3.5 África: Um Tema na Ciência e na Literatura

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3.5 África: Um Tema na Ciência e na Literatura
3.5 África: Um Tema na Ciência e na Literatura
O interesse e a sagaz curiosidade pelas terras ultramarinas não ficaria pelo
conhecimento das suas gentes, das suas práticas religiosas e da sua
história. Com efeito, novos pontos de interesse surgem espalhados pelas
mais diversas áreas do saber. Assim, os homens de letras alemães intentam
aprofundar questões relacionadas com a matéria linguística ou com o
contributo das novas partes do globo para a definição do mundo animal e
vegetal; e alguns deles descobrem que os novos territórios até poderiam
ser um tema literário interessante, educativo, curioso e exótico.
3.5.1 Línguas Exóticas: Reorganização da Nova Babilónia
Cada povo tem a sua língua. Considerando o idioma como um elemento
descritivo essencial e próprio a cada cultura, a pesquisa do sistema
linguístico assume-se como um importante dado informativo e
interpretativo. Já nas relações de viagens os autores se preocupam em
compreender e registar as língua indígenas que encontram pelas várias
partes do orbe terráqueo. Frente à constatação de muitas e variadas formas
de expressão, entraves do diálogo inicial, os viajantes intentam encontrar
meios para ultrapassar este obstáculo de comunicação. Pouco a pouco vão
encontrando correspondentes na língua nativa, vão reunindo palavras,
significados que viriam a constituir básicos e importantes léxicos. A
reunião preambular de vocabulário supõe, na maioria dos casos, uma
adequada integração no discurso falado. O processo que se gera de
adopção de novos termos na língua mãe decorre, na generalidade,
espontaneamente, isto é, o objecto, a coisa que se desconhece e que
necessita ser denominada, adquire automaticamente o vocábulo das
regiões de que é originária. Na apreensão da realidade, os viajantes
buscam necessariamente equivalentes ao sistema conhecido.
Na costa do Marfim, Michael Hemmersam relata que os habitantes se
aproximam do barco e gritam "Qua qua", o que ele interpreta como um
grito de boas vindas,1 uma expressão de saudação e agradecimento. No
1. Michael Hemmersam, West=Indianische Raißbeschreibung, Nürnberg 1663, ed. S.P.
L'Honoré Naber, Reisebeschreibungen von deutschen Beamten und Kriegsleuten im Dienst
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dia-a-dia da viagem existe uma grande quantidade de designações de
coisas usuais, cujos sinónimos é necessário saber. Assim, os marinheiros e
viajantes aprendem o vocábulo utilizado, por exemplo, de objectos do
quotidiano, animais, árvores, plantas, determinadas funções, a fim de que
o sistema comunicativo se estabeleça confiante e familiarmente. Assim,
são inúmeros os exemplos de termos e expressões indígenas nos seus
registos; dada a novidade perfilha-se a palavra corrente que rapidamente
passa a fazer parte do vocabulário familiar.2
Na apreciação da realidade que se observa, os viajantes intentam
esclarecer as estruturas sociais, por exemplo, os cargos oficiais e os
respectivos títulos. Assim, Barnagais, escreve Francisco Álvares, é o
termo para o rei numa das regiões da Etiópia "[...] porque nagais quere
dizer rei e bar quere dizer mar e assim Barnagais quere dizer Rei do
Mar".3 Uma vez dada a explicação utiliza-se o conceito, aquisição oral e
definitiva da estrutura apreendida. O mesmo acontece, por exemplo, com
"cabeata", um dos principais cargos na hierarquia etíope.4 Assim, de
capítulo em capítulo, Álvares introduz novos vocábulos que se tornam
parte integrante da sua vivência.
No caso de Francisco Álvares a sua atenção recai ainda naturalmente
sobre os vocábulos relacionados com as cerimónias religiosas. Numa
procissão, a que o franciscano português assiste, os penitentes diziam "Zio
marenos", afirmação que, a seu ver, corresponderia a "Senhor Jesus
Christo amerceia-te de nós".5 Assim, quando o embaixador do Preste se
lhe dirige, dizendo "Aba baraca" que pensa quer dizer, padre dá-me a
benção, Francisco Álvares ter-lhe-ia respondido "Izi banaca" que se traduz
por Deus te benza.6 Nos relatos de viajantes deparamos, pois, com uma
der Niederländischen West-und Ost-Indischen Kompagnien 1602-1797, Haag, 1930, vol. 1,
p. 26.
2. Francisco Álvares, A Verdadeira Informação das Terras do Preste João, Lisboa, 1540,
transmite no seu texto expressões que recolhe durante a viagem. No encontro com um etíope
relata que este lhe diria: "Atefra, atefra", que quer dizer: "não hajas mêdo, não hajas mêdo".
(p. 151). Ao ser apresentado ao Preste João, os mensageiros gritavam "Hunca hiale hucis
Abeton que quer dizer o que me mandastes aqui o trago" (p. 191); "Cafacinha quer dizer
andai para dentro" (p. 191) ou "abeto abeto" que significa "o senhor, o senhor" (p. 269). Cf.
as mesmas designações na edição alemã de Francisco Álvares, Wahrhafftiger Bericht von den
Landen [...] des mechtigen Königs in Ethiopien, Eisleben, 1566, pp. 220, 253 e 313.
3. Francisco Álvares, op. cit., p. 60; ed. alemã, p. 120.
4. Francisco Álvares, op. cit., p. 214; ed. alemã, p. 115.
5. Francisco Álvares, op. cit., p. 77; ed. alemã, p. 146.
6. Francisco Álvares, op. cit., p. 336; ed. alemã, p. 369.
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permanente procura de equivalentes no léxico familiar numa contínua e
viva comparação entre o dado encontrado e o significado conhecido; os
textos, espelho atento da apreensão das realidades descodificadas em
palavras até então desconhecidas e dos seus possíveis referentes.
As relações de viagens transmitem fielmente a merecida recolha de
designações e termos dos mais variados sectores de conhecimento; são
nomes de regiões geográficas, plantas, frutos, animais, etc. que se infiltram nas páginas destes escritos. No reino Quoja, um tigre denomina-se
"Quellyqua",7 enquanto, entre os hotentotes, um leão tem por nome
"Chamma".8 Entre as maravilhosas descrições encontramos, por vezes,
longas listagens de denominações, desde o nome dado pelos indígenas ao
termo correspondente atribuído pelos europeus. É, sem dúvida, a
dificuldade de descrever e denominar a coisa em questão que se reflecte
na escrita. Michael Hemmersam refere-se, assim, a um animal que vive na
costa ocidental africana a que "os mouros chamam kankan, os portugueses
Kato Dagalia; na costa do Ouro denominam-o Castory, sendo Agaly o que
se lhes retira".9
Com efeito, a novidade seria então reconhecida pelo primeiro conceito,
neste caso, e, muitas vezes, atribuído pelos portugueses; daí que as
relações holandesas e alemãs estejam replenas de múltiplos vocábulos
portugueses.10
Os textos enchem-se de novas expressões, símbolo do diálogo
estabelecido e testemunho de alterações na própria linguagem. Os
vocábulos recentemente adquiridos passam a ser tão naturais na boca dos
viajantes como a sua própria língua.11 Ao deparar com uma nova realidade, o viajante apropia-se dos termos existentes, que o ajudam a integrar
7. Dapper, Umbständliche und Eigentliche Beschreibung von Africa, Amsterdão, 1670/1, p.
393.
8. Peter Kolb, Caput Bonae Spei hodierum, Das ist Vollständige Beschreibung des
africanischen Vorgebürges der Guten Hoffnung, Nuremberga, 1719, p. 32.
9. "Die mohren nennens kankan, die Portugisen Kato Dagalia, an diesem Goldgestaden
werden sie Castory genennt, den Agaly, so sie ihnen abnehemn." Michael Hemmersam, op.
cit, p. 35.
10. Michael Hemmersam, op. cit, que utiliza designações portuguesas como seja "cassen" (p.
60) para casas, "preto" (p. 50) e "Feitisso" (p. 64) para feiticeiro ou curandeiro. Sobre o uso
de conceitos portugueses em relações de viagens alemãs, veja-se Hans J. Vermeer, Über
einige Typen sprachlicher Interferenz in der deutschen Reisefachliteratur des 16. Jahrhunderts, in: Herbert Kolb (Ed.), Sprachliche Interferenz, Tübingen, 1977, pp. 246-266.
11. Veja-se o debate de usos de termos exóticos na língua portuguesa; por exemplo, João de
Barros, Diálogo em Louvor da nóssa linguágem, (1540), ed., Lisboa, 1971, p. 401 refere que
estes já seriam articulados de modo tão facil como os da própria linguagem.
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aquilo que agora conheceu e para o qual ele próprio não tem um outro
vocábulo ou porque surge num outro contexto não correspondente ao
conhecido.
Mas as palavras dos idiomas africanos, orientais ou americanos não só
seriam reflexo de estreitas vivências e profundos testemunhos de um
conhecimento, como ainda serviriam de digno objecto de estudo.12 É o
caso da obra Vocabula oder Wenn=Wörter. Welcher sich die Fetuischen
in ihrer Sprache gebrauchen/ denjenigen/ welche in Guinea handeln zur
Nachricht auffgesetzt und zusammen getragen,13 onde se organizam
longas listas de vocábulos com a respectiva tradução. Esta obra da autoria
de Wilhem Johann Müller seria publicada no ano de 1673, em Hamburgo,
e, em 1675, na cidade de Nuremberga. São ao todo 400 as palavras que o
autor ordena segundos diversos campos pragmáticos desde o tempo, a
família, Deus, ídolos, animais, aves, peixes, designações de profissões,
pesos e medidas, até palavras relacionadas com a actividade comercial.
Uma vez que a recolha tem subjacente uma necessidade prática de
comunicação no dia-a-dia com os falantes deste idioma, a maior preocupação é recolher um número significativo de palavras chaves da língua
fetu. É, pois, a ordem prática que impõe as regras do diálogo. Os índices
de palavras anexos às relações de viagens tornam-se, com o decorrer dos
tempos, cada vez mais sistemáticos e perfeitos.
O desbravar de um novo código será um estímulo para a aprendizagem do
desconhecido e, ao mesmo tempo, a abertura de um outro horizonte
mental. Ao registar e fixar imagens e realidades até então ignoradas,
inaugura-se um esmerado discurso linguístico, expressão da passagem do
registo à actividade reflectiva. Na verdade, o encontro de uma
multiplicidade de línguas totalmente desconhecidas e, por vezes,
indecifráveis levanta uma série de questões para os homens dos séculos
XVI e XVII. O conhecimento de idiomas tão díspares, alguns apoiados em
sistemas de escrita, outros apenas circunscritos à oralidade, impõe um
largo debate sobre o fenómeno linguístico.
Face a esta nova Babel, os vocábulos e as frases de além-mar serão
inquiridos segundo o modelo prevalecente. Em analogia ao que se tinha
efectuado para as línguas vulgares, a gramática das línguas exóticas seria
12. Veja-se, por exemplo, Álvaro Velho na sua Relação da primeira viagem à India... (1499),
ed. José Manuel Garcia, Viagens dos Descobrimentos portugueses, Lisboa, 1983, pp. 159224 apresenta um anexo com a linguagem de Calecute (idem, pp. 221-224).
13. Este dicionário seria publicado juntamente com a relação de viagem de W. J. Müller, Die
Africanische auf der Guinesischen Gold-Cust gelegene Landschaft Fetu.
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construída em apego à gramática latina. Esta fornecia as estruturas
basilares, funcionando como uma grelha no estudo dos idiomas
estrangeiros. Nesta operação científica crê-se profundamente no modelo
universal. Utilizado primamente para as línguas vulgares, aplicar-se-ia
agora às línguas exóticas.14 É então que compete aos gramáticos
reorganizar as listas de vocábulos anexas às relações de viagens.
É o que se propõe fazer Hieronimus Megiser.15 Na obra que dedica à ilha
de Madagáscar, Megiser inclui nem mais do que um Dictionarum der
Madagascarischen Sprach. Weche bey den Einwohnern der grossen
Africanischen Insul S. Laurenti, Vorzeitten Madagascar genandt/ gebrauchlich: Nach Ordnung des Alphabets zusammen gebracht/
verdeutschet/ und den Liebhabern frembder Sprachen zu gefallen in
Druck verfertiget.16 Eis o exemplo de um gramático europeu que, através
dos textos que tem à sua disposição, nomeadamente das relações de
viagens, se lança ardilosamente a desbravar o campo idiomático alheio,
recolhendo vocábulos e fraseologia característicos duma língua africana
no intuito de intervir construtivamente no estudo desse idioma. Sem terem
um contacto directo com a região escolhida, sem conhecerem os seus
habitantes, os gramáticos germânicos tratam doutamente o seu objecto de
estudo: a língua além-mar. Atribuindo-lhe os estrados e andaimes - já
experimentados - eles visam contribuir cientemente para a formação de
uma estrutura orgânica familiar.
Por vezes, este trabalho é ainda acompanhado por uma lista de léxicos
equivalentes em latim. O viajante e cientista Peter Kolb ao abordar, na sua
monografia sobre os hotentotes, a língua destes povos fornece uma lista
vocabular em latim, hotentote e alemão; junto do vocábulo hotentote
aparece o termo equivalente nas línguas latina e alemã. Uma vez que se
trata de uma língua sem escrita, exige do cientista um maior esforço e
empenho. Tal como ele refere, os hotentotes não conhecem letras, pelo
que ele se vê obrigado a reproduzir o que ouve para um sinal escrito, neste
14. Sobre este conceito e sobre a reacção dos gramáticos portugueses face à descoberta de
outras línguas, veja-se Maria Leonor Carvalhão Buescu, O estudo das línguas exóticas no
século XVI, Lisboa, 1983.
15. Hieronymus Megiserus (?1554-1616) já tinha publicado o seu Thesaurus polyglottus seu
Dictionarium multilingue, Frankfurt/M., 1603, onde apresenta algumas teorias sobre o
fenómeno linguístico, teorias estas discutidas por Leibniz e Ludolf. Ver John T. Waterman
(ed.), Leibniz and Ludolf on Things linguistic: Excerpts from their Correspondence (16881703), Berkeley/ Los Angeles/ Londres, 1978, pp. 28-30.
16. Altenburg, 1609, publicado na obra de Hieronymus Megiserus, que ele dedica à descrição
da ilha de Madagáscar.
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caso, para o sistema alfabético latino. Sem dúvida, um empreendimento
audaz e arrojado.
O estudo duma língua exótica na sua inventarização vocabular, nas suas
regras gramaticais, na sua caligrafia e lexicografia constitui
surpreendentemente tema de trabalho de muitos eruditos europeus. Para
além de um interesse geral pelo fenómeno linguístico, surgem ainda
pesquisas pontuais sobre o continente africano. Dada a multiplicidade de
idiomas existentes neste continente, vem a lume vários trabalhos sobre as
línguas africanas, entre eles, alguns estudos dedicados exclusivamente à
língua etíope.
Nesta área de investigação distingue-se mais uma vez o já conhecido Hiob
Ludolf que, no ano de 1661, publica, em Londres, uma Grammatica
Aethiopica e ainda um Lexicon Aethiopico-Latinum, obras estas que
viriam a lume mais tarde na cidade de Frankfurt.17 O seu interesse pela
questão linguística já se tinha evidenciado na sua Historia Aethiopica e
nos Commentarius e seria, sem dúvida, a sua paixão pela língua etíope que
originara o relacionamento com Gregorius, que muito o ajudaria nesta
delicada tarefa. Convém, no entanto, acrescentar que a linguística seria
uma das questões predilectas de Ludolf que conhecia nada menos do que
vinte e seis idiomas. Ao iniciar um debate em torno da linguística, Hiob
Ludolf pretende principalmente investigar o mecanismo evolutivo de uma
cultura. Na sua opinião é, ao reflectir sobre as origens da língua, que se
pode compreender a evolução e o desenvolvimento da humanidade e,
neste contexto, o continente africano revela-se-lhe extremamente criativo
e significativo dada a multiplicidade de línguas e dialectos aí presentes.
Esta preocupação em reflectir concretamente sobre o papel da linguagem
como forma de reconhecer o processo histórico de um país está bem
visível na correspondência que estabeleceu com o filósofo e erudito
Gottfried Wilhelm Leibniz. Tanto Hiob Ludolf como Gottfried Wilhelm
Leibniz buscam as origens da linguagem. Defendendo a existência de uma
língua original, da qual se teriam desenvolvido outras línguas ou dialectos,
os dois intelectuais, de exemplo em exemplo, intentam delinear o trajecto
empreendido desde o primeiro código oral. Numa das cartas a Leibniz,18
Ludolf esquissa a opinião de que o primeiro homem teria vivido no Orien17. As primeiras edições seriam publicadas por um aluno de Hiob Ludolf, Johann Michael
Wansleben, tendo o próprio Ludolf feito algumas correcções nas versões posteriores.
18. Ludolf a Leibniz, Frankfurt, 14 Junho, 1692 in: John T. Waterman (ed.), Leibniz and
Ludolf on Things linguistic: Excerpts from their Correspondence (1688-1703), Berkeley, Los
Angeles, Londres, 1978, pp. 26-28.
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te, mais propriamente, na Mesopotâmia ou regiões circunvizinhas, e daqui
teria partido em diversas migrações para o resto do mundo. Assim,
também a língua alemã teria vindo do Oriente através da Ásia Menor.
Leibniz que concorda com esta teoria,19 apenas estabelece um outro
trajecto desde o mundo oriental até à Alemanha. Segundo Leibniz as
migrações teriam vindo sempre por terra, enquanto Hiob Ludolf põe a
hipótese de terem atravessado o Mar Negro e o Mediterranêo. A fim de
comprovarem as suas teorias, os autores estabelecem relações entre os
idiomas das regiões em questão, isto é, buscam afinidades linguísticas
explicativas, fazendo um cotejo dos idiomas regionais. Assim, poder-se-ia,
a seu ver, descrever as palavras desde a sua raiz, nomeadamente, através
dos vestígios linguísticos. Seguindo este processo, os dois intelectuais
intentavam debuxar a pré-história humana, pois, tal como Leibniz afirma:
"les langues sont les plus anciens monuments du genre humain, et qui
servent le mieux à connoistre l'origine des peuples".20 A língua, um dos
mais antigos vestígios de civilização, seria uma inconstestável e capital
marca histórica.
Não existem, todavia, só estas duas opiniões sobre a língua-raiz. Com
efeito, muitas seriam as teorias construídas acerca das origens da
linguagem. Hiob Ludolf critica duramente, por exemplo, a tese formulada
pelo padre jesuíta Athanasius Kircher,21 que é da opinião que a língua
universal não poderia ter sido outra que o hebreu, do qual teriam assim
divergido todas as línguas existentes ao cimo da terra. Um dos aspectos
que mais o preocupou foi o flagrante paralelismo entre a língua chinesa e
a egípcia. Segundo Kircher, o terceiro filho de Noé, Cham, seguira do
Egipto para a Pérsia, vindo a estabelecer-se provavelmente no reino do
Mogor; daqui teriam seguido os hieróglifos para a China, explicando-se a
19. Leibniz a Ludolf, Hannover, 25 Julho, 1692, Publicada in: Waterman, op. cit, p. 29.
20. Leibniz a Bignon, 16. 1. 1694. Publicada in: Waterman, op. cit., p. 78.
21. A. Kircher (1601-1680), um dos mais criticados eruditos da época, procura mover para a
ciência moderna, mas com muitos fundamentos tradicionais e, por isso, ultrapassados. Em
1618 entra para a ordem dos jesuítas e, em 1628, seria padre. Quatro anos mais tarde tem de
deixar a Alemanha, por causa da invasão dos suecos e vai para Lion. A partir de 1634 até a
sua morte vive em Roma, onde trabalha como professor de matemática, física, e línguas
orientais. Funda o Museum Kircherianum e dedica-se a várias investigações nos mais
diversos ramos da ciência, que divulga nas suas obras. Sobre A. Kircher e as suas obras, vejase, Universale Bildung im Barock: Der Gelehrte Athanasius Kircher, Rastatt, 1981. Veja-se
ainda Enrichetta Leospo, Athanasius Kircher und das Museo Kircheriano, in: Gereon
Sievernich, Henrik Budde (Ed.), Europa und der Orient 800-1900, Munique, 1989, pp. 5871.
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vísivel e redondante semelhança entre os primeiros signos chineses e
egípcios.22 No objectivo de criar um sistema de filologia,23 Athanasius
Kircher iniciara as suas pesquisas no Egipto, tendo-se necessariamente
debruçado sobre a língua egípcia. Embora o Egipto e, mais concretamente,
os hieróglifos não fizessem parte do objectivo da sua investigação,
Kircher, que intenta ir de encontro à tradição filosófica ancestral, considera o reino egípcio como a primeira grande etapa do percurso da humanidade, onde, naturalmente, se poderiam aferir as raízes da cultura e ciência
europeias. Nestas pesquisas sobre outros países, outras realidades, muitos
homens de letras europeus deparam com civilizações igualmente
descendentes de uma longa e rica cultura em valores filosóficos e
científicos: é o caso das sociedades do Oriente. Este facto gera incertezas e
dúvidas quanto à originalidade e antiguidade da cultura europeia;
Athanasius Kircher é um dos eruditos que em face das novas descobertas
se propõe desbravar as origens da cultura católica.24
Para o inquietante trajecto cultural, Kircher reune todo o material que
encontra à sua disposição e inicia uma viagem fantástica pela realidade
extra-europeia. Como vimos, debruça-se primeiramente sobre os hieróglifos e, de analogia em analogia, ele encontra, no Egipto, os primeiros
indícios do cristianismo. Em forma de símbolos, estes testemunham já a
existência de um ser supremo, criador do mundo. Segundo Kircher, esta
prática religiosa ter-se-ia expandido, o que explicaria, a seu ver, o mistério
da antiga Pérsia de Zoroastro, e as religiões no Oriente. Kircher na sua
viagem pela natureza e pela história não se comporta como um cientista
moderno, baseando o seu trabalho em rigor filológico, pelo contrário,
Kircher cria o seu modelo universal como um esquema puramente
imaginário construído de associação em associação, método que iria
levantar severas críticas entre os seus contemporâneos.
Hiob Ludof, por exemplo, considera a sua tese referente às semelhanças
entre o Egipto e a China uma mera especulação25 e sem qualquer rigor
22. Athanasius Kircher, Prodomus Coptus sive Aegyptiacus, Roma, 1636.
23. Esta tese desenvolve-a na obra Oedipus aegyptiacus, hoc est universalis hieroglypicae...,
Roma, 1652-1654.
24. Sobre a ressonâncias do Oriente na cultura europeia e, em especial, na obra de A. Kircher,
veja-se Valerio Rivosecchi, Esotismo in Roma barocca. Studi sul Padre Kircher, Roma,
1982.
25. Numa das suas cartas ao padre Bonjour, um grande estudioso da língua copta, Ludolf
pede-lhe que se afaste dos trabalhos de Kircher pois não conhecendo a gramática copta, ele
apenas estabeleceria meras semelhanças. Ludof a Bonjour Frankfurt, April 1700. Publicada
in: Waterman, op. cit., pp. 53-55.
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EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES
científico; esta teoria contaria, todavia, com adeptos como, por exemplo, o
sinólogo francês Joseph de Guignes, que ainda, em 1760, bem mais tarde,
defendia ser a China uma colónia egípcia.26
Desde a descoberta, em 1419, do manuscrito Hieroglyphica que o decifrar
do respectivo código constitui um tema central da filologia coeva. A
língua original, compreendida como uma unidade entre a ciência e a fé,
representaria o símbolo da sabedoria, pela que a interpretação do conteúdo
deste documento surge como um objectivo fundamental nos meios
culturais humanistas. A forma original inerente aos hieróglifos propagarse-ia aos filósofos gregos e, consequentemente, aos seus discípulos
romanos. Na língua grega encontrar-se-iam referentes similares às
imagens dos hieróglifos, o que significaria uma reconciliação entre os dois
sistemas numa nova síntese gráfica. Esta preambular fusão anima os
humanistas na procura de uma língua ideal e da sabedoria original.27 A
antiga tradição latina e grega, bem como a hebraica e a cristã, testemunhos
de valor incalculável porque bem próximos da origem, reflectiam a
necessidade de conhecer as vias de difusão cultural. Antes da Grécia e
antes de Roma, remonta ao Egipto o berço da humanidade; aqui nascera
Moisés, a figura central da proliferação da prática religiosa ocidental. Não
faltavam textos gregos, redescobertos pelos amantes da Antiguidade, a
certificar a fulcral importância do Egipto na evolução do espírito hierático.
As relações do homem com o divino, presentes na dimensão misteriosa e
enigmática dos hieróglifos28 levam estudiosos, como Athanasius Kircher,
26. Joseph de Guignes, Memoire dans lequel on preuve, que les chinois sont une colonie
egyptienne...", Paris, 1670. Sobre Guignes e a sua obra, veja-se David E. Mungello, Aus den
Anfängen der Chinakunde in Europa 1687-1770, In: Hartmut Walravens (Ed.), China
illustrata. Das europäische Chinaverständnis im Spiegel des 16. bis 18. Jahrhunderts,
Weinheim 1987, pp. 74-78.
27. Veja-se Karl Giehlow, Die Hieroglyphenkunde des Humanismus in der Allegorie der
Renaissance, besonders der Ehrenpforte Kaisers Maximilian I., in: Jahrbuch der
Kunsthistorischen Sammlungen des allerhöchsten Kaiserhauses, Viena/ Leipzig, 1915, vol.
XXXII, Caderno 1, pp. 1-232.
28. Este aspecto misterioso e enigmático será reencontrado por muitos autores nas parábolas
da Sagrada Escritura. Os profetas também adivinham o futuro por símbolos e imagens. Sobre
os hieróglifos e a sua sabedoria misteriosa, veja-se Marc Fumaroli, Hiéropglyphes et Lettres:
La "Sagesse mystérieuse des anciens" au XVIIe siécle, in: XVIIe Siècle (Hiéroglyphes,
Languages Chiffrés, sens mystérieux au XVIIe siècle), Paris, 1988, No 158, pp. 7-19.
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a prosseguir a tradição humanista29 numa contínua procura da perfeita
harmonia do universo físico e espiritual.
Da comprovação da multiplicidade de línguas faladas pelo mundo chegase à criação de teorias do fenómeno linguístico, teorias estas que com os
seus modelos explicativos prestam um prestimoso contributo na descodificação e esclarecimento das origens da humanidade.
O continente africano estaria assim sempre presente nos vastos e largos
debates proferidos pelos homens de letras do século XVII. Quer no debate
sobre as origens da humanidade ou na reflexão sobre a diversidade patente
na língua, quer noutros sectores da cultura e da natureza, os intelectuais
descobriram aí um valioso legado. Em todas as áreas de saber, África
daria a sua contribuição para a discussão científica.
3.5.2 Ciências da Natureza: Registo e Classificação
Se urge ponderar sobre as origens da humanidade e a sua história e
cultura, então importa não negligenciar o papel das ciências da natureza na
construção de uma nova ordem de saber. Na verdade, a necessidade de
recapitular os inúmeros dados observados por este mundo ilimitado é
urgente e também nesta área do conhecimento se impõe a aplicação de um
sistema estrutural capaz de discernir e organizar o novo mundo animal e
vegetal.
Observar, comparar e classificar a natureza adquire cada vez mais o
estatuto de ciência autónoma. Se nas primeiras relações de viagens, se
recorria frequentemente à comparação com outros elementos já
conhecidos, a fim de se traçar uma imagem dos diversos animais ou
plantas em observação, ao longo do século XVII, é a procura de
características comuns segundo as quais se possa ordenar e classificar o
objecto em questão que determina a descrição e consequente
conhecimento; assim já não é uma função ou um aspecto semelhante, mas
sim uma qualidade que caracteriza uma determinada classe vegetal ou
animal.
O século XVI efectuara um longo e exaustivo trabalho de observação e
registo de qualidades e características zoológicas e botânicas, criando
29. Veja-se Gerhard F. Strasser, La contribution d'Athanase Kircher a la tradition humaniste
hiéroglyphique, in: XVIIe Siècle (Hiéroglyphes, Languages Chiffrés, sens mystérieux au
XVIIe siècle), Paris, 1988, No 158, pp. 79-92.
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EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES
consequentemente as bases fundamentais para um conhecimento mais
profundo do mundo animal e vegetal. Vejamos por um lado as iniciativas
dos eruditos humanistas em erigir valiosas e voluminosas enciclopédias
capazes de fornecer uma leitura do livro chamado mundo. Por outro lado,
a abertura do orbe terráqueo traz consigo um aumento substancial no
conhecimento de novas espécies que chamam a atenção de homens
curiosos. Estas duas vias, erudição e experiência, iriam desaguar num
único desejo: o de ler e reconstruir o mundo.
O material trazido para a Europa dos mais diversos pontos do globo
ilustrava a diversidade existente na natureza; também a novidade da
paisagem natural instava uma classificação.30 Enquanto os autores das
relações de viagens observavam, comparavam e descreviam as plantas, os
frutos, os animais, as aves e os peixes, os letrados preocupavam-se em
editar e conhecer as obras de homens que se tinham empenhado em
descrever o mundo animal e vegetal, como Plínio, Dioscorídes, Galeno,
Hipocrates, entre outros.31 Os homens de letras não ficariam, contudo,
indiferentes ao enorme manancial de informações vindas de além-mar e, a
par e passo, as descrições dos nautas constituiriam também um importante
instrumento de trabalho na mesa destes eruditos.
Assim, enquanto o médico Michael Herr32 escreve um livro sobre os
quadrúpedes,33 quase exclusivamente segundo as informações recolhidas
nas obras de Aristóteles, Plínio e Solino, as informações sobre novas
espécies animais aumentam substancialmente. Enciclopedistas como
Conrad Gesner reagem ao renascimento das obras clássicas reunindo,
anotando, comparando os textos numa esperança de completa exactidão
temática e daí que, por vezes, incluam já alguns dados recentemente
30. Veja-se Emile Callot, La Renaissance des Sciences de la Vie au XVIe Siècle, Paris, 1951.
31. As obras destes autores constituiam matéria obrigatória na formação humanista. Já
Hartamnn Schedel se ocuparia, nos seus estudos medicinais, das obras de Hipócrates, Galeno
e Plínio, obras que se encontram na sua biblioteca, respectivamente na área de medicina.
Veja-se Richard Stauber, Die Schedelsche Bibliothek, Ein Beitrag zur Geschichte der
Ausbreitung der italienischen Renaissance, des deutschen Humanismus und der medizischen
Literatur, ed. Otto Hartig, Freiburg, 1908 e ainda Béatrice Hernad, Die Graphiksammlung
des Humanisten Hartmann Schedel, Munique, 1990, pp. 79-80.
32. Veja-se cap. 1.2.; aí já referenciado pelas suas traduções de L. Varthema e do Novus
Orbis.
33. Michael Herr, Gründlicher vnterricht/ warhaffte vnd eygentliche Beschreibung/
wunderbarliche seltzamer art/ natur/krafft/vnd eygenschaft aller vierfüssigen Thier...,
Estrasburgo, 1546.
ÁFRICA: UM TEMA NA CIÊNCIA E NA LITERATURA
267
divulgados.34 O legado das autoridades constituiria, no entanto, um
fundamento difícil de superar ou criticar. As informações testemunham
validade, na medida em que constituem depoimentos de autoridades.35
Estas obras, em que se aposta na erudição, o método de conhecimento
usado maioritariamente pelos letrados é o de compilar tudo o que já fora
escrito. Assim, uma citação pode ser tão importante como o próprio facto
e pode mesmo fornecer a prova ou justificação. Mas pouco a pouco
instaura-se a dúvida gerada pela experiência.36 Observação e empiria, os
garantes de correcção, sobrepõem-se no registo. Embora a herança
clássica continue a fornecer as estruturas mentais consideradas válidas
para o conhecimento, nasce um espírito novo: dialogar com a antiguidade,
com o saber vigente para ir mais longe.37
Neste contexto, as viagens marítimas oferecem um enorme manancial de
informações, capaz de saciar esta sede de saber e de, ao mesmo tempo,
reforçar os métodos experimentais. Alguns esforços são já visíveis nos
textos de viagens quando abordam, por exemplo, em capítulos especiais as
diversas classes e espécies de animais, plantas ou outros elementos
naturais, consoante as suas características orgânicas.38 Também neste
34. A sua Historia animalum (Frankfurt, 1551-1587) está dividida em cinco livros: os 2
primeiros dedicados aos quadrúpedes, o terceiro aos passáros, o quarto aos peixes e o quinto,
por fim, às serpentes e aos insectos. Em apego à classificação do mundo animal de
Aristóteles, Gesner apresenta, no entanto, a temática alfabeticamente sem comparações. Um
trabalho descritivo sob o seguinte esquema: nome, país, habitat, aspecto, doenças, costumes,
utilidade, alimentação, medicina, curiosidades filológias, históricas ou literárias.
35. Neste contexto, não é estranhar que C. Gesner publique gravuras de seres que denomina
"Wunder des Meeres", criaturas metade humana, metade peixe, que teriam aparecido ao
longo das costas europeias. Historiam Animalum, 3° Livro. Frankfurt, 1585, pp. 175-76.
36. Na sua abordagem dos quadrúpedes, Michael Herr apoia-se maioritariamente nas
autoridades, embora já seleccione as informações que apresenta na sua obra. Assim, refere,
por exemplo, que não menciona certas notícias sobre a salamandra, tal como Plínio as tinha
dado, porque as considera falsas. Veja-se Michael Herr, op. cit., prólogo.
37. Veja-se Rudolf Schmitz und Fritz Krafft (Ed.), Humanismus und Naturwissenschaften,
Boppard, 1980; em particular, o artigo de R. Hooykaas, Von der "Physica" zur Physik, pp. 938.
38. É o caso, por exemplo, de Peter Kolb, Caput Bonae Spei Hodiernvm Das Ist:
Vollständige Beschreibung des Africanischen Vorgebürges der Guten Hoffnung,
Nuremberga, 1719. O autor apresenta, por ordem alfabética, os dados da zoologia e da flora
do Cabo da Boa Esperança. Outros exemplos: Wilhelm Johann Müller, Die Africanische auf
der Guinesischen Gold-Cust gelegene Landschafft Fetu, Hamburgo, 1673, ed. Jürgen
Zwernemann, Graz, 1968; Leonhardt Rauwolf, Aigentliche Beschreibung der Raiß [...] inn
die Morgenländer, Laugingen, 1583 (quarta parte; as primeiras vieram a lume em 1581 e
1582).
268
EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES
campo as relações de viagens constituem um banco documental
prioritário, a partir do qual se pode desenvolver e alicerçar uma frutuosa
discussão científica. Nestas obras encerra-se um valioso corpus
documental necessário à formação de uma ciência positiva.39 As
informações anotadas nas relações de viagens viriam ainda a ser complementarizadas, uma vez que muitos dos exemplos recolhidos seriam
trazidos para a Europa; as cidades europeias encher-se-iam de exemplares
de maravilhosas aves exóticas ou mesmo elefantes, que fariam as delícias
de muitos. Além disso, as plantas seriam também objecto de grande
atenção, sendo com assaz curiosidade e interesse que se descrevem as
variadas espécies.40 Fruto deste espírito atento e observador, o vivo
empenho em criar os inventários. O seu lema é: observar, comparar e
descrever.
Os primeiros escritos científicos não se fariam então esperar. Garcia de
Orta que, em 1534 acompanhara uma frota portuguesa até Goa, escreve os
seus Colóquios dos Simples e Drogas da Índia,41 enquanto Cristovão da
Costa edita um Tratado de Las Drogas y Medicinas de las Índias
Orientales42, dois preciosos exemplos de recolha e registo da ciência
médico-botânica do Oriente. Tanto o Tratado de Cristovão Costa, como os
Colóquios de Garcia de Orta, uma das mais famosas obras de ciência do
Renascimento, viriam a ser conhecidas na Europa através da tradução
latina de Charles de L' Ecluse (Carolus Clusius 1526-1609). No seu
Aromatum, et Simplicium Aliquot Medicamentorum Apud Indos
Nascentium Historia,43 Clusius apresenta os Colóquios embora numa
39. Sobre as viagens portuguesas e a suas repercussões nas ciências empíricas, veja-se Luís
de Albuquerque, Sobre o empirismo científico em Portugal no século XVI, Coimbra, 1982.
40. Muitos destes animais e plantas seriam coleccionados como qualquer outro objecto. Os
gabinetes de história natural, os jardins botânicos e as reservas para animais são vivos
testemunhos destas colecções. Veja-se E. Callot, op. cit, pp. 43-55 e Monika Kopplin, "Was
frembd und seltsam ist", Exotica in Kunst und Wunderkammern, in: Exotische Welten, Europäische Phantasien, Estutgarda, 1987, pp. 296-317.
41. Goa, 1563, ed. Conde de Ficalho, Lisboa ,1891, 1987. Sobre Garcia de Orta veja-se
Conde de Ficalho, Garcia de Orta e o seu tempo, Lisboa, 1886; Luís Filipe Barreto,
Descobrimentos e Renascimento. Formas de ser e pensar nos séculos XV e XVI, Lisboa,
1983, pp. 255-295.
42. Burgos, 1578. Sobre o contributo da obra de Cristovão Costa para a temática médica
renascentista, veja-se Luís Filipe Barreto, Caminhos do Saber no Renascimento Português.
Estudos de história e teoria da cultura, Lisboa, 1986, pp. 111-201.
43. Antuérpia, 1567. (ed. M. de Jong e A. Wittop Koning, Amsterdão, 1963). Sobre as obras
de Carolus Clusius, veja-se Feschrift anläßlich der 400jährigen Widerkehr der
ÁFRICA: UM TEMA NA CIÊNCIA E NA LITERATURA
269
versão reduzida. Não obstante edite todas as informações necessárias ao
conhecimento da botânica oriental, Clusius altera a estrutura da obra;
construída em diálogo entre Orta, um defensor do experientalismo e
Ruano, uma figura fictícia representante do humanismo ortodoxo, os
Colóquios propunham-se apresentar a controvérsia metodológica coeva.
Clusius despreza, por assim dizer, o "diálogo metodológico e cultural"
para destacar somente o aparelho factológico oriental.44
Recolhas como as de Garcia de Orta e Cristovão Costa abriam novas
perspectivas à botânica e à zoologia, bem como à medicina. As
repercussões dos novos conhecimentos fizerem-se logo sentir nas
publicações coevas, que assim intentam profetar a abertura do mundo.
Obras como, por exemplo, Horti Malabari45 ou Horti Medici46 dão a
conhecer as plantas de África, do Oriente e da América, descrevendo ao
longo de muitas e muitas páginas as diversas espécies regionais, muitas
vezes, acompanhadas da respectiva iconografia. Sem esquecer ainda de
fazer referências ao uso medicinal das referidas plantas.47
Michael Bernard Valentini, um médico residente na cidade alemã de
Giessen, de harmonia com o método das colecções de minérios, pedras ou
curiosidades, os denominados KunstKammer, redige o seu Museum
Museorum, oder vollständige Schau=bühne aller Materialen und Specereyen nebst deren natürlichen Beschreibung/ election, Nußen und
Gebrauch...48 Com base nas relações de viagens sobre o Oriente e a
wissenschaftlichen Tätigkeit von Carolus Clusius, Eisenstadt, 1973. Outras edições de
Aromatum: 1567, 1574, 1579, 1593. Costa: 1582, 1593, 1605.
44. A publicação de Garcia de Orta por Clusius é um exemplo sintomático das diferentes
posturas durante o Renascimento. A divulgação da obra de Garcia de Orta seria, contudo,
grande, pois poderemos encontrá-la inúmeras vezes referenciada. Poder-se-á mencionar por
exemplo, a obra de G. Pison (médico em Amsterdão) que na sua De India utriusquere
naturale medica (Amsterdão 1658) cita amiudamente Garcia de Orta, utilizando até, em
muitos casos a nomenclatura portuguesa.
45. Henricum van Rhede e Theodor Janson, Horti Malabari..., Amsterdão, 1686.
46. Caspar Commelino, Horti Medeci ..., Amsterdão 1701.
47. Os conhecimentos poderiam ainda ser utilizados no quotidiano, como seja em receitas
culinárias: Paul Jacob Marperger, Vollständiger Küch= und Keller= Dictionarium in
welchem allerhand Speisen und Geträncke...." Hamburgo, 1716. Aqui podem-se encontrar
alfabeticamente comidas africanas ("bárbaros", "mouros guineenses" ou de hotentotes). O
autor empreende este trabalho porque considera não só útil conhecer as novidades culinárias
de países estrangeiros, mas também porque a alimentação teria muito a ver com a constituição
das pessoas e a sua maneira de viver e ser dos homens e dos povos em geral. Interessante
ainda é o facto de Marperger citar, ao lado de obras coevas, exemplos referencidos por Plínio.
48. Frankfurt/M., 1704.
270
EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES
América, Valentini elabora uma fascinante compilação de plantas,
especiarias e produtos orientais - um nunca acabar de novidades.
Recheada de ilustrações, esta obra constitui um fabuloso léxico dos
produtos vindos além-mar. Uma obra similar é a de Peter Pomet Der aufrichtige Materialist und Specerey= Händler oder Haupt= und allgemeine
Beschreibung derer Specereyen und Materialen.49
Estes alguns dos inúmeros exemplos das ressonâncias da descoberta de
novos mundos nos meandros das ciências naturais. A lista de dados
aumenta de dia para dia e o inventário está quase completo. Após o
decisivo diálogo com a ciência clássica, os homens de letras vão-se
sentindo cada vez mais capazes de a criticar e, porque não, de elaborar
novos sistemas explicativos. Em cima dos ombros dos Antigos, os autores
renascentistas ousam ver mais longe. Isto porque começam a acreditar no
que vêm.
Em presença dos relatos de viagens dos Descobrimentos seria possível
iniciar a construção dos alicerces de novas concepções acerca do mundo e
da humanidade. Cheios de informações a descodificar, os textos de
viagens abriam novas perspectivas. Compreender o mundo nas suas
verdadeiras dimensões naturais e humanas significava formularem-se
novos métodos de análise, aprofundarem-se os limites prevalecentes e
inaugurarem-se novas áreas do saber. Algumas publicações isoladas
empreendiam, desde já, esta tarefa de classificação e de reconhecimento
documental, iniciando um processo de teorização que se iria assumir de
uma forma mais clara e global por todo o século XVIII.50
3.5.3 Literatura: Heróis em África
As viagens dos Descobrimentos iriam, de facto, contribuir
substancialmente para uma outra forma de estar no mundo. Não só os
espaços geográficos adquirem outras dimensões, a humanidade vê também
49. Leipzig, 1717.
50. Sobre este processo, veja-se Geoffroy Atkinson, Les Relations de Voyages du XVIIe
Siècle et l'Evolution des Idées, Contribution a l'Etude de la Formation de l'Esprit du XVIIIe
Siècle, Nova Yorque, 1971 (1924); Urs Bitterli, Die Entdeckung des Schwarzen Afrikaners,
Versuch einer Geistesgeschichte der europäisch-afrikanischen Beziehungen an der
Guineaküste im 17. und 18. Jahrhundert, Zurique, Freiburgo, 1980 e do mesmo, Die
"Wilden" und die "Zivilisierten", Grundzüge einer Geistes- und Kulturgeschichte der
europäisch-überseeischen Begegnung, Munique, 1976, 1982.
ÁFRICA: UM TEMA NA CIÊNCIA E NA LITERATURA
271
aumentada a sua esfera, pondo, assim, em causa a tradicional concepção.
A superfície terrestre cresceu tão fantasticamente que se pode falar, sem
exagero, de um Mundo Novo. A tomada de consciência deste evento leva
os homens de meados do século XVI a ver este acontecimento como um
resultado do esforço e empenho humanos. É, pois, com regozijo que se
encaram os feitos alcançados e que se testemunha um imensurável
optimismo na conduta humana; o homem renascentista empreendera
novos percursos e, graças ao seu labor, conseguira dar uma nova imagem
ao mundo. Ele, que partira à procura de outras terras e gentes, no final da
viagem, acabara por se conhecer a si próprio: os seus hábitos, os seus
ritos, os seus conceitos, a sua linguagem.
O encontro com outros mundos aparecia então como um novo tema, um
novo assunto que muitos letrados visavam aprofundar; e muitas seriam as
vias de abordagem. Os autores poderiam zarpar em naus europeias e
ancorar em terras distantes e longínquas, em portos maravilhosos onde
tomariam contacto com novas maneiras de viver ou em ilhas desertas
repletas de árvores extraordinárias com frutos e animais maravilhosos. Ao
longo das viagens nasceriam histórias e mais histórias, que ansiavam ser
contadas. As suas personagens poderiam ser os viajantes ou os reis e
veneráveis príncipes dessas terras distantes, cujos costumes e hábitos se
tinham tornado parte da cultura material europeia. As suas formas de governo, a sua história ou as suas remotas origens poderiam perfeitamente
constituir o tema de uma história.
Os contadores destas novas histórias baseiam-se em material histórico, em
fontes, mas não as pretendem reconstituir total e autenticamente. Eles
reunem os factos, não exaustivamente, pois o contador de histórias
coordena-os como melhor lhe parece. Visto que não ambiciona narrar toda
a verdade, ele permite-se ordenar os episódios consoante acha mais
proveitoso para o leitor e pode mesmo ignorar determinados aspectos
considerados desnecessários na abordagem das novas realidades. Se se
trata também de uma compilação de saber, visto que o principal objectivo
é reunir o conhecimento geográfico, político, religioso sobre um
determinado assunto, o certo é que a função do contador de histórias é,
antes demais, informar e deliciar o leitor.
272
EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES
Mas quem são estes contadores de histórias? Muitos deles constam entre a
classe de historiadores.51 Assim, se algumas destas obras baseadas em
fontes documentais se podem classificar como perfeitos escritos de natureza histórica, muitas outras são verdadeiros romances.
Eberhard Werner Happel é um destes autores. Conhecemo-lo de obras
geográficas, como Mundus mirabilis, o Thesaurus exoticorum, em que
traçou o debuxo de uma história de costumes de todos os povos da terra,
ou ainda das Relationes curiosas52 que, como o próprio título indica, é um
apontamento sobre matérias curiosas ocorridas nos séculos passados. Mas,
E. W. Happel escreve também romances,53 como o Afrikanischer Tarnolast,54 o Asiatischer Onogambo,55 o Europäischer Toroan56 e o
Insulanischer Mandorel.57 Nestes textos literários, Happel dedica-se mais
uma vez a temas já abordados, só que agora ele poderá criar os seus
próprios heróis e a trama das suas histórias. A intriga poderá ocorrer no
continente africano, como em Afrikanischer Tarnolast, caso vise informar
sobre a geografia e os usos e costumes desta parte do mundo.
Ao romance compete ajudar o leitor a conhecer outros países e outros
costumes de uma forma descontraída e com prazer; aqui o leitor aguarda
uma história fabulosa e dramatizada, um relato romanceado de uma
história de amor. Num ensaio sobre o aparecimento do género de
romance58 faz-se a seguinte distinsão: "Histórias são na generalidade
verdade, mas em parte mentira. Os romances em contraposição são em
parte verdade e na totalidade ou no género mentira. Estes misturam
verdade com erro e os outros são erros com mistos de verdade. Por fim,
retiro todas as fábulas de entre os romances, pois estes são coisas
retocadas, que não são impossíveis, mas poderiam ter acontecido, embora
51. Sobre a distinsão entre historiador e contador de histórias, veja-se Elida Maria Szarota,
Lohensteins Arminius als Zeitroman. Sichtweisen des Spätbarock, Berna/ Munique, 1970, pp.
159-174.
52. Veja-se cáp. 3.1 e 3.2.
53. Sobre E. W. Happel, veja-se Theo Schuwirth, Eberhard Werner Happel (1647-1690). Ein
Beitrag zur deutschen literaturgeschichte des siebzehnten Jahrhunderts, Marburgo, 1908 e
Gerhard Lock, Der höfisch-galante Roman des 17. Jahrhunderts bei Eberhard Werner Happel, Würzburgo, s. d.
54. Ulm, 1689.
55. Hamburgo, 1673.
56. Hamburgo, 1676.
57. Frankfurt/M. 1682.
58. Trata-se do Traité de l'origine des Romans do francês Pierre Daniel Huet (1670). Veja-se
Eberhard Lämmert u.a. (Ed.), Romantheorie 1620-1880, Dokumentation ihrer Geschichte in
Deutschland, Frankfurt/M., 1988, pp. 29-33.
ÁFRICA: UM TEMA NA CIÊNCIA E NA LITERATURA
273
de facto não tenham acontecido, enquanto que as fábulas são ornamentos
das coisas que não se passaram, nem podem vir a acontecer".59 O
historiador apresenta os factos, o contador conta uma história. Este reune
o material que utiliza nos seus romances para criar uma história que
poderia ter sido verdadeira. O conceito de história é subjacente aos
começos do género do romance.60 Ambas as obras procuram transmitir
uma sequência aliciante de factos vitais e exemplares para o seu leitor. Isto
porque "A história é uma obra de tanta utilidade que, nós, sem ela,
seríamos como que cegos a tactear no escuro".61 Qualquer que seja o seu
tema, a história visa ser uma lição; e este carácter pedagógico poderá ser
transmitido tanto por uma história verdadeira, como por uma história
eventualmente possível. Quer as histórias, quer as histórias romanceadas
pretendem transmitir uma mensagem e alumiar o caminho ao leitor. Em
suma, este o grande mérito da literatura.
Eberhard Werner Happel aceita, assim, o desafio de escrever histórias
romanceadas.62 A primeira obra, que dedica ao continente africano, e
escrita entre 1666 e 1670 só viria a público em 1689, após Asiatischer
Onongambo. Na Africanischer Tarnolast. Das ist: Eine anmuthige Liebes
und Helden-Geschichte/ von einem mauritanischen Printzen und einer
Portugallischen Printzessin... conta a história do príncipe Tarnolast, filho
do rei da Mauritânia que, preso por árabes, viria a ser vendido como
escravo em Adém. Com a ajuda da filha do dono consegue-se libertar e,
mais tarde, converter-se ao cristianismo. A caminho de Madagáscar, o
navio onde viaja naufraga, tendo sido salvo por franceses que o trazem
59. "Historien sind in Genere wahr, aber in gewissen Stücken falsch. Die Romane hingegen
sind in gewissen Theilen wahr, und im gantzen oder in Genere falsch. Diese sind Wahrheit
mit Falschheit vermenget, und jene sind Falschheit mit Wahrheit vermischt. Endlich schließe
ich auch alle Fabeln aus der Zahl der Romanen, den die Romanen sind ausgezierete Sachen,
welche nicht unmöglich gewesen, sondern sich wohl hetten zutragen können, dennoch nicht
also geschehen sind, die Fabeln hergegen sind Verzierungen der Dinge, die nicht gewesen
sind, noch haben sein können." Citado segundo G. Lock, op. cit., p. 31.
60. História e romance estão ainda nos séculos XVI e XVII profundamente interrelacionados.
Sobre a evolução do conceito literário de história entre os séculos XV e XVII, veja-se
Joachim Knape, "Historie" in Mittelalter unf früher Neuzeit. Begriffs- und
gattungsgeschichtliche Untersuchungen im interdiszisplinären Kontext, Baden-Baden, 1984,
pp. 369-400.
61. "Die Historie ist ein solch nützlich Werk/ dass wir ohne dieselbe/ wie blinde Leute/
gleichsam im Finstern tappen würden..." Assim Happel no seu romance Spanischer Quintana,
Ulm, 1686/87; citado segundo Schuwirth, op. cit., p. 128.
62. É interessante verificar que é um primeiros autores a fazer a distinsão entre história e
romance, conceito este que já surge no título de muitas das suas obras.
274
EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES
para Orléans; aqui nesta cidade francesa adopta o nome de Vallach.
Cavaleiro do conde de Florença, o nosso personagem dirige-se a Portugal
numa missão diplomática, que o leva até ao rei D. Manuel. Em Portugal,
participa num torneio e logo ganha o amor da filha do rei, Clara. Tarnolast
juntamente com Oran, o irmão de Clara, dirigem-se para Espanha, a fim
de lutarem contra os mouros. Vassalos do pai ao verem-no, passam-se
para o lado espanhol, e as cidades de Granada e Córdova, serão
conquistadas. Ao regressar a Lisboa, a irmã Ulissiaga, participa-lhe o
noivado com o irmão de Clara, que pouco depois seria raptada, pelo que
mais uma vez parte em seu auxílio. Juntamente com um inglês de nome
Eduard, Tarnolast inicia uma série de aventuras que o levam por toda a
África. Passa por Tombucto, Benim, Angola, Bamba, Etiópia, Melinde,
Monomotapa até chegar à ilha de Madagáscar, onde finalmente encontra a
irmã. Regressa então passando pela Etiópia, pelo Egipto e atravessando o
Mediterranêo chega de novo a Lisboa, depois de lhe acontecerem
inúmeras peripécias. Em Lisboa a noiva, Clara, espera-o para festejarem o
casamento, bem como o da irmã com Oran, o de Rosamunde, uma irmã de
Oran e de Clara que casa com o príncipe Eduard. Tecendo este ardiloso
argumento, Happel tem a oportunidade de descrever os diferentes reinos
de África; ao longo de mil e duzentas páginas, o escritor formula um
retrato do continente africano, intentando espelhar a situação política. No
Monomotapa, por exemplo, Tarnolast será ajudado por tropas portuguesas
aí estacionadas, em especial, por um senhor chamado Alvarez. Será que os
portugueses, viajantes e repórteres destes reinos, já se tornaram
personagens nas "histórias de amor e de heróis"?
Este esquema utilizado para o continente africano aplicá-lo-á também a
outras regiões. As obras de E. W. Happel distribuem-se, na verdade, pelas
quatro partes do mundo. Interessando-se pela história de um país ou de um
povo, E. W. Happel escreve uma obra atrás da outra, traçando uma
verdadeira história universal; com este seu panorama histórico que abarca
todas as épocas e se alarga a todos os continentes, Happel redige uma
romanceada história mundial.
Quanto às fontes utilizadas para escrever as suas obras, facilmente
poderemos adivinhar quais os nomes referenciados. Nas notas mencionase Olfert Dapper, Sebastian Franck, Herport, Schilberger Tavernier, Leonhard Rauwolff, Neuhoff, Pietro della Valle, Athanasius Kircher, bem
como Estrabão, Plínio, Diodoro Sículo, entre outros. Os romances de
Happel tão repletos de informações históricas, notas geográficas e cu-
ÁFRICA: UM TEMA NA CIÊNCIA E NA LITERATURA
275
riosidades, tornam-se "excêntricas enciclopédias reais" - esta a opinião,
um pouco depreciativa, do poeta alemão Eichendorff.63
E. Werner Happel não é o único autor a escrever simultaneamente obras
históricas e romances; muitos outros escritores, como Andreas Gryphius,
Philipp Hardörfer, Philipp Zezen, Daniel Caspar Lohenstein e Anton
Ulrich compilam igualmente histórias pelo mundo.
Um curioso exemplo é o de Philipp Zezen (1619-89),64 um nome
associado a muitas publicações, visto que trabalha como historiador65 e
contador de histórias. Além disso, Philipp Zezen seria um conceituado
tradutor, pelo que não só verteu para o alemão romances66 como ainda
outras obras, entre elas, relações de viagens. Neste contexto, interessa-nos
sobremaneira o seu trabalho, uma vez que Zezen traduziu do holandês
para o alemão, entre outras, as obras de O. Dapper que, como sabemos,
escreveu uma célebre monografia sobre o continente africano. Assim,
Zezen conhecia este continente, não porque alguma vez o tivesse visitado,
mas porque foi o autor da tradução de Olfert Dapper Umbstandliche und
eigentliche Beschreibung Afrikas (1670).67 Mas interessantemente ao
escrever um romance sobre este continente, Zezen escolhe um tema do
antigo Testamento. Intitulado Assenat, Josephs heilige Stahs= Lieb= und
Lebens- geschicht,68 este seu romance é uma história baseada em fontes
sagradas sobre a figura de José do Egipto.69 Pretendendo escrever a pura
verdade destes acontecimentos bíblicos, Zezen recorre a inúmeras fontes
63. "[...] tollgewordenen Realencyclopädien" (Eichendorff) citado segundo Herbert Singer,
Der galante Roman, Estugarda, 1966, p. 19.
64. Sobre P. Zezen, Ferdinand van Ingen, Philipp von Zezen, Estugarda, 1970.
65. Sobre a intensiva actividade de Zezen como historiador, veja-se Karl F. Otto Jr., Zezens
historische Schriften: ein sondierungsversuch. In: Ferdinand van Ingen (Ed.), Philipp von
Zezen 1619-1969. Beiträge zu seinem Leben und Werk, Wiesbaden, 1972, pp. 221-230.
66. Zezen traduziu Lysander und Kaliste , 1644 (Audiguier), Ibrahim, 1645 (Madame
Scudéry) e Sofonisbe, 1647 (Gerzan). Veja-se Hans Körnchen, Zezens Romane. Ein Beitrag
zur Geschichte des Romans im 17. Jahrhundert, Berlim, 1912 (Palaestra, 115).
67. Sobre este trabalho, veja-se Hebert Blume, Eine unbekannt gebliebene
Übersetzungsarbeit Zezens, in: Ferdinand van Ingen (Ed.), Philipp von Zezen 1619-1969.
Beiträge zu seinem Leben und Werk, Wiesbaden, 1972, pp. 182-192.
68. Assenat, Amsterdam 1670. (Ed.) Ferdinand van Ingen, Sämtliche Werke, vol. 7, Berlim,
Nova Yorque, 1990.
69. "Sobre os romances biblícos de Zezen, veja-se Volker Meid, Heilige und weltiliche
Geschichten: Zezens biblische Romane. In: Ferdinand van Ingen (Ed.), Philipp von Zezen
1619-1969. Beiträge zu seinem Leben und Werk, Wiesbaden, 1972, pp. 26-46; Willi Beyersdorf, Sudien zu Philipp von Zezens biblischen Romanen "Assenat" und "Simon", Leipzig
1928.
276
EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES
documentais, como podemos testemunhar, quando manuseamos o enorme
aparato de notas de rodapé - num texto de trezentas e sessenta e cinco
páginas, mais de duzentas são notas. A sua história não seria "fantasiada",
pedindo ao leitor que leia primeiro as notas, a fim de compreender o
processo narrativo. Manter fidelidade às fontes, o princípio que rege o seu
Assenat. Já no prólogo refere algumas das obras utilizadas, nomeadamente, escritos de árabes e hebreus, escritos do "mundialmente conhecido
Atanasius Kircher" e ainda de autores judeus, textos estes que teria
utilizado quando a Sagrada Escritura lhe dava poucas informações. Mais
uma obra nascida do veemente furor do saber lexical.
Ao ecrever o seu romance, Zezen apesar de o fazer de uma forma pessoal,
atento às discussões políticas do seu tempo sobre um governante cristão,
privilegia sobremaneira o tratamento tradicional deste tema que, desde o
teatro dos Jesuítas,70 ou com o romance Keusche Joseph (1667) de
Grimmelshausen,71 ganhara assaz significado nos meios culturais
europeus. Zezen apresenta neste seu romance uma descrição de
acontecimentos históricos bem à maneira de uma obra histórica. O seu
contributo para a história do continente africano baseia-se numa
actualizada e exacta reconstrução do passado consoante lhe permitiam as
fontes existentes.
No que respeita ao teatro jesuíta, embora não pretendamos aprofundar esta
temática,72 apenas gostaríamos de referenciar que também nas actividades
literárias ou teatrais desta ordem religiosa se encontram claras
ressonâncias das viagens marítimas. Com efeito, os autores jesuítas
souberam introduzir, nas suas representações e textos, novos temas, novos
heróis e até novas vítimas. É o caso da peça Alphonsus Rex Congi in
Aethiopia de mundo Victor. König Alphonsi wider die Welt erobert Sig in
Mohren=land representada no liceu jesuíta de Landsberg, no ano de 1670.
Conta-se o caso verídico passado com o rei congolês Afonso, que, por se
ter convertido ao cristianismo, seria vítima de intrigas e guerrilhas, por
parte do seu irmão. Após a morte do pai, o irmão trava uma mortífera
70. Ruprecht Wimmer, Jesuitentheater. Didaktik und Fest. Das Exemplum des ägyptischen
Joseph auf den deutschen Bühnen der Gesellschaft Jesu, Frankfurt/M., 1982.
71. Veja-se Clara Stucki, Grimmelshausens und Zezens Josephsromane. Ein vergleich zweier
Barockdichter, Zurique, Leipzig, 1933.
72. Sobre o teatro jesuíta, veja-se, entre outros, Willi Flemming, Geschichte des
Jesuitentheaters in den Landen deutscher Zunge, Berlim, 1923; Jean-Marie Valentin, Le
Theatre des Jesuites dans le pays de langue allemande (1554-1680), 3 vols, Berna/ Frankfurt/M./ Las Vegas, 1978.
ÁFRICA: UM TEMA NA CIÊNCIA E NA LITERATURA
277
guerra contra Afonso e os seus prosélitos, que só graças à protecção de
Deus conseguiria vencer.73
O tema aqui abordado, a missionação, muito do gosto dos jesuítas, poderia
ainda ser apresentado segundo uma outra perspectiva. Tematiza-se
publicamente as dificuldades do dever apostolado em muitos reinos
ultramarinos, onde a população resistia à administração estrangeira e à
introdução de uma nova religião. Este é, por exemplo, o argumento da
peça Congias Tragoedia. Das ist: Kläglicher Undergang/ Deß in dem
Christenthumb kaum auffgehenden Königreichs Congo, representada em
Landshut, no ano de 1694.74 Encontraremos ainda, entre os temas das
representações teatrais jesuítas, vítimas cristãs, como seja o Infante D.
Fernando, filho de D. Duarte que, preso pelos mouros aquando da
conquista de Tânger, se tornaria um mártir da igreja católica.75 Também as
grandes acções e prédicas de Ignácio Loyola ou de Francisco Xavier, o
Apóstolo das Índias,76 seriam levadas aos palcos jesuítas.
A história, em particular a antiga e sagrada, constitui um dos temas
favoritos da literatura do século XVII. Vejamos por exemplo, os
Africanischer Trauerspiele de Daniel Caspar Lohenstein, romance em que
se tematiza o período histórico de Cleópatra (1661) ou da rainha
Sophoniba da Numídia (1669).77 Estas são obras sobre o "drama político
da humanidade"78 em momentos de crise e de profundas alterações
dinásticas. O enorme contributo de Roma para as origens europeias surgia
73. Publicado por Elida Maria Szarota, Das Jesuitendrama im deutschen Sprachgebiet. Eine
Periochen -Edition. Texte und Kommentare, Munique, 1980, 1 vol., 2 parte, pp. 1531-1538;
Duarte Lopes, por exemplo, relatou estes factos; veja-se cap. 2.3.
74. Publicado por Elida Maria Szarota, Das Jesuitendrama im deutschen Sprachgebiet, op.
cit, 3 vol., 1 parte, pp. 349-358.
75. Baseados na obra de João Álvares, Chronica do Sancto e virtuoso Ifante dom Fernando,
Lisboa, 1527 os Jesuítas escreveriam, por exemplo, Beatus Ferdinandus, Insbruck, 1720; B.
Ferdinandus Regia pro Fide et Patria Victima, Landshut, 1720. Veja-se Elida Maria Szarota,
Das Jesuitendrama im deutschen Sprachgebiet, op. cit. 2 vol., 1 parte, pp. 139-154.
76. Como seja, por exemplo, Gloria Sacerdotum S. Franciscus Xaverius Soc. Iesu Indiarum
Apostolus, Straubing, 1664; Comoedie unnd Triumph/ von den Heyligen Ignatio de Loyola
Stiffter deß Ordens der Societet Iesu; Francisco Xaverio bemelt Societet Priester der
Indianer/ und Japonen Apostel, Ingolstadt, 1622. Veja-se Elida Maria Szarota, Das
Jesuitendrama im deutschen Sprachgebiet, op. cit., Munique, 1980, 3 vol., 2 parte, pp. 12731282; pp. 1229-1272.
77. Daniel Casper von Lohenstein, Afrikanische Trauerspiele, Cleopatra, Sophonisbe, ed.
Klaus Günther Just, Estutgarda, 1957.
78. Elida Maria Szarota, Geschichte, Politik und Gesellschaft im Drama des 17.
Jahrhunderts, Berna/Munique, 1976, p. 142.
278
EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES
como um digníssimo exemplar histórico capaz de ilustrar o
comportamento político.79
O recurso à história do Império romano poderia ainda oferecer muitas
hipóteses de tratamento, nomeadamente quando se cotejava a sua
expansão territorial com os limites imperiais do mundo do século XVII. É
o caso de Arminius de Lohenstein, um romance enciclopédico que conta a
história de Hermann, o chefe dos germanos, numa perspectiva actual e
mundial - isto na tradição da obra Totengespräch de Ulrich Hutten datada
de 1529. De modo similar, Anton Ulrich (1633-1714) redige a sua história
de Roma Octavia (1677-1707), em que senhorios orientais jogam de
algum significado já em épocas romano-germânicas.
O renascimento da Antiguidade Clássica viera, por assim dizer, recordar
inúmeras figuras exemplares e ideais de heróis do passado europeu,
enquanto a descoberta de outros mundos permitiria a criação de outras
histórias heróicas. No momento presente o mundo em reconhecimento
oferecia-se, na sua manifesta diversidade, como preciosa fonte de
estonteantes e extraordinárias histórias. A juntar-se à fascinação do mundo
romano ou egípcio viria a sagaz curiosidade pelo Oriente. Neste contexto,
poder-se-á referenciar o romance de Heinrich Anshelm von Zigler und
Kliphausen Die Asiatische Banise oder Blutiges doch mutiges Pegu,80
editado pela primeira vez em 1689.81
Este texto que, entre 1689 e 1766, viria a lume dez vezes, intenta, como
informa o seu autor no prólogo, descrever os "verdadeiros acontecimentos
ocorridos, nos finais do século XV, durante as cruéis alterações no reino
de Pegu e nos seus arredores".82 Zigler und Kliphausen refere que o
esboço para o enredo, para o cenário, bem como para as personagens do
seu romance, são o resultado de um aturado e esmerado trabalho de
análise documental. Com obras como as de Erasmus Francisci, J. Saar, A.
Rogerius e Alexandre Ross ser-lhe-ia possível conhecer os maravilhosos e
79. Sobre Cleópatra e Sophonisbe como figuras políticas, veja-se Elida Maria Szarota,
Geschichte, Politik ud Gesellschaft im Drama des 17. Jahrhunderts, Berna, Munique, 1976.
80. Leipzig, 1689, ed. Felix Bobertag, Berlim/ Estutgarda, s. D. (1883).
81. Sobre esta obra, veja-se Wolfgang Pfeiffer-Belli, Die asiatische Banise. Studien zur
Geschichte des höfisch-historischen Romans in Deutschland, Berlim, 1949, ed. Liechtenstein,
1969.
82. "[...] wahrhafftige[n] begebenheiten [...] "welche sich zu Ende des funfzehen=hunderten
Seculi bey der grausamen Veränderung des Königreichs Pegu und dessen angretzndende
Reichen zugetragen haben". Zigler, op. cit, p. 8
ÁFRICA: UM TEMA NA CIÊNCIA E NA LITERATURA
279
bárbaros usos e costumes dos asiáticos no que respeita, por exemplo, aos
seus casamentos, enterros ou coroações.83
Um relato dos acontecimentos históricos aqui referenciados sobre o reino
do Pegu e seus circunvizinhos seria conhecido da pena de Fernão Mendes
Pinto84 que, pela primeira vez, os tornaria conhecidos ao velho mundo. Na
verdade, trata-se da história do reino de Pegu, que em meados do século
XVI, estava dividido em vários outros estados.
Também para esta obra literária, as relações de viagens foram ímpares
instrumentos de trabalho, fornecendo valiosas e precisas informações para
a sua trama. Este texto nasce indubitavelmente de um estreito interesse
pela história actual85 e ainda pelo mundo oriental.86 Com efeito, a
exposição sobre realidades orientais presta-se à discussão de postulados e
doutrinas históricas - como a tolerância, as revoltas populares - ou de
categorias intemporais como fortuna, virtude, fidelidade ou malvadez. A
Asiatische Banise, um romance que prende a atenção pelo tema exótico e
actual, constituie um perfeito gabinete de curiosidades sobre o Oriente,
facto este que explica, de certo modo, o redondante êxito editorial.
Uma tal fascinação não se testemunha, pelo contrário, nos romances
dedicados ao continente africano - com excepção de o Afrikanischer
Tarnolast e de alguns dramas de autores jesuítas. A África não é tema da
literatura devido ao actual flair exótico, mas sim pelo seu significado no
passado, nomeadamente, pelo prestimoso contributo nos inícios da cultura
católica. Para os literatos do século XVII, o continente africano representa, acima de tudo, as origens da humanidade.
Na literatura do século XVII desaguam, pois, uma série de categorias
explicativas sobre a cultura clássica e logo sobre a cultura europeia. Do
83. "Wobey zugleich ein wohlgesinnter Leser die wundersamen gewohnheiten und gebräuche
der Barbarischen Asiater, bey heyrathen, begräbnissen und krönungen, welche ich, nebst der
historischen warheit, mit fleiß aus denen gelehrten schriften des nie genug gepriesenen
Francisci, Saares, Schultzes und Balby Reisebeschreibungen, Rogeri Heydenthum, Rosses
Religionen und andern curieusen schrifften colligiert, verhoffentlich nicht sonder anmuth
bemercken wird." Zigler, op. cit, p. 8.
84. Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, Lisboa, 1614; Amsterdão, 1671.
85. Um exemplo do estreito relacionamento entre a história e a actualidade é o tratamento
literário da vida e destino da rainha da Georgia assassinada em 1624 pelo Xá da Pérsia.
Andreas Gryphius (1616-64) levantar-lhe-ia um monumento, com o seu drama Catarina von
Georgien estreado em Colónia no ano de 1651 - e publicado em 1647, 1657 e 1663.
86. Ver Franz Babinger, Orient und deutsche Literatur, in: Deutsche Philologie im Aufriss, 3
vol., pp. 565-89 e ainda Horst Hammitzsch, Ostasien und die deutsche Litertur. In: Deutsche
Philologie im Aufriss, 3 vol., pp. 599-612.
280
EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES
confronto com o percurso histórico e civilizacional nascem indubitavelmente novos mitos e, por conseguinte, novos heróis. Heróis, cuja pátria é
o mundo.
Aqui importa aludir a Johann Jakob Christoph von Grimmelshausen e ao
seu Der abenteurlich Simplicissimus Teutsch87 em especial, a Continuatio
que publicada, pela primeira vez, em 1669, seria entendida como um
acrescento ao primeiro livro.88 Acompanhar Simplicissimus no seu
trajecto significa percorrer o mundo inteiro. Significa também redescobrir
todos os topoi e temas que os homens do século XVII associaram à
"África Nova". Vejamos Simplicissimus de Grimmelshausen um pouco
mais de perto, esta fabulosa personagem literária onde se reflectem os
topoi e os desejos de aventuras coevos. O autor Grimmelshausen aflora a
temática do encontro com o estranho continente africano nas suas funções
e características para formular uma crítica à teoria da civilização que, mais
tarde, no século XVIII, dominará os debates intelectuais europeus.
A sua verdadeira viagem pelo mundo será descrita no final dos cinco
primeiros livros num pequeno e conciso episódio. Vindo de Moscovo,
Simplicissimus, prisioneiro vezes sem conto, acaba por chegar à Coreia,
onde será entregue ao rei local. Tendo-lhe este dado benemeritamente a
liberdade, Simplicissimus atravessa o Japão até Macau, onde será entregue
a portugueses que pouca importância lhe dão. De novo raptado, ele irá,
desta vez, habitar durante um ano entre povos estranhos numa ilha
oriental.89 Por fim, e apesar de incríveis circunstâncias, ele chega à sua
terra natal. Grimelshausen retoma esta última viagem como tema na
Continuatio e faz dela uma verdadeira história, em que o herói abandona a
sua propriedade em terras alemãs e se despede do mundo "Adieu Welt".
87. Hans Jakob Christoffel von Grimmelshausen, Der abenteurliche Simplicissimus Teutsch,
Nuremberga, 1669; edição utilizada: Berlim, 1984.
88. Continuatio des abenteurlichen Simplicissimi, Nuremberga, 1669. Incluída, como sexto
livro, nas edições posteriores. Sobre J. C. Grimmelshausen e a sua obra, Cf. Günter Weydt
(Ed.), Der Simplicissimusdichter und sein Werk, Darmstadt, 1969; do mesmo, Hans Jacob
Christoffel von Grimmelshausen, Estutgarda, 1971; Curt Hohoff, Johann Jacob Christopf von
Grimmelshausen in Selbstzeugnissen und Bilddokumenten, Hamburgo, 1978; Simplicius
Simplicissimus. Grimmelshausen und seine Zeit, Münster, 1976.
89. "[...] wohl ein ganzes Jahr auf dem Meer bei seltsamen fremden Völkern, so die
ostindianische Insulen bewohnen", p. 448. Grimmelshausen utiliza diversas fontes, entre elas,
Thomas Garzonus, Piazza Universale e o Wunderchronik de Conrad Lycosthenes sobre
monstros antropóides traduzido por Johann Herold. Veja-se Ilse-Lore Konoptzki,
Grimmelshausen Legendenvorlagen, Berlim, 1965, pp. 15-25 e Joseph B. Dallett,
Grimmelshausen und die Neue Welt, in: Argenis, Internationale Zeitschrift für Mittlere Deutsche Literatur 1 (1977), caderno 1-4, pp. 141-227.
ÁFRICA: UM TEMA NA CIÊNCIA E NA LITERATURA
281
Mais uma vez Simplicissimus vai percorrer vários países até que decide
organizar uma peregrinação a Jerusalém. Assim, parte da Itália para
Alexandria, sobe o Nilo até ao Cairo, a fim de visitar, naturalmente, as
pirâmides e daqui prossegue até ao Mar Vermelho. É então que
Simplicissimus decide viajar até Santiago de Compostela, em vez da sua
inicial ideia de peregrinação a Jerusalém, tendo em consideração o estado
de guerra na Terra Santa. A caminho da Península Ibérica, já perto da ilha
de Madagáscar, com o desejo de passar o Cabo da Boa Esperança,
levanta-se uma tempestade e o navio naufraga; depois de grandes
momentos de aflição, Simplicissimus avista uma ilha, a sua última
salvação. À primeira vista parece tratar-se de uma terra fértil, com muitas
árvores de fruto. Simplicissimus e o seu companheiro, curiosamente - e significativamente - um português, dão uma volta pela ilha, mas não
encontram ninguém. Embora apreensivos, decidem que seria melhor assim
do que terem encontrado canibais. Com os poucos instrumentos que
possuem, constroem uma cabana "dado que a chuva indiana de África
seria pouco saudável".90 Após algumas horas de descanso, descobrem
peixes a saltar no ribeiro que logo decidem pescar. Quando os dois estão a
pensar como é que os poderiam cozinhar, uma vez que não possuíam
qualquer utensílio doméstico, surge, ao longe, no mar, uma figura
feminina sobre uma arca. Eles recolhem-na e pensam que se trata de uma
abissínia cristã. Procuram reanimá-la com cascas de limão até que, por
fim, ela começa a falar português. O camarada de Simplicissimus informao que se trata de uma criada de uma portuguesa e que as tinha encontrado
em Macau quando ambas pretendiam viajar para Amboíno. Na arca que a
naufragante trouxe do mar encontravam-se vários instrumentos, armas,
seda chinesa e até várias peças de porcelana, que um nobre pretendia
enviar para Portugal. Ela oferece-se então para cozinhar e, aproveitando
estarem sós procura convencer o português de que seria melhor desenvencelharem-se de Simplicissimus, pois só assim poderiam viver em paz. Mas
na hora de comer, quando Simplicissius pega no Crucifixo para rezar, a
abissínia desaparece surpreeendentemente com a arca, deixando um cheiro
tão horrível, que o português desmaia - uma imagem metafórica das
misteriosas e fantásticas experiências com o reino do lendário Preste João?
O português pede perdão e ambos decidem que, no futuro, terão de ter
mais cuidado com as manhas do Diabo. Uma vez que o português não se
90. "[...] weil der indianische Regen gegen Afrika sehr ungesund zu sein pflegt".
Grimmelshausen, Simplicissimus, op. cit., p. 545.
282
EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES
consolava, Simplicissimus aconselha-o - como era marceneiro - a fazer
uma cruz em nome de Deus.91
A partir deste momento, os dois vivem como os primeiros homens na
Idade do Ouro, uma vez que o céu abençoado fazia com que tudo
crescesse na terra sem que fosse necessário trabalhar.92 Os meses
passavam e embora tivessem algumas dificuldades, por exemplo, com o
vestuário, pois não queriam viver como os animais, nus, mas sim como
verdadeiros cristãos europeus,93 iam com alguns conhecimentos do
português, que vivera vários anos na Índia superando alguns problemas.
Mas como o seu companheiro era muito dado ao vinho de palma, Simplicissimus fica, em breve, sózinho na ilha. Resta-lhe, pois, observar o
mundo como um grande livro e fazer desta pequena ilha o seu mundo.
Com uma referência ao livro, a história contada por Simplicissimus acaba
aqui, mas a obra continua com a Relation Joan Cornelissen von Harlem,
eines holländischen Schiffkapitäns. O capitão de um navio holandês mero acaso? - relata o encontro que teve com o eremita após um
naufrágio; este o teria ajudado a tratar dos doentes e lhe teria oferecido um
livro de memórias escrito com a tinta de plantas exóticas.
Grimmelshausen apresenta com a Continuatio de Simplicissimus um tema
que se vai tornar muito comum na literatura europeia: uma ilha fantástica e
uma natureza maravilhosa que salva os heróis das suas turbulentas
aventuras, oferecendo, aos que deliberadamente querem deixar o mundo,
uma existência idílica longe dos tormentos da civilização. Simplicissimus
um severo crítico da cultura e um dos primeiros heróis da Robinsonada94 91. "Gott dem Allmächtigen zu Ehren undem Feind des menschlichen Geschlechts zu
Verdruß hat Simon Meron von Lissabon aus Portugal mit Rat und Hilfe seines getreuen
Freunds Simplici Simplicissimi, eines Hochteutschen, dies Zeichen des Leidens unsers
Erlösers aus chrislicher Wohlmeinung verfertiget und hierher aufgerichtet", "Aqui colocada e
feita em honra de Deus o Omnipotente por Simon Meron de Lisboa em Portugal com o
conselho e a ajuda do seu fiel amigo Simplicius Simplicissimus, um alemão, como sinal
cristão bem intencionado do sofrimento do nosso Salvador e do desgosto e da inimizade face
ao ser humano. Grimmelshausen, Simplicissimus, op. cit., p. 552.
92. "[...] die erste Menschen in der güldenen Zeit, da der gütige Himmel denselbigen ohne
Arbeit alles Guts aus der Erde hervorwachsen lassen". Grimmelshausen, Simplicissimus, op.
cit., p. 555.
93. Idem.
94. J. H. Scholte apresenta Simplicissimus como a Robinsonada de 1669, demonstrando que
Grimmmelshausen teria utilizado uma das obras publicadas pela família Bry, na
Orientalischen Indien, como fonte para a sua Relatio. Veja-se J. H. Scholte, Die deutsche
Robinsonade aus dem Jahre 1669, in: Der Simplicissimus und sein Dichter, Tübingen, 1950,
pp. 51-79.
ÁFRICA: UM TEMA NA CIÊNCIA E NA LITERATURA
283
género literário, muito corrente, a partir do século XVIII, na literatura
europeia, que conta as aventuras de um herói isolado num universo
fechado, muitas vezes, em rejeição da cultura ocidental.
Assim, quando o capitão o convida a regressar à pátria, Simplicissimus
responde-lhe: "Meus Deus! o que é que me quer assinalar? Aqui há a paz.
Lá há guerra; aqui nada sei de altivez, de avareza, de ira, inveja, fervor,
falsidade, fraude, de todas as preocupações [...].95 E continua: "Quando
ainda vivia na Europa tudo estava (ah, que lástima, que o tenha de
testemunhar entre cristãos) repleto de guerra, incêndio, crime, roubo,
saque, violações a mulheres e meninas [...]. E o que é pior ainda é saber
que não há esperança de melhor" e depois de tecer uma crítica aos cristãos
que pouco praticantes se consideram devotos, mesmo com os poucos actos
piedosos que praticam, levanta a questão se deveria voltar e a sua resposta
é "Não [...] Deus me livre".96
Simplicissimus prefere ficar no seu pequeno mundo insular, algures em
África. Assumido bom selvagem, ele aguarda que os europeus o
redescubram como um espelho ideal.
95. "Mein Gott! was wollt Ihr mich zeichen? Hier ist Fried? dort ist Krieg; hier weiß ich
nichts von Hoffart, vom Geiz, vom Zorn, vom Neid, vom Eifer, von Falschheit, von Betrug,
von allerhand Sorgen beides [...]."
96. "Als ich noch in Europa lebte, war alles (ach Jammer, daß ich solches von Christen
zeugen soll!) mit Krieg, Brand, Mord, Raub, Plünderung, Frauen-und Jungfrauenschänden
etc. erfüllt [...]. Und was das allerärgste, ist dieses, daß keine Besserung zu hoffen, indem jeder vermeinet, wann er nur zu acht Tagen, wann's wohl gerät, dem Gottesdienst beiwohne
und sich etwan das Jahr einmal vermeintlich mit Gott versöhne, er habe es als ein frommer
Christ nit allein alles wohl ausgerichtet, sondern Gott seie ihm noch darzu um solche laue
Andacht viel schuldig. Sollte ich nun wieder zu solchem Volk verlangen? Müßte ich nicht
besorgen, wann ich diese Insul, in welche mich der liebe Gott ganz wunderbarlicherweis
versetzt, wiederum quittierte, es würde mir auf dem Meer wie dem Jonae ergehen? 'Nein, sagt
er' [...] wolle mich Gott behüten!'. Grimmelshausen, Simplicissimus, op. cit., p. 576.