nossa Senhora no dia de Pentecostes,
a sarça de Moisés que ardia e não se consumia (Ex 3, 2), a coluna
de fogo que indicava a Israel o caminho a percorrer durante a noite
(Ex 14, 24; 40, 38; 24, 17), ou ainda S. Paulo que diz na carta aos
Hebreus: «o nosso Deus é um fogo abrasador» (Heb 12, 29). Também é imagem de perdição e de purificação. Do fogo do purgatório
não se fala, mas fala-se de purificação pelo fogo. Como hipótese para
desvendar o que é ignorância para nós, não será o próprio amor de
Deus que purifica quem chega à sua presença ainda não purificado?
Pessoa que leva consigo restos, muitos ou poucos, de egoísmo, não
pode ainda ver a Deus como Ele é. Não será esse primeiro encontro fogo do amor abrasador que purifica? Como pessoa em quarto
escuro que visse de repente um holofote em cima dos olhos? São
apenas conjecturas daquilo que não sabemos. Só não podemos negar
a necessidade absoluta de purificação para se entrar em Deus, amor
total, isento da mais pequena sombra de egoísmo. Também sabemos
que ela começa aqui, a partir do momento em que o baptizado toma
consciência da sua necessidade. Como é que ela termina, antes do
face a face com Deus, Deus o saberá.
Eu sou a ressurreição e a vida
105
A afirmação de que este ser humano e limitado não é capaz dessa
purificação numa só vida, por longa que seja, é inteiramente verdadeira. Verdadeira sobretudo, se ela é conseguida apenas pelo esforço
da vontade, sem qualquer interferência de Deus. O que não é verdade, na revelação cristã, é que Deus não interfira para purificar tudo
o que é impuro. Escritura e Tradição falam-nos com frequência do
lado passivo da purificação, que consiste em acolher, simplesmente,
o que Deus faz. Também aqui se aplica a afirmação de Jesus: «aos
homens é impossível; mas a Deus nada é impossível» (Mc 19, 26).
Pode purificar até em vida curta, como aconteceu a santos que morreram em tenra idade, já que a purificação é o lado oculto mas indispensável do amor. A purificação do pecado levada até ao fim para
se «entrar no gozo do Senhor» (Mt 25, 21) é verdade de fé revelada.
Chame-se-lhe purgatório ou via purgativa, ou passagem pelo deserto, que começa neste mundo e é levada até ao fim, a sua necessidade
é indiscutível porque ainda não somos amor puro: somos mistura de
pureza e de impureza. Mas não se entra na plenitude da ressurreição
senão em amor total como o de Deus.
Na vida e espiritualidade budistas, parte-se do princípio de que
não há qualquer interferência de Deus na vida dos homens. Buda
não era ateu, mas era-lhe era indiferente a questão de Deus. O importante para ele era que o homem se liberte do sofrimento presente.
Para isso, precisa de controlar e dominar os sentimentos, emoções,
paixões, prazeres e tudo o mais que seja fonte de inquietação e sofrimento. Impõe-se uma ascese implacável. A meditação transcendental que identifica o homem com o todo ou o Uno ajuda à quietude
interior. Progressivamente, o budista vai adquirindo maior perfeição e o seu objectivo é o de chegar ao nível do nirvana, estado de
total quietude onde o homem, absorto no Uno do universo, é inteiramente feliz. Limitado, no entanto, às suas forças naturais, é provável que não consiga chegar a esse estado no presente, mesmo que
tenha vida longa. Se assim for, precisa de reincarnar e viver segunda,
terceira vida, ou quantas forem precisas, até chegar à plenitude no
106
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
nirvana. Nesta perspectiva, a reincarnação faz sentido, embora as
questões que se levantem contra ela sejam pertinentes. Não os censuremos por não saberem explicar tudo o que vivem porque a nós,
cristãos, acontece o mesmo. Os budistas crêem e entregam-se aos
mestres que conduzem os discípulos pelos ensinamentos de Buda,
repensado e actualizado nos tempos de hoje. O budismo a sério é
praticado hoje quase apenas no Tibete. O budismo tem coerência,
tem um caminho, tem aspectos maravilhosos, alguns parecidos com
os cristãos.
Admiramos e veneramos os monges tibetanos que renunciam a
todos os prazeres do mundo, e entregam a vida inteira na procura da
felicidade. O que observamos com inquietação é que se misture, cá
pelo ocidente, cristianismo e reincarnação. Dalai Lama compreendeu
perfeitamente a impossibilidade dessa mistura quando aconselhou
os cristãos, há pouco tempo, numa entrevista, a que sejam cristãos,
e deixem o budismo para os monges tibetanos. Por duas razões, em
meu entender, embora Dalai Lama não tenha pensado na primeira:
a revelação cristã contém uma promessa feita por Deus, como cláusula da Aliança: a terra prometida onde corre o leite e o mel é figura
da ressurreição como ponto de chegada. Conduzido por Moisés,
Israel foi libertado do Egipto pelo poder de Deus e purificado na
longa travessia do deserto, antes de entrar na Terra Prometida. Não
precisou de segunda viagem. A cláusula da Nova Aliança no sangue
de Cristo também não é uma segunda vida neste mundo: «Eu sou a
Ressurreição e a Vida. Quem crê em mim, mesmo que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim não morrerá para
sempre»; «a vontade daquele que me enviou é esta: que Eu não perca
nenhum daqueles que Ele me deu, mas o ressuscite no último dia.
Esta é, pois, a vontade do meu Pai: que todo aquele que vê o Filho e
nele crê tenha a vida eterna; e Eu o ressuscitarei no último dia». (Jo
6, 39; 11, 25). É no mistério da colaboração entre a graça e a liberdade, entre a acção de Deus e a resposta do homem que se desenrola o
percurso da vida, à imagem daquele que é a ressurreição e a vida. Se
somos predestinados para reproduzir a imagem de Cristo por acção
Eu sou a ressurreição e a vida
107
do Espírito Santo, também somos predestinados para participar na
sua ressurreição e na vida eterna, que é a vida de Deus. Não consta
que Jesus Cristo tenha reincarnado. Esta é a primeira razão em que
Dalai Lama certamente não pensou.
A segunda parece-me ser outra em que ele certamente pensou,
embora a não tenha dito desta maneira: não se brinca ao budismo,
como também não se brinca ao cristianismo. O budismo tomado a
sério tem coerência, e supõe uma filosofia e uma ascese que não se
compadecem com a confusão entre liberdade e a libertinagem, a realização da pessoa na procura da felicidade e a satisfação sistemática
de tudo o que é agradável.
Insatifeitas com as instituições tradicionais que representam a era
dos peixes, muitas pessoas procuram o sentido para a vida por outros
caminhos, e deixaram-se fascinar pelas espiritualidades do oriente.
Não é novidade na Europa nem nos Estados Unidos. O ocidente
pode e deve aprender muita coisa no diálogo com outras culturas.
Mas não se iluda ao pretender misturar a água e o azeite. O ecletismo, ou o aproveitamento de tudo o que é bom das variadas religiões
ou culturas, pode ter uma consequência nefasta: cair-se no vago, na
indefinição, em nebulosa onde tudo é bom menos o sofrimento;
acabará por negar a objectividade das coisas e viver-se em subjectivismo ou individualismo, incapaz de construir humanidade melhor,
mais justa e mais fraterna. Ao entrar-se na era do aquário, perdeu-se
o sentido de Deus como Transcendente e caiu-se na ilusão de O
identificar com o cosmos. A libertação do homem consiste em descobrir a centelha divina que há dentro de si e sentir-se identificado
com o Todo. Uma indevida autodeificação pode confundir-se com
a divinização de que falava Santo Ireneu.
Termino como comecei: o homem é divinizado por acção de
Deus, o totalmente Outro, transcendente e imanente a todas as criaturas, em especial ao homem que transforma em templo (S. Paulo)
ou em morada (S. João) para habitação Sua. O homem é divinizado
mas não endeusado. Com raiz etimológica comum, as duas palavras
108
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
significam realidades opostas e inconciliáveis: o homem é divinizado
por acção de Deus; mas é endeusado por si próprio. A cultura da nova
era é de tipo panteísta, que proclama a unidade do universo, onde
Deus se identifica com o todo, ou com o uno, leva a formas gnósticas e pelagianas de pensamento. A salvação de cada um, a superação
do sofrimento e a libertação dos condicionamentos humanos vem
da descoberta progressiva do lado divino que existe na natureza, e da
identificação da pessoa com o uno cósmico e universal. Não há graça
nem interferência de Deus; há esforço humano ajudado pela meditação transcendental, pela astrologia, pela ciência, em particular pelas
ciências humanas como a psicanálise e a psicoterapia, mas também
pela ecologia, a fisioterapia e por tudo o que conduza à harmonia do
homem consigo mesmo e com o universo. Recordo-me de uma imagem de revista americana, onde aparecia a Shirly Mc’Laine de braços
abertos e levantados, em frente da imensidão do mar que exclamava
com ar extasiado: «I am God». Tinha-se libertado de todos os tabus,
de todas as tradições ou instituições que travam o crescimento, e acabava de descobrir que era Deus. Uma rica aparência de bem, dado
que Santo Ireneu também diz que o homem se faz Deus. Proposta
sedutora e aliciante que favorece a liberdade e oferece a felicidade a
toda a gente. Há, no entanto, uma serpente escondida com o rabo
de fora: posso ser divinizado pelo Deus transcendente que se fez homem. Mas não posso ser Deus com o meu esforço e com as minhas
técnicas. O panteísmo que se esconde por trás desta corrente é uma
forma benigna e disfarçada de ateísmo. Deus que não se distinga do
homem nem do universo não é Deus nenhum. O todo e o uno são
somatório de partes. Por mais voltas que se dêem às palavras e por
mais sedutora que seja a proposta de felicidade, a cultura New Age
tem aparências de bem. Não queria contradizer-me: é importante
o diálogo com os nossos contemporâneos e não devemos sair das
nossas muralhas com espírito de cruzada. Mas separemos as águas e
saibamos discernir o «anjo mau que se transforma por vezes em anjo
de luz».
Eu sou a ressurreição e a vida
109
Bibliografia
Conseil pontifical de la culture, Conseil pontifical pour le dialogue interreligieux, Jésus-christ le porteur d’eau vive, Une réflexion chrétienne sur le “Nouvel
Âge”.
THOMAS, Pascal, Reencarnação, sim ou não, A.O., Braga, 1997.
VARILLON, François, Joie de Croire, joie de vivre, Le Centurion, Paris,
1981
DALMAIS, Irénné-Henri, Pâques, em DSAM, T. XII, col. 171-181.
DHAR, Sachit, Budismo, em Eciclopédia Verbo, T. X, col 447-453.
FENASSE, Jean Marie e GUILLET, Jacques, Ciel, em VTB.
NÓS ESPERÁVAMOS QUE... Lc 24, 21
Dra. Maria Engrácia Leandro
A esperança (...) seria a maior das forças humanas
se o desespero não existisse.
Balzac
Esperança e desilusão
Seguindo a terminologia do dicionário Grand Robert (2001),
“a esperança é um sentimento que faz antever como provável a realização do que se deseja”. Daí que implique segurança, confiança,
convicção, crença e expectativa. Quando tal não acontece, normalmente, aparece a desilusão, a dúvida, o desânimo e o desespero, assim como se verifica nesta passagem do Evangelho de Lucas, pondo
em acção a cena do reencontro dos discípulos de Emaús com Jesus
Cristo ressuscitado.
Quanto aos primeiros, trata-se de duas pessoas em busca de entendimento para um fenómeno que escapa à sua compreensão mais
imediata. À partida, parece que tudo aquilo em que acreditavam
e lhes garantia segurança se desmorona a seus pés. E isto por duas
razões fundamentais. Uma tem a ver com a condenação e crucificação de Jesus pelas autoridades judaicas e a sua morte, o que lhes faz
questionar os ensinamentos que d’Ele tinham recebido. Confrontados com esta realidade, estão confusos perante o desenrolar daquilo
que, humana e socialmente, observam e vivem. Falta-lhes algo que
continue a justificar os seus projectos e aventura. A outra, está associada ao facto de terem sido passados três dias, após a condenação
112
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
de Jesus na cruz, e Deus parece não ter vindo intervir em favor do
seu profeta. “Verdade é que algumas mulheres do nosso grupo, nos
deixaram perturbados, porque foram ao sepulcro, de madrugada,
e não Lhe achando o corpo, vieram dizer que lhes apareceram uns
anjos que afirmavam que Ele vivia “ (Lc, 24,22). Mesmo assim, as
dúvidas, uma admiração algo desiludida, a contradição entre o que
esperavam e a verdade dos factos que constatavam continuavam a
predominar nas suas atitudes e comportamentos.
Está-se já, aqui, perante uma consequência expressiva da mudança de rumo dos acontecimentos em que tinham posto toda a
sua esperança. É, então, que Jesus, vindo ao seu encontro, falando
com eles e interrogando-os acerca das suas angústias, mas fazendo-se
passar por um ignorante sobre um fenómeno conhecido de toda a
gente, parece aumentar ainda o seu desespero e estupefacção, ao que
eles responderam dizendo “Tu és o único forasteiro em Jerusalém
a ignorar o que lá se passou nestes dias!” (Lc 24, 18). Contudo, o
estrangeiro peregrino, vendo que continuam tristes, acabrunhados e
caminhantes sem esperança, dialoga com eles fazendo apelo ao ensino das Escrituras que antes lhes havia transmitido. Simultaneamente, incita-os a apreenderem de outro modo os acontecimentos que
eram para eles sinal de grande preocupação, o que lhes propicia uma
maior abertura mental e afectiva, parecendo, no entanto, continuar,
ainda, ofuscados perante o dilema em que se encontram mergulhados. Apesar da sensação que as palavras do caminhante desconhecido lhes ia causando, é apenas na partilha da refeição e na “Fracção
do pão”, que se faz luz na sua mente e no seu coração, ou seja, é na
confrontação com a própria realidade palpável e que lhes é sobejamente conhecida, que Jesus ressuscitado se lhes dá a reconhecer na
sua natureza divina e humana. Deste modo, dá azo a que deixem de
ser pessoas desiludidas, mas antes com esperança redobrada.
Compreende-se, então, que para chegarem a esta situação tivessem de ser confrontados com uma realidade que lhes era familiar,
quando afinal, antes disso, eram pessoas cheias de dúvidas. Começam aqui as dificuldades. Para estes homens, não basta conhecerem
Nós esperávamos que...
113
teoricamente as escrituras para acreditarem e terem esperança. Foi
necessária a intervenção do factual, a reactualização do que tinham
vivido na última Ceia, para que os seus olhos se abrissem, compreendessem o que se lhes deparava e pudessem voltar a reconhecer
Jesus e a recobrar ânimo e esperança, agora legitimada em certezas
e seguranças. Antes, ofereceram muita resistência em acreditar na
mensagem transmitida pelas mulheres do seu grupo. Só, agora, se
tornaram mensageiros de esperança junto dos outros discípulos.
Por outro lado, apesar de conhecerem a mensagem das Escrituras, com que se haviam familiarizado, o que faria supor a existência
de mais segurança e confiança no transcendente e no que tinham
aprendido anteriormente, o certo é que a sua esperança parecia ainda
orientada para a materialidade dos factos. Por um lado, afigurava-se-lhes ser necessário tornar a ver Jesus, tal como o tinham conhecido,
quando afinal a ressureição faz d’Ele um outro que lhes escapa e,
por outro, a sua esperança integrava também elementos de ordem
material, política e social que não viram acontecer, como, por exemplo, o triunfalismo de Jesus e a libertação de Israel do jugo romano.
Tratava-se aqui de uma falsa esperança, para a qual Jesus nunca lhes
tinha dado qualquer fundamento. Porém, os seus sentimentos humanos parecem ter, também, dificuldade em se libertar totalmente
das vanglórias do mundo terreno.
No mesmo sentido, actua a tendência, particularmente vincada
nos nossos dias, para, à semelhança de algumas singularidades desta cena dos discípulos de Emaús, se privilegiar desmesuradamente
o material, o imediato, o pragmático, o triunfalismo humano,
pessoal, político e social e com notórias consequências, logo que se
trata da esperança. Cada um espera sempre ser o melhor e superior
ao outro, visando, assim, alcançar um lugar de destaque que lhe
venha a granjear glória, sucesso material, económico e reconhecimento social. Ao invés, investe-se muito menos na Esperança,
enquanto virtude teologal, que conduz as pessoas a projectarem-se
no transcendente e, quiçá, a orientarem o sentido da vida terrestre
em função da vida do além.
114
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
A este propósito, vale a pena referir, aqui, a expressão e os propósitos duma jovem interrogada por um jornalista em Fátima no dia
21-11-2004, após a “Missa da Esperança”, acerca dos fundamentos
e objectivos da sua esperança. Confrontada com estas questões, responde tão só que esperava que Nossa Senhora de Fátima a ajudasse
a ter boas notas para poder ingressar na Universidade. Trata-se de
uma aspiração justa e comum a muitos jovens da sua idade e das suas
famílias que vêem na entrada na Universidade a realização de um sonho que vão acalentando durante a adolescência e, para muitos, uma
etapa fundamental em favor da mobilidade social. Desta maneira,
do percurso que aí fizerem e dos resultados do curso escolhido ou
atribuído depende, em grande parte, a orientação da sua vida futura,
sob vários pontos de vista. A ilustração destes aspectos, em termos
pragmáticos, não apresenta qualquer dificuldade de compreensão.
Confia-se, espera-se e pede-se a Nossa Senhora, a Deus ou aos santos o auxílio necessário para se alcançar os principais objectivos que
orientam o sentido do esforço que se faz para conseguir algo na vida.
Porém, uma dimensão de carácter mais transcendental da esperança
afigura-se ausente.
No entanto, não se pode afirmar, como muitas vezes se ouve, que
vivemos, hoje, num mundo sem esperança. De resto, o ditado popular diz que “a esperança é a última coisa a morrer”. O que acontece
é que a esperança que anima uma grande parte das pessoas e, pelo
menos o mundo ocidental, em geral, à medida que a prática religiosa
e o compromisso cristão decrescem1, é mais de cariz material e pragmático e menos orientada por razões transcendentais, mesmo se se
Insistir-se-á que apesar das práticas religiosas diminuírem em Portugal, as
crenças religiosas, em termos de identificação social, permaneçam elevadas como
nos diz, M. Villaverde Cabral e a sua equipa: em 2000, 89,3% dos portugueses
afirmavam-se católicos contra 95% em 1991 (INE, Dados do recenseamento).
Trata-se, nuns casos, de praticantes assíduos, noutros de praticantes temporários
ou pontuais e noutros de crentes, que não praticando, nem por isso deixam de
recorrer ao sagrado logo que as situações a isso os impelem.
1
Nós esperávamos que...
115
recorre ao sagrado, visando os objectivos que se procuram, independentemente das suas características.
O que se pode, então, dizer é que o sentido e o orientação que as
pessoas atribuem à esperança, em muitas condições, vem mudando,
investindo-se, frequentemente, no material, nas tarefas do mundo,
quer a nível das preocupações que, por vezes, assolam a vida das
pessoas, quer quando se buscam objectivos que têm a ver com a
vida quotidiana ou com projectos mais alargados. Só que ela fundamenta-se e orienta-se mais pelo lado material do que pelo espiritual
e/ou transcendental, sendo assim imbuída de novas significações, em
relação a um passado ainda não muito recuado.
Ao longo dos últimos decénios, em que a modernidade é movimento pelo movimento e as próprias pessoas, em todos os quadrantes da vida humana e social, se tornam presa fácil deste ritmo
vertiginoso, em termos de esperança, as vertentes relacionadas com
o secular e o espírito do tempo, assumem, nos nossos dias, maior
significado. Investe-se no “hic et nunc”, como se a vida se orientasse
apenas pelo instantâneo e pelo efémero e fosse muito menos alicerçada numa esperança que projecte para o além e para lá do gozo e
realizações imediatos. Em contrapartida, também constatamos que
em situações algo desesperadas, sejam elas de que índole forem, a
esperança afigura-se como a principal tábua de salvação que leva as
pessoas a irem em frente e a procurarem novas formas de resolverem as situações, sobretudo quando são complicadas ou parecem
não encontrar na ciência, na técnica, no desenvolvimento económico e social o remédio que procuram, como acontece, frequentemente, em casos de doenças algo desesperadas ou outros situações
similares.
Interessa deixar claro a este respeito, que, ao procurarmos compreender a panóplia de significações que são atribuídas à esperança
nas sociedades hodiernas, tenhamos de ter em conta as transformações socio-económicas, culturais, religiosas e familiares, sobretudo
desde a segunda metade do século XX, bem como as novas influências culturais na ordem do dia e o sentido para a existência.
116
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
As novas dinâmicas sociais
É um facto sobejamente conhecido que as mudanças sociais e
culturais que se têm produzido nas sociedades da modernidade, de
há dois séculos a esta parte, abrangem todos os domínios da vida
económica e social. Sob o ponto de vista económico, durante este
período, fixemos, apenas, a nossa atenção no que podemos designar
de “terceira revolução industrial” (D. Mercure, 2001), que tem lugar
na segunda metade do século passado. Esta nova revolução reveste
um carácter científico e tecnológico inédito, como testemunham,
por exemplo, as forças até então desconhecidas da energia atómica,
o desenvolvimento da automatização, os avanços espectaculares da
indústria química, as progressivas inovações no domínio do tratamento e da difusão da informação, as novas descobertas médicas
permitindo fazer maravilhas em termos do combate à doença e recuperação da saúde, assim como a expansão, sem precedentes, do
sector dos serviços e das grandes burocracias.
Após a segunda guerra mundial, na maioria dos países ocidentais,
começa uma época de enorme crescimento económico, até ao primeiro choque petrolífero de 1973-1974, designado por J. Forrastié
(1979) “os trinta gloriosos”. Na mesma lógica, esse período é caracterizado por quatro realidades que nos são familiares: o consumo de
massas, a extensão do assalariado e uma elevada sindicalização, ou
seja, uma relação salarial fundamentada em contratos de trabalho
de longo prazo com garantias de emprego, o ingresso duradoiro
das mulheres no mercado de emprego e a progressão dos salários ao
ritmo dos ganhos da produtividade. Enfim, regista-se o crescimento
do nível de vida das populações e o impulso do Estado-providência.
Em suma, estamos perante um regime de acumulação de riqueza,
caracterizado pelo poder de compra dos assalariados e desenvolvimento de mecanismos de distribuição de riqueza. Com estas novas
realidades podem, finalmente, realizar-se as ideologias prometaicas
que reinavam desde o século XVIII e para onde as pessoas pareciam,
Nós esperávamos que...
117
então, orientar as suas esperanças: mais progresso, mais bem-estar
humano, material e social.
O caso português, devido ao sistema político e económico
vigente, nem no tempo nem na qualidade, não se enquadra exactamente nas mesmas prerrogativas. Por isso, apesar da importante
implementação e desenvolvimento industrial alcançados nos anos
sessenta, praticamente, nunca veio a atingir tal situação, mesmo com
as substanciais melhorias socio-económicas verificadas nos anos noventa do mesmo século. Todavia, em termos ideais e de objectivos,
sobretudo, após a revolução de 1974, no seio da sociedade portuguesa, com diferenças de calendário, vão-se afirmando, também, os
mesmos princípios.
Em termos gerais, mais atentos à complexidade, sempre algo contraditória, que esta problemática encerra nas sociedades dos nossos
dias e às preocupações que os novos rumos sociais têm conduzido
em termos de esperança, é sabido que esta época de grande desenvolvimento material e maior bem-estar social, se modificou, a partir do
terceiro quartel do século XX, com a recessão económica associada
às crises petrolíferas de 1973 e 1978. Esta situação, marcada por menores ganhos de produtividade, traduz-se por uma crise das finanças
públicas e um menor impacto das regalias do Estado-providência,
tal como se vem, também, constatando entre nós. Simultaneamente,
aumenta o desemprego de longa duração ou, até, de maneira mais
ou menos definitiva para aqueles que vêem caducar os seus contratos
de trabalho a partir de certas idades da vida. Ora, numa sociedade
salarial, em que a sobrevivência humana, quer individual quer familiar, depende essencialmente do emprego, não admira que, com
o desemprego, aumente a pobreza e todos os problemas sociais daí
decorrentes: ruptura dos laços sociais, exclusão, marginalização, desespero, desilusão, delinquência, violência, insegurança, revolta em
vez da esperança que dá ânimo e abre novas perspectivas à vida das
pessoas.
Será, então, que em situações desta natureza as pessoas podem continuar a manter aquela esperança que dá ânimo, alegria e
118
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
orientação à vida ou são mais tentadas a caírem no desespero e na
desilusão? Um olhar atento sobre a realidade permite-nos constatar
que umas continuam a alimentar a esperança de que melhores dias
virão, invocando até a protecção divina, de Nossa Senhora e dos
Santos, perspectivando, assim, novas oportunidades de emprego.
Porém, outras parecem enveredar pelo caminho contrário, caindo
no desânimo e no desespero, como o evidenciam o aumento dos
suicídios, dos sem abrigo, o refúgio na droga ou noutros paliativos e
subterfúgios, procurando, deste modo, colmatar a falta de esperança
que os anima.
Esta é uma questão crucial que nos conduz a reflectir, quando
sabemos que na sociedade portuguesa dois milhões de pessoas vivem
no limiar da pobreza e 300.000 sem o estritamente indispensável à
sua sobrevivência, o que as impede de viverem uma vida individual e
familiar com o mínimo de dignidade. Muitas vezes, estamos perante
pessoas e famílias destroçadas, onde, em vez da esperança em melhores dias, abunda o desânimo e a falta de confiança em tudo e todos, o
que afecta outras dimensões da esperança, mais relacionadas com o
espiritual e o além, ainda mais, quando vivemos em sociedades, em
que se denota uma muito menor tendência para sublimar os reveses
que as condições de vida e a própria organização social e política
proporcionam.
Ora, de uma tal observação, acontece precisamente que este aumento da pobreza em Portugal e noutras sociedades ocidentais, vai
de par com o aumento da riqueza no mundo, na era da globalização.
Por exemplo, entre nós, os carros de alta gama, as casas grandes dotadas de todo o conforto e artefactos modernos e a generalidade dos
artigos de luxo são os que mais depressa se vendem. Sendo assim, as
desigualdades sociais tendem ainda a acentuar-se, ou seja, quer os
países, quer os grupos sociais ricos são cada vez mais ricos e os pobres são cada vez mais pobres. Neste contexto, a esperança, seja qual
for o sentido que lhe atribuamos, assume uma valorização distinta
de uns grupos sociais para os outros. Normalmente, há os ricos, os
abastados e os bem colocados na vida, dotados de esperança elevada
Nós esperávamos que...
119
na realização das suas aspirações e projectos mais imediatos e, inversamente, os outros que, embora alimentem a esperança de poderem
vir a modificar a sua situação, nem sempre vêem realizadas as suas
expectativas.
Uma questão permanece em aberto. Que sentido atribuir a estas
formas de pobreza que mais não são do que o resultado de uma
organização social que forja e aprofunda as desigualdades sociais?
Como transmitir uma mensagem de esperança, que não se inscreva
apenas na materialidade, a pessoas que, sendo vítimas da discriminação social e privadas de bens essenciais para a sua sobrevivência
humana e social, sentem mais razões e propensão para o desânimo
e o desespero, ainda que possam dizer ter esperança em Deus e que
um dia a sua situação poderá mudar? Outras, ao invés, vivem apenas
resignadas com a sua sorte, que mais não é do que o resultado duma
pobreza que não procuraram mas onde nasceram e parecem destinados a aí permanecer. Pessoalmente, somos contra toda a espécie
de fatalismos, pois entendemos que com ocasiões socio-económicas
e culturais propícias poderá ser dada às pessoas a oportunidade de
modificarem o rumo da sua vida. Só que essas tais condições são,
muitas vezes, desprezadas por uns e negadas a outros, o que não
deixa de questionar, por um lado, as formas de organização social, as
atitudes e os comportamentos e, por outro, as razões da esperança
que transmitimos no mundo em que vivemos.
É em oposição a estas situações que se coloca o Sermão da Montanha (Mt. 5-3), ao fazer o elogio da “pobreza de espírito”, mas não
aquela que não permite a todo o ser humano viver com a dignidade
a que tem direito. Todavia, além de muitas outras consequências,
frequentemente, nem por isso se encontra menos nestes grupos a
esperança que imprime outro sentido à vida que não se esgota no
material mais imediato. Em certas circunstâncias, conformados
com a “sorte” que lhes parece reservada, a esperança aparece como o
principal e último reduto a que podem agarrar-se. O pior é quando
aqueles que podem contribuir para que algo mude na vida destas
pessoas se limitam nos seus discursos a deixar transparecer a ideia
120
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
de que lhes vão proporcionar os meios necessários para melhorarem a sua situação, sem que na realidade alterem nada. Assim, será
que em condições humanas e materiais desta natureza há espaço
para alimentar uma esperança que se eleve acima do material mais
imediato? E, inversamente, para outros bem instalados na vida ou
mesmo bem remediados, será que na abundância do bem estar material que desfrutam há lugar para outras concepções de esperança
que pode imprimir outra dinâmica à sociedade e torná-la mais justa,
mais humana, mais solidária e mais aberta ao transcendente? É que
a esperança não é apenas algo com que se espera e acredita alcançar
determinados objectivos de maneira individualizada, mas é também
algo que se partilha e que procura contagiar os nossos semelhantes
na procura de outras significações.
As influências culturais na ordem do dia
A partir deste ponto, é possível falar, ainda, da influência, ao nível
da esperança, das transformações culturais que têm tido lugar desde
os anos sessenta do século XX e que se vêm a acentuar ao longo dos
últimos decénios, ou seja, na designada era da globalização dos tempos hodiernos, bastante diferente de outras formas de “mundialização” produzidas ao longo da história humana. A este propósito, deve
aliás observar-se que, dum modo geral, na maioria dos países ocidentais, desde os anos sessenta, se assiste a uma profunda transformação
dos sistemas de valores tradicionais. Isto não significa, de modo
algum, que as sociedades da modernidade inacabada (J. Pavageau et
al., 1996), aboliram todos esses valores. Ao contrário, eles são hoje
objecto de outras significações, como o refere o inquérito relativo
aos valores mundiais (Inglehart, Basanez, Moreno, 1998), aplicado
em 40 sociedades, representando 70% da população mundial.
Os dados recolhidos dizem-nos uma coisa muito importante: os
jovens revolucionários dos anos sessenta, na verdade subscrevem
valores idênticos aos dos pais: democracia, liberdade, autonomia
individual, menor importância da religião e da autoridade. Recen-
Nós esperávamos que...
121
temente, um trabalho prosseguido no distrito de Braga, em 2003,
junto de 99 famílias, sobre a problemática da transmissão de valores intrafamiliares e inter-geracionais, permitiu chegar a resultados
idênticos (A. S. Leandro e M. E. Leandro, 2004). Todavia, menos
respeito pela autoridade não significa que ela é totalmente desvalorizada, mas antes que para ser aceite necessita de ser intelegível e
legitimada. Pensemos tão só nos grupos de “gangs” ou sectários para
nos darmos conta como são aceites e seguidas as orientações e a autoridade do chefe, esperando, assim, alcançar os objectivos pretendidos. Em temos weberianos, doravante a autoridade “racional” é mais
facilmente aceite que a autoridade “carismática” ou “tradicional”.
Esta mudança traduz a afirmação de um valor: o da dignidade do
indivíduo. Em suma, em certos aspectos, o sentido dos valores que
alimentam a esperança subsiste, só que imbuídos de novas significações.
Denota-se, desta maneira, que há um consenso sobre os julgamentos de valores, embora haja novos conteúdos: o da preocupação
do respeito pela pessoa e, de maneira geral, um menor impacto
da autoridade constrangedora sobre o indivíduo, que se traduz por
diversas formas políticas, religiosas, ideológicas, entre outras. Hoje,
dá-se menos crédito às verdades feitas e definidas uma vez por todas, mas continua a acreditar-se nas verdades e nas pessoas que são
coerentes e autênticas, sendo, normalmente, as mais dignas de respeito e as de quem se espera maior contributo para o bem pessoal e
das sociedades. Passa-se, de maneira geral, o inverso em relação às
outras, pois tendem a ser objecto de maior desconfiança e, por isso,
menos capazes de captar a esperança dos outros, logo que se trata de
implicações sociais, visando o bem das sociedades e a melhoria da
vida das pessoas.
Frise-se que, sem qualquer desprimor pela classe política, um
contexto desta natureza tem vindo a mostrar que a política congrega
cada vez menos a esperança, o interesse e o empenhamento dos cidadãos. São cada vez mais aqueles que se dizem desiludidos perante as
faltas de coerência com que aqui e ali vão sendo confrontados. Neste
122
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
sentido, pode dizer-se que muitas destas pessoas se sentem defraudadas, face às esperanças que depositaram naqueles que conduzem os
destinos da sociedade. De resto, é um dado adquirido, pelo menos
à escala nacional e europeia, que em todas as idades da vida, há uma
falta de interesse pelo voto político-partidário, logo que os cidadãos
são convocados para eleições, o que traduz bem a falta de confiança
na realização dos projectos apresentados.
Ao invés, recentemente, todos os estudos feitos, à escala nacional,
internacional e até mundial, revelam um facto importante, no que
se refere à religião. Apesar do decréscimo da prática religiosa e duma
menor influência da Igreja na sociedade (D. Hervieu-Léger, 2003),
em muitas situações, concede-se maior credibilidade à religião que
à política. Mais ainda, quando as pessoas estão realmente desesperadas, por vezes até os não crentes, tendem a recorrer muito mais
ao divino e ao sagrado em geral do que a qualquer outra instância
política ou ideológica.
Em termos práticos, procurando dar novas razões de esperança e
influenciar as formas de viver, muitas das mensagens do Papa podem
não ter o eco esperado, mas, globalmente, são das mais tidas em conta, mesmo por aqueles que são estranhos à vida da Igreja Católica.
Basta pensar nos encontros com os jovens, nos apelos feitos à paz, à
defesa do ambiente, à não violência no mundo, ao diálogo com outras religiões ou outros aspectos similares. A pertença e a prática religiosas diminuem, mas reforça-se o sentimento e a esperança de que a
Igreja tem resposta para as necessidades espirituais (P. Bréchon, org.,
2000) e continua a verificar-se uma valorização das cerimónias religiosas e mesmo de certos ritos de iniciação, como o baptismo, a 1ª
comunhão, o casamento e o funeral. Uma primeira indicação que
daqui se pode retirar é que se trata menos de uma relação com um
Deus pessoal, fruto de uma escolha personalizada, do que com Deus
“força vital”, inscrito numa tradição ritualizada e socializadora. Parafraseando G. Le Bras (1955), podemos dizer que estamos perante
o fenómeno dos “cristãos das quatro estações”, uma vez que, maioritariamente, se ignora a importância da religião sobre outros aspectos
Nós esperávamos que...
123
da vida (T. Fernandes, 2003). Daí que a esperança, na perspectiva
que lhes é conferida pela religião, no caso que estudamos, a católica,
não tenha, actualmente, o impacto de outrora, em termos da sua
manifestação exterior. Porém, apercebemo-nos que, duma maneira
discreta, a esperança, mesmo de carácter sacral, continua a ter algum
impacto, designadamente em certos momentos da vida.
No âmbito destas considerações, vale a pena lembrar, por exemplo, que, em matéria de formação da família, o casamento religioso, embora em decréscimo, continua a ser o mais elevado, não só
em Portugal como na maioria dos países ocidentais. Entre nós, os
estudos realizados (S. Leite, 2002; S. Aboim, 2004), revelam que
muitos daqueles que começam a vida familiar pela união de facto,
vêm, mais tarde, a contrair casamento e alguns destes optam pelo
casamento religioso. À primeira vista, estas atitudes permitem-nos
dizer que muitos jovens, ainda que não praticantes, continuando a
casar religiosamente, conferem a este acto um alto valor simbólico
e prático: perante os fantasmas do divórcio, o casamento religioso,
sendo indissolúvel, permite alimentar a esperança de que se tratará
de uma relação duradoira e sem rupturas, apesar de tão frequentes
na actualidade.
Mesmo assim, invocando os vários trabalhos que têm sido feitos à escala nacional, europeia e mundial (A . Nunes de Almeida,
2003; P. Bréchon, org., 2000; Inglehart, Basanez, Moreno, 1998),
ao longo das últimas duas décadas, a família vem sendo objecto de
grande revalorização e vista, em 1999, por 82% dos portugueses e
87% dos europeus, como um valor muito importante. Ela aparece,
deste modo, e ainda mais quando a religião deixa de ter o impacto
de outrora, como o principal alfobre de esperança contra as agruras
que a vida do dia a dia pode proporcionar.
Aludindo, depois disto, aos valores morais, acredita-se que, por
vezes, é difícil distinguir o bem do mal, mas aceita-se que há uma
distinção entre eles. É-se mais tolerante em relação aos desvios morais porque a tolerância se tornou num valor central das sociedades
dos nossos dias, na medida em que cada um, podendo escolher livre-
124
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
mente os seus valores, a verdade na matéria não é concebida como
dada uma vez por todas. Nos jovens, observa-se um maior espírito
crítico, em vez do cepticismo que pode conduzir ao desespero e à
desilusão. A religião, em termos de ética e de moral, é concebida
como uma componente entre as demais. Então, os jovens acreditam
menos nos dogmas e mais na ciência, nas descobertas e benefícios da
técnica, nas mensagens transmitidas pelos colegas e pelos media e no
triunfalismo da razão . Talvez por isso a sua Esperança seja orientada para coisas mais pragmáticas: realização e prazeres corporais, o
culto do corpo e da beleza, acesso ao carro, afirmação social, sucesso
nos estudos, no desporto, nas aventuras amorosas e de lazer, num
trabalho interessante e bem pago, nas boas condições habitacionais,
na realização pessoal e na busca de felicidade, como valor central
da modernidade inacabada. Só que, frequentemente, muitas destas
vivências são efémeras e, em tais condições, podem vir a produzir desilusões fortes. Daí que se possa falar em falsas esperanças, porque se
trata daquelas que, além de não conferirem confiança e apontarem
para certezas, mesmo que estas contenham sempre algo de aleatório,
são desprovidas de sentido mais elevado que possa oferecer segurança na continuidade.
No mesmo sentido, esta tendência actua também junto das
pessoas em geral, independentemente das idades da vida, pois que,
duma maneira ou da outra, todos alimentam a esperança de virem
a ser felizes, o que é legítimo e preconizado pelas próprias religiões.
Só que, nestes casos, a felicidade pode vir a ser diferida e tornar-se
em objecto transcendental, o que parece suscitar menos adesão
nos tempos que correm, em que o geral das pessoas procura o pragmatismo, o gozoso, aqui e agora. Por outro lado, à medida que as
mentalidades se transformam e se tornam mais permissivas e mais
influenciadas pela materialidade das coisas do dia a dia, as descobertas científicas e tecnológicas avançam, os ganhos de produtividade
crescem, as possibilidades de exploração dos mais fracos prevalecem
em favor dos mais abastados, a ambição do ter em vez do ser expande-se e assim por diante. Não admira, pois, que em contextos
Nós esperávamos que...
125
desta natureza, a esperança tenda também ela a associar-se a valores
materiais e hedonistas ou outros semelhantes que parecem estar mais
ao alcance directo das pessoas.
O tempo da secularização e da esperança
Realisticamente, vivemos hoje num tempo que é mais marcado
pela influência da secularização do que pelo impacto da religião e das
virtudes que a ela estão associadas, como a esperança. Observando
o que se passa à nossa volta, damo-nos conta de que se encontram
pessoas que, em situações algo difíceis, e que não têm apenas a ver
com a pobreza material, esperando modificar as condições em que se
encontram, apesar dos efeitos da secularização, por força da tradição,
continuam à procura de outro rumo, através do recurso às forças
transcendentais. O caso é notório, a nível das promessas dirigidas a
esta ou àquela entidade sagrada, com a esperança na resposta para o
problema que as preocupa. Mas, será que, em situações normais da
vida quotidiana, a chama da esperança mantém a mesma intensidade? Em nossa opinião, é aqui que permanece uma das questões que
interrogam hoje a simbologia da esperança e os seus efeitos.
O debate sobre esta problemática continua. Já nos referimos à
relação entre situação socio-económica e cultural e às singularidades
da esperança entre diversos grupos sociais e as orientações e sentidos que lhe podem ser outorgados. Não temos, de modo algum, a
pretensão de esgotar o assunto nesta matéria. Todavia, vale a pena
evocar o caso, que assume cada vez maiores proporções nos dias de
hoje, das pessoas que põem a sua esperança na eficácia dos efeitos
mágicos advindos da vidente, da cartomante, da bruxa, do pai santo,
do astrólogo e tantos outros agentes do maravilhoso, às vezes até
em forma de “seita”, que parecem oferecer uma solução imediata
e adaptada às circunstâncias do momento. Ademais, o recurso a
estes meios fundamenta-se, muitas vezes, na busca do “remédio”,
da “cura” do “sucesso” rápido para pessoas e casos em que a espera,
mais ou menos prolongada, se traduz em desespero. Deste modo, se
126
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
podem alimentar falsas esperanças, mas que, no concreto, em vários
casos, parecem produzir efeitos práticos e sem grandes compassos de
espera. Ora, em contrapartida, no que se refere ao sagrado transcendental, perfilhado pela Igreja Católica, muitas vezes, Deus afigura-se
lento em responder como nos mostra, por exemplo, o caso de Job do
Antigo Testamento (33) e até Cristo parecia adormecido na barca
quando se levanta a tempestade e os apóstolos estarrecem de medo
e vacilam na sua fé e esperança (Mc 4, 37-41). O grande problema
é que numa sociedade marcada pela laicização, pelos automatismos
e a rapidez, as pessoas mostram-se menos capazes de manter uma
esperança e confiança inabaláveis, logo que as coisas tardam em
ajustar-se às suas aspirações mais imediatas.
Uma outra demarcação tende a manifestar-se em situações desesperadas, em que parecem esgotadas todas as capacidades humanas,
científicas e tecnológicas, como é, por exemplo, o caso de certas doenças julgadas incuráveis, ou outros que parecem insolúveis. Neste
contexto, não raramente, deparamos com pessoas que parecendo
indiferentes, de repente se afirmam extremamente crentes e dotadas
de uma esperança inabalável, como podemos constatar nos dias que
correm.
Não sem tensões e hesitações, o que se pode, então, dizer é que
num mundo cada vez mais descristianizado (D. Hervieu-Léger,
2003), não serão muitos aqueles que têm sempre presente as palavras de S. Paulo aos Efésios (1, 18-22), segundo o qual nos céus está
Cristo nossa esperança. Porém, o desespero pode desencadear num
lenitivo que imprime outro rumo à sua vida. Do que essencialmente se trata aqui é de constatar que, em sociedades complexas como
aquelas em que vivemos, se verifica que há um certo sincretismo em
termos de esperança. É algo deveras complexo, quando tentamos
interpretar a panóplia de casos que se apresentam.
E que dizer da esperança das crianças e dos jovens, garantia de
futuro, vivendo em situações tão díspares e, por vezes, sem esperança
em melhores dias, como acontece, frequentemente, com situações
de pobreza gritante, violência, discriminação, doença, disfuncio-
Nós esperávamos que...
127
namentos familiares, insucesso escolar, toxicodependência e outras
formas de delinquência e desvio? Decerto que se vivessem noutras
condições poderiam ver alargado o leque das suas aspirações, nutrir
outras razões de esperança, à semelhança dos seus coetâneos que,
vivendo em boas condições materiais, humanas e sociais podem realizar diferentemente as suas aspirações e conferir, deste modo, outro
sentido à esperança que os anima. De qualquer modo, uns e outros
tenderão a ser portadores da esperança que os adultos sejam capazes
de lhes veicular.
Tenha-se em conta que as crianças e os jovens, pelo que são e
pela promessa de futuro que auguram, têm direito a que a sociedade
olhe para eles como esperança de amanhã, no pleno sentido da palavra e não apenas no sentido reprodutivo, isto é, como quem herda
apenas um legado material e de cultura secular. Daí que tudo o que
a família, as outras instâncias de socialização, inclusive a Igreja e a
sociedade em geral possam proporcionar-lhes, no sentido de fazer
deles mulheres e homens de esperança, o que não se encerra, apenas, nas fronteira do material e do consumo mais imediatos, nunca
seja demais. Mas não. Em muitas circunstâncias, tanto jovens como
crianças, numa sociedade consumista e hedonista, são, por vezes,
mais percepcionados por muitos adultos como “utilidade marginal a
consumir”, do que pessoas que têm direito a desenvolver-se harmoniosamente e a crescer com sabedoria e esperança, sobre os variados
aspectos que integram a vida pessoal, familiar e social. Num mundo
devastado por guerras, terrorismos, medos, fobias, pessimismos e
fantasmas de toda a ordem, mas que investe muito no sucesso pelo
sucesso, seja ele de que ordem for, tenha-se em conta que há também muitos oásis de grandes virtudes que urge fazer frutificar, de
modo a que todos, crianças, jovens, adultos e idosos, possam advir
sujeitos-actores na construção de um mundo melhor e com mais
esperança.
A insistência nesta ideia de que o sentido atribuído à esperança se
tem modificado ao longo dos últimos tempos, com maior insistência para o material, o secular e o imediato, não nos impede de nos
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Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
determos um pouco mais na condição da juventude. Esta não é tão
só uma realidade biológica ou natural, nem algo que se define por
meros critérios etários, mas uma “condição social” que se constrói
histórica e socialmente (M. E. Leandro, 2001). Significa isto que
cada época e cada sociedade condiciona e diferencia, socialmente,
as juventudes e os jovens que têm. Naquelas em que vivemos, a par
de situações de marginalização, delinquência juvenil, droga e demais
males sociais, queremos fazer relevar a generosidade e testemunho de
esperança de tantos jovens que se manifestam, por exemplo, através
do seu empenhamento em acções de voluntariado em favor dos mais
necessitados, no modo como são capazes de se entregar a causas em
prol da justiça social e ainda daqueles que, sentido o apelo de Deus,
são capazes de se entregar totalmente ao serviço dos outros, através
do sacerdócio ou da vida religiosa, ou ainda em formas de entrega
de trabalho missionário temporário. Interessa deixar claro, a este
respeito, que se trata de autênticos testemunhos de esperança que
se elevam acima do trivial e do que é mais corrente nas sociedades
hodiernas. À semellhança de Maria, tanto na Anunciação do Anjo:
“...faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc, 1,38), como nas bodas
de Caná: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2, 1-11), ou ainda junto
à cruz, sinais plenos da esperança que a animou ao longo de toda a
vida, também há muitos jovens, hoje, que estão dispostos a fazer o
que “Ele” lhes disser para que a fé, a esperança e o amor possam ter
outro impacto num mundo mais orientado pelos valores materiais.
As derivas da esperança no contexto da modernidade
Insistir-se-á depois disto na associação existente entre as formas
de conceber a esperança e a modernidade actual. Esta última é caracterizada pela rapidez do movimento, o novo, o inédito, a procura
incessante de novas experiências, a aventura, o que a faz dificilmente
situável e identificável. Ela impõe a exploração de novos possíveis e
recusa a fixação, o duradoiro ou eternamente definido. Como diria
R. Barthes (1957) ser moderno é saber o que não é mais possível.
Nós esperávamos que...
129
Uma primeira indicação que se pode tirar daqui é que a modernidade é manifestação e expressão das rupturas subjacentes às
continuidades, o que faz com que se alterem as referências que ficam
cada vez mais ao sabor deste ritmo de mudanças vertiginosas. E tanto mais necessariamente que a multiplicação e impacto dos “mass
media” provoca uma ampliação das narrativas, das notícias e dos
spots publicitários, tentando restituir incessantemente os acontecimentos, sempre na procura frenética da novidade e até do insólito.
Mais ainda, actualmente, a modernidade multiplica os meios para
se produzirem os artefactos, as aparências e as dissimulações.
Seguindo de perto este fio de raciocínio, poder-se-á dizer que a
formação e o significado da esperança nos nossos dias participa também deste movimento que, em certas circunstâncias, faz com que
se alimente dos imponderáveis que este processo contém. Daí que
possamos falar de esperança como algo que permite às pessoas projectarem-se em vários possíveis, muitos dos quais efémeros e com
mais tendência para se inscreverem na ordem do material do que
na ordem do ser. Mais ainda, em muitas circunstâncias, o ser parece
estar hoje sujeito ao império do ter e do parecer, personificado na
competividade em todos os domínios da vida – desportivo, escolar,
económico, profissional, político, social, entre outros aspectos. Ainda que só possa haver alguns eleitos, todos sonham e querem ser o
primeiro, o melhor, ultrapassar o outro e ir em frente contra ventos
e marés. É assim com a marca do automóvel, o desporto, a indumentária e respectivos adornos que a integram, a grandeza da casa,
o local onde se habita, a escola, a universidade ou o curso que se
frequenta, a nota que se alcançou, o emprego que se exerce, os locais
que se frequentam, a qualidade do lazer, os programas de férias, as
formas de consumo e aí por adiante. Muitas vezes, o que importa é
o triunfo sobre tudo e todos, ainda que não se olhem aos meios para
atingir os fins.
Compreende-se que num quadro problemático como este, em
que se verifica que a esperança é menos objecto de orientação para
valores mais seguros, quiçá de ordem transcendental, ao invés, se
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Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
invista muito mais nas aparências e no pragmatismo. Em termos
identitários, até a um passado ainda recente, num encontro entre
desconhecidos, perguntava-se à pessoa “quem és”. Hoje pergunta-se-lhe antes “o que fazes”, o que se torna num indicador do que
tens. Lá diz o ditado que, aliás, não sendo novo, continua a ter uma
retumbante actualidade: “quanto tens quanto vales, nada tens nada
vales” “ou quanto parecemos quanto valemos”. Ora, um tal imaginário
social não pode deixar de produzir efeitos, logo que se trata de se interrogar sobre as razões que legitimam a esperança nos nossos dias.
Por outro lado, denota-se que quando a esperança é canalizada
para o imediatismo, para a procura exclusiva da felicidade nas coisas
materiais enquanto tais, quando estas deixam de corresponder às
expectativas, arrisca-se a queda na desilusão e no vazio, como o refere G. Lipovetsky (1991). Corre-se o risco de enveredar pela lógica
consumista do pronto a comprar, a vestir, a habitar, a cozinhar, a ler,
a explorar, a utilizar e a deitar fora, quando se desvaneceram as razões
ou desapareceram os suportes que sustentavam estas (i)lógicas.
A esperança dessacralizada e dessacralizante
Se associarmos este conjunto de fenómenos aos da laicização e da
secularização das sociedades, implementadas com a modernidade, é
fácil apercebermo-nos de que as razões que fundamentam a esperança de muitas pessoas tendem a deslocar-se da significação conferida
pela religião e o sagrado em geral, para o material mais imediato e
para a racionalidade, que não tem deixado de se intensificar com o
desenvolvimento científico e tecnológico. Aliás, a racionalidade, associada à modernidade, retira muitas das esperanças anteriores e cria
outras formas de esperança, mas também muitas ilusões. Por outro
lado, a ciência, não anulando a esperança, mas podendo pôr o dogma em dificuldade, não anula a ética e a moral, mas é ela própria objecto de ética e de esperança para muitos problemas que prevalecem
no mundo. Mas nem sempre tem resposta para muitas das questões
que se levantam nos nossos dias que, apesar de muitos males que o
Nós esperávamos que...
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assolam, se apresenta atravessado por uma sede de esperança que
permita melhorar a sua condição.
Sob o ponto de vista doutrinal, a esperança é uma das três virtudes teologais que leva o cristão a pensar que será salvo e que obterá
a graça divina, isto é, a esperança – que, aliás, parece mais ausente
e, por isso, menos influente nos tempos que correm – conduz as
pessoas a projectarem-se no além, no transcendente, quer a vida lhes
pareça promissora, quer lhes apresente dificuldades. Neste último
caso, parafraseando M. Weber (1971), estamos frequentemente perante uma “economia da salvação” que consiste em fazer acreditar e
ter esperança em que o sofrimento deste mundo se transforma num
capital de salvação na vida do além.
Todavia, com o decréscimo do impacto público da religião que
se tem verificado, mesmo entre nós, designadamente desde meados
do século XX, estas atitudes tendem a mudar substancialmente. Por
exemplo, segundo os resultados do inquérito aos valores europeus
realizado em 1991 (L. França, 1993), para 66% dos portugueses
Deus é um valor “muito importante”, contra 50 % dos europeus.
Em contrapartida, interrogados sobre se acreditam na vida após a
morte, apenas 31% e 43%, respectivamente, dizem que sim. Posteriormente, o inquérito de 1999, sobre a mesma problemática, veio
revelar que na Europa, ao mesmo tempo que aumenta o ateísmo,
aumenta a crença num Deus “força vital”, mas diminui a importância da religião e a Esperança que lhe está associada. Acredita-se,
outrossim, noutras formas de vida para além da morte e nas crenças
paralelas: reincarnação, Deus como “espécie de espírito ou de força
vital”, consulta do horoscópio, telepatia e amuletos. Assim se criam
outros redutos de esperança que não têm a ver com o mundo transcendental sagrado, mas imanente, maravilhoso e até mágico. Entre
nós, registe-se que o recurso a estes elementos, sob diversas formas,
tem crescido vertiginosamente. Em muitos casos, acredita-se e temse mais esperança no que diz a vidente, a cartomante, a feiticeira do
que diz o médico, o padre, a religião em geral, a própria ciência, entre outros aspectos. Ao contrário do que dizia M. Weber em 1918,
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Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
parece que estamos a voltar de novo a um mundo “reencantado”,
onde o sentido da esperança adquire outra orientação. Quanto à
influência da religião católica, no que se refere às crenças no Céu e
no Inferno, acredita-se e valoriza-se de longe o primeiro, porque está
associado à ideia de felicidade, valor fundamental da actualidade, ao
passo que o segundo está ligado a sentimentos negativos.
Haverá ainda lugar para dizer que é no espaço do sagrado que a
esperança encontra o seu sentido mais profundo, o seu enraizamento
natural. Todavia, com a modernidade ela é submetida a profundas
mutações e tem hoje uma dimensão profana que, de resto, não é
nova. Os ditados populares “a esperança é a última a morrer” ou
ainda “enquanto há vida há esperança” atestam esta asserção. Assim
sendo, desde há muito que a esperança reenvia também para um
sentido material e é tida não só como uma virtude teologal, mas o
que há de mais importante na vida das pessoas. Em causas complexas
ou mesmo desesperadas, a esperança aparece como o último baluarte
a que se faz apelo e permite acreditar e reagir. Ao invés, na Divina
Comédia de Dante (III, V. 9), no último verso patente sobre a porta
do Inferno aparece a seguinte indicação: “Vós que entrais abandonai
toda a esperança”, o que, necessariamente, reenvia ao desespero mais
profundo e eterno.
Hoje, investe-se muito em esperanças exaltantes em torno de
mitos oportunistas, como o mito do presente, dos benefícios da
técnica, da igualdade, do sucesso individual associado às performances individuais, legitimadas pelos recursos e capacidades de
cada um, dos méritos individuais, do consumo pelo consumo, do
ter muitas coisas, da beleza, das imagens que proliferam à volta do
corpo, da capacidade produtiva, das máquinas que produzem coisas fantásticas, entre outros. Muitos destes mitos são enganadores
e precários e servem, frequentemente, para elaborações frágeis, de
modo a sustentarem um espaço mitológico movediço. Este tende a
oferecer ao indivíduo amarras provisórias das referências a seleccionar, em função das situações. Usualmente, nos nossos dias, tudo se
apresenta como matéria a consumir, desde as várias componentes
Nós esperávamos que...
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dos programas dos media entranhadas de publicidade, as máquinas
inteligentes animadas por novas tecnologias, as manifestações espectaculares introduzidas na vida quotidiana, os comércios de lazer ou
os vendedores de bem-estar e prazer, até às demonstrações, forjando
a apresentação do ego, a gestão do corpo e a aparência pessoal, até
à grande variedade de profissionais da psicologia ou ciências afins,
propondo novos estados de alma.
Mas outras pontas do problema podem ser para aqui trazidas,
como as que, por exemplo, dizem respeito aos mitos que envolvem
os jogos associados ao dinheiro ou a prémios similares, cuja variedade é imensa, inclusive aqueles cujos promotores lhes atribuem objectivos sublimes, como, seja por exemplo os da solidariedade para
com o próximo. Tal é o caso das lotarias, dos vários tipos de totoloto
e outros. No entanto, parece que acima desses objectivos se coloca o
sonho, a esperança de vir a ganhar o máximo ou até grandes fortunas. Cada um aí investe na esperança de encontrar o seu eldorado.
Há aqui uma componente sacralizante, relacionada com os objectivos que lhes presidem e na maneira como mobilizam as pessoas e
dessacralizante, na medida em que os apostadores investem muito
mais na expectativa de vir a ganhar grandes somas de dinheiro e
assim poderem dar outro rumo às suas vidas, mais consentâneo com
alguns valores dominantes, como o bem-estar material e social.
Podemos olhar, ainda, para esta função (de)sacralisante da esperança, no que se refere a qualquer tipo de jogo. Cada um ou cada
equipa espera vir a ser o melhor, o campeão. Pensemos, a título de
exemplo, nos jogos desportivos de alta competição, em que se vêem
os jogadores a implorar a protecção divina, sob a forma do sinal da
cruz, de promessas aos santos ou a Nossa Senhora de Fátima, tal
como aconteceu com o guarda-redes Ricardo, aquando do Euro de
2004, na esperança de vir a ganhar o campeonato. Porém, se, neste
mundo do espectáculo, a vedeta é a figura do ganhador, do melhor,
o objecto de esperança dos adeptos, em virtude dos artifícios da
sedução de que é alvo, nem por isso fica menos sujeito às vulnerabilidades da sua condição, logo que venha a defraudar a esperança
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Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
dos seus fãs. Em tais condições, há uma tendência para se instalar a
desilusão ou virem ao de cima as falsas esperanças.
Aludindo, ainda, ao recurso às forças transcendentais, mais
concretamente à fé e à esperança contidas nas promessas a Nossa
Senhora e aos santos, há mesmo situações em que as razões nem
sempre parecem das mais nobres, como quando se pretendem alcançar objectivos ao arrepio da moral humana e cristã. Apontemos
apenas dois casos em que essas condições se tornam claras. Um tem
a ver com um roubo e o outro com uma infidelidade conjugal.
Quanto ao primeiro, planeado o roubo de um carro em França, para
trazer para Portugal por uma mulher, dando, assim, azo a menores
desconfianças, é depois a mesma senhora que, após o sucesso deste
empreendimento, se desloca a Fátima a pé para cumprir a promessa
anteriormente feita. No segundo caso, foi encontrado, pelo pároco,
numa das igrejas de Lisboa, junto à estátua de Santo António, um
pedido anónimo em suporte escrito, implorando a protecção do
santo para que o marido nunca viesse a descobrir as infidelidades
conjugais da esposa. Sendo assim, perante estas duas situações, que
podem parecer extremas, compreende-se, por um lado, que a fé e a
esperança das pessoas não são letra morta, mesmo quando trilham
caminhos que vão contra os princípios da conduta moral cristã e
social e, por outro, que o recurso à intercessão das entidades sagradas
julgadas protectoras, podendo ser deveras adulterado, nem por isso
é menos destituído de esperança na realização dos objectivos pretendidos.
O que se tem que admitir, hoje, é que apesar de as Igrejas se esvaziarem, as vocações de vida consagrada diminuirem e Deus parecer
perder terreno, é que, ao invés, o sagrado está em crescendo. Nunca
a necessidade do divino se manifestou tanto como no nosso tempo,
ainda que seja caracterizado pela secularização e a laicização. Frequentemente, para escapar aos constrangimentos da excelência do
científico, ao imperativo do ultra racional, à ditadura do mercado
dos bens de consumo, em suma para encontrar sentido num mundo
que, proporcionando muitas coisas boas e muito bem estar, pelo
Nós esperávamos que...
135
menos para uns quantos privilegiados, cria também desigualdades e
muitas angústias, envereda-se por uma certa negociação ou forja-se
uma espécie de “bricolagem” em torno de um menu de espiritualidades onde cada um encontra a que mais lhe convém. O que se
pode, então, dizer é que em muitas circunstâncias, se vive uma forma de religiosidade que se caracteriza por uma fé, uma esperança e
uma “religião sem dogma” (F. Ferraroti, 1984), mas que nem por
isso tem menos que ver com o reavivar da esperança e o apelo às
forças transcendentais em determinadas ocasiões da vida julgadas de
maior risco familiar, social, económico ou outros do género.
Seja como for, a esperança e as virtudes que lhe estão subjacentes
são hoje vividas de maneira mais difusa, pluralizam-se e estão sujeitas à lei da concorrência. É frequente vermos as tradições religiosas
transformarem-se em bens de consumo e alguns objectos que lhe são
peculiares funcionarem como amuletos, sendo envolvidos por muita
esperança, por parte daqueles que os usam. Do mesmo modo que o
sagrado se difunde no espaço profano, este difunde-se naquele. Os
locais de produção e de gestão de sentido dispersam-se, diversificam-se e multiplicam-se as ofertas de sentido e de esperança. Sob o
ponto de vista religioso, assistimos hoje a uma proliferação de rituais
e tribalização da sociedade e da cultura, na esperança de aí encontrar uma realização do EU o que contribui para a formação de uma
sociedade narcísica. Assim sendo, nas sociedades contemporâneas,
os meios de produzir muitos redutos, aparências e simulações de
esperança amplificam-se.
Seguindo outras dimensões da vida, tem-se também esperança
numa maior longevidade e com melhor saúde. Sob este aspecto, por
vezes ainda que inconscientemente, interioriza-se a ideia do iluminismo, segundo a qual a humanidade poderia vir a vencer as doenças, ainda que não vença a morte. Mesmo assim, simbolicamente,
alimentam-se, nos nossos dias, sonhos de imortalidade que se desejariam agora prolongados numa vida terrena que, por um lado,
permita a reprodução inter-geracional e, por outro, que não tenha
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Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
ocaso. A esperança na salvação, de carácter transcendental, afigurando-se longínqua e incerta e resultando dos méritos adquiridos neste
mundo, parece governar menos o percurso das vidas individuais do
que o império da satisfação imediata.
Conclusão
À primeira vista, quando se procura definir a esperança nos tempos que correm, a resposta não é fácil nem uniforme, na medida em
que vivemos hoje num mundo plural e plurifacetado, em período de
globalização dos tempos hodiernos que, entre outros efeitos, faz com
que as sociedades, por vezes até as mais protegidas das influências
deste fenómeno, sejam muito mais abertas às influências internas e
externas. Duma maneira ou da outra, sobretudo nas sociedades ocidentais, abundam, hoje, as solicitações, os aliciantes e as promessas
do sucesso pelo sucesso, da performance e do pleno bem estar de toda
a ordem. O senso comum afirma que nada é como antes, sem saber
muito bem onde situar o momento desse passado. Há falta de referências e descobrem-se, sobretudo, razões de incerteza. A vida quotidiana funciona sobre o regime da surpresa, da incerteza e do inseguro
e embora uns se encontrem mais protegidos e seguros do que outros,
a todo o momento o inesperado pode surpreender cada um.
Basta, por exemplo, estar atento aos programas televisivos e aos
“mass media” em geral, à imagem dos grupos de pressão, por vezes
até numa atitude desesperada, como acontece com os próprios desempregados, para nos darmos conta desta situação. Para falarmos
em termos económicos, digamos que a oferta e a procura sendo, nos
nossos dias, muito abrangentes, nem por isso se mostram capazes de
oferecer a todos, os redutos de esperança que lhes permitam sonhar
com uma vida melhor, tanto sob o ponto de vista material como
social.
Muitas das esperanças da nossa sociedade, sendo, frequentemente, mais da ordem do ter do que do ser, exprimem-se também nas
telenovelas ou nos filmes, criando, particularmente nos jovens, a
Nós esperávamos que...
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esperança de vir a ser como tal ou tal vedeta. Vivemos, numa sociedade em que, sob vários aspectos, e muito particularmente para os
jovens se investe no imediato, no efémero, no transitório, nas experiências fragmentadas que fazem com que o tempo seja apreendido no
instantâneo e no inacabado, no novo pelo novo, na moda, na incitação ao prazer e ao gozo imediatos, no consumo, em que o próprio
homem aparece como presa fácil para consumir. Contudo, importa
realçar que a par deste movimento, também se verifica, por parte dos
jovens e de outros grupos etários, um fenómeno de extrema importância, em termos de esperança que tem a ver com o voluntariado,
da maneira como se empenham em causas de solidariedade e de luta
contra as injustiças sociais.
Por outro lado, tendo consciência que vivemos num mundo
menos portador de esperança que se eleve acima do material mais
imediato, e entre nós numa sociedade em que a Esperança, no sentido teologal e tradicional do termo, tem hoje um menor impacto,
apesar de, teoricamente, se clamar cada vez mais por ela, denota-se
que decorre mais da ordem do imanente do que do transcendente,
ao contrário de outros tempos em que o religioso e a religião tinham
muito maior impacto e legitimação social. No entanto, uma menor
confiança e fé num Deus transcendente, pessoal e criador, nem por
isso implica o abandono de toda a forma de religiosidade. O que se
observa é que esta se caracteriza por uma fé que tem muito menos
em conta o dogma que anteriormente fundamentava a religião e as
razões sociais que lhes estavam associadas. Daí que possamos dizer
que não vivemos num mundo sem esperança, mas antes que, em
muitas circunstâncias, ela é de outra ordem na era da modernidade
inacabada.
Não perdendo de vista estas novas mudanças e atribuições de
sentido, interessa anotarmos, antes de terminarmos, o pensamento
de dois autores que nos deixaram um legado importante acerca desta
problemática. Umas das componentes deste processo encontramo-la
em Rimbaud ao afirmar que no termo de todos os esforços, visando
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Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
o melhor, o que se encontra é a esperança: esperança numa verdade
mais elevada que a da vida quotidiana pacientemente servida, esperança numa realidade que exige escolhas e até o sentido da sublimação, esperança numa fraternidade que exige que o próximo seja
amado, apesar dos seus defeitos e através dos seus defeitos. Não pode
existir homem sem esperança.
Na continuidade destas asserções, observar-se-á que nenhum rigor, nenhuma exactidão, nenhum método científico, nenhuma tecnologia nenhum pragmatismo, nenhuma competividade, nenhum
consumismo, nenhum prazer imediato, nenhuma riqueza material,
por maior e mais sólidos que sejam, podem eliminar o que André
Malraux diz a propósito destas questões: “um mundo sem esperança
é irrespirável”. A este respeito, podemos ainda dizer que quanto mais
densa ela for mais se intensificam as palavras do salmista, segundo o
qual “Aquele que cultiva a esperança vai abrindo novos caminhos para
a paz... “(Sl 84).
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A ESPERANÇA QUE TRANSFORMA
E TRANSFIGURA
Dra. Teresa Messias
Introdução: Esperança, precisa-se!
É, sem dúvida, um enorme desafio o convite para reflectir convosco sobre a esperança cristã, no actual contexto cultural que vivemos.
Ao longo destes dias foram apresentados elementos que nos ajudam
a situar e compreender o mundo contemporâneo, reconhecendo as
suas potencialidades e fragilidades.
De entre as várias características que sobressaem, quer por via da
análise reflexiva dos fundamentos do pensar quer por via do contacto directo com pessoas e situações do quotidiano, encontra-se o
sentimento da desilusão, o desencanto, a incapacidade ou a ausência
de fundamentação credível para esperar confiadamente vir a ter alegria, consolação, gozo. Em suma, sente-se um pessimismo ora difuso
– “Vamos andando menos-mal!” – ora explícito: “Isto vai de mal a
pior!”.
Na verdade, existem circunstâncias conjunturais e históricas que
contribuem objectivamente para retirar a sensação de segurança e
sentido que noutros momentos nos parecia ter: a dependência económica global, repercutindo sobre todos as flutuações nos mercados
e na política; a existência duma alta taxa de desemprego e grande
número pessoas em situação de pobreza; a actuação de redes de
terrorismo à escala mundial com verdadeira intenção e poder destruidor; a mobilidade frenética que impede permanecer num local
ou numa actividade o tempo necessário para criar raízes e estabele-
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Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
cer relações não-funcionais; uma sociedade tecnicista e tecnicizante
que tende a desvalorizar aqueles cuja vida e produção não pode ser
quantificada e avaliada pelo critério da performance (eficácia de realização); a dificuldade de encontrar relações humanas calorosas e
gratuitas; o disparar de patologias várias, umas ainda sem cura (sida,
ébola, pneumonia atípica, variadas formas de cancro, etc.), outras
cujos agentes causadores se tornaram resistentes aos tratamentos
tradicionais ou sofreram mutações genéticas, sem esquecermos as
doenças do foro psíquico, entre as quais se destaca a depressão, por
alguns já apelidada como o “cancro do século XXI”. No entender
dos especialistas, a depressão – e este elemento tem o seu interesse
para o tema em apreço – para além das causas que a despoletam e lhe
estão na origem, é caracterizada por um “sentimento de insatisfação
profunda, ‘histórica’, a nostalgia de uma perda.” 1
No entanto, interiormente a estes factores objectivos, o pessimismo característico do nosso tempo tem a sua origem no modo como
o homem moderno se compreendeu a si mesmo enquanto ser-no-mundo, na imagem que criou de si. Tem uma origem subjectiva,
isto é, radica na concepção que o sujeito do pensar tem de si, das
relações com o mundo e os outros, do horizonte de sentido em que
joga o seu presente aberto ao futuro.
A concepção moderna de sujeito, autoconfiante no poder da
razão, indiferente à transcendência e autodeterminado pela vontade
e pelo dever em construir um futuro orientado pela noção de progresso, é em grande medida responsável pelo desencanto cultural
que respiramos. A história não trouxe o mundo escorreito e justo
que, em tempos, pareceu estar ao alcance da vontade e da razão. Vive-se agora, difusamente, um radical sentido de frustração ideológica.
Esta é, aliás, a característica que qualifica o nosso contexto cultural
como pós-modernidade: “uma negatividade algo velada em relação
às capacidade do sujeito moderno, um estado de ânimo sem con1
123.
António Coimbra de Matos, A Depressão, Climepsi Editores, Lisboa, 2001,
A esperança que transforma e transfigura
143
tornos precisos que invade quase tudo, […] baseado na resignação
histórica e no individualismo indolor, […] um certo sentimento
não concretizado de frustração, causado pelo ruir de algumas ideias
configuradoras da modernidade.”2
No fundo, uma absolutização do presente onde a sensibilidade
tem agora a primazia que outrora fora concedida à razão. Falta a
confiança de saber o presente, nos seus ritmos e silêncios, aberto
e grávido da alegria que o futuro fará experimentar em plenitude.
Falta esperança. Paradoxalmente – ou talvez não, já que, em parte,
todos somos filhos da nossa época – esta negatividade e/ ou pessimismo verificam-se e experimentam-se também entre os cristãos. O
défice de esperança no contexto europeu é reconhecido na exortação
apostólica Ecclesia in Europa, de 28 de Junho de 2003, a ponto de
tomar como centro da mensagem a urgência dum retorno à vivência
daquela dimensão humana:
“Esta palavra é dirigida hoje também às Igrejas na Europa, frequentemente provadas por um ofuscamento da esperança. De facto, os
nossos dias, com todos os desafios que nos lançam, apresentam-se
como um tempo de crise. Muitos homens e mulheres parecem desorientados, incertos, sem esperança; e não poucos cristãos partilham
estes estados de alma.”3
O mundo contemporâneo tem sede, não tanto de mais palavras e
de noções, por mais importantes que estas sejam na comunicação das
realidades. Aspira sobretudo a experimentar uma esperança que não
desiluda, que não tenha “prazo de validade” mas oriente e sustente a
liberdade porque o ser humano não pode realizar-se sem ela.4
Cf. Juan António PAREDES, Onde está nosso Deus? Diálogo do crente com a
cultura de hoje, Paulus, S. Paulo, 1999, 121s.
3
Ecclesia in Europa, 7.
4
“Todavia, como sublinharam os padres sinodais, «o homem não pode viver
sem esperança: a sua vida perderia o sentido, tornando-se insuportável».” (Ecclesia
in Europa, 10).
2
144
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
Sem esperança o homem – e por conseguinte o mundo criado
– vive carente de sentido, podendo mesmo chegar a conceber-se,
como fez M. Heidegger, um “ser-para-a-morte”.5
1. O homem, ser de esperança
Comecemos por averiguar as raízes antropológicas do tema, estabelecendo que tipo de relação existe entre a condição humana e a
esperança. Tentemos averiguar se a necessidade de esperança é marginal à condição humana ou se, pelo contrário, é algo que está profundamente enraizado na sua experiência existencial e histórica6.
1.1 O homem, ser aberto ao futuro
A compreensão que hoje se tem do homem é a de um ser em
dinamismo de realização, de devir, em abertura ao futuro. É espírito
encarnado e, por isso mesmo, presença a si próprio e projecção para
além da sua ipseidade, abertura ao infinito. É um ser em tensão para
uma realização ilimitada de si, que ao mesmo tempo se experimenta
física, geográfica e temporalmente situado. Tem consciência da sua
finitude.
Há, por isso mesmo, uma tensão interior à condição humana.
Por um lado é espírito a projectar-se no tempo, radical abertura ao
futuro, para se realizar sempre mais, a partir da sua capacidade de
ser e devir outro, dinamismo de superação e transcendência de si
próprio.7 Por outro lado, esta aspiração é vivida na consciência da
Cf. Martin HEIDGGER, Ser e Tempo, vol II, Editora Vozes, Petrópolis,
20029, 34-51.
6
Cf. G. PIANA, “Espérance”, in: Dictionnaire de Vie Spirituelle, Paris, Cerf,
1987, 327.
7
Emmanuel Levinas apresenta como abertura metafísica a uma alteridade
transcendente esta tensão entre desejo ilimitado e consciência dos limites:
“ ‘A verdadeira vida está ausente.’ Mas nós estamos no mundo. A metafísica
surge e mantém-se neste álibi. Está voltada para o ‘outro lado’, para o ‘doutro
5
A esperança que transforma e transfigura
145
limitação que restringe a sua abertura aos outros e ao mundo. Usando a expressão de G. Pianna, a natureza humana “desvela-se como
‘fechada-no-provisório’ e ‘aberta-ao-infinito’.”8
Ínsita à existência da humanidade verifica-se uma certa dramaticidade. Pela sua radical abertura a realizar-se sempre mais, o homem
não pode saciar-se definitivamente no horizonte do presente. Há
sempre uma parte de si que não se identifica com a sua existência
concreta. Aspira a mais. A morte surge no seu horizonte de vida como
o mais claro e objectivo de todos os limites, um destino inevitável
colidindo com o desejo interior de ser cada vez mais ele próprio. A
morte põe em causa o futuro mas não destrói o desejo de existir. É
esta a estrutura da esperança humana: o desejo de realizar-se sempre
mais para além dos limites conscientes, da morte e do tempo.
1.2 Esperança como elemento estruturante do ser homem
Visto deste modo o apelo à esperança – a aspiração a superar-se
no ser – pertence à estrutura do homem como espírito encarnado.
Ele está, pela consciência que tem de possuir uma identidade em devir, no tempo mas também acima e para além do tempo. Está movido ao desejo duma plenitude de ser que só o futuro dá possibilidade
de concretizar.
Por outro lado, o mundo é o espaço do seu agir. É através da
concretude, do horizonte finito que se cumpre o caminho do ser-sempre-mais, do desejo, da busca, sabendo que não há identidade
modo’. Sob a forma mais geral, que revestiu na história do pensamento, ela aparece, de facto, como um movimento que parte de um mundo que nos é familiar
– sejam quais forem as terras ainda desconhecidas que o marginem ou que ele
esconda – de uma ‘nossa casa’ que habitamos, para um fora-de-si-estrangeiro, para
um além. O termo desse movimento – o outro lado ou o outro – é denominado
outro num sentido eminente.” (Emmanuel LEVINAS, Totalidade e Infinito, Edições 70, Lisboa 2000, 21.)
8
G. PIANA, “Espérance”, in: Dictionnaire de Vie Spirituelle, Paris, Cerf,
1987, 328.
146
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
entre a finalidade a que aspira e a consciência de si. Homo viator,
como o chamou Gabriel Marcel. O mundo é oportunidade para a realização da esperança e também a sua provação. Cada um dos resultados do agir intramundano é, em virtude da aspiração de superação de
si, vivido como realização incompleta. Tal incompletude é também
prova, ou crise. “A esperança situa-se no quadro da prova, à qual não
somente corresponde mas constitui uma verdadeira resposta do ser.”9
A esperança humana tem a crise como elemento propulsor do ser.10
Contudo, o ser humano não tem apenas uma dimensão individual ou solitária. É estruturalmente relacional e social. O seu desejo
de ser sempre mais tem no outro o seu horizonte de realização. No
limite, a experiência da realização humana decorre na abertura e no
acolhimento do outro, dentro duma relação de comunhão interpessoal, vivido na história. A esperança, enquanto dinamismo de ser
levado à realização no tempo e na história (mas sempre aspirando
para além dela) é não apenas uma necessidade estrutural do indivíduo isoladamente considerado. Tem uma componente social e comunional. A esperança é realização do desejo de ser que se repercute
na situação da humanidade. Tem uma abrangência universal. A esperança humana implica-nos a todos na solidariedade duma mesma
condição.
9
Gabriel MARCEL, “Esquisse d’une phénoménologie et d’une métaphysique de l’espérance”, in: HOMO VIATOR. Prolégomènes à une métaphysique de
l’espérance, Aubier - Éditions Montaigne, 1963, 38.
10
“A crise de sentido nasce, com efeito, duma tensão imanente ao ser humano.
Mais profundamente que os nosso estados interiores em conflito, há uma tensão
primordial entre a significação e o sentido, entre a essência e a existência. Esta
tensão não irá ser resolvida. Enquanto o sentido está em crise, poder-se-á paradoxalmente dizer, conserva a sua transcendência. Situado no termo do desejo, abre
espaço às nossas vontades. Querer, a todo o custo, reduzir o sentido final a determinações bem determinadas para não sofrer mais nenhuma crise seria dar mostras
que a nossa vontade é suicida, decidindo-se a restringir o seu horizonte a formas
tranquilas e minerais da significação imanente. Seria extinguir a esperança. Assim,
a crise do sentido testemunha que no homem há mais do que o homem.” (Paul
GILBERT; “A crise de sentido”, in: Brotéria, 137 [1993], 450.)
A esperança que transforma e transfigura
147
1.3. Fundamento da esperança: utopia e escatologia
Acabámos de traçar uma noção de esperança caracterizada como
o desejo de ser-sempre-mais que leva o homem a agir transcendendo-se na história, manifestado nela algo de si que o futuro torna
possível existir de modo mais pleno. Ligada à noção de esperança
está a ideia de progresso, de sucesso, de cumprimento pleno do ser
humano.
Conforme for a concepção de homem, assim variarão as categorias que expressam o fundamento da esperança humana. Para quem
não concebe a existência humana aberta interiormente à metafísica,
sustentada por uma alteridade divina, o fundamento da esperança
humana é a utopia. Ou seja, o desejo de ser-sempre-mais apoia-se
na imagem ideal que ainda não existe na história (imagem utópica)
mas que o agir humano espera fazer chegar, confiado apenas nas suas
próprias forças. Apoiar a esperança humana apenas em si mesmo é o
caminho escolhido. Mas este caminho não resolve o drama da condição mortal do homem. A esperança de ser esbarra na objectividade
inultrapassável da morte. É uma esperança a prazo: tem a validade
dos anos que dura uma existência humana. Só um sentimento colectivo alivia e permite dar algum sentido ao esforço de pôr em acto as
razões duma tal esperança.
De modo diverso, quando a visão do homem assenta numa concepção do ser humano aberto à metafísica (a Deus), há a possibilidade de entender o dinamismo da esperança humana como expressão
de abertura à transcendência. É esta a visão cristã do homem que a
revelação bíblica nos oferece: o homem é imagem e semelhança de
Deus e, por isso mesmo, o seu desejo de ser é também imagem e
semelhança do próprio desejo de Deus. O fundamento da esperança humana não está, neste caso, colocado no próprio homem. Está
antes radicado no seu Criador, no totalmente Outro que sustenta e
possibilita o exercício da esperança como condição criatural.
O fundamento da esperança humana tal como surge na Revelação
não está no agir humano mas no agir de Deus para com o homem.
148
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
Usando a linguagem inaciana inspirada no Princípio e Fundamento11 podemos dizer que o homem é criado para a esperança que não
desilude pois é Deus quem, desde Si próprio, sustenta a esperança
humana, levando-a à plenitude.
A esperança bíblica apoia-se no dinamismo da promessa e na espera messiânica. É uma esperança que não exclui ou repudia a liberdade e o desejo de ser-sempre-mais na história mas que antes solicita
a sua colaboração, garantindo-lhe a condição de sucesso e realização
definitiva. A esperança é escatológica, isto é, apoia-se numa acção
de Deus irrompendo na história, capaz de renovar e recriar o desejo
humano de ser, ao ponto de o introduzir numa realização definitiva
– escatológica.
É uma certeza de plenitude que implica o tempo da história mas
se projecta na eternidade de Deus e é vivida sob o signo da aliança,
ou seja, da comunhão interpessoal. Esta é a nossa esperança. Esta é
a esperança que Jesus veio levar à plenitude e para a qual “por mim
se fez homem”12, para que O possa amar e seguir, no espaço e no
tempo onde posso comprometer com Ele o meu (nosso) presente e
futuro, a minha (nossa) liberdade e esperança.
É para realizar a esperança da vida em plenitude que o Verbo se
faz Homem, se despoja da Sua condição divina, não reivindicando
o direito de ser equiparado a Deus mas esvaziando-se a Si mesmo,
tomando a condição de Servo, tornando-Se semelhante aos homens,
humilhando-se a si mesmo fazendo-se obediente até à morte e morte
de cruz (cf. Fil 2, 6-8); para que o homem “seja-sempre-mais”, seja
introduzido numa relação recriadora que o constitui filho de Deus.
O centro da entrega e da revelação de Deus e da revelação do homem é o Mistério Pascal de Cristo. Esse é o lugar onde se muda e
transforma o ser humano em contacto com o amor de Deus.
11
12
Cf. Exercícios Espirituais de Santo Inácio, 23.
Cf. Exercícios Espirituais de Santo Inácio, 104.
A esperança que transforma e transfigura
149
2. Mistério Pascal de Jesus, realização definitiva da esperança
Como vimos, a raiz antropológica da esperança humana é o desejo de ser-sempre-mais: ser na história e na relação de abertura ao
outro. A realização da esperança passa necessariamente pelo amor.
As limitações da esperança humana, são também os limites da sua
capacidade de amar.
A este nível, precisamos de introduzir uma categoria propriamente teológica para clarificar o específico da visão cristã, a noção de
pecado. Pecado como carência de ser, como incapacidade de abrir-se
à relação com os outros e o Outro, como recusa da liberdade em realizar-se, doando-se para fora de si mesmo. É desta incapacidade de se
deixar amar que Deus nos cura e nos transforma através da Paixão e
Ressurreição de Seu Filho, descendo, Ele próprio até à nossa incapacidade, para a transformar desde dentro: “aquele que não conheceu
o pecado, Deus O fez pecado por nós, para que nos tornássemos
n’Ele justiça de Deus.” (2 Cor 4, 21)
2.1. O desejo de Deus pelo homem levado às últimas consequências
A paixão e a ressurreição de Jesus são uma entrega na absoluta
liberdade infinita e incondicionada de Deus. Incondicionada ao
ponto de se esvaziar para livremente assumir a nossa existência condicionada e sujeita ao mistério da iniquidade.
No centro do mistério pascal de Cristo está a comunhão com a
nossa condição de pecadores, de sujeitos aos limites do tempo e da
morte. É este abismo de descida sem fundo o modo do agir compadecido de Deus por nós e connosco. Deus, em Cristo, não nos ama
de fora ou de cima. Ama-nos do íntimo e de baixo. É um amante
que se abaixa, mais baixo do que nós, para que possamos fazer-lhe o
dom da aceitação.
150
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
2.2 A ressurreição começa nos infernos
O amor, escreveu Inácio, “consiste na comunicação recíproca, a
saber, em dar e comunicar a pessoa que ama à pessoa amada o que
tem ou pode; e, vice-versa, a pessoa que é amada à pessoa que ama;2
de maneira que, se um tem ciência, a dê ao que a não tem, e do
mesmo modo quanto a honras ou riquezas; e assim em tudo reciprocamente, um ao outro.”13
É esta comunicação recíproca que acontece na face dolorosa e
obscura da Sexta-feira e do Sábado Santos. O sofrimento de Jesus é
comunhão da nossa dolorosa situação de fechamento e de morte. A
esperança que nos salva inicia-se na descida à incapacidade de ser, de
se deixar ser e amar. Inicia-se na ida aos nossos limites mais objectivos: a morte e o desespero.
O Símbolo dos Apóstolos, apresenta como conteúdo da fé revelada a afirmação: “Jesus desceu aos infernos”. A ida de Jesus ao interior
da situação de morte é uma esperança actuante e actuada que está
absolutamente fora de tudo o que a criatura humana pode, por si,
supor ou esperar. É o absoluto deslumbramento de amor a que Deus
quer, pode e vai por si.
Hans Urs von Balthasar centra na descida aos infernos, realizada
no Sábado Santo, o princípio de toda a vitória da ressurreição. Por
isso esta descida é tão gloriosa. Porque é, simultaneamente, entrada
na nossa (in)capacidade de esperança, é entrada no nosso desespero.
É uma descida do Verbo “feito pecado”, não porque Ele seja pecador,
mas, ao invés porque Ele é o Santo. E só o Santo é capaz de ser-connosco no pecado. Só Ele é suficientemente poderoso para poder não
poder em comunhão connosco. Esta descida é universalmente abrangente. Não se exerce apenas em relação a um só indivíduo mas atinge
a condição humana. É comunhão com todas as pessoas de todos os
tempos e lugares. Transcende, na sua radicalidade, o espaço e o tempo, atravessando-os e irrompendo num acto recriador do homem.
13
Exercícios Espirituais de Santo Inácio, 231.
A esperança que transforma e transfigura
151
Cristo é, no Sábado Santo, solitário com os solitários, fraco com
os fracos. Afirma Hans Urs von Balthasar: “A sua fraqueza pode e
deve ser identificada com […] a segunda morte, que em si mesma é
idêntica ao pecado como tal, pecado que não é mais inerente a cada
homem em particular, não se encarna em existências vivas, mas abstrai desta individuação e é contemplado como pecado na realidade
nua e crua (pois o pecado é uma realidade!).”14
Este é um acontecimento e uma acção trinitária. É o Pai que
envia o Filho, introduzindo-o como encarnado, na situação do mais
radical limite humano, no inferno como última consequência possível da liberdade criada.15 Indo, estando e amando infinitamente,
Cristo “transforma em caminho aquilo que era prisão”16, transforma
em acto de amor aquilo que era acto de perdição.
2.3. Do desespero à esperança
A ressurreição de Cristo começa no inferno. É desse lugar, ou
melhor, desse estado espiritual, que Cristo vai ser ressuscitado.17 A
esperança que nos transfigura encontra-nos no abismo do maior dos
desesperos possíveis: a incapacidade de sair de si para ser com o Outro e os outros. É o Verbo que entra nesta incapacidade. E, por isso,
a ressurreição começa por ser agónica.
Como afirma Adolphe Gesché “Não é portanto, apenas a Cruz
que representa o combate e a libertação do mal. Também a ressurreição (saída vitoriosa de um combate nos infernos, vitória contra o
último poder do mal – o arrancar das vítimas à morte – é um combate e uma libertação. A Ressurreição é também agónica (um combate). A obra da salvação não foi só agónica na Paixão e na Cruz, mas
14
Hans Urs von BALTHASAR, Mysterium Paschale, in: Mysterium Salutis,
III/ 6, Editora Vozes, Petrópolis, 1974, 117s.
15
Cf. Ibidem, 119.
16
Ibidem, 120.
17
Cf. Adolphe GESCHÉ, “A agonia da Ressurreição ou a descida aos Infernos” in: A salvação em Jesus Cristo, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 1993, 159.
152
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
também na Ressurreição. […] A Ressurreição não foi tarefa fácil.
Pode perguntar-se se para o próprio Cristo esta saída dos Infernos
não teria sido concretizada com “grande fadiga”, o que seria expresso pelo tema da Direita (poder e força) do Pai, indispensável para
o libertar, e pelo tema do poder do Espírito, que impulsiona Cristo
para a Ressurreição.”18
A transformação da esperança humana começa por ser um combate contra as forças do mal, vencido pelo poder de amor infinito
que a Trindade exerce em Jesus Cristo. A ressurreição começa no
consentimento dado a Cristo para que Ele assuma e comungue o
nosso próprio ser. Ainda que prisioneiro, morto, desesperado. Nada
substitui este consentimento. Ele é o início da realização da esperança pascal, “onde a noite da dor se abre à luz da ressurreição” (Missal
Romano).
Se olharmos para a vida de variados santos vemos que, a determinado ponto, foram convidados por Cristo a arriscarem-se a uma
entrega incondicional, a seguir Cristo até estes abismo de abandono
confiante à acção do Pai e de comunhão com a fraqueza humana.
Muitos sentiram-se introduzidos numa experiência de ausência total
de Deus, uma inexplicável distância análoga à do próprio Filho de
Deus. “Permanece no inferno e não desesperes” – dirá o Senhor ao
Staretz Silouane.19
A esperança cristã – que no seu nível mais profundo é uma teologia da Cruz – não tem medo do negativo. “É uma esperança crucificada que se abre ao dom da ressurreição. É mediada não pela possibilidade duma desilusão, mas por uma desilusão efectiva: a Cruz
Ibidem, 164.
O P. Jean Lafrance relata no seu livro A oração do coração, um episódio relativo a um jovem noviço, de nome Silouane, dum mosteiro ortodoxo:
“Um dia em que está acabrunhado por sofrimentos e tentações de toda a espécie, pede ao Senhor que lhe diga o que há-de fazer para que o seu coração se torne
humilde. E o Senhor respondeu-lhe: ‘Em pensamento, conserva-te no inferno e
não desesperes.’ Tal como Jesus, desce aos infernos e ao experimentar o seu pró18
19
A esperança que transforma e transfigura
153
de Cristo. É pois uma “esperança contra toda a esperança (Rom 8,
24-24; Hb 11, 1)”.20
3. A comunhão trinitária que transforma e transfigura
A ressurreição é acontecimento trinitário. Por essa razão a esperança cristã enraíza-se no agir da Trindade nos dinamismos da sua
criatura. A acção vitoriosa sobre Cristo morto e identificado com a
condição humana é obra do amor e da fidelidade do Pai em resposta
ao abandono obediente do Filho, mediada pela entrega do Espírito
Santo sem medida e recriando o próprio Cristo. A humanidade do
Cristo ressuscitado é nova; “Ele é o primogénito de entre os mortos”
(Col 1, 18). É uma obra da esperança.
Se é verdade que a ressurreição começa numa agonia, atinge
porém a sua plenitude na experiência da comunhão interpessoal da
condição humana com as Três pessoas divinas. A natureza humana
é transformada pelo influxo deste agir. A comunhão é recriadora.
O Cristo ressuscitado é um fruto da comunhão da Trindade com
a condição humana que, na profundeza dos seus limites, realiza um
consentimento de amor. O Ressuscitado é a experiência plena da
comunhão de duas natureza numa só carne humana.
O Cristo Ressuscitado que as aparições testemunham como o
Vivente não é apenas aquele que foi crucificado. É o Senhor glorificado, em quem a capacidade e o desejo humano de se realizar
continuamente recebe e oferece a própria vitalidade de Deus. O
Cristo pascal, por outro lado, não é só o Ressuscitado. Ele une em
si os dois momentos instituindo uma nova qualidade do ser: Ele é
prio pecado comunga com a angústia, o sofrimento e a solidão dos seus irmãos
afastados de Deus. Então, pode clamar para o Pai, suplicar-lhe que tenha piedade
e que o arranque, bem como a todos aqueles de quem é solidário, do abismo do
pecado.” (in: A oração do coração, Edição Cidade do Imaculado Coração de Maria,
Fátima, 1990, 108.)
20
G. PIANA, “Esperance”, in: Dictionnaire de Vie Spirituelle, Paris, Cerf,
1987, 331.
154
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
o Ressuscitado que traz em si as marcas da Paixão e, por isso, é o
ressuscitador no meio das dores. Ou, usando a linguagem de Inácio,
é o Consolador, capaz de, doravante, derramar a consolação espiritual, comunicando o Espírito Santo no abismo mais profundo do
sofrimento. Uma consolação que, de tão espiritual se torna também
corporal, capaz de mudar a forma e a figura duma humanidade prisioneira dos seus limites.
N’Ele a esperança humana é fecundada na sua possibilidade de
ser-sempre-mais e de desejar realizar-se no tempo e na relação com
o Outro. Porque no Ressuscitado está em acção o dinamismo da
comunhão interpessoal vivido na Trindade. Esta esperança, assim
entendida não como um sentimento mas como um dinamismo
inesgotável de ser, não acabará. É uma esperança que abre continuamente à surpresa do amor. A Trindade é um abismo inesgotável,
fonte e realização da esperança humana.
Só o Ressuscitado é capaz de introduzir numa esperança que é
experiência do êxtase do amor.
3.1. Só o amor transforma
Jesus Ressuscitado é a confirmação de que a esperança humana
encontra no abandono, porventura desolado, ao amor do Pai, do
Filho e do Espírito a garantia de uma realização segura e definitiva.
Ele tem em si mesmo o senhorio desta vivificação que transforma.
A esperança humana tem n’Ele o seu ponto de apoio definitivo. O
fundamento da sua realização já não está nem na natureza humana
nem na história onde se desenrola o seu agir. Está no próprio agir
de Deus aceite no mais íntimo da nossa capacidade de desejar, ser e
fazer.
E sendo a Ressurreição a expressão da comunhão definitiva, ela
abre a uma esperança activa. Uma esperança que não é espera. É
desejo entregue vivido na fé. É certeza duma acção, que pelo excesso
da sua entrega e poder, desce a profundidades maiores do que aquelas que os sentidos humanos podem registar. Mas é uma esperança
A esperança que transforma e transfigura
155
actuante. O amor é sempre transformante. A comunhão na entrega e
acolhimento recíprocos transforma os que se entregam na novidade
do “nós”. Os encontros com o Ressuscitado trazem em si o sinal da
transformação. O que Deus toca, se lhe consentirmos, transforma.
3.2 A ressurreição, princípio duma vida nova
A experiência de encontro com o Cristo Ressuscita inaugura o
princípio de uma vida nova, de uma condição humana radical e
absolutamente nova. E não só nova condição da humanidade mas
também do mundo e da história. Introduz na experiência do tempo
e do espaço um novo dinamismo de comunhão com a eternidade. É
entrada no tempo absoluto de Deus e inabitação do tempo de Deus
no nosso.
A Ressurreição de Cristo é início duma vida nova, antes de mais
para o próprio Jesus. O Filho não retorna ao que era dantes: nem ao
que era antes da Paixão, como Verbo feito homem, nem ao que era
dantes quando era no seio do Pai. Este é um ser novo, gerado a partir
do encontro amoroso das duas naturezas divina e humana, unidas
numa total entrega. É algo totalmente novo e por isso, no encontro
com o Ressuscitado cada um de nós confronta-se com a imagem
daquilo que é chamado a ser e a deixar ser. O futuro é antecipado
na presença do Cristo Pascal. Através do Espírito que comunica sem
cessar, constitui-se a razão da nossa esperança e fundamento para
que posamos aceitar como nosso o Seu destino de glória.
A Ressurreição é o fundamento da fé especificamente cristã. “Se
Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé!” (1 Cor 15, 17) É o acontecimento que está na origem do anúncio da salvação e a comprovação
de que a Páscoa de Jesus é, afinal, mistério não de morte mas de vida.
É o selo que atesta o sentido totalmente outro que, se não fora Deus
dar-no-lo conhecer, nos estaria vedado e, agora, é oferecido como
horizonte de vida a partilhar. Oferecido mas não “impingido”.
No entanto, a presença entre nós do Vencedor da Morte não
elimina a tensão entre o que somos e o caminho de transfiguração
156
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
que devemos percorrer sob o signo da entrega total que o amor verdadeiro requer. A Ressurreição antecipa, em gérmen, os frutos que
estamos chamados a dar.
Se é verdade que vitória de Jesus é para nós e connosco, a todos
alcançando em potência, na misteriosa solidariedade comum ao
género humano (abordada no primeiro ponto), também é verdade
que essa vitória não nos retira de continuarmos a viver, na história,
numa dialéctica interna de cumprimento e de promessa, até que se
cumpra plenamente em nós o Mistério Pascal do Filho. Por isso, a
Ressurreição não é um simples acontecimento já realizado. É obra a
ir sendo realizada desde o interior do tempo histórico em que ainda
vivemos. É um sinal de esperança que atesta, por antecipação, aquilo
que está por vir e acontecer ao Cristo total, ao Corpo Místico.
É esperança que transforma os nossos critérios e prioridades
porque é certeza de uma vitória que virá mas exige uma actuação
concreta sob a forma dum acto de amor afectivo e efectivo. É esperança porque é actividade de Deus em nós! Ele dá resposta e realiza
o desejo de ser-sempre-mais-nós-mesmos na relação de comunhão
com o Outro e os outros. É esperança, ainda, porque o caminho a
percorrer não será feito só de luzes e consolações, mas também de
perplexidades e noites.
Lembrando Lavoisier, podemos afirmar: oferecidos à comunhão
com Cristo, morto e vivente, nada se perde, tudo se transforma. É
uma esperança diferente da espera, embora exija paciência: os ritmos
de Deus não são os nossos. Vive-se no dinamismo do desejo e da
liberdade: é uma vida a gerar-se no acto de entregar-se sem reservas à
vontade do Pai que muitas vezes, não conhecemos nem percebemos
em cada curva do percurso.
Mas sabemos que é fecundo.
4. “Estar de Esperanças”
– “Mulher, porque choras?” – é a pergunta que S. João coloca na
boca de Jesus Ressuscitado, durante o diálogo com Maria Madalena.
A esperança que transforma e transfigura
157
Esta pergunta dirige-se-nos também a cada um. Sobretudo nos momentos em que, do interior do nosso caminho pascal, nos fixamos
mais no que perdemos do que no dom recebido; mais no sofrimento
do que na vida a ser dada e comungada; mais nas nossas próprias e
frágeis certezas do que confiamos abandonadamente à força do Deus
que já assumiu em si o que somos.
Também hoje o Senhor pergunta aos que O amam e a esta nossa
geração, do interior das suas experiências de perda, desilusão, apatia,
suicídio: “Porque choras?” Como se a resposta estivesse subentendida pela Sua própria presença: “Eu estou aqui!” Aqui, neste tempo e
lugar, nesta experiência que vives, nesta solidão que atravessas, nesta
dor que te foi oferecida como também nas alegrias que experimentas, no silêncio que te habita e no imenso bem que contigo quero
fazer, no que és e podes vir a ser e não suspeitas.
A Ressurreição de Cristo é a certeza da fecundidade da Cruz e do
Sábado Santo, como de todos os momentos de partilha e vida oculta
que os pressupõem e preparam. A Esperança nascida deste encontro,
depositada como semente no interior da nossa liberdade, introduz-nos no mistério da Igreja, gestante do Cristo Pascal. É a esperança
duma maternidade crística e eclesial já a desenrolar-se e aguardar o
tempo do seu pleno cumprimento.
Usando uma expressão da nossa língua portuguesa, direi que
a comunhão com a compaixão do Ressuscitado, permite-nos não
só ser e ter esperança mas “estar de esperanças”, isto é, saborear as
primícias duma vida nova cuja existência passa também pela nossa
resposta. Como a vida dum filho a ser gerado passa pela resposta que
mutuamente se deram os pais. S. Paulo expressou-o nestes termos:
“Filhinhos meus, por quem sofro de novo as dores de parto até que
Cristo seja formado em vós” (Gal 4, 19).
Esta afirmação, tanto mais interpeladora quanto proferida por
um homem, testemunha a qualidade desta Vida que se derrama do
Ressuscitado inserindo cada um dos que se lhe entregam sem reservas, num estado de graça que é estado de esperança. Como se vive
esta esperança? Com gratidão e com a resposta na totalidade de si.
158
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
O caminho da esperança é, pois, o da entrega, o do oferecimento
de si: na interioridade da relação com o Senhor, concretizado no
compromisso para com o mundo.
Agir segundo a Esperança que nos habita
O Cristo ressuscitado convoca-nos à missão. A esperança é transformante na devida proporção em que se torna força para a missão e
para o serviço. Se Cristo nos transforma em Si (tendo-nos assumido
até ao abismo dos infernos) é para O servirmos já neste mundo e
nesta história. O serviço é componente da esperança. Querer viver a
esperança na espera seria enganarmo-nos a nós mesmos, esquecendo
que a Páscoa ainda não atingiu a sua plenitude. A tensão entre o
gérmen (princípio) da ressurreição e a sua realização plena resolve-se
no dinamismo do oferecimento que salva os outros e o mundo.
A força do amor que nos impulsiona para o absoluto de Deus
não pode ser um motivo para desistir do compromisso nas estruturas deste mundo ou recusar entrar nas dores de cada geração, para
oferecer a Deus a possibilidade de encarnar de novo e consumar a
transformação de morte em vida.
A Eucaristia que o Pai celebra no Filho é razão para celebrar na
vida, com a mesma ardente –“Tenho desejado ardentemente comer
esta Páscoa convosco” (Lc 22, 15) – paixão com que Ele celebra na
última ceia pois cabe-nos também a nós tornar Cristo presente em
gestos que mudam a face da terra. Ou que mudam o coração do
outro.
A verdadeira esperança que transfigura tem de ser – só pode ser
– aquela que se dirige apressadamente para os locais onde o nosso
sofrimento habita, a fim de permitir à compaixão de Cristo assumir
essa dor e dar-lhe um sentido que a transforma. O sinal mais claro
de que a Esperança na plenitude futura nos habita é o compromisso
com as carências de sentido do mundo, no presente que vivemos.
No sofrimento da carência Deus também habita e quer ser encontrado. E habita com poder redentor.
A esperança que transforma e transfigura
159
Nada de demissões, pois. Nada de ansiedade activista, porém. A
esperança do Cristo Vivente é uma moção do Espírito do Pai e do
Filho em nós. Há um caminho e um meio para cada um a realizar e
saborear, a viver e testemunhar.
O Reino de Deus já pode ser experimentado nesta nossa condição de peregrinos. Porém, a plenitude do agir de Deus em nós não
será alcançada senão quando tivermos passado, configurados com
Cristo, pelo mistério da morte. Cristo ressuscitado não nos promete
a plenitude da consolação para este nosso tempo histórico. Prometenos antes que, andando com Ele no serviço que o Pai lhe confiou,
haveremos de O conhecer como o Filho O conhece, quando o tempo da história chegar ao seu fim.
5. Desejo aberto ao infinito: em Cristo, esperar por todos
Quem é encontrado pelo Ressuscitado faz a experiência da mais
radical surpresa. Uma surpresa que atesta da pequenez dos nossos
projectos e desejos, da metas que vamos traçando para nós próprios.
Ser encontrado por Aquele que escolheu morrer de amor por nós e
connosco é experimentar o abismo do desejo de Deus de que o nosso
próprio desejo é imagem e sinal.
A esperança da Ressurreição tem de ser vivida dentro duma atitude orante e contemplativa. A oração, como atitude de disponibilidade e abandono à surpresa do que Deus pode querer de mim, é,
juntamente com compromisso activo, o modo de viver a esperança.
A partir da consciência do que o Senhor já fez e está fazendo em
nós, dada pelo percurso orante onde cada um vai sendo conduzido
pelo querer de Deus, é possível, com Cristo, experimentar a dilatação do desejo que sustenta a esperança cristã. Desejo já não só da
comunhão com a Trindade mas, por causa dessa comunhão, desejo
por cada homem e mulher concretos.
A plenitude da Esperança, vivida na condição de peregrinos, é a
compaixão. A entrega de si pelo desejo de amar os outros, movida
pelo mesmo desejo ardente de Deus. Inácio diria, na sua linguagem:
160
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
desejo de “fazer bem às almas”, pondo-as em rota de encontro e comunhão com Aquele que as pode realizar plenamente.
A esperança é tanto mais intensa quanto mais universal. Não nos
contentemos com pouco! Cristo ofereceu-se ao Pai para ser a nossa
esperança, a pessoa feita dom que abre caminho relacional, aí – nos
infernos das nossas prisões – onde não havia caminho. N’Ele e com
Ele a esperança a que somos chamados deve abrir-se a que nossa vida
possa ser caminho relacional para Deus. A esperança, na medida em
que é desejo a realizar-se, deve abrir-se para um descentramento de
si: esperar os outros em Deus e oferecer-se para que todos O encontrem.
Esperar, de forma activa, pela comunhão misteriosa naquilo que
o outro é e vive na sua maior profundidade, como pela partilha das
condições materiais. Ofereçamo-nos para ser n’Ele, a esperança uns
dos outros. Esperemos por todos, no mistério da morte e Ressurreição de Cristo. N’Ele não há impossíveis! Querem fazer a experiência? Ofereçam-se para a salvação do mundo!
A NOVA ERA DO ESPÍRITO
Manuel Morujão, S.J.
Prólogo de um crente, por vezes ateu praticante
Comunicaram-me o tema desta semana de estudos, pedindo-me
para falar sobre «A nova era do Espírito». Achei que devia dizer sim,
até porque tenho alguma experiência de encontrar pessoalmente esse
«Senhor que dá a vida e procede do Pai e do Filho», e sempre me
maravilha a sua eficácia espantosamente discreta.
Como não gosto de deixar as preparações para a última da hora,
pois as pessoas merecem essa prova de respeito, logo me pus em
campo. Pensei onde havia de arranjar bibliografia conveniente.
Procurei quem me desse pistas para estas considerações. Busquei
uns apontamentos onde tinha alinhavado umas ideias. Parei a imaginar qual poderia ser o esquema. Reflecti sobre algumas possíveis
linhas mestras. Comecei a rabiscar umas notas que servissem de
base. Tudo parecia estar bem encaminhado. Não faltaria assunto
de conversa. Sentia-me confortavelmente instalado nas minhas
seguranças.
Um remorso positivo me começou a assomar à consciência. Ia
falar do Espírito, quase que dispensando a sua presença. Parecia-me
que a clarividência das minhas ideias levava a melhor sobre a iluminação do Espírito Santo... Depois de experimentar a presunção da
auto-suficiência, foi ocasião de arrependimento e conversão. Haverá
melhor fonte de inspiração que o Espírito Santo?! Que poderemos
nós dizer de melhor sobre o Espírito de Deus senão aquilo que Ele
próprio nos disser de Si mesmo?!
162
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
Então, convido-vos a rezar comigo, silenciosamente, a seguinte
oração, em ritmo lento e meditativo, para que também este tempo
de encontro seja mais nosso, porque do Espírito que aqui nos convoca, acompanha e anima:
Ó Espírito Santo que, desde sempre sem princípio,
unes o Pai e o Filho, põe-nos em comunicação com as Pessoas Divinas,
e assim faremos parte da tua Família.
Espírito de Deus, que és o Amor em Pessoa,
vem amorizar os nossos desamores
e as nossas meias medidas de amar e servir.
Espírito Santo que, no Pentecostes, desceste em línguas de fogo,
o mesmo fogo que Cristo veio lançar à terra,
torna-nos incendiários de dinamismo e criatividade,
a fim de fazermos novas todas as coisas e sobretudo a nós mesmos.
Que dizes de Ti mesmo, Espírito Santo?
Que é que queres que digamos de Ti?
Ajuda-nos para acertar com a tua resposta,
a fim de sermos mais divinos como tu és humano,
e de uma eficácia absolutamente discreta.
Que não sejamos nós a falar, a sugerir e a fazer,
mas tu, Espírito divino, a agir em nós e por nós.
Amen!
1. Apresentação do Espírito Santo
1.1. À procura de Deus por caminhos alternativos
O mundo em que vivemos, de modo algum, é um mundo alheio
à dimensão espiritual da pessoa humana. A história dos últimos
decénios prova bem que «o homem é um animal incuravelmente
religioso»1. As sucessivas ondas de ateísmo, secularização, desmisti1
Atilano Alaiz Prieto, As seitas e os cristãos, Edições São Paulo, Lisboa, 1994, 55.
A nova era do Espírito
163
ficação e indiferentismo parece que têm feito ressurgir a dimensão
religiosa, espiritual da pessoa humana.
A diminuição da prática religiosa, a perda da fé simples e predisposta a acreditar sem restrições nem fronteiras, teve como reacção
uma procura desenfreada de um espiritualismo, inventado à medida
humana, segundo a ementa dos próprios gostos e conveniências.
Uma reinvenção de Deus está em curso. O livro do Génesis assim
nos relata a criação: «Deus criou a pessoa humana à sua imagem,
criou-a à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher» (Gn 1,
27). Hoje assistimos ao fenómeno inverso: Os homens criaram deus
à sua imagem. Criaram um deus para todos os gostos… Assim Deus
fica ao alcance da mão, um «tamagochi» sobrenatural, um infinito
domesticado, que nos sirva eficazmente, como e quando nós melhor
acharmos…
O fenómeno de afastamento e descrença em Deus, que alguém
apelidou de «crepúsculo de Deus», ou a «morte de Deus», teve como
resposta o ressurgir do movimento oposto que já classificaram como
a «vingança de Deus»2: quem se nega a acreditar no verdadeiro Deus,
fica condenado a acreditar em qualquer tipo de deuses ou ídolos.
Abundam actualmente os caminhos alternativos ao cristianismo
e às outras grandes religiões monoteístas, com que os homens e
mulheres de hoje procuram aprofundar a sua dimensão espiritual,
encontrar soluções para o sentido da vida e sentir-se seguros. São
forças concorrenciais ao genuíno Espírito de Deus: novos movimentos religiosos (talvez o mais difundido e abrangente seja a «nova era»
ou «new age»), seitas, espiritismo, exoterismo, adivinhação, bruxaria,
cartomancia, astrologia… tudo isto alimentado por filosofias, regimes e sistemas de vida… A oferta é tão grande e diversificada, que
dá a impressão de um supermercado de espiritualismos, onde tudo
se vende e se compra, se experimenta e também se deita fora.
Este clima de relativismo ético e religioso em que tudo vale, tudo
tem o seu lugar e cada um que escolha como bem entender, apesar
2
Gilles Keppel, La revancha de Dios, Anaya-Mario Muchnik, Madrid, 1991.
164
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
de tudo tem seu quê de profético3. São gritos de espiritualidade que
não acertaram no tom e no compasso certo. Como que clamam:
«Não podemos escapar a Deus»4, usando uma expressão de um
pensador que foi Ministro da Cultura em França, André Malraux.
Até o próprio acto de negar a Deus é já, de algum modo, afirmá-lo.
Ninguém perde tempo e energias a negar o nada. André Frossard,
que persistiu em viver longe de Deus, durante largos anos, como se
não existisse, faz a seguinte pergunta que é já uma resposta: «Quem
é Deus senão aquele que nos faz pôr a questão?»5.
Para que acertemos, sempre mais e melhor, em dar lugar ao Espírito de Deus na nossa vida, fiz estas advertências iniciais. É que há
Deus e deus, Espírito e espíritos. É um discernimento que importa ter
sempre em conta.
1.2. «Curriculum vitae» do Espírito Santo
Poderá ser chocante usar esta imagem. Não queria ofender a discrição e simplicidade da terceira Pessoa da Santíssima Trindade. É
que se fala pouco do Espírito e menos ainda se cultiva uma relação
pessoal com Ele. O Espírito é o «Deus desconhecido»6. Faz parte
essencial do «curriculum vitae» a sua infinita discrição, o que não
significa, de modo algum, falta de eficácia.
Não se sabe a data nem o lugar do seu nascimento. Sempre existiu, para além da criação do tempo e de todo e qualquer lugar. A
Os novos movimentos religiosos podem ser comparados às manifestações
religiosas primitivas, que «estão misteriosamente atravessadas de bosquejos e esboços proféticos». Cf. L. Bouyer, Il Consolatore. Lo Spirito Santo e vita di grazia,
Paoline, Roma, 1983, 18.
4
André Malraux, François, la fraternité au bord du fleuve, Cerf, 1971, 19.
5
André Frossard, Il y a un autre monde, Fayard, Paris, 1976, 77.
6
Podemos aplicar ao Espírito Santo esta expressão «Deus desconhecido» (cf.
Paulo discursando no Areópago de Atenas: Act 17, 23), tanta é a ignorância a propósito da terceira Pessoa da Trindade (cf. Victor Dillard, Au Dieu inconnu, Paris,
Beauchesne, 1938).
3
A nova era do Espírito
165
sua origem é o Pai e o Filho, de quem procede, mas isto exclui precedências temporais ou subjugações de importância. Na Trindade
realiza-se em infinito o ideal da convivência humana: Todos iguais,
todos diferentes. Todos por um, um por todos. A omnipresença faz parte da sua essência.
O Espírito Santo não tem um nome solene e pomposo. Em hebraico diz-se ruah; a tradução em grego é pneuma; e, em latim, spiritus. Significa sopro, vento. Dá a impressão de ser pouco consistente e
poderoso. Mas é a vida por dentro, interioridade infinita, despojada
de toda a ostentação e aparência exteriores.
O Espírito, diferentemente do Pai e do Filho, não tem representação humana. Baste considerar a iconografia trinitária: à frente do
Pai eterno, cheio de vigor, está Cristo Salvador, em tudo igual a nós
menos no egoísmo, ostentando a cruz da redenção do mundo; por
cima, quase que já fora do quadro, uma pomba e línguas de fogo,
parecendo mais um elemento de decoração do que o coração do retrato. O Espírito Santo não tem rosto. «Ele não é para nós um face
a face, não é um Tu, mas permanece um Ele. Tal como a terceira
pessoa dos quadros da nossa gramática (…), Ele é aquele de quem
se fala, não é um parceiro a quem nos dirigimos»7. Perdoem-me a
pequenez da comparação: o Espírito está presente em plenitude na
realidade de Deus como o fotógrafo que se oferece para ficar fora da
fotografia para que os outros fiquem nela.
Falando agora do emprego ou ocupações do Espírito Santo, e
forçando a impropriedade dos humanos termos até ao extremo, podemos dizer que é especialista em construir pontes de unidade e em
traduzir a diversidade de línguas.
Sem Espírito Santo, não existia Deus. O Pai e o Filho seriam dois
quase-deuses, duas forças concorrenciais, o que, a nível infinito, seria
uma infinita tragédia. Ora o Espírito Santo é o amor absoluto que
circula entre o Pai e o Filho e vice-versa, fazendo a ponte da unidade
Bernard Sesboüé, Pensar e viver a Fé no terceiro milénio, Gráfica de Coimbra,
Coimbra, 2001, 462.
7
166
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
indissolúvel. Esse amor infinito, substancial e unitivo é a Pessoa do
Espírito. Cito o Papa João Paulo II na Encíclica sobre o Espírito
Santo: «Na sua vida íntima, Deus é Amor, amor essencial, comum
às três Pessoas divinas. Mas amor pessoal é o Espírito Santo... É a
Pessoa Amor»8. Ou como afirma o P. Charles Bernard, o Espírito
Santo «é o amor em pessoa». O seu doutoramento ou especialização é
«Amoris Causa», em grau infinito.
Dadas as distâncias abissais entre Deus e nós, entre a Santidade
e os pecadores, entre o Absoluto e a nossa pequenez frágil e contingente, como será possível o encontro? O Espírito de Deus possibilita
este encontro na mais profunda das intimidades, passando nós a sermos de facto, graciosamente, filhos de Deus: «Todos aqueles que são
movidos pelo Espírito de Deus, são filhos de Deus. Vós não recebestes um espírito de escravidão, para cair de novo no temor; recebestes,
pelo contrário, um espírito de adopção, pelo qual clamamos: “Abba,
Pai”. O próprio Espírito atesta, em união com o nosso espírito, que
somos filhos de Deus; filhos e igualmente herdeiros, herdeiros de
Deus e co-herdeiros de Cristo» (Rom 8, 14-17). Recordo-me que
o P. Júlio Fragata costumava sublinhar que a filiação adoptiva não
é uma filiação simulada, fictícia, virtual; somos realmente filhos
de Deus, embora tal não seja por direito, mas por graça oferecida.
S. Paulo, para comprovar a nossa filiação divina, recorda que seremos também herdeiros da mesma herança de Cristo.
Indiquei como outra ocupação do Espírito Santo a tradução de
línguas. Em primeiro lugar na nossa relação com Deus. Como é
que o nosso balbuciar orante é entendido por Deus? Como é que as
nossas palavras desajeitadas e impróprias conseguem fazer-se explicar a Deus altíssimo? S. Paulo lembra-nos que «o Espírito vem em
ajuda da nossa fraqueza, pois não sabemos o que devemos pedir em
nossas orações, mas é o próprio Espírito que intercede por nós com
gemidos inefáveis» (Rom 8, 26). Tradução de línguas entre nós, faciJoão Paulo II, O Espírito Santo na vida da Igreja e do mundo – Carta Encíclica
«Dominum et vivificantem», Editorial AO, Braga, 5.ª edição, 1997, nº 10.
8
A nova era do Espírito
167
litando a comunicação fraterna, no estilo do Pentecostes: «Atónitos
e maravilhados diziam: “Mas quê! Essa gente que está a falar não é
da Galileia? Que se passa então que cada um de nós os oiça falar na
sua língua materna?”» (Act 2, 7-8). Não é verdade que, se nos deixássemos conduzir mais pelo Espírito, conseguiríamos fazer-nos entender às pessoas mais diversas, porventura muito diferentes de nós?
O homem ou mulher espiritual é alguém que consegue fazer pontes
de unidade entre a múltipla diversidade de pessoas e de comunicar
com todos na própria língua de cada um.
Claro está que havia a dizer imensamente mais do «curriculum
vitae» do Espírito de Deus: dom entre as pessoas de Deus e dom de
Deus à humanidade; nosso advogado de defesa (paráclito) junto do
Pai; inspiração e criatividade inesgotáveis; fonte de dons pessoais e
de carismas para a edificação da Igreja… Julgo, no entanto, que o
Espírito Santo agradecerá que seja discreto acerca da sua pessoa. Ele
é como as raízes: sendo absolutamente essenciais às árvores, a sua vocação é fazer com que elas cresçam, se embelezem de ramos e flores e
dêem fruto abundante, ficando elas no anonimato e esquecimento.
O que o Espírito Santo deseja é que nós vivamos em plenitude.
2. Inácio de Loiola, peregrino dos caminhos do Espírito
2.1. A vida cristã é a vida no Espírito Santo
Costuma dividir-se a história de Deus connosco, em três eras: – a
era do Pai, referindo-nos à criação do mundo e à revelação ao povo
eleito; – a era do Filho, durante a sua encarnação: vida de Jesus salvador, sua morte e ressurreição; – a era do Espírito Santo: o tempo da
Igreja, em que se actualiza o mistério da salvação de Cristo, enviado
pelo Pai.
Estamos na era do Espírito Santo. É Ele que nos introduz na vida
cristã e nos conduz com a sua graça, até aos cumes da santidade e
da vida mística, na medida em que a nossa liberdade se abrir à sua
acção. Ninguém pode acreditar em Jesus Cristo sem ser pelo Espíri-
168
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
to (cf. 1 Cor 12, 13; 2 Cor 1, 21). É o Espírito Santo que nos torna
«participantes da natureza divina» (1 Pd 1, 4). O Espírito é a porta
de entrada e o caminho ascendente para chegar, por Cristo, ao Pai.
Não há outra alternativa cristã. Só o Espírito Santo nos pode cristianizar. Deveríamos pedi-lo ao Pai, com insistência corajosa, como
nos recomenda Cristo: «Se vós, que sois maus, sabeis dar coisas boas
aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo
àqueles que lho pedem!» (Lc 11, 13).
O tema merecia ser aprofundado, mas, por falta de tempo, fica
apenas o aceno. Julgo que agrade ao Espírito esta brevidade. Na vida
de Cristo, relatada pelos quatro evangelistas, nunca encontramos o
Espírito a falar. Nada diz, mas age com a discrição dos eficazes.
2.2. Inácio de Loiola, guiado pelo Espírito de Deus
A conversão de Inácio, sonhador com alcançar glórias do mundo,
deu-se, como sabemos, na convalescença dos graves ferimentos sofridos na batalha contra os franceses, defendendo a cidade de Pamplona, em 1521.
Recuperando a saúde, na sua Casa-Torre de Loiola, durante
largos meses sem poder fazer nada, foi lendo a vida de Cristo e dos
santos, porque não havia outra literatura mais a seu gosto. Foi esta a
ocasião providencial para ir examinando e ponderando a alternância
de estados de espírito, de consolação e desolação, de deleite e entusiasmo passageiros ou de paz e alegria duradoiras (Autobiografia,
7-8).
Nesta e noutras experiências têm a sua raiz existencial as «Regras
para o discernimento de espíritos» que Santo Inácio nos apresenta
nos seus Exercícios Espirituais (313-336) e que são um instrumento precioso para a avaliação interior dos nossos estados de espírito,
ultrapassando aparências e simulações. O seu uso assemelha-se à
aplicação dos programas anti-vírus na informática (no aspecto negativo) e aos motores de busca nas consultas pela internet (na vertente
positiva).
A nova era do Espírito
169
Na sua Autobiografia, que o P. Luís Gonçalves da Câmara teve
a arte de alcançar de Inácio, repetidamente se refere a si próprio
em terceira pessoa, como sendo «o peregrino». É verdade que geograficamente foi um grande peregrino, andando milhares de quilómetros, a maior parte das vezes a pé, sendo coxo. Mais verdade é
ainda que foi peregrino incansável das manifestações do Espírito, da
procura da vontade de Deus, da sua maior glória e do maior serviço
do próximo.
No Diário Espiritual, encontramos Inácio como que a acertar,
dia a dia, a agulha da bússola da sua vida e planos pelo Norte da
vontade de Deus, concretamente quanto ao regime de pobreza das
casas da Companhia. No que diz respeito ao Espírito Santo, usa as
imagens que a Escritura nos apresenta, como a da luz: «No meio
da oração costumada, sem eleições, oferecendo e pedindo a Deus
que a oblação passada fosse aceite pela divina Majestade, com assaz
devoção e lágrimas: e depois, um pouco adiante, em colóquio com o
Espírito Santo para dizer a sua missa, com a mesma devoção ou lágrimas, me parecia vê-lo e senti-lo em claridade espessa ou em cor de
chama ígnea, de modo insólito: com tudo isto, considerava a eleição
feita» (Diário Espiritual, 14). É também este o caso em que fica claro
ser o Espírito de Deus a agir em nós, pois a consolação nos aparece
sem causa precedente (cf. Exercícios Espirituais, 330).
O Diário Espiritual revela-nos Inácio em procura ardente, metódica, quase escrupulosa, do que Deus quer. E nós como procedemos
nas nossas dúvidas e perplexidades? Estamos num tempo em que
abundam as consultas, as sondagens, os inquéritos, as reuniões…
E que lugar damos ao Espírito Santo? Reunimo-nos com Ele,
consultamo-lo? Examinando a minha consciência, por vezes, dá-me
a impressão que tendo a ligar mais ao computador e sua ligação à
internet do que ao Espírito Santo, que tem um terminal no meu
coração, ou à Eucaristia, em que Cristo me aparece cada dia, para Se
me dar a comungar e, mais ainda, para me comungar a mim.
Nos Exercícios Espirituais, que Inácio de Loiola fez, escreveu e
orientou como leigo, até que foi ordenado sacerdote em Veneza em
170
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
1537, o Espírito Santo parece ser posto de lado9. Só nas passagens
evangélicas em que o texto o inclui é que aparece, e pouco mais. Só
vem posto em relevo na 13.ª regra para sentir com a Igreja: «Creio
que entre Cristo, nosso Senhor, e a Igreja, sua esposa, não há senão
um mesmo Espírito que nos governa e dirige para a salvação das
almas. Porque é pelo mesmo Espírito e Senhor nosso, que nos deu
os dez mandamentos, que é dirigida e governada a nossa Santa Mãe
Igreja» (Exercícios Espirituais, 365). Estranhamos facilmente que,
nos Exercícios, S. Inácio não tenha posto uma meditação sobre o
Pentecostes. Outros opinam que a contemplação para alcançar amor
é o Pentecostes dos Exercícios10.
É claro que temos que ser compreensivos para com S. Inácio,
pois a ausência de sublinhar o papel do Espírito Santo na vida cristã
deve-se ao seu cuidado para não ser confundido com os alumbrados.
Os alumbrados ou iluminados constituíam uma corrente de espiritualidade em que era dado um papel de tal modo preponderante ao Espírito na vida de cada cristão, que a Igreja e tudo o que era lei ficava
secundarizado, enaltecendo o subjectivismo espiritual e recusando
a religião das obras exteriores11. Recordemos que o jovem Inácio
de Loiola teve problemas com a inquisição em Alcalá e Salamanca,
quando ainda não tinha estudado e já orientava pessoas e dava práticas espirituais. Por isso, escrevendo, em 1545, a D. João III, rei de
Portugal, explicita claramente a propósito dos alumbrados: «nunca
conversei com eles nem os conheci»12. A polémica com forças radicais que combatiam possíveis heterodoxias, durante os primeiros
Sobre a dimensão pneumatológica dos Exercícios Espirituais, ver Rogelio
García Mateo, Ignacio de Loyola – Su espiritualidad y su mundo cultural, Ediciones
Mensajero, Bilbao, 2000, 353-371.
10
J. M. Lera, La contemplación para alcanzar amor, el Pentecostés de los Ejercicios, em Manresa 63 (1991), 166.
11
Cf. Dizionario Enciclopedico di Spiritualità, Città Nuova Editrice. Roma,
1990, 100-103.
12
Cf. Cândido de Dalmases, em Diccionario Histórico de la Compañía de Jesús
- I, Universidad Comillas, Madrid, 2001, 86.
9
A nova era do Espírito
171
30 anos da Companhia (1540-1570), esteve centrada nos Exercícios
Espirituais. O próprio nome já era pouco recomendável, pois sugeria
uma ligação directa ao Espírito; a insistência na indiferença (23) era
relacionada com o «não fazer nada», com o quietismo dos alumbrados; a prática da oração mental e seus métodos, assim como as regras
do discernimento de espíritos eram vistas com suspeição; o conselho
inaciano para que se fomente o encontro imediato entre a criatura
e o Criador (15), sem intromissões do orientador dos Exercícios,
criava sérias desconfianças.
Inácio, também nesta questão, dá-nos um grande exemplo de
liberdade interior, unida a sábia prudência. Nem foi um submissionista passivo, um yesman obediencialista, mas também evitou ser um
libertário iluminado, fazendo da sua subjectividade a norma dogmática do comportamento. Este equilíbrio dinâmico entre os extremos
do situacionismo conformista e o revolucionarismo contestatário,
exprime-se na fidelidade criativa, inspirada pelo Espírito de Deus,
que faz novas todas as coisas, com criatividade inesgotável. Aplico a
Inácio estas expressões de S. Paulo: «Foi para a liberdade que Cristo
nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não torneis a sujeitar-vos ao
jugo da escravidão… Pelo contrário, fazei-vos servos uns dos outros
pela caridade… Os frutos do Espírito são: caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, temperança»
(Gl 5, 1.13.22.23).
Os que são verdadeiramente corajosos conseguem um equilíbrio,
que não é demissão, mas antes é síntese entre opostos, inclusão
conciliadora de tudo o que há de bom, independentemente da sua
procedência. Assim, S. Inácio, que foi iniciador de uma original pedagogia de busca da vontade de Deus, pela escola dos Exercícios Espirituais, e fundou uma ordem religiosa em moldes profundamente
inovadores (sem coro, sem hábito, sem mosteiros, mas em disponibilidade universal), foi também o homem do sentir com a Igreja,
esposa de Cristo. Quem é fiel ao Espírito de Deus é uma pessoa
verdadeiramente livre. Como recorda Paulo, «O Senhor é espírito e,
onde está o Espírito do Senhor, há liberdade» (2 Cor 3, 17).
172
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
Concluindo esta parte, apresento um retrato espiritual de Inácio
de Loiola, que tem a assinatura do Padre Nadal, que entre nós, em
Portugal, esteve promulgando as Constituições e falando sobre o
carisma de S. Inácio e o espírito dos Exercícios e da Companhia de
Jesus: «Inácio seguia o Espírito, não se Lhe adiantava. Deste modo,
era conduzido com suavidade para onde não sabia. Pouco a pouco,
o caminho ia-se abrindo e o ia reconhecendo, sabiamente ignorante,
pondo simplesmente o seu coração em Cristo»13.
3. Sinais do Espírito no mundo contemporâneo. Pentecostes a
promover
As regras de discernimento de espíritos, que S. Inácio nos apresenta nos Exercícios podem servir de base para fazermos uma leitura
espiritual da realidade. Não digo uma leitura espiritualista, mas sim
espiritual, ou seja, iluminada pelo Espírito de Deus. Não uma mera
reflexão introspectiva, mas uma avaliação do que vemos tendo fundamentalmente em conta a iluminação do Espírito de Deus.
Estamos habituados a fazer leituras da realidade todos os dias, a
propósito dos nossos afazeres e planos de vida, acerca do que ouvimos e vemos na comunicação social, a propósito de política, justiça,
economia ou desporto… Mas não é verdade que damos poucos
ouvidos ao que o Espírito de Deus segreda em nossos corações?
Quantificando a qualidade, pergunto: qual é a percentagem dos critérios de Deus que entram nas nossas opiniões, avaliações e decisões?
Certamente que ainda teremos muito que caminhar até alcançarmos
a medida cheia de S. Paulo: Já não sou eu que vivo, julgo, avalio, discirno, dou opiniões e faço escolhas. Quem se encarrega de tudo isso em
mim é o Espírito que Cristo ressuscitado me oferece (cf. Gl 2, 20).
Na despedida que Cristo fez na última ceia, fica bem claro que,
com a sua partida para o Pai, não ficamos sós, uns órfãos desamparados, mas que isso vai ter vantagens para nós: «Eu pedirei ao Pai e Ele
13
Jesrónimo Nadal, Diálogos, nº 17. FN II, 252.
A nova era do Espírito
173
vos dará outro Consolador, para estar sempre convosco, o Espírito
da Verdade… Não vos deixarei órfãos» (Jo 14, 16-18). Esta ideia de
presença próxima de Cristo, pelo Espírito, que dá coragem, confiança e alegria, vem reiteradamente acentuada.
Surgem naturalmente perguntas: – Como se está a cumprir, nos
nossos dias, a promessa que Cristo fez de estar sempre connosco até
ao fim dos tempos? (cf. Mt 28, 20). – Como podemos detectar hoje
a presença do Espírito de Deus, que Cristo nos prometeu enviar?
– Há sinais de Pentecostes no mundo actual, ou (perdoem o antropomorfismo) o Pentecostes já perdeu a força original, está gasto e
ultrapassado o seu prazo de validade?
Vou procurar responder sinteticamente, partindo de alguns documentos actuais da Igreja e da Companhia de Jesus.
3.1. Promover a cultura da vida e da solidariedade
«Respeita, defende, ama e serve a vida, cada vida humana!»14 é
o desafio que nos continua a lançar Cristo, que se definiu como «a
Vida» (Jo 14, 6).
O documento preparatório do 48.º Congresso Eucarístico Internacional, que há duas semanas se realizou no México, em Guadalajara, recorda que «a comunidade dos cristãos e a sociedade civil
propuseram, e continuam a propor, muitas iniciativas em favor dos
mais indefesos… Surgem centros de ajuda à vida… Nota-se uma
aversão mais forte à pena de morte e à guerra como solução dos conflitos»15.
O individualismo não passa de um campo de concentração com
arame farpado de ouro. Só a solidariedade nos identifica e realiza como seres humanos. Por isso, os nossos Bispos nos exortam:
João Paulo II, O Evangelho da Vida – Carta Encíclica «Evangelium Vitae»,
Editorial A.O., Braga, 1995, nº 5.
15
48.º Congresso Eucarístico Internacional, A Eucaristia, luz e vida do novo
milénio – Documento preparatório, Editorial A.O., Braga, 2003, nº 24.
14
174
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
«Precisamos de acentuar uma cultura da solidariedade, em que os
direitos dos indivíduos cedam perante as exigências do bem comunitário… Para os cristãos, o dever do amor fraterno é a base da
solidariedade»16.
3.2. Favorecer a paz pelo diálogo
Somos bombardeados por notícias de guerras, como amargo pão
de cada dia. Ao fechar os nossos aparelhos de televisão, parece ser
necessário pedir a alguém que limpe tanto sangue que escorreu das
imagens dos noticiários. A guerra globalizou-se, ultrapassando as
fronteiras de alguns países formalmente em guerra.
Fala-se menos dos que arriscam a vida pela paz, nos corredores
da diplomacia nos quatro cantos do mundo, nas missões militares
de pacificação, nos múltiplos serviços de assistência às vítimas das
injustiças e das guerras.
A Igreja, a todos os níveis começando pelo Papa, tem aceite
o desafio, nada fácil mas fundamental, do diálogo ecuménico e
inter-religioso. É condição básica para a paz, que não acontece pelo
aperfeiçoamento da tecnologia bélica.
Assim recorda João Paulo II na carta programática À entrada
do novo milénio: «O diálogo deve continuar. No contexto de um
pluralismo cultural e religioso mais acentuado, como se prevê na
sociedade do novo milénio, esse diálogo é importante, até para criar
condições seguras de paz e afastar o espectro funesto das guerras de
religião que já cobriram de sangue muitos períodos na história da
humanidade. O nome do único Deus deve tornar-se cada vez mais
aquilo que é: um nome de paz, um imperativo de paz17.
Conferência Episcopal Portuguesa, Crise de sociedade, crise de civilização
– Nota pastoral, Lisboa, 2001, nº 8.
17
João Paulo II, À entrada do novo milénio – Carta Apostólica «Novo millennio
ineunte», Editorial A.O., Braga, 2001, nº 55.
16
A nova era do Espírito
175
3.3. Recuperar o papel dos leigos na Igreja
Nem sempre por culpa dos clérigos, o que é certo é que a Igreja
tem sofrido de clericalização. A nossa última Congregação Geral,
realizada no ano de 1995, ressaltou que uma leitura dos sinais dos
tempos a partir do Concílio Vaticano II mostra, sem lugar para
dúvidas, que a Igreja do próximo milénio será chamada a “Igreja
dos leigos”. A Companhia reconhece, como uma graça dos nossos
tempos e uma esperança para o futuro, que os leigos “tomem parte
activa, consciente e responsável, na missão da Igreja neste momento
decisivo da história”18. É interessante que este decreto 13 «Colaboração com os leigos na missão», sendo dos mais arrojados, foi dos
poucos que alcançou o voto unânime dos 229 participantes, representando os 5 continentes.
Não se trata de uma mera solução técnica, de uma concessão
ocasional, dada a escassez de vocações à Companhia, para o Sacerdócio e para outras Ordens e Congregações religiosas. Trata-se de
responsabilizar os leigos pela sua vocação baptismal, membros da
Igreja com pleno estatuto, nos seus direitos e deveres.
Julgo que o caminho está aberto, mas ainda falta andar muito
para que esta relação de colaboração seja mutuamente aceite, por
ambas as partes, com inventiva e criatividade apostólicas.
3.4. Fazer renascer a cultura da esperança
Todo o medo, amargura e pessimismo não têm o selo do Espírito
de Deus, mas antes são manifestações de ateísmo prático. Ser cristão
é, como recorda S. Pedro, «estar sempre dispostos a responder…
com doçura e respeito, a todo aquele que vos perguntar a razão da
vossa esperança» (1 Pd 3, 15). Poderemos experimentar limitações
de todo o género, mas sempre poderemos oferecer esperança. É que
Congregação Geral XXXIV – Selecção de textos, Cúria Provincial, Lisboa,
1996, 93.
18
176
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
não se trata de um produto fabricado em qualquer laboratório de
vida fácil. A esperança é fundamentalmente um dom, é fruto do
Espírito de Deus: «A esperança não nos deixa confundidos, porque
o amor de Deus foi derramado nos nossos corações, pelo Espírito
Santo, que nos foi concedido» (Rom 5, 5).
Os nossos Bispos, num documento breve mas incisivo, no ano
2001, assim afirmam: «Há na nossa sociedade valores positivos, de
competência, de generosidade, de abertura aos outros e mesmo de
fé, suficientemente fortes para inspirarem um projecto; há cidadãos
competentes, generosos, rectos, que dedicam as suas vidas ao bem
comum. É preciso que nos convençamos de que o futuro de Portugal
depende de todos nós e não apenas dos Governos (…). Apelamos,
de modo particular, aos jovens, aos educadores, aos agentes culturais e fazedores de opinião, a que dêem conteúdo a esta esperança,
acreditando que um mundo novo é possível, tendo a coragem, se
necessário, de ser diferente»19.
3.5. Viver em fidelidade criativa
O P. Teilhard de Chardin rezava pedindo a graça de ser «campo
de experimentação do Espírito Santo». Ora aí está o que nos falta.
Contamos pouco com Ele e por isso não somos suficientemente
criativos. Facilitemos a missão do Espírito Santo de «renovar a face
da terra», de «fazer novas todas as coisas» (Ap 21, 5). Se deixássemos
que o Espírito de Deus experimentasse mais as suas soluções em nós,
como seríamos mais criativos! Porque não contar mais com a inteligência, fortaleza e conselho, dons do Espírito Santo, do que com as
nossas capacidades?
Como observava o P. Pedro Arrupe, não se podem dar soluções do
passado para problemas do presente. Para problemas novos, soluções
novas. Como recorda Cristo: «vinho novo em odres novos» (Mc 2, 21).
Conferência Episcopal Portuguesa, Crise de sociedade, crise de civilização
– Nota pastoral, Lisboa, 2001, nº 9.
19
A nova era do Espírito
177
O Padre Geral Peter-Hans Kolvenbach publicou um documento intitulado «A formação permanente como fidelidade criativa»20.
Cito somente a primeira frase: «A formação permanente e o discernimento apostólico constituem a coluna da renovação espiritual e
apostólica da Companhia». Como estamos numa acção de formação
permanente, faço votos para que saiamos daqui com propósitos de
fidelidade criativa, até porque outro tipo de fidelidade, estereotipada
e rotineira, é infiel. Toda a fidelidade precisa de ser criativa. Toda a
criatividade deve ser fiel.
O que seria de nós sem o Espírito Santo?! Letra sem espírito;
corpo sem alma, desanimado de todo; rotina sem criatividade; luta
sem esperança... Não resisto a citar este texto inspirado do Patriarca
Atenágoras: «Sem o Espírito Santo, Deus fica longe; Cristo permanece no passado; o Evangelho é letra morta; a Igreja não passa de
uma simples organização; a autoridade, um domínio; a missão, propaganda; o culto, uma evocação do passado; e o agir humano, uma
moral de escravos. Mas com o Espírito, Cristo torna-se presente; o
Evangelho é a missão trinitária; a autoridade, um serviço libertador;
a missão, um pentecostes; a liturgia, memorial e antecipação; o agir
humano é divinizado».
Usando expressões consagradas do vocabulário inglês e pedindo
perdão ao «Senhor que dá a vida» por não me conseguir exprimir com
mais profundidade, o Espírito Santo é um infinito «Meeting-point»
(ponto de encontro), de tal modo que as Pessoas de Deus encontram
n’Ele a sua unidade; e é também o Espírito que une a nossa desgarrada multiplicidade, conseguindo-nos fazer um. O Espírito de Deus
é também um omnipotente «Power-point», que renova a face da terra
do nosso coração, a fim de amarmos com a qualidade original de
Deus Amor.
Peter-Hans Kolvenbach, A formação permanente como fidelidade criativa,
Roma, 2002.
20
178
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
3.6. Fazer exercícios de espírito-terapia
Está na moda a fisioterapia e a psicoterapia, os exercícios físicos
e as ginásticas, os regimes de vida, de raiz mais ocidental ou asiática, com mais ou menos filosofias ou sistemas de vida subjacentes.
Vive-se a redescoberta da nossa dimensão física e psíquica. Os sinos
da publicidade tocam a rebate: – Todos precisam de uma cura! Quem
não se trata bem, maltrata-se! Trate de si, porque senão as suas maleitas,
físicas e psíquicas, encarregar-se-ão disso!
Mas a dimensão mais profunda da pessoa humana fica muitas
vezes esquecida. Por isso, S. Inácio organizou uma clínica aberta destinada a fazer exercícios de espírito-terapia, que aconselho vivamente.
O nome oficial é: «Exercícios Espirituais para se vencer a si mesmo
e ordenar a sua vida, sem se determinar por afeição alguma que seja
desordenada» (21). Eis alguns exercícios que estão incluídos neste
programa de desintoxicação de todo o tipo de drogas, com vista a
uma boa forma atlética, que nos prepare todas as olimpíadas da vida
quotidiana:
– «buscar e achar a vontade divina na disposição de sua vida para
a salvação da alma» (1);
– «sentir e gostar as coisas internamente» (2);
– oferecer a Deus «todo o seu querer e liberdade», «com grande
ânimo e liberalidade» (5);
– exercícios de «indiferença» activa, perante todas as coisas criadas (27);
– examinar a própria consciência, iluminados pela consciência
amorosa de Deus a nosso respeito (43);
– exercícios de colóquios, «como um amigo fala a outro amigo»,
com Cristo crucificado, interrogando-me a mim mesmo: «o que
tenho feito por Cristo, o que faço por Cristo, o que devo fazer por
Cristo» (53);
– exercícios de «oblações de maior estima e valor» (97);
– exercícios de «conhecimento interno de Cristo, que por mim se
fez homem, para que mais O ame e O siga» (104);
A nova era do Espírito
179
– exercícios de libertação do campo de concentração do «próprio
amor, querer e interesse» (189);
– exercícios de oração, em encontros imediatos com as pessoas de
Deus, segundo vários métodos (238-260);
– exercícios de «discernimento de espíritos», para «sentir e conhecer as várias moções que se causam na alma: as boas para as aceitar e
as más para as rejeitar» (313-336);
– exercícios para «sentir com a Igreja» (352-370); – etc., etc....;
– em suma, exercícios para «alcançar amor», a fim de «em tudo
amar e servir», para procurar e encontrar a Deus em todas as coisas e
todas as coisas em Deus (230-237)...
Assim exercitados, com a devida frequência, de certeza que viveremos em óptima forma e a nossa qualidade de vida se elevará a
patamares de beleza tão humana quanto divina.
Outros sinais da presença activa do Espírito Santo no meio de
nós, hoje, poderíamos apresentar, como por exemplo: – o movimento ecuménico de aproximação entre os cristãos separados (que também somos nós); – iniciativas de voluntariado, de serviço gratuito ao
próximo, por vezes em contextos de alto risco; – novos movimentos
e obras na Igreja que têm surgido com grande vigor; – o diálogo
inter-religioso, etc. Em tudo isto vemos como que as impressões digitais ou a assinatura do Espírito de Deus, que a tudo dá vida nova.
Conclusão – Prognósticos infalíveis antes do «jogo»
Na gíria futebolística, estamos habituados a ouvir esta expressão,
quando alguém é interrogado sobre o resultado de um jogo que se
aproxima. É frequente esta resposta sapiencial: «Prognósticos, só no
fim do jogo».
Quero afirmar diametralmente o contrário. Iluminados pelo
Espírito de Deus, podemos prever o imprevisível, adivinhar o que é
mais ignorado, ter certezas imbatíveis a partir de mil dúvidas...
180
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
Usando palavras de S. Paulo na carta aos Romanos, no capítulo
8º, e agarrando-nos à sua fé esperançada, com ele exclamamos: «Se
Deus é por nós, quem poderá estar contra nós?... Quem poderá
separar-nos do amor de Cristo?... Em tudo isto somos mais do que
vencedores, graças Àquele que nos amou… Ora nós sabemos que
Deus concorre em tudo para o bem dos que O amam… Os sofrimentos do tempo presente nada são em comparação com a glória
que se há-de revelar em nós» (Rom 8, 31.35.37.28.18).
Inácio de Loiola dá-nos um testemunho maravilhoso desta
«esperança que não nos deixa confundidos» (Rom 5, 5), que não
é miragem nem engano. Por exemplo, nesta página do seu diário:
«Enquanto preparava o altar, dizia sentidamente e a viva voz: ”Onde
me quereis levar, Senhor?” Repeti isto (parecia-me que era guiado)
e me aumentava muito a devoção que me levava a chorar (…).
Seguindo-vos, meu Senhor, eu não me poderei perder»21.
Como viram, não vos comuniquei as últimas notícias sobre o
Espírito Santo. Se tal procurasse fazer, o que apresentaria não passavam das penúltimas notícias de Deus. É que as últimas são o eco que
o Espírito de Deus provocou agora em vós, em actualização permanente, num contínuo «upgrade». O que disse e o que omiti, o que
soube expressar e o que não consegui transmitir… encomendo-o ao
Espírito Santo, fazendo minhas as palavras de Jesus na última ceia:
«o Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome,
vos ensinará todas as coisas» (Jo 14, 26).
Cumpre-nos, segundo o lema de vida atribuído a S. Inácio,
«trabalhar como se tudo dependesse de nós e confiar como se tudo
dependesse de Deus». Assim, cada dia, iremos escrevendo o 5.º
evangelho da vida cristã, sob a inspiração do Espírito de Deus, em
permanente fidelidade criativa.
La intimidad del Peregrino – Diario espiritual de San Ignacio de Loyola, Mensajero / Sal Terae, Bilbao, 1990, nn. 113-114.
21
ITE, MISSA EST
Mário Garcia, S.J.
A mais poderosa inclinação, e o maior
apetite do homem, é desejar ser.
P. António Vieira
(Sermão de Todos os Santos, cap. II)
Nas perguntas que, nos Evangelhos, se colocam a Cristo, por
exemplo: “Quem é o meu próximo?” (Lc 10, 29); “Bom Mestre, que
devo fazer para alcançar a vida eterna?” (Mc 10, 17); “Que é a verdade?” (Jo 18, 38), em todas elas existe uma questão prévia. É a questão que Nossa Senhora formula, dirigindo-se ao enviado de Deus:
“Como se fará isso, pois eu não conheço homem?” (Lc 1,34). Eis
a questão justa que a nossa fé pode colocar a Deus, a pergunta pelo
“como” numa situação de discernimento teórico-prático. Significa,
antes de mais, comunicar a docilidade da inteligência, colaborar
com a vontade e comungar com o coração na compreensão do
“impossível” que só a Deus é possível (“a Deus nada é impossível”,
Lc 1, 36).
Só Deus pode decifrar o mistério, e toda a sua actuação é mistério, abrindo-nos, pela analogia da fé, para a aceitação dos factos da
nossa vida situada no mundo em correlação e companhia. O Arcanjo Gabriel revela a Maria a gravidez de alguém que ela bem conhece,
Isabel, mulher velha e estéril. Ao mesmo tempo, Maria é convidada
a comparar analogicamente este “caso” com o seu próprio. Aquilo
que se passa com Isabel é misterioso, tanto ou mais, como aquilo
182
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
que se passará com ela. Maria, ao declarar o seu “fiat”, mostra que
compreende na fé o facto singular da sua maternidade, e ao visitar
a prima mostra que também o tinha compreendido na universalidade da caridade. A união indissolúvel da palavra com a acção é a
prova completa da sua aceitação da vontade de Deus. Se a nossa fé,
declarada numa palavra, não nos levar à visitação de Isabel, não realizaremos a verdade; se o nosso “amén” no momento da comunhão
eucarística não nos conduzir ao lava-pés, a nossa fé está morta. Só a
caridade é fonte de vida, “só o amor permite conhecer plenamente o
Mistério”1.
Ao colocarmos agora, conclusão includente, a questão do envio
– “Ite, Missa est” –, estamos a perspectivar, nos seus contornos imediatos, concretos, em “sinais” que se tornam “aplicação de sentidos”,
a compreensão da palavra que aqui testemunhámos. A VI Semana
de Estudos de Espiritualidade Inaciana, sem esta prova real, não realizará o que pretende significar, permanecerá puramente estética,
numa espécie de visibilidade irresoluta. Como se passa do dizer ao
fazer? Como se passa do sentir ao trabalhar? S. Inácio, no final da
primeira meditação proposta nos Exercícios, reúne, numa só experiência espiritual, as intenções, acções e operações do exercitante:
“Imaginando a Cristo nosso Senhor diante de mim e pregado na
cruz, fazer um colóquio: como de Criador veio a fazer-se homem, e
de vida eterna a morte temporal, e assim a morrer por meus pecados. E, assim, interrogar-me a mim mesmo: o que tenho feito por
Cristo, o que faço por Cristo, o que devo fazer por Cristo; e vendo-o
a Ele em tal estado e assim pendente na cruz, discorrer pelo que se
me oferecer” (EE, 53). Note-se que este exercício se realiza diante
de Cristo crucificado, “mistério da fé”, numa síntese admirável de
contemplação e acção, em que o “fazer”, insistentemente repetido e
conjugado em todos os tempos e modos, nunca é dissociado da visão
exterior (imaginando) e interior (discorrendo). Se a meditação em
Instrução da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, Partir de Cristo, Braga, Editorial A. O., 2002, nº 23.
1
Ite, Missa est
183
causa, como toda a oração inaciana, começa sempre “para serviço
e louvor de sua divina majestade”, com a rectificação ordenada da
minha consciência, que inclui “todas as minhas intenções, acções
e operações” (EE, 46), isto é, os desígnios, os impulsos e os actos
concretos (“opera”, operaciones), desce progressivamente do alto,
“assim pendente na cruz” que pende sobre o mundo. Conclui-se
“pelo que se me oferecer”, por aquilo que entra e quer entrar a partir
do mundo, para que eu possa mais encarnar a Cristo nas situações
concretas onde sou chamado a viver. Adaptemos, neste contexto, os
tópicos que S. Inácio nos propõe no primeiro ponto da meditação
dos pecados pessoais: “o lugar e a casa onde habitei”, “a convivência
que tive com outros”, “o ofício em que vivi” (EE, 56). Ite, missa est:
projecto de missão, resolução prática da mesma e única celebração:
a da Eucaristia, banquete, presença, sacrifício, e a da Igreja, povo,
corpo, sacramento universal de salvação.
1. “O lugar e a casa onde habitei”
De todas as imagens da intimidade de Deus, a mais fascinante é,
porventura, a do seio materno, de longa tradição na Bíblia, desde o
planar do Espírito acalentando o universo incipiente, até ao recolher debaixo das asas como a galinha faz aos pintainhos (cf. Lc 13,
34; Mt 23, 37). Jesus humaniza a águia imperial, ao sabor da sua
própria experiência da intimidade doméstica, como se pode ler, por
exemplo, nos colóquios com os discípulos durante a celebração da
Ceia, no Evangelho de S. João: “A mulher, quando dá à luz, está
em sofrimento, porque chegou a sua hora, mas, depois que deu à
luz a criança, já não se lembra da sua aflição, pela alegria que sente
de ter nascido um homem para o mundo” (Jo 16, 21). Esta alegria
que prorrompe da própria carne, é um estímulo muito eficaz para
podermos observar o lugar que damos à “vida oculta de Jesus” no
interior do nosso ambiente quotidiano, o mistério da Casa de Nazaré que levamos dentro de nós pelos caminhos do mundo, “onde
o pulsar trinitário da caridade dilata a comunhão numa renovada
184
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
missão”2. Utilizei o verbo “observar” (“observar o lugar”) que traduz
o espanhol mirar no texto da contemplação do Nascimento de Jesus
nos Exercícios Espirituais. S. Inácio escreve: observar, contemplar e
servir (mirándolos, contemplándolos y sirviéndolos), quando se trata de
“ver as pessoas” (EE, 114); observar, advertir e contemplar (mirar,
advertir y contemplar), quando se trata das palavras que as pessoas
falam (EE, 115); e observar e considerar (mirar y considerar) quando
se trata do que fazem (EE, 116). Estas sequências de verbos caminham num crescendo de compreensão, não são redundantes, mas
dinâmicas, aproximam-nos do que estamos a ver. Assim, “observar”
(mirar), no caso das pessoas, significa, em última análise, servir; no
caso das palavras, contemplar e, no caso das acções, considerar. De
facto, é este mesmo verbo, “considerar” (etimologicamente, observar
os astros, sidera, para neles encontrar os auspícios), que é utilizado,
no terceiro ponto da Contemplação para alcançar amor: “considerar
como Deus trabalha e labora por mim” (EE, 236). S. Inácio é muito
preciso ao distinguir os vários modos de observar a realidade, reservando para as palavras o verbo “contemplar”, para as pessoas o verbo
“servir” e para as acções (operaciones) o verbo “considerar”.
Esta atitude eminentemente contemplativa diante da palavra é
plena de sentido espiritual. Veja-se, por exemplo, o enunciado do
Segundo modo de orar: “contemplar a significação de cada palavra da
oração” (EE, 249). Contemplar o mistério da significação da palavra, não só na lectio da Sagrada Escritura, mas no saber ouvir a Bíblia
viva, a palavra do outro como sua expressão existencial concreta,
procurando, como o “Pressuposto” dos Exercícios nos ensina, “salvar
a (sua) proposição” (EE, 22), “como se presente me achasse, com
todo o acatamento e reverência possível” (EE, 114). E que maior
consideração para que este serviço se efective, senão a da “suma
pobreza” (EE, 116) do Senhor, o seu “caminhar e trabalhar ... para
morrer numa cruz; e tudo isto por mim” (EE, 116). Na oração de
contemplação do Natal de Jesus, “o lugar ou gruta do nascimento”
2
Partir de Cristo, nº 4.
Ite, Missa est
185
é preparado pela observação do “caminho desde Nazaré a Belém” e
prolongado na consideração do “caminho” da cruz. O “caminho” de
Nazaré a Belém é prolepse simbólica deste “caminhar e trabalhar”
por mim.
A “composição vendo o lugar” da minha participação activa na
Eucaristia, como resumo e sinal significante da minha fé, do meu
Baptismo, da minha intimidade e progressiva identificação com Cristo, leva-me a um serviço concreto que observa, contempla e considera
a pessoa do próprio Cristo na pessoa do outro, servindo-o “em suas
necessidades”, de modo particular, na palavra e na acção. Não se pode
celebrar a Eucaristia, sem contemplar o mundo como um texto sagrado, considerando o que devo fazer por Cristo. O considerar da contemplação não é, por conseguinte, uma mera atitude intelectual, mas
uma reflexão prática, afectiva, sobre a palavra, divina e humana, como
liturgia. A vivência da Eucaristia passa pelo caminho de “Belém”, o
lugar do nosso Baptismo, para o mundo, estimulados pela palavra que
incessantemente os nossos ouvidos contemplam no seio da Santíssima
Trindade: “Façamos a redenção do género humano” (EE, 107). Neste
“lugar” teológico que é o mundo, damos a vida por amor, à imitação
de Jesus, “em suma pobreza”. A mais substantiva forma de viver a
Eucaristia é, assim, unificar, num único serviço, a palavra e a acção, na
coerência de uma vida em crescimento, progressivamente consolidada
em Cristo. Lembro aqui, na conclusão desta primeira abordagem do
sentido da missão da Missa, um verso de Daniel Faria: “Cresço na
clareira de um homem que é uma palavra”3.
2. “A convivência que tive com outros”
O “banquete nupcial”, a ceia eucarística, o povo reunido para
celebrar o casamento do seu Rei e Senhor. As “bodas de Caná” é o
3
Daniel Faria, Homens que são como lugares mal situados, 1ª ed., Porto, Fundação Manuel Leão, 1998, p. 77. Sobre a poesia de Daniel Faria, consultar Vítor
Moura, “O giroscópio”, Relâmpago, revista de poesia, nº 12, 4/2003, p.53.
186
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
Segundo Mistério Luminoso e, justamente, nele podemos englobar
os outros dois que se lhe seguem: o anúncio do Reino e a Transfiguração. Quando estamos juntos num mesmo lugar, criamos espaço.
E quando realizamos juntos uma acção, esse espaço irradia. A proclamação do “mistério da fé” torna transfiguradores, não só quem
proclama mas também o espaço onde o mistério é proclamado. A
Igreja é o lugar da Eucaristia e a Eucaristia é a coroa nupcial da
Igreja. Todos, cada um dos homens e mulheres, somos chamados à
convivência com o Esposo nestas bodas de Caná realizadas na Igreja, no espaço sagrado do mundo. A Eucaristia, “lava-pés” não só a
quem precisa, mas também manifestação da amizade, expressão da
pura gratuidade que ama para amar e por amor. Quando celebramos a Eucaristia, tocamos e deixamo-nos tocar por aqueles a quem
amamos, “aplicação de sentidos” numa sempre maior e mais íntima
convivência. “Concentram-se na Eucaristia todas as formas de oração”4 e todas as formas de “aspirar e saborear, com o olfacto e com o
gosto, a infinita suavidade e doçura da divindade, da alma e das suas
virtudes e de tudo” (EE, 124). Concentração suprema, numa só vida
a dois, a Eucaristia é a carne do nosso Deus e o sangue do mundo
em nós. É Ela que nos faz exclamar, como S. Paulo: “Já não sou eu
que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gál 2, 20); “para mim viver é
Cristo” (Fil 1, 21).
S. Inácio, na primeira contemplação da Terceira Semana dos
Exercícios, “como Cristo nosso Senhor foi desde Betânia a Jerusalém até à última ceia inclusive” (EE, 190), propõe, na composição
de lugar, “considerar o caminho desde Betânia a Jerusalém” e “o
lugar da ceia” (EE, 192). Se “o lugar ou gruta do nascimento” (EE,
112), era proposto para ser observado (mirar), aqui, “o lugar da ceia”
é proposto para ser considerado (considerar). Não é fortuita esta diferença. Com efeito, na celebração da Ceia realiza-se uma acção que
implica uma correlativa “compaixão”, uma verdadeira comoção (si
la materia o la devoción le conmueve, EE, 199), isto é, uma energia
4
Partir de Cristo, nº 26.
Ite, Missa est
187
espiritual que nos leva a percorrer o mesmo “caminho” do Calvário,
“porque por meus pecados vai o Senhor à paixão” (EE, 193). A celebração da Ceia torna-se, assim, a concentração de todo o mistério
pascal, via da consideração permanente do “sacratíssimo Sacrifício
da Eucaristia, como grandíssimo sinal do seu amor” (EE, 289), e, ao
mesmo tempo, com-paixão pelo “que Cristo padece na sua humanidade ou quer padecer” (EE, 195) e co-moção activa pelo que todos
os homens e mulheres hoje padecem.
A convivência no êxito da fraternidade não implica somente um
“fazer”, mas um “saber estar ao lado das pessoas, assumindo os seus
problemas para responder, com uma forte atenção, aos sinais dos
tempos e às suas exigências”5, um descobrir “o valor divino e humano do estar juntos gratuitamente, como discípulos e discípulas ao
redor do Cristo Mestre, em amizade, partilhando até os momentos
de divertimento e de lazer”6. A sabedoria do “estar ao lado das pessoas” e a descoberta do “estar juntos gratuitamente” requerem um
processo de conversão contínua ao outro, ao seu modo de sentir
e de pensar. A missão da Missa pode formular-se com a máxima
que S. Inácio inscreve no itinerário dos Exercícios: “pense cada um
que tanto aproveitará em todas as coisas espirituais, quanto sair de
seu próprio amor, querer e interesse” (EE, 189). “Sair de si”, do eu
que nos desgasta a utopia e mata inexoravelmente a esperança. Os
Exercícios Espirituais são, de facto, uma Missa, que nos projecta no
futuro, por amor, querer e interesse do outro. O que tenho feito, o
que faço, o que devo fazer por Cristo (EE, 53), marca o princípio e
o fundamento prático, presente ao longo de toda a vida, a exigência
de uma sempre maior consideração pelo que tenho feito, faço e devo
fazer pelos outros.
Como entender que o envio não comova e o silêncio da contemplação se esterilize em perpétuas recusas? O Papa João Paulo
II propôs fazer da Igreja a casa e a escola da comunhão, “o grande
5
6
Partir de Cristo, nº 36.
Partir de Cristo, nº 29.
188
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
desafio que nos espera no milénio que começa”, e explicou na Carta
Apostólica À entrada do novo milénio, as várias formas de o promover. Sublinha a necessidade de “saber ‘criar espaço’ para o irmão,
levando os fardos uns dos outros e rejeitando as tentações egoístas
que sempre nos ameaçam e geram competição, arrivismo, suspeitas,
ciúmes”7. Dilatação da espiritualidade da comunhão que gera a plena convivência nas sociedades multiculturais. O dinamismo da presença eucarística concentra, convoca e envia ao encontro de todos e
de tudo, convergindo para Aquele que atrai a si todos os homens.
É neste contexto de atracção transfiguradora para o alto (“Quando
Eu for levantado da terra, atrairei todos a mim”, Jo 12, 32), que o
anúncio do Reino de Cristo transmite, através de nós, um regresso
ao mundo para mais o amar e servir. Gostaria de concluir esta segunda abordagem à missão da Missa, ainda com o poeta Daniel Faria:
“Deixai-me começar a claridade / de quem vive para despenhar-se
no mundo / Dai-me a chama, o inextinguível, dai-me / para que me
aqueça a boca – o pão” 8.
3. “O ofício em que vivi”
Servir, como nos recorda a Oração Eucarística II do Missal Romano – “vos damos graças, porque nos admitistes à vossa presença
para vos servir nestes santos mistérios” –, representa, na tradição
bíblica, desempenhar o maior dos ofícios, exercer, na presença do
Senhor, a maior das funções. Quando S. Inácio nos diz, no quinto
ponto da contemplação da aparição de Cristo ressuscitado a Nossa
Senhora: “observar (mirar) o ofício de consolar que Cristo nosso Senhor traz” (EE, 224), retoma, por assim dizer, o carácter sacerdotal
da celebração da Ceia, agora presente “nos verdadeiros e santíssimos
7
João Paulo II, À entrada do novo milénio, Braga, Editorial A. O., 2001, nº
8
Daniel Faria, Dos Líquidos, 1ª ed., Porto, Fundação Manuel Leão, 2000, p.
43.
125.
Ite, Missa est
189
efeitos” da divindade que “tão miraculosamente” aparece e se mostra “na santíssima Ressurreição” (EE, 223). Cristo ressuscitado, de
facto, traz, como novidade do seu sacerdócio, “o ofício de consolar”.
Exerce-o, em primeiro lugar, a favor de Nossa Senhora, Maria, a
“mulher” que a todos nos representa, tipo da Igreja e imagem da
nova humanidade. Como nas bodas de Caná, consolar é dar o vinho
novo da nova e eterna aliança, à maneira do Senhor que sobe ao céu
abençoando os seus discípulos (Lc 24, 50-51), exercendo sobre eles
um ofício sacerdotal.
Quando falamos da Eucaristia, como “ofício” do cristão no mundo, acentuamos esta nota específica do sacerdócio baptismal, sem a
qual a missão evangélica ficaria desfocada. Sublinhamos uma “missa
sobre o mundo” de sabor theillardiano. O Papa João Paulo II, na
Carta encíclica A Eucaristia, vida da Igreja (Ecclesia de Eucharistia),
ao recordar a sua emoção de celebrante nos mais variados cenários
da terra, conclui deste modo: “mesmo quando tem lugar no pequeno altar duma igreja de aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de
certo modo, sobre o altar do mundo”9. É deste ofício de celebrante
que se trata, ao instituirmos a Eucaristia como projecto de eficácia
realista da nossa missão no mundo. “Que hei-de fazer por Cristo?”
A resposta que os Exercícios dão a esta pergunta encontra-se, assim,
totalmente esclarecida na contemplação do Senhor Ressuscitado:
“Observar o ofício de consolar que Cristo nosso Senhor traz e comparando como os amigos se costumam consolar uns aos outros” (EE,
224). Comparando, o método da analogia da fé que o Arcanjo Gabriel ensina a Maria, quando a convida a comparar a consolação que
ela recebe de Deus com “o ofício de consolar” que ela é chamada a
exercer em relação à sua prima Isabel. A resposta da Santíssima Trindade, “a redenção do género humano”, que nos foi transmitida no
dia do Baptismo. A resposta do Filho, a Eucaristia, que nos impele,
no Espírito Santo, à imitação do seu modo de “consolar”, a “dar a
vida pelos amigos” (Jo 15, 13).
9
João Paulo II, A Eucaristia, vida da Igreja, Braga, Editorial A. O., 2003, nº 8.
190
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
O mundo é o lugar teológico da aparição de Jesus ressuscitado. A
Igreja, como sacramento universal de salvação, consola-nos, no seu
próprio seio e no seio do mundo, à imagem e semelhança de Cristo
e de Maria, e envia-nos, nessa consolação, a consolar, a “visitar” as
pessoas “em suas necessidades”, como Maria levando, a toda a gente,
Jesus, o Consolador, “luz para iluminar as nações” (Lc 2, 32). O Senhor está presente no mundo consolando, como no sacrário, como
na praia do Mar de Tiberíades a preparar, para todos os homens e
mulheres, a refeição (Jo 21, 9). Depende de nós, de facto, que todos
dela possam alimentar-se. O Ite, Missa est deve desembocar no convívio fraterno onde ninguém interroga ninguém, porque o Espírito
responde no coração, no silêncio e no olhar, de todos e de cada um:
“nenhum dos discípulos ousava perguntar-lhe ‘quem és tu?’, porque
sabiam que era o Senhor” (Jo 21, 12).
Servir, como síntese do contemplar e do considerar, representa,
na terminologia inaciana, a missão. Estamos, com efeito, situados
no resultado prático do colóquio da oração, “como um amigo fala a
outro, ou um servo a seu senhor” (EE, 54), enviados, “novamente”
(EE, 109), para o mundo. A rectificação de “todas as minhas intenções, acções e operações” que peço a Deus na oração preparatória
de cada exercício de oração (EE, 46), comprova-se, no interior do
mundo, “em tudo amar e servir”. Não só à divina majestade, como
se pede na Contemplação para alcançar amor (EE, 233), ou a Deus
nosso Senhor, como se diz na undécima regra para sentir na igreja
(EE, 363), mas também, indissolúvel e eucaristicamente, amando e
servindo a todos “em suas necessidades, como se presente me achasse” (EE, 114).
A Instrução Partir de Cristo, sobre o renovado compromisso da vida
consagrada no terceiro milénio, descreve-nos a verdadeira espiritualidade como fruto do Espírito Santo, síntese de vocação e de comunhão,
exprimindo-se ou dilatando-se na missão evangélica10. Também os
Exercícios Espirituais, ao sublinharem, como culminância do envio, “o
10
Partir de Cristo, cf. nº 20.
Ite, Missa est
191
ofício de consolar que Cristo nosso Senhor traz”, dilatam o coração
à dimensão do mundo, em serviço permanente, incondicional, de
louvor e acção de graças. Também agora o poeta Daniel Faria nos
remete para a Cruz e para Aquele que nela está pendente: “Árvore /
que bebe do homem. Árvore / em silêncio onde escutamos a palavra
/ em carne viva. Verbo / tão inteiro que se fez espelho”11.
Conclusão
A espiritualidade é a devoção à vivência da fé. A espiritualidade
inaciana concentra essa devoção num acto de liberdade, que S. Inácio chama “eleição”; dinamiza-a em terceira maneira de humildade,
“perfeitíssima” (EE, 167) expande-a na experiência gloriosa da Cruz,
“contemplação para alcançar amor” que não tem fim.
A Eucaristia pode ser compreendida como essa “contemplação
para alcançar amor”. Contemplação que desemboca na consideração e no serviço. É esta a missão da Eucaristia, o ite, missa est dela
decorrente. É este “o ofício de consolar” que Nosso Senhor Jesus
Cristo nos propõe. Pilatos apresentou Jesus ao povo com as palavras bem conhecidas: “Ecce Homo! Eis o Homem” (Jo, 19, 5). Já
O conhecemos e sabemos que só n’Ele descansa o nosso coração.
Ficámos mais disponíveis para O dar a conhecer? Para contemplar a
palavra – “Queríamos ver Jesus” (Jo 12, 21) – de tantos “gregos” que
vieram, connosco, adorar a Deus durante a festa? Como servimos,
considerando o que devemos fazer por eles?
Por analogia, nesta circunstância que antecede a celebração da
Missa, gostaria de concluir com um poema de Daniel Faria e uma
passagem do Sermão de Vieira, que também já citei na epígrafe.
Daniel Faria, grande poeta português contemporâneo, faleceu
sendo noviço beneditino, aos 28 anos de idade, em 1999. Do seu
livro póstumo, Dos Líquidos:
Daniel Faria, Homens que são como lugares mal situados, 1ª ed., Porto, Fundação Manuel Leão, 1998, p. 79.
11
192
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
Vimos a pedra vazia no interior da terra
A manhã. Nós não tocámos a luz
Inesperada. Pensámos
Que já o sono sendo eterno te afastara
E que farol que foste
Agora onda após onda, brasa extinta, naufragava
Nunca mais, pensámos, dormirias na proa
E quase desaprendêramos a guiar o barco
Em nossas viagens não amainaria mais, pensámos, e chegar a casa
Seria ver multiplicar-se
A nossa fome como o peixe e como o pão
Chegámos a terra porém e esperavas-nos
Os pés furados como conchas sobre a areia
E sentámo-nos em redor para comer12.
E agora a citação extraída do capítulo X do Sermão de Todos os
Santos que o Padre António Vieira pregou em Lisboa, no Convento
de Odivelas, em 1643:
Olhai como Deus quis facilitar o Céu, e o ser santos, que pôs a bemaventurança e a santidade em uma cousa, que ninguém há que não
tenha, e a mais livre e mais nossa, que é o coração. Assim como o coração
é a fonte da vida, assim é também a fonte da santidade; e assim como
basta o coração para viver, ainda que faltem outros membros e sentidos,
assim, e muito mais, basta a pureza de coração para ser santo, ainda
que tudo o mais falte. Se o ser santo dependera dos olhos, não fora santo
Tobias, que era cego: se dependera dos pés, não fora santo Jacob, que era
manco: se dependera de algum outro membro do corpo, não fora santo
Daniel Faria, Dos Líquidos, p. 69. A poesia de Daniel Faria encontra-se hoje
praticamente toda no volume Poesia, Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições,
2003.
12
Ite, Missa est
193
Job, que estava tolhido de todos, e só lhe ficou a língua e ainda que não
tivera língua, também fora santo, porque Santa Cristina, sendo-lhe a
língua cortada, louvava a Deus com o coração; e com o coração sem
língua, eram tais as suas vozes, que as ouviam, não só os anjos no Céu,
senão também os circunstantes na Terra. De sorte que para um homem
ser santo, não é necessário cousa alguma fora do homem nem ainda é
necessário todo o homem: basta-lhe uma só parte, e essa a primeira que
vive, e a última que morre, para que lhe não possa faltar em toda a vida,
que é o coração13.
13
P. António Vieira, Sermões, vol. III, Porto, Lello, 1993, p. 951.
ÍNDICE
Sessão de Abertura (Sérgio Diz Nunes, S.J.) ......................................
5
ASPIRAÇÕES DO MUNDO MODERNO
E MISTÉRIO PASCAL
(Domingos Terra, S.J.)
1. A gramática da existência proposta pelo Mistério Pascal .............
1.1. Viver uma esperança apesar da apreensão ...............................
1.2. Perceber como a esperança sai confirmada ..............................
1.3. Em síntese ............................................................................
9
9
11
13
2. Projectos de felicidade puramente intra-mundanos ....................
2.1. O ser humano inteiramente confiante na sua força realizadora
2.2. O ser humano que se isola no seu espaço individual .................
2.3. O ser humano que busca um transcendente à sua medida ........
13
14
17
21
QUE SOFRIMENTO? QUE MORTE?
(Dra. Maria Teresa Ribeiro)
I–
II –
Como olhamos, hoje, para o sofrimento e para a morte? .......
A Dor, o sofrimento e o desenvolvimento de teorias psicológicas sobre o stress familiar .......................................................
III – O medo da morte e o desejo da morte ...................................
1. O que é o suicídio? Como podemos compreendê-lo e preveni-lo?
2. A eutanásia ........................................................................
27
29
36
37
41
IV – O sentido da existência da vida como questão nodal para compreender e viver com o sofrimento e com a morte ................. 43
1. A unidade do Ser que é, ao mesmo tempo, e no espaço único de
196
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
cada pessoa, corpo e espírito .....................................................
2. ‘O sofrimento do outro é também o meu sofrimento – dói-me
porque lhe dói...’ ...................................................................
3. Viver com sofrimento ou viver com o sofrimento? .................
43
Bibliografia ......................................................................................
49
46
47
A DESCIDA AOS INFERNOS DA HUMANIDADE
(Isabel Carmelo Rosa Renaud)
1. Primeiro nível. O espaço e o tempo .............................................
2. Segundo nível. As patologias do desejo e as alienações subjectivas
3. Terceiro nível. As patologias sociais e as alienações objectivas ......
4. Quarto nível. As patologias globais e as alienações mortíferas ......
54
56
61
64
A SAÍDA: O AMOR QUE DÁ A VIDA
(Vasco Pinto de Magalhães, S.J.)
0. “Composição vendo o lugar”: pano de fundo bíblico .................
1. Êxodo, pessoal e comunitário: 3 níveis de um processo complexo
Saída psico-espiritual ...................................................................
Saída ético-antropológica .............................................................
Saída escatológico-teológica ...........................................................
70
72
73
78
84
2. Concluindo .................................................................................
88
Bibliografia ......................................................................................
90
EU SOU A RESSURREIÇÃO E A VIDA
(Luís Rocha e Melo, S.J.)
Introdução ....................................................................................... 91
1. Diálogo com o mundo ................................................................ 94
2. A Ressurreição de Cristo e a nossa ............................................... 96
3. Uma transfiguração da existência ................................................. 98
4. Purificação do amor ou reincarnação ........................................... 103
Bibliografia ...................................................................................... 109
Índice
197
NÓS ESPERÁVAMOS QUE... Lc 24, 21
(Dra. Maria Engrácia Leandro)
Esperança e desilusão .......................................................................
As novas dinâmicas sociais ...............................................................
As influências culturais na ordem do dia ..........................................
O tempo da secularização e da esperança .........................................
As derivas da esperança no contexto da modernidade ......................
A esperança dessacralizada e dessacralizante .....................................
111
116
120
125
128
130
Conclusão ......................................................................................... 136
Bibliografia ...................................................................................... 138
A ESPERANÇA QUE TRANSFORMA E TRANSFIGURA
(Dra. Teresa Messias)
Introdução: Esperança, precisa-se! ................................................... 141
1. O homem, ser de esperança ........................................................
1.1. O homem, ser aberto ao futuro ..............................................
1.2. Esperança como elemento estruturante do ser homem ..............
1.3. Fundamento da esperança: utopia e escatologia .......................
144
144
145
147
2. Mistério Pascal de Jesus, realização definitiva da esperança .........
2.1. O desejo de Deus pelo homem levado às últimas consequências .
2.2. A ressurreição começa nos infernos .........................................
2.3. Do desespero à esperança .......................................................
149
149
150
151
3. A comunhão trinitária que transforma e transfigura ................... 153
3.1. Só o amor transforma ........................................................... 154
3.2. A ressurreição, princípio duma vida nova ............................... 155
4. “Estar de Esperanças” ................................................................. 156
Agir segundo a Esperança que nos habita ...................................... 158
5. Desejo aberto ao infinito: em Cristo, esperar por todos .............. 159
198
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
A NOVA ERA DO ESPÍRITO
(Manuel Morujão, S.J.)
Prólogo de um crente, por vezes ateu praticante ................................... 161
1. Apresentação do Espírito Santo .................................................. 162
1.1. À procura de Deus por caminhos alternativos ......................... 162
1.2. «Curriculum vitae» do Espírito Santo .................................... 164
2. Inácio de Loiola, peregrino dos caminhos do Espírito ................ 167
2.1. A vida cristã é a vida no Espírito Santo .................................. 167
2.2. Inácio de Loiola, guiado pelo Espírito de Deus ........................ 168
3. Sinais do Espírito no mundo contemporâneo. Pentecostes a promover .........................................................................................
3.1. Promover a cultura da vida e da solidariedade .......................
3.2. Favorecer a paz pelo diálogo ..................................................
3.3. Recuperar o papel dos leigos na Igreja .....................................
3.4. Fazer renascer a cultura da esperança ....................................
3.5. Viver em fidelidade criativa ..................................................
172
173
174
175
175
176
Conclusão – Prognósticos infalíveis antes do «jogo» .............................. 179
ITE, MISSA EST
(Mário Garcia, S.J.)
1. “O lugar e a casa onde habitei” ................................................... 183
2. “A convivência que tive com outros” .......................................... 185
3. “O ofício em que vivi” ............................................................... 188
Conclusão ......................................................................................... 191

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