Pão e Água

Transcrição

Pão e Água
dos processos de mudança e de transformação social, de geração para geração, e resgatando
do esquecimento o protagonismo feminino na construção do tecido económico da vila de
Avintes. Todas diferentes, todas marcadas por contextos espaciais e temporais concretos, o
da comunidade ribeirinha.
Este livro não pretende ser apenas mais um romance. O olhar sobre o feminino visa
mais longe. Contar histórias, rastrear falas, relembrar factos esquecidos, dar voz à expressão
dos sentimentos, abre possibilidades para a recuperação de múltiplas e ricas experiências,
as quais reservam enormes potencialidades como material histórico para o conhecimento
de Avintes de finais do século XIX a meados do século XX. Pão e água constitui, assim, um
desafio para se visitar e desvendar um tempo em que o rio também tinha mulheres... “
Ana Filomena Leite Amaral
Pão
e
Água
Pão e Água
“As pás abriam as águas, sôfregas de as
expulsarem para trás e elas ripostavam cada
vez mais revoltas. Joaquina soltou um ronco
e o eco dele ouviu-se, lá longe, anunciando
a esperada tempestade que se aproximava.
Faltavam apenas umas centenas de metros
para alcançar o Esteiro, aguenta só mais um
pouco irmãzinha. Joaquina dobrada sobre a
barriga, toda encolhida, os cabelos negros
assemelhando-se a um rolho de água,
lágrimas e suor. Mas os braços continuavam a
remar movidos pelo instinto e pela outra vida,
convicta de vencer todos os elementos que
conspiravam contra ela. A chuva engrossou
e a saraiva picava-lhes o rosto, não iriam
conseguir, precisavam de alar à sirga, meter os
pés na água e puxar o barco por terra.
No momento em que ela se lançou ao rio,
um tremor horrendo trespassou-lhe o corpo
e um grito lancinante atraiu o feixe de luz
que fendeu as águas do Douro, enquanto as
entranhas vivas de sangue de Joaquina se
fundiram com a ribeira do Esteiro. Só teve
tempo de agarrar o pequeno ser das águas
e ouvir o primeiro vagido, cujo relâmpago
iluminou a terra, baptizando a menina com
a sina do mistério divino. Estefânia seria! E a
tempestade rumou para outras bandas”.
Ana Filomena Leite Amaral nasceu em
Avintes, a 4 de Setembro de 1961. É
mestre em História Económica e Social
Contemporânea pela Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, possui o curso de
pós-graduação em Ciências Documentais
e uma longa experiência como intérprete
e tradutora de várias línguas europeias,
mantendo particular contacto com a
língua alemã. Actualmente é técnica
superior do Ministério da Educação.
Pão e Água é o seu quinto romance e
constitui um tributo à história da sua terra
natal nos finais do século XIX e princípios
do século XX, com especial relevo para o
papel das padeiras e barqueiras.
Romances publicados: Uma porta abriase a fogo, 1989; O segredo do cavalo
marinho, 1995; A casa da sorte, 2004; A
coroa de Góis, 2007.
Profª Doutora Irene Vaquinhas
Monografias históricas: Avintes na
margem esquerda do Douro, 1993; Góis
entre o rio e a montanha, 1997; Maria de
Lourdes Pintasilgo. Os anos da Juventude
Universitária Católica Feminina – 19521956, 2009.
Docente da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Avintes
A autora (10 anos) com a bisavó
barqueira, Estefânia.
“Ana Filomena Amaral, bisneta de barqueira, mergulha na memória e reconstrói,
pela via da ficção literária, a vida de antigas barqueiras, encadeando-as numa biografia
colectiva, esculpindo no papel rostos anónimos de mulheres unidos por uma história
comum e singularizados pelo nome próprio: Joaquina, Quitéria, Maria, Rosalina, Estefânia,
Gertrudes... A sua formação em história social dá ordem ao enredo descrevendo, de um
modo impressionista e sensível, quotidianos, usos, costumes, superstições, especificidades
de ofícios, provérbios, pormenores que tornam o livro mais espesso, devido à capacidade
da autora de revolver a realidade, de focalizar assuntos do passado e de os entrosar na teia
da escrita, ampliando os seus limites. Ao longo do texto, escrito para a frente como quem
sulca um rio em direcção a um porto de abrigo, vai dando conta, através das personagens,
Ana Filomena Leite Amaral
Avintes
Setembro de 2011