O ANJO GORDO - Gilberto Namura

Transcrição

O ANJO GORDO - Gilberto Namura
“O ANJO GORDO”
Não posso dizer que aquilo foi uma boa ação. Mesmo porque bêbados
atravessam os limites da razão. Meninos, igualmente. Meninos embriagados
não têm horizonte algum além do próprio nariz. Quem dirá razão.
O fato é que o Anjo Gordo tropicou no meu pé direito aos primeiros
acordes de um melódico “Rock and roll lullaby”, precipitando-se contra a
primeira, a segunda e a terceira fileira de casais justapostos para devaneios
da canção romântica. Abriu-se a clareira humana na orla do salão, numa
espécie cadeia atômica com bons indícios de Hiroshima. Uns sobre os outros,
antecipando — convenhamos — o tórrido epílogo de toda sexta-feira. Não me
digam que não era assim, pois eu estava lá. Aliás, não perdia sequer uma
“Sexta Dançante” do Moitense Esporte Clube: o ponto mais mal-afamado da
região e, por isso mesmo, com grandes compensações aos meninos bêbados
dotados da parca razão de seus horizontes nasais. Não me digam que não era
assim — ou bem assim — porque agora são todos avós de vida pregressa
sem máculas ou pecados. Afinal, como já disse, eu estava lá e talvez você
estivesse também; quiçá fosse mesmo uma das parelhas atiradas de súbito
ao chão pelo Anjo Gordo que ajudei a levantar, estendendo-lhe a mão
oscilante, equilibrando-me nas finas pernas trêmulas, vergando-me ao modo
do bambu em vendaval.
E ela, o Anjo Gordo, recompondo o vestido de jérsei floral com a
esquerda, tocou minha mão com a destra, levantando-se sem que eu
encontrasse forças para puxá-la.
“Eu vi, puxou a fulana no rodo!”, gritou alguém enquanto o previdente
discotecário calava o melódico B.J. Thomas.
“Vagabundo, fumetão... A gente vamos ti quebrá!”, anuiu outra voz
pouco antes da terceira, mais roufenha e grutal: “A fulana é minha prima,
ontárius!”...
O globo de espelhos estancou, paralisando os quadradinhos
multicoloridos. Vi-me no centro de uma ciranda de diferentes corpos
gingantes, num prelúdio de capoeira pagã — “Vem me dar uma chinela, vem
paspáio!”, vociferou um outro às minhas costas.
Fechei os olhos para descer ao inferno. Foi então que a mão do Anjo
Gordo se fechou sobre a minha, puxando-me de encontro ao estofo cálido de
seu corpo, beijando-me na boca ao modo de um Hollywood domingueiro no
Cine Aspásia, calando um a um meus algozes.
O sonoplasta tornou a agulha nos primeiros acordes do “Rock and roll
lullaby”. O globo de espelhos girou novamente e o mundo retomou seu meio
prumo.
Desculpe Anjo Gordo, esqueci seu nome. Eu era só um menino bêbado.
© Gilberto Namura