Um passeio pelo bairro: análise de transformações e usos do

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Um passeio pelo bairro: análise de transformações e usos do
U M P AS S EIO PE LO B AIRRO : A NÁL ISE D E T RANS FORMA ÇÕE S E U S OS
E S P A ÇO P ÚBLIC O NO B AIRRO K OBRA S OL (S ÃO J OS É - SC)
DO
S uz ana Cast anhei ro Uliano (PPGAS/UFSC) 1
Resumo
A proposta desse t ext o é pensar o bairro Kobr as ol, localizado em São J os é –
SC,
tendo
c om o
aspect o
c entral
a
relação
entre
as
transf orm açõe s
ar quitetônicas e estr utur ais resultantes do pr oc es so de enobreci ment o pel o
qual este vem pass ando. Ainda, vis a refl etir sobr e as rev er beraç ões de t ais
mudanç as nas dinâmicas de us o dos espaç os públ icos des se bairro. Par a
tant o, o text o c om eç a com um hist órico da região, s eguido de breve debat e
ac erc a da met odologia e aport e t eórico. Por fim, e com bas e no debat e
levantado, busc a- s e a anális e de algumas i magens do bairro, r esultant es de
um a brev e incur são por ele; pensando o ur bano a partir do enobr ecim ent o e da
di sputa.
Palavr as- ch ave: Espaç o público, enobreci mento, Kobr asol.
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa
Catarina. Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista Capes
(2013-2015).
UM PASSEIO PELO BAIRRO: ANÁLISE DE TRANSFORMAÇÕES E USOS DO ESPAÇO PÚBLICO NO BAIRRO KOBRASOL(SÃO JOSÉ -SC)
Introdução
Este artigo analisa o pr oc ess o de enobreci ment o ainda cr esc ent e no
bairro Kobr as ol, locali zado no m unicí pio de São José, Sant a C atarina (SC).
Embor a tenha m enos de 40 anos de fundação, este bairro j á pos sui vital
importânci a ec onômica na regi ão c ontinental da Grande Fl orianópolis.
Segundo Z ukin (2000), o enobrecim ento dos es paços públicos é u m
pr ocess o marcado por si gni ficativas transformações do espaço ur b ano.
Rec orr ente em diversas cidades do m undo, es se process o tem c om o maior
c aract erística a r emodel agem ar quitetônica de determi nada região a fim de
c onfl uir com novas per spectiv as econômi cas.
Tais transform aç ões alteram de form a signifi cativa o uso dos es paços
públi cos
e
c onstituem
um a
clara
tent ativa
de
m udar
o
perfil
dos
frequent adores, af astando, por ex em plo, os mor adores de rua e usuários de
dr ogas. O u s eja, o enobr eciment o tam bém m ostr a as r elaç ões de poder
pr esent es nas cidades.
Consi derando is so, o pr es ente t ext o começa por descr ev er o Kobr as ol,
apr es ent ando um pouco de sua hist ória e as transf orm aç ões oc orridas
pri ncipalment e nos últimos dez anos. Tais m udanças são apresentadas t endo
c om o base document os do m unicípi o e artigos de jor nal.
Há por fim o aspect o etnogr áfic o, inspirado naqui lo que dá nome a est e
arti go, Um pass ei o pel o bairro. Uti lizando-se da “anális e de passagem”,
abor dada por M agnani (2002), os pr ocess os de enobr ecimento e ex clusão são
pens ados a partir de r egistros f otogr áfi cos do ba irro, resultant es de um a
pequena inc ur s ão por i mportant es c aminhos deste.
Apresen tação do Bairro
Ao s e ref erir às m etrópol es européias da virada do s éc ulo XIX par a o
XX, Si mmel (2005) descr ev e- as com o campos de dualidades e c onflitos,
pr otagoni st as de um int ens o ac el eram ento ec onômic o e s ocial. P odemos
rel acionar es sa vis ão às c om plexas r elaç ões pr esent es no bai rro Kobr asol sob
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dois as pect os: a celeridade do s eu des envolviment o e a r ef orm ulaç ão do
panor am a econômic o e geogr áfico.
O bairro em quest ão nasc eu há 37 anos 2, a parti r da parceria entr e t rê s
gr andes empr esários da r egião 3 que deci diram transf orm ar um antigo terr eno
baldi o 4, que em parte s ediav a o A er oclube de Santa C at arina nos anos 70, em
um loteamento par a pequenas edificaç ões r esidenciai s 5. O pr ojeto inici al, c om o
descrito pel o hi st oriador Milton Knabben,
[ . . . ] t inh a 5 6 9 m il m e t r os qu a dr a d os disp o ní ve is, se nd o 2 9 0 m i l
m e t r os qu a dr a d os pa r a a con st r uçã o d e 7 0 q ua d r a s e 7 81 lo t es,
com á r ea m é d ia d e 4 0 0 m e t r o s q u a d r ad o s ca da , a l ém d e 12 7. 7 0 0
m 2 p ar a o co m ple xo v iá r io e 1 7. 6 4 0 m 2 pa r a á r ea s ver d e s e
r e cr e a çã o ( KNA BB EN ap ud CAM PO S 2 01 2 ) .
Do pr ojeto dess es empr es ários, surgi u o Parque R esi dencial Kobr as ol,
no cor ação do bairro C am pi nas. P ensado a princí pio por cont a de s ua
pr oxi midade com Fl orianópolis, tinha c om o objetivo s ervir de residência
àqueles que trabalhav am na capital.
Sua im portância se r eflet iu na di stribuiç ão espacial não só do s
mor ador es da cidade, mas tam bém dos pr édios administr ati vos. No Plano
Diretor de São José const a que
Em 19 7 7 a con st r u çã o do L ot ea m en t o Ko b r aso l n o ba ir r o d e
Ca m p ina s a b sor ve u qu ase po r co m pl et o a s at ivida d e s r e side n cia is ,
eco nô m ica s e soc ia is da pr im it iva se d e d o m u ni cí pio ,
pe r m a ne cen d o n o n ú cle o o r ig in a l a pe n as pa r t e d a a d m in ist r açã o
pú b lica
e
as
a t iv id a d e s
cu lt ur a is
r e m a ne sce n t es
( GTCA DAS TRO / F E ESC/ UF SC, 20 0 4, p. 1 1 ) .
O bairro teve como m arc a, des de a sua fundação, a alta densi dade
populacional, dividindo historic am ente c om os bairros Campinas e Barr ei ros os
mai ores índic es de densidade populacional. C omo apont a o doc um ent o
s upracitado, a densi dade dem ogr áfica do bai rro exc ede em alguns lugare s
2
O município de São José tem 263 anos.
A saber, Antônio Scherer, Adroaldo Cassol e Walter Koerich. Para mais ver matéria de Vanessa
Campos no Diário Catarinense Online. Florianópolis, 02 de novembro de 2012. Disponível em
http://tinyurl.com/prxowy3. Acesso em 10 Jul. 2013.
4
Vide mapa 1.
5
Quatro andares era o antigo padrão dos edifícios do bairro; hoje os prédios da região podem chegar a ter
19 andares. Vide imagens 1 e 2.
3
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3. 000 habitant es por hect ar e: índic es de três a seis vezes maior es que o
normal estipulado em outras cerc ani as.
Apes ar da intens a oc upaç ão – ou j ustam ente por conta del a – o
Kobr as ol figur a entre os bairros do m unicí pio c om m aior ár ea v erde e mai or
núm er o de pr aças. O utro dado relevante é que 100% do bairro possu i rede de
c oleta de es got o 6.
Porém, a principal c ar act erística d o bairro, hoje, é s eu intens o c om ér cio,
que ofer ec e di vers os pr odut os e s erviços. Há tam bém um a vida not ur na forte,
bastant e conheci da na regi ão, c om div ers os bar es e r estaurantes que ofer ecem
c onsi der áv el variedade gastr onômica e de lazer 7.
A loc ali zação desse bairro tam bém é algo important e. O bserv ando o
mapa 1, podem os ver que ele tem quatro im portant es vias no s eu ent orno. À
es querda, a BR-101, que c orta o E stado de norte a s ul. Na part e superior
di reita do m apa aparece a BR -282, chamada de Vi a Ex pres sa, princi pal acess o
por terr a à capital . E abaix o, as avenidas Presidente K ennedy – princi pal
ac es so a importantes bairros de São J os é ( por ex em plo, o C entro Históric o) –
e a Beira-Mar de São José, que esc oa todo o tr ânsito da r egião em direção à
c api tal. Portant o, trat a-se de um bairro que t em com o c aract erística t ambém a
pr esenç a de importantes r odovias que, além de delimitarem seu traçado,
c ontri buem par a que o bairro sej a um lugar de gr ande circ ul ação.
J á o traço em vermelho dest ac a o trajet o feito pel a pes quisadora, que é
o foco de análise na s equênci a des se trabalho. O ponto de partida é o mai s
al to do m apa, na r ua Adhem ar da Silva, seguindo pela r ua Koes a e av eni da
Lédio J oão M arti ns (conheci da t am bém como C entral) e Beira M ar de S ão
J osé. O ret or no ao pont o inicial s e deu pela avenida President e K ennedy, e em
s eguida pela rua A dhem ar da Silva. Esse trajet o consti tui a parte et nográfic a
da pesquis a, de onde se apresent am i magens analis adas.
6
Vide análise do plano diretor, págs. 66 e 271, respectivamente.
Consultar nas referências matéria feita por Aline Rebequi sobre a vida noturna nos bairros Kobrasol e
Coqueiros, publicada no “Diário Catarinense” de abril de 2013.
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M ap a 1 : Área c orr e sp on de n t e a o ba i rro Kob ra so l e reg i ã o p es q ui s ad a .
Fo nt e : h tt p:/ / go o. gl/ ma p s/ d Ce Z H
Antropologia do e no bairro
Convi do o leit or a, ant es de tudo, pens ar aqui lo que Gilbert o Vel ho
c ham a de “estranhar o familiar”. Podem os compartilhar c om ele a ideia de que
“o que v em os e enc ontr am os pode ser exótico, mas, até cert o ponto,
c onhecido.
ex oti smos
No
entant o,
c om o
est am os s em pr e
fontes
de
pr ess upondo fami liari dades
c onheciment o
ou
e
desc onheciment o,
res pectiv am ente” (VELHO, 1999, p. 126). Estranhar o f amiliar é, nesse c as o,
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um pass o indis pensável par a poder per ceber , no espaço r esidenci al, aspecto s
ligados à ec onomia, poder e enobr ecim ent o do Kobr as ol , como pr oposto aqui.
No entant o, obs er var a cidade “da j anela do meu apart am ent o” 8, assi m
c om o o aut or diz, não par ece ser inter es sante par a s e per ceber em as relaç ões
entre sujeitos e(m) s uas pr áticas, nos usos do espaço públ ico. D ado iss o,
optou- se aqui, a partir de M agnani (2002), apresent ar alternati vas par a est udar
o espaç o ur bano.
O olhar que est e trabalho busc a des env olver tem por int eress e a
c ontraposição entr e du as abordagens. A primeira abor dagem ex pl or a a
percepç ão crítica da ci dade a partir do “col apso do si stema de transport e, as
deficiênci as do s aneamento básic o, a fal ta de m or adia, a c oncentraç ão e
desi gual di stribuiç ão dos equipam ent os, o aument o dos í ndice s de pol uiç ão, da
violência” (MAGNANI, 2002, p. 12) . Já a segunda s e apr oxima da s emiologia,
abor dando os si gnos r es ul tados “da superposiç ão e c onflitos de si gnos,
simulacr os, não-lugares, redes e pont os de enc ontro virtuais” (MAGNANI,
2002, p. 12).
Com es se c ontrapont o, o que se busc a é pensar o es paço públi co a
partir da r elaç ão dos s ujeitos, os usuários da cidade, aqueles que viv em e a
transf ormam, c om os es paços do ref erido bairro a partir de alguns regist ro s
simbóli cos. Dadas as li mit ações de t empo e e spaço, não se pode diz er que o
que foi fei to aqui constit ua uma et nogr afia, muito m enos como algo “de perto e
de dentro”. O que v eremos aqui é m ais o que M agnani cham a de “análise de
pass agem ”, que c onsist e em
( . . .) p er co rr er a cida d e e seu s m e an dr os o b se r van d o esp aç os ,
eq u ip am e n t os e pe r son a ge ns t í p ico s co m seu s h á bit o s, co nf lit o s e
exp ed ie n t es, de ix a nd o- se im b u ir p e la f r a gm e n t açã o qu e a
suce ss ã o de im a ge ns e s it u açõ es pr o du z. O r e la t o f i na l,
ge r a lm e nt e n a f or m a d e e n sa io , t e r m in a p o r e xp r essa r ess a
exp er iên cia p o r m e io do uso d e m e t á f o r as qu e s e r ão t an t o m ai s
sug est i va s q u an t o m a io r a cr ia t iv id a de d o a n a l ist a e o le qu e d e
r e laçõ es
q ue
est a b e le cer :
“ hi br id iza ç ão ” ,
“ p or o sid ad es” ,
“ t e rr it o r ia lida d e s f l exí ve is” , “ n ã o- lug a r es” , “ con f ig u r açõ es e spa ç o
t e m po r a is” , “ p aisa g en s d isju n t iva s” e ou t r a s ( M AGNANI , 20 0 2 ,
p. 18 ) .
8
Idem.
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Ou, c om o di to ant eriormente, em torno do proc es so de enobr ecim ento.
Dadas as ressalv as e li mi tes, iniciemos es sa anál ise par a s aber s uas
possi bi lidades.
Os p ro cessos de tran sfo rmação do espaço
O Kobr as ol , como já apr esentado, é um bairro que des de a s ua f undaç ão
v em
pas sando
por
div er sas
transform ações
ar quitetônic as,
vi ári as
e
ec onômic as. P ar a com pr eender est es fenômenos, optou - se pela obr a de
Shar on Zukin ( 2000), cuja pesquis a bus ca trat ar d as relaç ões de poder
envoltas nos pr oc es sos de enobr ecim ento, tom ando c om o ex em pl o para s uas
análi ses, grandes cidades do m undo, pens adas sob o aspecto da paisagem
pós-m oderna: ambí gua e, por isso m esmo, di fícil de defini r em t ermos de
ident idade 9.
Segundo ela, t ais transf ormações podem s er vi stas sob dois as pect os.
Um del es é o pr oc es so ocorr ent e em “anti gas cidades m oder nas”, c om o N ov a
York ou C hic ago, que t em como m arc a o enobr ecim ento c ar acterizado pel a
s ubstituição de s eus antigos m or ador es, com s eu e stilo vernac ular de velha s
edificaç ões, por novos m or adores e construções, dem ar c ando um a paisagem
mar c ada pelo poder c ult ural i nvesti do. J á em cidades m ais nov as e m odernas,
c om o Miami, a extr apol ação do c onsumo tor na a pr ópria pais agem um
pr oduto 10.
Ao se tr azer t ais per spectivas, não s e pode ignor ar a relaç ão entre a s
transf ormações do espaço e sua identidade. Embor a a aut ora em questão
trabal he c om gr andes ci dades do m undo, sua anál ise pont ua as pect os de
gr ande rel evânci a par a pensar o que aqui analiso – o bairro Kobrasol.
Por ex em plo, ao pont uar o caso das pes soas que têm que s e m udar por
não ter em m ais condiç ões financ ei ras de s e manter no mesmo l ugar, remet e
também a um pr oc ess o que podem os ver ac ontec er no bai rro em questão,
9
Segundo a autora, “uma paisagem urbana pós-moderna não apenas mapeia cultura e poder: mapeia
também a oposição entre mercado – as forças econômicas que desvinculam as pessoas de instituições
sociais estabelecidas – e lugar – as formas espaciais que as ancoram no mundo social, proporcionando a
base para uma identidade estável” (ZUKIN, 2000, p. 83).
10
A exemplo da Disneyworld.
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posto ser esse t am bém um d os r eflexos mais imedi atos do pr oc es so de
enobr ecimento.
As transf orm ações es paci ais podem s er mel hor compr eendidas s e
rem et erm os ao c onceito de pais agem, definido por Zukin com o
( . . .) u m a or d e m e spa cia l im po st a ao am b ie nt e – co n st r uí d o o u
na t u r a l. Por t a n t o , ela é s e m pr e so cia lm e n t e co n st r uí d a : é ed if i ca d a
em t or n o de in st it u içõe s so cia is do m in a nt e s ( a igr e ja , o la t if ú n d io ,
a f á b r ica, a f r an q uia cor p o r at i va ) e o r de n ad a p e lo p od e r d e ssa s
in st it u iç õe s ( Z UKI N, 2 00 0 , p . 81 ) .
Pens ando a paisagem pós-m oder na, res ul tado de r elações econômic as e
de poder, el a a define com o
Um p r oce ss o so cia l de d iss o lu çã o e r ed if er e nc ia çã o e co m o u m a
m e t áf o r a cult ur a l de ssa e xp e r iê nc ia . Co n se q u e n t em e n t e, o
pr oce sso soc ia l d e con st r uçã o de u m a pa is a ge m p ós - m o de r n a
de p en d e da f r ag m e nt açã o ec o nô m ica d as an t ig a s sol id ar ied ad e s
ur ba na s e d e u m a r e in t eg r a çã o q u e é f or t e m e nt e m a t izad a p e la s
no vas f or m a s de a pr op r ia ção cu lt ur a l ( ZUKI N, 20 0 0, p . 8 1 ) .
Zukin (2000) aponta a identidade c om o um as pecto crítico na pais agem
pós-m oderna, dado que o quadr o de m udanç as estrut ur ais caract erístico dess e
tipo de transformação tor na o am bi ent e am bí guo. Em suas palavras,
O esp aço i nc it a e im it a a am b ig u id a d e. Os sí t io s e spe cí f ic o s d a
cid a d e m od e r na sã o t r an sf or m a d os e m e spa ços l im in a r es p ó sm o de r no s, q ue t a nt o f a lse ia m com o f a zem a m e dia çã o e n t r e
na t u r e za e ar t e f a t o , uso pú b lico e va lo r pr iva d o, m e r cad o glob a l e
lu ga r e spe cí f ico ( ZU KI N, 2 00 0, p. 82 ) .
Sobr e os reflexos des sa tr ansformação nos suj eitos, aponta que “ o
c om portam ent o apr endi do é s em pr e post o em quest ão quando a liminaridade
cruza l ugares lucrativos com não lucrativ os, cas a com es paços de tr abalho,
bairro (r esi dencial) com c entro (c om er cial) ” ( ZUK IN, 2000, p. 82) . C om base no
que estamos disc utindo, convi do o leitor a v ol tar ao bairro Kobr as ol atrav és da
análi se de algum as imagens.
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I ma ge m 1 : pa rt e f i n al d a av e ni d a Ce nt ra l , p róx i ma à vi a Exp res s a.
Fo nt e : a a ut o ra ( 20 1 3) .
Ness a i magem, v em os alguns pr édios antigos, de quatro andar es –
todos com al gum estabelecim ento c om er cial em seu pi so t érreo –, uma casa de
c om érci o par a al ugar, três pr édi os c om m ais de dez andar es, sendo um ai nda
em construç ão, um t erreno v azio ( à direita) e a avenid a, sem a pr esença do
c alç adão, que oc upa apr oxi madament e metade do traj eto da via.
Cham a a at enç ão justament e o l ocal des sa foto. Trata- se de part e da
av enida C entral. Essa é uma das princi pais avenidas do bairro, que l he
interc ept a l igando a av. Presi dent e Kennedy à vi a Expr essa. Como m ostra a
imagem, se ant es a maiori a das c onstruç ões eram traços de um bairr o
resi denci al de ar quitet ur a simples – s em elevador, port eiro ou m esmo garagem
par a todos os apartam ent os – hoje o que se c onstat a são em pr eendimentos
c ada v ez m ai ores, mais m oder nos e m ais altos, tom ando assim, também, o s
c éus da cidade. Como c onsequência, a densidade populacional do bairro é
c ada vez m ai or.
A avenida C entral est á divi dida em uma parte com c alç adão (que vai do
ac es so pela Presidente Kennedy at é apr oxim adam ent e a m etade da avenida) e
a outra,
da imagem.
S endo o c alç adão um dos maior es t raços do
enobr ecimento no Kobr asol, falem os sobre ele.
O Cal çadão
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UM PASSEIO PELO BAIRRO: ANÁLISE DE TRANSFORMAÇÕES E USOS DO ESPAÇO PÚBLICO NO BAIRRO KOBRASOL(SÃO JOSÉ -SC)
Inaugur ado no ano 2000, o C alç adão do K obr as ol é um dos maiores
ex em pl os do pr ocess o de enobreci ment o empreendido no bai rro, por m udar
toda a dinâmica da avenida, diminuindo o fluxo de carr os e priorizando os
pedestres. Se pensarmos as m udanças que ess e calçadão troux e ao bairro,
v erem os que outr os desdobram ent os analíticos são p ossíveis.
I mag em 2: p art e c e nt ra l d a Ave ni da . Ce n t ral , co m o ca l ç ad ão a o c e nt ro .
Fo nt e : a a ut o ra ( 20 1 3) .
Em term os pr áticos, o obj etivo do c al çadão (c entro da imagem 2) é dar
pri oridade às pes soas em detriment o dos c ar ros. O que à prim eira vist a par ec e
s er uma i niciati va a fim de traz er segur ança aos m or adores do bairro pode
ac abar por r ev el ar um dos aspectos m ais evidentes do pr ocess o de
enobr ecimento que est am os anali sando.
Cham o m ais um a v ez a atenção para a diferenç a entre a part e da
av enida com e s em calç adão, c om parando as imagens 1 e 2. Aponto aqui que
as m edidas de “humaniz aç ão” da avenida Central são, na ver dade, aspectos de
um proj eto de enobr ecim ento da r egião. Afinal, a estr utur a f aci lita o ac es so do
pedestre ao c om ércio, incrementando a ec onomi a e valoriz ando o bairro, tant o
par a os comer ciantes quanto par a os pr opri etári os de lugar es tidos c om o alto
padr ão. Um exem plo di ss o é o Kobr as ol C enter, que aparece ness a f oto à
di reita nas c or es em v erm elho e cr em e.
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UM PASSEIO PELO BAIRRO: ANÁLISE DE TRANSFORMAÇÕES E USOS DO ESPAÇO PÚBLICO NO BAIRRO KOBRASOL(SÃO JOSÉ -SC)
Um dos r es ultados des se enobr ecim ento é a const ante pr es ença da
Polícia Militar, como aparec e na imagem 2, que m ostr a uma viatur a parada em
pl eno Calçadão. A políci a, pres ença const ante no Calç adão ( princi palm ent e
nos fi nai s de semana) é um indicativ o de quem dev e e quem não dev e ci rcular
por ali 11. Tornando es s a via uma ár ea m onitor ada, os que usam os espaço s
públi cos do bairro par a div ersos fins, inclusi ve m or adia, se v eem obrigados a
s e desloc ar par a out ras ár eas. Refiro-m e es pecificam ent e aos m or adores de
rua, us uários de dr ogas e àquel es que trabalham c om colet a de m at erial
recicl áv el 12. Ess es s uj eitos for am vistos nas r uas em torno do Calç adão, c om o
mostra a imagem 3 subs equent e, na avenida Adhem ar Silva.
I mag e m 3: ho mem e m s i t ua ç ão de ru a d ormi nd o n a en t rad a de uma c as a
n ot u rna d o b a i rro. F o nt e : a aut ora ( 2 0 13 ) .
Concluindo, ou “eu saí da cad ei a, minh a familha não me quer, to co m fome
(sic) ”
A frase acima estava tosc am ente escrita numa placa de m adeir a
encontrada na ligação ent re a av. President e Kennedy e a Beira-M ar de S ão
J osé. Es sa pl aca, as sim c om o os c obert ores e peças de r oupa que são
facilment e enc ontrados
pelo bairro,
princi pal ment e
em
s ua
part e não
enobr eci da, é sinal da pr esenç a dest es sujeitos que, mesm o à r evelia do s
11
Embora existam diversas denúncias de moradores quanto aos comerciantes que possuem
estabelecimentos noturnos no bairro, a presença da polícia é de comum acordo entre estes.
12
O bairro Kobrasol está próximo de outros três bairros carentes – Chico Mendes, Monte Cristo,
localizados em Florianópolis, e Barreiros, em São José. Por se tratar de um bairro central, o Kobrasol
acaba por concentrar grande quantidade de sujeitos em situação de rua e pedintes.
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pr oprietários e c om er ciant es da regi ão, us am os es paços do bai rro de
di fer entes form as, deix ando pel as ruas evi dênci as de s ua pr es enç a ( e
existência) a olhos at ent os – ou “estranhador es ” – r em et endo ao j á citado
Gilberto Velho.
O
process o
de
enobr ecim ento
é
agressiv o,
car act eriz ado
por
transf ormações r adicais, que no Kobr asol se tor nam visív eis , s obret udo, na
ar quitetur a
e
economia.
Esse
liminaridade 13,
quebr ando
assim
pr oces so
vínc ulos
tem
entre
tam bém
os
outra
antigos
mar ca:
a
m or ador es,
ac ost um ados com um bairro de perfil residencial, e os nov os us uários des se.
Para finaliz ar, tomo como ins piração o texto “A guerr a dos lugar es ”, de
Antôni o Ar antes ( 2000), par a afirmar que o enobr ecimento visível nos espaços
ur banos é, na verdade, a transform aç ão destes em es paços de guerra, de
excl us ão soci al, ex pulsando de áreas de uso c om um os indesej ados, social,
ec onômic a e esteticam ente. Atrav és de mecanismos aparent ement e sutis,
c om o um c alç adão, pr om ov endo a exclus ão de al guns segm entos do bairro.
O m ais mar cant e do process o de enobr eciment o trabalhado ness e
es paço é a s ua capacidade de m odificar radicalm ente os lugares a el e
s ubm et idos, m ex endo com a arquitet ura, o com ércio, o público ( atraí do e
ex pulso dess es lugar es ao sabor dos i nter es ses), o fl ux o de pess oas e
mer c adorias e s eus horários de circul aç ão. C ham o a at enção par a o Plano
Diretor do Municí pi o, c oncluí do em 2004 e até agor a não vot ado pela C âmar a 14
e, no m eio diss o, o aum ento do limite de andar es par a as c onstr uç ões no
bairro, que pas sou par a dez enov e andares.
Ao se propor a “m apear z onas de turbul ênci a”, Arant es apr es ent a um a
São P aulo em “guerra”, uma guerra quase de c ada um contr a o outr o. Guerr a
c ontra quem as salta, por não ter condições de s obr eviver, e c ontra quem é
assaltado. Guerr a contra quem dorm e nas r uas, por não ter casa – ou por ter
fugi do dela ( em guerra com a famíl ia, port anto) e também c ontra quem tem
13
Termo que surge na antropologia a partir dos estudos de performance e rituais, principalmente com Van
Gennep e Victor Turner, e remete à situação (geralmente ritual) de se estar entre dois estados diferentes
de existência.
14
Conforme o blog “Urbanidades, “O Plano Diretor de São José foi elaborado entre os anos de 2003 e
2004, através de uma parceria entre a Prefeitura Municipal e a Universidade Federal de Santa Catarina.
Após dois anos de um processo amplamente participativo, o plano foi entregue à Câmara de Vereadores
para votação. Até o momento, entretanto, o plano ainda não foi aprovado”.
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onde mor ar, m as paga – cada v ez m ais car o – par a viv er. Ess a guerr a bancada
pelo Estado, ao não prov er nem permitir, deix a ao alc ance das vistas – e dos
pobr es – apenas um a políci a que t eatr aliza par a o abast ado um a s egur anç a
que, par a o ex cluí do, s e manifesta em agr ess ão e m aus -trat os.
Por fi m, es sa guerr a é silencios a, s alv o o barulho dos bate - est acas e
das dem ol ições sucessivas de antigas edificaç ões, transform ando assim a
ar quitetur a e env olv endo c om er ciant es, morador es e fr eqüent ador es do bairr o
num em bat e que, em bor a não declar ado, é expl ícito. É uma guerra não contr a
a pobreza, tendo c om o pr ess uposto o bem- estar que a palavr a humanizar nos
traz, mas contr a os pobr es, contr a aqueles que a pobr eza atinge.
I ma ge m 4 : pl ac a en co nt ra d a n a rua c om o s di ze r e s “eu s aí da ca d ei a ,
mi nh a f ami l ha nã o me qu er, t o c om f ome ”.
F on t e : a au t ora ( 2 01 3 )
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