III Congresso Regional de Educação de Pessoas Adultas
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III Congresso Regional de Educação de Pessoas Adultas
Profa. Dra. Fabiana Marini Braga - NIASE Profa. Msa. Adriana F. C. Marigo - NIASE [organizadoras] III Congresso Regional de Educação de Pessoas Adultas A democratização da EJA na perspectiva da aprendizagem dialógica Profa. Dra. Fabiana Marini Braga - NIASE Profa. Msa. Adriana F. C. Marigo - NIASE [organizadoras] III Congresso Regional de Educação de Pessoas Adultas A democratização da EJA na perspectiva da aprendizagem dialógica São Carlos - SP Universidade Federal de São Carlos 2014 TEXTOS DE: III Congresso Regional de Educação de Pessoas Adultas ORGANIZAÇÃO: Profa. Dra. Fabiana Marini Braga - NIASE Profa. Msa. Adriana F. C. Marigo - NIASE DIAGRAMAÇÃO: Cristian Cobra Jemima Murad BRAGA, Fabiana Marini Braga; MARIGO, Adriana F. C. (orgs.) III Congresso Regional de Educação de Pessoas Adultas: A democratização da EJA na perspectiva da aprendizagem dialógica. São Carlos, SP. Pedro & João Editores, 201 4. Inclui bibliografia 1- educação I- título ISBN: 978-85-7993-1 60-4 CDD: 370 SUMÁRIO Apresentação........................................................................7 Adriana Fernandes Coimbra Marigo Kelci Anne Pereira Raquel Auxiliadora dos Santos ARTIGOS A formação continuada de educadores/as na perspectiva dialógica: reflexões da prática..............................................11 Adriana Fernandes Coimbra Marigo Fabiana Marini Braga Kelci Anne Pereira Raquel Moreira Roseli Rodrigues de Mello A formação inicial de professores de EJA: contribuindo para a definição de políticas educativas......................................29 Alessandra Fonseca Farias Yoshie Ussami Ferrari Leite A formação de educadores (as) no Projeto Educação de Jovens e Adultos na Universidade Federal de São Carlos..51 Alessandra Vetorelli Pereira Lúcio de Castro Fábis Rosimara Silva Correia Tertúlia literária dialógica: possibilidade de superação do edismo na educação de jovens e adultos...........................61 Aline Vanessa Gavioli A educação de jovens e adultos: estado da arte das dissertações e teses brasileiras..........................................83 Ana Lucia Masson Lopes Claudia Raimundo Reyes A educação de jovens e adultos na perspectiva do Direito................................................................................1 05 Ana Maria Maciel Rinaldi Kelci Anne Pereira Relatos de experiência: leitura e escrita, as cartas que tecem no “Projeto de Educação de Jovens e Adultos: Práticas e Desafios”............................................................1 25 André Luís Messetti Christofoletti Thainara Bonfante Gasparini Vivências e práticas educativas no Projeto Educativo de Integração Social – PEIS...................................................1 35 Andressa Luiza de Souza Processos e práticas educativas no contexto rural............1 53 Arlete Pereira Francisleth P. Battisti O aluno da EJA e sua relação com o conhecimento matemático escolar............................................................1 67 Carla Cristina Pompeu Vinício de Macedo Santos A diversidade linguística no ensino de língua materna na educação de pessoas jovens e adultas.............................1 95 Danielle Christiane da Silva Viveiros Fabiana Marine Braga 6 Contribuições da teoria literária para o letramento literário na formação de professores...................................................21 9 Eliane Quinelato Clinio Jorge de Souza Luciana Maria Crestani Maria das Graças Sandi Magalhães Experiências de leitura e escrita de pessoas jovens e adultas: saberes e poderes...............................................241 Eliane Aparecida Bacocina Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo Centro Educacional de Jovens e Adultos (CEJA) e os recursos tecnológicos como diferencial no processo ensinoaprendizagem: políticas públicas para a formação de pessoas jovens e adultas..................................................259 Fátima Aparecida Machado dos Santos Maria Aparecida Couto Aproximações entre a educação de pessoas jovens e adultas e a educação ambiental........................................273 Flávia Fina Franco Amadeu José Montagnini Logarezzi Percursos migratórios e escolares de educandos da EJA do município de Rio Claro - SP...............................................305 Flávia Priscila Ventura PEJA: alfabetização em um contexto institucional............321 Glaucia Mariana Reis Eliana Marques Zanata Marta Coutinho Peres 7 Inclusão digital dialógica na Terceira Idade - NEATI/UFMT Rondonópolis....................................................................343 Waine Teixeira Júnior Eglen Silvia Pipi Rodrigues Gleicy Aparecida Souza Mirian de Souza Riva O PROEJA no contexto das políticas públicas de EJA no Brasil contemporâneo........................................................359 Jarina Rodrigues Fernandes Potencial multicultural observado em práticas pedagógicas de educação de jovens e adultos no ensino de Ciências da Natureza............................................................................385 Juliano Schiavo Sussi Ana Carolina Andrade Volpi Anselmo João Calzolari Neto Educação de Jovens e Adultos e Economia Solidária: uma aproximação necessária...................................................407 Jussara Florencio Kelci Anne Pereira Paulo Eduardo Gomes Bento Educação de pessoas jovens, adultas e idosas e gênero: desafios e perspectivas.....................................................431 Ludmilla Puppim Voigt Poliana da Silva Almeida Santos Camargo Educação ambiental no contexto da educação de pessoas jovens e adultas: algumas possíveis conexões.................455 Maria Alice Zacharias Caroline Lins Ribeiro Amadeu José Montagnini Logarezzi 8 Centro Educacional de Jovens e Adultos (CEJA) - 27 anos de trajetória em Bauru/SP: Políticas Públicas para a formação de pessoas jovens e adultas.............................483 Maria Aparecida Couto Fátima Aparecida Machado dos Santos O PROEJA no IFMT: desafios e possibilidades no processo de formação do trabalhador..............................................497 Maria Helena Moreira Dias Serra Érica Lopes Rascher Costa Marques Silvia Maria dos Santos Stering Enunciados de situações-problema ou problemas de enunciados na EJA?.........................................................523 Otilia N. Obst Patrícia D. P. de Souza Debatando a Educação de Jovens e Adultos a partir da Pedagogia da Autonomia..................................................535 Rafael Rossi Maria Peregrina de Fatima Rotta Furlanetti Mulheres na Educação de Jovens e Adultos: diálogo entre processos de escolarização e relações de gênero...........555 Raquel Auxiliadora dos Santos Carolina Orquiza Cherfem Roseli Rodrigues de Mello Programa Brasil Alfabetizado e aprendizagem dialógica - por uma EJA emancipadora....................................................575 Raquel Moreira Adriana Fernandes Coimbra Marigo Rosimara Silva Correia 9 Contribuições da disciplina de filosofia para a formação do cidadão nas salas de Educação de Jovens e Adultos – EJA ..........................................................................................599 Ronaldo Martins Gomes Educação não formal de educadoras e jovens em conflito com a lei em um programa de medidas socioeducativas.................................................................61 5 Rubia Fernanda Quinelatto Caparrós Elenice Maria Cammarosano Onofre Políticas de Currículo e de Avaliação e o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).......................................................643 Wilmara Alves Thomaz RELATOS Promotoras Legais Populares: possibilidade de diálogo entre diferentes mulheres...........................................................655 Daniela Mara Gouvêa Raquel Auxiliadora dos Santos Experiências de leitura e escrita de pessoas jovens e adultas: saberes e poderes...............................................663 Eliane Aparecida Bacocina Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo Uma história, muitas vozes...............................................681 Cleonice Nascimento Isamélia F. Rodrigues Jorgina Vera de Moraes José Aparecido de Lima José Felipe de Lima Souza Maria Lina Brito de Barros 10 Rejane Novaes Viegas Rafaela Silva de Souza Feliz em aprender..............................................................683 Maria Angélica de Paula Marília Vellosa Andreia Maria da Costa Componentes do corpo humano e nutrição......................685 Priscila Willik Valenti Quanta coisa aprendi!.......................................................697 Maria Aparecida Pinheiro Rocha Alessandra Vetorelli Pereira PÔSTERES A inteligência e o processo de envelhecimento: elementos transformadores para a Educação de Pessoas Jovens e Adultas (EPJA)..................................................................699 Adriana Zakia Costa Fabiana Marini Braga Alfabetização com promoção de saúde.............................701 Ana Claudia dos Reis Maiello Nalva Maria Tibúrcio Diana Segantin Tertúlia literária dialógica na Universidade Aberta da Terceira Idade (UATI) de São Carlos - SP: aprendizagens consolidadas.....................................................................703 Bruna Franquini Adriana Zakia Costa Mara Correia 11 Carmem Taboas Julia Ap. de ToledoPierri Joana Adail Parise Barberis Mara Gois Maria Do Carmo Naville Noventa Nelsi Elizabete Bossolan Neuza Lotumolo Romilda Sartori A relevância das vivências junto à Educação de Jovens e Adultos na formação inicial...............................................705 Andreia Garbo Lívia M. P. Soares Jarina Rodrigues Fernandes Teatro e a Educação: experiências no Projeto de Educação de Jovens e Adultos (PEJA)..............................................707 Bruna Garcia Eskinazi André Luis Messeti Christofoletti Andréia Maressa da Silva Thainara Bonfante Gasparini Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo Nunca é tarde para recomeçar..........................................711 Fátima Cristina do Amaral Sanches Gonzales Rosimara Silva Correia Arte na EJA - a trilha de um novo olhar: processo de ensino e de aprendizagem de jovens e adultos............................71 5 Heloisa Helena Pita Prado Maria Cristina de Andrade Silva Patrícia Guerra Miranda PIBID - Programa Institucional de Bolsa de Iniciação á 12 Docência atuando na Educação de Jovens e Adultos em Bauru.................................................................................721 Larissa de Oliveira Matos Larissa de Souza Bertocco Naiany Lourenço Vanessa Helena Pileggi Eliana Marques Zanata A Educação Física na Educação de Jovens e Adultos da UFSCar: um relato de experiência....................................723 Lúcio de Castro Fábis Rosimara Silva Correia 40 horas + 50 anos = uma só esperança..........................725 Marco Antonio Silveira O MOVA se move para que eu escreva minhas primeiras cartas................................................................................727 Maria Alice Zacharias Isabel C. Oliveira Flávia F. S. Mendonça Movimento de alfabetização de adultos: plantas que curam ..........................................................................................731 Aparecida Cardoso Nascimento Apparecida Florêncio Gomes Benedita C .G. Santiago Custódio Antonio de Andrade Eva Dias Celline Francisca de Paula Bernardes Maria Aparecida Amaral de Oliveira Maria Rosa de Araujo Rosangela Borges Sebastião Zacharias 13 Valdomiro Rodrigues Nascimento Maria Lúcia Voltatódio A utilização das narrativas matemáticas na alfabetização de jovens e adultos.................................................................735 Michele Rodrigues Não desista nunca: Minha história na EJA........................737 Nanci Miranda Lembo Rafaela Larios Soldan Saboreando as palavras e alimentando o conheciment com as doces obras de Cora Coralina: processos de ensino e de aprendizagem de jovens e de adultos...............................739 Odirlei de Oliveira Patrícia Daniela P. de Souza A arte na Educação de Jovens e Adultos: reconstruindo a história através de Portinari e Almeida Júnior....................743 Patrícia Daniela P. de Souza José Carlos Miguel Universidade Percepções sobre estresse, ansiedade e depressão de alfabetizadores de adultos e idosos...................................745 P. Brancaglione N. A. Oliveira G. M. S. Batista B. R. Santos S. C. I. Pavarini K. Inouye Alfabetização no primeiro seguimento da EJA a partir de Freire..................................................................................747 Renata Otaviano Leoncio Casarini Fabiana Marini Braga Francisca Constantino A cultura oral na EJA: a Tertúlia Literária Dialógica como lugar de diálogo.................................................................751 Sabrina Maria de Amorim Roseli Rodrigues de Mello Ensino de leitura e escrita a adultos não alfabetizados: adequando um programa informatizado para amplicação em larga escala.......................................................................753 Solange Calcagno Deisy de Souza 15 16 apresentação Adriana Fernandes Coimbra Marigo1 Kelci Anne Pereira2 Raquel Auxiliadora dos Santos3 Cada vez mais, na atual sociedade da informação, o acesso ao conhecimento sistematizado é um direito humano indispensável ao exercício da cidadania. Diante disso, as Conferências Internacionais de Educação de Adultos (Confinteas) têm, de um lado, reconhecido que o analfabetismo e a baixa escolaridade entre populações adultas, bem como a falta de acesso a bens culturais, são incontestavelmente indicadores de vulnerabilidade social, que se produzem e reproduzem em associação com a pobreza e com as desvantagens étnica, racial, etária, de gênero e de lugar geográfico. De outro lado, a democratização da escola, inclusive para os jovens e adultos que não estudaram na idade prevista, e de espaços de fruição cultural, são apresentados na perspectiva da educação ao longo da vida, como fundaProfessora UAB UFSCar. Doutoranda PPGE UFSCar. NIASE UFSCar. adriana@ marigo.com.br 2 Doutoranda FE USP. kelcipereira@ gmail.com. 3 Doutoranda PPGE UFSCar NIASE UFSCar e Professora educação básica PMSC. raquelzinhamoreira@ ig.com.br 1 17 mentos para a democratização do conjunto da sociedade. (CONFINTEA, 1 997) Sob este prisma, a educação de adultos, seja ela utilizada para indicar uma modalidade da educação básica (Educação de Jovens e Adultos - EJA), seja utilizada para nomear os diferentes processos de ensino e aprendizagem referentes aos desenvolvimento pessoal e profissional, ganha relevância no Brasil, que tem 9,63% de sua população com 1 5 anos ou mais de idade na condição de analfabetismo (IGBE, 201 0). Ao mesmo tempo, ela torna-se um desafio, dado que a oferta escolar de EJA do país mostra-se frequentemente incapaz de garantir aos seus destinatários o direito à educação e que as oportunidades não escolares de educação para os adultos são, geralmente, insuficientes ou precárias. Este desafio, no entanto, não pode ser superado apenas pela atuação isolada de segmentos educacionais do Estado, ou pela Sociedade Civil, conforme diferentes pesquisas e organismos internacionais atestam. É necessário que se construa uma articulação dialógica entre ONGs, movimentos sociais, setores públicos, universidades e escolas. Neste processo, é fundamental que sejam incluídas as vozes dos/as educandos/as da EJA, para que eles/as próprios/as possam falar de suas necessidades e expectativas, direcionando a reflexão, o planejamento e a execução das práticas sociais e das políticas públicas educativas rumo a sua efetiva democratização. O Congresso Regional de Educação de Adultos foi concebido como uma articulação acadêmico-social que converge para essa articulação dialógica. Seu objetivo é promover um espaço de reflexão e compromisso entre os diversos sujeitos da EJA da região de São Carlos/SP, à luz da socialização de pesquisas científicas e de boas práticas sobre o tema. 18 Por isso, o diálogo igualitário e a participação são elementos metodológicos que pautam o congresso desde a sua concepção ao momento de sua realização (FLECHA, 1 997). A ideia central é que o evento se repita periodicamente, a partir de um tema gerador, refletindo o acúmulo das ações de ensino, pesquisa e extensão que o Núcleo de Investigação e Ação Social e Educativa (NIASE), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), realiza em parceira com escolas, prefeituras, movimentos sociais e ONG's no campo da EJA. Referências FLECHA, R. Compartiendo palabras. Barcelona: Paidós, 1 997. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 201 0 . UNESCO. V Conferência Internacional de Educação de Adultos. CONFINTEA. Hamburgo, Alemanha, 1 997. 19 20 artigo A formação continuada de educadores/as na perspectiva dialógica: reflexões da prática Adriana Fernandes Coimbra Marigo1 Fabiana Marini Braga2 Kelci Anne Pereira3 Raquel Moreira4 Roseli Rodrigues de Mello5 Resumo O artigo descreve e analisa o Curso de Especialização em Educação de Jovens e Adultos – CEEJA, ofertado pelo Niase/UFSCar entre os anos de 2009-2011 , com financiamento do MEC, no âmbito da extensão universitária. De Professora UAB UFSCar. Doutoranda PPGE UFSCar. NIASE UFSCar. adriana@ marigo.com.br 2 Doutora em Educação. Professora do DTPP e UAB UFSCar. fmarinibraga@ gmail.com 3 Doutoranda FE USP. kelcipereira@ gmail.com. 4 Doutoranda PPGE UFSCar NIASE UFSCar e Professora educação básica PMSC. raquelzinhamoreira@ ig.com.br 5 Professora DTPP UFSCar. Coordenadora NIASE UFSCar. roseli@ ufscar.br 1 21 um lado, a fundamentação teórica, histórica e estatística do texto denuncia que a EJA, ainda hoje, e apesar dos avanços, representa um campo de caridade e negação de direitos, com destaque à falta de formação específica dos educadores e à predominância de um modelo escolarizado de educação de adultos. Por outro lado, com base na noção de educação ao longo da vida e no conceito de aprendizagem dialógica, o texto anuncia a possibilidade e a necessidade de inserir os processos dialógicos de formação de educadores como elementos centrais na constituição de um modelo cultural e democrático de EJA. Visando a estabelecer um balanço dos resultados do CEEJA, o texto identifica o caráter transitório e fragmentado da política de governo que o subsidiou como uma importante limitação para o desenvolvimento da experiência, apontando a necessidade de que a EJA se torne objeto prioritário de políticas de Estado, permanentes e intersetoriais, sendo inserida desde a formação inicial nas licenciaturas. Em relação aos avanços, a análise referenda o diálogo como proposta de consolidação da formação de educadores na perspectiva da superação de desigualdade, com qualidade acadêmica. Palavras-chave: EJA; formação de educadores; diálogo. Introdução Este artigo descreve e analisa o Curso de Especialização em Educação de Jovens e Adultos – CEEJA, realizado pelo Núcleo de Investigação e Ação Social e Educativa (Niase) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com financiamento do Ministério da Educação (MEC), no período de 2009 a 2011. Inicialmente, a educação de jovens e adultos é problematizada como um campo de contradi22 ções e possibilidades. Destaca-se, de um lado, a predominância histórica de concepções compensatórias, caritativas e escolarizantes de EJA, bem como sua marginalização como modalidade educativa no conjunto das políticas públicas, refletida na ausência de formação específica de educadores/as. Por outro lado, o texto recupera a sustentação jurídica da EJA como um direito ancorado na necessidade democrática de se instaurar concepções mais alargadas e culturais de EJA, tal qual subjacentes aos conceitos de educação ao longo da vida e de aprendizagem dialógica. No segundo momento do texto, o CEEJA é apresentado em sua forma, seu conteúdo e sua fundamentação teórico-metodológica, como tentativa de consolidação de uma abordagem dialógica e cultural para a formação de educadores de EJA. A parte final apresenta um balanço crítico da experiência, buscando elucidar os fatores que obstaculizaram e os que favoreceram a consolidação da experiência do curso. A EJA: um campo de contradições e possibilidades Em 201 0, a população do Brasil somava aproximadamente 1 90 milhões de pessoas, com maioria jovem (IBGE, 201 0). Neste universo, entre os brasileiros com 1 5 ou mais anos de idade, 9,6% eram analfabetos (1 3,9 milhões de pessoas) e por volta de 80 milhões não haviam concluído a educação básica. (IBGE, 201 0) Reiterando uma evidência clássica da sociologia da exclusão, segundo a qual as desigualdades se imbricam e potencializam, reciprocamente (FLECHA, GOMEZ, PUIGVERT, 2001 ), o cruzamento de variáveis estatísticas proposto pelo IBGE (id) revelou que 1 9,1 % dos analfabetos são nordestinos (5,5% estão no sudeste, 5,1 % no sul, 7,2% no centro-oeste e 11 ,2% do norte); que os maiores contingentes são representados por idosos (acima de 54 anos), mulheres 23 e negros/as (1 4,4% dos pretos e 1 3% dos pardos são analfabetos, enquanto o analfabetismo branco representa 5,9%); e que a população do meio rural sofre 3,2 vezes mais com o analfabetismo - 23,2% da população é analfabeta - do que a população urbana. Em todas as situações citadas, o prejuízo educacional vincula-se diretamente à baixa renda. A modalidade da educação básica, que se volta legalmente para o atendimento a esta população, é a Educação de Jovens e Adultos (EJA), cuja função é criar condições para que todas as pessoas com 1 5 ou mais anos de idade, não escolarizadas na idade própria, possam ter acesso à escola como um espaço significativo de aprendizagem do conhecimento científico, técnico e cultural, mas também de convivência. Mediante a atuação histórica dos movimentos sociais populares em luta por democracia no país, o Estado foi pressionado a reconhecer a educação como um direito de todos, instrumento indispensável à prática da cidadania na sociedade contemporânea (grafocêntrica). A EJA foi contemplada por três dispositivos jurídicos fundamentais: a Constituição Federal do Brasil, que reconhece a educação como direito de todos e dever do Estado (BRASIL, 1 988); a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional do Brasil (LDB), que legitima a EJA como um direito público subjetivo, cujas garantias devem dar-se mediante ofertas escolares flexíveis, alinhadas às especificidades e necessidades dos estudantes, inclusive os que forem trabalhadores (BRASIL, 1 996); e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a EJA, que dispõem sobre princípios da EJA e as funções responsáveis por consubstanciá-los na prática (CNE/CEB, 2011 ). Por sua relevância e densidade analítica e propositiva, os princípios e funções da EJA merecem ser aqui recuperados, notando-se sua imbricação e profunda interdependência: 24 - Reparo: enseja corrigir o processo de exploração responsável por segregar a classe trabalhadora da escola. Trata-se de saldar uma espécie de dívida social com esa população que colaborou com o desenvolvimento do país por meio de seu trabalho árduo, garantindo-lhes escolarização e outros direitos sociais complementares, para que os estudos passem a ser integrados ao seu conjunto de prioridades. - Equalização: fundamenta-se na proporcionalidade e justifica o “dar mais a quem tem menos” como uma lógica de restauração de direito, ao invés de uma forma de privilégio. - Qualificação: diz respeito ao contexto social contemporâneo e sublinha a formação permanente como uma necessidade vinculada ao desempenho da cidadania e de outros papéis (como trabalhadores, membros de famílias, etc), além de abranger a fruição cultural e o desenvolvimento pessoal (CNE/CEB, 2011 ). No entanto, este marco legal contrasta fortemente com as estatísticas de analfabetismo entre jovens e adultos, apresentadas no início deste texto, revelando que a universalização da educação no Brasil ainda é uma utopia democrática. Trata-se de uma contradição pungente que se pretende interpretar, a seguir. O primeiro aspecto a ser destacado refere-se às razões que os próprios jovens e adultos, que representariam uma demanda potencial para a EJA, declararam ao IBGE (2009) como os motivos que os afastam do direito à educação: distância entre a escola e o local de moradia ou de trabalho; concorrência entre estudos e trabalho (incompatibilidade entre período e calendário escolar e o horário de trabalho; desgaste físico em função de trabalhos temporários e precários); ausência de creches para deixarem filhos enquanto se frequenta as aulas; desinteresse pela escola. Como explicar o desinteresse pela escola, se nitida25 mente a escolarização se vincula à proteção social e ao acesso a outros direitos (CURY, 2002) e se as pessoas “não são idiotas culturais” (GARFINKEL, 1 984)? Conforme a revisão de literatura sobre a EJA, conduzida por Soares (2011 ) no âmbito das produções da ANPEd (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação), os estudos acadêmicos revelam que a maior parte da oferta escolar brasileira, nessa modalidade de ensino, se baseia em concepções compensatórias e economicistas, que justificam preconceitos e estigmas (GALVAO, DI PIERRO, 2007). Equiparados a crianças6 por serem analfabetos ou pouco escolarizados, os adultos passam a ser entendidos como a-lumines (alunos = sem luz), sujeito da falta, taxados de carentes. Como consequência, a educação que a eles é dirigida encarna a missão de recuperar rapidamente o tempo da escolaridade perdida, preenchendo-lhes dos conteúdos escolares não aprendidos na “idade certa”, e de qualificá-los para uma melhor inserção no mercado de trabalho. Em outras palavras, educação (de jovens e adultos) é reduzida a um tipo de escola tradicional, baseada em relações hierárquicas, em uma gestão burocratizada e em um currículo descontextualizado e tecnicista, cujo objetivo máximo é a formação de mão-de-obra. Nesse currículo, as práticas pedagógicas contrariam as capacidades e as necessidades de aprendizagem dos/as educandos/as, mas também de sua capacidade partícipe (MEDINA, 1 997). Assim, a escola torna-se um instrumento de legitimação da divisão de classe, ao consolidar a EJA como via de preparação para a venda de força de trabalho, portanto, uma educação para os pobres, reservando o ensino propedêutico às elites que decidirão os rumos da sociedade (LIMA, 2007). De acordo com Galvão e Di Pierro (2007), essa concepção reducionista da EJA reflete seu esquecimento e sua 6 50,7% da população declarou-se preta ou parda. 26 marginalização histórica nas agendas das políticas educativas do Brasil. Por muito tempo, a educação de adultos, ofertada pelo Estado, foi reduzida a campanhas de alfabetização, baseadas no voluntariado e na ausência de investimento público. O analfabetismo era interpretado como a causa do subdesenvolvimento do país, uma espécie de doença/epidemia que deveria ser erradicada rapidamente, a partir da colaboração de toda a sociedade. Apesar de desvelada como instrumento de dominação pelo legado da educação popular7, essa concepção médico-higienista difundiu com tal eloquência no imaginário social, e mostrou-se tão oportuna para falsear o descompromisso democrático de sucessivos governos, o que se faz presente até hoje. Nos mais variados planos de governo, entre os ditos de direita e de esquerda, frequentemente a EJA não remete para além de campanhas rápidas e precárias (voluntariado, sem financiamento adequado) de alfabetização, sem garantia de continuidade na vida escolar. Isso não anula, entretanto, o fato dos movimentos sociais terem sido suficientemente ativos para lograr a reinserção da EJA na agenda pública, sobretudo a partir do governo Lula, o que se reverteu em algumas conquistas (Di PIERRO, 2005): a incorporação da EJA às políticas de merenda escolar, a adoção do livro didático, entre outros recursos; o cômputo das matrículas de EJA no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos ProfisA educação popular teve seu período áureo no final da década de 1 950 e anos iniciais de 1 960, quando o pensamento de Paulo Freire se difundiu e, com ele, a noção de que o alfabeto era um sujeito de aprendizagem e de conhecimento, que poderia tomar consciência de sua condição de agente e engajar-se na transformação da realidade. A educação da práxis, dada na pedagogia da pergunta, se apresenta como central nesse processo conscientizador. A partir dessas elaborações, Freire revelou o analfabetismo como consequência de uma sociedade desigual, nutrindo a atuação dos movimentos de educação e cultura popular da época, que visava uma educação feita com e não para o povo. (BEISIGEL, 1 982) 7 27 sionais da Educação (FUNDEB), mesmo que com fator de ponderação inferior ao das matrículas do ensino “regular”; o lançamento de editais de incentivo à formação continuada de docentes de EJA. Entretanto, no balanço geral, observa que, apesar de os referidos avanços, a EJA ainda recebe um tratamento secundário por parte do Estado; seus estudantes ou demandantes em potencial continuam sendo tratados pela ótica da carência, ao invés da ótica dos direitos (BEISIEGEL, 2003; Di PIERRO, 2005). A violação democrática impõe-se, então, como uma realidade da EJA, que precisa ser revertida. Sob tal perspectiva, ressalta-se o papel das Conferências Internacionais de Educação de Jovens e Adultos (Confinteas), desde a década de 1 990, as quais têm reafirmado que a inserção da EJA no campo dos direitos exige compromisso político e também uma guinada epistemológica que permita instaurar um modelo cultural de educação de adultos. A noção pivô dessa mudança, de caráter holístico, é a de educação ao longo da vida. Trata-se do reconhecimento da educação como um processo contínuo, que ocorre (e que deve ser planejado para ocorrer) em diferentes espaços sociais, não só na escola, em todas as idades, e que é essencial para a formação de cidadãos autônomos, conscientes e engajados na construção de uma sociedade sustentável, do ponto de vista social, cultural e ambiental (UNESCO, 2009). O conceito de aprendizagem dialógica, baseado no conceito de dialogicidade (FREIRE, 2005) e na teoria da ação comunicativa (HABERMAS, 1 987), coaduna e aprofunda essa noção. Conforme Flecha (1 997), a aprendizagem dialógica diz respeito à estruturação e à interpretação de ambientes educativos, pautada em altas expectativas de aprendizagem e na superação dos muros sociais e culturais que negam o conhecimento acumulado pela humanidade e 28 validado socialmente a grupos excluídos. Nesse sentido, é que aprendizagem dialógica se estabelece a partir dos seguintes princípios indissociáveis: - Diálogo igualitário: produzido por argumentos de validade e não de poder; diz respeito às relações orientadas ao entendimento, e à coordenação de ações coerentes (práxis). - Inteligência cultural: reconhece que a inteligência é uma capacidade universal (de todo) e contextualmente situada; mediante diálogo é possível transferi-la a novos âmbitos, viabilizando soluções criativas para os problemas. - Transformação: diz respeito ao processo intersubjetivo em que as pessoas recuperam sua autoestima ao se verem partícipes da mudança social e condutoras de suas próprias vidas. - Dimensão instrumental: a busca por efetivar a democracia educativa passa por garantir a todos a formação instrumental, unindo aspectos técnicos e humanísticos e articulando conhecimentos acadêmicos e populares; daí, que a aprendizagem dialógica não se opõe a instrumental, mas à colonização tecnocrata do saber. - Solidariedade: resulta e fundamenta a interação dialógica de ensinar e aprender horizontalmente, no processo de modificação de si e do mundo. - Criação de sentido: diante das relações solidárias, os agentes superam a perda de sentido decorrente do isolamento e da competição. - Igualdade de diferenças: evidencia que a verdadeira igualdade social não pode ser alcançada sem respeito e valorização das diferenças culturais, e vice-versa. Essa mudança de paradigma na EJA – de um modelo escolarizante e estigmatizante para um modelo cultural e dialógico da educação ao longo da vida – tem, na formação de professores/as, um de seus desafios centrais (Confintea, 29 201 0). Di Pierro (201 0, p. 942) alerta que, “no início do terceiro milênio, pouco mais de 1 % dos cursos de formação docente no país oferecia habilitação específica para atuar com essa modalidade da educação básica”. Frente a esse cenário, os movimentos sociais, professores e intelectuais militantes, articulados em torno dos fóruns de EJA, reivindicaram do governo federal políticas públicas de formação continuada para os educadores que já atuavam com a EJA, mas sem formação específica. Então, em 2009, o Ministério da Educação (MEC) lançou o Edital 02/2009 (Resolução 48/2008), direcionado às universidades públicas, cujo objeto eram cursos de especialização em EJA. O CEEJA: fundamentos, estrutura e resultados Diante da indução do MEC, e inspirado na aprendizagem dialógica, o NIASE/UFSCar, em parceria com a Prefeitura de São Carlos/SP, implantou e desenvolveu o CEEJA, enquanto projeto de extensão. O curso teve abrangência regional, com carga horária de 360 horas, e foi desenvolvido no esforço de consolidar uma experiência dialógica de formação continuada de educadores de EJA. Conforme tal expectativa/desafio é que se desenvolveram todas as etapas e aspectos do curso, conforme se apresenta a seguir. - Elaboração do projeto: o curso foi concebido a partir de uma ampla articulação envolvendo NIASE, professores de EJA, o poder público local (Secretarias de Educação e de Cidadania) e Pró-Reitoria de extensão universitária, também convidada a apoiar a proposta. Havia uma perspectiva de parceria ampla, uma vez que se entendia que o problema da formação de educadores de EJA é um problema complexo, cuja superação demanda cooperação interinstitucional e intersetorialidade das políticas. 30 - Seleção de candidatos: após ampla divulgação em São Carlos e região, 1 03 pessoas se inscreveram e 44 foram selecionadas, com base nos seguintes critérios: comprovada atuação em EJA (dentro ou fora da escola) e grau de interesse pelo curso (carta argumentativa). Entre os selecionados, havia gestores públicos de educação, cidadania e economia solidária; professores/as de EJA e de programas de alfabetização; e representantes de ONGs. - Permanência no curso: 28 estudantes concluíram o curso. De acordo com pesquisa realizada pela coordenação do CEEJA, os abandonos decorreram de: dificuldade em compatibilizar compromissos do curso com triplas jornadas de trabalho – realidade dos professores para se obter salário digno e, sobretudo, das mulheres que acumulam o trabalho reprodutivo – e, no caso dos professores, ruptura do vínculo com a EJA ao assumirem classes na Educação infantil. Fica claro que a ausência de uma política nacional de valorização docente e de carreiras, que fixe professores na EJA, dificulta o processo de formação continuada. - Equipe docente: o curso contou com a participação de docentes da UFSCar e também de outras instituições, pertencentes a diversas áreas, como USP, UNESP, UNEB, etc. - Gestão: foi participativa, envolvendo diálogos sistemáticos e, por vezes, tensos, entre a coordenação, professores e cursistas, o que resultou em redesenhos da proposta curricular e operacional do curso. De acordo com relatos dos estudantes, muitos teriam deixado o CEEJA se não fosse a readequação do calendário e dos horários de aula (sábados), a revisão dos conteúdos e das didáticas, além da gratuidade do CEEJA. A gestão dialogada foi fundamental para atender às demandas concretas dos estudantes e suprir suas “deficiências” acadêmicas. - Avaliações: foram realizadas a cada módulo, mediante produção de um texto acadêmico individual ou de reali31 zação de uma pesquisa coletiva, de caráter empírico-analítico e propositivo, no âmbito da EJA. Os trabalhos corrigidos pelos docentes eram devolvidos aos estudantes, com anotações sistemáticas, de modo a evidenciar as melhorias necessárias. Cada trabalho poderia ser refeito até atingir, no mínimo, a nota sete. Foram estruturados plantões para apoiarem os estudantes em seus trabalhos, na incorporação do modus operandi acadêmico que muitos não dominavam, sempre que necessário e em horários acordados entre todos. - Currículo: organizou-se em seis módulos assim concebidos: Módulo I “Introdução à problemática da EJA”: o que se entende por EJA: concepções e práticas (perspectiva ELV, educação popular e da aprendizagem dialógica; perspectiva compensatória, diversidade e EJA). Módulo II “Sujeitos da EJA”: sujeitos da EJA: quem são, demografia, diversidade e diferença (gênero, raça, necessidades especiais, idade/juvenilização); diferentes demandas por educação; inteligência adulta.Módulo III “Legislação, políticas e gestão de EJA”: legislação e políticas públicas nacionais na perspectiva histórica Módulo IV “EJA: práticas político-pedagógicas”: articulação entre ensino e vida; o ensino e a avaliação na perspectiva dialógica; práticas político pedagógicas em “Educação ambiental”, “ensino de ciências”,“ensino de história e cultura africana”, “educação popular e saúde”, “educação física na EJA”; currículo na EJA; material didático para a EJA.Módulo V “A EJA e o mundo do trabalho”: o que é trabalho: visão antropológica e sociológica; transforma- 32 ções das formas de trabalho e sua relação com a escolaridade; a EJA e mercado de trabalho; o trabalho autogestionário na economia solidária; o trabalho como princípio articulador da pedagogia da EJA; a integração de políticas públicas de educação e trabalho como fator de proteção social.Módulo VI “ensino e pesquisa em EJA”: a função da pesquisa na formação de professores de EJA; o que é fazer pesquisa científica; como realizar pesquisas; diferentes técnicas de coleta e análise dos dados associada às diferentes abordagens teórico metodológicas; a contribuição social das pesquisas realizadas por educadores de EJA e a divulgação do conhecimento produzido; relações orientador-orientando.(www.ceeja.ufscar.br) Esta estrutura resultou dos diálogos entre coordenação do CEEJA e cursistas, que permitiram aperfeiçoar a capacidade do curso para articular teoria e prática. -Atividades extracurriculares: foram incorporadas ao curso visando a integrar os estudantes de EJA, atendidos pelos cursistas, à universidade. Entre elas, destacou-se um evento internacional de interlocução entre estudantes (e familiares) de EJA do Brasil e da Espanha. Ambos os grupos, a partir de um processo preparatório reflexivo, coordenado por seus professores (no caso do Brasil, com apoio do CEEJA), puderam discutir suas expectativas para a democratização da EJA, estruturando uma carta pública de Duas monografias foram para a final do concurso de “Mejores Tesis em Educación de Personas Adultas” (2011 ) do Centro de Cooperación Regional para la Educación de Adultos em América Latina e Caribe (CREFAL). 8 33 reivindicação aos seus respectivos governos, e vivenciar práticas culturais diversas na universidade. - Trabalhos de conclusão de curso: versaram sobre os mais variados temas da EJA, da alfabetização à educação popular de pessoas em situação de rua, das relações de gênero e relações étnicorraciais, nos processos de escolarização, à escolarização de trabalhadores e economia solidária, entre muitos outros. Os enfoques metodológicos foram variados, indo de pesquisa bibliográfica sobre o estado da arte à pesquisa teórico-empírica com metodologias participantes, entre outros. Os estudos buscaram colocar em diálogo o saber de experiência feito e o conhecimento acadêmico. Todos os TCCs foram defendidos publicamente, o que foi avaliado pelos cursistas como um momento intenso de aprendizagem. As atas de defesa, escritas por uma banca examinadora qualificada em termos acadêmicos, atestam a qualidade dos trabalhos8, obtida com árduo esforço dos cursistas e de seus orientadores. - Elevação de escolaridade: conforme relatado pelos cursistas, a experiência do CEEJA, sobretudo os diálogos e as altas expectativas que permearam o curso, permitiramlhe incluir em seu conjunto de aspirações o acesso ao mestrado com a temática EJA, sendo que quatro ingressaram no mestrado em universidades públicas. Além disso, motivou os membros do NIASE a adotarem a EJA como objeto de seus estudos em mestrados e doutorados. - Repercussões nas práticas de EJA: a partir da práxis no CEEJA, os cursistas relataram ter incorporado os princípios da aprendizagem dialógica em seu cotidiano profissional, alguns se integraram ao Fórum Estadual de EJA, e muitos passaram a compor uma rede profissional com interlocução com o poder público local. 34 Considerações finais A partir da realização do CEEJA, evidencia-se que a ação do governo federal de induzir a formação de educadores de EJA descolada de uma política de Estado, que valorize e ofereça condições dignas de estabilidade de trabalho aos docentes da EJA, dificulta seu engajamento em cursos de formação e acaba por não respaldar, de fato, os grupos universitários interessados em engajarem-se na formação continuada de educadores em EJA. Somado a isso, a política não é capaz de inserir a EJA nos percursos iniciais de formação de educadores e nem de provocar intersetorialidade nas políticas, com vistas a superar os problemas sociais que estão na base da negação do direito educativo. Por outro lado, a experiência do CEEJA mostrou que a Aprendizagem Dialógica potencializa o processo formativo em EJA na perspectiva da ELV, repercutindo na produção de conhecimento sobre o tema, no ingresso dos cursistas em programa de pós-graduação e na alteração de suas práticas educativas. Enfim, a extensão pode contribuir para a inserção da EJA no campo dos direitos. Referências BEISIEGEL, C. de R. A educação de jovens e adultos analfabetos no Brasil. Revista Alfabetização e Cidadania, no. 1 6, julho de 2003. pp. 1 9 – 26. ______. Política e educação popular. São Paulo: Ática, 1 982. BRASIL. Constituição Federal; DF. Congresso Nacional, 1 988. ______LEI N˚ 9.394/96 LDB da Educação Nacional . Brasília. DF; 23/1 2/1 996. 35 ______. Parecer 11 /2000 (CNE/CEB). Diretrizes curriculares nacionais para a Educação de jovens e adultos. Brasília. DF; Congresso Nacional, 1 0/5/2000. CURY, C. J. Direito à Educação: direito à igualdade, direito à diferença. Cadernos de Pesquisa, n.11 6, jul, 2002, p. 245262. Di PIERRO, M. C. A educação de jovens e adultos no plano nacional de educação . Educação e Sociedade. Campinas, v. 31 , n. 11 2, p. 939-959, jul.-set. 201 0 939. ______. Notas sobre a redefinição da identidade e das políticas públicas de educação de jovens e adultos no Brasi l. Educ. e Soc. Campinas, vol. 26, n. 92, p. 111 5-11 39, out. 2005 FLECHA, Ramón. Compartiendo Palabras. Barcelona: Paidós, 1 997. ______; GÓMEZ, J.; PUIGVERT, L. Teoria sociológica comtemporánea . Barcelona: Paidós, 2001. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido . 43ª ed. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 2005. GALVÃO,A; Di PIERRO, M. C. Preconceito contra o analfabeto . São Paulo:Cortez, 2007. GARFINKEL, H. Studies in Ethnomethodology. Cambridge England: Polity. Press, 1 984. HABERMAS, J. Teoria de la Acción Comunicativa. Madrid: Taurus, 1 987 36 IBGE. Aspectos complementares da Educação de Jovens e Adultos e Educação Profissional 2007. Rio de Janeiro: IBGE, 2009. ______. Censo demográfico , 201 0. LIMA, L. Educação ao longo da vida. Entre a mão direita e a mão esquerda de Miró. São Paulo: Cortez., 2007. MEDINA, O. F. Modelos de educación de personas adultas. Barcelona: El Roure, 1 997. SOARES, L. (org). Educação de Jovens e Adultos – o que revelam as pesquisas. Belo Horizonte: autentica editora, 2011. UNESCO. CONFINTEA V, 1 997, Declaração de Hamburgo e agenda para o futuro. Lisboa: UNESCO; Ministério da Educação; Ministério do Trabalho e Solidariedade, 1 998. ______, CONFINTEA VI. 201 0, Belém, Brasil. Marco de Ação de Belém . Unesco, 201 0. 37 38 artigo A FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES DE EJA: CONTRIBUINDO PARA A DEFINIÇÃO DE POLÍTICAS EDUCATIVAS Alessandra Fonseca Farias Farias Yoshie Ussami Ferrari Leite Resumo Esta pesquisa tem como objetivo analisar o processo de formação inicial de professores de Educação de Jovens e Adultos (EJA), desenvolvido nas universidades estaduais de São Paulo, USP, UNICAMP e UNESP, por serem estas instituições as mais renomadas no âmbito de formação e pesquisa não só do estado como do país. Nosso objeto de estudo são os licenciandos em pedagogia de tais universidades e, mais especificamente, os que atuam em projetos e/ou cursam disciplinas de educação de jovens e adultos; também os profissionais pedagogos recém-formados que atuam na rede de ensino na modalidade EJA serão pesquisados. Considerando a importância desse tema para a educação brasileira, pretendemos, neste trabalho, apontar aspectos que provoquem discussões sobre a temática, pois acreditamos que a percepção sobre a relevância dessa modalidade de ensino deve ser desenvolvida na formação inici1 FCT 2 FCT UNESP, CAPES. Email: alessandra.farias90@ gmail.com UNESP, CAPES. Email: yoshie@ fct.unesp.br 39 al, a fim de que se formem professores com um posicionamento frente ao seu papel de formar adultos atuantes na sociedade através de sua cidadania assegurada pelo direito e o acesso à educação. Pretendemos utilizar em nossa metodologia a abordagem qualitativa embasada por Sandín Esteban (201 0) e, dentro desta perspectiva, fazer uso do método de análise documental a partir dos escritos de Cellard (2008) e da realização de entrevistas semi-estruturadas descrita por Triviños (2008). Educação de Jovens e Adultos (EJA), Formação Inicial de Professores de EJA, Identidade do Professor de EJA Palavras-chave: Introdução e Justificativa Em face do histórico da EJA no Brasil e da necessidade de efetivação de suas políticas públicas, se faz importante pensar na formação do professor que vai atuar na sala de EJA, dentro do contexto histórico de exclusão e desvalorização que caracteriza a política em nosso país. Diante do fato de que muitos dos sujeitos da EJA têm trajetórias de fracasso, de não aprendizado e de frustrações, não é possível repetir modelos e manter abordagens e métodos infantilizados, que não valorizam o conhecimento dos educandos, sua história de vida, sua identidade e sua psicologia de aprendizagem que é específica (Oliveira, 1 999). Muitos estudiosos têm se envolvido na busca de que essa modalidade de ensino tenha uma estrutura mais adequada que atenda e respeite verdadeiramente as necessidades dos educandos, pois O esforço da última década em torno da 40 reconfiguração do campo da EJA tem trazido mudanças no campo da formação de professores. Podemos destacar dois movimentos importantes nessa direção: um, mais ligado aos órgãos oficiais de governo, com a presença importante do órgão normativo nacional em educação: o Conselho Nacional de Educação (CNE), que, através da Câmara de Educação Básica fixou, em 2000, as diretrizes curriculares para a EJA e, outro, que advém da sociedade civil organizada em defesa da EJA, com destaque para a participação dos fóruns de EJA e do Grupo de Trabalho de Educação de Jovens e Adultos, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) (MACHADO, 2008, p. 1 67). Embora os princípios estejam estabelecidos, é preciso aprofundar a discussão sobre a formação inicial dos professores que atuarão nas salas de jovens e adultos, pois eles enfrentarão de perto as reais necessidades e especificidades da EJA, tendo assim papel importante na efetivação de suas políticas públicas. Faz-se necessário repensar a formação do professor de acordo com a necessidade social da escola pública, aberta ao novo, capaz de oferecer ao aluno caminhos para a busca de respostas aos problemas que enfrenta no cotidiano. É necessário possibilitar, ao futuro professor, a construção de uma identidade profissional que corresponda às exigências da população envolvida e as demandas atuais. É preciso investir numa 41 formação que vincule teoria e prática desde o início do curso, a partir da pesquisa e de uma efetiva inserção no interior da escola (LEITE, 2007, p.1 5). Concordamos com Leite (2007), quando afirma que é preciso que o futuro professor construa uma identidade profissional que vá de encontro com as necessidades dos alunos e, por isso, defendemos que o professor de EJA desde a formação inicial deve se atentar para o histórico de desatenção à educação de adultos no país, para a trajetória de luta por acesso à educação de qualidade, bem como para constituição da especificidade dessa modalidade de ensino que hoje é garantida pela legislação nacional e que possui demandas e características próprias e urgentes. A fala de Machado (2008, p. 1 64) corrobora, nesse sentido, quando afirma que “A perspectiva de reconfiguração do conceito de educação para jovens e adultos, nos últimos doze anos, repõe na cena educacional uma questão antiga: para quais alunos estão sendo formados os nossos professores”. Para Arroyo (2006), o primeiro ponto a ser destacado acerca da formação de professores de jovens e adultos é que não há parâmetros sobre o perfil desse professor. A causa disso, segundo ele, é que também não temos uma definição muito clara da própria EJA. Ele ressalta também a marginalidade com que a educação de adultos se constituiu durante muito tempo pela falta de políticas públicas oficias, pela falta de centros específicos de EJA e de formação específica para o professor. “Costumo dizer que a formação do educador e da educadora de jovens e adultos sempre foi um pouco pelas bordas, nas próprias fronteiras onde estava acontecendo a EJA” (ARROYO, 2006, p. 1 7). Ele ainda diz que: Esse caráter universalista, generalista 42 dos modelos de formação de educadores e esse caráter histórico desfigurado dessa EJA explica por que não temos uma tradição de um perfil de educador de jovens e adultos e de sua formação. Isso implica sérias consequências. O perfil do educador de jovens e adultos e sua formação encontra-se ainda em construção. Temos assim um desafio, vamos ter que inventar esse perfil e construir sua formação. Caso contrário, teremos que ir recolhendo pedras que já existem ao longo de anos de EJA e irmos construindo esse perfil da EJA e, consequentemente, teremos que construir o perfil dos educadores de jovens e adultos e de sua formação (ARROYO, 2006, p. 1 8). Na constituição do perfil do professor de EJA, Arroyo (2006) salienta a questão da infantilização que desde sempre existiu nas práticas de educação de adultos, onde aproveita-se os professores dos anos iniciais do ensino fundamental que passam por uma “reciclagem” para atuarem também em salas de EJA. “Se pretendemos configurar a educação de jovens e adultos por esse lado, acho que não tem sentido discutirmos a formação do educador de jovens e adultos”, diz ele (ARROYO, 2006, p.20). Dessa forma, o autor diz que pode-se simplesmente aproveitar os professores do ensino fundamental para resolver o problema, que em vez de falarem “criança ou menino”, falariam “jovem ou adulto”, constituindo-se assim “um professor generalista que poderá dar aula no diurno, a crianças e adolescentes, e no noturno, a jovens e adultos” (ARROYO, 2006, p.21 ). Como possibilidade à constituição da identidade do professor de EJA, Arroyo (2006) aponta a necessidade do conhecimento do próprio sujeito educando da EJA, pois, pa43 ra ele, um dos traços da formação dos educadores de jovens e adultos deve ser o de conhecer as especificidades do que é ser jovem, do que e ser adulto (p. 22): Não é qualquer jovem e qualquer adulto. São jovens e adultos com rosto, com histórias, com cor, com trajetórias sócioétnico-raciais, do campo, da periferia. Se esse perfil de educação de jovens e adultos não for bem conhecido, dificilmente estaremos formando um educador desses jovens e adultos. Normalmente nos cursos de Pedagogia o conhecimento dos educandos não entra. A Pedagogia não sabe quase nada, nem sequer da infância que acompanha por ofício. Temos mais carga horária pra discutir e estudar conteúdos, métodos, currículos, gestão, supervisão, do que para discutir e estudar a história e as vivências concretas da infância e da adolescência, com o que a pedagogia e a docência vão trabalhar. Em relação à história e às vivências concretas da condição de jovens e adultos populares trabalhadores as lacunas são ainda maiores (ARROYO, 2006, p. 22). Para este estudioso da área de formação de professores de EJA, só através do reconhecimento das especificidades desta modalidade de ensino, e dos sujeitos que a compõem, será possível construir um perfil específico do educador da EJA e, consequentemente, uma política específica para a formação desses educadores (ARROYO, 2006, p. 21 ). Ao olharmos para o histórico da EJA no Brasil, percebemos que ao ser estabelecida na LBDEN, a educação 44 de adultos ganhou força e tornou-se uma política de Estado, de modo que hoje o governo brasileiro investe nessa modalidade educacional e a incentiva, como possibilidade de diminuição do enorme índice de analfabetismo da população que não teve acesso ou possibilidade de estudar no tempo regular. Incluída no Capítulo II da LDBEN, que trata da educação básica, a EJA, juntamente com a educação infantil, o ensino fundamental, o ensino médio e a educação técnica de nível médio, aparece como modalidade de ensino em seção que dispõe sobre as condições para a sua efetivação: Seção V Da Educação de Jovens e Adultos Art. 37. A educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria. § 1 º Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e aos adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade regular, oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames. § 2º O Poder Público viabilizará e estimulará o acesso e a permanência do trabalhador na escola, mediante ações integradas e complementares entre si. § 3o A educação de jovens e adultos deverá articular-se, preferencialmente, com a educação profissional, na forma do regulamento. (Incluído pela Lei nº 11.741 , de 2008) Art. 38. Os sistemas de ensino manterão 45 cursos e exames supletivos, que compreenderão a base nacional comum do currículo, habilitando ao prosseguimento de estudos em caráter regular (BRASIL, 1 996). Apesar da luta de diversos segmentos da sociedade comprometidos com a educação, podemos perceber que os índices de analfabetismo no Brasil permanecem altos, de governo a governo. Com a implantação do Programa Nacional “Brasil Alfabetizado”, em setembro de 20033, o então Ministro da Educação, Cristovam Buarque 4, prometeu alfabetizar 20 milhões de brasileiros nos quatro anos de sua gestão com uma ação de “combate implacável” ao analfabetismo, referendando a posição da Organização das Nações Unidas (ONU), que estabeleceu o ano de 2003 como o início da Década da Alfabetização no mundo. Contudo, o cenário do analfabetismo brasileiro continua sendo inquietante. Embora o percentual de analfabetos com 1 5 anos ou mais de idade tenha diminuído de 1 3,3%, em 1 999, para 9,7% em 2009, este índice representa um total considerável de 1 4,1 milhões de pessoas, das quais, segundo o IBGE, 42,6% estão na faixa de 60 anos ou mais, 52,2% residem no Nordeste e 1 6,4% vivem com ½ salário mínimo de renda familiar per capita. Os maiores decréscimos no analfabetismo, verificados por grupos etários, entre 1 999 a 2009, ocorreram na faixa dos 1 5 aos 24 anos. Nesse grupo, as mulheres eram mais alfabetizadas, mas os homens apresentaram queda um pouco mais acentuada, passando de 1 3,5% para 6,3%, contra 6,9% para 3,0% para as mulheres (IBGE, 201 0). Quando falamos em sujeitos da EJA, estamos falando de homens e mulheres maiores de 1 5 anos sujeitos de 3Governo Lula (2003-201 0). 4Não concluiu o mandato como 46 ministro. toda a diversidade étnica, religiosa, sexual e política, vítimas da desigualdade social existente neste país (BRASIL, 2009) que é acentuada pela falta de acesso e permanência na escola, principalmente se tratando de pessoas que foram excluídas do espaço escolar em seu tempo regular, cujo acesso já era garantido desde 1 948, conforme o Artigo 26º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: 1.Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito (ONU, 1 948). No atual cenário nacional, o Parecer CNE/CEB nº 1 3/20005 sob relatoria de Jamil Cury, homologado e aprovado em 2000, afirma que as diretrizes para o ensino fundamental e médio valem para a EJA, contudo, reconhece a especificidade da faixa etária dos que a ela se destina, respondendo a uma alteridade específica, uma mediação significativa para a ressignificação das diretrizes comuns assinaladas (BRASIL, 2000). A EJA, de acordo com a Lei 9.394/96, passando a ser uma modalidade da educação básica nas etapas do ensino fundamental e médio, usufrui de uma especificidade própria que, como tal deveria receber um tratamento consequente (BRASIL, 2000). 5 Parecer aprovado em 2000 que dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos, redigido pelo conselheiro Carlos Roberto Jamil Cury. 47 Tal parecer, além de enfatizar a especificidade da EJA, menciona a formação dos professores que desejam atuar nessa modalidade, e apresenta alguns princípios para seu desenvolvimento: Art. 1 7 – A formação inicial e continuada de profissionais para a Educação de Jovens e Adultos terá como referência as diretrizes curriculares nacionais para o ensino fundamental e para o ensino médio e as diretrizes curriculares nacionais para a formação de professores, apoiada em: I – ambiente institucional com organização adequada à proposta pedagógica; II – investigação dos problemas desta modalidade de educação, buscando oferecer soluções teoricamente fundamentadas e socialmente contextuadas; III – desenvolvimento de práticas educativas que correlacionem teoria e prática; IV – utilização de métodos e técnicas que contemplem códigos e linguagens apropriados às situações específicas de aprendizagem (BRASIL, 2000). Acreditamos ser necessário que o sistema educacional brasileiro crie articulações adequadas para desenvolver a EJA, pois, dada a autonomia dos entes federados, o diálogo com os sistemas estaduais e municipais de educação e a capacitação dos profissionais para a oferta da EJA com qualidade, são fundamentais, considerando sua enorme demanda que se estende por todo o país (BRASIL, 2009). 48 Objetivos Diante da contextualização do processo de desvalorização e conquistas do campo das políticas públicas de EJA no Brasil, apresentamos os seguintes objetivos desta pesquisa que volta seu olhar para a formação do professor que atuará nesta modalidade de ensino: Objetivo Geral Investigar como o processo de formação inicial de professores de EJA está acontecendo, a partir da análise dos cursos de Pedagogia das três universidades estaduais de São Paulo. Objetivos Específicos - Pesquisar o que dizem os documentos oficiais da EJA sobre a formação de professores; - Investigar se a formação de professores de EJA está contemplada nos projetos pedagógicos dos cursos de pedagogia das universidades; - Pesquisar o que pensam o coordenador do curso de Pedagogia, assim como os professores responsáveis pela disciplina sobre o processo inicial de formação em EJA; - Investigar o que os alunos em processo inicial de formação pensam sobre a formação que estão recebendo; - Investigar o que os profissionais recém-formados que atuam na EJA pensam sobre a formação que tiveram. Metodologia Esta pesquisa utiliza como base metodológica a abordagem qualitativa, pois segundo Sandín Esteban esta 49 metodologia ... abrange basicamente aqueles estudos que desenvolvem os objetivos de compreensão dos fenômenos socioeducativos e a transformação da realidade. Nos últimos anos, apareceram com grande força os estudos que, de uma perspectiva qualitativa e colaborativa, estão voltados para a valoração da prática educativa e a tomada de decisões (processos, programas, inovações) e também os processos de pesquisa qualitativa cujo objetivo fundamental é a emancipação dos sujeitos. Portanto, a pesquisa qualitativa se refere ao que tradicionalmente denominamos metodologias orientadas à avaliação e tomada de decisões. (SANDÍN ESTEBAN, 201 0). Dentro dessa perspectiva, faremos uso do método de análise documental, assim como de pesquisa empírica com a realização de entrevistas. De acordo com Sá-Silva, Almeida & Guindani (2009), a análise de documentos pode ser um procedimento muito útil na área das Ciências Humanas e Sociais, dada a riqueza de informações que deles se pode extrair e resgatar, além da possibilidade que oferecem para o entendimento de objetos cuja compreensão necessita de contextualização histórica e sociocultural. Ainda segundo os autores citados, colocar em destaque a pesquisa documental implica trazer para a discussão uma metodologia que é “pouco explorada não só na área da educação como em outras áreas das ciências sociais” (LÜDKE e ANDRÉ, 1 986, p.38), quando, de fato, [...] o documento escrito constitui uma fonte extremamente preciosa para todo 50 pesquisador nas ciências sociais. Ele é, evidentemente, insubstituível em qualquer reconstituição referente a um passado relativamente distante, pois não é raro que ele represente a quase totalidade dos vestígios da atividade humana em determinadas épocas. Além disso, muito freqüentemente, ele permanece como o único testemunho de atividades particulares ocorridas num passado recente (CELLARD, 2008, p.295). A análise documental proporciona uma observação do processo de evolução de indivíduos, grupos, conceitos, conhecimentos, comportamentos, mentalidades e práticas (CELLARD, 2008) e, por isso, acreditamos que possa se aplicar a esta pesquisa, no que tange à análise dos Projetos Políticos Pedagógicos, das ementas e bibliografias do curso de Pedagogia de cada uma das universidades pesquisadas USP, UNICAMP, e seis campis da UNESP. O estudo se dará sob o prisma das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia e da legislação pertinente à área da educação, especificamente, da educação de adultos, a fim de conhecer como se dá a formação inicial em EJA. A análise dos Projetos Políticos Pedagógicos das universidades nos dará suporte para conhecermos um pouco mais da formação acadêmica em EJA, ou seja, se esta modalidade de ensino é contemplada nos cursos de Pedagogia, a partir da verificação da presença da EJA no programa de disciplinas do curso, sob a forma de disciplinas específicas, e se tais disciplinas são obrigatórias ou optativas. Paralelamente à análise documental, buscando trazer a esta pesquisa uma perspectiva também empírica, entrevistas serão feitas. Para Triviños (2008), para alguns tipos de pesquisa qualitativa, a entrevista semi-estruturada é um 51 dos principais meios que pesquisador tem para realizar a coleta de dados. Podemos entender por entrevista semiestruturada, em geral, aquela que parte de certos questionamentos básicos, apoiados em teorias e hipóteses, que interessam à pesquisa, e que, em seguida, oferecem amplo campo de interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se recebem as respostas do informante. Desta maneira, o informante, seguindo espontaneamente a linha de seu pensamento e de suas experiências dentro do foco principal colocado pelo investigador, começa a participar na elaboração do conteúdo da pesquisa (TRIVIÑOS, 2008, p. 1 46). Assim, entrevistaremos o coordenador do curso de Pedagogia, em cada universidade que possuir disciplinas específicas de EJA, para sabermos qual o espaço que, segundo ele, a EJA ocupa na proposta curricular do curso, e com que importância esta modalidade de ensino é considerada na formação inicial dos pedagogos. Serão entrevistados também os professores responsáveis pelas disciplinas de EJA, a fim de verificar com quais autores trabalham e em que perspectiva formam os professores que atuarão com jovens e adultos. Entrevistaremos também dois graduandos da Pedagogia de cada instituição pesquisada que tenham frequentado disciplinas de EJA, com o intuito de investigar, segundo sua visão, se essas disciplinas foram suficientes para sua formação, ou seja, se eles se sentem preparados para assumir turmas de educação de adultos. Ao mesmo tempo, temos a pretensão de entrevistar dois profissionais 52 recém-formados que estejam atuando na EJA para saber se na opinião deles a formação que tiveram foi capaz de prepará-los para o ensino de adultos. Desse modo, o trabalho poderá revelar as bases de formação em EJA dos pedagogos formados pelas três universidades estaduais de São Paulo pesquisadas, se essas bases estão dentro do curso de licenciatura, se sua construção se dá no desenvolvimento de disciplinas específicas optativas ou obrigatórias, enfim, saberemos se as universidades estão formando professores na modalidade de ensino de EJA, para que possam atuar na educação de adultos de forma a contribuir para a superaração do alto e histórico índice de analfabetismo no país. Resultados Parciais Diante do exposto, olhamos para a realidade dos cursos de Pedagogia do Brasil, trazendo dados das pesquisas de Soares (2007) e Gatti e Barreto (2009), pois é nesse espaço que se forma inicialmente o professor de EJA. Defendemos, deste modo, que a formação inicial deve preparar o docente que atuará não só com crianças, mas também com jovens e adultos, conferindo à modalidade EJA o mesmo grau de importância na licenciatura em Pedagogia que trata de outras modalidades de ensino, como a educação infantil e a educação especial. Dados relativos aos cursos de Pedagogia das universidades brasileiras que possuem habilitação em EJA, apresentados por Soares (2007), revelam a contradição entre a pouca oferta dessa habilitação específica e o enorme índice de analfabetismo no país: Os dados do INEP de 2005 apontavam 1 698 cursos de Pedagogia no Brasil, em 61 2 IES. Dentre estas instituições, 1 5 53 oferecem a habilitação de EJA em 27 cursos: 7 instituições na região Sul, ofertando 1 9 cursos com a habilitação, 4 na Sudeste, com 4 cursos e 4 na Nordeste, com 4 cursos. Do total de cursos de Pedagogia, apenas 1 ,59% oferecem a habilitação, sendo que, as regiões norte e centro-oeste não apresentaram nenhum registro (SOARES, 2007). Para Soares (2007), a precariedade da formação dos profissionais de EJA, em muitos casos, está relacionada à ausência de formação específica nos cursos de graduação em Pedagogia, onde é formada a maioria dos profissionais. Ainda segundo este autor, “a formação de um profissional voltado para as necessidades dos sujeitos jovens e adultos nos últimos anos, tem se colocado como questão central nos debates sobre o tema” (SOARES, 2006, p. 01 ). No livro “Professores do Brasil: impasses e desafios” Gatti e Barreto (2009) apresentam os principais resultados da pesquisa “Formação de professores para o ensino fundamental: instituições formadoras e seus currículos”, realizada em 2008 pelo Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas, com apoio da Fundação Victor Civita. A pesquisa analisou, por meio de amostra representativa, a estrutura curricular e as ementas de 1 65 cursos presenciais de instituições de ensino superior do país que promovem a formação inicial de docentes. Desse estudo, selecionamos dois quadros, um que aponta o número de disciplinas obrigatórias, e outro, as optativas, dos 1 65 cursos presenciais de formação inicial de professores. Chamamos a atenção para o número de disciplinas de EJA: 54 Tabela 1 : Disciplinas obrigatórias, segundo as categorias e subcategorias de análise. Fonte: GATTI & BARRETO, 2009. Nessa primeira tabela são apresentadas as disciplinas obrigatórias dos cursos de pedagogia do Brasil, as quais foram pesquisadas por Gatti e Barreto (2009). As disciplinas são agrupadas nas categorias curriculares de análise, e as disciplinas relacionadas à EJA fazem parte da categoria “Conhecimentos relativos às modalidades e níveis de ensino”, na qual nos focaremos fazendo uma breve análise. Do subtotal de 11 ,2% que compõe a categoria “Conhecimentos relativos às modalidades e níveis de ensino”, apenas 1 ,6% diz respeito a disciplinas de EJA, o que corresponde a 49 disciplinas obrigatórias apresentadas em cur55 sos de pedagogia em todo o país. Consideramos esta porcentagem pouco significativa quando comparada aos 5,3% da Educação Infantil e 3,8% da Educação Especial. Esta análise é ainda mais acentuada se compararmos com a categoria “Fundamentos Teóricos da Educação”, que representa 26,0 das disciplinas, o que em números exatos são 807 disciplinas obrigatórias relacionadas a este tema. Tabela 2: Disciplinas optativas, segundo as categorias e subcategorias de análise. Fonte: GATTI & BARRETO, 2009. 56 Nessa segunda tabela que diz respeito às disciplinas optativas, analisando ainda a mesma categoria curricular “Conhecimentos relativos às modalidades e níveis de ensino” onde está situada a modalidade EJA, os índices relativos às diferentes modalidades de ensino praticamente se equivalem, com uma vantagem mínima para as disciplinas que abordam a EJA, representando 4,2% do subtotal de 1 2,6% da categoria. É preciso reforçar, porém, o caráter opcional dessas disciplinas. Contudo, novamente comparando esta categoria com a primeira, “Fundamentos teóricos da educação”, percebemos o quão as disciplinas voltadas às modalidades de ensino, e aqui damos atenção especial às de educação de adultos, são diminuídas em comparação com os 23,6% correspondem a 96 disciplinas relacionadas aos fundamentos. Considerações Parciais Acreditamos a desvalorização da EJA na formação inicial de professores refletirá não só no trabalho de cada professor que atuará nela, mas também em toda a estrutura que se mantém despreparada para atender ao jovem e o adulto em busca de garantir seu direito à educação. Segundo Gatti & Barreto, caracterizar o papel essencial da formação inicial dos docentes para o desempenho de seu trabalho implica pensar seu impacto na constituição de sua profissionalidade e de sua profissionalização em forma socialmente reconhecida (GATTI e BARRETO, 2011 , p. 93). Pensamos que o tema da formação de professores em EJA é extremamente importante para o rumo da educação e, em especial, da EJA no país. É na formação inicial que a consciência da relevância dessa modalidade de ensino deve ser desenvolvida, para que sejam formados professores com um posicionamento frente ao seu papel de formar 57 adultos atuantes na sociedade através de sua cidadania afirmada no direito e acesso à educação. Com maior razão, pode-se dizer que o preparo de um docente voltado para a EJA deve incluir, além das exigências formativas para todo e qualquer professor, aquelas relativas à complexidade diferencial desta modalidade de ensino. Assim esse profissional do magistério deve estar preparado para interagir empaticamente com esta parcela de estudantes e de estabelecer o exercício do diálogo. Jamais um professor aligeirado ou motivado apenas pela boa vontade ou por um voluntário idealista e sim um docente que se nutra do geral e também das especificidades que a habilitação como formação sistemática requer (BRASIL, 2000, p. 56). Referências Bibliográficas BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1 988 . Brasília, 1 988. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9.394, de 20 de dezembro de 1 996. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CEB nº 1 3/2000. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos. BRASIL. Documento Nacional Preparatório à VI Conferência Internacional de Educação de Adultos - VI CONFINTEA / Ministério da Educação (MEC). – Brasília: MEC; Goiânia: 58 FUNAPE/UFG, 2009. CELLARD, A. A análise documental. In: POUPART, J. et al. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis, Vozes, 2008. GATTI, Bernadete; BARRETO, Elba Siqueira de Sá. Professores do Brasil: impasses e desafios. Brasília: UNESCO, 2009. GATTI, Bernadete; BARRETO, Elba Siqueira de Sá; ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo de Afonso. Políticas docentes no Brasil: um estado da arte. Brasília: UNESCO, 2011. IBGE, 201 0. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, dados referentes ao território nacional, fornecidos em meio eletrônico. Disponível em <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1 71 7&id_pagina=1 >. Acesso em: 23 fev 201 2. LEITE, Yoshie Ussami Ferrari. A Formação de Professores nos Cursos de Licenciatura: Algumas Diretrizes e Práticas. In: Simpósio Brasileiro de Política e Administração da Educação, 23, 2007, Porto Alegre: ANPAE, 2007. Disponível em <http://www.anpae.org.br/congressos_antigos/simposio2007/467.pdf>. Acesso em: 1 0 fev. 201 2. LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo, EPU, 1 986. MACHADO, Maria Margarida. Formação de professores para EJA: Uma perspectiva de mudança. In: Revista Retratos da Escola , Brasília, v.2, n.2-3, p. 1 61-1 74, jan/dez. 2008. 59 OLIVEIRA, Marta Kohl de. Jovens e Adultos como sujeitos de conhecimento e aprendizagem . Apresentado na 22ª reunião anual da Anped, Caxambu, 1 999. ONU. Art. XXVI, inciso I. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assembleia das Nações Unidas, 948. SANDÍN ESTEBAN, Maria Paz. Pesquisa Qualitativa em Educação: Fundamentos e tradições. Tradução Miguel Cabrera. Porto Alegre: AMGH, 201 0. SÁ-SILVA, J. R.; ALMEIDAC. D.; GUINDANI, J. F. Pesquisa documental: pistas teóricas e metodológicas. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Ano I - Número I - Julho de 2009. ISSN: 21 75-3423 2009. SOARES, Leôncio. A Formação Inicial do Educador de Jovens e Adultos: Um estudo da habilitação de EJA dos cursos de pedagogia. ANPED, GT: Educação de Pessoas Jovens e Adultas / n.1 8, 2006. Disponível em: < http://www.anped.org.br/reunioes/29ra/trabalhos/trabalho/GT1 8-2030--Int. pdf>. Acesso em: 1 5 out 201 2. 60 artigo A formação de educadores (as) no Projeto Educação de Jovens e Adultos na Universidade Federal de São Carlos. Alessandra Vetorelli Pereira (leka_vp@ yahoo.com.br) Lúcio de Castro Fábis - UFSCar (luciosfabis@ gmail.com) Rosimara Silva Correia - UFSCar (rosimara1 984@ hotmail.com) Resumo O presente texto é um relato da experiência do Projeto de Educação de Jovens e Adultos (EJA) da Universidade Federal de São Carlos desenvolvido por meio do Núcleo UFSCar Escola. Implementado em 2009 em parceria com a Pró Reitoria de Gestão de Pessoas (ProGPe) teve como objetivo principal a formação da escolaridade básica dos servidores públicos da UFSCar. Todavia, como o Munícipio e o Estado ofertam ensino na modalidade EJA somente no período noturno a EJA UFSCar, por oferecer as aulas em período diurno, foi aos poucos abrangendo também outros segmentos da população. Para tanto os objetivos do referido projeto são: criar condições para que os (as) alunos (as) frequentem a EJA garantindo a oportunidade de concluir o Ensino Médio e ser certificado por isso; propiciar uma formação crítica aos (as) estudantes e contribuir para a formação sociocultural e profissional de estudantes de gradua61 ção e pós-graduação da UFSCar. Para que o Projeto se viabilizasse para os(as) funcionários/as da universidade estes (as) foram dispensados (as) no período de trabalho sem prejuízo salarial ou qualquer outro prejuízo de sua função, e ao concluírem os estudos recebem um aumento salarial, devido ao plano de carreira. Além dos educandos e das educandas serem preparados (as) para obter a certificação pelo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) também o projeto conta com a parceria do Instituto Federal de São Paulo (campus São Carlos) para a certificação dos estudantes do Ensino Médio e da Secretaria da Educação de São Carlos para o Ensino Fundamental. O quadro docente é constituído por estudantes de graduação e pós-graduação que assumem as funções de professor (a) e monitor (a) quando submetidos (as) e aprovados (as) em Processo Seletivo. Quando selecionados (as) recebem orientações antes de iniciarem suas aulas e durante todo o ano letivo, tais como adequação ao público alvo e respeito à prioridade que os (as) educandos (as) tem em relação à família e secundariamente ao estudo concentrando as pesquisas e trabalhos no momento das aulas. Outra orientações são acerca dos sujeitos que compõem a turma, diversa, que deve ter as suas diferenças respeitadas, ao mesmo tempo em que os seus direitos garantidos; e a acreditação da capacidade dos (as) educandos (as) na máxima aprendizagem. Para garantir a formação dos professores (as) e estudantes da UFSCar são realizadas reuniões pedagógicas e grupos de estudos, espaços nos quais se tem trocas de saberes e em que as decisões são tomadas e que acabam por se constituir processos educativos diversos, tais como a preocupação com a formação integral dos alunos, com a 62 certificação, com a continuidade acadêmica, com desenvolvimento pessoal, emocional e intelectual. Vale ressaltar que um espaço social que tem claro seu propósito formativo, facilita o desencadeamento de processos educativos pertinentes e produtivos a sua função social como prática. Além dos resultados na EJA UFSCar enquanto espaço de formação vários são os relatos dos/das estudantes em relação à importância da EJA para a vida enquanto realização pessoal. A maioria dos que passaram pelo projeto e também os que ainda estão terminando o curso lembram e citam a Educação de Jovens e Adultos como uma experiência engrandecedora, que abriu muitos caminhos, mesmo apesar de todas as dificuldades que enfrentaram. Mesmo que poucos (as) há também aqueles (as) que desejam ingressar na Universidade, pesquisam oportunidades e almejam continuar seus estudos. Uma aluna conseguiu ultrapassar os obstáculos e está finalizando curso técnico no Instituto Federal de São Carlos. Palavras-chaves: Educação de Jovens e Adultos, Formação de professores, Universidade Federal de São Carlos. O presente texto é um relato da experiência do Projeto de Educação de Jovens e Adultos da Universidade Federal de São Carlos com ênfase na formação dos estudantes de graduação e pós-graduação. O projeto é desenvolvido por meio do Núcleo de Extensão UFSCar-Escola (NEUE) sob alçada da Pró-Reitoria de Extensão Universitária, sob a coordenação da Profa. Dra. Ana Luiza Rocha Vieira Perdigão e atua em dois projetos: o Curso Pré-Vestibular e a Educação de Jovens e Adultos, ambos com suas atividades no campus de São Carlos. O curso pré-vestibular da UFSCar implantado na 63 Universidade como projeto de extensão universitária desde 1 999 é destinado a pessoas jovens e adultas oriundas das camadas populares de São Carlos e região, sendo um dos objetivos oferecer-lhes melhores condições de acesso e permanência no ensino superior público. A implementação do projeto da EJA na UFSCar teve seu início em 2009 em parceria com a Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas (ProGPe) que desenvolve desde o ano citado uma proposta de cursos de aperfeiçoamento profissional para ampliar a escolaridade de seus servidores/as. Inicialmente, a ProGPe criou oportunidades para que os/as servidores/as pudessem fazer cursos de pós-graduação profissionalizante. Porém, diante da constatação do grau de escolaridade destes/as servidores/as, a maior parte não havia concluído o Ensino Fundamental e Médio, iniciou-se um debate junto a esta comunidade para a criação de turma(s) na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Neste contexto urgente de formação do seu quadro de funcionários/as, a ProGPe estabeleceu uma parceria com o Núcleo de Extensão UFSCar Escola para a implementação de turmas de Educação de Jovens e Adultos, cujo papel do Núcleo seria o de selecionar o corpo docente, ministrar e fazer acompanhamento pedagógico das aulas, assim como o desempenho dos estudantes. Para que o Projeto se viabilizasse, os (as) funcionários (as) da Universidade seriam dispensados no período de trabalho sem prejuízo salarial ou qualquer outro prejuízo de sua função, e ao concluírem os estudos receberiam um aumento salarial, devido ao plano de carreira. Na ocasião, 64 funcionários da Universidade não tinham Ensino Fundamental ou Ensino Médio concluído, sendo a maioria do segundo termo do Fundamental incompleto (5º ao 9º ano). Após os convites terem sido realizados aos funcionários (as), no ano de 201 0 a parceria foi estabelecida com 64 a Pró-reitoria para atender a demanda de formação dos/as servidores/as do quadro de funcionários da UFSCar e se estendendo mais tarde às pessoas da comunidade que procuraram o projeto. Para isso foram iniciadas duas turmas (uma de Ensino Fundamental e uma de Ensino Médio). Desde então o projeto concluiu duas turmas de Ensino Médio e duas de Ensino Fundamental, totalizando a formação de cerca de quinze alunos (as) funcionários da Universidade e seis alunos (as) da comunidade. Até o encerramento do projeto, no final do primeiro semestre de 201 4, está prevista a formação de mais uma turma de Ensino Médio. Para que os (as) educandos (as) possam ser certificados, contamos com a parceria do Instituto Federal de São Paulo (campus São Carlos) para a certificação dos estudantes do Ensino Médio. As turmas do Ensino Fundamental foram certificados por meio da parceria com a Secretaria da Educação de São Carlos. Além dessa parceria, os educandos (as) são preparados para obter a certificação pelo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). A equipe que executa o Projeto é formada por duas coordenadoras, uma Pedagoga e uma Bióloga, responsáveis respectivamente pela área Pedagógica e Administrativa, mas, que tomam todas as decisões juntas e em âmbito coletivo. A formação atual do quadro discente é composta por um funcionário e por uma funcionária da UFSCar e por sete pessoas da comunidade. Vale dizer, que o Munícipio e o Estado ofertam ensino na modalidade EJA somente no período noturno, o que exclui muitos (as) que em função do trabalho ou de outras necessidades particulares não conseguem frequentar as aulas no período oferecido. Portanto, a EJA UFSCar foi aos poucos abrangendo outros segmentos da população. Estes sujeitos formam uma turma heterogênea, porém apesar de todas as singularidades e diferenças 65 eles se identificam no quesito de pessoas adultas trabalhadoras. A formação do quadro docente é constituída por estudantes de graduação e pós-graduação que assumem as funções de professor/a e monitor/a quando submetidos/as e aprovados/as em Processo Seletivo. A seleção de professores/as e monitores/as envolve avaliação escrita (conteúdos específicos da área de interesse), avaliação didática com tema previamente informado e entrevista com enfoque pedagógico. O/a professor/a e o/ monitor/a quando selecionado/a é responsável, com orientação pedagógica da coordenação do projeto, pelo planejamento, desenvolvimento e avaliação do processo de ensino. A partir deste ano, estendemos a participação aos educandos (as) da EJA na seleção de novos/as professores/as, monitores/as, pois a partir de reuniões cuja pauta foram os Processos Seletivos, decidimos conjuntamente que estas pessoas são capazes de avaliar e decidir quem serão os(as) seus (suas) professores(as), monitores (as). Para subsidiar as aulas, os/as professores/as, monitores/as recebem a orientação acerca da Proposta Pedagógica do projeto que se pauta nos Parâmetros Curriculares do Ensino Médio em concomitância com a Educação de Jovens e Adultos defendida pelo educador Paulo Freire que implica uma leitura de mundo que precede a leitura da palavra. Toda leitura da palavra pressupões uma leitura anterior do mundo, e toda leitura da palavra implica a volta sobre a leitura do mundo, de tal maneira que “ler o mundo” e “ler a palavra” se constituam em um movimento que não há ruptura em que você vai e volta. E “ler o mundo” e “ler a palavra” 66 no fundo, para mim, implica “reescrever”, Reescrever, com aspas, quer dizer transformá-lo. (FREIRE; BETTO, 2001 , p.1 5) As orientações são recebidas e discutidas antes de iniciarem as aulas e durante todo o ano letivo. A primeira delas é a adequação ao público alvo, que são todas pessoas adultas capazes de se responsabilizarem pelas suas decisões e pela sua aprendizagem. Portanto, a permanência dos/as educandos se vincula aos conteúdos desenvolvidos em sala, e estes devem contribuir para papel social que cada um desempenha. Neste sentido, é preciso considerar a experiência de vida e os conhecimentos acumulados das pessoas adultas, que diferem dos das crianças. A segunda orientação é a condição de trabalhadores e trabalhadoras que se vincula à totalidade do tempo para a aprendizagem, pois estes adultos, primeiramente, são pais e mães, filhos e filhas, esposos e esposas, que precisam trabalhar para garantir o sustento da família e, secundariamente, são educandos(as). Neste sentido, a orientação é que os/as professores/as não enviem trabalhos para casa ou pesquisas mais elaboradas e que se concentrem no momento das aulas. A terceira orientação é acerca dos sujeitos que compõem a turma. Atualmente ela é composta por mulheres, homens, jovens, adultos, negros (as), indígenas, brancos, funcionário (a) público, pessoa desempregada, pastor de Igreja, etc. Uma turma diversa, que devem ter as suas diferenças respeitadas, ao mesmo tempo em que os seus direitos garantidos. A quarta orientação se refere às altas expectativas que devem ser depositadas nestas pessoas jovens e adultas, cabendo ao quadro docente acreditar na capacidade destas pessoas para realizarem o planejamento das suas aulas. 67 Ao serem consideradas todas estas orientações, vale apontar os objetivos do projeto que são: criar condições para que os servidores públicos da UFSCar frequentem a EJA garantindo a oportunidade de concluir o Ensino Médio e ser certificado por isso; propiciar uma formação crítica aos/as estudantes para que possam efetivamente se inserir na atual sociedade da informação e lutarem pela superação de todas as formas de preconceito, seja por idade, escolaridade, gênero, ou raça e contribuir para a formação sociocultural e profissional de estudantes de graduação e pós-graduação da UFSCar, por meio de sua participação em um processo completo de planejamento curricular, ministração de aulas e avaliação dos/as educando/as. Para garantir a contribuição na formação dos professores/as e estudantes da UFSCar, temos as reuniões pedagógicas e grupos de estudos. Tais práticas trazem consigo especificidades que intensificam os processos educativos entre coordenação e educadores (as) devido a troca de diferentes saberes entre indivíduos de diferentes origens, idades, formações e profissões, sejam monitores (as), educadores (as) ou coordenadoras, todos focados (as) em proporcionar uma formação de máxima qualidade para os educandos (as). Tais especificidades da Educação de Jovens e Adultos intensificam a reflexão dos educadores em formação. Nesse contexto, as reuniões pedagógicas e os grupos de estudos são os espaços nos quais se discutem tais trocas e se tomam decisões, constituindo-se processos educativos diversos. No último semestre, o tema diversidade ganhou destaque com diferentes aprofundamentos, seja perante os aspectos religiosos, étnicos e raciais, de gênero, das diversas formas de se aprender. Este tema ganhou destaque devido a heterogeneidade da turma e a necessidade de uma educação em que se respeite em todas as pessoas 68 as diversas formas de ser, de viver e de estar no mundo. Vale destacar, que acreditamos que a diversidade dos educandos/as propicia uma troca de saberes riquíssima em que todos/as aprendem, pois compreendemos que quanto maior a diversidade, maiores são as aprendizagens. Diante desta breve apresentação dos sujeitos que compõem o Projeto EJA UFSCar, assim como a metodologia empregada para a formação de professores (as), como resultados podemos apresentar a partir das memórias das reuniões pedagógicas e dos grupos de estudos, a preocupação dos educadores/as e coordenadoras com a formação integral dos alunos, com a certificação destes/as, com o incentivo para permaneceram estudando, com o desenvolvimento pessoal, emocional, social e intelectual de cada uma destas pessoas, com destaque para a preocupação constante em ajudá-los/as a superarem todos os obstáculos presentes nesta nova caminhada. Em relação à formação dos estudantes de graduação e pós-graduação podemos destacar a ênfase ao olhar cuidadoso e respeitoso perante todos os tipos de diversidade presente nas interações em sala de aula e a busca contínua pela valorização de todos os saberes, assim como a inserção da temática nos planejamentos didáticos. Neste sentido, o valor das reuniões pedagógicas e, principalmente do grupo de estudos, na produção e reconstrução de conhecimentos a partir dos olhares diversos entre cada docente em relação aos educandos ou mesmo a concepção de EJA como um modelo de educação social, aponta para um crescimento formativo tanto pessoal como profissional de todas as pessoas envolvidas. Para finalizar este relato, apontaremos alguns depoimentos dos/das educandos (as) em relação à importância da EJA para a vida enquanto realização pessoal. Eles e elas citam a Educação de Jovens e Adultos como uma experiên69 cia engrandecedora, que abriu muitos caminhos e mudaram a forma de pensar acerca de diversos assuntos, relembram as dificuldades que enfrentaram quando voltaram a estudar, mas enfatizam que conseguiram vencer os obstáculos e que valeu a pena pelas relações que estabeleceram e pelo conhecimento adquirido. Como desdobramento deste projeto, destacamos a inserção de uma aluna em um curso técnico oferecido pelo Instituto Federal de São Paulo, campus São Carlos além de ter sido aprovada para cursar graduação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) campus Araraquara. Portanto, o Projeto que tem como meta para meados de 201 4 a formação de mais uma turma de Ensino Médio, e a continuidade de formação de estudantes de graduação e pós-graduação, que mesmo inseridos em cursos de Licenciatura não obteriam em nenhum momento uma formação específica em EJA, cabendo à coordenação fomentar as discussões teóricas a partir da prática vivenciada em sala de aula. Referências Este relato foi escrito a partir do Projeto Político Pedagógico que embasa o Projeto de Educação de Jovens e Adultos da UFSCar, assim como das memórias das reuniões pedagógicas e dos grupos de estudos. FREIRE, Paulo & BETTO, Frei. Essa Escola Chamada Vida: depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho . São Paulo: Editora Ática, 2001. 70 artigo TERTÚLIA LITERÁRIA DIALÓGICA: POSSIBILIDADE DE SUPERAÇÃO DO EDISMO NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS Aline Vanessa Gavioli 1 Resumo O presente artigo trata sobre o surgimento das concepções edistas e decifitárias e suas influencias sobre o campo da Educação de Adultos no Brasil, principalmente nos âmbitos políticos e nos modelos educacionais implantados até a década de 90. Para superar tais concepções buscou-se na teoria da Aprendizagem Dialógica e nas práticas da Tertúlia Literária Dialógica ferramentas que contribuam para pensar e elaborar novos modelos de Educação de Jovens e Adultos. Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos, Edismo e Tertúlia Literária Dialógica Pedagoga formada pela Universidade Federal de São Carlos, mestranda em Educação pela UFSCar e coordenadora de um Centro de Educação e Convivência Infantil no município de Holambra-SP. E-mail: aline_vanessa88@ yahoo.com.br 1 71 Introdução e objetivos O presente artigo é resultado do trabalho de conclusão de curso, realizado no ano de 2009, como um dos prérequisitos para a obtenção do título do curso de licenciatura em pedagogia, pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Gostaria de ressaltar que tal trabalho só pode ser realizado devido à caminhada que trilhei durante a maior parte da minha graduação junto ao Núcleo de Investigação e Ação Social e Educativa (NIASE), na qual pude participar de muitas vivências junto a Educação de Jovens e Adultos (EJA), e das quais destaco principalmente a participação nas Tertúlias Literárias Dialógicas2 (TLD) com pessoas adultas, as quais me aproximaram de muitas questões e desafios enfrentados pela EJA e seus/suas educandos/as ao longo da história e no contexto atual. Ao mesmo tempo, também pude perceber que havia a possibilidade de superação de muitos desses obstáculos que estavam colocados no campo da Educação de Adultos quando tive contato com a Teoria da Aprendizagem Dialógica3, que orientava as práticas das Tertúlias e dos demais trabalhos desenvolvidos pelo Núcleo. Uma dessas questões me instigou a realizar um esA atividade de TLD pode ser definida, usando as palavras de Flecha e Mello como: uma atividade cultural e educativa desenvolvida em torno da leitura de livros da literatura Clássica Universal. Destinada a pessoas sem formação universitária, foi criada há vinte e cinco anos, na Escola de Educação de Pessoas Adultas da Verneda de Sant-Martí, em Barcelona/Espanha, por educadores e educadoras progressistas, em conjunto com participantes da escola, homens e mulheres que estava iniciando ou retomando sua escolaridade. (FLECHA & MELLO, 2005, p. 29). 3 Centro Especial de Investigação em Teorias e Práticas Superadoras de Desigualdade - CREA, da Universidade de Barcelona (Espanha), conjuntamente com pessoas adultas da escola Verneda de San Martí. 2 72 tudo mais aprofundado, interessado em compreender como as teorias de déficit de aprendizagem podem ter influenciado a EJA em nosso país, mostrando, historicamente, indícios de seu impacto direto na legislação e nos modelos educacionais. Além dessa denúncia, o trabalho também se preocupou em anunciar novas possibilidades para a Educação de Adultos, vislumbrando, com base uma teoria sólida, a possibilidade de superação de todo um passado que dizia que pessoas com determinada idade não eram mais capazes de aprender. Para realizar a discussão proposta, os objetivos deste trabalho buscaram identificar as principais teorias edistas e de déficit produzidas no século XX e suas possíveis influências educacionais no Brasil; para isso foi preciso traçar um breve panorama da situação política da EJA no nosso país, baseado em suas principais leis, identificar as possíveis concepções edistas4 que estas carregavam e o reflexo desta legislação nos modelos educacionais de Educação de Jovens e Adultos e por fim buscou-se localizar nas Tertúlias Literárias Dialógicas e a teoria da Aprendizagem Dialógica possibilidades de reversão deste quadro. Superar teorias que advogam a incapacidade de aprendizado dos sujeitos da EJA é um tema relevante, já que o que se tem observa neste trabalho é a adoção dessas teorias para a formulação de modelos educacionais, que desfavorecem o fortalecimento sócio político e pedagógico da EJA. Metodologia Como metodologia foi utilizada a pesquisa bibliográ4A palavra edismo provém da língua espanhola e ela, assim como suas variações, foram adotadas no trabalho realizado, por exprimirem, em uma só palavra o termo “discriminação por idade”. 73 fica, pois esta se mostrou mais adequada aos objetivos que o trabalho se propunha alcançar. Essa metodologia, segundo Lima e Mioto permite “um amplo alcance de informações, além de permitir a utilização de dados dispersos em inúmeras publicações, auxiliando também na construção, ou na melhor definição do quadro conceitual que envolve o objeto de estudo proposto” (2007, p. 40). Para a realização do trabalho foi trilhada a seguinte sequência metodológica, que também é indicada por Lima e Mioto (2007): a elaboração do projeto, com a elaboração da questão de pesquisa e plano de busca das respostas das questões; depois passou-se para investigação das soluções, que consistiu na coleta da bibliografia que abordava o assunto a ser discutido5, em um terceiro momento foi realizada a análise dessa bibliografia e por fim foi realizada a síntese integradora, o produto final, que, orientado pelo referencial teórico adotado, possibilitou uma reflexão mais aprofundada sobre a questão apresentada. Teorias edistas e sua infuência na educação de jovens e adultos A discussão das teorias de déficit e edistas realizadas no trabalho tiveram como principal base Medina (1 997), que aponta que tais concepções, derivadas da psicologia, tiveram forte impacto nos modelos educacionais, principalmente no campo da Educação de Jovens e Adultos. Para o autor de referência a psicologia contribui com Tomou-se como base para discutir a questão do edismo e da teoria dos déficits Medina (2007), para traçar o panorama histórico político da EJA no Brasil a grande fonte foram as discussões levantadas por Di Pierro e Haddad (2000) e para as elaborações sobre a superação das teorias edistas, a Tertúlia Literária Dialógica e a Aprendizagem Dialógica foram usadas as publicações produzidas pelo Centro Especial de Investigação em Teorias e Práticas Superadoras de Desigualdade (CREA) e pelo Núcleo de Investigação e Ação Social e Educativa ( NIASE) 5 74 concepções e teorias que influenciam diretamente muitos âmbitos sociais e aponta que resultados obtidos em algumas investigações psicométricas (que usam a estatística para mensurar fenômenos psicológicos), assim como certas interpretações da teoria piagetana, tradicionalmente têm influenciado negativamente o modelo de educação de adultos. Além disso, o autor indica que a psicologia se tornou um instrumento que capacita e influencia a prática docente, pois muitas das inquietações das salas de aula buscam respostas no campo psicológico. O grande tema tratado pelo autor são as medições da inteligência humana, que ele discute tendo como referência LEHR (1 979). Segundo Medina (op.cit.) tais testes são alavancados com o desenvolvimento do teste de Q.I (Quociente de Inteligência), criado por Binet e Simon em 1 904 e que foi, por muito tempo, muito utilizado. De acordo com o autor (1 997, p.1 30), em 1 921 , Yarkes, psicólogo que aplicou testes de inteligência em soldados americanos, divulgou o resultado de suas pesquisas que apontavam que o decréscimo da inteligência podia ser explicado pela idade da pessoa. Para Medina (op. cit.), principalmente o teste de Bellevue, realizado por Wechsler na década de quarenta, apontava para a existência de um “ponto máximo de capacidade de rendimento intelectual em na terceira década da vida e logo uma descida mais ou menos acentuada” (LEHR, 1 979 apud MEDINA, 1 997, p.1 30). O autor aponta as consequências destes testes para a concretização, no campo da psicologia, de um modelo deficitário6 que acredita que ao longo da vida adulta se produz uma perda intelectual. Segundo ele, com o tempo, esse modelo “foi gerando atitudes sociais negativas sobre a vida adulta e a relação com o processo de envelhecimento”. (MEDINA, 1 997, p.1 31 ) 75 Já em 1 960 o autor aponta para uma discussão teórica entre Horn e Donaldson, os quais acreditavam que era real o modelo dos déficits, e Baltes e Schaie, que consideravam este modelo como um mito ou como um estereótipo social. De acordo com Medina (1 997, p.1 32), os debates contribuíram para se pôr em discussão vários problemas teóricos e metodológicos que rondavam o modelo do déficit, tais como os métodos transversais e os longitudinais. De acordo com o autor o que se coloca em discussão é que no método transversal aplica-se um teste de inteligência, em um dado momento, a pessoas de gerações distintas. Medina (op. cit) discute que nesse tipo de teste estão sendo comparadas pessoas de diferentes gerações, as quais receberam também educação diferente umas das outras. Já no método longitudinal, são aplicados testes para os mesmos indivíduos em diferentes fases da sua vida para observar as mudanças que os sujeitos produzem em um determinado período. Outro debate que contribuiu para a reflexão sobre o tema foi levantado por Catell (1 963) nos anos 60. Medina (1 997) discute que suas pesquisas buscaram diferenciar inteligência fluida e cristalizada, sendo a primeira ligada à base fisiológica e a segunda relacionada à cultura. Nesse sentido, todos/as estamos sujeitos/as a sofrer danos na inteligência fluida, já que esta está diretamente ligada às nossas bases fisiológicas. No entanto a inteligência cristalizada, que tem uma base neurológica mais fluida, tente a se expandir quanto mais experiências passamos. O autor discute como sendo modelo de déficit aquele que indica que: Ao longo da vida adulta se produz um declive intelectual o que, com o tempo, foi gerando atitudes sociais negativas sobre a vida adulta e a relação com o processo de envelhecimento. Especialmente tem se mostrado relevantes nesta concepção as curvas dos subtestes da prova de Wechsler que, na opinião de Lehr, foi popularizado de tal modo que quiçá tenha a principal “culpa” sobre o modelo dos déficits (MEDINA, 1 997, p.1 31 ). 6 76 Medina (1 997) destaca também a influência negativa da teoria sobre operações formais, formulada por Piaget, para a concepção de educação de adultos. Principalmente em se tratando da subteoria do pensamento formal ou as características da inteligência próprias das operações formais. Segundo ele, Piaget defende que o pensamento humano se desenvolve desde o nascimento até a juventude, cristalizando-se ai para o resto da vida. Ressalta-se aqui que apesar de ser possível deduzir dos estudos piagetianos sobre o desenvolvimento que depois da adolescência não acontecem mudanças importantes no pensamento formal, e de Piaget ressaltar o estudo da infância para compreender a gênesis do adulto, o mesmo autor nunca disse que na idade adulta havia uma perda intelectual. Outra teoria que embasou modelos negativos de EJA tem suas bases na Psicologia Evolutiva. Segundo Medina (1 997), na época em que se desenvolvia essa teoria havia um enfoque muito grande no estudo das crianças e dos adolescentes, pois se tratava de um período no qual estava ocorrendo a entrada maciça desse público nas escolas. Todas essas teorias acabaram contribuindo para se associasse desenvolvimento a crescimento, e quando não há crescimento, deduzia-se, não há mudanças. Isso, de acordo com Medina (1 997), também foi um dos fatores que influenciaram para que a Educação de Jovens e Adultos fosse colocada em segundo plano, pois a prioridade eram as crianças e adolescentes, únicas nas fases nas quais, supostamente, ocorriam mudanças. Medina (idib) discute que também há a idéia de que existem períodos críticos. Se algumas mudanças não acontecem dentro desses períodos, elas não acontecem mais, pois as evoluções ocorridas nas etapas de desenvolvimento ficariam gravadas em programas maturativos dos genes dos 77 indivíduos. A idéia da existência de períodos críticos faz com que os cuidados com o ensino às crianças se redobrem. O autor (op. cit) argumenta que essa concepção pode dar base ao entendimento de que se um adulto não aprendeu algo em um dado momento de sua vida, ele não conseguirá mais aprender. A concepção de velhice dos estudos também é discutida. Segundo ele, ela é associada tradicionalmente a estados patológicos. A visão da psicologia sobre a velhice aponta para uma época em que há dificuldade para a adaptação e para a assimilação de conteúdos novos, pois a perda da memória nesse período é recorrente. De acordo com Medina (1 997, p. 1 41 ), a conseqüência dessas concepções na política educativa é a centralização dos recursos na infância e na adolescência, pois, como já se discutiu acima, estes seriam os únicos períodos em que o indivíduo se desenvolveria. De acordo com essas teorias, estas também seriam as fases da vida em que é preciso ter uma interferência maior, para direcionar as mudanças que estão acontecendo. Se há uma intervenção nos momentos de mudança, seriam produzidos indivíduos com uma vida adulta estável. Para Medina (op.cit.), as aprendizagens das pessoas adultas limitaram-se ao ensino de um ofício ou à alfabetização, ignorou-se a instrumentalização social e política e pensou-se no adulto como um sujeito enfermo, para o qual a educação tem apenas que curar ou compensar as deficiências. Além desses fatores, Medina (1 997, p. 1 42) denuncia a indiferenciação entre modelos escolares de crianças e adultos, discutindo que desde quando a infância passou a ser reconhecida como uma fase da vida há travas nas pesquisas de diferenciação dos adultos que necessitam ser superadas. Para Medina (1 997, p. 1 42), essas concepções dão 78 base a um sistema educativo que não dá importância para a aprendizagem dos adultos, esta é limitada a um ensino compensatório e instrumental, que não é prioritária. Isso pode ser observado no histórico da EJA no Brasil, que sofreu, ao longo do tempo, processos políticos que entre outras coisas a colocava em segundo plano, não levava em conta sua especificidade e não faziam um investimento nessa modalidade educacional. A educação de joves e adultos no Brasil: breve retomada histórica Para discorrer sobre a Educação de Jovens e Adultos no Brasil faz-se necessária, antes, uma discussão histórica, abordando os pontos considerados mais relevantes no percurso da EJA. Pretende-se apontar como o modelo escolar brasileiro de Educação de Jovens e Adultos vem se constituindo no período que abrange 1 934 até a atualidade. Segundo Di Pierro e Haddad (2000, p. 11 0), foi apenas na Constituição de 1 934 que a Educação de Jovens e Adultos apareceu, de modo explícito, na esfera jurídica brasileira. A autora e o autor relatam que em 1 964, com a ditadura militar, a qual teve como discurso a potencialização do país em todos os seus setores, cria-se o Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), pela Lei 5379, de 1 5 de dezembro de 1 967. A autora e o autor (2000, p. 11 5) discutem que esse movimento teve o intuito de livrar o Brasil da “chaga” do analfabetismo, tido como uma vergonha nacional, um mal para o país. Este mesmo governo, de acordo com Di Pierro e Haddad (2000, p. 11 6), também assegurou juridicamente o ensino supletivo, o qual era independente do sistema regular e visto como um preparador de mão-de-obra, ou, como o 79 próprio nome expressa, um meio para suprir a falta de trabalhadores qualificados profissionalmente, contribuindo, dessa forma, para o desenvolvimento nacional. Na formulação da autora e do autor (2000, p. 11 7), este tipo de educação foi realizado como um modo de fazer com que os adultos recuperassem o atraso, ou seja, era uma concepção de educação compensatória. Em 1 988, após o país sair do período militar em que se encontrava, foi promulgada a Constituição Federal, por meio da luta de diferentes atores pela democracia. Esta Constituição garantiu alguns direitos importantes para os sujeitos da Educação de Jovens e Adultos, tais como: “ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive na sua oferta gratuita para todos os que não tiveram acesso na idade própria.” (BRASIL, 1 988, art. 208). Além deste artigo, o parágrafo VI da Constituição trata de formas de adequar a educação à participação dos adultos e garante a oferta do ensino regular noturno, e o Parágrafo VIII trata de programas suplementares que atendesse aos estudantes, como: transporte, alimentação, saúde e material didático. Esta nova concepção da educação, na Lei, fez com que, de acordo Di Pierro e Haddad (2000, p. 1 20), o Mobral fosse substituído pela Fundação Educar – Fundação Nacional para a Educação de Jovens e Adultos, a qual apoiava empreendimentos inovadores, de prefeituras ou mesmo da sociedade civil. Mas, como observa a autora e o autor (2000, p. 1 21 ), em 1 990, o governo de Fernando Collor de Mello extinguiu a Fundação Educar e isentou a responsabilidade da União para com essa modalidade escolar, procurando, assim, retirar subsídios estatais da Educação de Jovens e Adultos. Em 1 993, o Brasil apresentava-se entre os nove países do planeta que mais contribuíam para o elevado número 80 de analfabetos. Em 1 996, foi aprovada a Lei N° 9394 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Esta Lei integrou organicamente a Educação de Jovens e Adultos ao ensino básico comum. Porém, se de um lado houve essa integração de ensino, por outro, não existiu uma determinação do público-alvo e houve uma diluição das especificidades pedagógicas, ou seja, esta modalidade passou a ter sua base curricular igualada ao do ensino básico regular. Estes aparentam ser alguns dos resultados da nova forma da educação básica da EJA no Brasil. É importante destacar o que Franzi (2007) discute sobre a atual situação da Educação de Jovens e Adultos. Segundo ela, embora o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) seja uma importante conquista para a EJA, no Brasil, historicamente, há um quadro que aponta para o descaso com esta modalidade de educação. O argumento remete ao número expressivo que se tem de campanhas emergenciais e a despreocupação com o oferecimento desta modalidade de ensino pelo governo. Vale analisar que além do descaso com a Educação de Jovens e Adultos, temos indícios de que ela seja marcada por uma concepção compensatória de educação, ou seja, uma educação que concebe o sujeito deva recuperar o que não foi apreendido ao longo de sua infância. Tendo em vista não perder o enfoque crítico, até para que não se repita um modelo educacional de EJA pautado na educação compensatória coloca-se em discussão a Tertúlia Literária Dialógica como teoria-ação que se contrapõe a estes modelos educacionais e que pensa uma nova EJA. A tertúlia literária dialógica e a busca por uma nova EJ A Tertúlia Literária Dialógica tem sua base conceitual 81 na fixada na teoria da Aprendizagem Dialógica (A.D). Tal elaboração teórica está embasada nas teorias de Dialogicidade de Freire (1 994, 2005), e de Ação Comunicativa, de Habermas (1 987). Estas teorias pautam os sete princípios fundamentais da Aprendizagem Dialógica, que são: diálogo igualitário, inteligência cultural, transformação, dimensão instrumental, criação de sentido, solidariedade e igualdade de diferenças. -Diálogo Igualitário: está pautado na teoria da Ação Comunicativa, pois para se chegar ao consenso, valem as argumentações e o poder dos argumentos e não a posição de poder do falante. - Inteligência Cultural: Flecha (1 997) assinala que o conceito de inteligência cultural é muito importante para a compreensão de que não existem pessoas que são menos inteligentes que outras, mas possuem inteligências distintas, expressas em diferentes contextos e de diferentes maneiras. -Transformação: nas palavras de Flecha (1 997): A aprendizagem dialógica transforma as relações entre as pessoas e seu entorno. - Dimensão Instrumental: de acordo com Cherfem (2009, p.74), este princípio está relacionado com o conhecimento. Fazer Aprendizagem Dialógica não significa excluir conhecimentos técnicos e científicos. A diferença está em que os objetivos e procedimentos destes aprendizados são definidos com as pessoas e não sobre ou para elas (CHERFEM, 2009, p.74). - Criação de Sentido: sobre este princípio, Flecha (2007, p.35) argumenta que estamos frente a uma sociedade dirigida pelo dinheiro e pelo poder, os quais buscam controlar todos os âmbitos de nossas vidas. Podemos nos tornar mais um produto da evolução técnica. Por isso é importante o diálogo igualitário, para superar a perda de sentido pela 82 qual passamos. - Solidariedade: é outro princípio importante segundo Flecha (1 997, p. 39), pois é somente nela que se podem fundamentar as práticas educativas igualitárias. Para Cherfem (p. 75, 2009), essas práticas são importantes quando queremos construir relações que priorizem a participação e a mudança de vida de todas as pessoas. - Igualdade de Diferença: Flecha (1 997, p.42) discute que a aprendizagem dialógica se orienta pela igualdade de diferenças, afirmando que a verdadeira igualdade inclui o mesmo direito de toda pessoa viver de forma diferente. Os princípios da Aprendizagem Dialógica, discutidos acima, são os mesmos que pautam a atividade de Tertúlia Literária Dialógica, na qual destaca-se o desenvolvimento de transformação pessoal e do entorno para a superação de barreiras sociais, culturais e escolares, como as concepções edistas. A atividade mostra que, todas as pessoas, em todas as idades, são capazes de leitura, compreensão e aprendizagem. Para se ter melhor dimensão da Tertúlia, é importante explicitar o que ela é. De acordo com Flecha & Mello (2005, p. 29) A Tertúlia Literária Dialógica é uma atividade cultural e educativa desenvolvida em torno da leitura de livros da literatura Clássica Universal. Destinada a pessoas sem formação universitária, foi criada há vinte e cinco anos, na Escola de Educação de Pessoas Adultas da Verneda de Sant-Martí, em Barcelona/Espanha, por educadores e educadoras progressistas, em conjunto com participantes da escola, homens e mulheres que estavam iniciando ou 83 retomando sua escolaridade. Seu funcionamento ocorre basicamente da seguinte maneira: A tertúlia literária dialógica se reúne em sessão semanal de duas horas. É decidido conjuntamente o livro e a parte a comentar em cada próxima reunião. Todas as pessoas lêem, refletem e conversam com familiares e amigos durante a semana. Cada uma traz um fragmento escolhido para ler em voz alta e por que lhe é especialmente significativo. O diálogo se constrói a partir dessas contribuições. Os debates entre opiniões diferentes se resolvem só por meio dos argumentos. Se todo o grupo chega a um acordo, se estabelece como a interpretação provisoriamente verdadeira. Se não chega a um consenso, cada pessoa ou subgrupo mantém sua própria postura, não há nada que marque a concepção certa ou a errada em função de sua posição de poder (FLECHA, 1 997, p. 1 7-1 8). O diálogo igualitário possibilita que todas as pessoas tenham os mesmos direitos de fala, pois se entende que todos os argumentos são válidos por seu valor e não pela posição de poder que ocupam as pessoas e pela inteligência cultural, na qual as pessoas podem se compreender como possuidoras de inteligência. Ao contrário do que certas concepções psicológicas defendem, as pessoas adultas podem se sentir mais confiantes para superarem todos os estereótipos sociais, principalmente os referentes às suas capacida84 des de aprendizagem e sua inteligência. Girotto e Mello (2007, p. 5) argumentam que todas as pessoas têm inteligência cultural, e que, para demonstrá-la nas interações sociais, é preciso que haja oportunidades e condições. Ocorre desigualdade quando a sociedade dá mais valor a um conhecimento e se desvaloriza outro. É preciso, de acordo com as autoras, romper com essa ordem e dialogar com base na inteligência cultural. Por isso, na Tertúlia, é tão importante o poder dos argumentos frente aos argumentos do poder. Não detém a verdade quem é um acadêmico e/ou doutor. É só através do diálogo que se pode chegar a uma argumentação livre de relações ideológicas e que priorize os melhores argumentos ao invés da valorização da fala por conta da posição de poder que a pessoa que argumenta ocupa. Nas Tertúlias as pessoas são estimuladas a se tornarem sujeitos de sua aprendizagem ao invés de serem objetos da docência ou da pessoa que tem mais prestígio e proteção social. Flecha (p. 75, 1 997) discute que cada argumento possui o mesmo valor formal, mas sua influência dependerá das informações, argumentos e reflexões que possui. Todos os princípios ajudam a transpor barreiras na educação de adultos, mas destacamos aqui principalmente a inteligência cultural e a dimensão instrumental, princípios que, na Tertúlia, respaldam os/as participantes a ultrapassem muros antidialógicos, por meio da compreensão de que possuem muitos conhecimentos importantes e que são capazes de sempre aprender. Flecha (1 997, p.20) assinala que o conceito de inteligência cultural é muito importante para a superação de teorias de déficits, especialmente aquelas que se referem aos adultos, como os estudos quantitativos sobre a diminuição da inteligência depois da juventude e a aplicação, para a vi85 da adulta, da teoria do desenvolvimento para a infância e a adolescência. A discussão feita por Flecha (ibid.), apoiado em teóricos como Freire, é de que as pessoas adultas têm capacidades cognitivas diferentes, mas nunca inferiores. O princípio da inteligência cultural, de acordo com Flecha (1 997, p. 22) considera que todas as pessoas, independente da sua idade, são capazes de linguagem e ação, podendo, portanto, desenvolver-se por meio de suas interações sociais. O princípio da dimensão instrumental também é importante para a superação de concepções edistas, já que, de acordo com Flecha (2007, p. 33), diversas teorias edistas não consideram importante a formação técnica na educação de pessoas adultas por considerar que, na vida adulta, a capacidade para aprendizagens já está deteriorada. Por isso, reforça-se o princípio da dimensão instrumental, pois se entende que os adultos possuem diversas aprendizagens e podem construir muitas outras. De acordo com Flecha (1 997), as vivências das pessoas adultas na sociedade em diferentes práticas sociais não lhes conferem menos saberes do que se estivessem freqüentando salas de aula. Dessa forma, com esta dinâmica e seguindo os princípios da Aprendizagem Dialógica, a Tertúlia Literária Dialógica é um espaço em que muitas questões de exclusão que as pessoas sofrem socialmente podem ser superadas. Como coloca Girotto (2007, p. 74), na Tertúlia as pessoas criam novamente sentido nas suas vidas, pois ganham dimensão de quanto sabem, e podem ler livros de literatura clássica universal, que por muito tempo não lhes eram disponíveis pela crença na idéia de que eles seriam incapazes de conseguir ler determinados livros. Assim, na concepção aqui abordada, temos a ativi86 dade de tertúlia em EJA como uma busca de transformações das chamadas “incapacidades” em possibilidades e por isso mostra-se como uma teoria-ação que tem muita potencia para superação de concepções e modelos deficitários e edistas. Resultados Foi visto que há teorias, principalmente no campo da psicologia, que embasaram concepções compensatórias de EJA e que estas também podem ter se refletido na legislação brasileira. Apesar de haver estudos demonstrando o declive da inteligência adulta, é muito perceptível que as duas principais teorias que influenciaram modelos educacionais edistas contêm erros em sua metodologia de pesquisa (desconsiderando idade e geração, no caso da pesquisa de Whechler) ou uma interpretação equivocada de pesquisas de desenvolvimento de crianças (no caso, o que ocorreu com a teoria de desenvolvimento de Piaget). Com os resultados (errôneos) obtidos por pesquisas como a de Whechler e uso indevido de teorias, como a de Piaget, pôde-se justificar o uso de modelos de educação compensatória na EJA, dando aos jovens e adultos uma educação de mínimos7. No Brasil observamos isso historicamente, através de leis e modelos educacionais que desconsideram a especificidade da EJA, marcados pela falta de investimentos na modalidade e pela oferta de uma educação de mínimos. Vimos isso de modo mais explícito no governo mili7 Diante de tudo o que foi discutido até o presente momento, faz-se importante ressaltar que a psicologia não é produtora de desigualdades em si, mas há diferentes formas de fazer esta ciência. Esta, sendo dialógica, e articulada a outros campos da explicação do real (como a sociologia, a lingüística, etc) tem potencialidade para superar desigualdades e favorecer políticas de criação de uma nova EJA. 87 tar, no qual Mobral e o ensino supletivo serviam apenas para que os adultos recuperassem o “atraso” (DI PIERRO & HADDAD, 2000, p. 11 7), tendo um caráter de educação compensatória. Já em 1 990, a extinção da Fundação Educar e a retirada de recursos da EJA continuaram mostrando a falta de comprometimento com essa modalidade educativa. Mesmo com os avanços da aprovação da LDB em 1 996, a qual agregou a Educação de Jovens e Adultos ao ensino básico comum, a modalidade continuou sem especificidade pedagógica e sem definição de seu público. Mesmo estando em um momento diferente para a EJA, seu passado nos mostras como estas teorias edistas tiveram um domínio de boa parte de sua história no Brasil, visto o número expressivo que se teve de campanhas emergenciais e a despreocupação com o oferecimento formal desta modalidade de ensino. Buscando superar as concepções edistas e deficitárias identifica-se na atividade de Tertúlia Literária Dialógica e na teoria da Aprendizagem Dialógica possíveis caminhos para pensar um novo modelo de EJA. O que foi discutido até agora mostra que a atividade de Tertúlia pode ser instrumento que possibilite à superação de barreiras antidialógicas, principalmente aquelas relacionadas a concepções da incapacidade de aprendizagem adultas, formuladas por várias teorias de maneira equivocada. O princípio da inteligência cultural, que se instaura nas bases teóricas da Tertúlia, se mostra fundamental para a superação daquelas barreiras, pois permite compreender que todas as pessoas são capazes de linguagem e ação, que vão ser desenvolvidas nas interações sociais pelas quais passamos. Esse mesmo princípio possibilita o entendimento de que todas as pessoas possuem saberes diferentes e os ex88 pressam em diferentes âmbitos sociais, e que a desvalorização da capacidade de aprendizagem de adultos ocorre porque, socialmente alguns saberes valem mais que outros. O que ocorre é o fato da sociedade não acreditar que pessoas adultas que estão em processo de aprendizagem ou que pessoas de camadas socialmente mais desfavorecidas, não sejam capazes de ler livros de literatura clássica. Já a dimensão instrumental nos remete à compreensão de que os adultos são capazes de realizar diferentes aprendizagens, entre elas, as escolares e também política sociais, as quais algumas concepções deficitárias tentaram negar. A dimensão instrumental também é importante para entendermos que, para compartilhar de forma intersubjetiva nossa compreensão da palavra e do mundo, saibamos também decodificar as letras e entendê-las. A Tertúlia Literária Dialógica busca se contrapor aos modelos edistas que podem estar presentes na Educação Jovens e Adultos e ser uma teoria-ação que embasa novas concepções na EJA, pensando capacidade de aprendizagem e potencialização dos educandos/as por meio dos saberes que eles/elas já possuem. Considerações finais Diante de tudo o que foi discutido e exposto até agora, destaco considerar a importância de nunca perder de vista que as teorias formuladas e o uso que fazemos delas podem provocar um impacto direto no âmbito da vida de muitas pessoas, esse é um dos motivos pelos quais é preciso buscar sempre a coerência e o cuidado com o que se faz academicamente. Não foram poucas nem pequenas as implicações das teorias dos déficits no campo da Educação de Jovens e 89 Adultos, no entanto é preciso ter consciência que elas existem e das implicações que provocaram para que se possa compreender a história da EJA de maneira mais crítica e fazer um movimento de mudança significativo entendendo toda a complexidade que envolve esse campo. A teoria da Aprendizagem Dialógica e sua concretização na Tertúlia Literária Dialógica, nos mostra que há possibilidades de pensarmos em novas formas de EJA, as quais, diferentemente de concepções edistas, entendam os adultos como sujeitos possuidores de inteligência, aos quais não cabe uma educação compensatória, mas sim uma educação dialógica, política e potencializadora de aprendizagens. Referências BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil . Diário Oficial, 1 988. CHERFEM, Carolina Orquiza. Mulheres marceneiras e a auto- gestão na economia solidária: aspetos transformadores e obstáculos a serem transpostos na incubação em assentamento rural . Dissertação de Mestrado. São Carlos,2009. DI PIERRO, Maria Clara; HADDAD, Sérgio. Escolarização de Jovens e Adultos. Revista Brasileira de Educação , São Paulo, Anped, n. 1 4, p. 1 08-1 30, mai.-ago, 2000. FRANZI, Juliana. Experiência e Educação: contribuições de Paulo Freire para a Educação de Pessoas Jovens e Adultas. 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Cadernos de extensão , v 1 , nº 2 .Boa vista, 2006. 92 artigo A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: ESTADO DA ARTE DAS DISSERTAÇÕES E TESES BRASILEIRAS Ana Lucia Masson Lopes (UFSCar) Claudia Raimundo Reyes (UFSCar) massonlopes@ gmail.com clreyes@ ufscar.br Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) Resumo Considerando que no Brasil há mais de 1 9 milhões de pessoas com 1 5 anos de idade ou mais na condição de analfabetismo, acredita-se na importância dos estudos desenvolvidos na área da educação de jovens e adultos como um dos aspectos fundamentais para as transformações, avanços e a democratização desta modalidade de ensino. Sob esta ótica, este artigo apresentará e discutirá o panorama de teses e dissertações defendidas entre os anos de 1 987 e 1 999. Realizou-se então, o Estado da Arte a partir do Banco de Teses da Capes, com o descritor “educação de jovens e adultos”. Verificou-se que os temas abordados referiam-se às políticas públicas, aos processos educativos, ao ensino da Língua Materna dentre outros. Ao identificar as pesquisas sobre a Língua Materna, buscou-se focalizar o 93 processo de ensino e de aprendizagem da alfabetização, pois partimos da premissa da necessidade de que as pesquisas com esta abordagem estejam mais presentes nos programas de pós-graduação. Os resultados demonstraram que o ensino da Língua Materna foi o segundo tema mais abordado, porém ainda é necessário sinalizar a importância da continuidade do pesquisar e de considerar-se parte deste, o processo de ensino e de aprendizagem da alfabetização, indicando como uma das metas das pesquisas em EJA, a possibilidade da reflexão de um trabalho conjunto entre todos os membros da sociedade civil, escolas, governo e universidades, frente à democratização da educação e da alfabetização de jovens e adultos. Palavras chave: Educação de jovens e adultos; Processo de ensino e de aprendizagem (Alfabetização); Estado da arte. Introdução Este artigo apresentará e discutirá o panorama de teses e dissertações defendidas entre os anos de 1 987 e 1 999, pois considera que, ao conhecer os temas abordados nas pesquisas de pós-graduação defendidas no Brasil, poderemos refletir sobre os avanços e os desafios de continuar a pesquisar nesta área da educação. O Estado da Arte poderá colaborar também como um referencial para orientações de trabalho nesta área de pesquisa, contribuindo para uma avaliação crítica da produção existente e na identificação dos avanços teóricos das temáticas relacionadas (MACHADO, 2000, p. 1 6). Segundo a autora, Há um desafio crescente para as universidades no sentido de garantir/ampliar os espaços para discussão da EJA, sejam 94 nos cursos de graduação, pós-graduação e extensão, sendo fundamental para isto considerar a produção já existente em Educação de Jovens e Adultos. É preciso ultrapassarmos os estágios a que já chegamos, no sentido de buscar melhor definição dos conceitos e aportes teóricos que referendam as pesquisas em EJA, assim como seus procedimentos metodológicos (2000, p. 1 6). Justificada a importância deste estudo que é um recorte de uma pesquisa de doutorado em andamento, avancemos na compreensão do analfabetismo no Brasil. Para entendermos a situação atual, é importante buscarmos na história alguns indícios sobre como a EJA configurou-se. A educação de jovens e adultos, na época do colonialismo, baseava-se na transmissão de conhecimentos de ofícios e de comportamento, além da evangelização dos índios. Na época do Império, segundo Porcaro (p. 1 ), com algumas reformas educacionais houve a sinalização da necessidade do ensino noturno para a alfabetização de adultos, sendo por muito tempo “a única forma de educação de adultos praticada no país”. Com o Ato Constitucional de 1 934, a responsabilidade da instrução primária e secundária ficou com as províncias, principalmente a modalidade da EJA. Porém, era carregada por princípios missionários e caridosos, “o letramento destas pessoas era um ato de caridade das pessoas letradas às pessoas perigosas e degeneradas” (Strelhow, 201 0, p. 51 ), transcendendo, com isso, do direito à educação para um ato de solidariedade. No período que antecede a República, com a Reforma Leôncio de Carvalho (1 879), o analfabeto foi caracterizado como dependente e incompetente. Com a Lei Saraiva 95 (1 881 ), houve a restrição do voto às pessoas alfabetizadas e, segundo Strelhow (201 0, p. 51 ) nesta época ocorreu uma “grande onda de preconceito e exclusão da pessoa analfabeta”, sendo que, a exclusão e a descriminação estavam garantidas na lei. O direito ao voto esteve vinculado ao direito à educação quando, no início do século XX, iniciou-se uma grande movimentação para acabar com o analfabetismo. Porém, o objetivo era econômico: a pessoa precisava se alfabetizar para ser produtiva ao país. Assim, a partir de 1 920, com o “movimento de educadores e da população em prol da ampliação do número de escolas e da melhoria de sua qualidade começou a estabelecer condições favoráveis à implementação de políticas públicas para a educação de jovens e adultos” (HADDAD; DI PIERRO, 2000, p. 11 0). Com a Constituição de 1 934, o papel do Estado em relação à educação reformulou-se, principalmente com a proposta de um Plano Nacional de Educação. Porém, somente na década de 40 a educação de adultos começou a ser tratada como um problema da política nacional 1. A partir daí, vários acontecimentos marcaram a educação de jovens e adultos, como: o II Congresso Nacional de Educação de Adultos no Rio de Janeiro (1 958) caracterizado pela preocupação de educadores/as em repensar sobre as características desta modalidade de ensino, pois a educação de jovens e adultos ainda era vista com traços da educação infantil; mudanças nos campos políticos e econômicos com o crescimento e internacionalização da economia brasileira; o Movimento de Educação de Base, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (1 961 ); o Movimento de Cultura Popular do Recife, a partir de 1 961 ; os Centros Populares de Cultura; a Um dos motivos para esta preocupação estava baseada, segundo Strelhow (201 0, p. 53), na “pressão internacional para a erradicação do analfabetismo nas ditas “nações atrasadas”. 1 96 Campanha De Pé no Chão Também se Aprende a Ler, da Secretaria Municipal de Educação de Natal; o Movimento de Cultura Popular do Recife; e, em 1 964, o Programa Nacional de Alfabetização do Ministério da Educação e Cultura. A partir dos movimentos, a força política da sociedade foi configurando-se, ganhando forma e ultrapassando o ato de ensinar a ler e a escrever, pois a ação política e o resgate à cultura eram as preocupações centrais da EJA. Infelizmente, com o golpe militar (1 964) houve uma ruptura política em função da qual os movimentos de educação e cultura populares foram reprimidos, seus dirigentes, perseguidos, seus ideais, censurados. O Programa Nacional de Alfabetização foi interrompido e desmantelado, seus dirigentes, presos e os materiais apreendidos (Haddad; Di Pierro, 2000, p. 11 3). Os programas de educação de jovens e adultos, com a sua visão política, divergiam dos interesses do governo militar e, com isso, ficaram nas mãos de pessoas e grupos da própria sociedade civil e, com o apoio do governo, com a Cruzada de Ação Básica Cristã. Porém, segundo Haddad; Di Pierro (2000, p. 11 4) a escolarização básica de jovens e adultos – não poderia ser abandonado por parte do aparelho do Estado, uma vez que tinha nele um dos canais mais importantes de mediação com a sociedade. Perante as comunidades nacional e internacional, seria difícil conciliar a manutenção dos baixos níveis de escolaridade da população com a proposta de um grande país, como os militares propu- 97 nham-se construir. Havia ainda a necessidade de dar respostas a um direito de cidadania cada vez mais identificado como legítimo, mediante estratégias que atendessem também aos interesses hegemônicos do modelo socioeconômico implementado pelo regime militar. Em 1 967, iniciou-se o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL). Este surgiu com o intuito de erradicar o analfabetismo em 1 0 anos e possuía três características importantes. A primeira delas era a equivalência com os demais programas educacionais e seus recursos não dependiam de verbas do orçamento da União. A segunda característica é a descentralização organizacional, sendo que Comissões Municipais eram responsáveis em executar campanhas, buscar pessoas analfabetas, providenciar os locais para as aulas, os professores e monitores Já a terceira característica, era a criação da Gerência Pedagógica do MOBRAL Central, concentrando a direção do movimento, organizando, programando, executando e avaliando todo o processo educativo, além de treinar as pessoas para o ensino das diferentes fases da educação. Sobre o material didático utilizado, empresas privadas foram contratadas e houve até a criação de um material nacional, sem respeitar a diversidade linguística, social, econômica, geográfica e cultural do nosso vasto Brasil. O MOBRAL sofreu críticas pelo tempo destinado e pelos critérios de avaliação do processo de aprendizagem, além de outras relacionadas às ações políticas. Com isso, pode-se dizer que este movimento foi fadado ao fracasso do seu objetivo central que era a erradicação do analfabetismo. Em contrapartida, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 5692/71 e com o Parecer do Conselho Federal de Educação n. 699/72, o Ensino Supletivo si98 nalizava a importância dada em uma lei para a Educação de Jovens e Adultos. Segundo Haddad; Di Pierro (2000, p. 11 7), este propunha recuperar o atraso, reciclar o presente, formando uma mão de obra que contribuísse no esforço para o desenvolvimento nacional, através de um novo modelo de escola. Porém, o direito à EJA consolidou-se no final da década de 80 e início da de 90, mas toda afirmação de direitos em forma de lei e de discurso social, não foi praticada. Assim concordo com a colocação de Di Pierro (201 0, p. 954), sobre a aplicabilidade da educação de qualidade, pois ela sinaliza que as políticas públicas precisam “ampliar o financiamento destinado à EJA e reverter a situação de despreparo e desvalorização profissional dos educadores que a ela se dedicam”, sendo este apenas um dos aspectos a ser considerado. Este foi um sucinto resgate histórico da educação de jovens e adultos e justifica-se em ser contemplada “como parte integrante da história da educação em nosso país, como uma das arenas importantes onde vêm se empreendendo esforços para a democratização do acesso ao conhecimento” (DI PIERRO; JOIA; RIBEIRO, 2001 , p. 2). Ressalto sua visão histórica sobre o analfabetismo, como outro aspecto importante da EJA, pois é necessário avançarmos na compreensão de que o analfabetismo seja um problema exclusivamente histórico, pois segundo Haddad; Di Pierro (2000, p. 31 ) O analfabetismo no Brasil não é, pois, apenas um problema residual herdado do passado (suscetível de tratamento emergencial ou passível de superação mediante a simples sucessão geracional), e sim uma questão complexa do presente, que exige políticas públicas consistentes, duradouras e articuladas a 99 outras estratégias de desenvolvimento econômico, social e cultural. Considerando o analfabetismo um problema de todos(as), é imprescindível que haja a discussão entre os(as) membros da sociedade civil, escolas, governo e universidades, pois Di Pierro (201 0, p. 954) nos alerta que É tempo de reavaliar, também, as visões que reduzem a EJA à alfabetização e que, ao fazê-lo, encaram os fenômenos do analfabetismo e da alfabetização em uma perspectiva dicotômica (quando, na verdade, trata-se de um continuum), descurando da qualidade e continuidade de estudos e da ampliação do acesso à cultura escrita, necessários à consolidação das aprendizagens iniciadas. Para a autora, as campanhas de alfabetização precisam deixar de lado a concepção de que em pouco tempo as pessoas se alfabetizarão. Ao encontro desta colocação, o grupo latino-americano de especialistas em alfabetização (GLEACE, 2009, p. 1 ), também diz que a concepção simplista e facilista da alfabetização, vista como um processo que pode ser realizado em pouco tempo, em condições precárias, com educadores sem ou com mínima capacitação, com métodos únicos, escassos materiais de leitura e escrita, pouco aproveitamento das modernas tecnologias; e sem levar em conta a diversidade linguística e cultural dos educandos. Precisamente por serem as pessoas analfabetas, ou com baixa escolaridade, de setores pobres e às quais tem sido negado há mui- 1 00 tos anos o direito à educação, é que elas merecem uma oferta educativa contemporânea e de melhor qualidade. Contudo, esta discussão sobre a alfabetização proporciona uma reflexão sobre a o ensino da Língua Materna e seus processos de ensino e de aprendizagem, especificamente por compreendermos a alfabetização como um processo que ultrapassa o soletrar e o identificar letras. A alfabetização é um “ato de conhecimento, como ato criador e como ato político, é um esforço de leitura do mundo e da palavra (FREIRE, 1 985, p. 35)”. Portanto, este texto além de chamar atenção para as produções científicas desenvolvidas, relacionando-as aos programas de pós-graduação e às categorias elaboradas, possibilitará a visualização do ensino da Língua Materna e seus processos de ensino e de aprendizagem, direcionando-o para a continuidade do trabalho de pesquisadores(as) nesta área. Metodologia Nesta pesquisa de cunho bibliográfico, utilizou-se o Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), por ser um instrumento de referência para a realização de pesquisas e de concentração de informações bibliográficas de dissertações e teses defendidas pelo país todo. As questões levantadas para a pesquisa foram as seguintes: Quais são os assuntos pesquisados na EJA? Quais são os programas de pós-graduação que pesquisam com mais frequência sobre a EJA? Quais pesquisas estão vinculadas à alfabetização (ensino da Língua Materna processos de ensino e de aprendizagem)? Em busca de respostas, caminhei para a pesquisa 1 01 conhecida como Estado da Arte ou Estado do Conhecimento que, segundo Ferreira (2002, p. 258) impulsiona os/as pesquisadores/as ao “desafio de mapear e de discutir uma certa produção acadêmica em diferentes campos do conhecimento”. Justificando o caráter bibliográfico da pesquisa, Gil (1 994, p. 65) aponta que a vantagem deste tipo de pesquisa “reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente”. Com isso, será possível alcançar as informações que estão dispersas pelas dissertações e teses do grande número de programas de pós-graduação, “auxiliando também na construção, ou na melhor definição do quadro conceitual que envolve o objeto de estudo proposto” (LIMA; MIOTO, 2007, p. 40). A partir do procedimento do levantamento de dados: 1 ) autor: não preenchido; 2) assunto: “educação de jovens e adultos” (todas as palavras); 3) instituição: não preenchido e 4) nível para pesquisa: dissertação, primeiramente e depois, tese 2, obtivemos (1 08) dissertações e treze (1 3) teses. A segunda etapa da metodologia concluíu-se com a leitura de títulos e resumos, “pois é através dela que se pode identificar as informações e os dados contidos no material selecionado, bem como verificar as relações existentes entre eles de modo a analisar a sua consistência” (LIMA; MIOTO, 2007, p. 41 ). Após a leitura minuciosa dos títulos e resumos das dissertações e teses indicadas, os dados coletados transformaram-se em tabelas e categorias, indicando temas, anos, pesquisas e programas de pós-graduação. Com a categorização e a elaboração das tabelas, foi possível destacar a categoria EJA e Ensino da Língua Materna, incluindo temas como letramento, alfabetização e processos de ensino e de 1 O procedimento foi realizado separadamente para dissertações e teses. 1 02 aprendizagem. Assim, a partir deste mapeamento possibilitaremos a visualização do número de pesquisas que abordaram esta categoria de estudo, iniciando então, a discussão do processo de ensino e de aprendizagem da Língua Materna. Resultados Nas décadas de 80 e 90, o Banco de Teses da Capes, apontou a existência de cento e oito (1 08) dissertações e treze (1 3) teses defendidas no Brasil, conforme é possível visualizar na Tabela 1. A segunda etapa da metodologia foi realizada com a leitura minuciosa dos resumos e algumas das pesquisas não estavam relacionadas à Educação de Jovens e Adultos, diretamente, ou seja, o descritor estava inserido no corpo do resumo, mas o contexto do trabalho não apresentava um estudo sobre a EJA. Então, verificou-se que setenta e nove (79) trabalhos acadêmicos sinalizam a educação de jovens e adultos, sendo seis (6) teses e setenta e três (73) dissertações, entre os anos de 1 987 e 1 999 (ver Tabela 1 ). Tabela 1 – Dissertações (D) e Teses (T) defendidas Ressalto que a pesquisa ficou restrita ao Banco de Teses da Capes e que outras pesquisas podem ter sido realizadas, mas não estão postadas no ambiente. Ainda destaco que as dissertações e teses começaram a alimentar o banco somente a partir de 1 987 aprovado em 2000 que dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos, redigido pelo conselheiro Carlos Roberto Jamil Cury. 3 1 03 Considerando os dados da Tabela 1 , houve um crescimento considerável de dissertações defendidas a partir do final da década de 903, o que não foi possível com as teses. Historicamente, esta modalidade de ensino não estava no foco do governo federal. Somente com a promulgação da Nova Constituição, em 1 989, o ensino supletivo retornaria ao quadro do Ministério da Educação e Cultura (DI PIERRO, 2000). Com isso, justifica-se em partes, o fato de termos este número de pesquisas, pois também há uma relação da importância que o governo e a sociedade dão ao assunto. Para uma melhor visualização do quadro sobre as pesquisas elaboradas na EJA, torna-se necessário sinalizar que alguns Programas de Pós-graduação, durante este período, destacaram-se (ver Tabela 2). Por exemplo, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) que desenvolveu neste período de estudo dez (1 0) pesquisas. A Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) também realizou um trabalho expressivo com sete (7) estudos, assim como, a Universidade Federal da Paraíba/João Pessoa (UFPB), Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), todas instituições com cinco (5) pesquisas defendidas. 1 04 Tabela 2 – Programas de Pós-Graduação/Defesas 4 Não houve registro na pesquisa na região Norte. 5 Para a realização da categorização, considerou-se palavras-chaves dos mesmos. o resumo e as 1 05 Das instituições de ensino superior que pesquisaram sobre a EJA, um grande número delas localiza-se na região Sudeste, entre universidades municipais, estaduais, federais e privadas. Porém, outras regiões brasileiras4 também contribuíram com suas pesquisas e discussões adjacentes. A área de concentração predominante destas pesquisas foi a área de Educação. Com a leitura do material coletado, iniciou-se o processo de categorização5 das pesquisas (dissertações e teses). Na Tabela 3 é possível verificar as categorias e o número de pesquisas realizadas em cada uma delas. Tabela 3 - Categorização/Teses e Dissertações Analisando os dados, é possível compreender que houve uma relação direta das pesquisas com o momento educacional que estávamos vivenciando na época. Um número considerável de pesquisas enquadrou-se na categoria EJA e Políticas Públicas (23). Um dos motivos para este evento pode estar relacionado pelo envolvimento em relatar sobre como as metas governamentais estavam sendo colocadas em prática. Também houve uma preocupação em desenvolver estudos sobre a Formação de Professores (4), sobre a relação da EJA com o Trabalho (5) sobre os Proces1 06 sos Educativos (11 ) e na área do Ensino da Língua Materna (1 2), foco deste texto. Ao visualizarmos um número expressivo de pesquisas sobre a categoria EJA e Ensino da Língua Materna, aprofundamos as leituras dos resumo a fim de organizáramos subcategorias. Assim, uma das subcategorias mais presentes estava relacionada aos Processos de Ensino e de Aprendizagem (ver Tabela 4). Tabela 4 – EJA e Ensino da Língua Materna (subcategorias) 1 07 Na totalidade, observa-se a predominância da preocupação com os aspectos relacionados ao processo de alfabetização, especificamente à leitura e escrita. Isto demonstra a preocupação com o assunto predominantemente nos anos 90. Os processos de ensino e de aprendizagem também foi uma área, dentro da categoria EJA e Ensino da Língua Materna muito explorada, pois de treze (1 3) pesquisas desenvolvidas, seis (6) delas contribuíram com as discussões neste assunto. As pesquisas que abordaram os processos de ensino e de aprendizagem, desenvolveram estudos sobre as práticas alfabetizadoras; a consciência dos sons das palavras; as estratégias para a formação de leitores/escritores; o resgate das memórias, histórias de vida e experiências; reescritas para a reflexão sobre a língua e a importância do domínio da língua para a evolução das escritas. Assim, foi dada uma importância necessária para os processos de ensino e de aprendizagem e, com isso, poderemos pensar que há formas de ensinar e aprender que ampliam significativamente as possibilidades de inclusão, alterando profundamente os modelos cristalizados pela escola tradicional. Num mundo com relações e dinâmicas tão diferentes, a educação e as formas de ensinar e de aprender não devem ser mais as mesmas. Um processo de ensino baseado na transmissão linear e parcelada da informação livresca certamente não será suficiente (THIESEN, 2008, p. 551 ). Esta colocação torna-se um motivo de consideração imprescindível quando falamos da educação de jovens e adultos, pois a maioria dos(as) alunos (as) já esteve no banco esco1 08 lar, possui experiências e, mesmo assim, decide voltar à escola. E esta, segundo Thiesen (2008, p. 552) É um ambiente de vida e, ao mesmo tempo, um instrumento de acesso do sujeito à cidadania, à criatividade e à autonomia. Não possui fim em si mesma. Ela deve constituir-se como processo de vivência, e não de preparação para a vida. Por isso, sua organização curricular, pedagógica e didática deve considerar a pluralidade de vozes, de concepções, de experiências, de ritmos, de culturas, de interesses. A escola deve conter, em si, a expressão da convivialidade humana, considerando toda a sua complexidade. Caminhando no raciocínio sobre o processo de aprendizagem, Freire (2006, p. 28) destaca que só aprende verdadeiramente aquele que se apropria do aprendido, transformando-o em apreendido, com o que pode, por isto mesmo, reinventá-lo; aquele que é capaz de aplicar o aprendido-apreendido a situações existenciais concretas . Assim, ao conhecermos sobre as pesquisas desenvolvidas na EJA, é preciso ter em mente que a educação não pode ser entendida como uma relação de “depósito”, pois “aquele que é “enchido” por outro de conteúdos cuja inteligência não percebe; de conteúdos que contradizem a forma própria de estar em seu mundo, sem que seja desafiado, não aprende” (FREIRE, 2006, p. 28). Acredita-se, na educação em que o(a) educador(a) e o(a) educando(a) “assumam o papel de sujeitos cognoscentes, mediatizados pelo objeto cognoscível que buscam conhecer” (Ibid, p. 28). O homem 1 09 (a mulher) é um ser social e não poder ser compreendido fora da sua relação com o mundo, é um ser do trabalho, da transformação, da práxis (Ibid, p. 28). Considerações Finais Com base nos dados apresentados, é possível sinalizar que as pesquisas desenvolvidas no período final dos anos de 80 e da década de 90, assumiram o compromisso de discutir e avançar nas reflexões sobre a EJA. Como foi possível visualizar a partir da categorização das pesquisas, as políticas públicas e educacionais, foi um tema bastante abordado, mas também houve o debate sobre os processos educativos, a educação popular, a EJA e a relação com o trabalho, os processos de ensino e de aprendizagem, o ensino da Língua Materna dentre outros. A elaboração do Estado da Arte das pesquisas brasileiras da Educação de Jovens e Adultos, possibilitou o início de uma discussão sobre o número de pesquisas de temas diversificados, quais programas de pós-graduação apresentaram a preocupação pela área de estudo e, principalmente, deixou como alerta que a educação necessita ser democrática em seu acesso e em seu desenvolvimento. Ao ter conhecimento sobre os estudos da EJA e das suas possibilidades, acreditamos que o fim do analfabetismo seja um sonho não apenas sonhado, mas sim um sonho em construção. Porém, para a construção deste sonho, concordo com Pontual (2003, p. 5), sobre a necessidade de reconhecer o “papel do Estado e da sociedade civil” na “prática de parceria (...) numa perspectiva substantivamente democrática”. Assim, haverá a “união de ambas as vontades políticas e ao mesmo tempo um profundo respeito pela autonomia dos atores e uma clara definição de responsabilidades”. 11 0 Em relação à pesquisa na área do ensino da Língua Materna, especificamente aos processos de ensino e de aprendizagem da alfabetização de jovens e adultos, é preciso salientar a importância da mesma em oferecer elementos para ações e projetos para serem colocados em prática, pois segundo Cunha; Rodrigues; Machado (2007, p. 30) a universidade vem desempenhando um papel imprescindível ao propiciar o desenvolvimento de pesquisas “sobre a alfabetização/educação de jovens e adultos nos espaços do ensino, da pesquisa e da extensão, fornecendo subsídios para ações e projetos de alfabetização/educação de jovens e adultos”. Contudo, mesmo com este tema ter sido abordado por um número considerável de pesquisas durante o período analisado, é fundamental que haja continuidade das mesmas. Portanto, ao aprofundarmos nossos estudos sobre a EJA, deparamo-nos com um quadro ideal de educação, mas que pode ser real pela convicção e ação da luta pelo direito à educação como parte de uma luta maior, a luta pela universalização do conjunto dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais a todos – homens e mulheres, independente da idade, cor, raça –, capaz de assegurar um Brasil alfabetizado, mas também capaz de assegurar justiça, equidade, substantividade democrática para todos seus cidadãos e cidadãs. Pois, se é verdade que a educação sozinha não é capaz de construir cidadania, de transformar a realidade que vivemos, é também verdade que sem ela a cidadania ativa não se realiza, os seres humanos não se constituem como tal e não se percebe que o mundo é feito pelos homens e por eles pode ser transforma- 111 do (CUNHA; RODRIGUES; MACHADO, 2007, p. 27). No momento em que temos conhecimento sobre as produções desenvolvidas na Educação de Jovens e Adultos, seus progressos e seu futuro, precisamos salientar que o poder público (município, estado e União) deve ter como meta e ser pressionado para fomentar, criar e implementar uma política pública que garanta o direito à alfabetização/educação para todos; chamar a sociedade civil para compartilhar da realização dos movimentos de alfabetização; apoiar as experiências de alfabetização/educação popular existentes (Ibid, p. 27). Finalizando, espera-se que este texto tenha conseguido contribuir com as discussões sobre a EJA, especificamente sobre o ensino da Língua Materna e seus processos de ensino e de aprendizagem. Referências bibliográficas CUNHA, Alda Maria Borges; RODRIGUES, Maria Emilia de C.; MACHADO, Maria Margarida. Alfabetização de jovens e adultos: política pública e movimento popular. Cad. CEDES , Abr 2007, vol.27, no.71 , p.1 9-38. DI PIERRO, Maria Clara. 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A construção da democracia educativa se apresenta como uma tarefa inacabada, reforçando a importância das lutas dos sujeitos coletivos pela incorporação do princípio da igualdade de Historiadora. Especialista em EJA pela UFSCar. Secretaria Municipal de Educação/Pederneniras-SP. amacielrinaldi@ gmail.com 2 Comunicadora Social. Mestre em educação pela UFSCar. Doutoranda em Educação pela Faculdade de Educação da USP. kelcipereira@ usp.br 1 11 5 diferenças nas políticas de EJA, na perspectiva da educação ao longo da vida. Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos; direito huma- no; dever do Estado. Introdução Este artigo resulta de um estudo monográfico, realizado no âmbito do Curso de Especialização em Educação de Jovens e Adultos (EJA) da UFSCar, com o objetivo de problematizar os aspectos político-estatais que historicamente têm viabilizado ou obstaculizado a EJA como um direito de todos/as e dever do Estado. Para tanto, a metodologia adotada combinou pesquisa documental (MONTEIRO, 2008) e bibliográfica (LIMA e MIOTO, 2007), e foi desenvolvida a partir de quatro eixos fundamentais: a educação como direito humano; a evolução do marco legal da EJA no Brasil; o desenvolvimento recente do financiamento da EJA no país e as contradições com a premissa do direito à educação. A seguir, serão apresentadas as principais reflexões desenvolvidas em cada um dos eixos, visando evidenciar o direito de todos à educação como uma conquista de extrema relevância para o exercício da cidadania e para desenvolvimento pessoal, especialmente no contexto contemporâneo, de reconfiguração do capitalismo a partir da primazia da informação em todos os âmbitos da sociedade. O direito à educação como direito humano Cada vez mais, a palavra educação tem sido difundida como sinônimo de processos ou de práticas bastante di11 6 versas - capacitação, etiqueta, escolarização, formação, etc -, a depender dos interesses defendidos por cada grupo que se apropria do termo. Falar em educação, portanto, é tratar de um terreno em disputa, o que exige dos estudiosos que se propõem a pesquisar os fenômenos educativos um posicionamento teórico-políticos sobre o que compreendem por educação. Neste trabalho, o conceito de educação que se utiliza está fundamentado em Arendt (apud LAFER, 1 998, p. 1 50), para a qual é pela educação que os homens tornamse livres, na medida em que potencializam sua reflexividade, adquirindo os meios para pensar criticamente e tomar decisões a partir do/no mundo em que vivem. Na mesma perspectiva da filósofa, o jurista Dallari (2004, p. 66) explica a educação como uma capacidade inerente ao ser humano, que diz respeito aos atos de aprender e ensinar em diferentes contextos e ao longo de todas as idades, visando a preparação para a vida. É, portanto, da relação entre os seres humanos entre si, no e com o mundo, que emana a educação como processo de humanização. Nesse sentido, operacionalizar com esse conceito de educação um exame sobre quem são os sujeitos da educação, em sua condição geral (humanos) e particular (pertencente a grupos sociais específicos, em uma sociedade e em um tempo histórico determinados). Nesse sentido, no caso específico das reflexões sobre a Educação de Jovens e Adultos (EJA), Di Pierro (2001 ) lembra que seus sujeitos, frequentemente estigmatizados pela falta (de estudos, de saberes, de conhecimentos), porque não estudaram na idade prevista, na verdade são “cognitivamente capazes de aprender ao longo de toda a vida”, e vivem em uma sociedade grafocêntrica, que impõe a “aquisição e atualização constante de conhecimentos” como exigências elementares para a participação nas mais diversas práticas e instituições 11 7 sociais. Nesta mesma linha argumentativa, diferentes autores e organismos internacionais convergem ao reconhecer a educação como um direito humano, cujo acesso é, em si, “base para a realização de outros direitos” (HADDAD, 2003). Ao ser um direito humano, é legitimamente um direito de todos/as, o que pressupõe que é dever do Estado garanti-lo, de forma igualitária, ao conjunto da sociedade. Entretanto, alerta Cury (2002), esta igualdade só se viabiliza se ancorada no princípio da proporcionalidade: dar mais a quem tem menos. Ou seja, a igualdade se dá na medida em que, reconhecendo-se a desigualdade social como marca do modo de produção capitalista hegemônico, se ofereça maior proteção social às populações historicamente excluídas do acesso aos direitos (negros, pobres, mulheres, trabalhadores/as rurais), na forma de políticas afirmativas. Nesta interdependência entre os princípios da igualdade e da proporcionalidade subjaz uma forte relação entre direito e política, pois, como aponta Freire (2000), não é possível garantir um ou outro direito isoladamente, uma vez que todos são necessários para que a pessoa se realize em seu potencial humano, de modo integral. Ou seja, o direito à educação não se completa sem que os titulares desse direito desfrutem também do direito à moradia, à saúde, à participação política e vice-versa. No entanto, como o modo capitalista sob o qual se estrutura nossa sociedade inscreve a questão dos direitos no campo das disputas entre as classes trabalhadora/dominada/oprimida e capitalista/dominante/opressora, tanto a definição quanto a efetivação do direito antagônicos aos interesses da classe dominante implica na organização social dos/as trabalhadores/as. Mas não se trata de qualquer organização, e sim de uma articulação esclarecida, que permita aos trabalhadores a entrada na cena política como sujeitos 11 8 coletivos, suficientemente fortes para tensionar o Estado a tal ponto que este seja obrigado a implementar políticas públicas pautadas na universalização dos direitos humanos. Um aspecto relevante dessa luta dos trabalhadores para alargar a função social do Estado, conforme revelou Freire (2000), é a consolidação da igualdade de diferenças. Ou seja, a garantia de que a igualdade de direitos sociais não violente a diversidade cultural dos grupos humanos envolvidos nas lutas coletivas. A relação entre igualdade e diferença precisa conformar-se segundo a dialética em que o verdadeiro direito à igualdade educativa se apoia no direito à diferença cultural, e esta se vincula e fortalece, na relação com aquela, em reciprocidade. A EJA precisa ser refletida conforme este olhar, diante da negação histórica do direito à educação a um percentual significativo da população brasileira. O censo demográfico do IBGE (201 0) contabiliza que atualmente o analfabetismo afeta 9,6% dos brasileiros com 1 5 ou mais anos de idade (1 3,9 milhões de pessoas), e se distribui da seguinte maneira: concentra-se principalmente na região Nordeste (1 9,1 % de analfabetismo contra 5,5% no Sudeste, 5,1 % do Sul, 7,2% do Centro-Oeste e 11 ,2% do Norte); entre mulheres velhas; junto à população negra3 (1 4,4% pretos e 1 3% pardos são analfabetos, contra 5,9% brancos) e aos moradores do campo (23,2% da população rural é analfabeta, número 3,2 vezes maior do que a zona urbana). O prejuízo escolar, em todas as situações citadas, se vincula diretamente à baixa renda: quanto maior a pobreza, menor a possibilidade de estudo. Os estudos do INEP mostram que os índices do ensino básico entre jovens e adultos também são muito baixos, levando-nos a questionar a efetividade da propagada universalização do ensino. E em se tratando de processo educativos extra (cursos línguas, informática, dan3 50,7% da população se declarou preta ou parda. 11 9 ça etc) ou não escolares (atividades de leitura, visita a museus, cinemas, etc), a participação desses sujeitos jovens e adultos em situação de vulnerabilidade social é ainda menor. Este cenário incita a pensar de que modo a EJA tem sido abordada no Brasil em temos de seu marco legal. O marco legal da EJA no Brasil 4 O direito à educação no Brasil ao longo da história aparece nas constituições desde o Império até a República. Contudo, a EJA não esteve contemplada, na maioria delas. A primeira Constituição brasileira, a de 1 824, não se refere aos jovens e adultos. Durante o Império (1 822 – 1 889), surgiu a primeira lei a tratar da instrução elementar (Decreto 1 5/1 0/1 827), mas, na prática, esta e outras leis não se efetivaram. Com a Proclamação da República, em 1 889, emergem debates sobre a instrução pública. Num país em que a escravidão acabava de ser abolida, a educação seria a “redentora“ dos problemas nacionais. Entretanto, os analfabetos foram excluídos da Constituição Republicana (1 891 ), conformando uma manobra que colaboraria para submetêlos ao poder dos coronéis do café. Tal exercício de poder das elites sobre os analfabetos se estenderia pela Era Vargas (1 930-1 945). Resistindo a esse processo, figuraram-se as lutas por uma educação pública de qualidade e gratuita a todos os brasileiros, inclusive aos de classe popular, cuja expressão maior foi o “Manifesto dos Pioneiros da Educação” (1 932). Reflexo da grande amplitude política alcançada pelas mobilizações dos pioneiros, foram incluídos artigos específicos na Constituição de 1 934, reconhecendo a Todo este item está embasado nos conhecimentos da autora Ana Maria Rinaldi como historiadora, mas também na obra de Galvão e Di Pierro (2007) além de outros documentos referendados diretamente no texto. 4 1 20 educação como um direito de todos, inclusive de jovens e adultos que não haviam estudado na idade prevista. Apesar disso, os índices de analfabetismo permaneceram extremamente elevados, atingindo mais da metade da população, o que se mostrava um entrave ao desenvolvimento industrial do país. Por isso, a Constituição ditatorial de 1 937 prescreveu a obrigatoriedade do ensino das séries iniciais, mas exclusive a Educação de Adultos. Mesmo na constituição de setembro de 1 946 (governo Dutra 1 9461 951 ), esta marginalização da EJA se manteve e, com isso, o alijamento dos analfabetos de seus direitos políticos. Depois de longos anos de esquecimento no segundo governo de Vargas (1 951-1 954), a EJA, particularmente a educação profissionalizante de nível médio, foi assumida com alguma preocupação por Juscelino Kubstichek (1 955-1 960), com o objetivo de formação de mão-de-obra para abastecer a industrialização crescente. Mas os investimentos financeiros foram pouco significativos e, poucas pessoas tinham acesso à educação. Praticamente 40% da população era analfabeta. A EJA apenas ocupou algum lugar de destaque na agenda política no governo de João Goulart (Jango - 1 9611 964). Alguns políticos progressistas manifestaram forte preocupação com a alfabetização da população, uma vez que o voto era premissa da população alfabetizada; mas tal preocupação também foi compartilhada por educadores militantes associados aos movimentos de educação e cultura popular. Destaca-se a emergência da práxis libertadora de Paulo Freire, evidenciando, de um lado, o analfabetismo como consequência de um desenvolvimento desigual, e não como a causa do subdesenvolvimento, conforme se afirmava até então. Freire (1 986) superou a noção de alfabetização como ato de codificar e decodificar palavras, afirmando-a como o verdadeiro ato de conscientização. A leitura da pala1 21 vra e a leitura do mundo são assumidos como processos indissociáveis, os quais favorecem o desvelamento e a superação das situações de opressão. Nesse contexto, floresceu a primeira política de EJA no país, o Programa Nacional de Alfabetização, implementado por Jango, em 1 964, nos moldes de uma campanha nacional maciça de combate ao analfabetismo. Porém, com o golpe militar e a implementação do regime ditatorial, em 1 964, este programa foi extinto e Paulo Freire, considerado subversivo, foi exilado. A repressão militar atuou feroz e violentamente sobre o campo da Educação Popular, limitando o poder e a expressão popular. Uma nova Constituição foi promulgada em 1 967 para atender ao sistema autoritário de governo. A Educação passou a ser obrigatória dos sete aos quatorze anos e delegada em parte aos empresários, responsáveis pela educação de seus empregados e dos filhos destes. Sob a presidência do general Médici (1 969-1 974), emergiram manifestações populares intensas, principalmente as estudantis. Nesse cenário, é implantada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDB 5692/71 , de 11 de agosto de 1 971 , que fixou as diretrizes e bases do ensino de 1 º e 2º graus. Há um capítulo separado para o ensino supletivo, como se fosse algo à parte, não contemplado no 1 º grau e nem no 2º grau, além de ser realizado de forma mais rápida. Mediante tal regulamentação, foram criados os Centros de Estudos Supletivos em todo o país. Desta forma, o ensino de jovens e adultos ganhou espaço na legislação pública e nos documentos oficiais, ainda que de forma precária. O governo militar regulamentou essa ação de suplência por meio da criação do Movimento Brasileiro de Alfabetização – MOBRAL, em 1 967 (Lei 5.379). O MOBRAL visava combater o analfabetismo e controlar ideologicamen1 22 te as massas, visando recrutar eleitores que apoiassem o poder militar. Entretanto, o Mobral resultou na redução de apenas 2,7% de analfabetos no país. Em 1 970, o Brasil tinha mais de 1 8 milhões de analfabetos, um índice de 33,6% entre a população de 1 5 anos ou mais (IBGE, 2000). Daí que, em 1 985, o Movimento tenha sido substituído pela Fundação Educar. Sob a influência de lutas internacionais pró-democracia, as pressões populares por direitos humanos e contra a Ditadura Militar se intensificaram no Brasil no final dos anos 1 970, levando o último presidente militar, Figueiredo (1 979-1 985), a iniciar a abertura do regime político do país. Nesse processo de retomada da democracia é que se promulga, em 1 988, no mandato presidencial de Sarney (1 9851 990), a Constituição Cidadã, a qual assegura a educação como um direito de todos, independente da idade, e como dever do Estado de oferecê-la gratuitamente de modo a preparar os educandos para o pleno exercício da cidadania e do trabalho (BRASIL, 1 988). Além desse avanço democrático, a Constituição Federal também assegurou o direito do voto ao/às analfabeto/as. Se a Constituição de 1 988 anuncia, mesmo que não explicitamente, os jovens e adultos como portadores do direito à educação, a Emenda Constitucional nº 59, de 2009, deixa isso muito claro, estabelecendo que é dever do Estado garantir “ I – educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 1 7 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria.” (BRASIL, 2009). Durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso (FHC - 1 995 a 1 998 e 1 999 a 2002), promulgou-se a nova Lei de Diretrizes e Bases, a Lei 9394/96, vigente até os nossos dias. Entre outros aspectos, nesta LDB indica-se que a oferta de EJA deve ser compatível com as possibilidades 1 23 de participação de jovens e adultos que não frequentaram a escola em idade própria. Visando regulamentar algumas especificidades em relação à EJA, após a edição da nova LDB/96, no ano 2000 o Conselho Nacional de Educação (CNE), editou as Diretrizes Curriculares para a Educação de Jovens e Adultos (Parecer 11 /2000), o qual afirma o direito público subjetivo dos jovens e adultos à educação e aprofunda as especificidades da EJA enquanto uma modalidade de ensino. Nesse sentido, as diretrizes destacam as três funções complementares da EJA: - o reparo de uma dívida social do Estado em oferecer educação a uma parcela significativa da população; - a equalização, que significa incrementar as políticas de EJA para permitir que jovens ou adultos afetados por diferentes desigualdades sociais (pobreza, racismo, sexismo, etc) tenham oportunidades concretas de acessar os estudos, fato que exige que sejam reconhecidos como trabalhadores e sujeitos de conhecimento e de aprendizagem, não tratados como crianças; - qualificação das práticas pedagógicas, de modo a oferecer oportunidades de aprendizagens significativas para o público que demanda EJA, em termos de sua instrução e fruição cultural. (BRASIL, 2000) Do ponto de vista legal, portanto, a EJA foi objeto significativo ao longo da história. No entanto, a consolidação de qualquer direito, por meio de políticas, exige uma dotação orçamentária compatível. Daí que no item a seguir o tema a ser tratado seja o financiamento da EJA. O financiamento para a EJA nos governos Lula e FHC Apesar de todo o respaldo legal, a EJA sofreu um grande golpe em relação ao seu financiamento. O presiden1 24 te FHC criou, em 1 996, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino e Valorização do Magistério - FUNDEF, priorizando o ensino fundamental, mas vetou a EJA dos seus cômputos, priorizando a educação de crianças como estratégia para estancar o analfabetismo adulto. Além disso, este governo retirou-se do compromisso de erradicar o analfabetismo e de assegurar o ensino fundamental para jovens e adultos, de forma presencial. (BRASIL, 2011 ). Paralelamente iniciou-se o processo de municipalização do ensino fundamental, relegando aos municípios o ônus dessa modalidade de ensino, sem, contudo, prever qualquer respaldo financeiro. Alfabetização de jovens e adultos tampouco foi tratada como objeto de direito. O Estado se eximiu desta responsabilidade e delegou-a à ação voluntária da sociedade civil, por intermédio do programa Alfabetização Solidária. (Di PIERRO, 2011 ) Já no governo Lula (2003-2006 – 2007-201 0), este cenário teve alterações. Com a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB, em 2006, em substituição ao FUNDEF, a Educação Infantil e EJA foram contempladas pelo financiamento. Contudo, limita o percentual do Fundo5 a ser aplicado nessa modalidade de ensino, desprestigia EJA. (BRASIL, 2009) Mesmo assim, há que se reconhecer que esta dotação orçamentária, ao menos em tese, deveria favorecer o envolvimento de municípios e estados com as ofertas de EJA. Além disso, de fato a existência de financiamento específico viabilizou a instauração de diferentes políticas de EJA ao longo do governo Lula, tais quais: Proeja (educação acadêmica integrada à profissional); normatização e financiamento da educação em prisões; inserção da EJA nos proO fator de ponderação para o cômputo das matrículas de EJA é de 0,8, em relação a 1 ,0 do ensino fundamental regular. 5 1 25 gramas de transporte e alimentação escolares e do livro didático; realização do Certific (certificação profissional); programas de formação continuada de professores/as em EJA e em EJA e Economia Solidária. Já do ponto de vista da alfabetização, o governo Lula recuperou a estratégia das campanhas rápidas de erradicação do analfabetismo, com fragilidades significativas no que tange às condições de trabalho dos/as alfabetizadores/as, voluntários/as, e à continuidade dos estudos na EJA, entre outros aspectos. (Di PIERRO, 201 0) Todo esse cenário evidencia algumas contradições entre a ação do Estado no campo da EJA e o direito à educação. Contradições com a premissa do direito à educação As altas taxas de analfabetismo e as baixas taxas de escolarização entre jovens e adultos com 1 5 ou mais anos de idade, citadas anteriormente, evidenciam que, apesar de alguns avanços no campo do financiamento e das políticas de EJA, elas ainda são irrelevantes para superar a exclusão educativa de jovens e adultos. o que postula uma violação do direito à educação junto a jovens e adultos que não estudaram na idade própria. Os estudos organizados por Soares (2011 ) dão pistas para interpretar essa situação ao mostrar que o financiamento existente não é suficiente para custear uma oferta educativa de qualidade na EJA, o que passaria, entre outros aspectos por um projeto de formação de profissionais da EJA, mas também pelo estabelecimento de estruturas dignas de trabalho e de estudos para todos os envolvidos com a modalidade (professores, estudantes, funcionários). A EJA ainda é um campo de reprodução de precariedades estruturais, mas também de preconceitos contra o analfabeto. As 1 26 práticas pedagógicas que predominam na EJA são burocratizadas e, muitas vezes, consideram o educando uma criança crescida. Essas precariedades e contradições em relação ao espaço escolar inadequado, organização curricular e temporal, torna-se fator de desestímulo, gerando, por vezes, evasão, visto que a necessidade de sobrevivência leva os/as educandos/as a priorizarem o trabalho ao invés da escola. Conclusões Diante do exposto é possível concluir que foi mediante a luta e a organização social que a EJA foi reconhecida no Brasil como direito público subjetivo. Entretanto, é notável a contradição entre o marco legal que regulamenta esse direito e as práticas de EJA desenvolvidas sob a (des)responsabilidade do Estado. Isso significa que, se o marco legal que regulamenta esta modalidade parece relativamente adequado frente às necessidades educacionais de seus destinatários, as políticas que deveriam dar forma à tais leis são incoerentes com seus conteúdos enquanto prescrição de direitos. Ou seja, elas são políticas marginais, aligeiradas, pouco estruturadas e fragmentadas, que assim se estabelecem na medida em que os jovens e adultos analfabetos ainda são tratados como carentes e não como cidadãos. Desse modo, a EJA configura-se como um direito humano violado, já que ao serem excluídos dos aprendizados escolares, os sujeitos que potencialmente demandam a EJA têm sua capacidade de luta por outros direitos sociais prejudicada, conforme afirmou Cury (2002). Um dos fatores desta violação é, claramente, a insuficiência de financiamento, sem o qual não se efetivam políticas de democratização da educação. Ao lado disso, é 1 27 possível citar a não equiparação da EJA a outras modalidades educativas em termos de prestígio, para além da dotação orçamentária. Outro fator são os velhos preconceitos que cercam a problemática da EJA: a concepção do analfabeto como uma criança, um incapaz de decidir por si, de participar da elaboração de seu desígnio de aprendizagem, um ignorante absoluto, o culpado por sua condição de exclusão (GALVÃO; Di PIERRO, 2007). Para além desse, outro obstáculo à inserção da EJA no campo dos direitos são a sobreposição de interesses político-eleitorais aos interesses sociais e a redução da EJA como estratégia de formação de mão de obra para o mercado de trabalho, além do agenciamento das práticas educativas escolares como mecanismos de controle ideológico da população. Em conflito direto com tais perspectivas, emergiram na história da EJA concepções e práticas pedagógicas relevantes e capazes de alavancar tal modalidade ao status de um direito humano efetivo. Um bom exemplo foi a práxis de Paulo Freire, a qual se alinha fortemente às três funções da EJA, tais quais abordadas no parecer 11 /2000, bem como ao conceito de educação ao longo da vida. O Memorando sobre Aprendizagem ao Longo da Vida, estabelecido no contexto da Estratégia Europeia para o Emprego, traz a seguinte definição para a expressão: “toda a atividade de aprendizagem em qualquer momento da vida, com o objectivo de melhorar os conhecimentos, as aptidões e competências, no quadro de uma perspectiva pessoal, cívica, social e/ou relacionada com o emprego”. (SITOE, 2006). Sob tal perspectiva, mesmo que a aprendizagem seja uma capacidade inata ao ser humano, é preciso que existam escolas, empresas, centros culturais, organizados de forma adequada e com pessoal preparado para auxiliar os partipantes-educandos, potencializando seu processo de apren1 28 dizagem e conhecimento. Contudo, conforme evidenciado neste texto, a educação de jovens e adultos no Brasil tem sido reduzida a uma escolarização, precária e ineficiente, tem sido limitada ao espaços e tempos escolares muitas vezes excludentes. Todas essas ideias foram amplamente discutidas e defendidas por Paulo Freire, destacando o caráter político da educação de jovens e adultos, valorizando a educação popular e a garantia dos direito à educação pública popular, sempre fortalecida enquanto política de Estado e formalizada por meio da escolarização. Mas é preciso pensar nessa educação de jovens e adultos com toda a sua especificidade e complexidade, conforme preveem os marcos legais para a EJA no país, pois a rigidez do sistema público pode transformar esse direito em uma ferramenta de exclusão. Segundo Arroyo (2005), “dificilmente construiremos formas públicas da garantia do direito à educação dos jovens e adultos populares sem termos coragem de rever a rigidez de nosso sistema escolar, se não investirmos em torná-lo realmente público”. (ARROYO apud SOARES, 2005) Além disso, também é preciso investir na formação e na valorização de professores, para que possam desenvolver um olhar específico e adequado em relação à EJA, além de obterem instrumentos a fim de viabilizar em termos pedagógicos a socialização do conhecimento com igualdade, sem desvalorizar as diferenças culturais dos sujeitos da EJA. O aspecto da igualdade de diferenças abordado por Cury (2002), incita um último apontamento: o de que a democracia educacional, que está na base da efetivação da educação como um direito humano, não se separa da democracia social. Portanto, para que o Estado garanta este direito efetivamente, as políticas de EJA necessariamente 1 29 devem ser pensadas em intersetorialidade com outras políticas de correção das desigualdades sociais. Em síntese, o texto evidenciou que a construção da democracia educativa se apresenta como uma tarefa inacabada no Brasil, reforçando o papel central dos sujeitos coletivos na luta pelo alargamento, nas políticas públicas, da concepção e práticas de EJA, enquanto educação ao longo da vida. Referências Bibliográficas ARROYO, M. G. Educação de jovens e adultos: um campo de direitos e de responsabilidades públicas. In: SOARES, Leôncio ET AL (org). Diálogos na Educação de Jovens e Adultos. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 1 9-52. BRASIL, Ministério da Educação. LEI 9.424: FUNDEF. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9424.htm. Acesso em 1 8 de julho de 2011. BRASIL, Ministério da Educação. Lei nº 9394/96: Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br Acesso em 1 5/02/2011. ______. Constituições do Brasil (1 824, 1 891 , 1 934, 1 937, 1 946, 1 967, 1 988). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/.htm. 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Belo Horizonte: Autentica editora, 2011.211236 p. 1 32 artigo Relatos de experiência: leitura e escrita, as cartas que tecem no “Projeto de Educação de Jovens e Adultos: Práticas e Desafios” Autor: André Luís Messetti Christofoletti Graduando Geografia UNESP Rio Claro andre.christo@ hotmail.com Coautora: Thainara Bonfante Gasparini Graduanda Pedagogia UNESP Rio Claro nana.bonfante@ hotmail.com Resumo A ideia de trabalhar com a escrita de cartas no PEJA (Projeto de Educação de Jovens e Adultos) partiu inicialmente do interesse de uma das educandas em continuar a manter contado com uma educadora que não participa mais do projeto. Aos poucos, o interesse por essa escrita foi surgindo nas outras educandas da turma e a partir deste momento as aulas de alfabetização pautaram-se nas escritas de cartas, que em sua maioria, o saber do atual cotidiano de pessoas queridas e contar a elas o que mudou desde que elas se foram, eram os temas preferidos. Com as cartas foi sendo construída uma prática de leitura e escrita, proporcionando um contato com a linguagem própria da correspondência postal; preenchimento de envelopes que demandaram uma pesquisa de endereços pelas educandas; 1 33 todas as cartas foram enviadas e perante as respostas recebidas foi trabalhada a leitura. Essa experiência proporcionou às educandas um contato com as cartas como meio de comunicação entre pessoas, saindo da rotina de cartas de instituições para pessoas físicas, proporcionando às educandas a possibilidade de serem as autoras e de se reconhecerem como parte de uma cultura, que também é construída por elas. Neste trabalho buscamos relatar algumas das experiências vividas, como educadores, na construção da escrita e leitura de cartas na educação de jovens e adultos. Palavras-Chave: Cartas. Leitura e Escrita. PEJA. Relatos de Experiência. Introdução O inicio da atividade se deu no mês de março de 201 2, no bairro Bonsucesso na cidade de Rio Claro SP. As aulas ocorrem na ONG Artevida, espaço utilizado pelo PEJA, que conta com 7 educandas. A partir de uma conversa informal entre a educadora e as educandas durante uma atividade, as educandas expressaram o sentimento de saudade pelas educadoras que passaram pelo PEJA. Pessoas queridas que participavam do cotidiano, saudade das conversas, risadas e brincadeiras. Para as educandas, é difícil a transição entre um educador para outro, pois elas se apegam a pessoa criando um laço de carinho, amizade e confiança. Durante esta conversa, uma das educandas demonstrou o interesse em escrever uma carta para uma educadora que hoje não está mais ligada ao projeto, mas que foi de grande valor na formação da educanda. Ao ter essa liberdade de expressar o que gos1 34 taria de realizar, a educanda mostrou sua autonomia perante aos educadores e as demais educandas, valorizando-se como sujeito atuante no espaço de formação. “O respeito à autonomia e a dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros.” (FREIRE, 2011 , p.58). Isso só é possível devido a uma educação critica e cheia de trocas e estímulos, pois em uma educação autoritária em que o professor se coloca superior ao aluno, isso não ocorreria. O professor inibiria qualquer tentativa de novas ideias vindas dos estudantes, e estes não se sentiriam seguros para se expor. Sendo assim sujeitos reprodutores de uma cultura dita superior, e não produtores de sua própria cultura, reconhecendo que aquilo produzido por eles é cultura. Trabalhando o mundo da natureza que não fizemos, intervindo nele, terminamos por criar um mundo da cultura. A cultura em última analise, como expressão do esforço criador do ser humano. Nesse sentido, é tão cultura o poço que camponeses, empurrados pela necessidade de água, cavam no chão, quanto um poema de trova-dor anônimo. São tão cultura os instrumentos com que os camponeses cavam o chão, a maneira com o fazem quanto as Bachianas de Villa-Lobos. É tão cultura o texto que ora escrevo, culturalmente influenciado, quanto a benzedura com que os camponeses se defendem do que chama “espinhela caída”. É tão cultura o boneco de barro de Vitalino quanto uma tela de Scliar. (FREIRE, 2000, p. 96). Paulo Freire registra no livro Pedagogia da Autono1 35 mia a ideia de que é papel do educador em sua ação docente a criação de condições para que o educando potencialize o seu saber. Reforçar a curiosidade, a capacidade critica e a insubmissão são condições que proporcionam ao educando a construção e a reconstrução do saber juntamente com educador, que juntos se tornam sujeitos do processo. (FREIRE, 2011 ). Utilizando dessa teoria de Paulo Freire, dando a liberdade e condições, surge a ideia da educanda, que fez com que despertasse outras ideias em nós educadores, englobando não só uma carta, mas toda uma atividade que envolvesse a pratica de leitura e escrita. O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e sua prosódia; o professor que ironiza o aluno, que o minimiza, que manda que “ele se ponha em seu lugar” ou mais tênue sinal de sua rebeldia legitima, tanto quanto o professor que se exime do cumprimento de seu dever de propor limites à liberdade do aluno, que se furta ao dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando, transgride os princípios fundamentais éticos de nossa experiência. (FREIRE, 2011 , p.58). Objetivos O motivo primeiro que pauta a escrita de cartas, para a maioria dessas educandas, é buscar informação acerca do cotidiano de pessoas queridas e também contar a elas o 1 36 que mudou desde que elas se foram; nesse contexto de comunicação dialógica inserem-se temas preferidos, como por exemplo, as atividades realizadas no PEJA; trabalho; saudade, etc. Ao interesse das educandas junta-se o motivo dos educadores – bolsistas que é buscar sentidos para a prática da escrita, em sua perspectiva dialógica que envolve interlocutores diversos, nas aulas destinadas à alfabetização. Metodologia A atividade de escrita e leitura de cartas começou com uma das educandas, e logo as outras se interessaram pela prática. A carta, incialmente foi construída em seu caderno de aula em forma de rascunho, para que ela amadurecesse sua escrita e também a organização de suas ideias. As educandas do Bonsucesso se caracterizam por terem vivenciado diferentes experiências em relação à educação formal e informal. Decorrente a isto nossos encontros são muitas vezes pautados por planos de aula distintos, e na escrita e leitura das cartas não foi diferente. Cada educada tem sua singularidade e por isso houve um desafio muito grande da nossa parte, como educadores, que tivemos que trabalhar essa singularidade. Optamos por trabalhar de modo quase que individual, para ajudar nas dificuldades especificas de cada uma. Em grupo trabalhamos os aspectos gerais que englobam a cultura da carta, estrutura, importância historia e o preenchimento do envelope apresentando a linguagem dos postais (destinatário, remetente, CEP). Durante a escrita das cartas houve uma grande troca, por nossa parte, o auxilio sobre a estrutura das cartas, palavras e organização das ideias, e por parte delas, ao compartilhar com nós suas experiências, seus sentimentos e suas percepções. 1 37 Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizadas pelo mundo. Mediatizadas pelos objetos cognoscíveis que, na prática “bancária”, são possuídos pelo educador que os descreve ou os deposita nos educandos passivos. (FREIRE, 2005 p. 79). Resultados e Discussões Para que houvesse a escrita e leitura das cartas, era necessário que elas apreendessem a estrutura que organiza a carta para o melhor entendimento do destinatário. Assim elas perceberam que a estrutura de uma carta, que foi produzida por elas, é diferente de um texto que elas escreveram ou leram. E também perceberam que a carta não é só de uso institucional mercadológico. Mas é uma forma de comunicação, expressão e cultura, que existe há muito tempo e mesmo perdendo espaço na era informacional, não deixou de ter importância e prestigio. Escrever ou receber um e-mail gera sensações distintas daquelas quando escrevemos ou recebemos uma carta. Enquanto ocorria a escrita das cartas elas conversavam entre si, tinham o interesse do conteúdo que sua colega escrevia. A temática das cartas eram sobre o cotidiano, os novos educadores, o PEJA, sentimentos e curiosidade que as educandas tinham sobre as pessoas queridas que fizeram parte de suas histórias. Uma das educandas participou do curso de formação do PEJA que ocorre todo ano na cidade de Bauru, e ela também relata essa experiência em suas cartas. Quando as primeiras cartas foram escritas, começa1 38 mos o preenchimento dos envelopes, que já havia sido explicado e trabalhado. Porém algumas educandas tiveram que pesquisar o endereço do destinatário, utilizando o telefone. E nós educadores também procuramos alguns endereços nos comunicando por e-mail com os antigos educadores que participavam do PEJA. Os envelopes foram devidamente preenchidos. Alguns foram enviados pelas educandas e outros foram enviados por nós educadores, pois o bairro Bonsucesso é distante do centro e do correio. Após semanas chegaram às repostas das cartas, e as educandas ficaram muito contentes, pois ao chegar às respostas, elas se sentiram valorizadas, além de ver que o trabalho que tiveram para realizar as cartas, foi recompensado, e transcendeu as paredes da sala de aula, pois as primeiras leituras das cartas foram em suas respectivas casas. E também lemos as cartas nos nossos encontros. Outras cartas foram escritas devido as respostas recebidas, dando continuidade as trocas de cartas, estabelecendo um vinculo de correspondência. “O que importa, na formação docente, não é repetição mecânica do gesto, este ou aquele mas a compreensão do valor dos sentimentos, das emoções, do desejo, da insegurança a ser superada pela segurança, do medo que, ao ser “educado”, vai gerando a coragem.” (FREIRE, 2011 , p.45). Com a construção de escrita e leitura das cartas, as educandas inverteram a lógica do sistema capitalista. Onde somente o que é industrial, tecnológico e novo é passado como valoroso. “E é uma imoralidade, para mim, que se sobreponha, como se venha fazendo, aos interesses radicalmente humanos, os do mercado.” (FREIRE, 2011 , p. 98). 1 39 Considerações Finais Todas as educandas são migrantes, que vieram de áreas economicamente menos abastadas para tentarem uma melhor vida na cidade de Rio Claro, interior de São Paulo. Isso influência nossa atuação como educadores. As culturas que carregam com elas são diferentes das que culminam na nossa região, isso faz com que as trocas de experiências sejam mais ricas. “É através deste que se opera a superação de que resulta um termo novo: não mais educador do educando, não mais educando do educador, mais educador-educando com educando-educador.” (FREIRE, 2005. p. 78). Essas culturas são facilmente observadas durante a fala, a escrita, a leitura, o modo de vestir, de se expressarem e até mesmo na forma que o bairro é construído. Pois como este é formado por migrantes, as pessoas dão forma à paisagem onde vivem e as referências do migrante é a localidade de onde vieram. O bairro Bonsucesso além de ser um bairro de migrantes, onde vive uma população de baixa renda, sofrendo assim uma segregação social, também é um bairro separado da cidade pela rodovia Washington Luiz, que acaba sendo um obstáculo para se ter acesso ao restante da cidade, isso é frequente na fala das educandas, pois mesmo morando na cidade de Rio Claro, elas se não se consideram pertencentes a esta. Sempre que vão ao centro da cidade dizem que vão para a “cidade”, sem mencionar o descaso do poder público nesta localidade. Por serem migrantes, muitas vezes deixaram para trás não só o local e o ambiente, mas também amigos e familiares. A distância aliada com o pouco contato com a escrita e leitura e com os meios de comunicação fez com que se afrouxassem os laços. 1 40 As cartas não foram só um meio de alfabetizar, mas também uma tentativa de resgatar esse laços afrouxados, sejam com os amigos e familiares deixados para trás ou com os educandos que marcaram e deixaram saudades. Além disso, as cartas rompem as fronteiras, a distância física acaba sendo amenizada pela proximidade que as leituras das cartas proporcionam. A importância de trabalhar com algo que seja significativo para as educandas contrapõem o método bancário de memorização, já que as cartas não foram trabalhadas com a repetição, mas sim com o valor que elas davam à escrita e leitura que realizavam. Nossa intenção é dar continuidade a essa atividade de leitura e escrita de cartas, pois obtivemos uma resposta muito positiva e as educandas continuam demonstrando interesse sobre essa cultura que ultrapassa tempos e fronteiras. Referências Bibliografias FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia : saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011. ___________. Pedagogia do Oprimido . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. ___________. Pedagogia da indignação : cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000. 1 41 1 42 artigo VIVÊNCIAS E PRÁTICAS EDUCATIVAS NO PROJETO EDUCATIVO DE INTEGRAÇÃO SOCIAL – PEIS Andressa Luiza de Souza1 Resumo O artigo trata das relações de ensino e aprendizagem dentro do Projeto Educativo de Integração Social-PEIS, que ao longo de 30 anos, apresenta uma metodologia diferenciada à Educação de Jovens e Adultos vigente. No PEIS, a proposta pedagógica é voltada para a aprendizagem dos adultos, que se insere a partir do interesse, da dúvida e das necessidades dos alunos que frequentam as salas de Alfabetização, do Ensino Fundamental e Ensino Médio.O texto está organizado a apresentar um breve histórico do projeto, seguido do fazer metodológico e das considerações finais. Palavras-chaves: Projeto Educativo de Integração Social- PEIS; Educação de Jovens e Adultos; Metodologia; Paulo Freire. 1 Graduanda em Letras no Instituto de Estudos da Linguagem-IEL UNICAMP, Professora do Projeto Educativo de Integração Social-PEIS e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação de Jovens e Adultos-GEPEJA. Email: andressaluiza.sz@ gmail.com 1 43 O Projeto Educativo de Integração Social (PEIS) iniciou suas atividades em 1 982, nas dependências da Pontifica Universidade Católica (PUCCAMP), sob a coordenação de Sonia Giubilei, então professora nesta Universidade. Tinha como objetivo de preparar 27 funcionários da prefeitura de Campinas para os Exames Supletivos do Estado, uma vez que, os funcionários só alcançariam uma progressão funcional se tivessem o diploma de conclusão do 1 º grau. Assim, recebeu o nome de “Projeto Supletivo preparatório aos Exames de 1 º e 2º Graus”. O projeto surgiu como uma oportunidade de estágio supervisionado para os alunos cursos de graduação em licenciatura, além de oferecer a eles, um espaço para a troca de experiências e aprendizagens em sala de aula, pois, os graduandos atuavam, muitas vezes, como docentes. Giubilei (1 993) aponta como o estágio consistia num importante campo de aprendizagem aos futuros professores: Além do atendimento à comunidade, também o Projeto serviria de campo de aprendizagem aos futuros professores, já que nele, os licenciados poderiam realizar suas horas de estágio, essencial e legal para a conclusão de seu curso. Para prepararos professores que iriam trabalhar no Projeto Supletivo, as reuniões preliminares de cunho pedagógico abordariam aspectos político-sociais da Educação de Adultos, da psicologia do adulto e da metodologia adequada ao trabalho com um educando que traz consigo muitos bloqueios e dificuldades de aprendizagem. Nenhum professor estagiário deveria iniciar suas atividades no Projeto sem passar por reuniões preparatórias, consideradas fundamentais. (GIUBILEI, 1 993, p. 45). 1 44 O estágio, então, se concretizava, como um espaço para a análise da formação do professor e de reflexão que amplia a compreensão acerca das especificidades do aluno adulto. No período em que o projeto permaneceu na PUCCAMP, as aulas eram ministradas aos sábados durante o período letivo e de segunda a sexta-feira nas férias escolares, nas dependências da Universidade e era cobrada uma taxa para ser gasta com despesas como com as cópias de textos elaborados e/ou selecionados pelos professores para serem utilizados durante as aulas, uma vez que o projeto não adotava livro didático. Em 1 995, a Administração da Universidade solicitou à coordenação que limitasse o número de alunos, pois não havia mais espaço para atender uma grande quantidade de inscritos. Foi realizada uma assembléia entre alunos, professores e a coordenação para decidir se reduziriam o número de alunos ou se mudariam a sede do projeto. Após a votação, optaram por procurar outro local para a realização das atividades. Deste modo, os alunos e professores iniciaram uma busca tentando encontrar uma escola que pudesse receber o projeto, que passou a funcionar na Escola Estadual Carlos Gomes, na região central da cidade. Neste momento, o processo de mudança mostrou que o propósito não se restringia mais a preparar os alunos para os exames supletivos e sim, pretendia-se formar o ser humano, buscando uma educação autônoma e libertadora. O planejamento era, e continua até hoje, resultado de discussões realizadas entre alunos, professores e coordenação. Surgiu, então, a necessidade de alterar o seu nome. Em assembléia, professores e alunos votaram por Projeto Educativo de Integração Social, proposto pela aluna D. Qui1 45 téria. O projeto carrega até os dias de hoje o nome PEIS e em março de 201 2 completou 30 anos. Entretanto, a permanência na Escola Carlos Gomes foi curta, conforme relata Campos (2004): A curta permanência na Escola Estadual Carlos Gomes, aproximadamente quatro anos (1 995-1 998), deveu-se, em parte, porque o diretor que autorizou a permanência do PEIS afastou-se da Direção e a nova Direção solicitou que o projeto buscasse outro espaço, uma vez que, segundo ela, a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo não estava autorizando atividades na escola pública que não fizessem parte dela mesma, considerando o PEIS estranho às atividades educacionais desenvolvidas na Escola Estadual Carlos Gomes (CAMPOS, 2004, p. 48). Como a maioria dos professores e alunos eram vinculados a Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP, buscou-se auxilio junto a esta universidade e, após, uma reunião, na qual compareceram muitos docentes que atuavam no projeto, com o Pró-Reitor Dr. Wanderlei Geraldi, o PEIS passou a ser um projeto de extensão da Pró-reitora de Extensão e Assuntos Comunitários PREAC. Souza (2011 ) ressalta a importância da Extensão Universitária para o PEIS: Extensão Universitária fortalece o comprometimento com as classes populares, mantendo o PEIS em um espaço público, onde o projeto possa continuar desenvolvendo seu trabalho social e educacional e atingir um maior número 1 46 de participantes. (SOUZA, 2011 , p. 20) Assim, passou a funcionar nas dependências do Colégio Técnico da Unicamp-COTUCA e vem recebendo da Universidade todo o apoio que tem necessitado. O projeto tem como principal objetivo proporcionar condições para os alunos que desejam retornar ou iniciar seus estudos. O aluno deve ter mais de 1 8 anos, pois é voltado exclusivamente para a Educação de Adultos. Uma vez ao mês acontece uma reunião pedagógica, destinada aos professores (estagiários, bolsistas e voluntários) e a coordenação. É abordada a leitura de um texto teórico, buscando estabelecer uma relação entre a teoria e a prática desenvolvida, além de serem discutidos os possíveis problemas enfrentados no decorrer das atividades. Nas reuniões, há também uma preocupação com o planejamento das aulas no decorrer do semestre. Os debates acerca da formação do professor de adultos ganha forças nas reuniões pedagógicas; uma vez que, o professor no PEIS é, também, aluno da Universidade e não encontra espaço no seu curso de formação para o debate acerca do ensino com adultos; então, entende, na prática em sala de aula e nas discussões mensais, que o adulto está sujeito a outros processos de formação e, por isso, não é possível uma reutilização da pedagogia que os cursos de licenciatura pregam para o trabalho no ensino regular. O projeto conta com a infraestrutura composta de salas de aula equipadas com datas-shows (material pertencente ao COTUCA que é emprestado ao PEIS), de um pequeno acervo bibliográfico, mapas, globos, um aparelho de som, um aparelho de DVD e um notebook. A equipe é composta por três tipos de colaboradores, sendo elas: estagiário, bolsista e voluntário. 1 47 As atividades no PEIS acontecem somente aos sábados (seguindo o calendário de aulas da Universidade e do Colégio Técnico), no período da manhã, em cinco salas de aula no COTUCA, na região central de Campinas. São oferecidas aulas de alfabetização e disciplinas do currículo básico do Ensino Fundamental e Médio, sendo que cada aula tem duração de uma hora. As aulas iniciam-se às oito da manhã indo até às 1 0 horas, quando acontece uma pausa para o lanche comunitário que é seguido da socialização. Em seguida, os alunos retornam as atividades indo até o meio-dia e meia a classe de alfabetização e até uma hora da tarde as demais classes. As disciplinas do Ensino Fundamental e Médio estão assim distribuídas: Grade de horários das aulas no PEIS Cada aluno no primeiro dia de aula faz a sua inscrição nas disciplinas que pretende estudar; uma vez que, muitas delas, são oferecidas no mesmo horário. A inscrição é feita a cada semestre e o adulto pode optar por cursar disciplinas diferentes do semestre anterior ou continuar estudando as mesmas. O aluno opta, também, pelo nível de 1 48 ensino (Alfabetização, Ensino Fundamental e Ensino Médio) que deseja cursar. Por exemplo, se o aluno há muitos anos concluiu o Ensino Fundamental e deseja iniciar seus estudos na turma do Ensino Médio e, após assistir algumas aulas, opta voltar ao nível anterior, é possível, pois o PEIS entende a educação como chave essencial para libertação dos homens. É importante ressaltar que as relações de ensino e aprendizagem durante as aulas, muitas vezes, resultam num maior envolvimento dos alunos com o professor, sendo comum organizar o horário das aulas para conseguir participar da aula deste. Como ressalta Nunes (2009, p. 1 4) “O companheirismo e a amizade caracterizam a relação entre educandos e educadores”. Essa relação contribui para o aluno sentir-se livre para contribuir, de forma igualitária, para as aulas que participa. Nas fichas de inscrição, além de escolher as matérias e o nível de estudo, o aluno é questionado sobre quem ele é: onde ele nasceu, sua idade, sexo, estado civil, cidade onde mora, há quanto tempo parou de estudar, em qual nível parou e os motivos que o fizeram parar ou nunca frequentar uma escola. Deste modo, após o levantamento dos dados disponíveis para a realização da pesquisa foi possível concluir que muitos alunos não respondem todas as questões e, algumas vezes, respondiam apenas o nome e as matérias que cursaria, outras vezes, só escreviam seu nome e frequentavam as aulas sem estarem devidamente matriculados, ou seja, não constavam nas listas de presença dos professores. Além disso, muitas fichas se perderam com o decorrer dos anos, por exemplo, todas as fichas de inscrição (alunos novos e antigos) do primeiro semestre de 2003, todo o ano de 2004 e primeiro semestre de 2005 e segundo semestre de 2011. Outro problema foi o ano de 2001 , pois as fi1 49 chas estavam sem data, assim, não foi possível separar os dados por semestre, ou seja, a pesquisa teve que juntar os dois períodos letivos como um só, assim, esses dados não puderam ser considerados na análise. Deste modo, o levantamento dos dados não está completo, mas como o projeto já está com mais de 30 anos e ainda não teve seus dados digitalizados; considera-se que os dados aqui apresentados resultarão numa importante contribuição paraa historia do PEIS. A pesquisa analisou, então, as fichas de inscrição dos alunos novos e antigos, matriculados no Projeto Educativo de Integração Social (PEIS), no período de 1 998 a 201 2, ou seja, desde quando o projeto tornou-se um serviço de Extensão Comunitária da UNICAMP e passou a funcionar no COTUCA (Colégio Técnico da Unicamp), localizado na região central da cidade. Foram levadas em consideração, as respostas obtidas no questionário de matricula e buscando traçar o perfil social do aluno, analisou-se: sexo, idade, estado civil e onde moram. Por divergências nas fichas de inscrição, preenchidas ao longo desses 1 4 anos, na foi possível colher mais dados. É possível concluir que o público que ingressa/ou e frequenta/ou o projeto dentro do período analisado são, em sua maioria mulheres, com idade média de 50 anos, residentes em Campinas e até 2007 casados (as) e, a partir dessa data, o número de solteiros (as), divorciados (as) e viúvos (as) vêm aumentando gradativamente, como também o número de homens, haja vista que, no último semestre de 201 0 e no primeiro semestre de 2011 somenteingressaram alunos do sexo masculino, mas o número de mulheres que continuam a participar do projeto ainda é superior ao de homens. Contudo, o PEIS é mais bem compreendido quando observamos sua prática à luz da abordagem freiriana, onde 1 50 o conhecimento não é transferido, e sim, participado; ou seja, construído por alunos e professores num constante diálogo. Assim, os alunos se sentem como participantes ativos do lugar onde realizam seus estudos, esse é um diferencial apontado como um dos principais motivos do retorno dos adultos ao projeto. No projeto, o professor não é visto como detentor de todo o saber e o aluno não é um “ser vazio”, que recebe o conhecimento “dado” sem nenhum questionamento. Deste modo, a participação dos adultos como protagonistas de sua aprendizagem possibilita avanços em torno do assunto estudado e da postura perante o mundo. A concepção bancária de educação, criticada por Freire (1 975), é um ato de depositar o aluno adulto é “depositário” e o professor o “depositante”. Freire (1 975) aponta: A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado, mais ainda, a narração os transforma em ‘vasilhas’, em recipientes a serem ‘enchidos’ pelo educador. Quanto mais vão ‘enchendo’ os recipientes com seus ‘depósitos’ tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem docilmente ‘encher’ tanto melhor educandos serão. (FREIRE, 1 975, p. 66). Nesta perspectiva, o adulto se sente desmotivado e não é estimulado a encontrar razões para prosseguir com os seus estudos. Ao contrário do que acontece nas escolas, onde há uma imposição dos conteúdos sem que os alunos tomem parte na sua construção, no PEIS o desejo de aprendizagem do adulto é considerado e o material didático é elaborado a partir dos diálogos entre alunos e professores, ou 1 51 seja, não é utilizado um material fixo e acabado. Os conteúdos são priorizados e trabalhados de acordo com a necessidade da turma. Muitas vezes, os próprios alunos indicam um caminho para o professor e sentem-se à vontade para trazer materiais a ser utilizado nas discussões em sala de aula. É importante ressaltar que o projeto não ignora a existência dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) em Educação de Jovens e Adultos (EJA) do Ensino Fundamental e os conteúdos curriculares do Ensino Médio exigidos no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Como afirmam Leite e Souza (201 0): Apesar de não emitir uma certificação como as escolas regulares, constata-se que alunos do PEIS participam de Programas do Governo de certificação, como o ENCCEJA, ENEM, vestibulares e até mesmo o PROUNI. Embora, isso não os impede de participarem ou de levarem para a sala de aula questões referente a tais exames (LEITE e SOUZA, 201 0, p.9). Além disso, as aulas são norteadas pelo tema gerador; escolhido em regime de votação aberta, no primeiro dia de aula no semestre, por alunos, professores e coordenação. A respeito dos temas geradores, Freire (1 975) afirma: A investigação do tema gerador, que se encontra contida no universo temático mínimo (os temas geradores em interação), se realizado por meio de uma metodologia conscientizadora, além de nos possibilitar sua apreensão, insere ou começa a inserir os homens numa forma rítmica de pensarem o seu mundo. (FREIRE, 1 975, p. 11 2) 1 52 Assim, os temas geradores propiciam uma maior interação entre todos os participantes do projeto, pois, alunos e professores passam a pensar e observar sua realidade para contribuir com as aulas. Conforme o quadro de disciplinas, entre as atividades desenvolvidas está o lanche comunitário, que não é visto apenas como o momento do lanche, mas sim, como uma possibilidade de troca de saberes e sabores, pois como relata Campos (2004): Entre o café, refrigerante, pão com queijo ou presunto, requeijão, margarina, entre outros quitutes, todos conversam aliando o sabor do saber com a sabedoria embutida nas falas entrecortadas dos que participam saboreando este momento. (CAMPOS, 2004, p. 61 ). O lanche antecede a Socialização, em que todos participantes dão sequência às atividades. A atividade de Socialização é um momento de fundamental importância, podendo até ser considerado o “coração do PEIS”; é neste momento em que se estuda e vivencia-se o tema gerador, podendo estabelecer uma relação entre o estudo realizado e as vivências dos alunos. A Socialização se assemelha ao Círculo de Cultura, proposto por Freire, onde todos partilham dos mesmos questionamentos e aprendem juntos. É importante salientar que todos se sentem integrados no estudo do tema, visualizando-se professores sentados ao lado do seu aluno e alunos rodeados de colegas, cujo interesse maior de ambos é estudar. Neste aspecto, ressalta Turina (2008). É possível afirmar que esta prática incentiva o aluno a participar das ativida- 1 53 des, uma vez que, ocupando o mesmo lugar que seu professor, passa a se ver como uma pessoa apta a ensinar. (TURINA, 2008, p.45). Assim, a abertura de um espaço para a fala, para a manifestação dos alunos, cuja trajetória de escolarização são marcadas pela ausência desse espaço, os faz perceber que o que tem a dizer é importante, assim, os revela como pessoas para os outros e, principalmente a si mesmos. O Estudo do Meio é uma aula in loco, que acontece no penúltimo sábado de cada semestre, onde todos os alunos e professores vêem na prática tudo o que foi estudado ao longo do semestre. Essa atividade busca o trabalho coletivo e interdisciplinar; inspira confiança na equipe e motivação para aprofundamentos por parte dos alunos. Inicia-se dentro da sala de aula, com as discussões da realidade a ser estudada e termina também na sala de aula, quando alunos e professores retomam os aspectos significativos da atividade. A concepção de sala de aula, então, é ampliada, pois, não se limita apenas ao espaço físico e sim, ao lugar onde o processo educativo se concretiza. Os próprios alunos do PEIS destacam nas fichas de inscrição, a importância da sua inclusão nas decisões fundamentais no andamento do projeto, ou seja, na autonomia deescolha das matérias, na seleção do Tema Gerador e do local onde será realizado o Estudo do Meio e, principalmente, o horárioda Socialização, onde a abertura de um espaço para a fala e a escuta desses alunos propicia uma interação entre todos os participantes do projeto. É possível concluir que a participação ativa da sua aprendizagem possibilita, aos alunos, avanços na sua postura perante o mundo, deste modo, muitos deles destacam a importância do PEIS modificando suas relações pessoais fora do contexto escolar. O diferencial do projeto, não se concentra na valori1 54 zação daquele que sabe mais (professor) e nem no desmerecimento daquele nada sabe (aluno), e sim, na valorização do saber de todos, ou seja, todos aprendem e ensinam em comunhão. Neste contexto, o projeto entende que o aluno adulto possui uma trajetória escolar e muitas vezes, de vida, marcada pela exclusão e marginalização e que, portanto, necessita de um ambiente onde a afetividade, o respeito e o amor, permeiem os estudos e fortaleçam o desejo de estar na sala de aula aprendendo e socializando os seus conhecimento. Entre as limitações enfrentadas pelo projeto está a falta de recursos próprios e de um espaço próprio para o atendimento, o que dificulta gravemente a realização de uma divulgação e, assim, de um atendimento ao público maior. Além disso, os alunos do projeto circulam pelo ambiente estudantil do Colégio Técnico (COTUCA) e da Universidade, mas não tem os mesmo direitos que os alunos dessas instituições, por exemplo, não podem emprestar livros nas bibliotecas e/ou utilizar os computadores nos laboratórios de Informática; uma crítica constante nos debates sobre as “possíveis” melhorias no PEIS. Os alunos que frequentam/ram o PEIS, são considerados pela sociedade como “velhos”, incapazes de novas aprendizagens, cabendo-lhes, apenas, ficar em casa, cuidando dos netos, vendo televisão, costurando, jogando baralho, enfim, fazendo coisas que não precise pensar muito, fazer demais ou desgastar-se. Sendo assim, o projeto possui um papel diferenciado, ao olhar para os alunos com idade acima de 50 anos como pessoas ativas e capazes de aprender e ensinar o tempo todo; indo na “contramão” das diretrizes governamentais para EJA, que vem oferecendo atividades para os indivíduos que estão compreendidos na faixa etária de 1 5 a 29 1 55 anos, marginalizando, assim, os que se encontram acima dessa faixa etária. Assim, o projeto colabora ativamente para a Educação de Jovens e Adultos no país. Devido à escassez de políticas públicas e de programas que se destinam à educação de adultos e idosos sem o entrelaçamento com a Educação Profissional; o PEIS, ao longo dos seus 30 anos, contribui, ativamente, para a formação do homem. O projeto acredita que as relações de ensino e aprendizagem, pautadas no dialogo, são as chaves para a libertação, como afirma Freire (1 975 p, 92) “O dialogo, como encontro dos homens para a ‘pronúncia’ do mundo, é uma condição fundamental para sua real humanização”. Muitos trabalhos acadêmicos tiveram este projeto como campo de pesquisa, sendo eles três doutorados (Giubilei, 1 993; Peluso 2003 e Campos 2004), três mestrados (Turina, 2005; Nunes, 2009 e Souza 2011 ) e Trabalhos de Conclusão de Curso-TCCs (Cavalheiro, 2005; Fernandes, 2005; Sousa, 2007).Além disso, os professores são estimulados pela coordenação a escreverem artigos, resenhas, entre outros, com o objetivo de divulgarem as práticas educativas que deram certo no PEIS no âmbito acadêmico, como Leite e Souza (201 0) e Souza (201 2), apresentados, respectivamente, no III e IV Simpósio do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação de Jovens e Adultos - SIMPEJA. Ainda nesse sentido, é possível ressaltar os documentos oficiais do PEIS e os relatórios de estágios que não foram publicados. Referências bibliográficas ARROYO, M. Formar educadores e educadoras de jovens e adultos. In: SOARES, Leôncio (org.). Formação de educadores de jovens e adultos. Belo Horizonte, Editora Autentica 2006. 1 56 BRASIL. Parecer CEB nº 1 1 /2000. Diretrizes Curriculares para a Educação de Jovens e Adultos. Disponível em: HTTP: //portal. mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/eja/legislação/ parecer_11 _2000. pdf Acesso em: 22/03/201 3. CAMPOS, S. Histórias e memórias de educandos e educadores na constituição da identidade do Projeto Educativo de Integração Social - PEIS: referências em políticas públicas e institucionais para a educação de jovens e adultos e formação de educadores. 2004. 21 7 p. Tese (Doutorado)-Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2004. FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido . Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1 975. GADOTTI, M. Educação de Adultos como Direito Humano . São Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2009. GIUBILEI, S. Trabalhando com adultos, formando professores. 1 993. 21 7 f. Tese (Doutorado)-Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 1 993. ____________________; Projeto Educativo de Integração Social (PEIS) . Texto s.d. LEITE, S. F. e SOUZA, C. Roberto. Relato de Experiência no Projeto Educativo de Integração Social - PEIS: Uma Alternativa Metodológica para a Educação de Adultos. In: Simposio do Grupo de Estudose Pesquisas em Educação de Jovens e Adultos, 3, 201 0, Itatiba, SP. MOTA, S. C. Razões do retorno aos estudos dos alunos acima de 50 anos. 2001. 58 p. (Trabalho de Conclusão de Curso- TCC)Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2001. 1 57 NUNES, F. P. Geografias produzidas no lugar: os saberes dos educandos adultos nas atividades do Projeto Educativo de Integração Social . 2009. 1 30 p. (Dissertação Mestrado)-Faculda- de de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2009. PAIVA, V. P. Educação popular e educação de adultos. São Paulo: Loyola, 1 983. PELUSO, T. C. L. Diálogos e Conscientização: Alternativas pe- dagógicas nas políticas públicas de Educação de Jovens e Adultos. 2003. 1 30 p. (Tese de Doutorado)- Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2003. SOARES, L. GIOVANETTI, M.A. GOMES, N. L. (Orgs). Diálogos na Educação de Jovens e Adultos. 2 ed. Belo Horizonte, Editora Autentica 2007. SOUSA, A. R. A motivação na sala de alfabetização do projeto educativo de integração social (PEIS) . 2007. 44 p. (Trabalho de Conclusão de Curso- TCC) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP: 2007. SOUZA. A. L. Relato de Experiência: Projeto Educativo de Integração Social - PEIS. In: Simpósio do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação de Jovens e Adultos, 4, 201 2, Campinas, SP. SOUZA, C. R. P. As vozes dos educandos do Projeto Educativo de Integração Social-PEIS . 2011. 99 p. (Dissertação de Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, SP, 2011. 1 58 TURINA, M. F. P. O fazer metodológico na educação de jovens e adultos: a prática no projeto educativo de integração social– PEIS. 2008. 1 08 p. (Dissertação de Mestrado) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2008. 1 59 1 60 artigo Processos e práticas educativas no contexto rural Arlete Pereira1 Francisleth P. Battisti 2 Resumo Este trabalho apresenta relatos de experiências educativas no contexto das aulas de alfabetização do projeto MOVA (Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos), realizadas no Assentamento Santa Helena, na região de São Carlos-SP, no qual realizamos o papel de educadoras. Nossa fundamentação teórica se deu a partir das leituras de Paulo Freire e Maria de Fátima Quintal Freitas. Buscamos com nosso trabalho contribuir com a discussão dos Processos de Ensino e Aprendizagem de Jovens e Adultos na zona rural, tendo em conta as especificidades de um assentamento. Palavras-chave: educação de jovens e adultos, assentamen- to, zona rural, MOVA. Graduanda no curso de Licenciatura em Educação Especial na Universidade Federal de São Carlos. Email: arletepereira2009@ gmail.com 2 Graduanda do curso de Licenciatura em Pedagogia na Universidade Federal de São Carlos. Email: frannbattisti@ hotmail.com 1 1 61 Abstract This paper presents reports of educational experiences in the context of literacy classes Project MOVA (Movement for Literacy for Youth and Adults), Assentamento Santa Helena in the region of São Carlos-SP, which perform the role of educators. Our theoretical framework was made from the readings of Paulo Freire and Maria de Fátima Freitas Quintal. We seek to contribute to our work with a discussion of the Processes of Teaching and Learning for Youth and Adults in rural areas, taking into account the specifics of a settlement. Keywords: adult and youth education, settlement, rural, MO- VA. Introdução Os seres humanos estão em constante processo de formação, dada sua reconhecida finitude, limitação e inconclusão, tal como nos disse Paulo Freire (1 993, p.1 8). Assim nos formamos constantemente durante nossas vidas, na relação com as pessoas, em espaços como a escola e nas práticas sociais recorrentes do cotidiano, nos espaços em que nos inseridos e transitamos. Nesses espaços somos educados e modificados, mas nós também educamos e modificamos constantemente as pessoas à nossa volta, nos formando a partir dos pressupostos dados no mundo e durante nosso desenvolvimento. A partir de nossa experiência como graduandas de Licenciatura em Pedagogia e na Educação Especial da Universidade Federal de São Carlos escolhemos o Assentamento Santa Helena, especificamente em uma sala de 1 62 MOVA (Movimento de Alfabetização), inserido na esfera da EJA (Educação de Jovens e Adultos) com o intuito de identificar/compreender os processos educativos existentes, espaço no qual já atuamos como educadoras populares. Essa opção se deu a partir da concepção que os movimentos sociais (nesse caso, luta pela terra), geralmente, têm atuação marcante na transformação da sociedade a partir da defesa de direitos e das reivindicações das categorias de trabalhadores que representam (trabalhadores rurais). A Educação de Jovens e Adultos A Educação de Jovens e Adultos nasceu no Brasil da união entre a alfabetização e a educação popular, concebida como um processo de grande extensão, destinada à grandes números populacionais, que incentivasse que estas pessoas voltassem a acreditar na possibilidade de mudança e na melhoria de suas vidas, podendo , segundo Freire (1 976) “ler o mundo e, ao lê-lo, transformá-lo”. A educação popular é vista como instrumento de libertação das classes exploradas, sem condição de sobrevivência digna e humana. A partir das décadas de 60 e 70 esta união se materializa em diversos movimentos da educação popular, em que a alfabetização dentro da proposta e filosofia dos conceitos de Paulo Freire, tornam-se fundamentais para esses trabalhos de emancipação dos oprimidos. Desse modo, as práticas de alfabetização, desenvolvidas a partir da perspectiva freiriana, denunciam o caráter reprodutivista e classista da ideologia dominante, que está presente nas diretrizes educacionais do Governo e que tencionam a continuidade das condições de exploração/submissão dos setores populares, do status quo. É na educação popular que se encontra as condi1 63 ções concretas de vida, desses indivíduos transformados em assunto nas situações de aprendizagem e conteúdos dos materiais pedagógicos. Iniciando, assim, intensos processos de discussão, reflexão e análise, possibilitando conscientização e participação destas pessoas, que passam a entender/questionar as razões de estarem vivendo em tais condições de exploração Ao entenderem sua situação começam a eliminar as explicações vigentes, os fatalismos propagados pela ideologia dominante, e passam a vislumbrar perspectivas de mudança e melhoria de vida. É na educação popular que nasce o fortalecimento das reivindicações dos seus direitos básicos e fundamentais. Assim, de um lado, pode-se dizer que se ampliou a divulgação destes trabalhos de Educação dirigidos aos jovens e adultos que estiveram fora ou foram expulsos das relações educacionais. Foi uma ampliação que aconteceu sob a forma de um trabalho de uma EJA, autônomo e especifico em diversos lugares e projetos; ou então como uma EJA que se fez (faz) na relação direta com a educação popular e de base, derivando daí seus conteúdos e seu compromisso político-social-profissional; ou ainda como uma EJA construída no seio dos diversos movimentos sociais e entre eles os da cultura popular, transformando as diferentes manifestações culturais e artísticas como mais um mediador neste processo educacional (FREITAS, 2007). Assim, os movimentos de educação popular são uma concepção necessária à complexidade do mundo atual, visto que se apresenta a necessidade do atendimento às di1 64 ferentes demandas formuladas, no campo da Educação, com seus protagonistas e às possíveis relações de compromisso de (re)construção de um mundo digno e mais justo. No assentamento Santa Helena, várias tentativas de formar uma turma de EJA foram feitas, mas devido a dificuldade de acesso e permanência dos educadores esse desejo só se constitui em realidade em 201 0, quando uma educadora popular se propôs a enfrentar as dificuldades e permanecer nesse projeto. A Luta pela Terra No Brasil a grande concentração da terra rural não é acaso, mas um processo histórico e das relações sociais que se desenvolveram desde a colonização. Nas décadas de 60 e 70 do século XX, com a grande expansão da empresa capitalista na agropecuária brasileira, que ocorreu uma transformação sócio-econômica no campo. Havia uma economia agrária, com a maioria populacional vivendo no campo. A partir dos anos 60 essa situação se inverteu: a maioria da população vai para as cidades e a economia deixa de ser majoritariamente rural; a produção industrial supera a agropecuária. A progressiva mecanização das atividades agrícolas, também contribuiu para o aumento do desemprego, empobrecimento do trabalhador rural e expulsão de suas terras, obrigando-o a buscarem novas áreas rurais ou ir para as cidades. A partir desse quadro, multiplicam-se os conflitos por terra em todo o país. Nascem organizações de trabalhadores rurais com o objetivo de defender seu direito à terra e a pelas realização da reforma-agrária (como Ligas Camponesas, Sindicatos rurais, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST etc). 1 65 Há vários motivos para muitos brasileiros terem abandonado o campo e se transferirem para as cidades, principalmente a posse da terra na mão de poucos proprietários, cita-se alguns motivos dessa concentração: 1 ) a terra usada como "reserva de valor', (especulação); o minifúndio é insuficiente para a família, obrigando parte desta a se transferir para as cidades; 2) mecanização do campo (tratores, colhedeiras etc), causando desemprego; 3) difícil sobrevivência do pequeno proprietário de terras, dificuldades de empréstimos bancários, difícil aquisição de máquinas e implementos agrícolas; 4) expansão de grandes monoculturas, redução dos empregos permanentes no meio rural, aumento para os trabalhos temporários, somente em épocas específicas e 5) desastres naturais (geadas, secas e inundações), perda da produção agrícola, fazendo com que os trabalhadores rurais atingidos se mudem para as cidades e não retornam para o campo, sem dinheiro para investir na produção rural. A reforma agrária apregoada pela Constituição funciona como uma espécie de sanção para o imóvel que não esteja cumprindo sua função social é a desapropriação pôr interesse social, ou seja é um programa do governo , plano de atuação estatal , mediante intervenção do Estado na economia agrícola , não para destruir o modo de produção existente , mas apenas para promover a repartição da propriedade e da renda fundiária. Com o objetivo de promover o acesso à propriedade rural mediante a distribuição ou redistribuirão de terras (DUTRA, 2001 ). No contexto desse cenário, surgem as lutas por terra, 1 66 na qual estiveram inseridos os atores sociais desta pesquisa, que viveram anos de lutas, acampamentos, marchas e reivindicações, sonhando com uma reforma agrária que viria lhes dar trabalho e dignidade. Em conclusão podemos asseverar que as políticas governamentais de acesso a terra no Brasil não conseguem promover um pacto político de sustentação para um projeto de redistribuição de terras. Essa crônica incapacidade de articulação tem sido responsável por uma histórica criação de expectativas, seguidas de frustrações, com projetos de colonização que nascem e morrem no papel. Na raiz desse processo há um poderoso jogo de interesses bancado no século passado por fazendeiros que começaram a amealhar fortuna como posseiros de grandes áreas públicas, hoje sucedidos por grupos empresariais proprietários de fazendas altamente mecanizadas. Reforma Agrária não consistente apenas na entrega da terra a quem não tem e a quer, precisamos sim de uma reforma acoplada à política agrícola, integral, única que responda aos anseios do homem sem terra (DUTRA,2001 ). Sobre o Assentamento Santa Helena O Assentamento Santa Helena, era no passado uma Fazenda de monocultura (Fazenda Santa Helena), trabalhava apenas com a cana-de-açúcar. Há pouco mais de cinco anos algumas famílias ocuparam essa propriedade. Várias ações judiciais tramitaram no poder legislativo e finalmente a posse da terra foi dada ao Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária que assentou as famílias. Hoje são catorze famílias que constituem a comunidade rural. Muitos dos assentados viveram mais de dez anos na luta pela terra. Isso significou morar em barracos de lona, precariedades, pouca ou nenhuma estrutura física, sem energia elétrica, muitas caminhadas à Brasília e muitas 1 67 ações de despejo. O assentamento possui atualmente 1 4 lotes de igual área (baseando na agricultura familiar) e duas áreas de “propriedade coletiva”, sendo: a) uma área de APP (Área de Preservação Permanente) e b) um barracão, onde atualmente foi construída uma Escola. Atores sociais do assentamento Os assentados em sua maioria vieram da região Norte e Nordeste, em busca de melhores condições de vida, e durante esse percurso se conheceram nas lutas pela sobrevivência e caminharam rumo ao mesmo ideal, a luta pelo direito à terra. A emergência do movimento dos trabalhadores rurais é um dos fenômenos mais importantes da história brasileira, desmitificando toda uma trajetória de suposta passividade e anomia do nosso povo. Revela um problema real gravíssimo, a incomensurável miséria do campo. Pois ninguém, por grande agitador que seja, é capaz de levar dezenas de milhares de pessoas à ação organizada, a fazer homens e mulheres afrontar a brutalidade de jagunços e policiais até o sacrifício da vida, se não houver por trás muito desespero e sofrimento (Rubens Ricupero. Folha de São Paulo, 04/08/98). Agricultura familiar A agricultura familiar é uma unidade de produção agrícola onde propriedade e trabalho estão intimamente ligados à família. No Brasil o tamanho das unidades agrícolas são em 1 68 média entre três e cinco hectares, e a mão de obra utilizada é majoritariamente familiar. Esse tipo de agricultura tem grande importância na produção e no abastecimento de alimentos, apesar de no Brasil ela ocupar uma pequena área de 1 7,5% das terras, é responsável pelo fornecimento de mais da metade dos produtos básicos da alimentação e dos hortifrutigranjeiros (DUTRA, 2001 ). Dimensões das práticas educativas A proposta desse trabalho é socializar alguns processos educativos que se deram nesse contexto educacional específico. Dentre as práticas educativas destacamos algumas, divididas em três grandes eixos: a) Experiências profissionais: a troca de informações sobre o plantio; dicas e truques de colheitas; construção/manutenção do tanque de peixes; como usar o calendário lunar; trocas de informações para potencializar a produção da horta; como evitar pragas; armazenamento/reaproveitamento da água da chuva; informações sobre pesca; como espantar roedores, mosquitos; como matar cobras; manutenção de equipamento agrícolas, entre outras. b) Experiências Culturais: as mulheres tem seu papel bem definido dentro desse contexto (cuidar dos filhos, cozinhar, limpar a casa, lavar roupas, ir à cidade fazer compras, entre outras) a divisão do trabalho é bem definida e embora as mulheres ajudem também na lida com a terra suas prioridades são ser mãe, esposa e mulher; a troca de receitas culinárias é constante entre as mulheres da comunidade; a conversa sobre a educação dos filhos é recorrente, cobranças para que as crianças estudem e tirem boas notas; recei1 69 tas de chá e remédios são comuns, a saúde é tema comum entre eles; os cuidados com a casa, a preocupação com a limpeza, por morar em meio ao barro; saudades da família que está distante, entre outras experiências. c) Experiências da Comunidade: formação política propiciada pelas lutas sociais; assembleias e tomadas de decisão no coletivo; processo de formação de associação; reuniões com o INCRA; inserção nas negociações com governos municipais; inserção em projetos de economia solidária e produção de renda; processos de aprendizagem de leis e reivindicações de direitos como água, transporte escolar e energia elétrica, cursos para capacitação profissional e atuação no trato com a terra, construção coletiva da Escola Novo Horizonte (sistema de mutirão) entre outras práticas. Figura 1 Escola Novo Horizonte Fonte: própria 1 70 Figura 2 Escola Novo Horizonte Fonte: própria Figura 3 Escola Novo Horizonte Fonte: própria 1 71 Considerações finais Esses são alguns elementos de aprendizados e interações que são observados no Assentamento Santa Helena, os indivíduos que constituem essa pequena comunidade estão em processo de aprendizagem constante, na Educação de Jovens e Adultos, com o mundo e na convivência entre si. Aos poucos se constrói o respeito à pluralidade de concepções e aos diferentes valores culturais e religiosos ali presentes. As assembleias que ocorrem regularmente propiciam o aprendizado do coletivo, no sentido de reafirmar as práticas democráticas, de respeitar as falas e as propostas apresentadas durante os debates, onde todos podem se manifestar apresentando suas opiniões e acrescentando elementos para a discussão. A partir das prática sociais ali vivenciadas fica clara a tomada de posições por parte dos atores sociais, que escolheram ir à luta por seus direitos de trabalhar a terra. Na perspectiva apresentada por Freire (1 993) sua proposta tem valor transformador, pois incita a leitura de mundo e sua posterior transformação. Essa transformação não se dará apenas pela educação, mas também não se dará sem ela. A participação no processo de construção da Escola foi primordial para entender a importância dada àquele espaço. Esse processo tem sido muito rico para toda a comunidade que pode se integrar em um projeto comum e que tem dado ótimos resultados. A experiência da inserção em uma prática social com históricos de luta acrescenta a nossa formação em licenciatura possibilitando pensar uma educação que seja para emancipação, uma educação para a transformação, que se paute no respeito ao divergente, no respeito aos “desseme1 72 lhantes”, que respeite os diferentes saberes e forme o cidadão crítico que não capaz apenas de ler o mundo, mas de transformá-lo em algo melhor. Referências DUTRA, Carlos Alberto dos Santos. As Ocupações de Terra e a Produção do Direito . UFMS, Três Lagoas: 2001. FREIRE, P. “Educação permanente e as cidades educativas”. In: _________________ Política e educação . São Paulo: Cortez, 1 993. p. 1 6-26 FREITAS, Maria de Fátima Quintal de. Educação de jovens e adultos, educação popular e processos de conscientização: intersecções na vida cotidiana . Educar, Curitiba, n. 29, p. 47-62. Editora UFPR: 2007. 1 73 1 74 artigo O ALUNO DA EJA E SUA RELAÇÃO COM O CONHECIMENTO MATEMÁTICO ESCOLAR Autor: Carla Cristina Pompeu Co-autor: Vinício de Macedo Santos Resumo Este artigo foi produzido a partir dos resultados de uma dissertação de mestrado (Pompeu, 2011 ) e tem por objetivo discutir e analisar o cenário educacional atual da Educação de Jovens e Adultos e, em particular, promover uma breve discussão sobre o papel da matemática na formação dos alunos da EJA. Em se tratando da Educação de Jovens e Adultos e da especificidade de seus alunos, o ensino de matemática é, sem dúvidas, parte fundamental de inclusão efetiva destes sujeitos no processo educacional, em se tratando do reconhecimento destes sujeitos como responsáveis pela construção e significação do conhecimento escolar. A autora é aluna de doutorado do programa de Pós-Graduação da FE/USP sob orientação do professor Vinício de Macedo Santos Email: ccpompeu@ usp.br 1 1 75 Palavras-chave: educação de jovens e adultos; matemática escolar e não escolar; sujeito social; relação com o saber; educação matemática. Introdução Levando em conta o cenário educacional brasileiro e o aumento no número de matriculas nos níveis de ensino fundamental e médio, Menezes (201 0) reflete sobre a existência de uma preocupação quanto as políticas públicas que assegure ao jovem alguma formação de qualidade e condições favoráveis à sua inserção social, ao exercício da sua cidadania e ao acesso ao conhecimento escolar. Tal afirmação esta presente no documento oficial, PCNEM: O conhecimento científico disciplinar é parte tão essencial da cultura contemporânea que sua presença na Educação Básica e, consequentemente, no Ensino Médio, é indiscutível. Com isso, configuram-se as características mais distintivas do Ensino Médio, que interessam à sua organização curricular. Os objetivos do Ensino Médio em cada área do conhecimento devem envolver, de forma combinada, o desenvolvimento de conhecimentos práticos, contextualizados, que respondam às necessidades da vida contemporânea, e o desenvolvimento de conhecimentos mais amplos e abstratos, que correspondam a uma cultura geral e a uma visão de mundo. As mudanças ocorridas na sociedade influenciam os rumos e objetivos da escola atual, especialmente em se tra1 76 tando do nível médio do ensino regular, uma vez que, é nesse nível em que há maior expectativa do jovem sair da escola melhor preparado para o mundo do trabalho e/ou para a continuidade dos seus estudos como justificado por Menezes (2001 ): A LDBEN caracteriza o novo ensino médio como “etapa final da educação básica...” que deve promover “a preparação básica para o trabalho e a cidadania..., a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual...”, assim como “a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos...., das ciências, das letras e das artes... do processo histórico de transformação da sociedade...”, e “adotará metodologias que estimulem a iniciativa dos estudantes”. Ainda segundo o autor a escola necessita de uma nova postura diante da sociedade atual, que venha a proporcionar uma formação cultural, social e política dos alunos, que signifique uma melhor preparação para a vida e/ou para o trabalho. Assim, é papel da escola formar cidadãos ativos social e culturalmente de modo que as disciplinas escolares não sejam necessárias apenas para o acumulo de conhecimentos, mas sejam úteis como ferramentas relevantes na inserção dos jovens socialmente na sua comunidade: A nova escola de nível médio, que não há de ser mais um prédio com professores agentes e com alunos pacientes, mas um projeto de realização humana recíproca e dinâmica de alunos e professores numa relação que deverá estar 1 77 mediada não somente por conteúdos disciplinares isolados, mas também articulados com questões reais apresentadas pela vida comunitária, pelas circunstâncias econômicas, sociais, políticas e ambientais de seu entorno e do mundo. (Menezes, 2001 ) GOMES (2004) ressalta que é a escola pública, no sistema educacional brasileiro, a instituição que concentra o maior número de estudantes de educação secundária e o lugar onde o número de estudantes matriculados no ensino médio tem crescido consideravelmente nos últimos tempos em decorrência da expansão do ensino básico público. Por ser nessa escola onde são desenvolvidas políticas públicas para a educação de jovens e adultos, como a expansão do ensino médio em nível regular e na modalidade EJA, exposto pelo documento Brasil (2008) e discutido por Gomes (2004). O interesse nesta pesquisa é o de analisar os conflitos e novos valores trazidos com a expansão e mudanças dentro deste segmento de ensino e no processo de ensino e aprendizagem em sala de aula. Neste estudo, o propósito foi o de enfatizar os recentes trabalhos que se referem a Educação de Jovens e Adultos, ao ensino de matemática na EJA, o modo como o estudante, jovem trabalhador de EJA de nível médio, se relaciona com o saber matemático e, quais as possibilidades de mobilização de conhecimentos trazidos de fora da escola no ambiente escolar. Considero, a princípio, que os jovens que buscam a educação de Jovens e Adultos, apresentam uma peculiaridade relacionada à sua condição de jovens trabalhadores: são de uma faixa etária diferente daquela a que pertencem os alunos da escola regular, têm a experiência e as questões relativas a uma escolaridade interrompida 1 78 por diferentes motivos, carregam suas vivências no mundo do trabalho para o ambiente escolar além de, possivelmente, terem estabelecido um outro tipo de relação com a família e a comunidade diferente daquela de quando crianças etc. Essa condição, pode oferecer elementos importantes para a experiência educacional desses jovens e trazer motivações relevantes para pesquisadores da área educacional. A partir de tais referências, valido o interesse como pesquisadora em refletir e analisar os modos de se relacionarem: sujeitos e Matemática escolar. Deste modo, fazem parte dos objetivos deste trabalho analisar as recentes pesquisas sobre ensino de matemática na EJA, refletir sobre o jovem e sua relação com o saber matemático, seja este escolar ou não, além de delimitar possíveis caminhos na educação escolar, tendo como foco o aluno como sujeito social. Metodologia Como já mencionado anteriormente, este artigo refere-se a parte das conclusões e analises feitas num trabalho de mestrado (Pompeu, 2011 ). Deste modo, a metodologia presente nesta analise aqui apresentada refere-se a revisão bibliográfica, responsável pela argumentação e validação de discussões importantes abordadas neste trabalho, o que possibilitou a integração do pesquisador uma visão mais ampla e complexa sobre pesquisa e em particular sobre o ensino de matemática na EJA. É relevante citar que, a pesquisa desenvolvida no mestrado foi feita através do estudo de um grupo de alunos, possibilitando a inclusão do pesquisador no ambiente a ser estudado, integrando o espaço pesquisado. A pesquisa qualitativa, que requer observações, entrevistas e introdução do pesquisador ao ambiente a ser pesquisado, diferencia-se da quantitativa, por ter acesso a 1 79 um menor número de sujeitos e pelo aprofundamento maior que este tipo de análise dispõe, como justifica MEKSENAS (2007). DEMO (1 994) explicita que os dados obtidos através de entrevistas e observações pode fortalecer as argumentações, uma vez que “o significado dos dados empíricos depende do referencial teórico, mas estes dados agregam impacto pertinente, sobretudo no sentido de facilitarem a aproximação prática" (DEMO, 1 994). Borba (2004) discute a diferenciação entre as análises qualitativas e quantitativas: O que se convencionou chamar de pesquisa qualitativa, prioriza procedimentos descritivos à medida em que sua visão de conhecimento explicitamente admite a interferência subjetiva, o conhecimento como compreensão que é sempre contingente, negociada e não é verdade rígida. O que é considerado "verdadeiro", dentro desta concepção, é sempre dinâmico e passível de ser mudado. A revisão bibliográfica tem lugar fundamental neste estudo por ser responsável pelo seu embasamento teórico, dando suporte e caminhos aos questionamentos feitos pelo pesquisador no momento de observação e de entrevistas. Os objetos de pesquisa, a Educação de Jovens e Adultos, o ensino de Matemática e os alunos de EJA, além do modo como estes alunos se relacionam com a Matemática, são fontes relevantes de reflexão e análise da pesquisa. A revisão bibliográfica, o pesquisador e os sujeitos de pesquisa se complementam dando ao estudo bases mais sólidas de argumentação e reflexão. O ensino de matemática e a Educação de Jovens e Adultos 1 80 Em meio às mudanças ocorridas na educação pública, novas políticas públicas criam um novo cenário para a Educação de Jovens e Adultos. O Parecer CNE/CEB 11 /2000 relata o problema das desistências e abandono escolar: A média nacional de permanência na escola na etapa obrigatória (oito anos) fica entre quatro e seis anos. E os oito anos obrigatórios acabam por se converter em 11 anos, na média, estendendo a duração do ensino fundamental quando os alunos já deveriam estar cursando o ensino médio. Expressão desta realidade são a repetência, a reprovação e a evasão, mantendo-se e aprofundando-se a distorção idade/ano e retardando um acerto definitivo no fluxo escolar. A presença de leis e a possibilidade de novos olhares para a Educação de Jovens e Adultos ilustra o presente cenário do ambiente de pesquisa atual. Vale ressaltar que, apesar das mudanças, ainda não existe um currículo específico para a EJA e que o tempo escasso ainda prejudica os rumos desta modalidade de ensino e atormenta seus profissionais quanto a escolha dos caminhos a serem seguidos. Alvisi (2009) discute sobre a maneira como são organizados os horários e as disciplinas escolares, impondo um ritmo que muitas vezes não leva em conta a particularidade dos sujeitos que fazem parte deste processo escolar: Ao se reproduzir esse paradigma cientificista, racionalista e cartesiano na abordagem curricular estamos mutilando os saberes considerados outsiders dos alunos da EJA, bem como afastando qual- 1 81 quer possibilidade de diálogo e tecitura dos conhecimentos que permitam desenhar currículos nos quais os alunos possam significar suas experiências encontrando no ambiente escolar práticas que permitam assegurar-lhes o direito e a continuidade de seu(s) processo(s) de formação ao longo da vida. O estudo de Monteiro (2007) também analisa a presença dos saberes matemáticos em práticas sociais distintas, como no trabalho do agricultor e também no comércio. É também o saber matemático construído em diferentes contextos e práticas, ou seja, a Matemática relacionada ao ambiente de trabalho, tema discutido por Silva (2007) e por Passes (2006), que analisa o ensino de Matemática em nações indígenas. Tanto a educação indígena exposta por Passes (2006), quanto a Educação de Jovens e Adultos apresentam especificidades, como afirma Kooro (2007): Muitos jovens e adultos dominam noções matemáticas que foram aprendidas de maneira informal ou intuitiva. Esse conhecimento que o aluno da EJA traz para o espaço escolar é de grande importância, devendo ser considerado pelo educador como ponto de partida para a aprendizagem das representações simbólicas convencionais. A modalidade EJA precisa ser considerada como etapa de ensino específica e com uma perspectiva diferente da educação regular, seja no âmbito do currículo, da postura do professor e da compreensão e comprometimento do aluno. Afinal como justificado pelo parecer CNE/CBE 11 /2000 1 82 em relação ao papel da EJA: (...) a função reparadora deve ser vista, ao mesmo tempo, como uma oportunidade concreta de presença de jovens e adultos na escola e uma alternativa viável em função das especificidades sócioculturais destes segmentos para os quais se espera uma efetiva atuação das políticas sociais. É por isso que a EJA necessita ser pensada como um modelo pedagógico próprio a fim de criar situações pedagógicas e satisfazer necessidades de aprendizagem de jovens e adultos. (BRASIL,2000) É importante que se estabeleça um comprometimento com todos os envolvidos nestes níveis de ensino, para que haja uma reflexão sobre atitudes didáticas e pedagógicas em relação a níveis de educação diferenciados. Alvisi (2009) analisa os discursos produzidos a partir dos currículos escolares e como são mobilizados os saberes na sala de aula de EJA sem que haja um currículo específico para esta modalidade de ensino: o olhar que temos sobre os desenhos curriculares para a EJA implica reconhecer as condições em que a modalidade foi construída, seu caráter compensatório e descontínuo permeado por efeitosVerdade. Assim, não pretendemos buscar a origem dos discursos, mas sim para seus efeitos-Verdade em sua constituição. 1 83 A Educação de Jovens e Adultos, em particular na escola pesquisada, se caracteriza pela presença de alunos com anseios diversificados daqueles que fazem parte da educação regular, com diferentes vivências, com conhecimentos trazidos de relações de trabalho, de família e convívio em comunidade, na maioria das vezes, posicionamentos e interpretações já estabelecidos, por meio das experiências e opiniões construídas social e culturalmente ao longo de suas vidas. Por isso, o conhecimento trazido de fora da escola pelos alunos deste nível de ensino e o resgate de saberes trazidos por eles por experiências diversas fazem com que se construa uma educação específica e particular, levando em conta os objetivos e anseios destes alunos e de seus professores, no que diz respeito à sua formação básica. O nível médio da educação básica, na Educação de Jovens e Adultos, é pouco analisado nas pesquisas de educação Matemática. Levando em conta os modos de interação entre os sujeitos que aprendem e o conhecimento matemático escolar, a análise da Matemática escolar na EJA e o modo como esta se aproxima e se torna significativa para os alunos fora da idade escolar e com ricos conhecimentos extra-escolares, são questões relevantes no que diz respeito à pesquisa em educação. Araújo (2001 ), em sua dissertação de mestrado, revela a escolha de alguns professores de Ensino Médio, segmento EJA, por distintos materiais didáticos. A autora analisa tais escolhas e a justificativa do docente quanto ao uso destes instrumentos didáticos, como sugestões da Ação Educativa, livros de Ensino Médio da Educação Regular. O ensino de Matemática, especificamente no nível Médio, será responsável pela abrangência de temas já tratados no Ensino Fundamental, como justificado pelo PCNEM: 1 84 (...) as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, que organizam as áreas de conhecimento e orientam a educação à promoção de valores como a sensibilidade e a solidariedade, atributos da cidadania, apontam de que forma o aprendizado de Ciências e de Matemática, já iniciado no Ensino Fundamental, deve encontrar complementação e aprofundamento no Ensino Médio. Nessa nova etapa, em que já se pode contar com uma maior maturidade do aluno, os objetivos educacionais podem passar a ter maior ambição formativa, tanto em termos da natureza das informações tratadas, dos procedimentos e atitudes envolvidas, como em termos das habilidades, competências e dos valores desenvolvidos. (BRASIL, 2000) Os objetivos do Ensino Médio, ainda segundo os PCNEM, apontam para a combinação do desenvolvimento de conhecimentos práticos e contextualizados, com o desenvolvimento de conhecimentos mais amplos e abstratos, justificando a existência de uma ligação entre os dois níveis de ensino, Fundamental e Médio, que valorize o sujeito, suas contribuições culturais à escola e sua relação com o conhecimento. Porém, como justifica Monteiro (2005) “uma proposta bem escrita e arrojada não garante mudanças ou inovações no ambiente pedagógico. Estas acabam dependendo muito mais do envolvimento das equipes pedagógicas com o que está sendo construído do que do texto em si”. A autora discute sobre as relações entre a Matemática do cotidiano e a escolar, presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e defende que: a relação entre conhecimento matemáti- 1 85 co escolar e conhecimento matemático cotidiano tende a se limitar a uma visão psicológica em que o conhecimento cotidiano assume um papel de coadjuvante, ou seja, é assumido como um ponto de partida a ser superado num processo de sobreposição pelo conhecimento escolar. Entretanto, nesse mesmo documento, encontramos indicações contraditórias sobre o entendimento dessas relações. Isto se torna mais evidente quando a Etnomatemática é indicada como uma alternativa interessante na Educação Matemática. Ainda nesta discussão sobre conhecimento matemático escolar e do cotidiano, Fonseca (2006) trata da importância do reconhecimento dos saberes trazidos pelos alunos de EJA (Educação de Jovens e Adultos) para a escola, em particular, de seus conhecimentos adquiridos em suas experiências escolares anteriores, no intuito de resgatar conhecimentos já adquiridos pelos alunos e fazê-los se reconhecerem como sujeitos escolares, que mobilizam conhecimentos: É, portanto, quando o indivíduo se encontra interpelado como sujeito e se vê com identidade que ele se empenha na busca do sentido e exercita a rememoração, dando-lhe expressão. O sentido da matemática, aqui indissociável do sentido que se constrói no processo de ensino-aprendizagem, incorpora os efeitos da enunciação de suas lembranças e constitui-se como efeito de interdiscursos que mobilizam personagens, cenários e enredos da matemática acadêmica, das representações e propósitos da institui- 1 86 ção escolar, das demandas da vida social, das histórias individuais compartilhadas (...). Em geral, as pesquisas que focalizam a Educação de Jovens e Adultos, têm dado margem a reflexões diversas sobre currículo e contextualização, porém verifica-se nelas a falta de uma maior discussão sobre questões como as relações do saber matemático escolar e os sujeitos enquanto sujeitos sociais, levando em conta o Ensino Médio e suas mudanças nos últimos tempos e a necessidade de promover novas inquietações e reflexões acerca do ensino de Matemática neste nível de ensino. O termo sujeito social, alude à discussão feita por Charlot (2000) sobre a necessidade de tal definição, uma vez que o sujeito é um ser humano portador de desejos, que possui historicidade e é movido por tais ações, estando sempre em relação com outros seres humanos, estes também sujeitos com desejos e historicidades próprias. Além disso, segundo o autor, o sujeito é também um ser social, na medida em que ocupa um determinado lugar social e que faz parte de relações sociais. A definição do termo sujeito social, será utilizada durante o decorrer do texto, levando em conta as contribuições de Charlot (2000). O saber matemático e o modo como se dá a relação entre sujeito e conhecimento precisa ser discutido quando se quer entender como o sujeito aprende e como tornar o ensino escolar significativo. Charlot (2001 ) é autor de estudos que contribuíram para o entendimento e aprofundamento sobre as relações ocorridas entre o jovem e o saber em diferentes contextos e pôde concluir que a relação entre sujeito e saber se dá de formas diferentes, dependendo da classe social que os sujeitos pertencem e dos modos como estes sujeitos interpretam, dão significado e sentido ao co1 87 nhecimento. A ação de um sujeito sobre os outros que convivem no mesmo ambiente de aprendizagem, a reafirmação do saber, a significância do que esta sendo aprendido é importante para que esta relação entre conhecimento e sujeito se dê de forma produtiva, levando em conta o contexto do aluno e quais são suas aspirações relativamente à escola e aos conteúdos escolares. Ainda de acordo com o autor, mais do que fazer com que o aluno se interesse pela escola, é necessário que este se identifique com ela, podendo reconhecer-se e inteirar-se de modo ativo e dinâmico na construção de novos saberes e na valorização do sujeito social e cultural, ativamente presente e responsável pela dinâmica escolar, afinal: Para compreender a relação dos jovens (da camada popular) com o saber e com a escola, é preciso interessar-se também por suas relações mais gerais com o aprender. Os fracassos, abandonos... que a escola deplora são também efeitos dos conflitos entre formas do aprender (Charlot, 2001 ). É possível notar, por meio dos estudos deste autor, a importância da relação entre a escola e a sociedade, considerando o sujeito como pólo ativo no processo de aprendizagem e com escolhas, atitudes e modos de pensar e reconhecer o mundo muito próprios, características estas construídas ao longo de suas atividades sociais. Porém, é preciso levar em conta o sujeito e o seu desejo de aprender uma vez que: O sujeito é indissociavelmente humano, social e singular. O sujeito está vinculado a uma história, na qual é, ao mesmo tempo, portador de desejo (...). O sujeito 1 88 interpreta o mundo, dá sentido ao mundo, aos outros e a si mesmo. É sujeito que aprende, mas ele só pode aprender pela mediação do outro. (Charlot, 2005) A Matemática, mais do que uma disciplina curricular, é objeto social, como discutido por Abreu (1 995) “tanto o conhecimento como as atitudes, e as crenças, são influenciados pelo contexto sócio-cultural das práticas matemáticas”, de modo que professores e alunos têm representações sócio-culturais em relação à Matemática distintas. Para essa autora, sendo a Matemática uma representação social, é relevante que se estude e analise a aprendizagem por meio de uma perspectiva social. Além disso, que se considere diferentes matemáticas, uma vez que a Matemática está sempre associada a práticas sociais distintas e, em cada uma destas práticas se faz Matemática de acordo com as especificidades de cada prática social: (...) deixamo-nos de nos referir à matemática como um corpo homogêneo e universal de conhecimentos e passamos a falar em matemáticas no plural. E tais matemáticas passam a ser vistas como aspectos de atividades humanas realizadas com base em um conjunto de práticas sociais, tais como aquelas realizadas pelos matemáticos profissionais, pelos professores de matemática, pelas diferentes comunidades constituídas com base em vínculos profissionais, bem como pelas pessoas em geral em suas atividades cotidianas. (Miguel, 2008) O contexto em que se dá o aprendizado e a relação entre saber matemático e o sujeito que aprende é responsá1 89 vel pelos modos de estruturação e relações criadas com o conhecimento matemático. A Matemática enquanto ferramenta cultural e social dá suporte ao indivíduo na criação de diferentes interações e na formulação de representações distintas de acordo com o contexto em que é utilizada. Lave (1 988) fez uma pesquisa na qual investiga como ocorrem as relações entre sujeito e o conhecimento matemático em contextos extra-escolares, como no supermercado, por exemplo. A autora concluiu que uma mesma atividade, em situações diferentes, deriva a própria estruturação de outras atividades e fornece meios de estruturação para elas, pois, segundo ela: Uma teoria da prática considera o aprendizado, o pensamento e o conhecimento como processos histórica e culturalmente específicos, socialmente constituídos e politicamente ajustados, e argumenta que eles estruturam claramente o mundo social, assim como são estruturados por ele (Lave, 1 988). Lave (1 991 ) justifica a relevância de sua teoria, uma vez que toda atividade de aprendizagem ocorre em situações distintas, não existindo, para essa autora, aprendizagem que não esteja situada, e enfatiza a importância do entendimento e analise do ambiente em que se dá o processo de aprendizagem. Os alunos já adultos, que fazem parte dos cursos de Educação de Jovens e Adultos, trazem consigo vastos conhecimentos matemáticos já produzidos em diferentes situações – de trabalho, cotidianas, entre outras atividades – justificando as afirmações de Lave (1 991 ) sobre a necessidade do resgate de conhecimentos dos alunos produzidos em situações específicas, que estejam envolvidos em contextos e situações únicos, dando sentido e 1 90 significado ao conhecimento a ser adquirido. Porém, não se pode esperar que a Matemática praticada na sala de aula seja similar a prática da Matemática em outros contextos, com mesmos valores e representações aos seus sujeitos: [...] praticamente nenhum problema em uma loja ou na cozinha foi resolvido sob forma do algoritmo escolar. As regras de transformação (que eliminam aproximações algorítmicas para frações e decimais) não são transferidas, como também não o são as notações de posições fixas (já que lápis e papel não são utilizados), os cálculos, a trigonometria, álgebra etc. De fato, a questão devia ser: existe algo que é transferido?. (Lave, 2002) Lave (1 991 ) discorre sobre o desenvolvimento do conhecimento abstrato nos grupos analisados (alfaiates, parteiras, açougueiros, marinheiros e pessoas com abstinência alcoólica): (...) a formação ou aquisição de um principio abstrato é para si mesmo um evento específico em circunstancias específicas. (...) De qualquer forma poderes de abstração serão perfeitamente situados, na vida das pessoas e na cultura que torna isso possível” A escola ainda trata de um conhecimento descontextualizado, com situações de ensino muito específicas e pouco significativas para os alunos, no entanto, como afirma Lave (1 991 ), uma aprendizagem escolar situada requer uma 1 91 visão de multicamadas em que conhecimento e aprendizagem sejam partes de uma prática social, um grande projeto em si. O ensino de Matemática presente na escola não traz referências ou mesmo valores aos sujeitos deste processo de aprendizagem: O sistema escolar hoje existente está alicerçado nos interesses de uma determinada classe dominante e organiza-se a partir de discursos, valores e princípios cultivados e presentes no cotidiano dessa classe, excluindo do processo escolar não apenas os saberes e fazeres que diferem do padrão constituído, mas, especialmente as pessoas que produzem esses saberes. (Monteiro, 2007) Monteiro (2007) defende a valorização de práticas e saberes excluídos do contexto escolar, possibilitando aos sujeitos sua identificação e envolvimento com os saberes escolares a serem construídos. Ainda com respeito as práticas sociais e às contribuições de Lave, como afirma Miguel (2008): Ainda que os estudos realizados por Lave incidam sobre práticas não-escolares que mobilizam cultura matemática, eles nos parecem de grande valia para se entender também as práticas tipicamente escolares. A análise e a reflexão sobre as diferentes práticas envolvendo a Matemática são essenciais quando se trata de entender a relação e os modos de interação do sujeito escolar com o saber matemático: 1 92 (...) falar em matemática escolar, em vez de simplesmente matemática, ou em educação matemática escolar, em vez de simplesmente educação matemática ou, ainda, em práticas escolares mobilizadoras de cultura matemática, em vez de simplesmente práticas mobilizadoras de cultura matemática, começa a se tornar um fator imprescindível para a identificação e interpretação da diversidade e da identidade culturais e, consequentemente, para a análise de práticas culturais situadas. (Miguel, 2008) Muitos indivíduos fracassam quando se deparam com o conhecimento matemático escolar e se desestimulam por não encontrarem sentido no estudo de tais formalizações trabalhadas na escola. Quando o sujeito atribui significado e valor ao conhecimento matemático, consegue estruturar e criar modos de pensar próprios a partir do que lhe foi ensinado. As contribuições de Lave (1 991 ) podem embasar estudos e reflexões na formação de futuros professores no que diz respeito à aprendizagem de conceitos, suas atividades de aprendizagem e sua cultura como elementos indissociáveis, embasando discussões importantes a respeito da necessidade do estagio supervisionado e a postura do professor diante desta etapa de formação. Oliveira (2006) justifica o papel do professor na etapa de estágio supervisionado, não apenas como observador, porém como aprendiz ativo, que se relaciona com o objeto de conhecimento e com o contexto em que ocorre a aprendizagem. A autora, embasada na teoria de Lave (1 991 ), discute a aprendizagem situada e a relevância de reflexões sobre comunidades de prática, em relação à formação do professor de Matemática 1 93 e sua identificação no contexto de aprendiz da função docente: (...) aprender a identifica-se com o processo de passagem da condição de novato, de recém-chegado, em uma comunidade, à condição de perito em uma situação particular, sobretudo pelo engajamento/participação em atividades reais. De forma particular, a Educação de Jovens e Adultos configura-se como uma educação diferenciada, seja pela extensão de seus cursos devido ao menor tempo durante seus níveis de formação, seja pelo público e suas especificidades, público este constituído de jovens fora da idade escolar e adultos que voltam à escola para a conclusão da educação básica. O que justifica um olhar diferenciado quando se discute propostas curriculares para esta modalidade de ensino, afinal: (...) ao considerar as dimensões curriculares para uma formação matemática na educação de jovens e adultos, não se pode pensar em um processo de ensino e aprendizagem da Matemática fora do contexto cultural, declarando-a como absoluta, abstrata e universal, pois essa visão seria a principal razão para a alienação e os fracassos da grande maioria dos estudantes nesta disciplina. (Kooro, 2007) JESUS (2005) analisa o processo de ensino aprendizagem de Matemática em uma sala de escola pública de EJA, tendo como foco de analise a interação dos alunos 1 94 com o conhecimento matemático, os modos como eles se relacionavam com este conhecimento e a maneira de auxiliá-los na construção e aprendizagem de novos conceitos a serem aprendidos. JESUS (2005) discorre sobre a importância do professor e do pesquisador neste processo de ensino, a relevância do sujeito na construção do conhecimento e na busca por novos caminhos pedagógicos a serem articulados, de acordo com contextos específicos e necessidades particulares dos alunos de EJA: Ao ouvirmos e sermos co-responsáveis pela satisfação das necessidades matemáticas desses alunos, possibilitamos a construção de chaves de leitura de mundo, que proporcionam a apropriação de elementos que lhes permitem compreender com maior profundidade a realidade complexa na qual estão inseridos (...) (JESUS, 2005). A relevância do ensino de Matemática é algo consentido por todos os agentes da escola, estudantes, professores e comunidade, porém, a questão “o que ensinar?” para alunos de EJA nos leva a discussões pouco exploradas até o momento. Fonseca (1 999) defende que “a 'busca do essencial' não poder ter a conotação de mera exclusão de alguns conteúdos mais sofisticados, dando a sensação de que os alunos jovens e adultos 'receberiam menos' do que os alunos do curso regular". É preciso que haja reflexão acerca das necessidades dos alunos de EJA e, conforme justifica Araujo (2001 ): não se trata de escolher entre ensinar ou não função, por exemplo. Mas, antes, se questionar qual é (e qual foi) a importância desse conhecimento para a soci- 1 95 edade. E, além disso, esclarecer se ele possui princípios que são alicerces para outros conhecimentos. Os PCNs trazem a tona a importância de uma formação abrangente, que insira o jovem na sociedade e que lhe dê ferramentas condizentes para fazer parte do mercado de trabalho. Porém, como discutido por Monteiro (2005): Essa inserção no campo do trabalho, como no das relações sociais e culturais, num país de dimensões continentais como é o caso do Brasil, requer que se leve em consideração a diversidade de atividades econômicas e empregatícias, o que acaba por constituir dificuldades expressivas para a elaboração de uma proposta de caráter nacional, e, no limite, representar, frente a esta, uma contradição. Assim, quando justifica-se a escolha por conhecimentos importantes para a sociedade, Araújo (2001 ) referese a sociedade local da qual os sujeitos da comunidade escolar participam ou anseiam participar. Kooro (2007) em seu estudo e analise de um currículo de Matemática para alunos jovens e adultos, conclui que: Ao pensar as funções da Educação Matemática para esses estudantes fortemente marcados pela exclusão, devemos considerar suas necessidades, reconhecendo-os com suas histórias de vida, seus saberes e sua cultura, para então tomar decisões que busquem possibilitar sua re-inclusão e uma melhor compre- 1 96 ensão sobre a realidade, aumentando sua autoconfiança, senso crítico e a capacidade de tomar decisões. As representações e significações acerca da Matemática trazidas para a escola, seja pelos professores ou alunos, são ferramentas importantes no processo de entendimento de como cada sujeito se relaciona e no entendimento de suas expectativas em relação ao ensino e aprendizagem de Matemática. Os alunos de EJA, em particular, trazem consigo lembranças de uma Matemática escolar muito própria, acompanhadas de interações e significados específicos de momentos no qual eram parte de uma comunidade escolar. Além disso, por se tratarem muitas vezes de trabalhadores, estes de algum modo trazem de seus cotidianos uma Matemática também particular e que é encarada de modo próprio, positiva ou negativamente, por cada sujeito que agora retorna à escola. Fonseca (2006) quando analisa e discorre sobre o discurso, as significações e a constituição dos sujeitos da EJA em relação à educação Matemática afirma que: (...) é preciso aprender a compreender e incorporar à dinâmica pedagógica aquelas enunciações em que alunos e professores falam de matemática. Nessas oportunidades, professores e alunos falam de dentro da Matemática, a partir de um modo de pensar matemático, construído na experiência de matematicar. Esse discurso da Matemática é forjado numa memória semântica, e, por sua vez, a alimenta. Os modos de apropriação e de relação entre o sujeito e a Matemática, seja ela escolar ou não, tornam-se im1 97 portantes ferramentas no processo de estudo e análise da Matemática e no estudo de sua relação com o sujeito que aprende, como justifica Valverde (2006), em sua pesquisa, sobre as relações entre a linguagem materna e a linguagem Matemática e como estas contribuem para o desenvolvimento e aprimoramento da outra: ...a Matemática pode auxiliar os alunos a entenderem a passagem de uma linguagem natural para uma linguagem artificial, linguagem esta que permite a modelização de operações realizadas com objetos – operações essencialmente de abstração –, portanto, linguagem que faz com que equações sirvam tanto para representar a soma dos ingredientes de uma receita simples que se pretende duplicar, modelando um raciocínio que poderia ser seguido por qualquer falante em seu cotidiano, quanto para representar as razões da alta dos juros, modelando saberes científicos que emergem no âmbito de embates sociais e políticos. (MATENCIO, 2005) As afirmações de Matencio (2005) e as conclusões tiradas por Valverde (2006), a partir das interações e modos de matematização encontradas num ambiente escolar de EJA, refletem sobre as interações ocorridas entre os jovens que procuram os últimos anos da educação básica, além de estudarem e analisarem como o aluno se relaciona com o conhecimento matemático mais abstrato e muitas vezes pouco contextualizado, ressaltando a importância das vivências e experiências trazidas pelos alunos ao ambiente escolar 1 98 Considerações Finais As discussões a cerca da Matemática como prática social e sobre a relevância de tais práticas diante de diferentes contextos deram base de sustentação deste trabalho. Nota-se que muitos momentos os alunos relacionam-se com a Matemática escolar com um saber legitimado e universal, algo pronto e acabado e que traz consigo as dificuldades da formalização e sistematização. É possível perceber a capacidade dos alunos de EJA de criar recursos e ferramentas próprias para resolver desafios de trabalho e do cotidiano, mecanismos próprios que foram adquiridos através da experiência e das práticas sociais a que participam. Porém, estas maneiras de pensar, quando estes alunos estão em sala de aula, não são exploradas e passam a ser vistas, por eles próprios como algo ilegítimo, que deve ser corrigido. É neste momento que muitos encontram dificuldades com a Matemática, que apontam a falta de capacidade para aprender por não conseguirem anular o que já haviam aprendido. Entender as diferentes formas de aprendizagem e a relação da aprendizagem com o contexto em que esta ocorre é um desafio de diversos educadores e pesquisadores da área de educação e educação Matemática. Não obstante, as diferentes formas de aprendizagem matemática servem de estudo na busca de esclarecimentos dos modos que se dão as relações entre o conhecimento e o sujeito, em diferentes cenários. A escola, em particular cenário de estudo e analise nesta pesquisa, centraliza diferentes formas de aprender. E, como afirma Charlot (2005), para entender a relação do jovem com o saber deve-se entender seu papel no ambiente de ensino: “não se vai à escola somente para se preparar para ocupar uma posição social; vai-se à escola também para aprender. E é dessa forma que se deve estudar a relação com o saber”. 1 99 O ensino da Matemática, especificamente no que diz respeito ao de alunos trabalhadores, demonstra graves embates quanto aos modos de se conceber este ensino. O desejo de aprender, apesar do evidente esforço de seus sujeitos, precisa fazer parte da rotina escolar diária destes alunos, tornando-os membros da comunidade escolar. A Matemática mais do que ferramenta de inserção social é uma prática social que todos a compartilham, porém de diferentes formas e em diferentes atividades. Cabe a escola evidenciar tais práticas e usá-las como recursos de significação e diálogo: “trata-se de considerar as diferentes práticas sociais como fatos culturais construídos pelos homens e, portanto, tão significativos e importantes quanto os fatos científicos” (Monteiro, 2007). Referências bibliográficas ABREU, Guida. A teoria das representações sociais e a cognição matemática . Quadrante, vol.4, n. 1 , 1 995. ALVISI, C.; MONTEIRO, A., A travessia do curriculo-verdade para currículo experiência:por caminhos indisciplinares. In: IX Encontro de Pesquisa em Educação da Região Sudeste , 2009, São Carlos. Pesquisas em Educação no Brasil: Balanço do século XX e desafios para o século XXI. São Carlos : UFSCar, 2009. ARAÙJO, D. A., O ensino médio na educação de jovens e adultos: o material didático de matemática e o atendimento às necessidades básicas de aprendizagem, dissertação de mestrado , UFMG, Minas Gerais, 2001. BRASIL. Lei n° 9394, de 20 de dezembro de 1 996. 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Dissertação de Mestrado, Unicamp – SP, 2006. 204 artigo A DIVERSIDADE LINGUÍSTICA NO ENSINO DE LÍNGUA MATERNA NA EDUCAÇÃO DE PESSOAS JOVENS E ADULTAS Profa. Ms. Danielle Christiane da Silva Viveiros (danielle_christiane@ hotmail.com) Profa. Dra. Fabiana Marine Braga Universidade Federal de São Carlos – UFSCar Resumo Nossa tradição educacional sempre negou a existência de uma pluralidade de normas linguísticas dentro do universo da língua portuguesa; a própria escola não reconhece que a norma padrão culta é apenas uma das muitas variedades possíveis no uso do português e rejeita de forma intolerante qualquer manifestação linguística diferente, tratando, muitas vezes, os alunos como “deficientes linguísticos”. Falar diferente não é falar “errado” e o que pode parecer erro no português não-padrão tem uma explicação lógica, científica, linguística, histórica, sociológica e psicológica. Desse modo, o objetivo que se propõe para este trabalho nos seus diversos módulos é uma reflexão linguística em relação à forma de abordagem dos fenômenos de variabilidade linguística nas aulas de Língua Portuguesa na Educação de Pessoas Jovens e Adultas (EJA). Uma vez que esta se configura na expectativa de um espaço diversificado de 205 conhecimento, cultura e prática de reflexão. Espera-se, com este trabalho, contribuir significativamente para uma educação linguística menos marcada pela intolerância. Palavras-Chave: Diversidade Linguística. Preconceito Linguís- tico. Educação de Pessoas Jovens e Adultas. Introdução Na maior parte das vezes, o ensino de gramática é feito de forma rígida, como se tudo que fosse diferente do que está registrado ou codificado por nossas gramáticas fosse inerentemente errado. O ensino normativo tem o objetivo explícito de banir da(s) língua(s) formas ditas empobrecedoras, formas ditas desviantes, formas consideradas indignas de uma língua bem falada e, portanto, consideradas indignas de serem usadas por homens de bem. E, na perseguição deste objetivo (no sentido mais literal do termo), muitas vezes, e com frequência, banem-se da escola não as formas linguísticas consideradas indesejáveis, mas, sim, as pessoas que as produzem, porque estas formas são normalmente produzidas em maior número pelas pessoas de classe social sem prestígio. As pessoas de classe prestigiada também produzem as formas consideradas indesejáveis, só que, às vezes, em menor quantidade. (SCHERRE, 2005, p. 42). Sabe-se que a língua é um instrumento de poder, de dominação e de opressão. Assim, as questões que envolvem a linguagem não são simplesmente linguísticas; são, 206 acima de tudo, ideológicas. Nota-se, também, que o preconceito e a intolerância na linguagem estão camuflados nos discursos e atingem o cerne das individualidades, pois a linguagem é o que o homem tem de mais íntimo e o que representa sua subjetividade. Além disso, a metalinguagem preconceituosa denuncia outros preconceitos de ordem (social, racial, política, religiosa entre outras) e o educador precisa saber reconhecê-los e ter um material norteador para abordar tais variações linguísticas. Trata-se de um tema complexo, uma vez que envolvem questões de identidade, estigma, discriminação, preconceito, norma, prestígio social entre outros; quando não abordados de uma maneira adequada, em vez de promover a conscientização e o avanço da cidadania, podem gerar preconceitos e constrangimentos. Por isso, é imprescindível que o educador conheça, respeite e trabalhe as variedades linguísticas de prestígio e também as variedades usadas pelos educandos da EJA no seu dia a dia. Este trabalho é fundamentado em uma concepção sociocognitivointeracional de língua, em particular em Bakhtin (1 992). Esta abordagem privilegia os sujeitos e seus conhecimentos em processos de interação. O lugar mesmo de interação é o texto cujo sentido "não está lá", mas é construído, considerando-se, para tanto, as "sinalizações" textuais dadas pelo autor e os conhecimentos do leitor, que, durante todo o processo de leitura, deve assumir uma atitude "responsiva ativa". Em outras palavras, espera-se que o leitor, concorde ou não com as ideias do autor, complete-as, adapte-as etc., uma vez que "toda compreensão é prenhe de respostas e, de uma forma ou de outra, forçosamente, a produz." (Bakhtin, 1 992, p.290). Acredita-se que um dos principais passos para o tra207 balho com Educação de Pessoas Jovens e Adultas seja a valorização do conhecimento prévio e o reconhecimento dos alunos como portadores de cultura e saberes. Visto que são pessoas que estão voltando para a escola, muitas vezes em busca da educação que o mercado exige. Chegam cansados depois de um dia de trabalho, têm pouco tempo para se dedicarem aos estudos, mas chegam também com muitas histórias e vivências. Segundo Souza (2006), as classes de EJA são heterogêneas. Nelas encontram-se, por exemplo, jovens urbanos envolvidos em movimentos da cultura de massa, pessoas que buscam um diploma para uma promoção no emprego, migrantes da zona rural, pessoas que almejam uma participação político-social mais ativa, idosos, fiéis que querem aprender a ler a Bíblia entre outros. Infelizmente, esses alunos são, na maioria das vezes, rotulados como “incapazes para o aprendizado”, pois o professor da EJA não trabalha as competências relativas às especificidades dos estudantes, não permitindo assim o entendimento da forma de pensar e de construir o conhecimento dos adultos. Para Cagliari (1 991 ), os modos diferentes de falar acontecem porque a língua portuguesa, como qualquer outra língua, é um fenômeno dinâmico, que está sempre em evolução. Pelos usos diferenciados ao longo do tempo e nos mais diversos grupos sociais, as línguas passam a existir como um conjunto de falares diferentes ou dialetos, todos muito semelhantes entre si, porém cada qual apresentando suas peculiaridades com relação a alguns aspectos linguísticos. Todas as variedades, do ponto de vista da estrutura linguística, são perfeitas e completas em si. O que as tornam diferentes são os valores sociais que seus membros possuem na sociedade. Desse modo, ainda segundo o au208 tor, os dialetos de uma língua, apesar de serem semelhantes entre si, apresentam-se como línguas específicas, com sua gramática e usos próprios. Na medida em que se diferenciarem muito uns dos outros serão reconhecidos como línguas diferentes. De acordo com Cagliari (1 991 ), a escola percebe a variação linguística como uma questão de certo ou “errado”. Em sua avaliação, não tem lugar diferente, embora este represente a maior parte das situações que o alfabetizador enfrenta. Ninguém fala “errado” o português, fala de maneira diferente. Por experiência própria, todos os falantes sabem disso, porém a escola insiste em manter essa postura errônea diante dessa questão. O ensino tradicional, muitas vezes, alimenta a falsa ideia de que o português é uma língua difícil, o que todo educador da EJA deve ter bem claro é que seus alunos refletem variações linguísticas que representam sua origem regional, de gênero (variações segundo o sexo), etária (varia de acordo com a idade) e socioeconômica. Além da abordagem de Bakhtin, tratar-se-ão aqui de alguns conceitos da corrente sociolinguística criada por Willian Labov, em 1 960, que traz um respeito maior à diversidade social e regional dos educandos, tentando encontrar um caminho para democratizar o ensino. Os sociolinguistas veem a língua em seu uso real, levando em conta principalmente as relações sociais que levam à produção linguística. Assim, a língua é social e não pode ser estudada como uma estrutura autônoma e independente do contexto, da cultura ou da história de um indivíduo ou população. Portanto, a variação da língua é algo inevitável, pois todas as manifestações verbais de uma língua sofrem alterações. Não existe mais um único jeito de falar o português, mas um respeito pelos diversos falares que nossa língua ganhou em cada região do país e em cada grupo socioeconômico. 209 Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (2001 ), o ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa na escola é resultante de três elementos: o aluno, o sujeito da ação de aprender, que age sobre o objeto de conhecimento; a língua, que é a Língua Portuguesa, tal como se fala em públicos e a que existe nos textos escritos que circulam socialmente; e o último elemento, o ensino, concebido como prática educacional que organiza a mediação entre sujeito e objeto do conhecimento. Dessa maneira, este trabalho propõe um ensino da língua materna que não perde de vista o fato fundamental da heterogeneidade linguística e que se posiciona em prol de uma educação linguística que abandone o estudo da língua como objeto em si mesma e passe a incorporar o conceito de heterogeneidade como aspecto fundamental do ensino de língua nas escolas. Pois, acredita-se que somente nessa perspectiva, todos os professores em atividade e/ou formação, interdisciplinarmente transformados em professores de língua, passarão a valorizar seus alunos da EJA como seres históricos inapelavelmente marcados pela heterogeneidade linguística. Objetivos Dada a sua importância e escassez de estudos, o objetivo que se propõe para este trabalho nos seus diversos módulos é uma reflexão linguística em relação à forma de abordagem dos fenômenos de variabilidade linguística nas aulas de Língua Portuguesa na EJA, uma vez que esta se configura na expectativa de um espaço diversificado de conhecimento, cultura e prática de reflexão. É visando a oferecer contribuição significativa para uma educação linguística menos marcada pela intolerância que se elabora este trabalho, levando-se em conta as po21 0 tencialidades e os desafios que os procedimentos metodológicos podem apresentar aos/as educadores/as dentro dessa perspectiva. A partir desses objetivos, desenvolve-se aqui uma pesquisa bibliográfica baseada em Bakhtin, Bagno, Cagliari, Gnerre, Labov, Leite, Neves, Possenti, Riscal e Scherre. Em todo o trabalho, ocorrências são apresentadas a fim de exemplificar a análise e também o aparato teórico. Com este trabalho, espera-se que muitos preconceitos sejam superados, que muitas aulas melhorem, que muitas pessoas, especialmente na escola, sejam respeitadas em suas diversidades linguísticas. Metodologia de pesquisa: condições favoráveis à diversidade linguística na EJA Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais – Ensino Fundamental (PCNs) (2001 , p.31 ), o problema do preconceito linguístico disseminado na sociedade em relação às falas populares deve ser enfrentado, na escola, como parte do objetivo educacional mais amplo de educação para o respeito à diferença. Para isso, e também para poder ensinar Língua Portuguesa, a escola precisa livrar-se de alguns mitos: o de que existe uma única forma “certa” de falar – a que se parece com a escrita – e o de que a escrita é o espelho da fala – e, sendo assim, seria preciso “consertar” a fala do aluno para evitar que ele escreva errado. Essas duas crenças produziram uma prática de “mutilação cultural” que, além de desvalorizar a forma de falar do aluno, tratando sua comunidade como se fosse formada por incapazes, denota desconhecimento de que a escrita de uma língua não corresponde inteiramente a nenhum de seus dialetos, por mais prestígio que um deles tenha em um dado momento histórico. 211 Encontram-se nos PCNs orientações explícitas para que a variação linguística seja trabalhada em sala de aula como parte dos objetivos do ensino de Língua Portuguesa a serem alcançados pelos alunos: Utilizar diferentes registros, inclusive os mais formais da variedade linguística valorizada socialmente, sabendo adequálos às circunstâncias da situação comunicativa de que participam. Conhecer e respeitar as diferentes variedades linguísticas do português falado. (PCN, 2001 , p.41 ) Sabe-se que a Língua Portuguesa possui muitas variedades, ou seja, diferentes falares regionais presentes numa dada sociedade, num dado momento histórico. Desse modo, as pessoas são identificadas geográfica e socialmente pela forma como falam. Mas, infelizmente, ainda hoje, há muitos preconceitos decorrentes do valor social relativo que é atribuído aos diferentes modos de falar: é muito comum se considerarem as variedades linguísticas de menor prestígio como inferiores ou “erradas”. É preciso encarar os fatos de que todos os que falam sabem falar, é uma questão histórica, social e cultural. Pois, as pessoas aprendem a falar de acordo com os lugares em que nascem e vivem, e não como se fala em outros lugares, pois cada lugar fala o seu dialeto. De acordo com Possenti (2005, p.29), “os grupos que falam uma língua ou um dialeto em geral julgam a fala dos outros a partir da sua e acabam considerando que a diferença é um defeito ou um erro.” O autor ainda cita que a chamada língua padrão é de fato o dialeto dos grupos sociais mais favorecidos como se fosse o único dialeto válido. Com isso, seria uma violência cultural com os outros dialetos. 21 2 Temos de fazer um grande esforço para não incorrer no erro milenar dos gramáticos tradicionalistas de estudar a língua como uma coisa morta, sem levar em consideração as pessoas vivas que a falam. O preconceito linguístico está ligado, em boa medida, à confusão que foi criada, no curso da história, entre língua e gramática normativa. Nossa tarefa mais urgente é desfazer essa confusão. Uma receita de bolo não é um bolo, o molde de um vestido não é um vestido, um mapa-múndi não é o mundo… Também a gramática não é a língua. (BAGNO, 2009, p. 1 9) Leite (2008, p.20) diferencia preconceito e intolerância: para a autora preconceito é a ideia, a opinião ou o sentimento que pode conduzir o indivíduo à intolerância, à atitude de reagir com violência ou agressividade a certas situações. Um preconceito, ao contrário, pode existir sem jamais se revelar e, por isso, existe antes da crítica. Muitas vezes, os falantes das variedades estigmatizadas deixam de usufruir diversos serviços a que têm direito simplesmente por não compreenderem a linguagem empregada pelos órgãos públicos. Como diz Gnerre em seu livro Linguagem, escrita e poder (2009, p.1 0), a Constituição afirma que todos os indivíduos são iguais perante a lei, mas essa lei é, na realidade, redigida numa linguagem que só uma parcela reduzida de brasileiros consegue entender. A discriminação social começa, portanto, já no texto da Constituição. É claro que Gnerre não está querendo dizer que a Constituição deveria ser escrita em alguma variedade estigmatizada, mas sim que todos os brasileiros que estão sujeitos a ela deveriam ter acesso mais amplo e democratizado a 21 3 essa espécie de língua oficial que, restringindo seu caráter veicular a uma parte da população, exclui necessariamente outra, sem dúvida a maior. Como a educação de qualidade ainda é privilégio dos grupos sociais mais favorecidos, uma quantidade gigantesca de brasileiros permanece à margem do domínio das formas prestigiadas de uso da língua, que sempre foi um poderoso instrumento de dominação simbólica, um bem supostamente reservado a uma pequena parcela de privilegiados – retirar esse instrumento das mãos de uns poucos e transformá-lo num bem acessível a todos os cidadãos, democratizando seu uso e reconhecendo o valor de todas as manifestações vivas da linguagem, decerto representa um perigo para a preservação de um tipo de sociedade, como a brasileira, que segundo Bagno (201 0, p.21 0) se constituiu historicamente como uma das mais excludentes e opressoras do mundo. Daí o fato dessas prescrições serem usadas como instrumentos autoritários de repressão e de exclusão social. Para Fonseca (2005), essas inúmeras variedades do português falado por milhões de brasileiros de diferentes regiões, tradições, idades e classes sociais podem ser entendidas como um tesouro linguístico, um verdadeiro patrimônio cultural de nossa diversidade. Os sabores sortidos das construções sintáticas, dos sotaques e dos vocabulários surgidos na espontaneidade do cotidiano são frutos evidentes dessa fertilidade. Além do mais, sabe-se que a língua é uma instituição tão complexa e ampla que nenhuma desfrição, tradicional ou científica, conseguiria apresentar todas as regras de seu funcionamento em termos de léxico, gramática e discurso. No entanto, as variedades linguísticas (não-padrão) são desprezadas por uma elite culta que as rotulam como “erros” e as renegam como se fossem corpos estranhos à 21 4 língua. Assim, rotulam como ignorante, ridículo e/ou estúpido o sujeito que fala “nóis vai”, “fósfro”, “cuié” ou “chicrete”. Contudo, como diz Fonseca (2005), os estudos sociolinguísticos sugerem que esse preconceito não é necessariamente contra as palavras, mas contra a própria classe social dos falantes dessas variantes. No Brasil de hoje, a hegemonia político-econômico do sul-sudeste faz com que as variações do português falado nessas regiões sejam mais prestigiadas e privilegiadas na configuração das normas-padrão a que todos os falantes, independente das regiões, são levados a se submeter. Para Fonseca (2005), essa arrogância costuma fazer com que alguns preconceitos sejam solidificados. Para dizer que certa fala nordestina é “ridícula”, por exemplo, falantes de outras regiões apontam o quanto é “engraçada” aquela variação onde as pessoas dizem “oitcho” e “muitcho” referindo-se às palavras “oito” e “muito”, por exemplo. É preciso que a escola e todas as demais instituições voltadas para a educação e a cultura abandonem esse mito da “unidade” do português brasileiro e passem a reconhecer a verdadeira diversidade linguística de nosso país para melhor planejarem suas políticas de ação junto à população amplamente marginalizada dos falantes das variedades sem prestígio social. O reconhecimento da existência de muitas variedades linguísticas diferentes é fundamental para que o ensino em nossas escolas seja consequente com o fato comprovado de que a norma linguística ensinada em sala de aula é, em muitas situações, uma verdadeira “língua estrangeira” para o aluno que chega à escola proveniente de ambientes sociais 21 5 onde a norma linguística empregada no quotidiano é uma variedade estigmatizada de português brasileiro (quando não outra língua, diferente, como ocorre em diversos lugares do Brasil, sobretudo nas zonas de fronteira, nas comunidades indígenas e nas áreas de forte imigração, onde o português não é a língua materna de parte da população). (BAGNO, 2009, p.32) Mas, antes de qualquer trabalho pedagógico, é necessário reconhecer e conhecer a realidade sociolinguística do público-alvo, para que se possa partir dela em direção à ampliação do repertório linguístico e da competência comunicativa dos aprendizes. O que o autor também quer deixar claro é que não se trata simplesmente de “aceitar” a variedade linguística estigmatizada falada pelos alunos e ficar só nisso! Segundo Bagno (2009), a função da escola é, em todo e qualquer campo de conhecimento, levar a pessoa a conhecer e dominar coisas que ela não sabe e, no caso específico da língua, conhecer e dominar, antes de mais nada a leitura e a escrita e, junto com elas, outras formas de falar e de escrever, outras variedades de língua, outros registros. Assim, como explica Bagno (2009, p.1 54), as críticas que faz à gramática tradicional não devem ser confundidas com um "vale tudo" linguístico. Já "no campo da língua, na verdade, tudo vale alguma coisa", mas esse valor dependeria do contexto, de "quem diz o quê, a quem, como, quando, onde, por que e visando que efeito”. Portanto, usar a língua, tanto na modalidade oral como na escrita, é encontrar o ponto de equilíbrio entre dois eixos: o da adequação e o da aceitabilidade. Quando falamos (ou escrevemos), tendemos a nos adequar à situação 21 6 de uso da língua em que nos encontramos: se é uma situação formal, tentaremos usar um linguagem formal; se é uma situação descontraída, uma linguagem descontraída, e assim por diante. Essa adequação se baseia naquilo que consideramos ser o grau de aceitabilidade do que estamos dizendo por parte de nosso interlocutor ou interlocutores. Variabilidade linguística na EJA Se queremos que as crianças falem e escrevam melhor, queremos que elas exerçam plenamente, sem bloqueios, sua capacidade natural de falantes, queremos que elas obtenham o domínio da língua particular que falam, o português, queremos que, nas suas atividades interlocutivas, elas consigam que as interpretações recuperem na melhor medida possível as intenções, já que essa é a meta de eficiência do processamento de interação verbal. (NEVES, 2003, DICK, 1 997, p.11 5) Para ensinar eficientemente uma língua, portanto, a gramática, deve propiciar e conduzir a reflexão sobre o funcionamento da linguagem, indo pelo uso linguístico, para chegar aos resultados de sentidos. O exercício da linguagem é usado para produzir sentidos e, desse modo, estudar gramática é, exatamente o exercício da linguagem, o uso da língua, ou seja, a fala. Segundo Neves (2003, p.1 30), falar e escrever bem constituem características daquilo que é, acima de tudo, “ser bem sucedido na interação.” E isso ocorre de maneiras diferentes, como diferentes são as situações de comunicação e as funções privilegiadamente ativadas: é levar alguém a agir, se era isso o que o falante pretendia (e agir do modo 21 7 como ele pretendia), é fazer alguém acreditar, se isso era o necessário no momento (e, como o que está em questão não é a ética, podemos até dizer, sofisticamente: acreditar “entendendo”, se isso convinha, ou até acreditar “não entendendo”, se era o que convinha), e assim por diante; ou é, afinal, por exemplo, obter apenas fruição do interlocutor, se a predominância da “função poética” era pretendida. Assim, todas as situações de interação linguística estão em questão: formais e informais; com língua falada e com língua escrita; de relação simétrica e de relação assimétrica. São todas questões que têm de ser contempladas nas reflexões, porque os resultados de sentido estão em função dessas condições. A questão não é falar “certo” ou “errado”, mas saber qual forma de fala utilizar, considerando as características do contexto de comunicação, ou seja, saber adequar o registro às diferentes situações comunicativas. É saber coordenar satisfatoriamente o que falar e como fazê-lo, considerando a quem e por que se diz determinada coisa. É saber, portanto, quais variedades e registros da língua oral são pertinentes em função da intenção comunicativa, do contexto e dos interlocutores a quem o texto se dirige. A questão não é de correção da forma, mas de sua adequação às circunstâncias de uso, ou seja, de utilização eficaz da linguagem: falar bem é falar adequadamente, é produzir o efeito pretendido. De acordo com os PCNs (2001 , p.32), cabe à escola ensinar o aluno a utilizar a linguagem oral nas diversas situações comunicativas, especialmente nas mais formais: planejamento e realização de entrevistas, debates, seminários, diálogos com autoridades, dramatizações entre outras. Trata-se de propor situações didáticas nas quais essas atividades façam sentido de fato, pois seria descabido “treinar” o uso mais formal da fala. A aprendizagem de procedimentos 21 8 eficazes tanto de fala como de escuta, em contextos mais formais, dificilmente ocorrerá se a escola não tomar para si a tarefa de promovê-la. Dessa maneira, segundo Possenti (2005, p. 36), pode-se ouvir “os boi”, “dois cara”, “comédia dos erro”, mas nunca “o bois”, “um caras” ou “comédia do erros”; muitas vezes “nós vai”, mas nunca “eu vamo(s)”. Desse modo, conclui-se que não existe uma língua uniforme, todas as línguas mudam e as variações linguísticas são condicionadas por fatores internos à língua ou por fatores sociais, ou por ambos ao mesmo tempo. Diante do exposto, Bagno (2009, p.1 41 e 1 42) diz que se espera do professor uma mudança de atitude do ponto de vista teórico, “em vez de REPETIR a velha doutrina gramatical normativa, o professor deveria REFLETIR sobre ela; já do ponto de vista prático, em vez de REPRODUZIR a tradição gramatical, o professor deve PRODUZIR seu próprio conhecimento da gramática”, transformando-se num pesquisador, num orientador de pesquisas a serem empreendidas em sala de aula, junto com seus alunos. Desse modo, é necessária a elaboração e planejamento de um Projeto Político Pedagógico (PPP) para as turmas da EJA que não ignore as diferentes culturas dos alunos na produção do conhecimento escolarizado. Como salienta Riscal, a concepção de gestão democrática parte da compreensão da democracia como a forma de governo baseada no respeito das diferenças e deve, portanto, eliminar qualquer processo de homogeneização e uniformização cultural.(RISCAL, 2009, p.84) Para Riscal (2009), o Real é dinâmico, não é estático 21 9 e, portanto, não pode ser enclausurado em um documento que não dê conta das contradições entre agentes no interior e exterior do espaço escolar. Portanto, a escola autônoma deve ter liberdade de formular e executar um projeto educativo, cuja intenção seria a transformação desse real, considerando a diversidade da comunidade e da escola. O respeito à autonomia permite a criação de uma identidade da escola, de um ethos específico que a diferencia porque expressa uma interação única entre os agentes únicos que compõem a escola. Este é um aspecto diferenciador, que pode agregar novas ideias de novos participantes, levando à adesão dos diversos agentes na elaboração de um projeto próprio. (RISCAL, 2009, p. 83 e 84) Como observa Paro (2001 ), o aluno não vive apenas na escola, local em que, na verdade, passa uma pequena parte de seu tempo. Isto significa que não é apenas na escola que formam seus valores, mas também na vida familiar e comunitária. A escola representa um espaço privilegiado para alteração dos processos de discriminação e preconceito, pois abriga em seu interior todas as distintas formas de diversidades, quer sejam de origem social, de gênero, sexual, étnico-racial ou cultural. É, portanto um espaço que deve ser aproveitado para a construção dos caminhos para a eliminação de preconceitos e de práticas discriminatórias. A escola democrática e que forme indivíduos capazes de exercer a cidadania, com dignidade, deve educar para a valo- 220 rização da diversidade. (RISCAL, 2009, p. 90) Este é ponto importante na elaboração do PPP e deve constituir um de seus principais pilares. Uma vez que o estabelecimento de um único padrão civilizatório seria a negação da mais impressionante característica humana, a sua capacidade de se constituir de forma diferente, em tempos diferentes e em espaços diferentes, de enfrentar a diversidade de problemas e obstáculos impostos pelos eventos históricos de forma variada e própria em um processo contínuo de reinventar-se e superar-se. O professor deve abandonar a postura tradicional e conservadora de único agente do processo de ensino e abrir espaço para a elaboração coletiva do conhecimento baseado nos saberes e na cultura da própria comunidade escolar. Isto não quer dizer que se valorize aqui o mero senso comum e opiniões que contrariam o conhecimento científico. A ação pedagógica do professor deve possibilitar a discussão, o confronto e a reflexão sobre as diferentes concepções de conhecimento e cultura, levando o aluno a exercitar a crítica na formação de sua própria concepção sobre os temas estudados. (RISCAL, 2009, p. 91 ) De acordo com Riscal (2009), a gestão democrática é a possibilidade real de construção de uma proposta pedagógica pela escola que tenha a cara da própria escola. Nesse sentido, pensar o projeto pedagógico como espaço da diversidade é pensar a construção de uma cultura escolar que contemple as experiências de toda a diversidade de seus membros. Desse modo, a elaboração do PPP deve, em 221 sua dimensão pedagógica, possibilitar a reflexão e elaboração de planos de ensino que contemplem a diversidade étnica, de gênero, cultural e social da comunidade escolar. Considerações finais Saber como o preconceito linguístico e a intolerância se manifestam é o primeiro passo para combatê-los. Desse modo, espera-se que os professores da EJA entendam que os alunos não devem ser julgados pela linguagem que usam, mas pelo que efetivamente são, porque aprender outros modos de falar é só mais uma etapa na vida de alguém que é íntegro como é, com a linguagem que domina, seja essa pessoa de que estrato social for. Por isso, é imprescindível que o professor conheça, respeite e trabalhe as variedades linguísticas de prestígio e também as variedades usadas pelos educandos da EJA no seu dia a dia. Para Leite (2008, p. 1 36), “isso é o que se espera, no sentido da dialética do esclarecimento da qual fala Adorno.” Conclui-se este trabalho com uma ode à tolerância linguística, no poema de John Robert Schmitz: Imagine o impossível! Imagine o impossível! Imagine o impossível! Imagine a situação! Um idioma puro, puro. Um idioma perfeito, Sem diferenças, Sintáticas, 222 Morfológicas, E lexicais. Um idioma puro, Sem gíria, Sem expressões idiomáticas, Sem palavrões, Sem desvios, lapsos e falhas, Sem flexibilidade, sempre Rígido, Imutável e uniforme. Um idioma perfeito, sempre cristalino. Simplesmente puro, Sem presença humana, Sem usuários de carne e osso, Sem suas múltiplas vozes Sem fibra, Sem paixão, Sem cultura. Um idioma sem ideias, Em que os falantes todos Pensam igual ou até não Pensam. Um idioma sem diferenças de opinião Entre os que falam e escrevem. Um idioma sem palavras carinhosas, Sem compaixão, sem piedade Um idioma desprovido de conflitos e de tensões, 223 Sem humor, Sem piadas, Sem alegria, Sem paciência, sem tolerância, Sem ambiguidades, Sempre certinho, certinho. Um idioma sem graça, Sem, na dose certa, de uma pitada De sal, de pimenta Ou de açúcar, Radicalmente insosso. Um idioma sem diversidade, Sem variedades e variações, Sem brilho, sem vida Um idioma sem mudança e sem futuro, Sem jeito e sem jeitinho. Imagine o impossível! É possível? Ainda bem que é impossível! Ainda bem que é impossível! Referências bibliográficas BAKHTIN, M. Estética da criação verbal . São Paulo: Martins Fontes, 1 992. BAGNO, Marcos. Erro de português não existe . Revista Educa224 ção, n. 26 – julho de 1 999. ________. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo, Loyola, 52ª edição, 2009. ________. A língua de Eulália: novela sociolinguística . São Paulo, Contexto, 1 6ª. ed., 201 0. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo, Parábola, 2004. ________. Nós cheguemu na escola, e agora? Sociolinguística e educação. São Paulo, Parábola, 2005. BRASIL MEC/SEB. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEB, 2001. CAGLIARI, Luis Carlos. Alfabetização e Linguística . São Paulo: Scipione, 1 991. CAVALCANTE, Maria Auxiliadora da Silva. 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São Paulo, Ática, 1 997. 227 228 artigo CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA LITERÁRIA PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES Eliane Quinelato1 Clinio Jorge de Souza2 Luciana Maria Crestani 3 Maria das Graças Sandi Magalhães4 Resumo O objetivo deste estudo é apontar as contribuições da teoria literária para o aperfeiçoamento da leitura e interpretação de textos narrativos no processo de formação de professores. Acreditamos que uma análise literária que parta de um aparato teórico consolidado permite ao leitor fugir do senso comum e entender a literatura como campo de conhecimento e como uma forma de reflexão da condição humana. Para tanto, selecionamos algumas categorias narrativas consolidadas pelo campo de estudo da teoria liteProfessora Pesquisadora da Faculdade Anhanguera de Limeira/SP. Email: eliane.quinelato@ aedu.com 2 Professor Pesquisador da Faculdade Anhanguera de Sorocaba/SP. Email: cliniojorge54@ terra.com.br 3 Professora Pesquisadora da Faculdade Anhanguera de Passo Fundo/RS. Email: lu.crestani@ razaoinfo.com.br) 4 Professora Pesquisadora da Faculdade Anhanguera de São José dos Campos/SP. Email: sandimagalhaes@ yahoo.com.br 1 229 rária, para aplicá-los à leitura do conto “O bife e a pipoca”, de Lygia Bojunga Nunes. Pretendemos mostrar de que forma a teoria contribuiu para a melhoria da leitura e interpretação de textos na formação de professores do curso de Pedagogia. Palavras-chave: literatura; leitura; intepretação de textos; pro- dução textual; narrativa. 1 . Introdução É sabido que fazemos parte de uma cultura letrada e que, para participarmos efetivamente dela, temos de dominar práticas de letramento que permitam nossa relação com o outro e com o mundo em que vivemos. Nesse contexto, é por meio de leituras e produções de gêneros diversos que nos comunicamos, fazemo-nos entender pelo outro a fim de contribuirmos para o aprimoramento da cultura letrada. Ocorre que o contato com a diversidade de gêneros que permeia o mundo letrado e as possibilidades de uso desses gêneros, apesar de inumeráveis, desembocam, sobretudo no contexto acadêmico, nas atividades escritas. Era esperado que tais atividades colaborassem para o desenvolvimento dos sujeitos que integram esse novo contexto social, mas, infelizmente, isso não acontece. Em nossas atividades docentes atuais notamos, com demasiada preocupação, que a maioria dos alunos ingressa em cursos superiores com pouca ou nenhuma habilidade de leitura, interpretação e escrita autônomas. Dentre as razões que levam os alunos a essa falta de habilidade, podemos citar o desinteresse do aluno pela leitura, a falta de incentivo da família, as novas tecnologias que, com rapidez, passaram a exigir novos olhares para a 230 leitura estabelecendo formas de escrita informais, confundidas, erroneamente, com práticas de escrita permitidas a qualquer situação de letramento. Outro fator que merece destaque é a falta de preparo do professor para ensinar estratégias de leitura, interpretação e produções textuais que auxiliem os alunos a praticar essas atividades de forma autônoma. A obra de Paula Carlino, Escribir, leer y aprender en la universidad: una introducción a la alfabetización acadêmica (2009), aborda a dificuldade de leitura e escrita em alunos universitários e propõe metodologias possíveis de serem aplicadas em aulas de leitura e produção de textos, com a finalidade de melhorar a qualidade dos textos produzidos pelos discentes. Para a autora (CARLINO, 2009) não se trata apenas de refletir sobre os fracassos escolares anteriores dos alunos que, sem dúvida, repercutem no ensino superior. Devese repensar o planejamento das universidades que, na maioria das vezes, relegam essas atividades a uma única disciplina “Leitura e produção de textos”, ministrada em um único semestre, esperando que apenas o docente seja responsável por essa tarefa. Além disso, Carlino (2009) estende a responsabilidade pelo ensino de leitura, escrita e interpretação de textos a todos os docentes, uma vez que eles dominam as práticas de linguagem pertinentes ao seu campo de atuação. Irmanamo-nos com as reflexões da estudiosa (Carlino, 2009) e passamos a refletir sobre as seguintes questões: se os universitários apresentam dificuldades em leitura, interpretação e escrita de textos acadêmicos, sobretudo os que pertencem ao segmento dissertativo/argumentantivo, genericamente considerados “mais difíceis”, o que dizer das dificuldades observadas em relação à interpretação de textos da esfera literária, estudada por eles desde o Ensino 231 Fundamental I? O que os professores universitários têm feito para amenizar tais dificuldades? Os estudantes sabem ler um texto literário considerando suas peculiaridades? Essas questões - para nós, inquietantes – levaramnos a refletir e a pensar em metodologias que possam contribuir para o aprimoramento da leitura, interpretação e escrita de textos da esfera literária. A nosso ver, teorias consolidadas apoiadas na prática podem, seguramente, cumprir esse papel, pois determinados aparatos teóricos, quando bem utilizados, podem ser de grande valia para o aprimoramento humano em qualquer âmbito do conhecimento. 2 Objetivo O objetivo principal do estudo é apontar as contribuições da teoria da literatura, sobretudo as categorias narrativas, para o aperfeiçoamento da leitura e interpretação de textos narrativos no processo de formação de professores do curso de Pedagogia. 3 Metodologia A metodologia consistiu em pesquisa bibliográfica que versa sobre a teoria, com aplicação de fichas de leitura e análise de textos. Para tanto, inicialmente fizemos a leitura do conto “O bife e a pipoca”, de Lygia Bojunga Nunes, e cada cursista fez uma análise do texto a partir dessa primeira leitura. Em sequência, os alunos tiveram contato com as seguintes categorias narrativas: no plano da história destacamos os personagens, o espaço, o tempo e a ação; no plano do discurso, enfatizamos os conceitos de narrador. Posteriormente, os estudantes responderam uma ficha de leitura e fizeram outra análise considerando as categorias 232 narrativas apontadas acima a fim de observarmos se a segunda análise foi aprimorada a partir da explanação e aplicação prática dos conceitos. 4 Desenvolvimento 4.1 Os PCNs do Ensino Fundamental e o ensino de literatura Como se sabe, os PCNs são referenciais propostos pelo Ministério da Educação com a finalidade de nortear os conteúdos mínimos a serem ministrados nas disciplinas curriculares. No que se refere aos conteúdos de língua portuguesa do III e IV ciclos do Ensino Fundamental, diz o documento: A visão do que seja um texto adequado ao leitor iniciante transbordou os limites da escola e influiu até na produção editorial. A possibilidade de se divertir com alguns dos textos da chamada literatura infantil ou infanto-juvenil, de se comover com eles, de fruí-los esteticamente é limitada. Por trás da boa intenção de promover a aproximação entre alunos e textos, há um equívoco de origem: tentase aproximar os textos – simplificando-os – aos alunos no lugar de aproximar os alunos aos textos de qualidade. (PCNs, 1 988, p. 25) Conforme o excerto, o próprio PCN registra que se subestima a capacidade do aluno em assimilar conteúdos pertinentes a textos de qualidade, por julgá-los difíceis aos alunos, esquecendo-se de que, para muitos estudantes, a escola é a única oportunidade de se ter acesso à diversidade de textos que circulam socialmente, independentemente 233 do nível de linguagem e erudição de um texto. Com relação à especificidade do gênero literário diz que: O texto literário constitui uma forma peculiar de representação e estilo em que predominam a força criativa da imaginação e a intenção estética. Não é mera fantasia que nada tem a ver com o que se entende por realidade, nem é puro exercício lúdico sobre as formas e sentidos da linguagem e da língua. (PCNs, 1 988, p.26) Reforça-se, na citação acima, que a literatura não é mero exercício lúdico, mas uma forma peculiar de representação que busca dar forma às experiências humanas, mediar o sentido entre o sujeito e o mundo e viabilizar a produção e apreensão do conhecimento. Cosson (201 3) também reflete sobre o ensino e o sentido da literatura no Ensino Fundamental afirmando que, nesta fase escolar, literatura engloba qualquer texto ficcional ou poético e, de preferência, devem ser escolhidos textos curtos e divertidos, tais como a crônica. E afirma: (...) Não é sem razão, portanto, que a crônica é um dos gêneros favoritos da leitura escolar. Aliás, como se registra nos livros didáticos, os textos literários ou considerados como tais estão cada vez mais restritos, sob o argumento de que o texto literário não seria adequado como material de leitura ou modelo de escrita escolar, pois a literatura já não serve como parâmetro nem para a língua padrão, nem para a formação do lei- 234 tor, conforme parecer de certos linguistas. No primeiro caso, por ser irregular e criativa, não se prestaria ao ensino de língua portuguesa culta, posto que esta requer um uso padronizado, tal como se pode encontrar nas páginas dos jornais e das revistas científicas. No segundo, sob o apanágio do uso pragmático da escrita e da busca de um usuário competente, afirma-se que apenas pelo contato com um grande e diverso número de textos o aluno poderá desenvolver sua capacidade de comunicação. (COSSON, 201 3, p. 21 ) Dessa forma, o tratamento do texto literário oral ou escrito parece estar desvinculado de sua real intenção que é a de “construir e reconstruir a palavra que nos humaniza” (COSSON, 201 3, p. 23), mostrando que a relação entre a educação e a literatura não é nada amistosa. Entretanto, é possível recuperar, nos documentos oficiais (PCNs, 1 988) a ênfase na formação de leitores para o público literário. Entendida como representação, a literatura é uma forma autônoma de linguagem que não tem a obrigação de divertir, retratar o real e tampouco amparar-se em discursos científicos, visto que a literatura (...) envolve o exercício de reconhecimento de singularidades e propriedades que matizam um tipo particular de uso da linguagem. É possível afastar uma série de equívocos que costumam estar presentes na escola em relação aos textos literários, ou seja, tomá-los como pretexto para o tratamento de questões outras (valores morais, tópicos gramaticais) que não aquelas que contribuem para a formação de leitores capazes de 235 reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções literárias. (PCNs, 1 988, p. 27) É nesse sentido que nos cabe refletir sobre a importância de uma teoria literária que auxilie no reconhecimento de características inerentes ao discurso literário e na apreensão do sentido subjacente a essa modalidade textual. 4.2 Os PCNs do Ensino Médio e o ensino de literatura Os PCNs para o Ensino Médio tratam, sobretudo, das competências que os alunos devem aprimorar nesse nível de escolaridade e dão grande ênfase ao estudo da linguagem. Não nos ocuparemos de todas as competências pertinentes ao ensino da literatura, mas será necessário destacar uma que norteará nossas reflexões. Os textos literários são fundamentais na aquisição da competência de “analisar, interpretar e aplicar os recursos expressivos das linguagens, relacionando textos com seus contextos, mediante natureza, função, organização das manifestações de acordo com as condições de produção e recepção.” (PCNEM, 2000, p. 8). Esta competência trata da função, uso e especificidade da linguagem e compara o texto teatral com o poema, ressaltando que cada um, apesar de ter elementos comuns, apresentam especificidades, recursos expressivos próprios, e podem ter sido escritos em diferentes épocas, o que se reflete na linguagem específica de cada texto. O documento ressalta que o aluno deve saber reconhecer essas especificidades e as particularidades socialmente construídas. Já o documento intitulado “Orientações curriculares para o Ensino Médio” é um desdobramento dos PCNs desse nível de ensino, elaborado em 2006. A parte que nos inte236 ressa – “Por que a literatura no Ensino Médio” (2006, p. 50) – inicia-se com a definição de literatura e com o depoimento de uma mãe de aluno sobre o conceito de arte. No discurso dela, nota-se, claramente, uma desvalorização do conceito de arte, que, seria “fazer florzinha miudinha de papel”, conceito ligado à arte artesanal e sem valor para o aluno, pois a escola não carece de arte, mas de trabalho duro, da práxis do dia a dia. De acordo com o documento, a presença da arte, cuja manifestação mais privilegiada é a literatura, nunca havia sido questionada enquanto disciplina, constava em todos os currículos, gozava de status privilegiado e era tomada como sinal distintivo de cultura. Atualmente, as mudanças tecnológicas, mercadológicas e midiáticas do mundo moderno alteraram esse cenário e trouxeram consigo a desvalorização da literatura. Entretanto, as orientações curriculares apoiam-se nos objetivos estabelecidos na LDBEN nº 9.349/96, no Art. 35, inciso III para apoiar o estudo da literatura. Diz o inciso III que o objetivo a ser alcançado no EM é o “aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”. Dessa forma, é pela literatura que o aluno é humanizado, torna-se sensível e amplia seu conhecimento tal como o faria no estudo científico. Para Cosson (201 2, p. 21-22), o ensino médio restringe o estudo da literatura à história, cronologia, estilos de época, cânones literários, dados biográficos dos autores, etc. Quando se propõe a ensinar leitura literária, “ele tende a recusar os textos canônicos por considera-los pouco atraentes, seja pelo hermetismo do vocabulário e da sintaxe, seja pela temática antiga que pouco interessaria aos alunos de hoje.” Assim, o estudo de obras antes consideradas funda237 mentais foi relegado a segundo plano, abrindo espaço para outros gêneros, como seriados e filmes. Para o autor (COSSON, 201 2), o fato de esses gêneros utilizarem a escrita de forma secundária contribuiu para o abandono da leitura literária nas escolas. É, portanto, a partir de tais premissas que fundamentaremos a importância do uso de um aparato teórico consolidado que permita reconhecer as categorias imanentes ao texto literário e que contribuem para a construção de sentidos do texto. 4.3 Letramento literário É necessário esclarecer aqui que, assim como o termo letramento, entendido no contexto amplo do domínio de habilidades de leitura e escrita nas diversas práticas sociais, o letramento literário também será entendido de forma ampla, no processo de formação de leitores literários críticos aptos a reconhecer as especificidades do texto literário que constituem sua arquitetura. De fato, os estudos sobre letramento literário são relativamente novos e embasados, sobretudo, nos estudos linguísticos sobre letramento. Além disso, muitos desses estudos são realizados por pedagogos e linguistas e não por profissionais ligados à teoria da literatura. Dessa forma, esse trabalho pretende refletir sobre de que forma a teoria da literatura poderia contribuir para a compreensão do próprio termo e para a melhoria da leitura, interpretação e produção de textos literários na universidade. É certo que o exercício da leitura literária promove a apropriação da linguagem e emerge das relações dialógicas entre os sujeitos, o texto e a sociedade que o circunda. Entretanto, o exercício da leitura literária tem sido relegado a segundo plano pelos docentes universitários, uma vez que 238 os alunos leem de forma isolada os textos literários indicados pelo professor. Os docentes deveriam ser leitores críticos, conhecer os modos de se trabalhar as particularidades do texto literário, os conceitos de literatura, os procedimentos de análise literária que promovem a construção de significados a fim de que o letramento seja efetivamente concretizado respeitando as especificidades desse tipo de texto: suas marcas linguísticas, seus aspectos fonológicos, sintáticos e semânticos, suas estratégias discursivas que remetem a determinado momento histórico de produção e, sobretudo, seu caráter ficcional. Para tanto, os professores devem mediar a relação entre texto literário e discentes, considerando que a teoria da literatura pode contribuir e facilitar essa interação. E é apenas por intermédio do professor que essa teoria pode aliar-se à prática e contribuir para o aperfeiçoamento da interpretação de textos literários pelos estudantes. Para falar de letramento literário, as Orientações Curriculares do Ensino Médio (2000, p.54) apoiam-se na definição de letramento de Soares (2004, p. 47) “(...) letramento é o estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita.” A partir desta definição, o documento afirma que “podemos pensar em letramento literário como estado ou condição de quem não apenas é capaz de ler poesia ou drama, mas dele se apropria efetivamente por meio da experiência estética, fruindo-o” (2000, p. 55). O conceito de fruição está, aqui, relacionado à experiência estética e não pode ser confundido com diversão ou com atividade lúdica. O documento repete o conceito de fruição encontrado no PCN (2002): Desfrute (fruição): trata-se do aproveitamento satisfatório e prazeroso de obras literárias, musicais, artísticas, de modo 239 geral bens culturais construídos pelas diferentes linguagens, depreendendo delas seu valor estético. Apreender a representação simbólica das experiências humanas resulta da fruição dos bens culturais. Podem propiciar aos alunos momentos voluntários para que leiam coletivamente uma obra literária, assistam a um filme, leiam poemas de sua autoria – de preferência fora do ambiente da sala de aula: no pátio, na sala de vídeo, na biblioteca, no parque. (PCN+, 2002, p. 67 apud Orientações Curriculares, 2000, p. 59) Embora reconheça a dificuldade de se especificar o conceito de estético, as Orientações Curriculares partem de Aristóteles e Adorno para afirmar que a fruição de um texto literário está intrinsicamente ligada à apropriação que o leitor faz do texto lido e da construção do significado a ele atribuído. Nesse sentido, a experiência estética será mais rica quando o leitor “entregar-se ao texto” e o leitor será mais humano, crítico e autônomo quando seu nível de letramento literário também for maior. Sobre o modo como se deve fruir um texto literário, o documento aposta na leitura silenciosa e reflexiva, pois acredita que esse momento solitário aproxima o leitor do texto. A leitura coletiva pode ser feita em um segundo momento, mas para confrontar a leitura alheia. Cosson (201 2) afirma que, quando se deseja promover o letramento literário, devemos ir além da simples leitura de um texto, pois “(...) não é possível aceitar que a simples atividade de leitura seja considerada a atividade escolar de leitura literária. Na verdade, apenas ler é a face mais visível da resistência ao processo de letramento literário na escola” (COSSON, 201 2, p. 26). 240 Apesar das críticas, pelos adeptos à leitura literária fora do ambiente escolar, de acordo com os pressupostos do autor (COSSON, 201 2), os livros não falam por si mesmos e é por isso que uma leitura feita na escola é diferente de outra feita em casa, sem orientação. Ele defende que grande parte dos mecanismos de interpretação acionados durante a leitura são aprendidos na escola: (...) Depois, a leitura literária que a escola objetiva processar visa mais do que simplesmente ao entretenimento que a leitura de fruição proporciona. No ambiente escolar, a literatura é um lócus de conhecimento e, para que funcione como tal, convém ser explorada de maneira adequada. A escola precisa ensinar o aluno a fazer essa exploração. Por fim, não se trata de cercear a leitura direta das obras criando uma barreira entre elas e o leitor. Ao contrário, o pressuposto básico é de que o aluno leia a obra individualmente, sem o que nada poderá ser feito. (COSSON, 201 2, p. 27) Daí podemos inferir que o autor acredita no papel fundamental que a escola desempenha no letramento literário. Entretanto, ele não desconsidera que a leitura solitária tenha sua importância, mas defende a “leitura solidária”, aquela que permite não apenas a troca de sentidos entre autor e leitor, mas o compartilhamento de visão de mundo entre a sociedade em que os indivíduos estão inseridos. Diz: “(...) o efeito de proximidade que o texto literário traz é produto de sua inserção profunda em uma sociedade, é resultado do diálogo que ele nos permite manter com o mundo e com os outros.” (COSSON, 201 2, p. 28). É aqui que a literatura e a escola adquirem importância maior. 241 Interessa-nos, sobretudo, destacar as reflexões que Cosson (201 2) nos traz a respeito da leitura acompanhada por uma análise literária porque, a nosso ver, a teoria da literatura exerce demasiada contribuição na apreensão dos sentidos de um texto. Entretanto, há diversas críticas em torno dessa questão e o autor reflete sobre algumas delas, como, por exemplo, o fato de, supostamente, a análise literária destruir a beleza de um texto por desvelar seus mecanismos de construção e argumentação, já que a simples contemplação seria suficiente para a apreensão do sentido. Cosson (201 2, p. 29) rebate esta crítica afirmando que se a literatura for mantida em “adoração”, poderá tornarse inacessível ao leitor, já que ela não foi feita para ser apenas contemplada, mas sim para ser explorada. O autor ainda afirma que a leitura literária deve ser aprendida, assim como aprendemos outras coisas, pois “ninguém nasce sabendo literatura”. Para ele, a análise literária é um processo de comunicação com o leitor porque ele tem de explorar num sentido amplo, o que torna possível a interação com todos os seus elementos composicionais. Importa-nos frisar o que diz o autor: Longe de destruir a magia das obras, a análise literária, quando bem realizada, permite que o leitor compreenda melhor essa magia e a penetre com mais intensidade. O segredo maior da literatura é justamente o envolvimento único que ela nos proporciona num mundo feito de palavras. O conhecimento de como esse mundo é articulado, como ele age sobre nós, não eliminará seu poder, antes o fortalecerá porque estará apoiado no conhecimento que ilumina e não na escuridão da ignorância. (COSSON, 201 2, p. 242 29) Nesse sentido, a teoria da literatura pode auxiliar o leitor na exploração das diversas possibilidades de interpretação desse tipo de texto, cabendo ao professor criar condições para que a compreensão se efetive. A partir dessas reflexões e irmanados com o autor, consideramos que não basta apenas ler uma obra literária, mas sim ir além dessa leitura redutora e simplificada. É pelo letramento literário, apoiado na teoria, que instrumentalizaremos os leitores para ler de forma proficiente o mundo permeado pela linguagem. 5 Contribuições da Teoria Literária para o Ensino de Literatura Devido à brevidade deste artigo faremos, neste tópico, uma síntese da análise do conto “O bife e a pipoca” e apontaremos apenas algumas categorias utilizadas em nossas reflexões. Para proceder à análise, utilizaremos parte do instrumental teórico pertinente ao campo da teoria da literatura que descreve os elementos essenciais para a composição de um texto narrativo. Tais elementos podem ser considerados conceitos-chave para que se desenvolva análise e interpretação de textos de forma eficiente, partindo de sua estrutura intrínseca e do conhecimento do gênero para a extrínseca, que remete à função social da qual ele faz parte. Ainda que críticos apontem lacunas nos estudos herdados do formalismo russo e seus sucessores por basearem-se no fato de que o texto literário tem um papel importante na formação do indivíduo e valores essenciais para que ele construa sua visão de mundo, não podemos nos esquecer de que o texto literário é uma ficção e, como tal, tem uma arquitetura que deve ser levada em conta em qualquer 243 análise. Elementos como as personagens, por exemplo, movimentam-se num tempo e num espaço construído por um narrador, entidade igualmente construída pelo mundo ficcional do autor. Embora nem todos os textos se encaixem perfeitamente nas estruturas teóricas propostas pelos estruturalistas, acreditamos que uma análise literária que parta de um aparato teórico consolidado permite ao leitor fugir do senso comum, entender a literatura como campo de conhecimento e como uma forma de reflexão da condição humana, além de aperfeiçoar a interpretação textual. Dentre as categorias que permitem reconhecer a organicidade e especificidade próprias do gênero narrativo, destacamos neste trabalho os conceitos consolidados a partir das contribuições do Formalismo Russo, do New Criticism e do Estruturalismo, linhas teóricas que privilegiaram a materialidade verbal do texto dentro dos estudos literários. Dentre seus representantes, retomaremos os conceitos de personagem propostos por Forster (1 937 apud REIS & LOPES, 1 988) e os de narrador propostos por Gérard Genette. Este estudioso, em “Fronteiras da narrativa”, define narrativa como “a representação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos, reais ou fictícios, por meio da linguagem” (GENETTE, 1 972, p. 255). Ainda que o autor considere a definição simplista, acrescenta que toda narrativa é uma imitação, um simulacro da realidade. Os estudos sobre narrativa propostos pelo estruturalista pretendem criar uma abordagem estável para as narrativas, assim como o fizeram seus predecessores. Interessa-nos, sobretudo, as reflexões teóricas contidas no livro “Discurso da narrativa” (1 972), em que o autor distingue história, discurso e narração e procura mostrar que as narrativas apresentam uma estrutura básica comum que se mantém, ainda que haja variedade temática. Além disso, Genette não dissocia narrativa de descrição: 244 Toda narrativa comporta, com efeito, embora intimamente misturados e em proporções muito variáveis, de um lado representações de ações e de acontecimentos que constituem a narração propriamente dita, e de outro lado representações de objetos e personagens, que são o fato daquilo que se denomina hoje a descrição.” (GENETTE, 1 976, p. 262) Nesse sentido, a descrição é constitutiva da narrativa, o que permite considerá-la de suma importância, uma vez que as descrições presentes na narrativa contribuem para o entendimento global do texto. Para mostrarmos como alguns operadores narrativos contribuem para uma melhor compreensão do texto, escolhemos o conto “O bife e a pipoca”, de Lygia Bojunga Nunes, que resumiremos aqui de forma simplificada. A narrativa conta a história de Tuca e Rodrigo, dois adolescentes que pertencem a níveis sociais distintos, mas que foram unidos por compartilhar o mesmo espaço – o espaço escolar. Tuca é um garoto pobre que consegue uma bolsa de estudos em um colégio conceituado do Rio de Janeiro, onde estuda Rodrigo, menino de classe social alta e de boa educação. Essa relação é permeada de tensão, pois ambos foram criados em ambientes bastante distintos e a inserção de um no universo do outro é bastante perturbadora. Ao tornarem-se amigos, Rodrigo convida Tuca para almoçar em sua casa, com a promessa de que haverá bife no almoço. O menino pobre, que sonha em comer bifes, fica extasiado, mas acaba não fazendo a refeição porque derruba a carne no tapete da sala na hora de cortá-la. A preocupação da mãe de Rodrigo com o tapete persa sobre o qual o bife caíra era tanta, que Tuca sai da casa de Rodrigo sem o tão esperado almoço. 245 Em outra oportunidade, Rodrigo é convidado a comer pipocas na casa de Tuca, mas o lanche também não dá certo porque Rodrigo, ao subir o morro, encontra a mãe de Tuca bêbada e as pipocas espalhadas pelo chão, sendo devoradas pelos irmãos menores de Tuca. Ao descer o morro, após ter sido expulso, Rodrigo é empurrado por Tuca em uma poça de lama, sujando-se todo, mas não compreende tal atitude de revolta. A amizade rompe-se momentaneamente, mas nada além do tempo que o ambiente escolar leva para reaproximar os dois adolescentes. Na construção literária, uma das categorias mais importantes diz respeito às personagens centrais porque são elas que vivenciam o conflito narrativo; portanto devem ser observadas em relação às demais personagens e ao espaço narrativo em que se inserem. No texto, interessa-nos destacar o grau de densidade psicológica, tal qual proposto por Forster (1 937 apud REIS & LOPES, 1 988), escritor e crítico inglês do séc. XIX. Rodrigo pode ser caracterizado como uma personagem plana, marcada por um comportamento estático e previsível, que permanece até o final da narrativa; já a personagem Tuca é caracterizada como redonda porque tem atitudes imprevisíveis, que vão revelar-se aos poucos no decorrer da narrativa. Basta observar a surpresa do leitor ao ver Rodrigo sendo empurrado na lama por Tuca no final da narrativa. A categoria “espaço” mostra-se tão importante quanto a anterior e aparece realçada por descrições fundamentais para o entendimento do universo narrativo de ambas as personagens. A descrição da casa de Rodrigo condiz com o comportamento, educação e cordialidade do menino rico, bom aluno e bom amigo: (...)“ele nunca tinha pisado num edifício daqueles: porteiro, tapete, espelho por todo lado, elevador subindo macio, empregada abrindo a porta pra ele entrar (...)” (NUNES, 1 996, p.32). O tapete persa, a empre246 gada, a geladeira cheia de guloseimas e o bife no almoço de todos os dias denotam o ambiente de fartura em que Rodrigo vivia. Já a favela, a família numerosa, o cheiro, a sujeira, os empregos de Tuca, o alcoolismo, a falta de estrutura familiar e a pipoca denotam a precariedade de vida de Tuca e da saúde de sua família. Ao subir o morro “(...) o Rodrigo ia olhando cada barraco, cada criança, cada bicho, cada viralata, porco, rato, olhando tudo o que se passava: bonito? estrela? cadê?! (NUNES, 1 996, p. 39). Em se tratando de ambientes, o único espaço comum compartilhado por dois seres de classes sociais tão distintas é a escola que, neste contexto, exerce a função democrática que lhe cabe. A ação, entendida aqui como um processo de eventos singulares que podem ou não conduzir a um desenlace, é permeada de tensão, sobretudo durante o almoço na casa de Rodrigo e à visita ao morro na casa de Tuca. Se a ação depende dos sujeitos, do tempo e das transformações que vão possibilitar a passagem de um estado a outro, neste conto ela cumpre seu papel, pois os sujeitos possibilitam as transformações e mudanças de estado. Só o fato de um aceitar passar o dia na casa do outro já denota a mudança que a personagem sofrerá nesse encontro. Vale ressaltar que, além da mudança física e espacial, há a mudança psicológica, pois Tuca deixa transparecer o deslumbramento sentido por ele ao adentrar na casa de Rodrigo. Este, por sua vez, faz perceber o quão pouco conhecia de uma vida dura e amarga ao subir o morro para visitar o amigo Tuca. A categoria “tempo” por ter sido explorada a partir da história, mostra um tempo linear, em que os acontecimentos são narrados cronologicamente. Entendemos que o tempo é cronológico porque há marcas temporais bem delimitadas, como datas e horários. A narrativa tem a particularidade de ser um gênero híbrido por inserir o gênero “carta” dentro da narrativa, mas isso não nos impede de reconhecer que os 247 dois meninos – Tuca e Rodrigo – estão na quinta-série. A maioria dos diálogos se passa na escola, mas a temporalidade é bem marcada: “(...) e no dia seguinte lá estava o Rodrigo outra vez explicando (...)” (NUNES, 1 996, p. 29, grifo nosso). Já as cartas demonstram serem escritas a cada espaço de tempo que termina uma aula. Há uma espécie de supressão da narrativa que conta a história de Tuca e Rodrigo para dar lugar à carta escrita por Rodrigo a Guilherme, o amigo que se mudou para o Rio Grande do Sul. Entretanto, após essa supressão, a narrativa retorna ao curso normal, sempre no espaço da sala de aula, narrando episódios sequenciais. Já a categoria “narrador”, que pertence ao âmbito do discurso, é organizadora da narrativa e exerce papel fundamental na narração da história. Identificar o narrador é essencial para que se faça análise de textos narrativos, considerando ser ele é uma entidade fictícia, diferente do autor, que pode ser uma entidade real ou empírica. É ele quem enuncia o discurso e protagoniza a comunicação narrativa. Lemos o texto pelo seu olhar, por sua postura ética, política, cultural e ideológica. Entretanto, devemos sempre nos lembrar de que o narrador é um ser fictício, dono da voz narrativa. Genette (1 995) distingue três tipos de narradores: autodiegético, homodiegético e heterodiegético. Neste conto, o narrador é heterodiegético, pois narra em terceira pessoa e não participa dos fatos. Procura manter-se neutro e, geralmente, coloca-se em um tempo posterior ao da história. Na narrativa em questão, o narrador, além de heterodiegético, mostra-se onisciente em relação aos fatos que narra: “(...) o Tuca fez que sim, humm!! Que coisa mais gostosa era aquela da tigela(...)” (NUNES, 1 996, p. 36). Nota-se, por meio desse e de outros diálogos inseridos na narrativa escolhida para análise, que o narrador possui um conheci248 mento ilimitado dos sentimentos e sensações das personagens. A construção desse tipo de narrador não é ingênua, pois seu relato é capaz de sensibilizar o leitor, fazendo-o participar de todas as sensações das personagens em relação à mudança de ambiente social vivida tanto por Tuca quanto por Rodrigo. 6 Considerações finais A análise elaborada pelos estudantes a partir da primeira leitura do conto mostrou-se bastante primária, sendo possível reconhecer no texto apenas um resumo da história. Após a apresentação da teoria e de algumas categorias narrativas, pudemos perceber que os discentes elaboraram uma análise bastante aprimorada em relação à primeira e compreenderam que as categorias narrativas não devem ser aplicadas com a finalidade de isolar elementos estruturais do texto, mas sim pensadas como uma integração na rede de relações semânticas da narrativa. Esperamos que essa explanação tenha cumprido seu principal objetivo que foi mostrar a importância das categorias estruturais para a análise de narrativas. Sabemos que há que se considerar ainda a relação entre texto e contexto histórico, conceitos tão caros aos atuais estudos da literatura. Entretanto, esses conceitos serão objeto de estudo em trabalhos ainda em andamento. 7. Referências CARLINO, P. Escribir, Leer y Apreender en la Universidad: una introducción a la alfabetización académica . Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática . 2 ed., 249 São Paulo: Contexto, 201 2. GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa . Trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa: Vega, 1 995. ______ . Fronteiras da narrativa. In: BARTHES, Roland et al. Análise estrutural da narrativa . 2ed. Petrópolis: Vozes, 1 972. NUNES, Lygia Bojunga. O bife e a pipoca. In Tchau. 1 2.ed. Rio de Janeiro: Agir, 1 996 REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Teoria da Narrativa . São Paulo: Ática, 1 988. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua portuguesa: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental . Brasília: Mec1 998. Disponível em http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/portugues.pdf> BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio: língua portuguesa . Brasília: Mec, 2000. Disponível em < http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/1 4_24.pdf> BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Orientações Curriculares para o Ensino Médio: linguagens códigos e suas tecnologias. Brasília: Mec, 2000. Disponível em> http://por- tal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01 _internet.pd f< 250 artigo EXPERIÊNCIAS DE LEITURA E ESCRITA DE PESSOAS JOVENS E ADULTAS: SABERES E PODERES Eliane Aparecida Bacocina Doutoranda em Educação - UNESP / Rio Claro Professora do Curso de Artes Visuais – Faculdade de Administração e Artes de Limeira (FAAL) elianeab3@ gmail.com Orientadora: Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo Professora Adjunta – Departamento de Educação e Pós Graduação em Educação – UNESP/ Rio Claro mrosamc@ rc.unesp.br Resumo O presente trabalho tem a intenção de cartografar situações vivenciadas por pessoas adultas que, ao longo de suas vidas, foram levadas a aprender a se utilizar da leitura e da escrita em situações escolares e não escolares. Podese afirmar que os saberes adquiridos passaram a se constituir em poderes, à medida que os sujeitos foram se transformando ao longo de suas experiências. Os dados foram obtidos ao longo de aproximadamente dez anos, em pesquisa de pós graduação que foi se delineando desde 2003, ini251 ciando a partir do ingresso da autora no Curso de Especialização em Alfabetização, com continuidade no Mestrado em Educação e, atualmente, retomada em pesquisa de Doutorado. As metodologias de trabalho surgiram da trajetória de interlocução da autora com os sujeitos da pesquisa tendo como mediador o contato com a arte, primeiramente como educadora em salas de aula de EJA, em seguida como pesquisadora em encontros com professoras da mesma modalidade de ensino e, num terceiro momento, como professora universitária com estudantes do Curso de Pedagogia. Autores como Paulo Freire, Jorge Larrosa, Foucault e Rancière fundamentam este trabalho. Palavras-chave: Educação ao longo da vida – Leitura e Es- crita – Poder da Escrita “Quanto nos falta ainda compreender dos inúmeros artifícios dos obscuros heróis’ do efêmero, andarilhos da cidade, moradores dos bairros, leitores e sonhadores, pessoas obscuras das cozinhas. Como tudo isso é admirável!”(Michel de Certeau) O presente trabalho tem como objetivo cartografar situações vivenciadas por pessoas adultas que, ao longo de suas vidas, foram levadas a aprender a se utilizar da leitura e da escrita em situações escolares e não escolares. Podese afirmar que os saberes adquiridos passaram a se constituir em poderes, à medida que os sujeitos foram se transformando ao longo de suas experiências. Os dados foram obtidos ao longo de aproximadamente dez anos, em pesquisa de pós graduação que foi se delineando desde 2003, iniciando a partir do ingresso da autora no Curso de Especialização em Alfabetização, com continuidade no Mes252 trado em Educação e, atualmente, retomada em pesquisa de Doutorado. As metodologias de trabalho surgiram da trajetória de interlocução da autora com os sujeitos da pesquisa tendo como mediador o contato com a arte, primeiramente como educadora em salas de aula de EJA, em seguida como pesquisadora em encontros com professoras da mesma modalidade de ensino e, num terceiro momento, como professora universitária com estudantes do Curso de Pedagogia. Autores como Paulo Freire, Jorge Larrosa, Foucault e Rancière fundamentam este trabalho. O trabalho será apresentado em forma de fragmentos, numa tentativa de “cartografar” os dados apresentados, de acordo com a proposta de Suely Rolnik (1 989), de dar língua para afetos que pedem passagem, (...) se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecerem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias. Convido o leitor a “mergulhar” nos relatos, a fim de que novos olhares sejam lançados à Educação de Pessoas Adultas, sobretudo, a não mais ser atribuída a essa modalidade de ensino a característica de ser composta por pessoas que possuem dificuldades mas, acima de tudo, como um espaço repleto de pessoas dotadas de saberes. Para iniciar... um relato da educadora / pesquisadora Trabalho como educadora desde 1 998 e, tendo concluído o curso de Magistério em 1 995 e o curso de Pedagogia pela UNESP de Rio Claro, em 2002, iniciei, em 2003, 253 uma nova empreitada enquanto educadora. A escola já me era conhecida, porém, sentia como se fosse um lugar novo, devido ao horário diferente (1 6h às 22h) e às diferentes pessoas que estavam ao redor. A sala de aula até então para mim, um lugar repleto de crianças e de barulho, estava diferente, embora não menos alegre; a turma, mais silenciosa, constituída por outros sujeitos. Sujeitos com idades variadas, bastante diferentes entre si, mas com olhares semelhantes, com um objetivo em comum: “aprender a ler, a escrever e a fazer contas”. Os motivos, diversos: ler a receita, ler a Bíblia, o livro que ganhou de presente e “está lá, guardado na gaveta”, escrever para os parentes distantes, “tirar carta”, continuar no emprego, conseguir um emprego melhor, ser alguém na vida... entre tantos outros, talvez não revelados... As barreiras encontradas por eles também se assemelhavam bastante: o medo de errar, a “mão pesada”, a dificuldade em “lembrar das coisas”, o “não enxergar”. Em abril do mesmo ano, retornei à universidade, ingressando no Curso de Especialização em Alfabetização. Já no momento da entrevista de seleção foi solicitada a definição de um tema de pesquisa para a monografia a ser apresentada na conclusão. Não tive dúvidas quanto à resposta. Queria pesquisar o que mais me instigava e inquietava no momento: os educandos com os quais trabalhava. Queria chamá-los a trazer para a discussão em sala de aula o que sabiam, o que conheciam, o que vivenciavam. Iniciado o curso, montei algo como um roteiro de trabalho, uma proposta didático-metodológica a ser desenvolvida em um semestre de aulas. Pensei na Arte como um caminho, talvez devido às observações e aos relatos dos educandos, que revelavam o quanto as imagens lhes eram significativas. Faltava, no entanto, o referencial teórico. Em que autor fundamentar o trabalho? A resposta surgiu já na segunda aula da disciplina Literatura Infantil: um Enfoque Histórico Didático, 254 ministrada pela profa. Dra. Maria Augusta H. W. Ribeiro, que apresentou o texto de Paulo Freire, A importância do ato de ler, como proposta de reflexão sobre a leitura e, desde esse momento, aceitou orientar tal pesquisa. O texto, já lido em algum momento de minha trajetória escolar, tomava outra dimensão para mim. Antes lido superficialmente, o texto agora se tornava uma experiência de leitura. A forma como o autor relata sua leitura de mundo me encantou. Era isso o que pretendia levar meus alunos a fazerem, ou seja, a reviverem suas leituras de mundo, tal como faz Paulo Freire, lendo os “textos”, as “palavras” e as “letras” que existem em seus mundos. Mundos repletos de cores, de imagens, de músicas, de poesias... Teve início meu primeiro momento de invenção. Organizei uma proposta com nove módulos de trabalho, cujos eixos surgiram da seqüência que consegui apreender da leitura de Paulo Freire: I - Quem sou eu?, II – Minha infância, III - Presença ou ausência da experiência escolar, IV – Minha família, V – Minhas crenças, VI – Meus medos, VII Aprendizado com as pessoas, VIII – Eu e o trabalho, IX Como vejo a vida. A partir da definição de temas, fui em busca do material de leitura que pudesse fazer parte de cada tema, material formado por imagens (obras de arte), músicas e poesias. Elaborei também o planejamento das aulas, fundamentado na metodologia proposta por Jolibert (1 994) e na Metodologia Triangular, de Ana Mae Barbosa (1 991 ). Portanto, ao iniciar o segundo semestre do mesmo ano, agora com nova turma de alunos, já tinha tudo organizado. Tinha início, naquele momento, uma nova experiência. Da criação individual do trabalho, surge a criação coletiva, junto com os educandos. Neste processo, alguns relatos e situações vivenciadas foram saltando aos olhos. 255 Lendo o mapa – travessias Numa aula em que é proposta a leitura de um pequeno texto em que aparecem nomes de Estados do Brasil, levo o mapa e o deixo ali no quadro, para que eles possam se levantar de seus lugares e observar de perto. A curiosidade surpreende, assim como as histórias de travessias que contam. Por quantos lugares passaram esses sujeitos... E quanta coisa lhes “passou”... Os desenhos das letras que representam as placas Quantos saberes! Entre uma conversa e outra, Adriano, um dos alunos, conta que o maior desafio vencido foi o de conseguir “tirar carta”. Ele não conhece o nome de nenhuma letra e conta que, para passar na prova, ficou “um tempão olhando para as placas desenhadas no livro”, associando as imagens à sequência de letras que compunham seu significado. Tarefa difícil, para qualquer um, quase impossível. Mas Adriano consegue. Como essa, quantas histórias vão surgindo... “Como foi que apareceu aquele nome ali?” Carlos, jovem casado há pouco tempo, numa segunda-feira, chega à aula todo animado, dizendo: Professora, esse fim-de-semana eu fui no supermercado e fiquei feliz. Eu olhei pra margarina e consegui ler: DORIANA. Puxa vida! Cheguei em casa todo contente e falei pra mulher: ‘Agora você não briga mais comigo. Agora eu sei qual é a margarina que você sempre me pede e eu nunca trazia direito.’ 256 Fico pensando na experiência desse rapaz, e na forma como uma atividade tão simples e rotineira para mim, comprar uma margarina, para ele se torna tão significativa. Mais adiante, outro relato desse mesmo educando: Eu trabalho numa firma que faz móveis de aço. E eles sempre me dão um papel com o desenho dos móveis com a medida pra eu fazer igual. Outro dia eu bati o olho no cantinho da folha e li escrito: estante. Na hora eu fiquei impressionado, e pensei assim: ‘Como foi que apareceu aquele nome ali?’ Mas não é que apareceu; eu é que não via, não enxergava. Pra mim, antes, a palavra era só um rabisquinho. Hoje não. Quantos “rabiscos” ganham forma, a partir do conhecimento da leitura e da escrita... “Agora já sei assinar meu nome” Aline, personagem de vida sofrida, apesar de sua pouca idade (26 anos), se coloca, no momento de leitura de uma das imagens, como aquela que se vê no fundo do quadro, talvez uma forma de tomar consciência da pouca participação que exerce em sua própria vida. Essa reação é expressa também ao olhar para o espelho, em outra atividade realizada: “Nossa! Aqui tem um bicho muito feio!” O fato de ser impedida de estudar pela mãe, que na infância a levou, não a escolher os próprios passos, mas a anular a própria vontade, e seguir um destino imposto, de cuidar da casa e do sobrinho, enquanto a irmã seguia a profissão de professora, parece deixar nela uma mágoa profun257 da. Num outro momento, no qual o grupo encontra-se discutindo os medos, um dos colegas diz que tem medo de perder um amigo, ao que ela responde: - Amigo? Nem nossa mãe é amiga... (Aline) - A mãe é a única amiga que a gente tem. (Raimunda, 2005) - Se ela fosse nossa amiga, ela colocava a gente na escola. (Aline, 2005) Em atividade que remete à infância, também esse fato aparece: - Não fala mais em infância que eu tenho trauma... Infância? Nem sei o que é isso... É que a minha infância foi muito triste. (Aline, 2005). Porém, aos poucos, ela vai aprendendo a ler, e alguns resultados positivos vão surgindo: Sabe professora, de um tempo pra cá eu estou conhecendo mais as letras. Eu achei que nunca ia aprender... Eu mudei bastante de um tempo pra cá, eu vivia em depressão. [...] Antes a gente via uma placa assim, a gente nem ligava... Agora a gente fica tentando ler...É tão bom a gente aprender a ler. Você não tem mais vergonha, você não é mais uma pessoa tímida... [...] Eu estava tão desanimada esses dias. É que as minhas cunhadas me humilham muito, tiram sarro, falando que onde já se viu eu estudar depois de velha. Mas meu marido me incentiva, aí eu tento me animar de novo. [...] Tem uma palavra que me dói muito que é analfabeta. O pessoal tirava sarro falando: “Oh! Sua analfabeta...” 258 Essa questão aparece também no início de semestre, quando realizamos a leitura do Documento de Identidade, e vemos no documento da aluna, o carimbo em vermelho contendo a expressão: NÃO ALFABETIZADA. No momento, a personagem afirma: “Quero fazer outra via. Agora eu já sei assinar meu nome”. Aline não apenas quer fazer outra via de seu documento, mas realmente o faz. Para surpresa de todos, ao final do semestre, ela conta com satisfação: - Quando eu fiz o meu RG eu era analfabeta, eu não assinei. Lembra que quando a gente fez aquela lição com ele eu não tinha assinado? Faz um tempo eu perdi o meu RG e agora eu assinei. (Aline, 2005) - E como foi que você perdeu seu documento? - pesquisadora - Acho que foi meio de propósito, porque doía ficar olhando aquele dedão no lugar da assinatura e aquele carimbo vermelho. Aí eu consegui fazer outro. O rapaz da delegacia até elogiou a minha assinatura. Quando eu falei pra ele que eu não tinha assinado o outro documento porque eu não sabia escrever, ele falou assim: “Nossa! Que assinatura bonita! Nem parece que você aprendeu assinar agora.” (Aline, 2005)” Quando Aline fala sobre o elogio recebido, é possível ver a importância do olhar do outro na forma de ver a si mesma. Essa fala é diferente das anteriormente ouvidas por ela em outros momentos, como ela mesma relata: “Tem uma palavra que me dói muito que é “analfabe259 ta”. O pessoal tirava sarro falando: ‘Oh! Sua analfabeta... ’” Aline parece ter vencido a dor que sentia a cada vez que lia aquele carimbo vermelho em seu documento. A palavra ali escrita ela conhecia bem, pois a sentia com sofrimento sobre si mesma. Em uma atividade final, em que foi proposto que cada um encontrasse uma forma de representar a vida, Aline traz o desenho da escola, e conta: “[...] a escola mudou a minha vida”. Pelo que se pode captar desses relatos, a aluna demonstra ter entrado na escola de uma forma e saído de outra. Como se tal experiência lhe tivesse possibilitado modificar-se, reconstruir-se, inventar-se. “Poemas que saem da gaveta” Em 201 0, enquanto professora universitária, ao ministrar a disciplina “Oficina de Leitura e Produção de Textos” para o 1 º semestre de um Curso de Pedagogia em faculdade localizada no município de Praia Grande/SP, encontrei, por entre as carteiras da sala de aula, uma poetisa, Ludimar, que com seus 59 anos de idade, realizava o sonho de cursar uma faculdade, após ter concluído o ensino fundamental e médio na Educação de Jovens e Adultos e após passar muitos anos escrevendo poesias e, de forma autodidata, estudando Língua Portuguesa. Muito me surpreendeu a qualidade de escrita de seus poemas, alguns premiados por meio de Concursos regionais e nacionais, bem como dos conhecimentos que trazia consigo. Ela me conta que, durante muito tempo, impedida de estudar pelos pais e pelo marido, em momentos escondidos, lia romances e, inspirada pelas leituras, escrevia poemas. Seus escritos ficaram, durante muito tempo, guardados na gaveta, e pareciam “gritar”, como se pedindo para serem mostrados, divulgados. Até que, no momento em que retorna aos estudos e começa a apresentá-los a seus professores que a acompanhavam na 260 EJA, ela resolve inscrevê-los em concursos literários e, com isso, consegue sair do anonimato, tornando possível “dizer sua palavra” ao mundo. Alguns poemas são ficcionais, outros, autobiográficos. Há aqueles que foram escritos em momentos difíceis, em que a autora passou por uma síndrome do pânico, ficou viúva, perdeu amigos queridos. Outros são homenagens a pessoas que a acompanham e incentivam – filhos, professores, amigos. Ao mesmo tempo em que volta a frequentar a escola, ela é também apresentada a diferentes grupos de poetas, que criam espaços para trocar experiências e divulgar sua arte. Conheci Ludimar no início daquele semestre e, como havia previsto uma aula para trabalhar poesia, convidei-a para uma participação nessa aula. No dia combinado, ela levou uma sacola com seus poemas “enroladinhos”, como que para presente e, nos momentos finais, foi à frente da sala e declamou alguns deles, distribuindo seus “rolinhos” aos colegas. Criou-se, dessa forma, uma relação em que não existe mais alguém que ensina e alguém que aprende. Em 2011 , convidei-a novamente para uma palestra aos alunos iniciantes do curso e, por meio dela, pude ter contato com um grupo de poetas do qual ela participava. Muitos dos alunos, no primeiro semestre do curso de Pedagogia, tornaram-se participantes assíduos da atividade. Alguns, que num primeiro contato, frequentaram a roda apenas como ouvintes, a fim de cumprir uma obrigação acadêmica, para conseguir o certificado para as Atividades Complementares exigidas pelo curso, passaram a voltar todos os meses ao local, não mais como obrigação, mas como forma de encontrar prazer no contato com a leitura e a escrita. Pouco depois, alguns, olhos brilhando, me procuravam após o período de aula, e me pediam para revisar poemas que escreveram para ler na “roda”. Falas vão surgindo: “Será que o português está correto?” “Vou ler para os poe261 tas. Não quero fazer feio...” Vejo a educanda se transformar em educadora e a forma como passa a compartilhar seus conhecimentos com as pessoas à sua volta. A viagem do conhecimento: escrita e poder Larrosa compara a experiência de olhar para si mesmo a uma viagem, que pode levar seus viajantes a reconhecerem a necessidade de se modificarem. Foi algo semelhante o que aconteceu a esses sujeitos, a partir da experiência de leitura e escrita. En la experiencia uno se encuentra a sí mismo. Y, a veces, uno se sorprende por lo que encuentra, no se reconoce. Y tiene que reconstruirse, que reinterpretarse, que rehacerse. Por eso, en los viajes en los que no todo está pre-visto, uno vuelve transformado. No sólo con una colección de fotos, o con las alforjas llenas, sino transformado. Y para tranformarse, hace falta que nos pase algo y que lo que nos pasa nos pruebe, nos tumbe, nos niegue. (LARROSA, 1 996, p 469-470). Michel de Certeau (2004) aponta o papel político da escrita, ao dissertar sobre a “economia escriturística”. Segundo o autor, “sempre é verdade que a lei se escreve sobre os corpos. Ela se grava nos pergaminhos feitos com a pele de seus súditos. Ela os articula em um corpo jurídico, com eles faz seu livro. [...] Os livros são apenas as metáforas do corpo.” (CERTEAU, 1 994, p. 231-232). Tais considerações levam a pensar a respeito do papel político que tem a linguagem, papel também apontado por autores brasileiros como 262 Paulo Freire (1 993), ao definir a leitura como um ato político e afirmar que “enquanto ato de conhecimento e ato criador, o processo da alfabetização tem, no alfabetizando, o seu sujeito” (FREIRE, 1 993, p. 1 9). E, portanto, enquanto alfabetizando, um sujeito que pode e deve se apropriar do código escrito para escrever sua própria história e não apenas para se submeter e um saber imposto. É necessário “ler o mundo”, ler além das palavras que lhe são dadas, inventá-las... Rancière (2002) aponta o poder emancipador que se torna possível quando se rompe as barreiras hierárquicas entre mestre e aprendiz. O autor defende uma relação de igualdade entre os saberes, que se concretiza por meio da palavra. No ato de palavra, o homem não transmite seu saber, ele poetiza, traduz e convida os outros a fazer a mesma coisa. Ele se comunica como artesão:alguém que maneja as palavras como instrumentos. O homem se comunica com o homem por meio de obras de sua mão, tanto quanto por palavras de seu discurso. (RANCIÉRE, 2002, p. 74). Analisando as viagens empreendidas pelos sujeitos acima apresentado, ainda nas palavras de Rancière (p.73), foi possível vivenciar a “potência que permite ao ‘ignorante’ arrancar o segredo do livro ‘mudo’”. O pensamento não se diz em verdade, ele se exprime em veracidade. Ele se divide, ele se relata, ele se traduz por um outro que fará, para si, um outro relato, uma outra tradução, com uma única condição: a vontade de comunicar, a vontade de adivinhar o que o outro pensou e que nada, afora seu relato, garan- 263 te, que nenhum dicionário universal explica como deve ser entendido. A vontade adivinha a vontade. É nesse esforço comum que toma sentido a definição de homem como uma vontade servida por uma inteligência. (RANCIÈRE, 2002, p.71 ). Vontades... saberes... Nas salas de aula nas quais se objetiva ensinar a ler e a escrever, o que se propõe não é a busca por verdades, nem a transmissão de conteúdos presentes em um “dicionário universal”, mas o compartilhar de relatos, ideias e invenções, contar a própria história. Nessas formas de contar-se a si mesmos, reconhecem-se vitórias, travadas nas duras batalhas de suas vidas. Segundo Larrosa, “para “chegar a ser o que se é” há que combater o que já se é.” (Larrosa, 2002b, p. 61 ). E as armas usadas nessas batalhas e combates são as palavras, que permitem romper horizontes e abrir possibilidades: Sólo el combate de las palabras aún no dichas contra las palabras ya dichas permiten la ruptura del horizonte dado, permiten que el sujeto se invente de otro modo, que el yo sea otro. [...] La fidelidad a las palabras es mantener la contradición, dejar llegar lo imprevisto y lo extraño, lo que viene de afuera, lo que desestabiliza y pone en cuestión el sentido establecido do lo que se es. La fidelidad a las palabras es no dejar que las palabras se solidifiquen y nos solidifiquen, es mantener abierto el espacio líquido de la metamorfosis. La fidelidad a las palabras es reaprender continuamente a leer y a escribir (a escuchar y a hablar). Sólo así se puede escapar, siquiera provisionalmente, a la captura que 264 funciona obligándonos a leernos y a escribirnos de un modo fijo, con un patrón estable. Sólo así se puede escapar, aunque sea por un momento, a los textos que nos modelan, al perigro de las palabras que, aunque sean verdaderas, se convierten en falsas una vez que nos contentamos con ellas. Sólo asi se encontrará una identidad narrativa, abierta y desestabilizadora. (LARROSA, 1 996; 481-482). Que cada vez mais seja possível “armar” as pessoas adultas, seja qual for o cenário em que se encontrem, de palavras que desestabilizam e provocam metamorfoses. Para finalizar – algumas considerações A partir dos fragmentos apresentados, torna-se possível observar modos de identificação de si mesmos que remetem a saberes e olhares que são múltiplos. Poder-se-ia dizer que essa multiplicidade de modos de ser e de se ver talvez faça a riqueza de um ambiente na educação de jovens e adultos, onde estão pessoas que são únicas, singulares, que constantemente “superam” a si mesmas, desestabilizam-se a cada momento, a cada novo saber que se adquire, a cada experiência compartilhada... Vivenciam-se experiências de escrita que ultrapassam os espaços academicamente pensados para desenvolver conhecimento. Por meio da escrita e da leitura, o cenário da sala de aula torna-se emancipador. Como afirma Rancière: A emancipação do artesão é, antes de mais nada, a retomada dessa história, a consciência de que sua atividade mate- 265 rial é da natureza do discurso. Ele se comunica como artista: um ser que crê que seu pensamento é comunicável, sua emoção, partilhável. (RANCIÈRE, 2002, p. 73) A sala de aula torna-se um espaço de encontro com pessoas que podem compartilhar saberes e experiências de vida. Mais ainda, o homem sabe que há outros seres que a ele se assemelham e aos quais poderá comunicar os sentimentos que experimenta desde que os situe nas circunstâncias às quais deve suas penas e seus prazeres. Assim que ele conhece o que o comoveu, ele pode se exercitar em comover os outros, se ele estuda a escolha e o emprego dos meios de comunicação. É uma língua que ele deve aprender. (RANCIÈRE, 2002, p. 76). Sobre as experiências de escrita, a partir do contato com a arte, é possível considerar também a perspectiva de Foucault (2006), que considera a escrita / a arte para além da representação, do corpo, mas “em direção ao infinito”. O autor traz à linguagem, enquanto arte, possibilidades múltiplas, ilimitadas, infinitas, considerando sujeitos que escrevem a si mesmos, à sua “alma”: É sua própria alma que é preciso criar no que se escreve; porém, assim como um homem traz em seu rosto a semelhança natural com seus ancestrais, também é bom que se possa perceber no que ele escreve a filiação dos pensamentos que se gravaram em sua alma 266 (FOUCAULT, 2006, p. 1 52). A educação que se propõe com esse artigo, a partir das experiências apresentadas, é aquela que produz a ampliação dos saberes de cada um até o infinito de suas possibilidades... Referências BACOCINA, E.A. Leituras de mundo, saberes e modos de exis- tência de educandos e educadores: contribuição para a invenção de modos de aprender e ler. Dissertação (Mestrado em Edu- cação), UNESP – Rio Claro-SP: 2007. BARBOSA, A. M. A imagem no ensino da arte: anos oitenta e novos tempos. São Paulo: Perspectiva; Porto Alegre: Fundação IOCHPE, 1 991. CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Tradução de Ephaim F. Alves. Petrópolis: Vozes, 1 996. ______. A invenção do cotidiano 2. Morar. Cozinhar. Tradução de Ephaim F. Alves. Petrópolis: Vozes, 1 994. FREIRE, P. A importância do ato de ler em três artigos que se completam . 28 ed. São Paulo: Cortez, 1 993. FOUCAULT, M. A escrita de si. In Ditos e escritos: estratégia, poder-saber – Volume V. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p.1 44-1 62. LARROSA, J. Narrativa, identidad y desidentificación. In: La experiencia de la lectura: Estudios sobre Literatura y Formación . Barcelona (Espanha): Laertes, 1 996, p. 461-482. 267 ___________. (2002a). Notas sobre a experiência e o saber de experiência. In: Revista Brasileira de Educação . Jan/fev/mar/abr., 2002a. _________. (2002b). Nietzsche e a educação . Belo Horizonte: Autêntica, 2002b. RANCIÈRE, J. O mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual. Tradução de Lilian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. ROLNIK, S. Cartografia Sentimental, Transformações contemporâneas do desejo , Editora Estação Liberdade, São Paulo, 1 989. 268 artigo CENTRO EDUCACIONAL DE JOVENS E ADULTOS (CEJA) E OS RECURSOS TECNOLÓGICOS COMO DIFERENCIAL NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM Políticas Públicas para a Formação de Pessoas Jovens e Adultas Fátima Aparecida Machado dos Santos, faty.ams@ gmail.com Maria Aparecida Couto, ma_couto@ yahoo.com.br Resumo No município de Bauru/SP a Educação de Jovens e Adultos (EJA) é realizada pela Unidade Escolar Centro Educacional de Jovens e Adultos (CEJA) que tem como meta a realização de uma Educação de qualidade àqueles que foram excluídos do saber escolar. O trabalho realizou-se envolvendo os bairros Mary Dota e Jardim da Grama durante o projeto Inclusão Digital que a Secretaria Municipal de Educação disponibilizou por meio da parceria com duas empresas Planeta Educação e, atualmente Mstech. Foram oportunizadas oficinas de Informática aos professores e a inserção dos alunos no laboratório de Informática. As professoras dos respectivos bairros elaboravam e aplicavam atividades aos alunos em sala de aula e laboratório de Infor269 mática. Realizou-se um trabalho com o uso das novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC’s), com a intenção de sanar os desafios no mundo virtual na EJA. Durante o primeiro contrato com o Planeta Educação, participava apenas algumas salas da EJA e a sala do Mary Dota era contemplada nessa Inclusão Digital. Os alunos deslocavam-se até o laboratório de Informática, em contrapartida, a sala do Jardim da Grama, localizada no salão de uma igreja, não participava do projeto devido à distância e a quantidade de salas incluídas, mas a professora também buscava alternativas para envolver os alunos nessa realidade do uso das TICs. Devido ao interesse da turma dessa classe e no segundo contrato, o Jardim da Grama passou a fazer parte das aulas no laboratório de Informática e as professoras dos dois bairros planejavam projetos para ter o intercâmbio das salas utilizando a Internet e outros recursos tecnológicos. As TIC’s se tornaram um diferencial no processo ensino-aprendizagem, como também inovou a elaboração de projetos, os produtos finais e o fazer pedagógico do CEJA. Com esta experiência, observou-se que a TIC’s não deve ser ignorada e independentemente do local, nós professores, precisamos inovar a prática pedagógica. A Educação escolar é um processo intencional e sistematizado de trabalhado, o professor deve ser a priori, o mediador entre o conhecimento e o aluno, para tanto, necessita propiciar a aprendizagem com sentido e significado, e nesse aspecto os recursos tecnológicos não devem ser ignorados, pelo contrário, deve-se utilizá-los como diferenciais na aprendizagem evidenciando ao aluno o quanto é imprescindível à apropriação desses recursos para seu desenvolvimento, aprendizagem e participação social. Palavras - chave: Inclusão Digital. CEJA. Recursos Tecnológi- cos. 270 Introdução A escola não pode ignorar o que se passa no mundo. As Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC’s ou NTIC) transformam espetacularmente não só nossas maneiras de se comunicar, mas também de trabalhar, de decidir e de pensar. Por novas tecnologias em Educação entende-se o uso da Informática, do computador, da Internet, do cd-rom , da hipermídia, de ferramentas para a Educação à distância como: chats, grupos ou listas de discussão, correio eletrônico e de outros recursos de linguagens digitais de que atualmente dispomos e que colaboraram significativamente para tornar o processo educativo de ensino-aprendizagem mais criativo, inovador, eficiente e eficaz. Na Educação Básica, especificamente na EJA, a Informática geralmente não é proposta como uma disciplina a ser ensinada por si mesma e não são todas as classes que participam da Inclusão Digital, considera-se o interesse dos professores e dos alunos. E nesse sentido, que espaço conceder às novas tecnologias? São elas simplesmente recursos, instrumentos de trabalho como o quadro negro? Espera-se de seu uso uma forma de familiarização, transferível a outros contextos? Ninguém pensa que, utilizando um quadro negro em aula, preparam-se os alunos para usá-lo na vida. Com o computador é diferente. Não é um instrumento próprio da escola, bem ao contrário. Pode-se esperar que, ao utilizá-lo neste âmbito, os alunos aprendem fazê-los em outros contextos. Com a tecnologia, é possível informatizar diversas atividades, desenvolver atividades novas e criativas, proporcionar novos ambientes de aprendizagem, adaptar essas novas tecnologias às necessidades desses alunos da EJA. O professor precisa estar preparado para inserir-se 271 no universo de seus alunos, pois atualmente a criança já nasce em uma cultura em que se clicam como também jovens, adultos e idosos se deparam com situações que os “impulsionam” o saber clicar. Formar para as novas tecnologias é formar julgamento, o senso crítico, o pensamento hipotético e dedutivo, as faculdades de observação e de pesquisa, a imaginação, a capacidade de memorizar e classificar, a leitura e análise de textos e de imagens, a representação e redes, de procedimentos e de estratégias de comunicação. Por meio do projeto buscaram-se alternativas para envolver os alunos na nova era digital tentando solucionar os desafios encontrados na realidade das salas envolvidas para que propiciasse uma aprendizagem mais prazerosa aos alunos do CEJA. Vivemos em uma sociedade globalizada, onde a as mídias tradicionais são presenças importantes em todos os países desenvolvidos, sobretudo no mundo capitalista ocidental da qual fazemos parte, onde a globalização impõe a todos a necessidade de informação que atinja cada dia mais pessoas tanto em suas necessidades profissionais quanto individuais. E para fazer parte deste admirável mundo novo e tecnológico é preciso conhecimento e domínio e a Educação não pode ficar fora desse mundo admirável. Referencial teórico A Lei de Diretrizes Bases da Educação Nacional (LDB) em seu Art. 32 destaca que o Ensino Fundamental terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante I – o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; II – a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em 272 que se fundamenta a sociedade. Desta maneira, ao se enfatizar na LDB o aspecto da tecnologia na formação básica do cidadão, destacamos significativo o uso das Tecnologias da Comunicação e da Informação (TIC’s) no mundo contemporâneo. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) se encontram diversas indicações da importância das TIC’s direcionadas às primeiras séries do Ensino Fundamental. “Apontar a necessidade do desenvolvimento de trabalhos que contemplem o uso das tecnologias da comunicação e da informação, para que todos, alunos e professores, possam delas se apropriar e participar, bem como de criticá-las e/ou delas usufruir”. Dos objetivos do Ensino Fundamental: “Saber utilizar diferentes fontes de informação e recursos tecnológicos para adquirir e construir conhecimentos”. Nos princípios e fundamentos dos PCN’s, se destaca: “Desde a construção dos primeiros computadores, novas relações entre conhecimento e trabalho começaram a ser delineados. Um de seus efeitos é a exigência de um reequacionamento do papel da educação no mundo contemporâneo, que coloca para a escola um horizonte mais amplo e diversificado do que aquele que, até em poucas décadas atrás, orientava a concepção e construção dos projetos educacionais. Não basta visar à capacitação dos estudantes para futuras habilitações em termos das especializações tradicionais, mas trata-se antes de ser colocada em vista a formação dos estudantes em termos de sua capacitação para a aquisição e o desenvolvimento de novas competências, em função de novos saberes que se produzem e demandam um novo tipo de profissional, preparado para lidar com as novas tecnologias e linguagens, capaz de responder a novos ritmos e processos”. Das orientações didáticas dos PCN’s: “É indiscutível a necessidade crescente do uso de computadores pelos 273 alunos como instrumento de aprendizagem escolar, para que possam estar atualizados em relação às novas tecnologias da informação, TIC’s e se instrumentalizarem tanto para as demandas sociais presentes como as futuras.” A Educação, como toda instância social, também tende a, pouco a pouco, incorporar o uso das inovações tecnológicas no seu cotidiano. Essa tendência pode ser entendida como benéfica, se a referida incorporação ocorrer numa perspectiva crítica e emancipadora, que situe os sujeitos sociais envolvidos no bojo do processo educativo. As diferentes mídias podem enriquecer o processo de aprendizagem porque além de ser fator motivacional, há a possibilidade de trabalharmos com diferentes códigos semióticos (imagens, sons, animação, escrita...) os quais respaldam um pouco melhor os diferentes estilos de aprendizagem do sujeito cognoscente. (entrevista Lucila Maria Pesce. PUC- SP). Objetivo geral Mostrar os benefícios dos recursos tecnológicos no processo ensino-aprendizagem por meio da inclusão digital na EJA. Objetivos específicos - Despertar interesse nos alunos na utilização dos recursos tecnológicos; - Utilizar e identificar as ferramentas básicas de informática, possibilitando o desenvolvimento de habilidades para o enriquecimento da aprendizagem; - Oportunizar a criação do correio eletrônico e o Blog das salas envolvidas na Inclusão Digital; - Inovar os produtos finais de projetos desenvolvidos no CE274 JA. Desenvolvimento Nesta experiência pedagógica aplicou-se a metodologia em duas classes da Educação de Jovens e Adultos da Unidade Centro Educacional de Jovens e Adultos (CEJA)/Bauru/SP com o trabalho pedagógico realizado em sala de aula e laboratório de Informática. Em 2007 a Secretaria Municipal de Educação em parceria com o Planeta Educação e atualmente com parceria com a Mstech criaram o “Projeto Inclusão Digital” tendo como um dos objetivos propiciarem aos seus professores e alunos a inclusão digital propondo ações de Informática educativa utilizando os recursos tecnológicos como ferramenta pedagógica. O Projeto contou com profissionais especialistas, mediadores atuando junto aos educadores para aprendizagem didática tecnológica nos laboratórios. Alguns mediadores davam suportes nas unidades escolares, nos laboratórios de Informática, atuando junto aos professores e alunos na construção de projetos pedagógicos enriquecendo o ensinoaprendizagem e também outros mediadores atuavam junto aos funcionários da rede municipal propiciando noções básicas de informática para os inserirem no mundo tecnológico. Os professores se apropriaram do conhecimento do uso da tecnologia nos módulos e oficinas do Projeto Inclusão Digital. Adquiriram autonomia e inovou a sala de aula com o uso do recurso, computador, enriquecendo seu trabalho pedagógico, detalhado a seguir. Os alunos da sala de aula do Polo do Mary Dota frequentaram semanalmente o laboratório de Informática que não ficava na unidade escolar, mas o mesmo não ocorria 275 com os alunos do bairro Jardim da Grama que não frequentavam, por não haver um ambiente de Informática próximo ao local e transporte. Os professores programavam suas aulas para o laboratório. Elaboravam e adaptavam as atividades aos conteúdos curriculares para o computador utilizando os programas já conhecidos para melhorar o acesso da inclusão digital e os recursos tecnológicos. As atividades eram elaboradas e propiciadas de acordo com as necessidades, interesse dos professores, plano de ensino e, principalmente de acordo com a realidade da sala. Nesse percurso tecnológico os alunos partícipes do ambiente de Informática, conviveram com alguns softwares e desenvolveram trabalhos desde confecção de cartões, digitação das suas produções textuais no Microsoft Office Word, exercícios contextualizados, resolução de situações problemas dentro do Microsoft Office Excel; confeccionaram portfolio das suas aprendizagens utilizando Microsoft Office Power Pointer; pesquisaram na Internet mapas; localizaram as ruas, bairro, cidade, estado, país a sua inserção com o Planeta Terra; buscaram informações sobre rios, populações da cidade, limites, entre outros. E os que não tinham acesso ao ambiente a professora adaptava as atividades que eram propostas nas oficinas, envolvendo os alunos realizando textos coletivos, palavras geradoras, roda de diálogo e até momentos do uso de notebook em sala de aula. No segundo contrato com a empresa Mstech, que permanece até os dias atuais, a sala de aula passou a fazer parte do projeto Inclusão Digital inovando tanto à prática pedagógica quanto o ensino-aprendizagem dessa classe. Com a participação das salas de aula desses bairros no laboratório de Informática e com o uso dos recursos tecnológicos as aulas ficaram diversificadas, criativas, significativas e prazerosas. É claro que as professoras respeitavam 276 os alunos que não queriam participar desse projeto, mas com o passar do tempo percebeu-se um envolvimento maior da turma porque os que faziam parte do projeto os conquistavam através de seus comentários de o quanto era prazeroso e como é importante aprender e estar inserido no mundo tecnológico. (Na fala dos alunos que utilizam o termo: _ “mexer no computador”). Nesse sentido, Piaget cita: “O educador deixou de ser aquele que ensina para transformar-se naquele que cria situações estimulando para descobertas”. Contudo, o professor é mediador no processo ensino-aprendizagem e precisa buscar ações inovadoras e as TIC’s são preciosas ferramentas que corroboram a importância de utilizar novas ferramentas na prática pedagógica da EJA. Durante o percurso dessa Inclusão Digital os recursos tecnológicos são verdadeiros diferencias no ensino aprendizagem e na prática pedagógica da Educação de Jovens e Adultos. Observando o desenvolvimento no processo ensino aprendizagem dos alunos da EJA durante a trajetória nas aulas de Informática notou-se que a princípio alguns apresentavam certo receio e outros tinham certa resistência para participarem do projeto, mas no decorrer dessa inclusão digital foi aumentando o interesse e aumentando o número de participantes e percebeu-se o quanto os alunos evoluíram, pois conseguiram assimilar alguns conhecimentos na área da Informática, resgataram sua autoestima, vencendo seus medos e aprenderam prazerosamente e significativamente os conteúdos desenvolvidos resultando em mútuo contentamento entre professores/alunos/computador. Na prática pedagógica os recursos tecnológicos favoreceram na inovação, como por exemplo, em 2008 aconteceu o I Concurso "Novos Caminhos para Aprendizagem", que teve como tema: “Tecnologia e Educação”, contou com a 277 participação de vários professores. Os trabalhos foram analisados por uma banca de especialistas composta por professores de diferentes instituições de Bauru. Foi neste concurso que os portfolios das atividades desenvolvidos nas salas, Jardim da Grama e Mary Dota, da unidade escolar CEJA foram contemplados em primeiro e terceiro colocados. Outro aspecto positivo ocorreu em 2009, a Secretaria Municipal de Educação de Bauru dentro do seu Programa de Formação Continuada oportunizou um encontro de professores para demonstrar seus projetos como troca de experiências. O encontro contou com a participação de professores das diversas modalidades de ensino. A troca de experiências proporcionou o conhecimento dos trabalhos e projetos desenvolvidos na rede Municipal de Ensino de Bauru tendo como objetivo promover a troca de experiências bem sucedidas entre professores e diretores, bem como valorizar e divulgar os trabalhos desenvolvidos nas unidades escolares. Fazendo parte deste grupo, os professores do CEJA socializaram o trabalho “A tecnologia na sala de aula do CEJA”. Mostrando nesta socialização, a apropriação dos recursos tecnológicos e o trabalho realizado pelos alunos do CEJA, desde trabalhos manuais até os portfolios virtuais que eles construíram no decorrer do projeto dentro do laboratório de Informática. Outro aspecto imprescindível a considerar dessa contribuição dos recursos tecnológicos como diferenciais, são os produtos finais dos diversos projetos realizados na EJA como, por exemplo: “Imprensa escolar” com o produto final Jornal da sala de aula do Jardim da Grama. Histórias de vida, com produto final o livro “Histórias que os Jovens e Adultos contam e escrevem”. “Receitas na EJA”, como produto final o caderno de receitas impresso e digital disponibilizado no portal da escola. “Conscientização sobre a problemática da Dengue”, tendo como produto final os panfletos elabora278 dos e digitados pelos alunos e o filme realizado em ambiente de informática tendo os alunos como autores. A criação dos e-mails e Blogs de cada classe, a criação do Portal da unidade escolar, pela mediadora de Informática local, que favorece a divulgação dos trabalhos pedagógicos das classes do CEJA. Nesse contexto percebe-se que a cada dia a tecnologia está cada vez mais presente e a escola não pode ignorar isso, portanto é primordial fazer parte desse revolucionário mundo tecnológico. Conclusão No Brasil, com os graves problemas que atravessamos na área da educação, a utilização do computador surge como uma grande esperança. Julgam os professores e especialistas que a utilização da informática na educação se realizará de forma adequada e produzirá os efeitos benéficos desejados. Afinal, o homem deve preparar-se para esse futuro desconhecido e imprevisível que o espera, principalmente os educandos jovens, adultos e idosos que foram excluídos da sociedade durante tanto tempo. Esta visão nos deixa como responsáveis para essa preparação que levará o aluno, a saber, apropriar desse recurso com sabedoria para se adequar nesta nova era tecnológica. Não podemos esquecer que a Informática não vai acabar com os problemas da escola, não faz milagre e só melhorará a qualidade de ensino se acompanhada de um projeto pedagógico, o que demanda uma gestão participativa e capacitação dos professores. O ensino vem sentindo alterações rápidas no espaço que ocupa na vida, na preparação do cidadão e da coletividade. 279 A humanidade, sempre procurou se aperfeiçoar, e isto aguça a criatividade, desperta o gênio inventivo, destaca e tempera o caráter, a capacidade de resistência e adaptação, da mesma forma, tem que se preparar para um novo tempo e isto, podem ser incentivados pelo professor. As constantes mudanças tecnológicas e a velocidade com que a informação e a comunicação evoluem atualmente exigem com que os professores utilizem Informática e outros meios de comunicação, beneficiando sua prática pedagógica e profissional. Considerando que a constante atualização é premente neste mundo moderno se faz necessário, aulas planejadas e implementadas dentro de projetos para a utilização das novas tecnologias no ensino educacional, atendendo assim, ao contexto da escola promovendo a melhoria do sistema de ensino de qualidade, propiciando um contato mais próximo com utilização do computador nas atividades de ensino. A familiarização dos alunos da EJA com o computador aconteceu por meio da apresentação do desenvolvimento dos conteúdos e também dos programas educativos e pesquisas, que desenvolveram o raciocínio lógico, a percepção visual, espacial, a criticidade, coordenação motora, a expressão, a escrita, a memorização e a concentração. Muitas formas de ensinar hoje não se justificam mais. Perdese tempo em muitas aulas convencionais, mas o professor pode mudar a forma de ensinar e de aprender. Um ensinar mais compartilhado, orientado, coordenado, mas com a participação dos alunos. Ensinar e aprender exige hoje muito mais flexibilidade espaço temporal, pessoal e de grupo e a tecnologia poderá ser uma ferramenta no trabalho educativo. Portanto, o avanço tecnológico exige, cada vez mais, que nós, professores utilizemos a Tecnologia na Educação, 280 mas é preciso encontrar o equilíbrio perfeito entre Tecnologia e amor, só assim toda e qualquer prática educativa será bem sucedida. Por outro lado, toda Tecnologia existente no mundo de nada irá nos adiantar se não colaborarmos na construção de uma civilização verdadeiramente humana onde o respeito e o amor estejam acima de tudo. Nós, professores, independentemente do local onde estamos inseridos, devemos sempre buscar por ferramentas que colaborem na aprendizagem dos alunos e jamais desistir de acreditar na Educação. “Aquilo que se vivencia é muito mais forte e tem efeitos mais duradouros que aquilo que se ouve, no plano discursivo.” Rubem Alves. Referências ALMEIDA, M.E. de, I nformática e formação de professores. Brasília: Ministério da Educação, Seed, Proinf, v.1. II Série 2000. BRASIL, Ministério da Educação e Cultura. Parâmetros Curriculares Nacionais: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Brasília: MEC/SEMT, 1 996. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação – Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1 996 . PERRENOUD, P. 1 0 novas competências para ensinar. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. 281 282 artigo Aproximações entre a educação de pessoas jovens e adultas e a educação ambiental Flávia Fina Franco1 Amadeu José Montagnini Logarezzi 2 Universidade Federal de São Carlos – Ufscar flaviafinafranco@ hotmail.com1 , amadeu@ ufscar.br2 Resumo Este texto traz uma reflexão a respeito de como a educação ambiental, através de abordagens de temáticas socioambientais sob uma perspectiva crítica, pode ser introduzida no processo de ensino e aprendizagem da educação de pessoas jovens e adultas com vistas a melhorar na formação e a emancipação das/os suas/eus educandas/os. Nesse sentido, o texto teve como objetivo discutir possibilidades de aproximação entre a educação ambiental e a educação de pessoas jovens e adultas. Optamos pela educação ambiental crítica, a qual é reconhecida enquanto prática dialógica e libertadora, impulsionadora de reflexões através da problematização de questões socioambientais relevantes. Graduada em Ciências Biológicas pela Ufscar e educadora do Sesc Campinas. 2 Professor do Depto de Engenharia de Materiais, do Programa de PósGraduação em Ciências Ambientais, do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação Ambiental e do Núcleo de Investigação e Ação Social e Educativa da Ufscar. 1 283 Nessa perspectiva, acreditamos em seu potencial para contribuir em possíveis melhorias na formação dos sujeitos no campo da educação de pessoas jovens e adultas, historicamente marginalizados e marcados por relações injustas e opressoras, justificando uma educação que aponte para a compreensão desses obstáculos com vistas a sua superação. Adotamos a pesquisa bibliográfica como procedimento metodológico, a qual nos permitiu fundamentar teoricamente o objeto de estudo através do levantamento de referências da educação ambiental e da educação de pessoas jovens e adultas, verificando com destaque a presença e a importância da teoria de Paulo Freire nesses campos educacionais. Através da apresentação dos dados sobre o histórico e as concepções teóricas foi possível afirmarmos o grande potencial que a educação de pessoas jovens e adultas e a educação ambiental crítica possuem para que as relações desiguais e as condições de opressão venham a ser percebidas e criticadas em direção a um contexto de relações mais justas, dignas e amorosas, as quais se dão no ambiente como um espaço comum e de interesse social que precisa da participação interativa de todas as pessoas para ser preservado. Ao final deste texto, sugerimos a continuidade da pesquisa, através da ampliação e do aprofundamento dos estudos sobre a educação ambiental crítica, sobre a educação de pessoas jovens e adultas e sobre as possibilidades de aproximação/contribuição entre esses dois campos, uma vez que a aprendizagem é um processo contínuo para toda a vida e que a temática ambiental tem sido cada vez mais relevante na sociedade contemporânea, demandando uma abordagem crítica diante do desafio da crise socioambiental instalada – uma criticidade que sobretudo valorize os aspectos sociais na busca da mudança ambiental. 284 Palavras chave: Educação de pessoas jovens e adultas. Edu- cação ambiental. Emancipação. Introdução A presente pesquisa surgiu a partir de minha participação no projeto da Educação de Jovens e Adultos na Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). Entre agosto de 201 0 e dezembro de 2011 atuei nesse projeto ministrando a disciplina de biologia para uma turma de ensino médio. O projeto da Educação de Jovens e Adultos na Ufscar era um sonho antigo, o qual em 2009 começou a ser debatido na comunidade universitária, junto às/aos servidoras/es3 públicas/os, a fim de se formarem turmas para essa modalidade de ensino. Esse projeto foi construído e concretizado através de uma parceria entre a Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas da universidade e o Núcleo de Extensão Ufscar-Escola4, sendo este responsável pela seleção do corpo docente e pelo acompanhamento pedagógico tanto do corpo docente quanto do discente. Essa parceria fezse presente devido à demanda de servidoras/es que não possuem as séries da educação básica concluídas e à determinação do Núcleo em democratizar o acesso à educação. O objetivo desse projeto é oferecer o curso de educação de pessoas jovens e adultas para todas/os servidoras/es técnico-administrativos que não puderam concluir 3Recusamos manter somente o gênero masculino, tido como dominante na língua culta, procurando incluir os dois gêneros, considerando a necessidade de ruptura com o sexismo que subjaz à nossa linguagem escrita e falada, concordando com as considerações desenvolvidas a esse respeito por Freire (2002, p. 66). 4O Núcleo de Extensão UfSCar-Escola possui mais de 1 4 anos de história e experiência de ensino em curso pré-vestibular popular, além de propiciar e ser um importante espaço de formação pedagógica de docência às/aos estudantes de graduação e de pós-graduação da Ufscar envolvidas/os. 285 alguma etapa do ensino básico em seu período regular. O projeto da educação de pessoas jovens e adultas na Ufscar vem sendo desenvolvido com as seguintes características: destina-se as/aos funcionárias/os dessa instituição, as/os quais são dispensadas/os de um período de trabalho (manhã ou tarde) para estudar, e à população que só consegue freqüentar as aulas dessa modalidade no período diurno; gestão participativa, em que as/os educandas/os possuem liberdade para criticar metodologias, avaliações, conteúdos utilizados em sala de aula; liberdade para falar de seus interesses, de suas dificuldades e expectativas; e, por fim, o plano de ensino do projeto busca refletir as experiências de vida das/os educandas/os, em que o “saber de experiência feito” (FREIRE, 201 0, p. 81 ) é o gerador da construção desse processo de ensino e aprendizagem, sendo manifestado em participações das/os educandas/os incorporadas no planejamento do processo. A maioria das/os educandas/os desse projeto havia ficado mais de 30 anos fora da escola e alguns deles carregavam um sentimento de inferioridade, acreditando que não era mais possível aprender na fase adulta. E sob essa perspectiva, inquietações e reflexões sobre essa modalidade de ensino, em relação à sua estrutura, à prática das/os educadoras/es, às relações com e entre as/os educandas/os cresciam e, como a prática docente pede uma formação/educação continuada (somos todas/os educadoras/es e educandas/os), comecei a buscar literatura sobre a educação de pessoas jovens e adultas, iniciando leituras sobre Paulo Freire para melhor compreender a profissão e melhorar o desempenho nela. Simultaneamente ingressei no curso de Especialização em Gerenciamento Ambiental na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq). Com o decorrer do curso, cursei disciplinas que trabalhavam a temática ambiental 286 com enfoques diversos, voltados tanto para a indústria quanto para o desenvolvimento social. A partir deste momento estudava sobre a temática ambiental e a educação de pessoas jovens e adultas, e assim, através dos conceitos que eram apresentados e das indagações que surgiam, o processo dessa pesquisa era alimentado, incentivado; logo o projeto de pesquisa com o intuito de aproximar a educação de pessoas jovens e adultas e a educação ambiental tornou-se concreto. Quem nunca ouviu a frase “tem que priorizar as crianças, adulto não tem mais jeito”? Refletindo a respeito dessa frase, o desenvolvimento desse trabalho teórico busca verificar de que modo a educação ambiental crítica pode auxiliar na (re)construção de uma educação de pessoas jovens e adultas que pretenda ser de fato transformadora e emancipadora. Estudos teóricos e empíricos apontam que a questão socioambiental é um tema gerador o qual pode contribuir para a construção de uma nova leitura, um novo olhar sobre o mundo, particularmente sobre as relações entre os seres humanos e entre estes e o ambiente em que vivemos. A educação ambiental crítica incorpora “um olhar crítico e uma atitude crítica, em um compromisso com a preservação da vida, com a transformação social e com a emancipação do ser humano”. (LOGAREZZI, 201 0, p. 1 ) A incorporação desta temática (socioambiental) no processo educativo por esta perspectiva (crítica) implica grande potencial de problematização da realidade social, o que pode ser direcionado para motivação do universo de pessoas jovens e adultas, apontando para possíveis melhorias na formação dos sujeitos no campo da educação de pessoas jovens e adultas. Assim, para nos guiarmos neste trabalho nos perguntamos de que modo a educação ambiental, por meio de 287 abordagens de temáticas socioambientais sob uma perspectiva crítica, pode ser introduzida no processo de ensino e aprendizagem da educação de pessoas jovens e adultas com vistas a melhorar a formação dos seus sujeitos. Diante desta questão, o objetivo do trabalho é discutir possibilidades de contribuição da educação ambiental crítica ao campo da educação de pessoas jovens e adultas. Procedimento metodológico Para esse estudo optamos pela pesquisa bibliográfica como procedimento metodológico, que, conforme Lima e Mioto (2007), além de permitir fundamentar teoricamente o objeto de estudo, uma vez que não se limita a uma simples observação dos dados presentes nas fontes consultadas, também fornece elementos que possibilitam compreensão e análise crítica do material bibliográfico. De acordo com as recomendações das autoras realizamos uma busca inicial de materiais publicados em livros, artigos, revistas, documentos legais, bases de dados e bancos de teses e dissertações, a qual foi guiada a partir da temática, da fonte e do período desses materiais. Após essa etapa, procedemos à identificação, à organização e à seleção das obras a serem analisadas para essa pesquisa, em que “a leitura apresenta-se como a principal técnica, pois é através dela que se podem identificar as informações e os dados no material selecionado”. (LIMA e MIOTO, 2007, p. 41 ) Neste trabalho, tomando por base as indicações acima apresentadas, organizamos um roteiro de leitura após o levantamento e a seleção dos documentos, o qual se iniciou com uma rápida leitura, a fim de verificar se as obras consultadas possuíam relação suficiente com os objetivos da 288 pesquisa. Finalizada essa etapa, seguiu-se para uma leitura crítica que possibilitou a sistematização e a síntese de informações, conceitos e idéias relevantes para o estudo. Considerando os objetivos da pesquisa, essa dinâmica de trabalho foi aplicada no desenvolvimento das temáticas da educação ambiental, da educação de pessoas jovens e adultas e, por fim, numa discussão a respeito do potencial de interação entre esses dois campos. Focalizamos inicialmente o campo da educação ambiental. Educação Ambiental Segundo Carvalho (2004), a origem da educação ambiental crítica deu-se através dos ideais democráticos e emancipatórios presentes em uma nova linha de pensamento aplicada à educação, a qual buscava romper com o modelo de educação tecnicista, o qual foi denominado por Paulo Freire como educação bancária, que se limitava a transmitir informações, sem incentivar a reflexão. Assim, podemos considerar Freire como um dos autores referências do pensamento crítico na educação brasileira, o qual defende que a educação torne seus sujeitos como autoras/es de sua própria história, como sujeitos emancipados. Para a educação ambiental ser verdadeiramente crítica, inserida numa leitura política e popular, ela precisa superar pedagogias de bases conservadoras e opressoras. Logo, nesse sentido, a educação ambiental crítica é reconhecida enquanto prática dialógica e libertadora, a qual impulsiona a reflexão através de abordagens da problemática socioambiental. Nesse sentido, Carvalho (2004) argumenta: inspirada nestas idéias-força que posici- 289 onam a educação imersa na vida, na história e nas questões urgentes de nosso tempo, a educação ambiental acrescenta uma especificidade: compreender as relações sociedade natureza e intervir sobre os problemas e conflitos ambientais. Neste sentido, o projeto político-pedagógico de uma educação ambiental crítica seria o de contribuir para uma mudança de valores e atitudes, contribuindo para a formação de um sujeito ecológico. Ou seja, um tipo de subjetividade orientada por sensibilidades solidárias com o meio social e ambiental, modelo para a formação de indivíduos e grupos sociais capazes de identificar, problematizar e agir em relação às questões socioambientais, tendo como horizonte uma ética preocupada com a justiça ambiental. (CARVALHO, 2004, p. 7) Somando contribuições, Sant’Ana (2011 ) destaca a importância de optarmos por uma educação ambiental dialógica, atenta à melhoria das relações sociais, em que as pessoas possam caminhar em direção a uma transformação que compreenda os aspectos pessoal, social e ambiental: pessoal no sentido de sentir-se com possibilidades e direitos antes negados pelos muros anti-dialógicos. Social, uma vez que, ao valorizar e respeitar os processos dialógicos, revertemos o processo de dominação do sistema sobre o mundo da vida e podemos pautar nossas relações no diálogo respeitoso, amoroso e confiante. Ambientais, porque, ao transformar nossas relações sociais, podemos, num processo interativo, 290 modificar também nossas relações com o ambiente, respeitando-o como espaço comum a todas/os, cuidando para que todas/os (inclusive as futuras gerações) compartilhem de um ambiente saudável, sustentável, livre de riscos e limpo. (SANT’ANA, 2011 , p. 93) Assim, reafirmamos nossa escolha ideológica adotada, pois acreditamos que a educação ambiental crítica seja transformadora, emancipadora e dialética, e que implique mudanças de fato, tanto individuais quanto coletivas, e ainda ruptura com tendências conservadoras e opressoras, as quais contribuem com o aumento e a persistência das desigualdades sociais no mundo. Também destacamos aqui alguns momentos da história da educação ambiental, os quais fazem referência à educação de pessoas jovens e adultas, como da promulgação da Lei no 9.795, em que é instituída a Política Nacional de Educação Ambiental (Pnea) no país, a qual representa um avanço na discussão, determinando a obrigatoriedade desse tema em todos os níveis e modalidades de ensino e a organização de sua estrutura no ensino formal e não formal. Podemos observar dois pontos importantes dessa política para a educação de pessoas jovens e adultas: Art. 3º - Como parte do processo educativo mais amplo, todos têm direito à educação ambiental, incumbindo: I - ao Poder Público, nos termos dos arts. 205 e 225 da Constituição Federal, definir políticas públicas que incorporem a dimensão ambiental, promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e engajamento da sociedade na conservação, recuperação e melhoria do meio ambiente; 291 ... Art. 9º - Entende-se por Educação Ambiental na educação escolar a desenvolvida no âmbito dos currículos das instituições de ensino públicas e privadas, englobando: I- educação básica: a- educação infantil; b- ensino fundamental e c- ensino médio; II- educação superior; III – educação especial; IV – educação profissional; V – educação de jovens e adultos. (BRASIL, 1 999, grifos nossos) Porém, somente em 2002, a Lei n° 9.795 foi regulamentada pelo Decreto n° 4.281 , que definiu a criação e as competências do Órgão Gestor da Pnea. Nos anos seguintes, em 2006 e 201 0, ocorreram a criação do Programa Nacional de Formação de Educadoras/es Ambientais (Profea) pelo Órgão Gestor da Política Nacional de Educação Ambiental e a aprovação da Resolução Conama 422, na qual tivemos o estabelecimento de diretrizes para conteúdos, ações e procedimentos em educação ambiental formal e não formal, realizadas por instituições privadas, públicas e da sociedade civil. No momento, o Conselho Nacional de Educação (CNE) acaba de publicar no Diário Oficial da União (DOU) de 1 8 de junho de 201 2 as Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação Ambiental, em que destacamos dois artigos: Art. 7º Em conformidade com a Lei nº 9.795, de 1 999, reafirma-se que a Educação Ambiental é componente integrante, essencial e permanente da Educação Nacional, devendo estar pre- 292 sente, de forma articulada, nos níveis e modalidades da Educação Básica e da Educação Superior, para isso devendo as instituições de ensino promovê-la integradamente nos seus projetos institucionais e pedagógicos. Art. 8º A Educação Ambiental, respeitando a autonomia da dinâmica escolar e acadêmica, deve ser desenvolvida como uma prática educativa integrada e interdisciplinar, contínua e permanente em todas as fases, etapas, níveis e modalidades, não devendo, como regra, ser implantada como disciplina ou componente curricular específico. (BRASIL, 201 2) Mais uma vez, a legislação brasileira reforça a presença da educação ambiental em todos os níveis e modalidades de ensino no país, além de afirmar também a transversalidade de sua abordagem. Estas referências estão em consistência com a perspectiva aqui adotada da educação ambiental crítica e também com o entrelaçamento desta com o campo da educação de pessoas jovens e adultas, que passamos a focalizar. Educação de pessoas Jovens e Adultas A identidade da educação de pessoas jovens e adultas é diferente da do ensino regular e tal diferença não se limita à idade de suas/seus educandas/os, uma vez que ela possui suas próprias características, demandas e possibilidades, as quais estão inteiramente articuladas com valores sociais, históricos e culturais que acabaram por definir essa modalidade, especialmente pelo perfil dos sujeitos que bus293 cam se educar nesse sistema. Historicamente, na caracterização das/os educandas/os da educação de pessoas jovens e adultas, aparecem os grupos marcados por processos de exclusão, como analfabetas/os, educandas/os repetentes ou expulsas/os, infratoras/es, negras/os, moradoras/es da zona rural ou periferia, entre outros grupos sociais oprimidos, os quais ouviram inúmeras vezes que não sabem nada e que são incapazes de aprender, conforme expõe Freire em sua obra Pedagogia do oprimido: de tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem de nada, que não podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em virtude de tudo isto, terminam por se convencer de sua “incapacidade”. Falam de si como os que não sabem e do “doutor” como o que sabe e a quem devem escutar. Os critérios de saber que lhe são impostos são os convencionais. (FREIRE, 201 0, p. 56) Freire expõe que os oprimidos, devido a esse contexto de desvalorização, perdem a confiança em si mesmos e raramente lutam, terminando por aceitar esse quadro de opressão e exploração. A educação de pessoas jovens e adultas configurou-se como compensatória, infantilizadora e carregada de estereótipos5, a qual também compreende a concepção da “educação bancária”: a narração, de que o educador é o sujei5 Aqui podemos citar as expressões comumente utilizadas em relação ao analfabetismo de pessoas jovens e adultas: “chaga do analfabetismo” e “vergonha nacional”, e a manifestação do então Ministro da Educação em 1 991 , José Goldemberg, para quem alfabetizar jovens e adultos não era prioridade do governo. 294 to, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em “vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo educador. [...] Na concepção “bancária” que estamos criticando, para qual a educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos, não se verifica nem pode verificar-se esta superação. (FREIRE, 201 0, p. 66 e 67) Na visão bancária apresentada por Freire, a/o educanda/o é anulada/o, não sabe nada, e a superação dessa relação distorcida encontra-se distante. Para o autor, somente através de um esforço sério e profundo de tomada de consciência sobre a realidade em que se encontram – que constituem e que os constitui –, os seres humanos, por uma práxis verdadeira, podem superar o estado de alienados, de oprimidos, assumindo-se como sujeitos de sua história. A partir dessa idéia, a educação de pessoas jovens e adultas é um espaço com potencialidades para que os sujeitos reconheçam-se, um espaço para que possam exercitar a capacidade crítica, rompendo com o modelo de transmissão de conhecimentos e, de fato, ser uma educação transformadora, em que “se opera a superação de que resulta um termo novo: não mais educador do educando, não mais educando do educador, mas educador-educando com educando-educador.” (FREIRE, 2005, p. 78). Assim, as experiências dos sujeitos dessa modalidade são imprescindíveis para o estabelecimento dessa nova relação. Em toda sua experiência com educação popular, Freire aponta a importância do saber adquirido pela experiência no processo de ensino e aprendizagem, em que todos nós experimentamos e estabelecemos relações no e com o mundo; ao vivenciá-lo, segundo o autor, somos expostos a 295 um grande número de experimentações diversas, em que os “dados fornecidos pela própria vida” enriquecem nosso processo formativo, que é contínuo e permanente. Nesse sentido, Franzi afirma “que as experiências possuem forte potencial de nos proporcionar saberes” (FRANZI, 2007, p. 1 46), os quais são chamados de “saberes de experiência feitos”. E para Freire cada ser humano já possui seu saber de experiência feito, os quais são resultados da vida cotidiana: sua fala, sua forma de contar, de calcular, seus saberes em torno do chamado outro mundo, sua religiosidade, seus saberes em torno da saúde, do corpo, da sexualidade, da vida, da morte, da força dos santos, dos conjuros. (FREIRE, 2002, p. 86) Esse “saber de experiência feito” dos sujeitos da educação de pessoas jovens e adultas precisa ser reconhecido e valorizado, para que esses possam se perceber como sujeitos de sua história. Além das/os educandas/os, os sujeitos da educação de pessoas jovens e adultas são todas/os que estão envolvidas/os no processo de ensino. Em relação a esse contexto, destacaremos a atuação das/os educadoras/es dessa modalidade, para quem “persistiu a histórica escassez de oportunidades de formação” (DI PIERRO, 201 0, p. 942), na construção da identidade da educação de pessoas jovens e adultas como modelo compensatório. De acordo com dados do MEC de 2009, enquanto 2.041.665 professoras/es atuavam na educação básica, um total de 261.51 5 docentes atuava na educação de pessoas jovens e adultas. Em relação à formação desses últimos, 296 cerca de 77% tinham curso superior, 22% concluíram apenas o ensino médio e menos de 1 % havia cursado somente o ensino fundamental. Apesar da maioria dos docentes da educação de pessoas jovens e adultas terem concluído licenciatura, tais dados não refletem uma formação específica para essa modalidade. Segundo Di Pierro (2003), dos 1.306 cursos de pedagogia em funcionamento no Brasil6, cerca de 1 % oferecia habilitação em educação de pessoas jovens e adultas. A autora também afirma que essa modalidade não é atrativa do ponto de vista do mercado de trabalho, sendo raras as instituições de nível superior que oferecem uma formação específica para a educação de pessoas jovens e adultas. Ressaltamos também que a formação específica nessa modalidade limita-se quase que exclusivamente aos cursos de pedagogia, enquanto nas licenciaturas de cursos como química, biologia, matemática, história, entre outros, essa formação praticamente inexiste no currículo. A autora também discorre sobre a problemática da infantilização da educação de pessoas jovens e adultas devido à falta de especificidade na formação docente: a ausência de políticas que articulem organicamente a educação de jovens e adultos às redes públicas de ensino básico impede a formação de carreira específica para educadores dessa modalidade educativa. Com isso, os docentes que atuam com os jovens e adultos são, em geral, os mesmos do ensino regular. Ou eles tentam adaptar a metodologia a este público específico, ou reproduzem com os jovens e adultos a mesma dinâmica de ensino-aprendiza6 Dados de 2003 do Inep. 297 gem que estabelecem com crianças e adolescentes. (DI PIERRO, 2003, p. 1 7) Pereira e La Fare (2011 ) declaram que há algumas, mas bem poucas, disciplinas específicas dirigidas para a educação de pessoas jovens e adultas em termos de pósgraduação stricto sensu, como a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), as quais oferecem linhas de pesquisa em Educação Popular e em Movimentos Sociais, Educação e Cultura, respectivamente. Destacamos ainda o Curso de Especialização em Educação de Pessoas Jovens e Adultas (Ceeja) oferecido pela Ufscar, em que a primeira turma se formou em maio de 201 2. Logo, grande parte das universidades está atuando em relação à formação da/o educadora/or de pessoas jovens e adultas de maneira tímida, considerando o grande potencial que possuem como agências de formação e o destaque que essa modalidade vem ganhando nas discussões sobre educação. (SOARES, 2006) A consequência da formação de educadoras/es que não contemplem as especificidades dessa modalidade é negativa e dificulta seu fortalecimento, reduzindo a possibilidade de uma (re)configuração que garanta o caráter transformador do processo de ensino e aprendizagem para as/os educandas/os. Na verdade, a falta de formação específica de educadoras/es dessa modalidade contribui para a visão equivocada sobre a educação de pessoas jovens e adultas como um modelo compensatório de ensino, de recuperação de tempo perdido, e essa falta de compreensão das particularidades desse público tem como efeito a evasão dessas/es educandas/os, trazendo novamente a exclusão para suas vidas. Acreditamos na potencialidade da educação de pes298 soas jovens e adultas para transgredir o modelo bancário e compensatório, para que esta seja reconhecida como uma educação ao longo da vida, em que todos os seus sujeitos e toda a comunidade possam participar, dialogar, e possam ser educandas/os e educadoras/es. A fim de estruturar e potencializar a nova configuração da educação de pessoas jovens e adultas, faz-se necessário que todas/os que já compreendem a luta contra a opressão exijam do Estado políticas públicas eficazes, articuladas e contínuas, as quais garantam a qualidade nessa modalidade de ensino para que seja um espaço de transformação. Analisamos em seguida possíveis aproximações entre a educação ambiental e a educação de pessoas jovens e adultas, enquanto campos educacionais (de atuação profissional) e enquanto áreas do conhecimento (de produção acadêmica). Educação ambiental e educação de pessoas jovens e adultas: possibilidades e aproximações A fim de discutirmos as possibilidades de aproximação e contribuição entre a educação de pessoas jovens e adultas e a educação ambiental iniciaremos com as semelhanças entre o conceito de educação ambiental crítica e a educação emancipadora de Freire. Para Freire, a educação que se compromete de fato com o processo de libertação não pode tratar os homens e as mulheres como “seres vazios a quem o mundo ‘encha’ de conteúdos” (FREIRE, 2005, p. 76); não deve transformar a educação em um processo mecânico, incapaz de fomentar a reflexão. Aqui o autor critica a educação bancária, o sistema tradicional, que visa direcionar os conhecimentos da/o educadora/or para a/o educanda/o mecanicamente. 299 Nesse sentido, a educação ambiental pode compreender aspectos relacionados à educação bancária, uma vez que em alguns projetos das/os educadoras/es o processo de ensino limita-se a um depósito de informações, como exemplifica Sant’Ana: estes processos são bem conhecidos em comunidades que são visitadas por educadoras/es ambientais e recebem ‘cartilhas’ de como separar os resíduos domésticos, montar composteiras, plantar árvores e jardins. A comunidade não participa ativamente dos processos de elaboração ou reflexão sobre a necessidade destas informações e os sentidos desses procedimentos, apenas recebendo. (SANT’ANA, 2011 , p. 88) Ao retomarmos o objetivo do presente trabalho, que é discutir possibilidades de contribuição da educação ambiental na superação das desigualdades presentes na educação de pessoas jovens e adultas, vemos que para superarmos o caráter “bancário”, o qual foi gerado e intensificado pelos sistemas de ensino conservadores e está enraizado nessa modalidade de ensino, a abordagem crítica no processo de ensino e aprendizagem possibilita a emancipação em que o sujeito, ao compreender sua própria identidade e ação no mundo, desconstrói a relação oprimido/opressor e constrói uma nova relação, igualitária e pautada no diálogo. Assim, baseada na educação libertadora de Freire, a educação ambiental crítica ganha força na construção dessa nova relação, uma vez que a incorporação desta perspectiva implica às/aos educandas/os o entendimento de que o mundo e as relações sociais em que vivemos podem ser transformadas. 300 Outro aspecto da educação ambiental crítica que contribui para a construção de um novo olhar sobre o mundo é o seu caráter plural. A pluralidade da educação ambiental pode ser trabalhada no processo de ensino e aprendizagem como uma “estratégia para dissolver o poder da absolutização da verdade”. (LIMA, 2005, p. 1 67) Ao considerarmos e destacarmos essa diversidade, consequentemente, estaremos evidenciando as diferenças, estaremos dialogando com as/os educandas/os e aproximando-as/os do processo educativo emancipador, ao invés de afastá-las/os como muitas vezes ocorre no padrão tradicional e autoritário da educação, com base na concepção de que a educação de pessoas jovens e adultas é uma oportunidade para que essas pessoas recuperem o tempo perdido. Logo, se reduzirmos a pluralidade da educação ambiental, estaremos construindo obstáculos para a ação educativa quanto a seu potencial para a libertação de seus sujeitos. (LIMA, 2005) Nesse sentido, percebemos que o ensino desejado é aquele em que não haja mais a/o educadora/or opressora/or e a/o educanda/o oprimida/o, mas sim a/o educadora/oreducando/a questionadora/or e crítica/o da realidade em que está inserida/o, que é aquela em que “homens e mulheres se educam em comunhão mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 2004, p. 79). Esse processo educativo confundese com a própria educação ambiental crítica, que também tem como desafio essa reformulação das relações sociais, conforme anunciado por Logarezzi (201 2): nas palavras de Freire: ‘sem o homem e a mulher o verde não tem cor’. Por isso a educação ambiental – ou a educação socioambiental, ou simplesmente a educação – deve ser um ato político em busca de transformação do mundo com 301 as pessoas que se põem a dialogar sobre suas questões relevantes, problematizando-as à procura de soluções humanizadoras. (LOGAREZZI, 201 2, p. 1 65) Logo, devido ao seu caráter político, reafirmamos que a educação ambiental crítica pode contribuir para a emancipação dos sujeitos da educação de pessoas jovens e adultas, porém para articulá-las é necessário “estabelecer um diálogo entre os saberes e a experiência que jovens e adultos já acumularam e trazem para a sala de aula como parte da sua bagagem intelectual”. (IRELAND, 2007, p. 234) Para Zacharias (2011 ), desenvolver as questões ambientais com e para os sujeitos da educação de pessoas jovens e adultas é imprescindível, uma vez que suas/seus educandas/educandos possuem um amplo conhecimento de mundo e acabam apresentando questões diversas relacionadas às suas experiências de vida e, dessa maneira, contribuem para promover o diálogo no processo de ensino e aprendizagem. Além desses aspectos semelhantes entre esses dois campos educacionais e entre suas respectivas áreas do conhecimento, a aproximação entre eles e entre elas é impulsionada e faz-se presente através das recomendações de leis e das discussões em eventos, com destaque para a V Conferência Internacional de Educação de Adultos (Confintea) 7, a qual resultou na elaboração da Declaração de Ham7Aqui destacamos o esforço internacional no fortalecimento dessa modalidade. Tal esforço é reflexo da realização de encontros, seminários e outros eventos internacionais, como as Confinteas. A primeira ocorreu em 1 949, em Elsinore, na Dinamarca. A partir daí, a cada década, a Unesco tem organizado essas conferências, as quais ocorreram em Montreal (1 960), Tóquio (1 972), Paris (1 985), Hamburgo (1 997) e Belém (2009). Em relação às discussões internacionais, sugerimos a leitura do Relatório Global de 2009 sobre Aprendizagem e Educação de Adultos, organizado pela Unesco. 302 burgo que afirmou em seu artigo 1 7, intitulado “Sustentabilidade Ambiental”, que a educação voltada para a sustentabilidade ambiental deve ser um processo de aprendizagem que deve ser oferecido durante toda a vida e que, ao mesmo tempo, avalia os problemas ecológicos dentro de um contexto socioeconômico, político e cultural. Um futuro sustentável não pode ser atingido se não for analisada a relação entre os problemas ambientais e os atuais paradigmas de desenvolvimento. A educação ambiental de adultos pode desempenhar um papel fundamental no que se refere à mobilização das comunidades e de seus líderes, visando ao desenvolvimento de ações na área ambiental. (V CONFINTEA, 1 997, grifo nosso) Assim, tais recomendações e discussões apresentaram elementos que reforçam a importância de inserção da temática ambiental na educação de pessoas jovens e adultas, uma inserção que aponta para os objetivos da educação ambiental, bem como para a superação da visão compensatória e reducionista que tem marcado o campo da educação de pessoas jovens e adultas. Ao considerar a educação ambiental como possibilidade para que as pessoas jovens e adultas questionem e reflitam sobre seu papel nas relações, para que tomem consciência de seu potencial para intervir a transformar, a educação ambiental crítica não pode ser exclusiva ao ensino de crianças. Pessoas jovens e adultas serão, cada vez mais, convocadas a defender, proteger, conservar ou preservar o seu 303 meio, o ambiente onde vivem e onde constroem os seus sonhos de futuro. Sem eles, não faremos a educação das crianças e nem criaremos condições para que as crianças se eduquem. (SORRENTINO et al., 2009, p. 1 04) Ainda sobre essa perspectiva, concordamos com Ireland (2007), que afirma a educação ambiental como uma prática não excludente, a qual “não estabelece limites nem de idade nem de qualquer outra categoria excludente. A teoria e prática da educação ambiental são, por natureza e necessidade, inclusivas e abrangentes”. (IRELAND, 2007, p. 231 ) Pensando em como a educação ambiental crítica somada à educação libertadora de Freire pode contribuir no campo da educação de pessoas jovens e adultas, podemos propor uma prática de educação ambiental que deva ser construída para o contexto da educação de pessoas jovens e adultas, tendo em vista a questão que guia esta pesquisa. A proposta tem que caminhar para uma prática que rompa com a tradição dominante/opressora de ensino e que busque a interação entre conteúdos científicos da temática ambiental e aspectos políticos e sociais da realidade dessas pessoas jovens e adultas. É preciso "organizar a escuta" das populações inseridas na realidade a ser transformada. A escuta, nos trará as "falas significativas" da população, explicitando suas contradições e, portanto, os "temas geradores" de diálogo. Assim, se não houver escuta, não haverá diálogo e nossa ação se dará sobre ou para e não com ela. Consequentemente não haverá libertação, nem transformação da realidade. (SILVA, 2007, p. 11 ) Assim, podemos pensar na utilização de um tema gerador, na perspectiva freiriana, para a construção dessa prática. A investigação do tema gerador, que se encontra 304 contido no ‘universo temático mínimo’ (os temas geradores em interação), se realizada por meio de uma metodologia conscientizadora, além de nos possibilitar sua apreensão, insere ou começa a inserir as mulheres e os homens numa forma crítica de pensarem seu mundo. (FREIRE, 2004, p. 11 2) Freire defende que a utilização de um tema gerador baseado tanto na experiência acumulada pela/o educanda/o quanto em sua realidade seria um grande facilitador para a realização de uma prática pedagógica de fato transformadora: por que não aproveitar a experiência que têm os alunos de viver em áreas da cidade descuidadas pelo poder público para discutir, por exemplo a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem-estar das populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde das gentes. Por que não há lixões no coração dos bairros ricos e mesmo puramente remediados dos centros urbanos? (FREIRE, 201 0, p. 30) Os exemplos acima estão diretamente relacionados com o cotidiano das/os educandas/os e possuem um grande potencial de problematização do real, uma vez que o objetivo de tal prática deve consistir em fomentar a reflexão sobre o tema escolhido, em que as/os educandas/os posicionem-se em relação às necessidades e contradições por elas/es vividas, visando resultar em ação, em tomada de decisão, em intervenção transformadora da realidade, em conquista de autonomia. (SILVA, 2007; MICHELETTI, 2011 ) Silva (2007) afirma a necessidade de estruturação de alguns momentos organizativos para a metodologia via tema gerador: levantamento inicial da realidade local, lista305 gem de temas significativos, escolha e caracterização do tema, elaboração de questões geradoras e, por fim, a construção coletiva da atividade interventora. Destacamos a importância do diálogo com as/os educandas/os em todas as fases do projeto, desde sua elaboração e organização até a preparação da intervenção. O autor discorre sobre os procedimentos organizativos da prática, em que o primeiro passo caracteriza-se pelo levantamento preliminar da realidade das/os educandas/os, o qual pode estruturar-se através de uma pesquisa-ação participativa, que busca coletar as informações (estatísticas, socioculturais, econômicas e políticas, entre outras) sobre essa realidade. O próximo passo é a organização desses dados a fim de identificar e listar possíveis situações consideradas significativas. A listagem dos possíveis temas geradores deve ocorrer no sentido de destacar a diversidade de visões e percepções presente entre essas/es educandas/os e relacioná-las de maneira que permitam representar a realidade desses sujeitos. Nesse momento, podem tornar-se explícitas contradições as quais possibilitem a construção de um entendimento crítico sobre essa realidade descoberta. Após a organização e caracterização dos temas geradores, realiza-se a escolha do tema a ser trabalhado. A seguir, elaboram-se questões guia, que possuem o objetivo de direcionar as/os educadoras/es na estruturação dos conhecimentos a serem abordados para a construção dessa prática de formação, que, segundo o autor, expressa o início de uma ação educativa que estará em constante revisão. Pressupõe diálogo tanto em relação à escolha do objeto de estudo, quanto no processo de construção do conhecimento efetivado na prática cotidiana da edu- 306 cação popular crítica. (SILVA, 2007, p. 1 5) Silva destaca a importância da presença da dialogicidade em toda a prática, desde sua elaboração e organização dos temas geradores até a preparação das atividades de intervenção. Logo, a educação ambiental crítica, ao optar pela metodologia do tema gerador, tem por objetivo buscar e valorizar o diálogo entre os saberes e experiências dos sujeitos da educação de pessoas jovens e adultas, possibilitando através da análise crítica de suas realidades a construção de espaços efetivos de aprendizagem. Assim, nesta perspectiva, a educação ambiental crítica pode contribuir para uma transformação das relações de desigualdade, caminhando para a emancipação dessas pessoas jovens e adultas, as quais passarão a reconhecerem-se como sujeitos históricos. Considerações finais Considerando a educação como um processo permanente e contínuo para e com todas/os, considerando a urgência de transformar a escola e, principalmente, a educação de pessoas jovens e adultas, apresentamos um trabalho que possibilita a compreensão dos conteúdos e conceitos relacionados à educação ambiental crítica e à educação de pessoas jovens e adultas, para assim termos subsídios teóricos que permitam a aproximação desses campos da educação e suas áreas do conhecimento para que fomentem a elaboração e a implementação de projetos pedagógicos voltados para a transformação da realidade, num processo dialógico e coletivo pautado em relações 307 igualitárias e sustentáveis. O objetivo do trabalho foi desenvolver uma discussão de como a educação ambiental crítica pode criar possibilidades no sentido de contribuir para o processo de ensino e aprendizagem na educação de pessoas jovens e adultas. Nesse sentido, esperamos que este estudo também tenha fornecido elementos para repensarmos e questionarmos nossas relações e desconstruirmos noções comumente difundidas como “educanda/o deve receber conteúdos”, “a natureza deve servir a sociedade” e “adulto não tem mais jeito”. Com os históricos, os dados e as concepções teóricas apresentadas/os nesta pesquisa, é possível afirmarmos o grande potencial que a educação de pessoas jovens e adultas e a educação ambiental crítica possuem para modificar as relações desiguais e as condições de opressão em direção a um contexto de relações mais justas, dignas e amorosas, as quais se dão no ambiente como um espaço comum e de interesse social que precisa da participação interativa de todas as pessoas para ser preservado. Os resultados e as discussões desta pesquisa sugerem sua continuidade, através da ampliação e do aprofundamento dos estudos sobre a educação ambiental crítica, sobre a educação de pessoas jovens e adultas e sobre as possibilidades de aproximações/contribuições entre esses dois campos e essas duas áreas, uma vez que a aprendizagem é um processo contínuo para toda a vida... vida cada vez mais experienciada – em suas diversas fases e nos vários cantos do planeta – em contextos em que a temática ambiental tem sido cada vez mais relevante na sociedade contemporânea, demandando uma abordagem crítica diante do desafio da crise socioambiental instalada. Uma criticidade que sobretudo valorize os aspectos sociais na busca da mudança ambiental, implicando assim o diálogo freiriano, o uso da palavra verdadeira na compreensão e na ação trans308 formadoras da realidade social, que inclui a ambiental – uma aliança naturalmente fundada e culturalmente reconstruída (a cada momento e em cada lugar, a cada interação entre seres humanos, as quais se dão também em meio a interações da a natureza e com natureza). Nesse sentido, esperamos que leituras deste texto possam vir a ser elementos de enriquecimento da atuação, sobretudo de educadoras/es, num e noutro campo de atuação, particularmente nos contextos onde eles estão evidentemente entrelaçados e talvez necessitando de abordagens mais integradoras, para as quais é importante uma produção acadêmica que articule também as duas áreas do conhecimento, contribuindo para uma práxis educativa mais articulada e mais potente. Esperamos com isso ter fornecido alguns subsídios para a perspectiva de que a educação ambiental crítica venha a ocupar um espaço importante na educação de pessoas jovens e adultas e contribuir assim na formação dos sujeitos nela envolvidos. Referências BRASIL. Lei n. 9.795, de 27 de abril de 1 999. Dispõe sobre a Educação Ambiental, institui a Política Nacional de Educação Ambiental e dá outras providências. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9795.htm>. Acesso em: 1 0 abril 201 2. BRASIL. Resolução n. 2, de 1 5 de junho de 201 2. Estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação Ambiental. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1 781 0&Itemid=866>. Acesso em: 1 0 abril 201 2. 309 CARVALHO, I. C. M. Educação ambiental crítica: nomes e endereçamentos da educação ambiental. In: LAYRARQUES, P. P. Identidades da educação ambiental brasileira . 1. ed. 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Resumo A partir do contato com adultos pouco escolarizados residentes em dois bairros periféricos do município de Rio Claro - São Paulo, cuja população é em grande parte oriunda de outros estados, algumas indagações foram feitas, entre elas: Quais motivos para a migração são apontados nas narrativas de adultos pouco escolarizados frequentadores de turmas de EJA? Podemos considerar a hipótese de que pessoas migrantes indiquem em suas narrativas que a busca por educação está entre alguns dos motivos que levaram a migrar? Poderiam as práticas de leitura e de escrita mediar as relações entre seu local de origem e o novo ambiente? Esses questionamentos orientaram a pesquisa que aqui será apresentada. Para tanto a abordagem utilizada foi quantiqualitativa. Foram aplicados 36 questionários e realizadas entrevistas com educandos não naturais de Rio Claro. O questionário visou traçar o perfil sócio-econômico, o processo migratório vivenciado, as trajetórias escolares, o contato 31 5 com objetos culturais (livros, jornais rádios etc) e conhecer práticas de leitura e escrita. Nas entrevistas, fez-se uso da História Oral, e foram selecionados educandos migrantes das turmas de EJA. O roteiro elaborado abarcou questões sobre migração, acesso à escolarização e práticas de leitura e escrita. Portanto, apresentam-se aqui alguns dados coletados junto à educandos da EJA e fragmentos de narrativas de mulheres, educandas, que passaram pela experiência migratória. Dessa forma, aborda-se a experiência migratória e escolar pela perspectiva das pessoas migrantes educandos em turmas da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Objetiva-se assim, apontar elementos que possam contribuir para o campo da Educação de Jovens e Adultos no Brasil. Palavras-chave: Narrativas de migrantes, Educação de Jo- vens e Adultos, leitura e escrita. Introdução e Objetivos Este trabalho tem como tema as narrativas da experiência migratória de pessoas pouco escolarizadas, hoje residentes na cidade de Rio Claro1 , interior do estado de São Paulo. E é resultante de pesquisa de Iniciação Científica2 e trabalho de monografia de conclusão de curso3, que foram delineados a partir da pesquisa A aventura da escrita por pessoas em salas de EJA como objeto de formação para 1 Rio Claro-SP está localizada a 1 57,9 km da capital no Centro-Leste do estado. 2 Intitulada: Experiências migrantes: um estudo a partir das práticas de leitura e escrita entre pessoas migrantes em salas de EJA. Financiada pela FAPESP concluída em dezembro de 201 2. 3Monografia apresentada para obtenção do título de bacharel em Geografia, intitulada: Narrativas e experiências: percepções, práticas culturais e memórias de pessoas migrantes, dezembro de 201 2. 31 6 professores (em EJA): por entre práticas culturais, saberes e linguagens4. Os eixos norteadores foram: a) o levantamento de elementos que remetessem a experiências migratórias5 (experiência: remete à constituição de subjetividades no processo de migração relatadas por pessoas migrantes); b) tomar como objeto de estudo os relatos sobre as práticas culturais, particularizando as de leitura e escrita, efetivadas por pessoas migrantes pouco escolarizadas, que se encontram em salas de EJA. Como nos apresenta Singer (2002), os processos migratórios, inseridos num contexto de mudanças, que têm sua origem no processo de industrialização desigual, criando desigualdades regionais, atua como propulsor de migrações internas. Populações de regiões estagnadas economicamente foram atraídas para regiões industrializadas do Brasil. E distintos tipos de migrações foram condicionados historicamente pela industrialização. Por meio do histórico do processo de industrialização e urbanização, das alterações econômico-territoriais, defende-se que as migrações são mecanismos de redistribuição espacial da população que migra segundo os arranjos espaciais das atividades econômicas. Assim, as populações migrantes provem de áreas em processo de estagnação econômica ou social. A falta de oportunidade de acesso ao sistema de saúde, a trabalho e habitação são alguns dos motivos para a saída na busca por áreas que possam ofertar tais serviços. (SINGER, Projeto de Pesquisa A aventura da escrita por pessoas em salas de EJA como objeto de formação para professores (em EJA): por entre práticas culturais, saberes e linguagens é coordenado por Maria Rosa R. M. de Camargo e conta com financiamento do CNPq – Processo 4O 401 263/201 0. 5 Entendida aqui conforme Thomson (2002) não apenas no âmbito da experiência do deslocamento de um lugar para o outro, mas como uma “experiência migratória [que] abarca velhos e novos mundos e que continua por toda a vida do migrante e pelas gerações subseqüentes”. (2002, p.342-3). 31 7 2002). Decorrente dessa busca por regiões industrializadas, cidades da região sudeste, como São Paulo e cidades do interior do estado de São Paulo, como o município de Rio Claro, receberam inúmeros migrantes, tendo bairros cuja população residente é, em grande parte, oriunda de outros estados. A década de 70 marca a expansão urbano-industrial do município, pois houve aumento no número de população, tanto natural como migrante (COSTA, 1 996). Os bairros periféricos, Jardim Bonsucesso e Jardim Novo Wenzel (Figura 1 ), que surgiram de loteamentos da década de 1 980 são exemplos na cidade de Rio Claro, de bairros cuja população é em grande parte originária de outros estados. Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), esses bairros também apresentam índices elevados de analfabetos e de pessoas pouco escolarizadas quando comparados com outros bairros da cidade. 31 8 Figura 1 : Localização da cidade de Rio Claro e vista aérea parcial. O círculo azul indica os Bairros Bonsucesso e Novo Wenzel. Fonte: IBGE e GoogleMaps, 201 2. Cabe, porém, destacar que o permanecer ou o sair de um indivíduo ou de um grupo do local de origem não tem apenas motivações econômicas, mas também diversas outras, assim unem-se motivações econômicas e sociais (SINGER, 2002). E as narrativas de migrantes podem revelar suas histórias e trajetórias pelo país, os fatores que contribuem para a migração, além do imaginário sobre local de destino. Assim, os relatos de migrantes são importantes para a compreensão de outros elementos que se interligam às questões econômicas que resultam em migração; uma vez que, além delas, há uma rede de relações e de variados fatores que influenciam na decisão de migrar. Em busca de elementos que configurassem experiências migratórias, algumas questões postas para pesquisa foram: O que as pessoas apontam como motivos que as levaram a migrar? Podemos considerar a hipótese de que 31 9 pessoas migrantes indiquem em suas narrativas que a busca por educação está entre alguns dos motivos que levaram a migrar? Focar as suas práticas de ler e escrever, que contribuições poderiam trazer para uma análise das experiências migratórias? Poderiam as práticas de leitura e de escrita mediar às relações entre seu local de origem e o novo ambiente? Ao abordar as práticas culturais, particularizando a leitura e a escrita, é possível detectar elementos que indiciem a experiência migratória? As turmas de EJA das escolas dos bairros abrigam um universo cultural prenhe de histórias de migração, memórias das transformações espaciais e culturais expressas na vida dessas pessoas que migraram, sujeitos da experiência, que se dão a conhecer por meio da oralidade. Portanto, objetivou-se com a pesquisa: 1 ) Levantar e analisar os motivos que levaram à migração e qual a participação da busca pelo acesso a escolarização, na decisão de migrar; 2) Rastrear as práticas de leitura e escrita e analisá-las no que diz respeito à experiência migrante, entendendo experiência como constituição de subjetividades, no processo de migração, decorrentes dos deslocamentos pelo país. As indagações feitas integram migração e Educação de Jovens e Adultos. E aliam-se também à necessidade de conhecer as histórias de sujeitos atuantes no processo histórico de transformação da paisagem, cujos relatos são experiências de espaços vividos. Esse trabalho tentou responder a esses questionamentos, pois as informações que balizam essas questões são bastante restritas, quase inexistentes. 6Entendida conforme Freitas (2002, p.1 8): “História oral é um método de pesquisa que utiliza a técnica da entrevista e outros procedimentos articulados entre si, no registro de narrativas da experiência humana”. 320 O caminho metodológico Norteando-se por tais objetivos, a metodologia empregada foi quanti-qualitativa. Visando traçar o perfil socioeconômico, conhecer as práticas de leitura e escrita, o processo migratório vivenciado, as trajetórias escolares, o contato com objetos culturais (livros, jornais rádios, etc) foi aplicado um questionário a 36 educandos da EJA de duas escolas municipais, localizadas nos bairros Bonsucesso e Novo Wenzel, de Rio Claro-SP, num primeiro momento utilizaram-se informações sobre o local de nascimento de educandos e a partir delas foram elaborados mapas dos locais de origem dos educandos. Após análise desses questionários alguns educandos que não são naturais de Rio Claro-SP foram convidados para uma entrevista sobre a experiência migratória, acesso a escolarização e práticas de leitura e escrita, a metodologia empregada foi a História Oral 6. No total foram realizadas 1 0 entrevistas. Como forma de possibilitar o diálogo entre os educandos, sobre a temática migração, realizou-se uma atividade coletiva em uma das turmas com a participação de um professor. Assim, partindo da ideia de que os sujeitos são atuantes nos processos históricos, seres em metamorfose e contribuintes para as metamorfoses espaciais, suas falas, relatos de experiências, ganharam importância nesta pesquisa, considerando que “todo relato é um relato de viagem- uma prática do espaço”. (CERTEAU, 1 994, p.200). Resultados Os questionários aplicados revelaram os estados de origem dos educandos: Região Sul- estado do Paraná, de outras cidades do estado de São Paulo, de cidades do norte do estado de Minas Gerais e do Nordeste. Dos 36 educan321 dos que responderam ao questionário, apenas 5 são naturais de Rio Claro-SP. Portanto, 86% dos entrevistados viveram a experiência de migração (Figura 2). Figura 2: Estado de origem dos educandos de EJA das escolas I e II. Organização: Ventura, 201 2. A itinerância de muitos educandos é, portanto, pela escola e pelo país. Na Tabela 1 apresentam-se algumas informações que indiciam a trajetória de cada um/uma educando/a que respondeu ao questionário, informando a série iniciada, o ano em que a iniciou, a idade, as cidades e os estados em que cursou parte dos estudos, a série atual e o local de nascimento, revelando as multiplicidades das trajetórias escolares e migratória. 322 Tabela 1 : Período escolar anterior dos educandos da EJA das escolas I e II * Não respondeu Organização: Ventura, 201 2. Assim, quanto às trajetórias escolares, os questionários revelaram que alguns educandos nunca haviam fre7Mantida a escrita dos sujeitos, destaco a palavra otro (castelhano) presente na escrita da educanda que já morou no Paraguai. 323 quentado a escola e muitos frequentaram por um curto período quando crianças ou adolescentes em mais de um município do Brasil e até do exterior. Os principais motivos apresentados para a interrupção dos estudos vão desde questões relacionadas ao trabalho (maioria começou a trabalhar com menos de 1 5 anos) tendo, portanto, deixado de frequentar a escola para trabalhar, questões relacionadas à ausência de escola, a distância até elas e a migração. A indisciplina na sala de aula, preguiça, e preconceito também foram citadas. - “Não foi possível permanecer estudando porque tive que ajudar meus pais no trabalho.” - “Falta de oportunidade; porque meu pai não deixava estudar”. - “por que os meus filho era pequenos”. - “Para a minha mãe poder trabalhar e eu cuidar da casa, dos meus irmãos” - “por que eu quis trabalha” - “por que mudamos para otro7 país busca de melhora.” - “Precisando trabalhar para minhas despesas, ajudar nas despesas de casa e na lavoura.” - “Trabalho, ajudar na renda da família.” - “Bagunçava; 2 – Atrapalhava a professora.” - “Mudamos para um lugar onde não tinha ônibus e a escola era muito longe. [...]”. - “Porque tinha que trabalhar na roça e o pai mudava muito de sítio para trabalhar.” - “por que não tinha escola” - “Casei e engravidei e parei para cuidar de minha filha” Quanto aos motivos da volta à escola ou ingresso, predominaram os relacionados ao trabalho (necessário para o exercício da atividade atual e perspectiva de um “emprego 324 melhor”) e à vontade de aprender. As informações levantadas nos questionários aplicados a educandos da EJA apontam a relevância da temática migração, uma vez que é inerente à condição de grande parte das pessoas. As entrevistas revelaram os motivos da migração na perspectiva do sujeito, que indicam a busca por serviços de saúde e educação como motivos, a escrita de cartas como meio de comunicação com familiares que não migraram e as práticas de ler e escrever, conforme apresentado nos trechos das entrevistas a seguir: (...) eu mesmo vim [para Rio Claro] para fazer um tratamento porque eu tava doente lá e meu menino tinha problema no coração e lá não tinha condições de fazer o tratamento dele. E eu vim para cá por causa disso. (A., Educanda de EJA) (...) assim que eu cheguei aqui em Rio Claro, naquela época, telefone era muito difícil porque eu não tinha condições de pagar um telefone fixo na minha casa. Então a gente usava telefone público né, mas daí como minha mãe via que na época, assim, (...)ela sempre dizia que o tempo que eu ligava pra ela era muito longo, o espaço um do outro pra mim falar com ela. Então ela não aguentava, daí mandava os meus irmãos, porque minha mãe também era analfabeta, né, coitada! Ela não sabia nem ler e nem escrever, mas eu tenho irmão que sabe ler e escrever; então ela pedia, quando ela não pedia pra o meu irmão escrever pra mim, ela pedia ao vizinho ou a vizinha. Então eu recebia carta da minha mãe sim. Enfim, agora pra dizer que eu nunca escrevi carta para eles, eu me lembro que eu escrevi duas cartas durante esse período que eu to aqui em Rio Claro, mais era telefone mesmo, porque eu tinha muita preguiça de escrever cartas. E na época eu não es325 crevia, porque eu aprendi a ler, porque escrever eu escrevia errado. Eu não sabia escrever, eu achava que estava escrevendo certo mais não era, estava errado. Hoje que eu estou na escola eu vejo o quanto que eu escrevi errado, mas naquela época quando eu entrei na escola eu já sabia ler, mas eu aprendi sozinha lendo coisas na rua, lendo né. Então tudo que eu olhava eu tentava juntar as letras, então eu aprendi a ler, eu lia maravilhosamente bem, mais escrever eu não escrevia bem. Eu escrevia tudo errado; então eu achava melhor e eu tinha preguiça também de escrever mesmo que eu escrevesse errado ou certo eu tinha preguiça de escrever. (...) Foi muito difícil, mas o dinheiro também faltava às vezes pra comprar o cartão ou às vezes pra ir no telefone pra fazer as ligações; então isso era para mim era a dificuldade que eu tinha às vezes de ligar, era quando eu percebia ficava preocupada e mandava carta. (C., Educanda de EJA) (...) Eu gosto muito de escrever sobre a vida, assim, o cotidiano eu me baseio muito pelas minhas experiências, entendeu! E eu gosto de ler livros que está relacionado a isso, as coisas que acontecem no nosso dia a dia. (...) eu me expresso melhor escrevendo do que falando. Na escrita eu ponho todos meus pensamentos, minhas ideias, eu tenho todo meu sentimento ali. Papel pra mim é como se fosse um parte de mim. Como se eu tivesse assim, pondo aquilo para fora, como se eu passasse aquilo ali pro meu coração, entendeu! (M., Educanda de EJA) Uma educanda aponta a migração como dificuldade para frequentar a escola: “A vida do meu pai foi uma vida que ele só viveu mudando, só mudando de um lugar pra outro e isso que se tornava uma dificuldade pra gente estudar. ” E a volta ou ingresso na escola foi apontado pelos en326 trevistados como muito relevante em suas vidas como se verifica nos fragmentos das entrevistas que seguem: (...) eu tenho mais conhecimento das coisas, eu não me sinto conhecedora das coisas porque não estudei muito tempo, mas conheço mais, tenho mais conhecimento. Nesse pouco tempo que eu estudei me serviu muito, porque eu tirei habilitação e me ajudou muito, ante eu nem sabia o que era gabarito, por que tinha estudado muito pouco tempo. (...) (A., Educanda de EJA) Eu mudei muito como ser humano porque eu evolui muito, porque eu era uma pessoa muito diferente do que eu sou hoje. E educação transforma muito a gente. Você quando você tem estudo, você vê o mundo de outra forma. Você pega as coisa de uma maneira bem clara diferente daquilo que você é acostumado a ver ou o que você pensava que era (...) então é como eu falei, mudei muito, eu sou outra pessoa por causa dos estudos, eu tenho muito a agradecer assim, a todo meu conhecimento, minhas experiências, meu sonhos que a volta aos estudos me trouxe porque se não fosse isso, se eu não tivesse voltado aos estudos eu não teria nada disso, essas emoções. (M., Educanda de EJA) Apontam-se, assim, elementos para um trabalho pedagógico na EJA, que considere as experiências de seus educandos, como apresentado, no caso do ensino de Geografia, por Resende (1 986). Nessa perspectiva, no dia 1 9 de outubro de 201 2 foi realizada uma atividade coletiva em uma turma do 9º ano do fundamental, em parceria com o professor de Ciências da turma. O objetivo da atividade era conversar um pouco sobre a experiência migrante de cada um. Para tanto, conversamos sobre a importância de conhecer 327 os sujeitos que vivenciaram os processos, nesse caso especifico o sujeito que migrou e que se encontra em salas de EJA. Exemplificamos utilizando um mapa de migração e realizando a seguinte pergunta: No mapa o migrante é uma seta, mas quem é o migrante? Por que migra? Procedeu-se uma pequena apresentação dos educandos da turma que falaram o nome e o lugar de origem e quanto tempo viviam em Rio Claro. Um dos educandos, morador mais antigo do bairro, relatou as transformações ocorridas na cidade e o crescimento do bairro. Outro vive em Rio Claro há dois anos, e contou sobre os trabalhos que já realizou no campo e as dificuldades de se morar neste ambiente. Colhia café no município em que nasceu. Para ele, é melhor o trabalho urbano: “Ninguém quer ganhar salário mínimo para trabalhar no campo”. Falou da necessidade de possuir a própria terra, que ser dono é bem diferente de trabalhar para os outros, citando exemplos de alguns familiares que não migraram por possuírem terras. A partir dessa fala debateu-se a questão fundiária no Brasil. Um educando nessa atividade também mencionou o declínio da agricultura algodoeira, sendo o motivo, o mesmo citado por uma educanda em outro sua entrevista, uma praga conhecida popularmente como “bicudo” que destruiu as plantações. Uma educanda oriunda de Minas Gerais contou que um parente seu foi “tentar a sorte em Minas e perdeu toda a lavoura. Foi para lá com divida e voltou com mais divida”. Comentou que todos buscam uma vida melhor e que “ninguém quer ser pé vermelho” [ninguém gosta de ser trabalhador rural]. Quando interrogados do por quê migraram, as respostas foram: a busca por “melhorar” de vida, “a gente busca conforto”. 328 Um educando ainda cita outro município próximo, Conchal - SP, que recebe migrantes temporários para a colheita da laranja e comentou sobre as dificuldades da vida no campo. Alguns educandos mencionaram que o estado de São Paulo é um estado rico e quando questionados do por quê, a resposta chama bastante atenção, pois os educandos vindos de áreas com períodos de secas atribuíram a uma abundância de água no estado de São Paulo, respondendo: “Acho que é por causa da água, aqui tem bastante”. Ao final da atividade/diálogo, alguns relataram que a conversa havia sido agradável e que abriu margem para pensarem suas histórias de vida inseridas num contexto histórico, econômico e social. O professor que participou da atividade escreveu um pequeno relato, segue um trecho de sua escrita: Mesmo que todos ali fossem de lugares distintos, se encontravam nas falas uns dos outros, pois a experiência vivida era de certa forma parecida. Enquanto isso eu me perguntava: “Onde, em suas vidas, fica a aula de ciências que eu havia pensado para hoje?”. Torna-se imprescindível pensar a ciência como uma possibilidade de leitura com a vida e não acima dela (Professor da EJA). Considerações finais As histórias narradas por migrantes educandos em salas de EJA tem sido um importante meio para desvelar os motivos que levaram à migração e à relação com a escolarização ou busca por ela, possibilitando desdobramentos para o ensino na EJA, na perspectiva de respeito ao saber popular e de problematização do universo em que se inserem es329 ses sujeitos, cuja temática migração é inerente a eles. Assim, defende-se uma formação adequada para professores atuarem na Educação de Pessoas Jovens e Adultas. Referências bibliográficas CERTEAU, M de. A invenção do cotidiano: 1 . Arte de faze r. Petrópolis, Ed.Vozes, 1 994. COSTA, R.H.M.R. Os migrantes nacionais em Rio Claro e sua inserção no espaço urban o. Dissertação (Mestrado em Organização do Espaço) Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1 996. FREITAS, S. M de. História oral: possibilidades e procedimento . São Paulo: Humanitas, 2002. IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios-Síntese de Indicadores 2009 , 201 0. RESENDE, M. S. A Geografia do aluno trabalhador. Ed. Loyola, São Paulo, 1 986. SINGER, P. Migrações internas: considerações teóricas sobre o seu estudo. In: Economia política da urbanização . São Paulo: Contexto. 2002. p. 29-62. THOMSON, A. Histórias (co)movedoras: história oral e estudos de migração. In: Revista Brasileira de História . ANPUH/Humanitas, São Paulo, vol.22, nº 44, 2002, p. 341-364. 330 artigo PEJA: ALFABETIZAÇÃO EM UM CONTEXTO INSTITUCIONAL Glaucia Mariana Reis Eliana Marques Zanata Marta Coutinho Peres Resumo A Educação de Jovens e Adultos é uma modalidade de ensino presente no país desde os primórdios da colonização portuguesa, que tem se alterado conforme os anseios de sua clientela e também das políticas públicas envolvendo a educação. Nos diversos contextos em que a Educação de Jovens e Adultos se faz presente, neste trabalho de Iniciação Científica, buscou-se a observação e intervenção com propostas de ações relacionadas à alfabetização e letramento em alunos que possuem doença mental residentes de uma instituição beneficente cristã de Bauru, mais especificamente em um abrigo de idosos, que anteriormente era um hospital psiquiátrico. O trabalho descrito objetiva o desenvolvimento social dos alunos perante práticas de letramento e alfabetização, utilizando-se os diversos gêneros textuais que diariamente estão em contato com os alunos e também introduzindo gêneros até então desconhecidos por eles, situando-os na re331 alidade, possibilitando aos alunos a realização de inferências com o que já era conhecido. Assim, com a base da pesquisa calcada no fortalecimento das relações do grupo para que ocorra a socialização, compreendeu-se a importância da singularidade e da observação das diferenças existentes em cada aluno, reconhecendo as diferenças como algo natural e de suma importância, pois de modo diferente todos contribuíram no processo de ensino-aprendizagem e na construção de uma educação voltada a todos participantes. Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos. Doença Mental. Alfabetização. Introdução Os desafios encontrados quando a questão é referente ao Ensino de Jovens e Adultos são muitos, e mesmo com políticas educacionais visando sua melhoria, alguns problemas surgem, como a falta de material apropriado, de incentivo para a continuação dos estudos, falta de apoio por parte da família, do governo e tantos outros obstáculos impostos pela própria sociedade, que exclui as pessoas que não dominam o código letrado. Os desafios se multiplicam se aliados aos fatores descritos, quando nos reportamos ao aluno com doença mental, nesse caso, a exclusão do aluno toma proporções maiores, envolvendo escola, família, sociedade e principalmente a autoestima deste aluno. Com o advento de novas políticas públicas, a democratização à Educação Básica conseguiu atender grande número de crianças e adolescentes, mas não cumpre plenamente sua função no que diz respeito à equidade e qualidade de ensino. Sendo a Educação de Jovens e Adultos uma 332 modalidade da Educação Básica, esta passa pelos mesmos problemas enfrentados. Pessoas com deficiência e com algum tipo de doença mental que não se apropriaram das práticas letradas na idade adequada e atingiram a idade adulta acabaram se ausentando dos espaços escolares. Tendo em vista que as políticas públicas de atenção a pessoa com deficiência na idade adulta pouco tem apresentado ações eficazes nos municípios. Assim, um dos poucos espaços de socialização que ainda cabem a essas pessoas restringe-se as salas de EJA, as quais tem registrado um aumento considerável de matrículas nas últimas décadas. Segundo Oliveira (2001 ), o adulto já carrega consigo um acúmulo de experiências, de vivências possibilitadas por diversos grupos culturais e também suas reflexões acerca do mundo, de outras pessoas e de si próprio. Refletir sobre como esses jovens e adultos pensam e aprendem envolve, portanto, transitar pelo menos por três campos que contribuem para a definição de seu lugar social: a condição de “nãocrianças”, a condição de excluídos da escola e a condição de membros de determinados grupos culturais. (OLIVEIRA, p. 1 6, 2001.) Constantemente há uma concepção simplificada do processo de aprendizagem dos alunos EJA até mesmo por parte do professor. Há uma tendência em compreender o alfabetizando como alguém que não evoluiu culturalmente, e por isso muitas vezes a educação fornecida nessas salas se assemelha com procedimentos didáticos empregados na alfabetização de crianças, o que torna inadequado o ensino dirigido a estas pessoas. Portanto, esse processo de alfabe333 tização de jovens e adultos se embasaria nos conhecimentos prévios que o aluno traz para dentro da sala de aula. Diagnosticar o conhecimento prévio dos aprendizes é uma das condições necessárias para a eficiência dos processos de ensino e aprendizagem. Em relação aos alfabetizandos jovens e adultos, além desse diagnóstico, seria importante também pensar e responder questionamentos como: Quem são esses aprendizes? Como vivem, o que pensam, o que fazem, por que resolveram voltar a estudar, ou, quem sabe, iniciar seus estudos? (SCHWARTZ, 201 0, p.63). Do mesmo modo, a educação de jovens e adultos que apresentam doença mental deve ser tratada com suas especificidades e características próprias, não se esquecendo do processo de descoberta acerca da personalidade e vida de seu alunado, suas culturas, seu passado e tudo que possa influenciar o ensino destes. A condição de excluído é fator unânime quando se trata da Educação de Jovens e Adultos, especialmente no contexto da escolarização. A falta de acesso enquanto crianças da escola, seja por necessidades econômicas, físicas e sociais, impossibilitaram o convívio destas crianças com a escola, regras e normas presentes no ensino regular, que visivelmente não se enquadram ao ensino de jovens e adultos. O projeto concentra-se na Educação de Jovens e Adultos que possuem doença mental e, são ex-pacientes de um antigo hospital psiquiátrico. O projeto encontra-se em conclusão em um abrigo para idosos, antigo hospital psiquiátrico, na cidade de Bauru. A amostra da pesquisa se concentra em alunos do abrigo de idosos e também em du334 as casas inclusivas desse mesmo abrigo, estes alunos possuem doença mental e os vínculos familiares foram rompidos há várias décadas. A partir do momento em que alguns dos alunos deixaram o Abrigo e passaram a morar conjuntamente, percebeu-se a necessidade da coletividade e socialização, pois agora vivem conjuntamente como se fossem uma família. Portanto, a educação presente nesse local de ensino conseguintemente é voltada aos trabalhos coletivos, visando integração entre os mesmos, propiciando um ambiente mais sociável. Objetivos 1. Iniciar um processo de socialização através de práticas de leitura e escrita, ao mesmo tempo em que essas práticas tornam-se funcionais para a finalidade maior da convivência em um lar inclusivo, também possibilitam a estas alunas uma maior participação em um universo letrado, resultando no desenvolvimento da autonomia das residentes. 2. O desenvolvimento das ações aplicadas, bem como o impacto deste trabalho, é outro objetivo de relevância para a compreensão dos processos de aprendizagem destas alunas, bem como suas evoluções e involuções referentes ao ensino. Metodologia A pesquisa teve como principal característica a abordagem qualitativa por meio de um estudo de caso específico. A observação do desenvolvimento do projeto é fator 335 fundamental para a verificação do andamento e êxito da pesquisa. [...] a observação ocupa um lugar privilegiado nas novas abordagens de pesquisa educacional. Usada como principal método de investigação ou associada a outras técnicas de coleta, a observação possibilita o contato pessoal e estreito do pesquisador com o fenômeno pesquisado, o que apresenta uma série de vantagens. Em primeiro lugar, a experiência direta é sem dúvida o melhor teste de verificação da ocorrência de um determinado fenômeno. (LUDKE e ANDRÉ, 1 988, p.26). Além da observação, para que ocorresse um nível real de letramento nos alunos foi necessário a disponibilização de materiais que atendiam as necessidades dos alunos, e todos eles foram disponibilizados tanto pela instituição em que foi realizada a pesquisa, bem como pela faculdade. O processo de intervenção no ambiente educativo foi composto de ações que estimulavam a apropriação do código escrito por meio de instrumentos e materiais das mais diversas ordens como: livros paradidáticos, jogos pedagógicos, revistas, jornais de circulação local, panfletos informativos, filmes e vídeos de curta duração. Estas atividades foram planejadas, desenvolvidas, monitoradas e registradas pela pesquisadora. O processo foi constituído como um objeto de estudo, observação e registro através de um levantamento bibliográfico anteriormente realizado, com a função da modificação da realidade social destes alunos, já que para muitos deles o acesso a um ambiente social era delimitado aos limites da instituição mantenedora. Em se tratando do foco voltado para os sujeitos da 336 pesquisa e os resultados do processo educacional desencadeado a coleta dos dados foi feita por meio de dois instrumentos, a saber: a) um diário de campo, com os dados recolhidos semanalmente, de acordo com o que foi observado quanto ao desenvolvimento dos alunos frente às atividades propostas; b) um protocolo de observação constando os seguintes itens: quais os meios de promover o letramento; quais os objetivos dos alunos, do professor e do projeto; em que esses objetivos se diferem dos objetivos da EJA; como os alunos se comportam e exprimem os conhecimentos adquiridos no convívio social diário. Resultados Na pesquisa desenvolvida entre março de 201 3 e julho de 201 3, foram realizados trabalhos em três lugares diferentes, mas pertencentes a mesma instituição. Os locais da pesquisa centraram-se no atual abrigo de idosos na Instituição Beneficente Cristã de Bauru – PAIVA, e também em duas casas inclusivas desta mesma instituição. O trabalho foi divido nestes três locais porque em dezembro de 201 2 houve a inauguração de duas casas inclusivas, uma para dez homens e outra para dez mulheres que eram internos do abrigo. Assim, como a maioria deles participava dos projetos desenvolvidos pelas bolsistas anteriormente, foi decidido então que as duas casas também seriam atendidas pelo projeto de pesquisa, para dar continuidade ao trabalho que já estava sendo realizado. Em média, somado os três lugares foram atendidos cerca de vinte e cinco alunos, mas esse número é variável, pois dependendo do dia, alguns participavam e outros não, então no máximo trinta alunos passaram pelo projeto, não havendo certa continuidade em alguns casos. 337 O abrigo de idosos é uma Associação Beneficente Cristã idealizada e fundada por Sebastião Paiva, em 01 de janeiro de 1 946. Não possui fins lucrativos, sendo de cunho filantrópico integrando a Rede de Proteção Social da Política Nacional de Assistência Social, por meio de atendimento aos idosos sem vínculos familiares ou para aqueles que tiveram seus direitos ameaçados ou violados. No abrigo de idosos desenvolveu-se o trabalho em uma sala pedagógica apropriada, que continha uma mesa grande e confortável para os alunos, cerca de vinte assentos, e também fácil acesso para os alunos que eram cadeirantes, pois o espaço era consideravelmente grande. A sala possuía um grande armário só de materiais pedagógicos, em que nele podia se encontrar lápis, giz, tintas, cadernos, folhas sulfite, cartolina, apontador, corretivo, massinha, bexigas e tantos outros materiais, que eram totalmente disponibilizados pelo abrigo ou pela faculdade. A maior dificuldade encontrada neste local consistiu em dar continuidade no trabalho com alguns alunos. Como a sala ficava em um local restrito para os abrigados, o acesso se dava somente no dia em que era realizado o projeto, e assim, alguns alunos que iam um dia faltavam em outro por diversos motivos, seja por doença, falta de vontade ou trabalho na própria instituição. E mesmo indo todos os dias do projeto de quarto em quarto chamando os interessados em participar, algumas vezes iam quatro ou cinco alunos, tendo em alguns dias no máximo dez alunos. Mas, também tinham alunos que esperavam na porta, ansiosos pela aula, e mesmo chovendo ou fazendo frio estavam sempre presentes. Na instituição eram fornecidos também jogos pedagógicos pertencentes à seção de psicologia, que eram totalmente disponibilizados para o projeto, tendo os controles de entrada e saída de cada jogo. Esses jogos geralmente eram utilizados para iniciar a aula, pois muitos deles trabalhavam 338 a coordenação motora, sequências lógicas, raciocínio, criatividade e ludicidade, além dos conteúdos que eram abordados através dos jogos. Assim define-se o lúdico como algo essencial na aprendizagem não só de crianças, mas voltado para todos, sendo o lúdico, [...] um recurso metodológico capaz de propiciar uma aprendizagem espontânea e natural. Estimula a crítica, a criatividade, a sociabilização. Sendo, portanto reconhecidos como uma das atividades mais significativas – senão a mais significativa - pelo seu conteúdo pedagógico social. (OLIVEIRA, 1 985 apud SALOMÃO; MARTINI; MARTINEZ, 2007, p. 02). Muitas vezes, os próprios alunos pediam para começar a aula com os seus jogos preferidos, além da ludicidade percebia-se uma interação maior neste momento, pois alguns trocavam informações com outros, se ajudavam, se divertiam juntos, mesmo no dia dia não tendo contato com o colega, na sala de aula isso mudava, se transformava em um trabalho coletivo, com todos participando e se ajudando. Alguns dos jogos utilizados foram o alfabeto móvel que trabalhava a escrita de novas palavras, as sequências lógicas, para trabalhar o raciocínio, o jogo com bola, trabalhando a coordenação motora, dinâmicas com bexigas, para fortalecer os vínculos do grupo, quebra-cabeças, fantoches, dominó numérico, massinha, e tantos outros que eram utilizados. Alguns trabalhos realizados nas casas inclusivas não eram continuados no abrigo de idosos, no começo tentou-se unificar, dar o mesmo conteúdo nos três locais diferentes, mas percebeu-se que os alunos tinham necessidades sin339 gulares em cada caso, e assim algumas das atividades foram diferenciadas, por exemplo, os jogos pedagógicos só eram possíveis no abrigo, pois era difícil a retirada desses jogos da instituição e também pela locomoção, já que uma casa inclusiva se encontrava à 1 ,5 KM de distância. A casa inclusiva das mulheres, localizada na Rua Princesa Izabel, no Bairro Jardim Bela Vista, era outro local de aplicação do trabalho, consistia em uma casa para dez mulheres que antes eram moradoras do abrigo, sem esquecer que também possuíam doença mental. A casa não tinha espaço apropriado para as aulas, e na cozinha tudo ficava estreito e apertado. Existiam poucos materiais na casa, mas a instituição se dispunha a levar o que era necessário. No começo houve certa resistência perante as aulas, principalmente por a bolsista anterior ser muito querida por elas, mas depois aos poucos foram cedendo, e no dia de aula, aguardavam ansiosas na área da casa pela minha chegada. Havia também a casa masculina, localizada na Rua José Bonifácio, em frente ao abrigo de idosos, em que nela moravam dez homens, alguns deles trabalhavam no abrigo, ou em supermercados, o que dificultou um pouco a reunião de todos eles para a aula. Em geral, a aceitação das aulas foi excelente, desde o primeiro dia gostaram das atividades. Notou-se que facilitaria o trabalho de pesquisa se trabalhássemos em pequenos projetos que em diferentes momentos da aula eram aplicados, esses projetos classificou-se como universais, pois eram aplicados nos três locais distintos, tendo o mesmo êxito e aceitação dos alunos. Os projetos não interferiam nos estudos de conteúdo científico, e muitas vezes reforçava o que estava sendo aplicado. Assim, criaram-se os projetos de música, de contação de estórias, de panfletos e de cartões, e todos eles foram construídos mediante o auxílio dos alunos na adequação dos conteúdos, e alguns desses projetos já es340 tavam sendo realizados por bolsistas anteriores, tendo somente realizado pequenas modificações. No abrigo de idosos, o projeto sobre música foi bem aceito, e durante as aulas eram ouvidas músicas clássicas e instrumentais, somente como som de fundo, para que ficassem mais relaxados e confortáveis na sala de aula. Algumas vezes as músicas eram poemas cantados, que estimulavam os alunos, outras vezes eram músicas temáticas, como as de festa junina, ou então sobre cantigas folclóricas. A música como sempre esteve presente na vidados seres humanos, ela também sempre está presente na escola para dar vida ao ambiente escolar e favorecer a socialização dos alunos, além de despertar neles o senso de criação e recreação. (FARIA, 2004, p.24) Assim, a música estabelecia um papel importante no ambiente da sala de aula e também nas casas inclusivas, pois notava-se um momento de sensibilização nos alunos, tornando-os mais criativos, principalmente se tratando em relacionar as músicas com fatos da vida, estórias ou até mesmo com seu cotidiano. Na casa inclusiva masculina e feminina, foram trabalhados além da música instrumental, clássica e poética, as músicas que continham uma letra significativa, para determinado contexto, por exemplo, no dia do índio realizou-se uma contação de estória baseada na música Anahí de Cascatinha e Inhana, e logo após uma roda de conversa sobre os índios, cada um trazendo o que sabia a respeito. Também a música Asa Branca, de Gonzaguinha que foi estudada juntamente com as telas Os Retirantes (1 944) e Criança Morta (1 944), ambas de Cândido Portinari, em que o assunto em questão era abordado através de conhecimento cien341 tífico sobre a seca no Nordeste. As imagens também eram muito utilizadas juntamente com outros conteúdos, eram imagens significativas e também novas imagens eram criadas mediante a percepção de cada um, por isso o trabalho com revistas, para recorte e colagem era muito utilizado, pois as imagens eram vistas diferentemente por cada aluno, então na maioria dos projetos eles se retratavam por meio das imagens. As pedagogias da visualidade formulam conhecimentos e saberes que não são ensinados e aprendidos explicitamente, mas que existem, circulam, são aceitos e produzem efeitos de sentido sobre as pessoas. Entender as pedagogias da visualidade, dentro e fora das escolas, é fundamental para que se compreenda como estamos sendo regulados por elas, como crianças, homens, mulheres de diferentes contextos sociais e culturais estão construindo suas identidades e visões de mundo a partir de seus ensinamentos. (CUNHA, 2005, p.40) Em todo o momento foi considerado o ponto de vista do aluno, não é porque uma imagem que não significa nada para mim, não significará nada para o aluno, pelo contrário, muitas vezes uma imagem guarda memórias, pensamentos e opiniões dos alunos. Assim, com o trabalho de imagens perguntava-se o porquê daquela imagem ter sido escolhida por ele, qual o significado que ela tinha naquele momento. O projeto de contação de estórias começou sem o intuito de prolonga-lo, a inexperiência desconhecia o poder que as estórias exerciam também na Educação de Jovens e Adultos. Após a elaboração de um desenho livre, uma aluna no abrigo começou a narrar o que ela tinha desenhado, se 342 tratava de uma estória que segundo ela acontecera em Belo Horizonte, sobre um “gavião” muito esperto que roubou uma mulher de dentro de sua própria casa. A estória contada tinha muitos detalhes e todos pararam para ouvir. Após esse dia foi decidido que em todas as aulas a bolsista contaria uma estória e se eles quisessem contariam outra. No abrigo de idosos a maioria das contações eram parábolas, mas lendas e contos de fadas também foram abordados. Certo dia, uma aluna que nunca participou em todos os anos do projeto quis entrar, na aula disse que não gostava de seu nome, que era Iracema, então foi improvisado a contação sobre a estória de Iracema, de José de Alencar, em que a aluna ficou muito entusiasmada. A partir desse dia Iracema sempre contava suas estórias e gostava de ouvir outras, tendo sido um grande feito e uma bela vitória do projeto. Geralmente, nas estórias buscava-se uma moralidade, algo que poderia ser discutido depois, com a opinião de todos. Algumas das estórias utilizadas foram Aprende a Escrever na Areia, que é uma lenda oriental, As Estrelas do Céu, São Jorge e o Dragão, O Pequeno Raio de Sol, A Lenda da Concha, O Sapo e a Cobra, Os Quatro Amigos, fora as músicas que eram estudadas como estórias e outras lendas e fábulas pequenas. Após a leitura era realizada uma roda de conversa a respeito, por exemplo no conto As Estrelas do Céu, foram estudados o sistema estelar, e os alunos lembraram do homem que pisou na lua, dos acontecimentos dessa época. No conto de São Jorge e o Dragão lembraram-se da novela Salve Jorge e contaram sobre a Capadócia, local dito por eles que supostamente nasceu São Jorge, além as diversas relações que faziam com outras recordações de suas vidas. Na casa masculina, como alguns já sabiam ler e escrever, era realizada a produção de texto a partir do que era 343 lido, ou quem não conseguia escrever desenhava ou escrevia uma palavra ou frase relacionada. Esse trabalho de pós leitura foi muito interessante, alguns tinham medo de pegar no lápis e desenhar, assim as estórias eram um incentivo a mais para começarem a perder o medo, e escrever ou desenhar. A matemática também era abordada nos três locais, sejam por meio de jogos, panfletos de mercados ou no estudo de números. O projeto sobre panfletos de supermercados consistiu na realização de uma educação matemática voltada para o dia a dia deles, principalmente nas casas inclusivas, pois agora com a ajuda das cuidadoras, estavam indo para o supermercado, ajudar a fazer compras. Tanto a matemática quanto a língua materna são estruturadas em sistemas de representações que são elaborados com base na realidade; dão significado e conceito às coisas, aos objetos, às ações bem como auxiliam no desenvolvimento das relações no contexto social. Essas duas linguagens são, portanto, necessárias à comunicação, pois a leitura, a escrita, a oralidade, a realização de cálculos, o uso de símbolos contribuem diretamente para a integração do indivíduo na sociedade. (MATOS; FAGUNDES, 201 0, p.79). Assim, observando quais eram suas necessidades iniciamos os trabalhos com a matemática, sendo este o único que não era passado todos os dias de aulas, tendo dias específicos somente para o estudo da matemática. Iniciouse realizando contagem de números por meio de imagens dos panfletos, e cada aluno recebeu uma folha com o desenho de uma cesta vazia e cada uma deveria colocar na ces344 ta a quantidade representada no papel, por exemplo, se na folha estava o número cinco, cinco produtos deveriam ser recortados e colados na cesta. Os numerais de 0 a 1 0 foram estudados, bem como os preços, se caro, se barato, uma lista de supermercados foi realizada com a ajuda dos panfletos, enfim foi trabalhado de diversas maneiras, inclusive com o uso do jogo do dinheiro, que consiste em notas que representam as reias. Além dos panfletos, na matemática foi realizado o jogo de bingo, inclusive com premiações, que no final foram iguais para todos, sem distinção, o intuito era proporcionar uma maior interação e relacionar o que tinha sido aprendido nos numerais, a partir dos jogos, não só o de bingo, mas os dominós de cálculos e dança das cadeiras. O projeto que foi considerado o mais querido e visado pelos alunos foi o projeto sobre cartões, que eram escritos por eles, ou ajudados pela bolsista visando a entrega para uma outra pessoa, que poderia ser da sala ou não, mas geralmente eram destinados às psicólogas, enfermeiras, e os cuidadores em geral. Este projeto foi uma continuidade de um projeto anterior já existente na instituição, e assim, os alunos inicialmente achavam que a aula era somente para fazer cartões, mas com o tempo foi mostrado que existiam outros conteúdos, outras coisas que deveriam também ser aprendidas, os cartões eram os momentos finais da aula, um momento de descontração e troca de opinião, além do estímulo ao trabalho coletivo para se ajudarem na escolha das cores e desenhos que enfeitariam os cartões. No abrigo o projeto sobre cartões não fora muito utilizado, não havia muito interesse nisso, sendo esporadicamente realizado. Nas casas masculina e feminina a elaboração dos cartões eram aguardadas por todos, pois algumas das mulheres namoravam alguns dos homens da ca345 sa masculina, assim faziam a troca de cartões e a bolsista era encarregada de levar e entregar esses cartões aos destinatários. Na maior parte das vezes o cartão era escrito pela bolsista e ditado pelos alunos, muitos deles não conheciam o código escrito, mas os que sabiam escrever faziam os seus. Mas, fazia-se questão que os alunos assinassem, mesmo se não soubessem, seja com auxílio ou por meio de cópia. Acredita-se que os cartões deram resultado positivo, pois os alunos viram uma finalidade para a leitura e escrita, a comunicação entre eles. Quando recebiam um cartão queriam compreender o que estava escrito ali, entender o que aqueles signos representavam, sendo a justificativa de aprender a necessidade de se comunicar. Todo ato de pensar exige um sujeito que pensa, um objeto pensado, que mediatiza o primeiro sujeito do segundo, e a comunicação entre ambos, que se dá através de signos linguísticos. [...] O mundo humano é, desta forma, um mundo de comunicação. (FREIRE, 1 983, p. 44) Assim, compreende-se que a mediação em torno desse projeto, tanto na troca de cartões, como na assimilação de novos vocabulários, novas formas, novos conhecimentos trocados entre aluno e bolsista, tornam todos os projetos formas de comunicação com o mundo, entre eles, com eles, e para eles. Além dos projetos referidos outras atividades foram trabalhadas, como a questão da autoestima. Grande parte dos alunos não tinha confiança em si mesmo para aprender coisas novas, não se gostavam, com uma autoestima muito 346 baixa às vezes não queriam fazer algo, pois achavam que iriam errar que não eram bons o bastante. Obviamente o passado desses alunos refletia a todo momento no presente, más lembranças de quando iam na escola, abandono, violência, problemas familiares, discriminação e tantas outras dificuldades, principalmente por serem portadores de doença mental. Há de se pensar que a educação de jovens e alunos já carrega consigo um significado preconceituoso perante à sociedade, são alunos excluídos dos padrões sociais considerados ideais, e até mesmo a própria educação de jovens e adultos é contraditória, pois ainda é comum observar práticas infantilizadas de professores, para uma educação que é voltada para adultos. Em alunos considerados excluídos, com uma baixa autoestima, o trabalho transversal realizado para que o aluno desenvolva o autorrespeito, a autovalorização e autoconfiança são fundamentais nesse processo. Como os alunos pesquisados possuem uma grande carência de quase tudo, o afeto, o respeito, elogios, carinho, compreensão e atenção são conceitos básicos para que o aluno compreenda a si mesmo e o outro, tornando o processo de ensino-aprendizagem mais humano e acolhedor para estas pessoas. Tendo como base os valores que regem a construção da confiança do aluno, supõe-se que o ensino ocorreria de maneira mais facilitada, em que o aluno, confiante de si, tornaria o processo de letramento e alfabetização algo natural e necessário para seu cotidiano. O letramento, segundo Soares (1 998), são as consequências do ensinar e aprender as práticas sociais da leitura e da escrita, é uma consequência adquirida em decorrência da apropriação destas práticas, tornando-as úteis para quem as obtém. Mas, a apropriação destas práticas não garante que o aluno saiba ler e escrever, pois isso 347 seria adquirir a decodificação da língua escrita, e no caso, o letramento é a obtenção do uso social da leitura e da escrita. [...] letramento é muito mais que alfabetização. [...] é um estado, uma condição: o estado ou condição de quem interage com diferentes portadores de leitura e de escrita, com diferentes funções que a leitura e a escrita desempenham na nossa vida. Enfim: letramento é o estado ou condição de quem se envolve nas numerosas e variadas práticas sociais de leitura e escrita. (SOARES, 1 998, p.44). Portanto, é a partir das práticas sociais de leitura e escrita que, seja por meio da televisão, dos rótulos de embalagens, de uma receita culinária, de um cartão, do rádio, dos panfletos de supermercados, etc., podem ser transformados em efetivas práticas de letramento, que os levam a usá-las para interação com a sociedade, seja por necessidade ou a vontade de inserção no mundo letrado, e este é fator fundamental para despertar o interesse do aluno na educação, possibilitando consequentemente a socialização dos indivíduos envolvidos. Os resultados obtidos na pesquisa mostram que o letramento foi desenvolvido em sua gênese a partir dos próprios alunos que souberam que a leitura e a escrita possuem um uso de cunho social, comunicativo. Eram utilizados por eles através dos projetos e também para outros fins. Algumas vezes, na casa feminina, a ânsia em querer aprender a escrever, acontecia porque como eram religiosas e iam à missa, quando alguém estava mal de saúde, desejavam escrever o nome da pessoa para colocar aos pés de uma imagem católica, dizendo que seus pedidos seriam atendidos. 348 Portanto, a finalidade depende do motivo de cada um, e da ocasião em que se passa. Assim, a alfabetização e o letramento se distinguem por alguns conceitos, mas sempre um será completado pelo outro. A alfabetização, segundo Soares (2004), é entendida como aquisição do sistema de escrita, do código letrado. Por outro lado, também é necessário reconhecer que, embora distintos, alfabetização e letramento são interdependentes e indissociáveis: a alfabetização só tem sentido quando desenvolvida no contexto de práticas sociais de leitura e de escrita e por meio dessas práticas, ou seja, em um contexto de letramento e por meio de atividades de letramento; este, por sua vez, só pode desenvolver-se na dependência da e por meio da aprendizagem do sistema de escrita. (SOARES, 2004, p.97). Ao se pensar o trabalho a partir do letramento e da alfabetização, em que um complete o outro no desenvolvimento das habilidades necessárias, o trabalho realizado na instituição objetivou a todo o momento o incentivo aos alunos perante tais práticas, que vistas dentro de suas realidades, eram mais facilmente compreendidas, tanto eu seu significado latente como em usos para fins sociais e cognitivos. A partir de então, todos os trabalhos desenvolvidos nas casas masculina e feminina e no abrigo de idosos tinha como meta, inserir os alunos nessas práticas de letramento e alfabetização, mesmo um conteúdo tendo origens matemáticas, o trabalho se tornava possível, pois geralmente tentava-se aplicar várias atividades de tal conteúdo escolhido, variando ao máximo, tanto no aspecto de leitura e escri349 ta, quanto na elaboração de pequenos cálculos e o desenvolvimento do raciocínio lógico. Enfim, todos os alunos ressaltaram a importância do projeto para a vida deles, se sentindo incluídos na sociedade que muitas vezes o negaram, deixando-os excluídos de muitas coisas que só agora estavam tendo oportunidades de saber, conhecer e participar. E assim o desejo de todos estava na continuação do projeto, que certamente será objeto de estudo para um possível mestrado na área e continuação de pesquisas relativas a esse ambiente e aos abrigados que ali vivem. Considerações finais A partir do desenvolvimento de todas as atividades do trabalho de pesquisa de iniciação científica, delimitadas pelo projeto aqui descrito, conclui-se que ao término do trabalho desenvolvido, a importância de se trabalhar com a Educação de Jovens e Adultos que possuem doença mental e que são abrigados em instituições, sejam elas filantrópicas ou governamentais. As atividades realizadas a partir do projeto nessa instituição pesquisada possibilitou a compreensão das necessidades escolares presentes nestes locais, com o foco voltado para o indivíduo e seus anseios perante a Educação. Foi possibilitada também a reflexão perante os usos das atividades que seriam aplicadas e que deveriam se enquadrar no perfil do aluno, surgindo questionamentos mediante algumas práticas adotadas em outros polos EJA, e a importância de se observar o contexto e toda a história de vida do aluno, colocando-o como agente construtor de seu próprio conhecimento nesse processo, em que não só os alunos aprenderam, mas a própria pesquisadora certamente 350 irá levar muita experiência e conhecimento adquirido mediante tais práticas e do convívio com esses alunos. Referências CUNHA, S. R. V. Educação e Cultura Visual: Uma trama entre imagem e infância . Tese de Doutoramento. Porto Alegre, UFRGS, 2005. FARIA, M. N. A música, fator importante na aprendizagem . Assis chateaubriand – Pr, 2001. 40f. Monografia (Especialização em Psicopedagogia) – Centro Técnico-Educacional Superior do Oeste Paranaense – CTESOP/CAEDRHS. FREIRE, P. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1 983. LUDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1 996. MATOS, R. A. L.; FAGUNDES, T. C. P. C. A importância dos jogos para a construção de conceitos matemáticos. In: Capacitação docente e responsabilidade social: aportes pluridisciplinares (Org.). Salvador: EDUFBA, 201 0. RIBEIRO, V. M. R. (Org.). Educação de Jovens e Adultos: Novos Leitores, Novas Leituras. Campinas: Mercado de Letras, 2001. SALOMÃO, H. A. S.; MARTINI, M.; JORDÃO, A. P. M; A importância do lúdico na educação infantil: enfocando a brincadeira e as situações de ensino não direcionado. Disponível em: http://www.psicologia.pt/artigos/textos/A0358.pdf. Acesso em: 1 5.07.201 3. 351 SCHWARTZ, S. Alfabetização de Jovens e Adultos: Teoria e Prática . Rio de Janeiro: Vozes, 201 0. SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1 998. ___________. Alfabetização e letramento: caminhos e descaminhos. In: Conteúdo e Didática de Alfabetização . Revista Pátio: Artmed, 2004. 352 artigo INCLUSÃO DIGITAL DIALÓGICA NA TERCEIRA IDADE - NEATI/UFMT RONDONÓPOLIS Waine Teixeira Júnior1 Eglen Silvia Pipi Rodrigues2 Gleicy Aparecida Souza3 Mirian de Souza Riva4 Resumo O oferecimento de ações que promovam a superação da exclusão digital, na forma de cursos de informática, que eduquem e preparem pessoas para terem condições de participar da Sociedade da Informação e do Conhecimento é de grande importância. Nessa direção, o presente relato de experiência apresenta o projeto de extensão Inclusão Digital Dialógica que busca atuar na formação de pessoas adultas, especialmente o público de terceira idade que frequenta as atividades do NEATI – UFMT/Rondonópolis. O projeto tem como objetivo relacionar o ensino, a pesquisa e a extensão, criando a oportunidade de docência para os 1 Universidade Federal do Mato Grosso - UFMT. Email: waine.jr@ gmail.com 2 Universidade Federal do Mato Grosso - UFMT. Email: eglen@ ufmt.br 3Universidade FEderal do Mato Grosso - UFMT. Email: gleicysouza@ hotmail.com 4Universidade Federal do Mato Grosso - UFMT. Email: mimi_mt_@ hotmail.com 353 alunos educadores bolsistas do projeto, buscando coletar e analisar dados sobre educandos, educadores e aprendizagens desenvolvidas. O projeto é desenvolvido com base na Aprendizagem Dialógica integrada à proposta metodológica da rede CDI – Comitê para a Democratização da Informática, desenvolvendo o conhecimento instrumental digital dos educandos ao mesmo tempo em que desenvolver ações de práticas dialógicas na relação educadores e educandos. Revenam-se assim anseios, expectativas, problemas e demandas de ensino de informática para o mundo adulto, bem como dos problemas sociais enfrentados pelo público alvo do curso. Os relatos dos participantes evidenciam a importância da informática contextualizada nas demandas do mundo adulto e as práticas da Aprendizagem Dialógica na condução da construção do conhecimento, entre elas, a solidariedade, a construção de sentido e a dimensão instrumental. Palavras-chave: Aprendizagem Dialógica, inclusão digital, ter- ceira idade. Introdução O aumento da expectativa de vida da população mundial está redefinindo o conceito do que é envelhecer. É possível encontrar um número cada vez maior de pessoas vivendo mais e melhor do que seus pais e avós. No passado chegar à meia-idade quase sempre significava aposentadoria precoce no trabalho, ou ainda, a diminuição drástica de atividades em várias áreas do comportamento social. Entretanto, o que hoje se percebe é o avanço de um grupo social com mais disposição e saúde para encarar a vida, sob as perspectivas física e mental, mais amadurecidas, com 354 pessoas cada vez mais conscientes de si e do mundo em que vivem. O crescimento da população de idosos é um fenômeno mundial. Segundo projeções estatísticas, em 2050, a população idosa será de 1 ,9 bilhão de pessoas montante equivalente à população infantil de 0 a 1 4 anos de idade, ou um quinto da população mundial. Os números mostram que, atualmente, uma em cada dez pessoas tem 60 anos de idade ou mais e, para 2050, estima-se que a relação será de uma para cinco em todo o mundo, e de uma para três nos países desenvolvidos (SAFONS, 201 2). A expectativa é que os avanços científicos e tecnológicos permitirão ao ser humano ultrapassar cada vez mais a faixa dos 1 00 anos de idade no presente século. O cenário que se desenha é de profundas transformações sociais. Tanto pelo aumento mundial proporcional do número de idosos quanto em função do desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Para um grupo cada vez mais consciente de si e dos seus direitos, espera-se novas formas de se colocar na sociedade ainda como um grupo produtivo, intelectualmente capaz de buscar também novas aprendizagens e de oferecer também ainda sua contribuição social. Para Paulo Freire, o ser humano sempre levará em si a consciência de que sempre terá muito a aprender, a conhecer sobre si, sobre os outros e sobre o mundo, afinal: “a consciência do mundo e a consciência de si inacabado necessariamente inscrevem o ser consciente de sua inconclusão num permanente movimento de busca. Na verdade, seria uma contradição se, inacabado e consciente do inacabamento, o ser humano não se inserisse em tal movimento (FREIRE, 355 1 997, p. 20). Dentro da perspectiva de vida social moderna, apresenta-se um contexto no qual o mundo digital se faz presente e representa muitos desafios para quem não nasceu nem cresceu utilizando recursos tecnológicos avançados com o uso de computadores e internet, mas precisa aprender e adaptar-se constantemente a eles. É preciso considerar que não mais apenas o saber ler e o saber escrever são suficientes para o cidadão, mas que ele tenha o domínio de recursos que possibilitem sua presença e autonomia no mundo por meio das Tecnologias da Informação e Comunicação. Dessa forma, exige-se cada vez mais dos cidadãos a aprendizagem de comportamentos e raciocínios específicos do mundo digital, como é o caso do uso do cartão de crédito, do caixa eletrônico e mesmo de equipamentos domésticos, como os telefones celulares, os aparelhos de TV e DVD, entre outros. Para o acesso a esse conjunto de equipamentos e funcionalidades da modernidade, é preciso um novo tipo de alfabetização, um novo tipo de letramento, chamado de letramento digital (XAVIER, 2008). Aquino (2005) apresenta o letramento digital como “o domínio de técnicas e habilidades para acessar, interagir, processar e desenvolver multiplicidade de competências na leitura das mais variadas mídias”. Como afirmam Moreira, Salvat e García-Quismondo (2008, p. 30), “uma pessoa analfabeta na tecnologia digital fica à margem da rede comunicativa que oferecem as novas tecnologias”. Como consequência surge uma nova forma de exclusão: a exclusão digital. A exclusão aqui deve ser compreendida, segundo Pereira (2007, p.1 5), como a “impossibilidade de um grupo participar dos usos e costumes de outro grupo, sem ter os mesmos direitos e os mesmos deveres dos já participantes daquele grupo já incluído”. 356 A impossibilidade de participação quase sempre tem como uma de suas principais causas, a ausência da aprendizagem do uso das novas tecnologias e, em especial, o uso de computadores e internet. Portanto, o oferecimento de ações que promovam a superação da exclusão digital, na forma de cursos de informática, que eduquem e preparem pessoas para terem condições de atuar na sociedade moderna, que propõe o uso intensivo de computadores em todos os seus segmentos, é de grande importância. No ano de 1 993, o Campus Universitário de Rondonópolis da Universidade Federal de Mato Grosso adotou oficialmente o Programa Universidade Aberta da Terceira Idade, caracterizado como programa de extensão. Em 1 4 de maio de 1 999 foi inaugurado o espaço destinado ao funcionamento permanente do Programa UATI, denominado Centro de Apoio ao Idoso. Neste mesmo ano, foi criado e aprovado pela Pro Reitoria/UFMT o NEATI - Núcleo de Estudos e Atividades da Terceira Idade com Regimento próprio, no qual está inserido o Programa UATI e demais projetos atinentes às questões das pessoas com idade a partir de 45 anos (ARAUJO, 2011 ). O programa foi estruturado e desenvolvido desde sua implantação com propósito de oportunizar aos seus alunos uma compreensão adequada do processo de “envelhecimento” tanto do ponto de vista físico quanto psicológico, além de permitir uma visão atualizada dos fenômenos sociais. Busca-se o contato dos educandos da terceira idade com profissionais diversos, com jovens universitários e com pessoas de distinta formação social, possibilita novos olhares para o mundo e suas relações sociais. Além disso, as turmas de alunos também são constituídas por pessoas de diferentes locais do município e níveis socioeconômicos, que agregam pessoas não alfabetizadas e letradas, diferentes classes sociais e faixa etária compreendendo de 45 a 80 357 anos ou mais, sem distinção de raça ou credo. Compreendemos, assim como afirma Goldman (2001 ), que as atividades e programas de extensão, articuladas às pesquisas e ao ensino na universidade, pode se constituir um canal importante no debate e na ação do resgate da cidadania do idoso, tão ameaçada nessa conjuntura sob o impacto da globalização e que tende a excluir os mais vulneráveis do processo produtivo, entre os quais se situam as pessoas da terceira idade. Entendemos que em meio ao grande desafio de novas aprendizagens da modernidade, as pessoas na terceira idade estão dispostas a enfrentar o desafio de aprender. Nessa direção foi elaborado e colocado em execução o projeto de extensão “Inclusão Digital Dialógica na Terceira Idade do NEATI - UFMT”, tendo como objetivo atuar na formação de pessoas, em especial o público de terceira idade, para o uso efetivo de recursos tecnológicos digitais, tais como operações básicas de um sistema operacional de computadores, ferramentas de acesso à internet e de envio e recebimento de mensagens, bem como operacionalização e uso efetivo de editor de texto, planilha e software de apresentação. Em seu segundo ano de oferecimento na UFMT Rondonópolis, o projeto encontra-se vinculado ao programa de extensão Formação Básica em Computação, que também propõe ações de formação em informática para jovens de escolas públicas, focando também a formação em linguagens de programação. Metodologia O presente projeto está sendo desenvolvido tendo como princípios norteadores a Aprendizagem Dialógica e a metodologia proposta pela Rede CDI (201 2). O diferencial do curso aqui apresentado é o trabalho 358 metodológico sobre a perspectiva da Aprendizagem Dialógica. A aprendizagem dialógica tem um dos principais pilares a dialogicidade de Paulo Freire (2003), nos argumentos delineados por sua importante contribuição no letramento como forma de transformação social. O conceito Aprendizagem Dialógica surgiu do resultado de muitos estudos e práticas investigativas no Centro Especial de Investigação em Teorias e Práticas Superadoras de Desigualdades (CREA, 201 2), na Universidade de Barcelona (Espanha). Este conceito está presente na abordagem dialógica e diz respeito a uma forma de conceber a aprendizagem, que tem por objetivo estudar as transformações sociais e culturais e garantir uma educação de qualidade e igualitária para todas as pessoas frente aos desafios encontrados na sociedade atual. O conceito de Aprendizagem Dialógica, bem como Comunidades de Aprendizagem e de suas práticas criado pelo CREA, tem sido pesquisado e desenvolvido por meio de diversas investigações, leituras e debates. O enfoque destas investigações tem a preocupação e o cuidado de desenvolver uma metodologia de pesquisa participativa, na qual a manifestação que as pessoas têm em seus contextos habituais da vida cotidiana seja igualmente valorizada no espaço escolar (ELBOJ et al., 2002). O conceito de Aprendizagem Dialógica (FLECHA, 2007) se apresenta estruturado por sete princípios fundamentais, são eles: 1 º diálogo igualitário; 2º inteligência cultural; 3º transformação; 4º dimensão instrumental; 5º criação de sentido; 6º solidariedade; 7º igualdade de diferenças. O diálogo igualitário é considerado um instrumento de aprendizagem amplamente reconhecido. Ele está em sintonia com a ação comunicativa, proposta por Jürgen Habermas. Neste tipo de ação cada pessoa faz suas próprias contribuições ao diálogo. As falas não são classificadas co359 mo melhores ou piores, mas apreciadas como diferentes. Esse princípio confere à atividade educativa uma nova maneira de estabelecer-se: o que vale a partir deste modelo é a força que tem cada argumento e não o poder que ocupa a pessoa que o apresenta. O princípio da Criação de Sentido insere-se no contexto da sociedade atual, que favorece e alimenta o individualismo e isso contribui para que muitas pessoas percam o sentido de suas vidas. Com relação à Inteligência Cultural, Flecha (1 997) destaca o fato de que todas as pessoas têm as mesmas capacidades para participar em um diálogo igualitário, tendo em vista que cada uma carrega em si uma bagagem de aprendizagens culturais de forma que possa demonstrar essas capacidades em ambientes distintos. A Dimensão Instrumental apresenta-se na aprendizagem, por meio do diálogo, de conhecimentos acadêmicos e instrumentais, pois a aprendizagem dialógica inclui todos os conhecimentos que são necessários para a sobrevivência na sociedade atual. Esse é o caso da aprendizagem da tecnologia dos computadores na sociedade moderna. A Igualdade de Diferenças é um princípio da aprendizagem dialógica que indica que a verdadeira igualdade inclui o mesmo direito que cada pessoa tem de ser e viver de forma diferente. Por isso, todas as pessoas que participam do diálogo têm o igual direito de ser diferentes. A Solidariedade é um princípio que precisa ser estimulado e construído. Assim como ficamos mais individualistas frente ao contexto, também vamos aprendendo a ser menos humanos e menos solidários, pois a sociedade “seleciona” os melhores e exclui o resto das pessoas. Por último, o princípio da Transformação. A Aprendizagem Dialógica transforma a relação entre as pessoas e o seu entorno. A maneira de aprender gerada a partir do diá360 logo igualitário acaba por transformar as pessoas e o conceito que têm de si mesmas e das instituições em que vivem. A escola e suas relações, nesta perspectiva, também passam a ser transformadoras. A prática educativa com vistas à construção da cidadania por meio da informática, baseada na dialogicidade e no processo de construção de autonomia por meio do acesso a formas de leitura do mundo, é também uma metodologia aplicada e desenvolvida pela Rede CDI, já é reconhecida mundialmente. O método também se baseia nos conceitos de dialogicidade de Paulo Freire, que acreditava que a educação, e em especial, o letramento, deveria ser usada como ferramenta para a mudança social e a formação cidadã. Pela relevância e contribuições à educação com vistas à superação e promoção social, entende-se que os princípios da aprendizagem dialógica complementam a proposta da rede CDI e caminham na direção de uma proposta metodológica adequada para cursos de inclusão digital. O curso de inclusão digital está sendo oferecido em um período de oito meses de 201 2, de maio a dezembro, para duas turmas, uma vez por semana, sendo duas delas na UFMT, campus de Rondonópolis Cada turma tem em média 25 alunos e cada aula tem 2:00 horas de duração por semana. O curso conta com dois educadores bolsistas do projeto de extensão, dois educadores estagiários do curso de Licenciatura em Informática e dois alunos voluntários dos cursos de Licenciatura em Informática e Sistemas de Informação. Nos primeiros encontros, educadores e educandos construíram combinados de comportamentos em espaço de sala de aula, pautados nos princípios da Aprendizagem Dialógica. Seguindo os princípios da Aprendizagem Dialógica, combinamos que não haveria necessidade de consenso em nenhum dos assuntos discutidos e cada um era livre para 361 participar, desde que todas as opiniões deveriam ser respeitadas. A metodologia de realização das aulas prevê quatro momentos de aula: 1 º. – Acolhida e Roda de Conversa, 2º. – Primeiro Tempo, breve intervalo, 3º. – Segundo Tempo, e 4º. – Avaliação. Os encontros começam sempre com uma acolhida pelos educandos e o início dos trabalhos com uma roda de conversa. Na roda todos os educandos deveriam poder se olhar e ouvir os outros. Uma questão geradora é apresentada para a discussão entre os participantes. Os educadores são sempre os últimos a se pronunciarem. As questões têm como objetivo levar os educandos à reflexão sobre identidade social, problemas e demandas da comunidade, caminhos para a cidadania, sempre que possível relacionando a informática como instrumento para potencializar a transformação social. A partir da roda de conversa inicia-se a aprendizagem de informática. O primeiro momento é realizado no contexto da Internet. São apresentados sites relacionados aos assuntos levantados na roda de conversa. No segundo momento da aula os alunos utilizam editores de texto, planilhas eletrônicas ou software de apresentação. A cada aula, uma série de ferramentas de formatação e edição de textos é apresentada. Muitas vezes, os textos produzidos são as respostas à questão geradora da roda de conversa. Os textos produzidos são formatados e salvos. Planilhas eletrônicas são utilizadas para computar cálculos de orçamentos familiares, controles financeiros, etc. A aprendizagem dos conteúdos é reforçada por meio da repetição dos processos, ao mesmo tempo em que o conhecimento sobre os conceitos estudados avança. Ao final do projeto, um questionário avaliativo envolvendo questões relacionadas ao projeto, aos educadores, 362 aos conteúdos e aos educandos foi aplicado aos educadores e aos educandos. Desenvolvimento A presença feminina é destaque no curso. No inicio havia dois senhores, que acabaram desistindo por volta da segunda semana. Todas as alunas já se conhecem por conta do convívio em outros cursos no NEATI e isso facilitou muito a interação, segundo as educadoras do projeto. Apesar disso, no começo do curso as alunas estavam retraídas. Poucas alunas respondiam às questões da roda de conversa, e as que faziam, participavam com certa timidez. Convivência entre as alunas e os educadores possibilitou também a melhora das relações e a participação na discussão tornou-se animada e divertida. A Inteligência Cultural foi um conceito aprendido a partir da apresentação dos educandos, nas conversas informais e nos assuntos de interesse pesquisados. A Dimensão Instrumental, nesse curso, é compreendida os conhecimentos de informática, fortemente contextualizados à cidadania, aparecendo nos relatos dos educandos como uma importante parte dos conhecimentos que são necessários para a sobrevivência na sociedade atual, tais como: visitar sites governamentais, acompanhar políticas municipais, estaduais e federais, enviar e receber correspondência eletrônica, editar documentos em editores de texto no computador. A Solidariedade presente em diversos aspectos foi sempre estimulada. Um importante destaque é que ela aparece fortemente ligada à percepção do conceito de cidadania. “Cidadania é ajudar o outro”, “Cidadania é fazer coisas que são boas para todas as pessoas”, foram exemplos de respostas apresentadas pelos educandos na roda de con363 versa. Segundo o relato dos educadores, as alunas da terceira idade vibram quando se lembram de conteúdos das aulas passadas, quando conseguem fazer o que é pedido, quando as dúvidas são solucionadas. Sempre no final das aulas elas agradecem e dizem o quanto é importante para elas estarem aprendendo informática. O projeto também ofereceu a formação e a oportunidade de iniciação à docência dos alunos do câmpus. Ao estimular a docência, articulam-se conhecimentos prévios a novos conhecimentos de informática, reforçando conteúdos já estudados em suas formações acadêmicas a novos conteúdos. Ao entrar em contato com o trabalho docente, buscou-se também despertar nos alunos educadores a aprendizagem profissional, a solidariedade e a cidadania. “Ao mesmo tempo em que ensinamos computação para elas, elas nos devolvem conhecimento de vida, por esse motivo é realmente uma experiência única”, afirma uma das educadoras. Todas as senhoras tratam os educadores de forma muito educada e carinhosa, como se tratassem um neto ou alguém da família, afirmam os educadores. Além disso, o exercício da cidadania é percebido também como instrumento de criação de sentido nos educadores, durante o exercício da docência no curso, revelando-se na seguinte fala: Trabalhar com idosos a princípio parece algo chato, algo que irá girar ao redor do tédio, porém a realidade é bem diferente, a verdade é que é uma experiência diferente de qualquer outra. Elas são alunas e ao mesmo tempo parecem uns parentes distantes e elas acabaram adotando 364 a gente. Elas conversam sobre a família, contam novidades, querem saber a respeito de como é sua família, como está a faculdade, levam balinhas, dão lembrancinhas, convidam para ir a igreja delas, acabamos nos sentindo realmente parte de uma família. Com o passar do tempo cada vitória delas acaba se tornando uma vitória nossa também e isso é muito gratificante. Ao mesmo tempo em que ensinamos computação para elas, elas nos devolvem conhecimento de vida, por esse motivo é realmente uma experiência única. (B.A.) Finalmente, sobre as experiências dos educadores do projeto, as experiências: Diferentes dos outros que acham que tem o tempo todo pela frente, que o educador não está fazendo nada além da sua obrigação, etc., os idosos já são vividos o suficiente para saber reconhecer o esforço do próximo, para saber dar valor a esse esforço. E essa gratidão que eles te dão, esse sentimento de estar recebendo algo bom realmente não tem preço. (B.A) É preciso destacar que a elaboração dos roteiros de aula acompanhados por material didático e metodologia voltados para o público adulto, especialmente projetados para os educadores aplicarem, constituiu um importante instrumento de orientação e estímulo aos educadores. Segundo o 365 relato dos educadores, A preparação do material é detalhada e muitas vezes, exaustiva, pois tem que explicar tudo de forma mais detalhada possível para que haja a menor quantidade de dúvidas possíveis. Ao mesmo tempo é gratificante saber que esse material irá ajudar muitos idosos a caminharem de forma mais amigável com a tecnologia, afirma os educadores. (B. A.) Conclusão Esse trabalho apresentou o relato da aplicação de um curso de inclusão digital para o público de terceira idade do NEATI do câmpus universitário UFMT Rondonópolis. Como resultados parciais desse projeto, alguns pontos podem ser destacados. A metodologia que integra a proposta desenvolvida pela Rede CDI tendo como princípios norteadores a Aprendizagem Dialógica oferece importantes contribuições no processo de aprendizagem de educadores e educandos. O diálogo igualitário como base das relações entre educadores e educandos proporciona a construção de um ambiente tranquilo, adequado à aulas, estimulando a participação. A proposta da contextualização permanente entre informática, sociedade e cidadania, relacionando o importante papel da informática, com vistas ao acesso à informação e instrumentalização para a vida adulta é o instrumento principal para a criação de sentido para os educandos permanecerem no curso, avaliaram os educadores. A experiência de participação como educadores do projeto de extensão revelou a construção de sentido pessoal profissional na prática da cidadania e valorização da pessoa adulta da terceira idade. 366 Finalmente, a proposta da contextualização permanente entre informática, sociedade e cidadania, relacionando o importante papel da informática, com vistas ao acesso à informação e instrumentalização para a vida adulta foi o instrumento principal para a criação de sentido para os educandos permanecerem no curso, avaliaram os educadores. Referências AQUINO, Renata. Usabilidade é a chave apara aprendizado em EAD . 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Acesso em: 20/01 /2008. 368 artigo O PROEJA no contexto das políticas públicas de EJA no Brasil contemporâneo Jarina Rodrigues Fernandes Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas Universidade Federal de São Carlos jarina.fernandes@ ufscar.br Resumo O presente artigo tem por objetivo situar o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica, na modalidade de educação de jovens e adultos (PROEJA) no contexto das políticas públicas para educação de jovens e adultos (EJA) no Brasil contemporâneo e refletir sobre uma das marcas do referido programa: a proposta do currículo integrado. Para tanto, por meio de pesquisa em documentos oficiais e fontes bibliográficas, realizamos um breve resgate das políticas para a EJA da década de 80 aos nossos dias, a fim conhecer o contexto de criação do PROEJA, as bases legais e as características gerais do Programa. A proposta do currículo integrado coloca-se como um dos seus diferenciais e se propõe a oportunizar aos educandos a compreensão teórica e prática dos fundamentos científicos das tecnologias do trabalho, o que se faz com vistas à transformação do status quo. Tal proposta remonta às concepções marxianas de trabalho como 369 princípio educativo e pesquisa como princípio pedagógico, que em última análise voltam-se `a formação integral dos estudantes, considerados em sua totalidade, como sujeitos que têm direito `a práxis. Palavras-chave: Educação de jovens e adultos, Políticas Pú- blicas, PROEJA. Introdução A História da Educação de Jovens e Adultos (EJA) do Brasil têm sido marcada, predominantemente, por políticas de governo descontinuadas, caracterizadas por campanhas ou programas de curta duração, guiadas pelos interesses políticos e econômicos dos que detém o poder e por lutas de grupos que resistem a esse movimento mediante atuação em brechas históricas. O objetivo do artigo é situar o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica, na modalidade de educação de jovens e adultos (PROEJA) no contexto das políticas públicas de EJA no Brasil contemporâneo e refletir sobre uma das marcas do referido programa: a proposta do currículo integrado (RAMOS, 2005, MOURA, 2008). Para tanto, foi realizada uma pesquisa de cunho qualitativo, em documentos oficiais e fontes bibliográficas, a fim de realizar um breve resgate dos programas que marcaram a EJA no Brasil dos anos 80 à contemporaneidade e compreender a relevância da proposta de currículo integrado do PROEJA, quando se pensa educação profissional e educação básica na EJA. 370 Breve panorama das iniciativas governamentais na EJA da década de 80 ao PROEJA Na década de 80, a EJA vivia um momento de desmonte e de paulatina desobrigação do Estado em relação ao segmento. Em 1 985, o governo Sarney extinguiu o MOBRAL, que já não tinha sentido no contexto de abertura política. Para substituí-lo foi criada a Fundação Nacional para Educação de jovens e adultos, a Fundação Educar, que recebeu a missão de articular o subsistema de ensino supletivo, a política nacional de educação de adultos para as séries iniciais do ensino de 1.º grau, promover a formação dos educadores, elaborar material didático, supervisionar e avaliar atividades. A orientação era para que as atividades sob responsabilidade do governo federal fossem, gradativamente, assumidas pelos sistemas supletivos dos estados e municípios. Na prática, a “erradicação” do analfabetismo e a universalização do ensino fundamental projetadas para um prazo de dez anos ficaram muito distantes de serem atingidas. As disposições transitórias da Constituição, que prescreviam a destinação de 50% dos recursos vinculados à educação nas três esferas do governo, jamais foram realizadas (HADDAD; DI PIERRO, 2000). Os anos 90 foram um período em que a Alfabetização e o acesso à escolarização básica perpassaram diversas iniciativas da ONU: a Conferência Mundial de Educação para Todos, em Jontiem (1 990); a escolha de 1 990 para Ano Internacional da Alfabetização; a V Conferência Internacional pela Educação de Adultos sediada em Hamburgo (1 997) e a reunião de avaliação da Década da Educação para Todos em Dakar (2000). Em relação à EJA, a década de 90 com a extinção da Fundação Educar, decisão que criou um enorme vazio em termos de políticas públicas para o segmento, diante das políticas públicas voltadas, , quase exclusiva371 mente, para acesso da população de 7 a 1 4 anos ao Ensino Fundamental. Apenas a partir do final dos anos 90, foram criados programas voltados à EJA, sendo destacados por Di Pierro e Graciano (2003): o Programa Alfabetização Solidária (PAS); o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA); o Programa Alfabetizando em Parceria – Movimento de Educação de Base – (MEB) e o Plano Nacional de Qualificação Profissional (PLANFOR). Tais programas, ligados a diferentes ministérios, revelavam a falta de um planejamento estratégico por parte do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) para atender às demandas da EJA. Cada programa era responsável por organizar sua própria metodologia, materiais didáticos e formação de professores. Houve uma pulverização de iniciativas do poder público, articuladas com a sociedade civil organizada, com as universidades, as igrejas e os sindicatos. Quanto às diretrizes curriculares, foram organizadas a proposta curricular do primeiro segmento (BRASIL/MEC/SEF, 1 996) e, posteriormente, as propostas curriculares para o segundo segmento, (BRASIL/MEC/SEF, 2002). Os documentos trouxeram contribuições na perspectiva explicitar parâmetros curriculares para a modalidade de ensino, mas não construídos a partir de ampla participação dos sujeitos envolvidos na EJA. Uma marca negativa do período foi o veto presidencial para que se contabilizasse as matrículas da EJA no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), o que explicitava o lugar que a EJA, efetivamente, ocupava na pauta do governo federal FHC. O PAS criado em 1 997, para o atendimento de estados e municípios com maiores taxas de analfabetismo e menores índices de desenvolvimento humano, localizados no Nordeste e Norte do Brasil, posteriormente, foi estendido 372 a áreas metropolitanas do país. As parcerias estabelecidas com universidades foram reconhecidas como positividade do programa na auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em 2003, mas não a logística das mesmas, devido às distâncias entre universidades e municípios atendidos, o que ocasionava acréscimo desnecessário aos custos do PAS (AÇÃO EDUCATIVA, 2003). Outras críticas encontram-se relacionadas à integração do programa à política nacional de jovens e adultos, ao curto período de duração dos cursos e à falta de oportunidade de continuação dos estudos, o que inviabiliza a efetiva alfabetização dos envolvidos. Outro elemento apurado pelo TCU é que, em muitas situações, os alfabetizandos se rematriculavam no programa para buscar a consolidação do processo de alfabetização, o que traz um complicador no momento da contabilização do público atendido (AÇÃO EDUCATIVA, 2003). Tais erros são cometidos pelas políticas de EJA que assumem caráter de campanha e não desenham a continuidade da iniciativa em termos de inclusão dos educandos no sistema educacional formal. Em 2011 , a organização não governamental Alfabetização Solidária, a Alfasol, que dá continuidade à iniciativas do PAS, prossegue firmando convênios, inclusive, com o Programa Brasil Alfabetizado. Segundo dados publicados no site oficial da organização, foram atendidos, em seus treze anos de existência, 5,5 milhões de pessoas (ALFASOL, 2011 ), o que não significa que tal contingente de tenha sido alfabetizado, dado o aligeiramento da proposta curricular. O PRONERA, criado em 1 998, encontra-se voltado à alfabetização de jovens e adultos, à habilitação de técnicos e à formação de professores inseridos na realidade do campo. Coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), tal programa tem sido implementado 373 em parceria com universidades e movimentos sociais do campo. De 1 999 a 2002, foram matriculados nas atividades de EJA do PRONERA promovidas pelo programa: 26.547 jovens e adultos não alfabetizados, com uma média de 61 ,76% de educandos que concluíram o processo de alfabetização (DI PIERRO; GRACIANO, 2003). No período de 2003 a 2009, foram atendidos pelo PRONERA 309.774 educandos nesse mesmo segmento (BRASIL, MIN. DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO/INCRA/PRONERA, 201 0). Concordamos com o posicionamento de Andrade e Di Pierro (2003, p. 74) que o diferencial do PRONERA corre devido à sua articulação com a política de reforma agrária, “que se desenvolve em estreita conexão com um projeto mais amplo de desenvolvimento rural sustentado com justiça social”. É elogiado o seu caráter sistêmico, em que, “além de elevar a escolarização de jovens e adultos, a formação de professores e pedagogos atende à necessidade de formulação de uma pedagogia específica” (ANDRADE; DI PIERRO, 2003, p. 79). Tal articulação reflete-se na propostas curriculares do PRONERA voltadas à formação integral dos educandos e educadores. As mesmas encontram-se fundadas na concepção marxiana de trabalho como princípio educativo e educação libertadora freireana, em sintonia com o marco referencial do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, parceiro na constituição do PRONERA. Em 2003, já no governo do presidente Lula (2003201 0), foi criado o Programa Brasil Alfabetizado (PBA), com o atendimento até o ano de 2009, de 1 2 milhões de educandos (BRASIL/MEC, 201 0). Houve a ampliação do período de alfabetização de seis para até oito meses em relação ao PAS; o aumento de 50% nos recursos para a formação dos alfabetizadores, com o estabelecimento de um piso para a bolsa do alfabetizador; o aumento da quantidade de turmas em regiões com baixa densidade populacional e em comu374 nidades populares de periferias urbanas; a implantação de um sistema integrado de monitoramento e avaliação do programa; maior oportunidade de continuidade da escolarização de jovens e adultos, a partir do aumento de 42% para 68% do percentual dos recursos alocados para estados e municípios, “com atuação mais intensa nos 1.928 municípios com taxa de analfabetismo igual ou superior a 25%” (BRASIL/MEC, 201 0, s/p). Tratava-se, mais uma vez, de um atendimento indireto à demanda, viabilizado por repasses de recursos a instituições com comprovada experiência em EJA, com liberdade de escolher a metodologia, os materiais didáticos e como desenvolver o processo de formação de educadores. Mais uma vez, a crítica incide sobre o caráter aligeirado do percurso curricular, sem a garantia da continuidade do processo de alfabetização no sistema público de ensino, que teria que pensar formas adequadas e atrativas para acolher os educandos advindos do PBA. Segundo Di Pierro (201 0, p. 946), no governo federal Lula (2003-201 0) houve uma proliferação de iniciativas em relação à EJA, mas as mesmas se encontravam desarticuladas entre si. A autora considera que as bases assentadas durante essa gestão indicavam um lugar mais relevante para a EJA, contudo, os indicadores apontam que “o ativismo desse governo no campo da EJA não foi capaz de reverter tendências anteriormente instaladas”. Di Pierro (2011 ) destaca que um diferencial no governo Lula foi a institucionalização da EJA nas políticas de Educação: Fundo Nacional da Educação Básica (FUNDEB), Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar (PNATE), Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). A autora também destaca iniciativas voltadas à certificação, tais como: o Exame Nacional para a Certificação de Competências de Jovens e Adultos 375 (ENCCEJA) e, posteriormente, a Rede Certific. A partir de 2005, começam a surgir políticas que articulavam Educação profissional e EJA, dada a demanda do capitalismo contemporâneo por maior formação para os trabalhadores (RUMMERT; ALVES, 201 0; FERNANDES, 2011 ). Destacam-se no Brasil, o Projovem, criado em 2005; o PROEJA que teve sua primeira versão em 2005 e versão definitiva em 2006 e o PRONATEC EJA, criado em 2011. O ProJovem, instituído pela Lei 11.1 29, de 30 de junho de 2005 (BRASIL, 2005b) e reformulado pela Lei 11.692 de 1 0 de junho de 2008 (BRASIL, 2008), voltou-se para o público de 1 5 a 29 anos com o objetivo de promover sua reintegração ao processo educacional, sua qualificação profissional e seu desenvolvimento humano. A partir da reestruturação realizada em 2008, o programa tem sido desenvolvido por meio de quatro modalidades: ProJovem Adolescente - Serviço Socioeducativo; ProJovem Urbano; ProJovem Campo - Saberes da Terra e ProJovem Trabalhador.. O ProJovem Adolescente-Serviço Socioeducativo é coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e tem por objetivo complementar a proteção social básica à família, criando mecanismos para garantir a convivência familiar e comunitária e criar condições para a inserção, reinserção e permanência de jovens de 1 5 a 1 7 anos no sistema educacional. Já o ProJovem Urbano foi criado sob a responsabilidade da Secretaria-Geral da Presidência da República e tem como objetivo elevar a escolaridade de jovens de 1 9 a 29 anos, que saibam ler e escrever, visando à conclusão do ensino fundamental, à qualificação profissional e ao desenvolvimento de ações comunitárias com exercício da cidadania. Por sua vez, o ProJovem Campo-Saberes da Terra, coordenado Ministério da Educação, tem por objetivo elevar a escolaridade dos jovens da agricultura familiar, integrando a qualificação social e for376 mação profissional, estimulando a conclusão do ensino fundamental e proporcionando a formação integral do jovem. Por fim, o ProJovem Trabalhador encontra-se sob responsabilidade do Ministério do Trabalho e Emprego e tem por objetivo preparar o jovem para o mercado de trabalho e ocupações alternativas geradoras de renda, por meio da qualificação social e profissional e do estímulo à sua inserção. Como pode ser percebido, a responsabilidade pelo ProJovem é compartilhada por diferentes secretarias e ministério. Rummert e Alves (201 0) criticam o caráter assistencial, supletivo, compensatório, de qualificação profissional aligeirada do Projovem, fazendo com que se distancie do processo de inclusão da juventude no crescimento do país. Concomitante ao Projovem, a primeira versão do PROEJA foi criada mediante o Decreto Federal 5.478 de 24 de junho de 2005 (BRASIL, 2005a) que, originalmente, significava Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na modalidade de Educação de Jovens e Adultos. Sob a primeira denominação, voltava-se exclusivamente para cursos que promovessem a integração da educação profissional - seja como formação inicial e continuada, seja como educação profissional de técnica de nível médio com o ensino médio, tendo como base única a rede de instituições federais de educação tecnológica. O Decreto 5.478 provocou resistências e questionamentos em relação a diversos aspectos do Programa. As críticas incidiam, sobretudo, em relação a três pontos: a definição existente de uma carga horária “máxima” para os cursos (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005; MOURA, 2008); a redução do Programa à Rede Federal e a limitação do Programa ao ensino médio (MOURA, 2008). A partir das discussões foi nomeado um grupo formado por especialistas em EJA das universidades brasileiras, representantes da SETEC, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SE377 CAD), dos fóruns de EJA, com representantes de instituições federais, para organizar um documento base com os princípios e concepções do Programa (MOURA, 2008). Como resultado de todo esse processo, em 1 3 de julho de 2006 foi revogado o Decreto 5.478 (BRASIL, 2005a) que havia criado o PROEJA, e promulgado o Decreto 5.840 (BRASIL, 2006), a partir do qual o PROEJA passou a se chamar Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos. Foram incluídas as contribuições de que o PROEJA promovesse a participação de alunos que não concluíram o Ensino Fundamental e a ampliação das instituições envolvidas. Foram chamadas para estabelecer parcerias as instituições públicas dos sistemas de ensino federal, estaduais e municipais, inclusive as atuantes nos estabelecimentos penais e entidades privadas nacionais de serviço social, aprendizagem e formação profissional vinculada ao sistema sindical, o Sistema“S”. A proposta do PROEJA tem sido destacada positivamente; pela pertinência de uma educação profissional integrada à educação básica, tendo em vista a proposta de articular ciência, cultura, trabalho e tecnologia, na perspectiva de uma formação integral, com certificação e elevação da escolaridade; pelo envolvimento da rede federal de educação profissional e tecnológica no processo; pela possibilidade de formação de professores, em nível de pós-graduação lato sensu e pelo fomento à pesquisa por meio do Programa PROEJA/CAPES/SETEC, com vistas à análise e ao aprimoramento do programa. Quanto aos limites e contradições, encontra-se: o número insuficiente de vagas diante da demanda nacional; a ausência de uma clara dotação orçamentária; os problemas relativos a ingresso, evasão e permanência; os descompassos entre oferta da Especialização PROEJA e participação efetiva dos profes378 sores que atuam no programa e as dificuldades em realizar efetivamente a proposta do currículo integrado, no contexto das instituições proponentes (FERNANDES, 201 2b). Por fim, por meio da Lei 1 2.51 3, em 26 de outubro de 2011 , o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC) que contempla o trabalho com a modalidade EJA (BRASIL, 2011 ). Encontra-se fora do escopo desse trabalho analisar as características do Programa, mas vale ressaltar a ausência da publicação de um documento base com seus princípios e concepções; a indefinição de como será acompanhado o montante elevado de recursos públicos que sendo repassado ao Sistema S e a instituições privadas participantes do Programa; a ausência de ações de formação para professores, linhas de financiamento para pesquisa e avaliação do Programa. As críticas que recaem sobre o PRONATEC são relativas ao foco do Programa voltado a atender à lógica do mercado. Tecido esse breve panorama, o tópico a seguir, retoma as características gerais e posteriormente a proposta de currículo integrado do PROEJA. Características do PROEJA O PROEJA situa-se dentre outros programas da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação (SETEC), originados nos quadriênios 2003-2006 e 2007-201 0 e continuados na gestão iniciada em 2011. As discussões específicas em torno da possibilidade de a Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica atuar junto ao público de EJA passaram a compor as pautas de discussão, a partir de 2003, no Seminário Nacional de Educação Profissional e Tecnológica “Ensino Médio: Construção Política”, no qual se apresentava o compromisso com 379 a redução das desigualdades sociais, como um de seus princípios; a articulação da educação profissional com a educação básica, como um de seus pressupostos específicos; e a educação de jovens e adultos, como uma de suas linhas estratégicas (BRASIL/MEC/SETEC, 2004). É importante destacar que o PROEJA é um desdobramento da promulgação do Decreto 5.1 54, de 23 de julho de 2004 (BRASIL, 2004). Tal decreto foi um marco, pois ao revogar o Decreto 2.208 de 1 7 de abril de 1 997 (BRASIL, 1 997), forneceu a base legal para a retomada da articulação entre educação profissional e ensino médio, em consonância com o art. 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9394 de 20 de dezembro de 1 996 (BRASIL, 1 996). O Decreto 5.840 (BRASIL, 2006, art. 1 º., parágrafo 4º.) veio salientar que se tratava de elevar a escolaridade do trabalhador mediante a elaboração de projetos pedagógicos acordados entre os parceiros, de um currículo integrado entre a educação profissional e a educação básica, inclusive, quando fossem envolvidas “articulações interinstitucionais e intergovernamentais”. Em relação à carga horária mínima estabelecida para os cursos do PROEJA voltados à educação profissional técnica de nível médio integrada ao ensino médio, foram definidas duas mil e quatrocentas horas, sendo mil duzentas horas para a formação geral e a carga horária mínima estabelecida pela respectiva habilitação técnica (ou seja, mil e duzentas horas ou mais, se a regulamentação da habilitação assim o exigisse). Para o PROEJA voltado à integração da educação profissional, como formação inicial e continuada, a carga horária foi estabelecida em mil e duzentas horas para a formação geral e, no mínimo, duzentas horas para a formação profissional. O trabalho de elaboração de concepções, princípios e orientações gerais para construção do projeto pedagógico integrado do PROEJA resultou na produção de três docu380 mentos base voltados para as três frentes de trabalho propostas: educação profissional de nível técnico integrada ao ensino médio (BRASIL/MEC/SETEC, 2007a); formação profissional inicial e continuada integrada ao ensino fundamental (BRASIL/MEC/SETEC, 2007b) e educação profissional e tecnológica voltada à educação escolar indígena (BRASIL/MEC/SETEC, 2007c). A especificidade do PROEJA voltado à integração da educação profissional, como formação inicial e continuada (FIC) ao ensino fundamental fez com que esse segmento do Programa passasse a ser reconhecido como PROEJA FIC, impulsionado a partir de abril de 2009, que oficializou o convite às instituições da Rede Federal para que, em parceria com os municípios brasileiros, elaborassem propostas para implantação do PROEJA FIC. A proposta de currículo integrado no PROEJA Um dos diferenciais do Programa é a proposta de currículo integrado que, por sua vez, remonta às concepções de trabalho como princípio educativo e pesquisa como princípio pedagógico. Em última análise, tais princípios se referem `a formação integral dos estudantes, considerados em sua totalidade, como sujeitos que têm direito `a práxis. A práxis só pode ser vivenciada a partir da promoção de uma relação dialética entre prática-teoria-prática: jamais uma visão dicotomizadora dos seres humanos que delegue a uns o trabalho braçal e a outros o trabalho intelectual (FERNANDES, 201 2a). A consideração do trabalho como princípio educativo e da pesquisa como princípio pedagógico (BRASIL/MEC/SETEC, 2007d; MOURA, 201 0) retoma a concepção marxiana de que os homens se formam no trabalho, na 381 medida em que podem desenvolver sua autonomia intelectual frente ao conhecimento, ao trabalho e ao mundo do trabalho. Nesta perspectiva, coloca-se a importância de articular tal princípio educativo ao princípio pedagógico da pesquisa: Potencializar a relação entre o ensino e a pesquisa contribui para desenvolver, ao longo da vida, entre outros aspectos, as capacidades de interpretar, analisar, criticar, refletir, rejeitar ideias fechadas, aprender, buscar soluções e propor alternativas, potencializadas pela investigação e pela responsabilidade ética diante das questões políticas, sociais, culturais e econômicas (MOURA, 201 0, p.9). A reflexão sobre as dimensões ontológica e histórica do trabalho coloca os estudantes na condição de sujeitos autônomos e críticos. Para além do “aprender trabalhando” ou do “trabalhar aprendendo”, os mesmos são chamados a compreender, enquanto vivenciam e constroem a própria formação, que “é socialmente justo que todos trabalhem porque esse é um direito de todos os cidadãos” (MOURA, 201 0, p. 8). A pesquisa como princípio pedagógico trata-se, portanto, de um princípio dialeticamente relacionado à concepção de trabalho como princípio educativo. A sustentabilidade e o desenvolvimento socioeconômico-ambiental dos contextos em que se desenvolvem os cursos fazem parte da realidade a ser pesquisada e, possivelmente, transformada. Como visto, anteriormente, formar para a cidadania ou para o trabalho produtivo, organizar um currículo voltado para as humanidades ou para a ciência e tecnologia são dilemas no campo do Currículo desde a sua origem. Diante das concepções marxianas - onilateralidade, politecnia, trabalho como princípio educativo – não há lugar no currículo integrado para uma formação unilateral: exclusivamente acadêmica, ou voltada para o mercado de trabalho. Segundo Ramos (2005, p. 1 06) a indissociabilidade 382 entre educação e prática social, teoria e prática; educação profissional e básica, na perspectiva da interdisciplinaridade e da consideração da historicidade dos sujeitos coloca-se como um projeto que visa “superar o histórico conflito em torno do papel da escola”. Segundo a autora, o currículo almejado objetiva a integração dos conhecimentos gerais e específicos, sem que se percam os referenciais das ciências básicas. Os conceitos estudados podem ser “relacionados interdisciplinarmente, mas também no interior de cada disciplina”. Busca-se uma abordagem dos fenômenos que os considera na sua totalidade histórica e dialética. O trabalho como princípio educativo conclama para a centralidade das questões relativas aos processos de trabalho, contextualizadas historicamente. Busca-se situar os educandos de forma ampla e crítica diante dos objetos de estudo, o que perpassa os aspectos técnicos ou tecnológicos implicados. Para que se possa desenhar um currículo integrado, a autora defende que os professores envolvidos deveriam percorrer um movimento de: 1. Problematizar fenômenos – fatos e situações significativas e relevantes para compreendermos o mundo em que vivemos, bem como processos tecnológicos da área profissional para a qual se pretende formar -, como objetos de conhecimento, buscando compreendê-los em múltiplas perspectivas: tecnológica, econômica, histórica, ambiental, social, cultural etc. [...] Responder às questões elaboradas produzirá a necessidade de se recorrer a teorias e conceitos já formulados sobre o(s) objeto(s) estudado(s) e esses se constituirão em conteúdos de ensino. 2. Explicitar teorias e conceitos fundamentais para a compreensão do(s) objetos(s) estudados(s) nas múltiplas perspectivas em que foi problematizada e localizá-los nos respectivos campos da ciência (áreas do conhecimento, dis383 ciplinas científicas e/ou profissionais), identificando suas relações com outros conceitos do mesmo campo (disciplinaridade) e de campos distintos do saber (interdisciplinaridade).[...]. 3. Situar conceitos como conhecimentos de formação geral e específica, tendo como referência a base científica dos conceitos e sua apropriação tecnológica, social e cultural.[...]. 4. A partir dessa localização das múltiplas relações, organizar os componentes curriculares e as práticas pedagógicas, visando corresponder nas escolhas, nas relações e nas realizações, ao pressuposto da totalidade real como síntese de múltiplas determinações (RAMOS, 2005, p.1 22-1 23). Segundo a autora, faz-se necessário, portanto, que os professores: 1 ) levantem questões relevantes sobre o fenômeno e atentem para as teorias e conceitos aos quais foi necessário recorrer, de modo que os mesmos se constituam objetos de estudo junto aos educandos; 2) reflitam sobre as relações que tais conceitos e teorias têm com outros conhecimentos da própria disciplina da qual são oriundos, ou com conceitos e teorias advindos de outras áreas do conhecimento, a fim de identificar articulações disciplinares e interdisciplinares que podem ser estabelecidas com a participação dos educandos; 3) identifiquem se os conceitos implicados no fenômeno a ser estudado relacionam-se a outros conhecimentos da formação geral e específica e o que pode ser aprendido do ponto de vista da formação geral e da formação técnica e tecnológica, de forma integrada e significativa; 4) por fim, desenhem qual será o curriculum a ser percorrido: quais práticas pedagógicas serão propostas, se será organizado em forma de projeto, sequências de atividades, se o trabalho será disciplinar ou interdisciplinar, com quais objetivos específicos, que conteúdos serão privi384 legiados, etapas, duração, etc. Para Ramos (2005), no momento da prática pedagógica, a proposição de desafios, problemas e/ou projetos desencadeando ações resolutivas, pesquisa e elaboração de projetos de intervenção - de modo algum deve indicar uma proeminência da ação em detrimento da construção de conceitos. Trata-se de realizar propostas pedagógicas que propiciem aos educandos a compreensão dos fundamentos científicos e tecnológicos implicados nos diversos fenômenos que compõem a totalidade e, a partir de tal compreensão, saibam posicionar-se crítica e autonomamente diante dos mesmos por meio do movimento da práxis. Não se trata, portanto, do mero desenvolvimento de simulações de atividades profissionais, com vistas à preparação dos educandos para atender a demandas específicas de um determinado contexto do mundo do trabalho. Outro ponto que merece destaque ao se tratar do currículo do ensino médio integrado são os quatro eixos da base curricular, acima citados – trabalho, ciência, tecnologia e cultura. Uma questão significativa para a presente tese foi constatar que a trajetória de estudos e discussões sobre as características do currículo do ensino médio integrado conduziu ao reconhecimento de que a tecnologia deveria ser incorporada à base da proposta - originalmente balizada na tríade trabalho, ciência e cultura. Moura (201 0, p. 6), ao defender a incorporação da tecnologia à base da proposta, retoma o argumento de que o trabalho, mediação de primeira ordem entre os homens e a natureza, gera conhecimento que se torna tanto ciência, quanto tecnologia. O conhecimento torna-se ciência, “quando as relações constitutivas e estruturantes da realidade são ordenadas e retiradas do seu contexto original, de modo a produzir uma explicação rigorosamente sistematizada e intencionalmente expressa em conceitos.” (RAMOS, s/d apud 385 MOURA, 201 0). O conhecimento torna-se tecnologia quando se converte em força produtiva, como mediação entre ciência e produção, entre compreensão e intervenção no real (RAMOS, 2004, 2005 apud BRASIL/MEC/SETEC, 2007d, p. 44). Nesta perspectiva, Moura (201 0) defende que: se tanto os avanços da ciência desencadearam novas tecnologias, como as inovações tecnológicas exigiram que a ciência buscasse o aprofundamento de conceitos, a tecnologia não poderia ficar de fora da base da proposta. Fazendo jus à relação dialética existente entre tais elementos, o ensino médio integrado, inspirado na formação politécnica/educação tecnológica, haveria de ser organizado em torno dos quatro eixos: trabalho, ciência, cultura e tecnologia. A cultura vem, como eixo capaz de permitir a compreensão sobre como os processos de trabalho, ciência e tecnologia desencadeiam e se materializam em signos, valores, costumes e organizações sociais, “prática constituinte e constituída do/pelo tecido social, norma de comportamento dos indivíduos numa sociedade e como expressão da organização político-econômica desta sociedade, no que se refere às ideologias que cimentam o bloco social” (GRAMSCI, 1 991 apud ANPEd et al., 201 0). A partir da base da proposta curricular – trabalho, ciência, tecnologia e cultura - devem ser articuladas as quatro grandes áreas do conhecimento: Linguagens, Matemática, Ciência da Natureza e Ciências Humanas. A proposta não é diluir, nem excluir as especificidades dos componentes curriculares, mas fortalecer “as relações entre eles e a sua contextualização para apreensão e intervenção na realidade, requerendo planejamento e execução conjugados e cooperativos dos seus professores.” (BRASIL/CEB, art. 8º, parágrafo 2º, 2011 ). 386 Considerações finais Ao retomar as reflexões colocadas por Bobbitt em The Curriculum, em 1 91 8, marco no estabelecimento do Currículo como campo específico de estudos (SILVA, 2009), podemos identificar questões antigas e sempre novas, afinal, muitos dos questionamentos colocados são objeto de máxima atenção na proposta de currículo integrado presente no PROEJA: Quais os objetivos da educação escolarizada: formar o trabalhador especializado ou proporcionar uma educação geral, acadêmica à população? O que se deve ensinar: as habilidades básicas de escrever, ler, contar; as disciplinas acadêmicas humanísticas; as disciplinas científicas; os saberes profissionais do mundo ocupacional adulto? O que dever estar no centro do ensino: os saberes “objetivos” do conhecimento organizado ou as percepções e as experiências subjetivas das crianças e dos jovens? Em termos sociais, quais devem ser as finalidades da educação: ajustar as crianças e os jovens à sociedade tal como ela existe ou prepará-los para transformá-la; a preparação para a economia ou a preparação para a democracia? (SILVA, 2009, p. 22). A proposta do currículo integrado é clara ao se posicionar na perspectiva de preparar os trabalhadores para transformar a sociedade em que vivem por meio de uma formação cultural, científica, técnica, tecnológica de caráter amplo, de cunho crítico, capaz de ajudá-los a se situarem como seres políticos, o que “supõe a compreensão das relações sociais subjacentes a todos os fenômenos” (CIAVATTA, 2005, p. 85). Nesta perspectiva, o PROEJA se propõe a oportunizar aos educandos a possibilidade de integrar a compreensão teórica e prática dos fundamentos científicos das tecnologias do trabalho, o que se faz com vistas à transformação do status quo. 387 Referências AÇÃO EDUCATIVA. Tribunal de Contas da União conclui auditoria no Programa Alfabetização Solidária. Boletim Informação em rede . São Paulo: Ação Educativa, 1 9/05/2003. Disponível em: http://www.undime.org.br/htdocs/index.php?id=622 Acesso em: 08/1 0/2011. ALFASOL. ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA. Resultados. 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Estas observações foram parte dos requisitos da disciplina de Estágio Supervisionado de Ciências 1 , ofertada no 7º perfil do curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Campus de Araras/SP, cursada pelo primeiro autor e segunda autora deste trabalho e ministrada pelo terceiro autor. Neste artigo, são apresentadas análises de algumas observações e reflexões sobre a prática docente de uma das pro1 Licenciando em Ciências Biológicas – UFSCar campus Araras – jssjuliano@ yahoo.com.br 2 Licencianda em Ciências Biológicas – UFSCar campus Araras – ana.carolina234@ yahoo.com.br 3Docente da UFSCar – campus Araras – anselmojcneto@ gmail.com 395 fessoras de Ciências que ministra aulas a estudantes da modalidade de ensino destinada a pessoas adultas. O eixo condutor/objetivo para análise foi identificar a potencialidade da prática pedagógica em Ciências da Natureza, apontando para possibilidades de tratamento intencional dos conteúdos escolares desta disciplina com fundamento no multiculturalismo. Enquanto orientação metodológica de obtenção de dados, utilizou-se a descrição da observação consentida e registrada em diários construídos nas 30 horas de estágio, pautada em variáveis da prática pedagógica estabelecidas nos encontros presenciais na universidade (disciplina de estágio). Durante as observações, as variáveis observadas e analisadas foram: as interações verbais professor-aluno, o conteúdo ensinado, as habilidades de ensino do professor e o processo avaliativo. As análises foram conduzidas pela concepção do multiculturalismo na educação, evidenciando esta abordagem como potente para a prática educacional transformadora no ensino de Ciências da Natureza. Palavras-chave: Multiculturalismo, Educação de Pessoas Adultas, Ensino de Ciências da Natureza Introdução Este trabalho tem sua origem em observações realizadas em instituição educacional destinada ao ensino de pessoas jovens e adultas que intencionam retomar estudos para concluí-los e obter a certificação. Estas observações são parte dos requisitos da disciplina de Estágio Supervisionado de Ciências 1 , ofertada na segunda metade do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Campus de Araras/SP, cursada pelo primeiro autor e segunda autora deste trabalho, 396 ministrada pelo terceiro autor e que possibilita estágio nessa modalidade de ensino. A unidade escolar na qual a observação foi desenvolvida foi o CEEJA (Centro Estadual de Educação de Jovens e Adultos) “Professora Alda Marangoni França”, localizado na cidade de Americana – SP, bairro Santa Catarina4. A unidade atende alunos da cidade e região (como Sumaré, Nova Odessa e Santa Bárbara d’Oeste, por exemplo) que não cursaram ou não concluíram as etapas da educação básica (Ensino Fundamental ou Médio). A idade mínima para matrícula é de 1 8 anos, sendo que a instituição trabalha com o regime de presença flexível, com o centro funcionando constantemente nos três períodos (manhã, tarde e noite), incluindo horários de almoço e jantar, e atendimento individualizado, ou seja, o aluno não precisa cumprir uma carga horária, basta comparecer na unidade e passar por uma série de provas até concluir o curso. É válido ressaltar que o aluno pode estudar em sua residência e vir prestar as provas ou, ainda, estudar nas dependências do CEEJA, local em que pode tirar suas dúvidas junto ao professor, caracterizando-se como curso semi-presencial. Segundo a Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo, o CEEJA trata-se de uma instituição de ensino “com o objetivo de oferecer cursos de Ensino Fundamental e Ensino Médio na modalidade de Educação de Jovens e Adultos” (SECRETARIA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO, 201 3, p.7). São 20 unidades distribuídas nas seguintes cidades: Americana, Bauru, Bebedouro, Campinas (2), Guarujá, Marília, Piracicaba, Praia Grande, Presidente Prudente, Registro, Ribeirão Pires, Ribeirão Preto, Santos (2), São José dos Campos, São Paulo, Sorocaba, Taubaté e Votorantim 5. 4A unidade permitiu a inserção dos estagiários e a realização de observações mediante acordo assinado via documentação encaminhada pela universidade. 5 Pesquisa feito no sistema de busca do site da Secretaria Estadual de Educação: http://escola.edunet.sp.gov.br/Index_Escolas.asp 397 O CEEJA observado O CEEJA de Americana está localizado próximo à área central da cidade, mas recebe alunos de vários bairros do município e inclusive de cidades da região de Americana, como Santa Bárbara d’Oeste e Limeira entre outras. Nota-se um corpo discente bastante heterogêneo quanto à raça, gênero, classe social e idade, porém com faixa etária obrigatoriamente superior a 1 8 anos, conforme resolução da Secretaria de Educação, além de atender alunos com deficiência auditiva. Para tanto, a escola conta com intérpretes de Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) que auxiliam na comunicação entre os professores das disciplinas especificas e os alunos surdos. A escola conta também com rampas de acesso nos corredores, acessibilidade assegurada a pessoas que fazem uso, por exemplo, de cadeira de rodas. Nas dependências da unidade existe uma biblioteca que durante o período de estágio de observação passava por readequação e não se encontrava à disposição dos alunos. A escola oferece merenda aos estudantes e aos professores em pelo menos dois horários, almoço e jantar. Todos os professores participam semanalmente de HTPC. O controle de frequência de cada aluno é feito em uma ficha chamada “passaporte”. Também constam no passaporte as notas de cada avaliação parcial e final em cada uma das matérias, tanto as já cursadas quanto a disciplina em andamento e as posteriores. É importante ressaltar que a frequência não é levada em consideração para certificação do aluno. Em sala de aula, todo o material necessário para a realização das provas fica à disposição dos alunos, como lápis, caneta, borracha e calculadora. A sala de Ciências Ensino Fundamental funciona em conjunto com as matérias de Biologia, Química e Física - Ensino Médio, porém o aten398 dimento aos alunos é realizado em mesas diferentes dispostas separadamente. Não há salas específicas para cada ano do Ensino Fundamental ou Médio, sendo que as avaliações destas disciplinas se dão em uma sala bastante ampla. O material didático utilizado para as avaliações parciais e finais são distribuídos no momento em que o aluno consolida sua matrícula e consistem em livros próprios para o Ensino de Jovens e Adultos. Todo o material, como as avaliações, é separado por série e os professores se mostram bastante disciplinados e cientes da forma de organização. Além do material básico que é disponibilizado, a sala ainda conta com uma série de cartazes de anatomia humana que auxiliam os alunos na realização das questões referentes ao assunto nas avaliações. Podem-se observar também peças conservadas em álcool como pequenos animais, nematódeos, poríferos e algas, que ficam à disposição para eventuais consultas ou mesmo por curiosidade por parte dos alunos. Ainda há para a observação um insetário. Todas as peças ficam dispostas em prateleiras de aço de forma que qualquer aluno tenha acesso. O conteúdo ensinado nas aulas de Ciências está relacionado ao material didático oferecido por meio do Programa Nacional do Livro Didático para Educação de Jovens e Adultos, distribuído pelo Ministério da Educação6. As provas são elaboradas pelas professoras de ciências (são duas que elaboraram os testes utilizados) e tomam por base a sequência didática destes livros. O estudante de Ciências, para concluir a disciplina, passa por 1 3 avaliações, mais a 6EJA 6º Ano – Volume 1 – 2. ed. – São Paulo – IBEP, 2009. - (Coleção Tempo de Aprender). Vários autores; EJA 7º Ano – Volume 2 – 2. ed. – São Paulo – IBEP, 2009. - (Coleção Tempo de Aprender). Vários autores; EJA 8º Ano – Volume 3 – 2. ed. – São Paulo – IBEP, 2009. - (Coleção Tempo de Aprender). Vários autores; EJA 9º Ano – Volume 4 – 2. ed. – São Paulo – IBEP, 2009. - (Coleção Tempo de Aprender). Vários autores. 399 avaliação final. O 6º ano conta com três avaliações, o 7º ano com quatro provas (com consulta), o 8º ano com três e o 9º ano com mais três avaliações, mais a prova final. Cada estudante pode fazer até três avaliações por dia. Considerando a estrutura educativa descrita anteriormente, bem como seu funcionamento, especificamente (1 ) heterogeneidade de estudantes, (2) o período contínuo de atendimento a eles e elas, (3) a não obrigatoriedade de frequência no espaço físico do centro – curso semi-presencial, (4) atendimento de estudantes com necessidades especiais, (5) materiais didáticos direcionados ao público a ser atendido e (6) o atendimento individualizado, compreendemos que as condições objetivas de vida da/o estudante é o foco da prática educativa e a/o docente que se proponha realizar ações de ensino nesta perspectiva de alguma maneira aderiram a uma posição política transformadora da realidade. A diversidade está presente, condições estão oferecidas. Neste sentido, parece ser pertinente considerar elementos teóricos de concepções multiculturalistas na educação para compreender as possibilidades de exercício da prática pedagógica assumida na instituição. Prática pedagógica multiculturalista Em busca de proposições teóricas consistentes sobre o multiculturalismo, encontraram-se algumas referências que sinalizam possibilidades de encontro com o âmbito da educação e os processos de ensino e aprendizagem. Destacam-se as seguintes produções: Freire (2001 ), Canen e Oliveira (2002), Macedo (2004), Candau (2008), Mello, Braga e Gabassa (201 2) e Silva e Brandin (201 3). Mesmo que apresentando diferentes (mas não antagônicas) perspectivas teóricas, ou diferindo sobre a centralidade de abordar o 400 tema na produção citada, são produções que apontam para a consideração do multiculturalismo na educação como necessidade de posicionamento político intrínseco à prática pedagógica, uma vez que entendida como prática social e histórica, portanto cultural. Candau (2008) faz o seguinte alerta: Convém ter sempre presente que o multiculturalismo não nasceu nas universidades e no âmbito acadêmico em geral. São as lutas dos grupos sociais discriminados e excluídos, dos movimentos sociais, especialmente os referidos às questões étnicas e, entre eles, de modo particularmente significativo entre nós, os referidos às identidades negras, que constituem o lócus de produção do multiculturalismo. Sua penetração na universidade se deu num segundo momento e, até hoje, atrevo-me a afirmar, sua presença é frágil e objeto de muitas discussões, talvez exatamente por seu caráter profundamente marcado pela intrínseca relação com a dinâmica dos movimentos sociais (p.1 8-1 9). Na mesma direção, Silva e Brandim (201 3) apresentam que o multiculturalismo pode ser considerado uma “política de reconhecimento e representação da diversidade cultural, não podendo ser concebido dissociado dos contextos das lutas dos grupos culturalmente oprimidos” (p.60). As autoras destacam ainda que o movimento propõe uma reflexão sobre conceitos como cidadania e democracia, questiona os conhecimentos produzidos e transmitidos pelas instituições escolares e busca construir espaços para que as mais diversas vozes se manifestem. Desta forma, considerando a prática pedagógica 401 multicultural crítica proposta por Canen e Oliveira (2002), conceituada a partir de um estudo de caso sobre a prática pedagógica de uma professora de Ciências da Natureza comprometida com ações multiculturais, esta conceituação conta com uma dupla dimensão. A primeira é a necessidade de se promover a equidade educacional, ou seja, fazer com que a cultura dos alunos não seja descartada, mas sim trabalhada de forma a superar o fracasso escolar. A outra dimensão é a quebra de preconceito com o ‘diferente’, estimulando uma visão de respeito e valorização de uma cultura plural, não tratando da multiculturalidade como folclórica. Ao se considerar a cultura vivenciada pelos alunos como o quadro de referências (valores, crenças, conhecimentos, linguagem, hábitos e costumes) utilizado pelo indivíduo para interpretar a estrutura social num mesmo patamar dos conhecimentos a serem aprendidos, sem hierarquias, mas em relação, e intencionalmente buscar quebrar o preconceito do ‘diferente’, cria-se uma alternativa politicamente fundamentada de demonstrar que cada um é único em seus marcadores identitários e, ao mesmo tempo, não existência de alguém melhor que o outro: cada pessoa dentro de sua cultura, fruto de um processo histórico, social e com as mais diversas influências. E, além disso, demonstra que as relações são um processo dialético (com contradições), em potencial de troca, na qual cada pessoa colabora com o outro numa via de mão dupla. De acordo com Aranha (2006), a cultura pode ser observada sob dois aspectos: o antropológico, pelo qual somos seres culturais; e o aspecto que se refere à produção intelectual, como literatura, cinema, pintura e outras manifestações intelectuais. Neste estudo, focamos o aspecto antropológico, pelo qual “cultura é tudo o que o ser humano produz para construir sua existência e atender a sua neces402 sidade e desejos” (ARANHA, 2006, p.58). Desta forma, pode-se salientar que: A cultura exprime as várias formas pelas quais se estabelece uma relação entre os indivíduos, entre os grupos e destes com a natureza: cria uma língua, a moral, a política, a estética, e organizam leis e instituições, como se alimentam, casam e têm filhos, como concebem o sagrado e se comportam diante da morte (ARANHA, 2006, p.58). Por estabelecer uma relação entre os indivíduos, os elementos da cultura são potencialmente interessantes de serem levados em consideração nas práticas educativas. Estas práticas, para que sejam enquadradas como multiculturais críticas, os conhecimentos a serem ensinados devem atender a três categorias organizadas por Canen & Oliveira (2002): (1 ) crítica cultural; (2) hibridização e (3) ancoragem social dos discursos. Por crítica cultural, entende-se a possibilidade de analisar identidades étnicas, criticar mitos sociais que os subjugam, gerar conhecimento baseado na pluralidade de verdades e construir solidariedade em torno dos princípio da liberdade, da prática social e da democracia ativista (CANEN, OLIVEIRA, 2002, p.63). Por hibridização, pode-se entender um mecanismo que cruza barreiras culturais, de forma a hibridizar variados e diferentes discursos. Desta forma, os discursos são reinterpretados sob uma ótica plural e provisória, uma vez que “a linguagem híbrida procura superar os congelamentos identitários e as metáforas preconceituosas” (CANEN, OLI403 VEIRA, 2002, p.64). Por sua vez, a terceira categoria é a ancoragem social dos discursos, que conecta os mais diferentes aspectos históricos, políticos, sociológicos, culturais e outros numa roupagem social. Estas conexões permitem observar criticamente ideias relativas “a conhecimento, educação, formação docente [...] analisando as presenças e ausências nesses discursos” (CANEN, OLIVEIRA, 2002, p.64). Ao analisar essas presenças e ausências nos discursos, pode-se verificar que há por trás deles toda uma dinâmica social, interesses, bem como concepções históricas a eles (discursos) relacionados. A questão é que a crítica cultural, a hibridização e ancoragem social dos discursos tornam-se uma lente para interpretar de que forma as ações, discursos e práticas docentes podem ser potencializadas como multiculturais, privilegiando as mais variadas formas de cultura, rompendo com preconceitos e observando o aluno como diferente, uma vez que não existe cultura superior – todas se complementam numa rede dialética de trocas de experiências. Além disso, as três categorias caminham articuladamente, uma vez que cada uma está relacionada com a outra: a crítica cultural favorece a hibridização de temas, o que possibilita a ancoragem social do discurso (CANEN, OLIVEIRA, 2002). Ao defender enquanto formação de professores a aprendizagem das potencialidades de uma prática docente como multicultural, ou seja, que necessariamente atenda às três categorias (crítica cultural, a hibridização e ancoragem social dos discursos), pode-se interpretar o exercício da docência realizado por “trabalhador cultural”, não apenas um “conhecedor cultural”. Ou seja, o/a professor/a se torna-se agente cultural, uma ponte que une as diferenças culturais e suas fronteiras, presentes nos discursos e práticas. Ao se tornar um “trabalhador cultural”, o professor passa a reco404 nhecer e considerar em suas preparações e atuações de ensino os marcadores identitários, características que dão identidades a grupos, como sotaques, lugares de origem, etnias diversas, bem como visualizam um assunto com sentido plural e não mais nivelada a um único plano: o/a professor/a “trabalhador cultural” amplia a visão, ao invés de afunilá-la num único conceito. Exemplo disso é o que apresentam Canen e Oliveira (2002), uma professora de Ciências que ao trabalhar conceitos de força física (aplicados à natureza), discute sobre violência na sociedade na qual os alunos estão inseridos. Desta forma, ao abordar um conteúdo presente no plano de ensino, ele se abre num leque de possibilidades e não fica restrito a uma única visão – além do que adquire uma roupagem social, relacionado ao que o aluno vive. Objetivos Este estudo introdutório e baseado apenas em observações dos investigadores tem como foco a prática docente e suas possíveis relações com uma prática multicultural crítica, e declaradamente sem pretender avaliar e/ou qualificar a prática docente das professoras, com o objetivo de identificar a potencialidade da prática pedagógica em Ciências da Natureza realizada em um contexto de EJA em curso semi-presencial e atendimento individualizado, apontando para possibilidades de tratamento intencional dos conteúdos escolares desta disciplina com fundamento no multiculturalismo. Procedimentos metodológicos A partir da proposta de observação em estágios supervisionados de Carvalho (201 2), definiu-se coletivamente 405 em aula da universidade as variáveis a serem observadas no decorrer do estágio, que perfizeram 30 horas. As variáveis foram: as interações verbais professor-aluno, o conteúdo ensinado, as habilidades de ensino do professor e o processo avaliativo. Para este trabalho, a análise de conteúdo restringiu-se aos dados de observação obtidos nas quatro variáveis que evidenciassem conteúdos programáticos que foram, ou potencialmente poderiam ser, trabalhados enquanto prática multicultural naquele contexto (curso semipresencial e atendimento individualizado). Resultados As situações de aprendizagem, segundo Carvalho (2002), podem ser enquadradas como frutos de uma interação “entre professor, aluno, conteúdo e ambiente” (CARVALHO, 2002, p. 1 5). E esta interação, segundo a autora “é, sem dúvida, a mais forte e a mais frequente e a que vai determinar a qualidade de outras relações” (CARVALHO, 2002, p. 1 5). Como o estágio de observação focou uma unidade com sistema semi-presencial em que o aluno vai ao local para tirar dúvidas com o professor e prestar avaliações para avançar de série/ano, os relatos sobre as interações verbais entre professor-aluno restringiram-se ao momento em que o aluno direcionava-se ao professor, tanto para tirar dúvidas, quanto para ter suas avaliações corrigidas. Em um dos momentos de observação, registrou-se a seguinte situação sobre o estudo de microbiologia e programa de saúde: Prova 12 – referente ao 9º ano O aluno entregou a prova com a seguinte questão não respondida: “A descoberta da penicilina constitui um 406 marco na história da medicina e salvou muitas vidas na Segunda Guerra Mundial. Ela é uma substância produzida por fungos. Qual a utilidade da penicilina?” A professora corrigiu as demais respostas e, ao voltar à questão não respondida, perguntou para ele por que não a respondeu. Aluno: – Não consegui esta questão. Professora: – Você já tomou penicilina? Aluno: – Não me lembro. Professora: – A penicilina é um antibiótico. Existem milhares de bactérias em tudo que é canto. Quando você se corta, pode infeccionar. A penicilina é um antibiótico que ajuda a eliminar as bactérias. Você quando ficou no hospital você tomou algo assim? Aluno: – Quanto eu estava lá no hospital, de meia em meia hora uma enfermeira me aplicava uma injeção. Professora: – Então isso pode ser um antibiótico. Tem gente que é alérgica à penicilina. Você não deve ser, pois deve ter tomado e nada aconteceu. Tem um professor que tomou penicilina e morreu. Ele dava aula de biologia. Ele era alérgico e mesmo assim receitaram para ele. A professora também destacou que a penicilina só elimina bactérias. “Para infecção viral, ou seja, para vírus, ela não serve”7 7Observação feita no dia 9 de maio de 201 3. 407 Neste fragmento de observação, percebe-se no diálogo estabelecido entre professora e estudante que ela busca elementos vivenciados pelo aluno – se ele já havia tomado penicilina e se já tinha ficado internado em hospital. Além de buscar estes elementos, ela explica sobre a importância da penicilina, qual a serventia, bem como o risco de alguém ser alérgica a este medicamento. Mas a questão tratava de condições sócio-históricas não consideradas na exigência da pergunta em si, o que pode gerar a dificuldade do estudante em interpretar o que de fato se espera enquanto resposta. Esta situação revela um conflito comum presente em questões avaliativas que introduzem um assunto a ser perguntado, com informações que não serão solicitadas para comporem a resposta esperada. Em uma condição de curso semi-presencial, no qual estudantes vão, na maioria das vezes, apenas para realização das provas, o cuidado com a relevância das informações presentes na construção das questões deve ser redobrado. Ao mesmo tempo, a possibilidade que a introdução da questão apresenta para a ancoragem social dos discursos indica que o estudo da penicilina tem contexto, pode ser tratado enquanto crítica social, considerando a possibilidade de desnaturalizar os acontecimentos discriminatórios desencadeadores da Segunda Guerra Mundial de maneira a hibridizar discursos, no caso conhecimentos da Biologia, História, Geografia e Filosofia. A intenção da professora em situar o aluno por meio da utilidade imediata e trazer a sua vivência não configura uma prática multicultural, mas revela a preocupação em fazê-lo entender qual a resposta esperada. Outro caso de interação professor-aluno, em que são utilizados elementos da vivência do aluno, e portanto verifica-se a preocupação em fazer compreender, pode ser ob408 servado no fragmento de observação a seguir: Prova 4 – referente ao 7º ano A aluna não respondeu a seguinte pergunta: 6- A água contaminada transmite organismos causadores de doença. Para evitar essas doenças, antes de ser utilizada, a água deve passar por um tratamento. O que deve ser feito para purificar a água nos lugares que não há saneamento básico (água tratada e esgoto encanado)? Professora: – Você não entendeu a pergunta? O que deve ser feito para purificar a água? Aluna: – Põe o produto? Professora: – Qual o nome? Aluna: – Não sei. Professora: – Mas o que você usa? Aluna: – Filtro. Professora: – Então põe filtro. Se não tem filtro, o que você faz? Aluna: – Eu não sei. Professora: – Você ferve. É simples este método. Aluna tinha escrito “cava, se poço” (sic) depois escreveu “filtro, pote fever” (sic). 8 Com base nos questionamentos feitos à aluna, a professora verificou de que forma a aluna purificava a água que ela bebia. Desta forma, buscou-se uma relação de proximidade com a suposta realidade vivida pela aluna, que uti8 Observação feita no dia 1 6 de maio de 201 3. 409 liza filtro para purificar a água que ela bebe, e com certeza nunca ferveu água para sua purificação. Mas, há um desencontro na comunicação entre professora e aluna neste caso. Quando identificamos que a resposta da aluna era “cava-se poço”, há uma reflexão interessante que pode ser inferida sobre o que a aluna pensou. E, neste sentido, parece que a aluna, sim, faz, mesmo que não fique explícita, uma crítica cultural desnaturalizando uma informação contida na questão. Em condições de falta de saneamento básico, deve ser questionada a não existência deste direito a todos e todas. A tentativa de professores e professoras em situar os estudantes utilizando sua ‘suposta’ vivência pode desencadear a exposição de pré-concepções (e inclusive preconceitos) distorcidas da realidade objetiva vivida pelos e pelas estudantes. Estas considerações são elementos que ajudam fortalecer as intenções de se aprofundar no estudo de práticas pedagógicas multiculturais no ensino de Ciências da Natureza. Há, certamente, possibilidades de se trabalhar os assuntos de saneamento básico e purificação da água por meio de práticas pedagógicas multiculturais, considerando as três categorias propostas por Canen & Oliveira (2002), envolvendo crítica cultural com hibridização de discursos da Biologia, Química, História e Sociologia e tendo como ancoragem social as condições desiguais de distribuição de água, de tratamento deste recurso e de disponibilidade a longo prazo. Nos dois exemplos citados – sobre penicilina e sobre purificação de água –, a professora busca no repertório de conhecimentos dela e, supostamente por ela, dos alunos informações relacionadas à matéria. Como os e as estudantes tiveram acesso antes da prova a um texto que dá base às perguntas da prova, a professora explica o que o aluno não entendeu, pontua o que ele errou e deixa aberto para per41 0 guntas. O CEEJA também atende alunos com deficiência auditiva. São cerca de trinta alunos que, além do comparecimento frequencial para realização das avaliações, contam também com outras atividades desenvolvidas pelos intérpretes e amparadas pela estrutura da escola em horários alternativos aos das avaliações. Os alunos surdos tem a possibilidade inclusive de levar ao CEEJA familiares durante tais práticas. Foi observada uma destas atividades. Os intérpretes propuseram um filme para todos os alunos com deficiência auditiva matriculados na escola. Os estudantes foram acomodados em uma sala com recursos audiovisuais específicos para seu atendimento. Ao mesmo tempo, seria interessante que estivessem presentes também estudantes ouvintes para solidarizarem-se com o que Bruner (1 990) denomina de condição constritiva que a biologia impõe, mas que a cultura ultrapassa com suas soluções protéticas. Um casal de estudantes com deficiência auditiva que estavam presentes levou suas duas filhas ouvintes para participar da sessão de cinema. Segundo relatos dos professores, a surdez de ambos foi causada por exposição ao vírus da rubéola durante a gestação. Considerando o conteúdo de reprodução e de microbiologia (estudos sobre vírus, bactérias e fungos), esta informação sugere excelente contexto para os e as professoras colocarem-se como “trabalhadores culturais” Fez-se esta consideração para encerrar a análise das observações e ressaltar a condição de necessidades especiais e a contribuição com compromisso social que este centro educativo oferece, a qual revela potencial multicultural a ser desenvolvido nas práticas de ensino de Ciências. 411 Considerações finais É possível identificar que a prática docente está relacionada diretamente ao modelo adotado pela unidade de ensino, que neste caso é o semi-presencial, no qual o material a ser estudado e as provas são os instrumentos que comunicam com os e as estudantes, ficando em segundo plano a interação verbal direta entre docentes e estudantes. Embora seja um modelo interessante e que valoriza as condições objetivas de vida dos estudantes que buscam a modalidade de EJA, uma escola de educação inclusiva em que o aluno estuda sozinho, com um material de apoio e tem no professor uma possibilidade de referência para eventualmente tirar dúvidas, é importante lembrar que, numa ótica de prática educacional multiculturalista, não foi possível observar fielmente as categorias de hibridização, crítica cultural e ancoragem social dos discursos, não apenas pela possibilidade de os e as professoras não terem conhecimento desta abordagem de ensino, mas principalmente pela pouca interação possibilitada pela estrutura da proposta da unidade de ensino. Mello, Braga e Gabassa (201 2) afirmam que em Comunidades de Aprendizagem 9 a diversificação e a intensificação nas interações entre pessoas potencializam e aceleram a aprendizagem. Pessoas de diferentes idades, de ambos os gêneros, com diferentes histórias de vida e experiências de seus corpos no mundo quando juntas aumentam muito a chance de todas e todos aprenderem. Outra consideração que deve ser apontada é que a 9Proposta educativa que estabelece a transformação da escola em comunidade de aprendizagem, onde estudantes, professores, funcionários, gestores escolares, familiares e demais integrantes da comunidade de entorno participam cotidianamente da vida da escola, orientados pelos princípios da Aprendizagem Dialógica, com o objetivo de que todas e todos estudantes tenham máxima aprendizagem, de qualidade e em relações mais respeitosas. 41 2 vivência dos estudantes ‘suposta’ pelos professores e uma prática pedagógica multicultural não são sinônimos. E esta constatação é feita por quem vem se dedicando ao estudo de intersecção multiculturalismo e educação e que, de uma maneira introdutória, foi evidenciado neste estudo. Apesar de a abordagem multicultural não ter sido produzida na universidade, segundo Candau (2008), este conhecimento passou a ser estudado e elaborado também na academia e acredita-se que esta contribuição para a formação docente deva chegar ao conhecimento destes agentes educativos ou trabalhadores culturais. Pode-se afirmar que o conteúdo programático pertencente a Programas de Saúde (microbiologia e parasitologia) tratado neste trabalho permite tratamento e potencial multicultural para os processos de ensino e de aprendizagem que intencionem redimensionar os conhecimentos a serem ensinados. Parece fazer sentido estudar os diferentes conhecimentos produzidos historicamente na área de Ensino de Ciências da Natureza e contextualizá-los teleologicamente. Num sistema em que o aluno vai à escola para fazer provas e não participar de debates para construir seu conhecimento, fica comprometida uma intenção de ação-reflexão multicultural, a qual acredita-se que possa ser desconhecida dos agentes escolares. Cabe aqui, então, uma pergunta: De que maneira a formação continuada de professores, e mesmo a formação inicial, pode ser desenvolvida para potencializar práticas multiculturais, seja no Ensino Básico, seja em condições de cursos semi-presenciais? Referências ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da educação . 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Moderna, 2006. 41 3 BRUNER, Jerome. Actos de Significado – para uma psicologia cultural. Lisboa: Edições 70, 1 990. CANDAU, Vera Maria. Multiculturalismo e educação: desafios para a prática pedagógica. In: MOREIRA, Antônio Flávio & CANDAU, Vera Maria (orgs). Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2008. CANEN, Ana & OLIVEIRA, Angela de (2002). 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Disponí41 4 vel em <http://www.ufpi.br/subsiteFiles/parnaiba/arquivos/files/rd-ed1 ano1-artigo4_mariasilva.PDF>. Acesso em 1 5 de junho de 201 3. 41 5 41 6 artigo Educação de Jovens e Adultos e Economia Solidária: uma aproximação necessária Jussara Florencio1 Kelci Anne Pereira2 Paulo Eduardo Gomes Bento3 Resumo O artigo tem por objetivo conhecer e analisar a relação entre a escolaridade dos(as) trabalhadores(as) e suas práticas de autogestão na Economia Solidária (ES), na perspectiva da Educação de Jovens e Adultos (EJA), pensada à luz do conceito de Educação ao Longo da Vida. Para tanto, a metodologia utilizada é a pesquisa bibliográfica, com foco na recente literatura brasileira sobre economia solidária e sobre EJA. Nesse sentido, o trabalho destaca como os autores definem a ES, seus princípios e fundamentos, com ênfase no conceito de autogestão, analisa a importância da EJA na formação em ES como possibilidade para o êxito 1 Especialista em Educação de Jovens e Adultos pela UFSCar. Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura Municipal de São Carlos. Email: jussaraflorencio7@ gmail.com 2 Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Educação da USP. Email: kelcipereira@ usp.br 3Professor Departamento de Engenharia de Produção – UFSCar. Membro do Niase UFSCar. Email: paulobento@ dep.ufscar.br 41 7 dos empreendimentos econômicos solidários, mostra que as práticas pedagógicas da ES evidenciam um novo vínculo entre educação e trabalho, favorecendo uma educação mais humana e comprometida com um projeto democrático de sociedade. Nas considerações finais, apresentam-se contribuições às políticas públicas, ponderando as necessidades e desafios da formação permanente de jovens e adultos trabalhadores. Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos, Economia Solidária, Políticas Públicas. Introdução O marco legal da Educação de Jovens e Adultos (EJA), no Brasil, e a sansão desta como política pública se firma a partir da Constituição Federal do Brasil (BRASIL, 1 988), quando se consagrou a educação como direito de todos(as) os(as) brasileiros(as), inclusive dos jovens e adultos que não estudaram na idade própria4. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1 996) reconheceu as especificidades da educação para esse público, instaurando a EJA como uma modalidade educativa. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a EJA (CNE/CEB 11 /2000) demonstraram que EJA representa uma dívida social do Estado com a educação das classes populares, que deve ser corrigida mediante os princípios de reparação, equalização e qualificação. As diretrizes apontam que a EJA corresponde à escolarização de jovens e adultos, mas abarcam também os diferentes processos formativos requeridos para o desempenho da cidadania ativa e da fruição cultural no atual contexto. Esta perspectiva está reafirmada pela Conferência 4Art. 41 8 208, I. Internacional de Educação de Adultos (CONFINTEA, 1 999), da qual o Brasil é membro, que defende o alargamento da concepção de EJA por meio do conceito de Educação ao Longo da Vida (ELV). Ele compreende os variados processos educativos que acontecem em espaços (não) escolares, favorecendo o desenvolvimento das capacidades políticas do(a) cidadão(ã) e o domínio de conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade, de modo a elevar a proteção e a participação social de todas as pessoas na sociedade da informação5. No entanto, a ausência ou a descontinuidade das políticas de EJA e sua inadequação diante das demandas dos (estudantes) jovens e adultos – que são, antes de mais nada, trabalhadores - revelam que o referido direito tem sido violado na prática. Estudos (DI PIERRO, 2005, HADDAD, 2009) mostram que, apesar de alguns avanços, as políticas de EJA seguem a reproduzir modelos de educação que negam o público da EJA como composto por sujeitos de direitos, aprendizagem e conhecimento. Isolando a democracia educativa da democracia social mais ampla (gênero, classe, raça, etc.) 6, o Estado não provê o direito à EJA enquanto nem escolarização e nem acepção da educação ao longo da vida. Para Kruppa (2005), este cenário atual faz parte de uma continuidade histórica. Por longos anos, a EJA aconteceu de forma aligeirada, por meio de campanhas rápidas de alfabetização, partindo-se de pré-conceitos contra o(a) anal- 5O conceito de sociedade da informação (SI) surge no final do Século XX. Esse tipo de sociedade encontra-se em processo de formação e expansão, no qual as novas tecnologias são as principais responsáveis. Uma condição para o avanço da SI é a possibilidade de todos poderem aceder às tecnologias de informação e comunicação (POLIZELLI e OZAKI, 2007). 6De acordo com a Constituição Federal de 1 988, os direitos fundamentais toda pessoa humana deve ter a sua dignidade respeitada e a sua integridade protegida, independentemente da origem, raça, etnia, gênero, idade, condição econômica e social, credo religioso ou convicção política. 41 9 fabeto(a), visto como alguém que não tinha cultura, a quem faltava conhecimento (GALVÃO e DI PIERRO, 2007). A dicotomia que separou as ofertas de educação propedêutica e acadêmica das ofertas de formação profissional também é uma marca da EJA, que se reproduz como âmbito de formação de mão de obra (KRUPPA, 2005). A despeito do legado de Paulo Freire e dos movimentos de cultura e educação popular da década de 1 960 (obstruídos com o golpe militar de 1 964 e perseguidos a partir de 1 968), que afirmavam a EJA como prática de liberdade, as políticas de EJA instauradas no período de redemocratização do país não situaram-na em posição marginal, diante do conjunto das políticas educativas. No governo de Fernando Henrique Cardoso, sob os ditames do neoliberalismo, a EJA foi vetada dos financiamentos da educação e o Estado delegou a tarefa de alfabetização dos jovens e adultos à sociedade civil. O governo Lula (2003 - 201 0) voltou a pautar a EJA como direito, incluindo-a no financiamento da educação, bem como em outros programas de alfabetização e de permanência na escola7, mas, como mostram os dados do INEP 8 e as análises acadêmicas recentes9, o caráter supletivo e aligeirado, que separa formação profissional e geral 1 0, continua se reproduzindo nas práticas. O 7Programa Brasil Alfabetizado; Proeja (educação acadêmica integrada à profissional); normatização e financiamento da educação em prisões; inserção da EJA nos programas escolares de transporte e alimentação, bem como no programa do livro didático; realização do Certific (certificação profissional); programas de formação continuada de professores(as) em EJA e em EJA e ES (com produção de material didático). 8 Ver dados de matrículas na EJA em www.inep.gov.br (queda nas matrículas). 9 Ver discussões do fórum EJA, em www.forumeja.org.br, ou discussões do GT 1 8 (EJA) da Anped, em www.anped.org.br. 1 0Aqui, faz-se referência direta ao Pronatec, que além da mencionada separação, cria uma espécie de privatização da educação profissional, repassando diretamente recursos públicos ao Sistema S para executá-la, não de forma integrada, mas simultânea à formação geral. 420 trabalhador(a) e o trabalho, não balizam a EJA como obrigação do Estado. Excluídos do conjunto dos direitos sociais, com destaque ao direito educativo e ao direito ao trabalho digno, parte destes(as) trabalhadores(as) buscam na chamada economia solidária (ES) 11 formas de sobrevivência. A ES se realiza por meio de empreendimentos cooperativos ou associativos, de produção, consumo, troca, distribuição e crédito, e inspira-se em valores culturais que colocam o ser humano como sujeito e finalidade da atividade econômica. Trata-se, de uma economia não capitalista, apesar de se desenvolver no meio capitalista, centrada na autogestão, porque os(as) trabalhadores(as) detém o controle no uso e distribuição dos frutos dos meios de produção coletivos. Para além disso, a autogestão produtiva envolve a cooperação, a distribuição justa do resultado, e a gestão democrática de seus associados. (SINGER, 2005; GAIGER, 1 999; NETO, 2005), No Brasil, a ES 1 2 ressurge no último quartel do século XX, como resposta dos(as) trabalhadores(as) às novas formas de exclusão no mundo do trabalho. A mudança dos padrões mundiais de acumulação, fruto dos avanços nas tecnologias de comunicação e informação, transformaram o modelo tradicional de subordinação do trabalho ao capital. O 11 Conforme deliberação da I Conferência Nacional de Economia Solidária, a ES é caracterizada pelo conjunto de atividades econômicas “de produção, comercialização, finanças e consumo que privilegia a autogestão, a cooperação, o desenvolvimento comunitário e humano, a justiça social, a igualdade de gênero, raça, etnia, acesso igualitário à informação, ao conhecimento e à segurança alimentar, preservação dos recursos naturais pelo manejo sustentável e responsabilidade com as gerações, presente e futura, construindo uma nova forma de inclusão social com a participação de todos” (I CONAES, 2006, p. 1 ). 1 2 As primeiras cooperativas surgem na Inglaterra, no século XIX, sendo a Cooperativa de Rochdale a que obteve maior destaque e estabeleceu-se como uma referência por seus princípios e regras que lhe conferiu uma identidade cooperativa empregada por parte das experiências cooperativas recentes (SINGER, 2002). 421 aumento da informalidade e a precarização das relações formais se firmam como tendência de flexibilização e desemprego, levando o(a) trabalhador(a) a se sujeitar a ocupação que violam seus direitos, para garantir sua sobrevivência (SINGER, 2005). Os(as) trabalhadores(as), com vistas a superar e libertarem-se dessas situações, se organizam em experiências coletivas de ES. Para apoiar e fomentar essas experiências surgem as entidades de apoio e fomento, e, para promover a gestão de políticas públicas que resultam da pressão social, os gestores públicos. Mesmo com a atuação desses mediadores (gestores e fomentadores) é notável, empiricamente, que o déficit educacional sofrido pelos(as) trabalhadores(s) obstrui sua capacidade de autogestão. A falta de referenciais e instrumentais escolares e profissionais dificulta a tomada de decisões, o planejamento, rodadas de negociação mercantil, etc. O objetivo geral deste trabalho é identificar como essa relação entre a escolaridade dos(as) trabalhadores(as) e suas práticas de autogestão na ES são abordadas e problematizadas por autores(as) brasileiros(as). Metodologia Para o objetivo citado, a metodologia escolhida foi a revisão bibliográfica. Conforme Mioto & Lima (2007), para a construção do conhecimento, o(a) pesquisador(a) deve ter uma atitude de permanente busca e confronto com a realidade de maneira a colaborar para o desenvolvimento da ciência, sendo que a divulgação dos resultados das pesquisas servem para serem debatidas, refutadas, (re)elaboradas e possam assim constituir um diálogo constante na busca de novos conhecimentos. À luz desse referencial metodológico, para tratar da 422 literatura brasileira recente sobre os temas envolvidos neste artigo - educação de jovens e adultos, economia solidária, políticas públicas -, foi realizado um breve levantamento de artigos no período compreendido entre 1 997 a 201 0, nos sítios da Revista Brasileira de Educação, da Associação Nacional de Pesquisa em Educação, dos Cadernos de Pesquisa, da Revista Educação e Sociedade e da Capes. Paralelamente, foi realizada uma pesquisa nos documentos finais e nas resoluções das conferências e plenárias nacionais sobre Economia Solidária, em sítios como o Fórum Brasileiro de Economia Solidária. Concepções de Economia Solidária entre autores(as) brasileiros(as) A ES abarca muitas práticas econômicas e o conceito está em disputa, pois além dos autores(as) realizarem as interpretações conforme seus referenciais teóricos, vivências e áreas de conhecimento distintas, embora interconectadas, a ES está sendo considerada e executada em muitos lugares, como política de Estado ou como programa de governo. Alguns a denominam como economia solidária, economia social, socioeconomia solidária, economia popular, entre outras. Apesar da diversidade conceitual, que nos indica a falta de consenso teórico, os(as) autores(as) coincidem ao entender que, mesmo em diferentes contextos, estes têm em comum o fato de orientarem-se sob os princípios da solidariedade, da cooperação e valorização humana, contrapondo-se à economia capitalista, caracterizada pelo lucro, propriedade privada e acumulação individual da riqueza. Autores como Lechat (2002) e Cruz (2009) afirmam que a ES (re)surge em momentos de crise econômica do sistema capitalista, e mais recentemente como resposta ao 423 desemprego que atingiu o Brasil nas décadas de 1 980 e 1 990. Destacam que esta crise delineou-se sob a orientação política e econômica do neoliberalismo, aprofundando a concentração do capital, aumentando o desemprego e a precarização nas relações de trabalho. Diante de tal crise, a ES emerge como uma das possíveis alternativas. Sobre o potencial histórico da ES, Singer (2002) anuncia que, para além de ser uma forma de reação às crises exibidas pelo capitalismo, esta apresenta-se no horizonte de um outro modo de produção ao aliar ao processo de produção princípios como democracia, solidariedade e a cooperação entre os(as) trabalhadores(as), além de prever práticas de consumo, finanças e distribuição de produtos seguindo esses mesmos ideais. Tais princípios se viabilizam em consonância com o que Singer (2002) considera o atributo fundamental da ES: a autogestão, viabilizada na medida em que a posse e a gestão dos meios coletivos de trabalho são coletivizadas e não controladas hierarquicamente pelos patrões. Sob tal prisma, o autor, postula que as experiências de ES superam a lógica capitalista, assentada na propriedade individual dos meios de produção coletivos e extração da mais valia como mecanismos indispensáveis para acumulação de capital e de poder: A economia solidária é outro modo de produção, cujos princípios básicos são a propriedade coletiva ou associada do capital e o direito à liberdade individual. A aplicação desses princípios une todos os que produzem numa única classe de trabalhadores que são possuidores de capital por igual em cada cooperativa ou sociedade econômica. O resultado natural é a solidariedade e a igualdade, cuja reprodução, no entanto, exige mecanis- 424 mos estatais de redistribuição solidária de renda (SINGER, 2002, p. 1 0). Paul Singer introduz novos elementos quando põe a ES como alternativa para a superação do modelo capitalista, atrelando este argumento à necessidade do Estado desempenhar um novo papel: ser incentivador e dar suporte aos negócios por meio de compras públicas, promovendo capacitação técnica, oferecendo microcrédito, etc., como forma de redistribuição de renda, tornando os EESs sustentáveis economicamente. Diferentemente de Singer, Gaiger não considera a ES como um outro modo de produção, embora reconheça que é uma outra forma de produção, apoiada em princípios de igualdade, cooperação, ela existe dentro do modo de produção capitalista. Sabemos que modo de produção é a categoria mais fundamental e englobante, cunhada por Marx, para expressar sinteticamente as principais determinações que configuram as diferentes formações históricas. Essas determinações encontram-se no modo como os indivíduos, de uma dada sociedade, organizam-se no que tange à produção, à distribuição e ao consumo dos bens materiais necessários à sua subsistência; mais precisamente, na forma que assumem as relações sociais de produção, em correspondência com um estado histórico de desenvolvimento das forças produtivas. (Gaiger, 2003). Gaiger compreende os EESs como a base fundamental para a reconstrução do meio social em que vivem os(as) trabalhadores(as) excluídos(as): 425 a economia solidária é um conceito amplamente utilizado em vários continentes, com acepções variadas que giram ao redor da ideia de solidariedade, em contraste com o individualismo utilitarista que caracteriza o comportamento econômico predominante nas sociedades de mercado e, por meio dos empreendimentos econômicos solidários, de acordo com os seus diferentes arranjos, como as cooperativas de produção e comercialização, associações, clubes de troca, finanças solidárias, etc., desenvolvem atividades que apresentam em comum a primazia da solidariedade sobre o interesse individual e o ganho material, o que se expressa mediante a socialização dos recursos produtivos e a adoção de critérios igualitários (2009, p. 1 62). Outro teórico que aporta contribuições para esta discussão é Faria (2009), para o qual a ES não reúne as características de um modo de produção autogestionário. Segundo ele, é necessário corrigir um erro conceitual no emprego que Singer faz do conceito de autogestão na ES. Ao pensar sobre o conceito histórico de autogestão social, afirma que: A autogestão deve ser entendida como uma transformação completa da sociedade em todos os planos (econômico, político e social) e, dessa forma, trata-se também (e não apenas) de outra forma de administração, porque a autogestão reconhece a necessidade de planejamento, de um projeto social, embora não delegue o cargo (e seus privilégios) a uma maioria de especialistas (FARIA, 426 2009, p. 352). Faria entende que esta autogestão social depende não apenas de uma revolução política, mas, necessariamente, da existência de uma revolução social e política ao mesmo tempo, o que ainda não ocorreu no mundo, via ES. Ao descrever e analisar o que ocorre nesta outra economia, alega que seria mais preciso usar o termo “autogestão parcial”.1 3 Hoje, a ES está inserida no sistema capitalista (GAIGER, 2003; FARIA 2009; BENINI et al. 2007), utilizando a mesma lógica de circulação de mercadorias e de capital. Embora apresentem características autogestionárias, estas, via de regra, estão circunscritas às suas unidades produtivas, não tendo portanto, condições de superar o capital. Mas no processo histórico de construção da autogestão, é fundamental a participação dos(as) trabalhadores(as) por meio do diálogo, de maneira a favorecer a busca do consenso e criar possibilidades de mudanças. O acesso a informações para que ocorra a tomada de decisão de cada um e de todos(as), requer uma educação com caráter participativo, com abertura para a contestação e a emergência de acordos. Relações entre EJA e Economia Solidária De modo geral, a revisão bibliográfica aponta que a superação do modelo dominante de EJA, buscando garantir uma escola cooperativa, flexível e solidária aos(às) trabalhadores(as), é urgente e estratégica para o desenvolvimen1 3Esta acontece “pois opera em unidades de produção ou de trabalho que possuem características autogestionárias. É parcial porque não se realiza plenamente e não se realiza porque se encontra inserida no sistema de capital e não em um modo de Autogestão Social.” (FARIA, 2009, p. 324). 427 to da ES no Brasil. Para Singer (2008), a educação deve oferecer aos(às) alunos(as) condições para que se tornem cidadãos(ãs): responsáveis por suas ações e capazes de decidir o curso e a dimensão de suas atividades, aprender diferentes ofícios, desenvolver talentos e se aprofundar em qualquer área do conhecimento; participantes ativos(as) dos processos decisórios que envolvam a comunidade onde vivem e capazes de aprender com a diferença. A perspectiva da educação popular revelou-se coerente com essa proposta emancipadora, sendo capaz de articular a EJA e o mundo do trabalho virtuosamente, ou seja, fora da chave de interesses capitalistas de exploração. De acordo com Machado e Ireland (2005, p. 98), essa aproximação pode se tornar viável quando se observa a busca de uma outra lógica de geração de emprego e renda, como no caso das experiências ligadas à Economia Solidária, é que a EJA tem um papel fundamental nesse processo, não apenas no sentido de contribuir para que os jovens e adultos coloquem-se diante das relações capital e trabalho por outro prisma, mas também porque esse pode ser o caminho de mudanças dos próprios prismas da escolarização para esses alunos... a educação de jovens e adultos tem muito a aprender de sua interlocução... com... os movimentos populares e com os métodos desenvolvidos na educação popular. Procurando aproximar a educação popular e a EJA, a ES, organizada por meio de fóruns municipais, estaduais e nacional, plenárias e conferências nacionais1 4, aprovou de428 mandas, como o aumento da escolaridade dos(as) trabalhadores(as), a formação do movimento e a que estabelece que a temática da ES esteja presente de forma transversal nos sistemas públicos de ensino. Mesmo avaliando a importância desses pleitos, notamos que poucas iniciativas vêm sendo feitas nessa direção; e as que existem são insuficientes. A Secretaria Nacional de Economia Solidária, em articulação com a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, realizou apenas dois trabalhos que articulam EJA e ES: os chamados Cadernos da EJA1 5, que inclui, na temática EJA e o mundo do trabalho, a ES; e as especializações em EJA e ES com produção de material didático1 6. Nas duas iniciativas a orientação voltou-se para o conjunto de processos de aprendizagens, (não) formais, em que os(as) trabalhadores(as), desenvolvem suas capacidades, enriqueçam seus conhecimentos e melhorem suas competências técnicas ou profissionais ou as reorientem a fim de atender suas necessidades e as da 1 4Estes documentos poderão ser localizados no site: http://www.fbes.org.br/ 1 5 Junto ao FNDE, foi firmado um convênio entre a SECADI e a Fundação Unitrabalho, para a elaboração dos Cadernos de EJA. Estes focam o ensino fundamental de jovens e adultos com o objetivo de atenuar a dívida histórica da exclusão escolar. Estes seguem as orientações curriculares do CNE, organizam os componentes e conteúdos em torno de eixos temáticos e o trabalho como eixo geral integrador desses temas. 1 6Esta publicação é fruto de uma articulação entre professores(as) dos municípios de São Gonçalo e Niterói (RJ), gestores públicos, educadores dos Fóruns de ES, e pessoas interessadas em EJA/ES. O material formativo-pedagógico-didático foi construído por meio de oficinas e as discussões realizadas no Projeto de Educação dos Fóruns de ES, e pessoas interessadas em EJA/ES. O material formativo-pedagógicodidático foi construído por meio de oficinas e as discussões realizadas no Projeto de Extensão Ações de Apoio a EJA, em 2011 , pela Incubadora de Empreendimentos da Economia Solidária da Universidade Federal Fluminense (Edital 01 /201 0 (Resolução 51 ), SECADI/MEC e SENAES/MTE). 429 sociedade. Mas há que se avançar e ter em conta que a EJA compreende a educação formal, permanente e ao longo da vida, a educação não formal e toda a gama de oportunidades de educação informal e ocasional existentes em uma sociedade educativa e multicultural, na qual se reconhecem os enfoques teóricos baseados na prática1 7. Ao avaliar a especificidade da EJA, remete-se à necessidade de se pensar políticas públicas perenes, que aceitem situar uma unidade de atendimento, acesso e promoção da educação para os(as) trabalhadores(as) associados(as), a reprodução ampliada do saber, pautada em princípios epistemológicos e metodológicos que acatem as dimensões socioeconômicas, culturais, cognitivas, e que considere a elevação da escolaridade. Especificidades de uma EJA ao longo da vida para potencializar a autogestão Autores como (KRUPPA, 2005; TIRIBA, 2007) questionam a relação entre escolaridade e êxito dos EESs. Afirmam que os sujeitos da EJA representam parte da população destituída de direitos sociais, que são, antes de tudo, direitos humanos. Conforme as características da autogestão (ou autogestão parcial), o êxito da solidariedade e da prática autogestionária nos EES não depende apenas da escola, mas sim de uma opção política dos sujeitos. Mas, já se reconhece amplamente na literatura que, se a educação não se restringe ao escolar e nem a uma fase da vida, tampouco ela pode prescindir da escola. Destaca-se os aspectos escolares subjacentes a tal relação, quando são discutidos seus aspectos não escolares 1 7Art. 430 3º da Declaração de Hamburgo sobre Educação de Adultos, 1 997. - o conceito de EJA, pensada a partir do conceito de Educação ao Longo da Vida. Nesse âmbito, a ES envolvida com a modalidade EJA contribui para a construção de uma cultura do direito à ELV propagando informações, desconstruindo preconceitos e ajudando a dar visibilidade à demanda social da EJA, pois coloca no centro do debate educativo a vida adulta, o trabalho e os(as) alunos(as) da EJA, passando a considerá-los como sujeitos plenos de cultura e de conhecimento, com diferentes trajetórias e processos formativos (Ireland, 2008, p. 41 a 43). Nesta concepção ampliada, a EJA, quando remetida à escola, caracteriza uma modalidade de ensino, quando remetida aos âmbitos não escolares, remete àquela educação voltada às pessoas adultas que buscam aprender e desenvolver a capacidade de participar na sociedade em que se vive ou de atualizar-se para melhor viver no atual contexto da sociedade da informação. Imprimir à EJA o sentido de ELV exige referenciais que nos permitam tomar o educando em sua concretude e aspirações por meio de uma organização pedagógica típica, com sistematização dos conteúdos em função das especificidades dos(as) alunos(as) desta modalidade de ensino, considerando a flexibilidade do tempo para acesso, frequência e aproveitamento escolar, articulação dos conteúdos à realidade socioeconômica e cultural dos(as) trabalhadores(as), bem como, buscar pela humanização de todos os envolvidos no processo educativo como fundamento de uma sociedade justa para todos(as). O papel e as características da escola na constituição da ES Quanto à escolaridade como um dos aspectos educativos da autogestão, Ribeiro (2004) assinala a necessidade de outra escola, que não centre o “trabalho pedagógico na formação do indivíduo possessivo e competitivo, que re431 produz a separação entre quem pensa e quem faz, que se sustenta sobre uma organização fragmentada do conhecimento” (p. 1 69), mas deve estar baseada na educação cooperativa, destacando que esta educação, pelas características dos sujeitos da ES, precisa ser pensada no aspecto da EJA, como a modalidade que se adequada aos(às) trabalhadores(as) que compõem os EESs. Assim, o trabalho passa a ser o conceito central, uma vez que é por ele que o ser humano se realiza e reproduz a sua vida, ao transformar a natureza, com a mediação da linguagem e pensamento1 8. A construção do conhecimento escolar, precisa estar orientado por ações políticopedagógicas que reconheçam as experiências e os saberes dos trabalhadores(as) ampliando e valorizando a diversidade cultural, social, etc. Ideando a escola como uma instituição social, a qual, portanto, reflete e reproduz uma determinada ordem social, Ribeiro denuncia que a “fragmentação da produção e consequente perda do controle sobre o processo de trabalho, que separa a produção e a gestão, a economia e a política, a política e a técnica” (id, p.1 81 ), está presente na forma como a escola se realiza. O currículo e as práticas pedagógicas devem ser repensadas e a eles devem ser aliados, como conteúdo de ensino, aspectos práticos vinculados à ES, considerando valores, como: a cooperação, participação e autogestão. Assim, a ES passa a ser um tema transversal para a EJA, já que a visão de mundo que propõe e os conteúdos para interpretá-las, e para realizá-la no atual contexto, permeiam as práticas de ensino; e, também, passa a ser metodologia, 18 A linguagem é um fenômeno social, é o modo de ser do pensamento: baseia-se nas relações e nas atividades reais produzidas pelos homens. “Serão antes os homens que, desenvolvendo a sua produção material e as suas relações materiais, transformam, com esta realidade que lhes é própria, o seu pensamento e os produtos desse pensamento” (Marx e Engels, 1 980: 26). 432 pois o trabalhador é visto como sujeito ativo, capaz de pensar e decidir sobre seu processo de aprendizagem, podendo participar da gestão do funcionamento dos tempos e espaços escolares, e da definição dos conteúdos e formas de ensino. Para Kruppa a rede pública de ensino, por meio da EJA, deve ultrapassar a concepção da escola tradicional e construir políticas públicas de direito à educação de jovens e adultos, adequada aos que entram ou retornam à escola, valorizando e respeitando os conhecimentos dos(as) trabalhadores(as) da ES, de modo a fortalecer os vínculos entre a EJA e a ES e, que esteja presente a alternância entre a escolarização necessária e a aplicação dos conteúdos do diaa-dia do trabalho. Afirma que a EJA “não pode ser confinada a programas estanques de escolaridade [...] Propõem-se, então, que educadores e alunos mergulhem suas atividades num processo voltado ao mundo do trabalho e às modificações das condições de vida necessárias ao desenvolvimento.”1 9 (2005, p. 1 2 e 1 3). Para Tiriba (2007) a educação do(a) trabalhador(a) e do educador(a) deve acontecer in loco, no próprio local de trabalho. No cotidiano da produção, é possível ir mais além do trabalho polivalente, promovendo um processo em que todos [...] sejam capazes de compreender os princípios fundamentais da gestão, tendo acesso aos conhecimentos necessários que os permitam também questionar, [...] propor mudanças... enfim, decidir sobre qual o tipo de gestão administrativa, fi1 9 Estas propostas se coadunam com as deliberação das Plenárias e Conferências Nacionais de ES. In: http://www.tvbrasil.org.br/fotos/salto/series/1 511 48EducacaoMundoTrabalh o.pdf. Acessado em 1 3.08.201 3. 433 nanceira, [...] que melhor coincide com os interesses coletivos [...] o objetivo da educação popular não é que os trabalhadores apenas assimilem, de forma abstrata, os pressupostos filosóficos e políticos de uma nova cultura do trabalho [...] é preciso aprender a construí-la (TIRIBA, 2007, p. 92 e 93). Para tanto, é preciso ter em conta que as práticas na ES sejam as práticas educativas na EJA: uma educação que permita consolidar a capacidade dos(as) trabalhadores(as) enquanto sujeitos, considerando-os dialeticamente, como processo vivo de disputa, evidenciando que as áreas de conhecimento se desenvolveram conforme com os vários modos de produção, e que há possibilidade deste ser estudado sob a ótica do trabalhador. O acesso à escolarização dos(as) trabalhadores(as) da ES deve ser garantido, para que estes dominem os pressupostos combinando-os e interagindo com os princípios de autogestão, solidariedade, cooperação, de preservação do meio ambiente. Assim cremos que quanto maior o grau de escolaridade maior as chances de êxito econômico e social nos EESs. Concomitantemente, é necessário conceber a formação dos(as) professores(as) que trabalham na EJA com conteúdos sobre ES e o mundo do trabalho para que as mencionadas práticas pedagógicas reflitam os valores constitutivos da ES combinando os conhecimentos produzidos na EJA de forma a reafirmar a relação entre trabalho-educação. Considerações Finais Os argumentos trazidos pela literatura recentes apontam que há que se repensar a articulação entre traba434 lho e educação escolar nestas duas dimensões, inclusive e sobretudo na modalidade da EJA. Mas a EJA também precisa ser vista em acepção ampliada, como instância de oportunidades de atualização e qualificação profissional, mas também de fruição cultural ao longo da vida, independentemente do nível de escolaridade alcançado pelos trabalhadores(as) e com respeito à diversidade cultural (II CONAES, 201 0). Embora o conceito de ELV e o de educação popular sejam próximos, e muitas vezes, complementares, há que se diferenciar. Segundo o pensamento de Paulo Freire (1 987, p. 33 a 39), aprender e ensinar ao longo da vida é saída necessária a plena realização social e pessoal de cada ser humano, além de ser ação política, porque não neutra. Ao mesmo tempo, tal saída só se consolida se o processo educativo relacionar educação com a própria vida da pessoa, com aspirações emancipadoras, e constituir-se dialogicamente. Freire propõe a educação popular como um novo paradigma para pensar a EJA, explicitando-a como aquela feita em diálogo com e para o povo, no intuito de que constitua os caminhos de sua libertação. Isso não significa alijar a educação do povo da cultura elaborada historicamente pela humanidade. Pensando no campo da compreensão de EJA, indica trabalhar a partir da história de vida e da realidade na qual o(a) trabalhador(a) está inserido(a) e o processo de escolarização parte do universo das significações populares para então articular com os referenciais teóricos construídos pela cultura científica. No Brasil, o que tivemos mais próximo da ELV foi e é a Educação Popular, mas essa acrescenta nitidamente o caráter de classe da educação, enquanto que a ELV reafirma o campo dos direitos: educação, trabalho, sem se debruçar sobre as questões de classe. 435 O lugar do trabalho na vida do(a) trabalhador(a) jovem e adulto(a) precisa ser o lugar do ser em si, onde ele se realiza enquanto produtor de si mesmo e produtor de cultura (TIRIBA, 2007). O Estado20, que desenvolve a política pública da EJA, deve ponderar as necessidades de formação permanente e implantar cursos no próprio ambiente de trabalho. Ao considerar o trabalho como princípio educativo (TIRIBA, 2007; KRUPPA, 2005) e a necessidade de articular trabalho e ES, e a educação popular, vimos que o processo de formação deve ter em conta o conhecimento dos(as) trabalhadores(as) e que o diálogo precisa marcar as relações entre educadores(as) e trabalhadores(as). Educação popular e ES, e seus respectivos atores, aparentemente constituem-se como partes isoladas, mas, de fato, são constitutivas de um mesmo todo. A formação nesta unidade possibilita edificar formas educativas que permitam a formação de um novo sujeito histórico, emponderado individual e coletivamente, que intervenha(m) na realidade a qual pertence(m), construindo um mundo melhor para si e para as gerações futuras. Mas, para tanto, é fundamental pensar a implementação de uma educação que tenha efeito de perenidade e que sejam formuladas políticas públicas de Estado que potencializem a formação deste novo sujeito histórico. Pensamos que a EJA não deve ficar restrita às salas de aula. A concepção sobre as formas de acesso ao saber 20“É possível se considerar Estado como o conjunto de instituições permanentes – como órgãos legislativos, tribunais, exército e outras que não formam um bloco monolítico necessariamente – que possibilitam a ação do governo; e Governo, como o conjunto de programas e projetos que parte da sociedade (políticos, técnicos, organismos da sociedade civil e outros) propõe para a sociedade como um todo, configurando-se a orientação política de um determinado governo que assume e desempenha as funções de Estado por um determinado período.” (Höfling, 2001 , p. 31 ). 436 pode ser ampliada para outros espaços de vivência, formação e de trabalho. Com isso queremos afirmar a possibilidade de ocupar os espaços onde funcionam os EESs, local onde os(as) trabalhadores(as) estão cotidianamente. Assim, os momentos formativos ocorreriam presencialmente tanto no aspecto escolar, como de vivência e prática, favorecendo que o processo de ensino-aprendizagem seja constantemente experimentado, ampliado e aprimorado, sendo que o processo de formação em ES seria orientado pelos fundamentos, princípios e metodologias da educação popular. O trato reitera o que já se encontra no marco legal: fazer ponderar nas ofertas de EJA as necessidades de formação permanente com a implantação de cursos no próprio ambiente de trabalho, para que a EJA forme um novo sujeito histórico a partir do diálogo e da assunção do sujeito, em sua concretude, como ponto de partida e chegada das ofertas educativas. Referências BENINI, E. G. & BENINI, E. A. Economia Solidária nos Prismas Marxistas – revolução ou mitigação . V Encontro Internacional de Economia Solidária - “O discurso e a prática da economia solidária” Universidade de São Paulo – NESOL. 2007. BRASIL. MTE/SENAES. 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A metodologia consistiu na investigação em diferentes fontes, dentre elas o banco de teses da CAPES e outros trabalhos científicos disponíveis ao domínio público. A EJA é uma modalidade de ensino que vem sendo discutida com mais ênfase após a homologação da LBD 9394/96 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a EJA. Na atualidade, verificamos um paradoxo – um grande contingente de mulheres 1 Aluna do Curso de Pedagogia, da Universidade Sagrado Coração – USC e membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Sociedades – USC – Bauru/SP. Email: alfa.brindes@ hotmail.com 2 Docente dos cursos de Pedagogia e Licenciaturas, da Universidade Sagrado Coração – USC – Bauru/SP. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Sociedades – USC. Mestre em Educação – UNICAMP. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação, da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em EJA – GEPEJA – FE/UNICAMP. Email: polianasantoscamargo@ gmail.com 443 que se encontram na condição de analfabetas/desescolarizadas ou matriculadas nos programas de EJA nos diversos contextos dos países latino-americanos e caribenhos, demonstrando que a ideologia da interdição do corpo continua latente na contemporaneidade. Foram localizados poucos trabalhos que articulam esses temas, evidenciando um campo profícuo para novas pesquisas. Ao descobrir as complexas relações entre essas duas áreas tão peculiares: gênero e EJA, teremos melhores condições de contribuir para que mais mulheres tenham acesso às instituições escolares e, consequentemente, acesso também aos conhecimentos que possibilitem a construção de diálogos, reflexões, saberes e fazeres que efetivamente possam construir processos de aprendizagem e emancipação. Palavras-chave: EJA. Gênero. Democratização. Direitos. Sa- beres. Introdução A educação de jovens e adultos - EJA é uma modalidade de ensino que vem ganhando ênfase após a homologação da LBD 9394 (1 996) e das Diretrizes Curriculares (2000). As funções da EJA, segundo as Diretrizes são – a função reparadora que tem como objetivo devolver ao indivíduo o direito a uma escola de qualidade; a função equalizadora que cria condições para que o indivíduo reestabeleça sua trajetória escolar; a função qualificadora que propicia a todos, a atualização de conhecimentos por toda a vida. O acesso e permanência na instituição escolar é ainda um desafio para jovens, adultos e idosos, pois são muitos os fatores que impedem a continuidade do processo de atualização e, principalmente, de escolarização para 444 muitos e muitas (SANTOS, 2003). Ainda na contemporaneidade nos deparamos com outro elemento complexo que dificulta o desenvolvimento de todas as potencialidades dos indivíduos, a questão de gênero, pois muitas mulheres são impedidas pelos maridos ou “companheiros” de frequentar os bancos escolares. No passado, quando crianças, eram interditadas pelos pais, irmãos e padrastos. Muitas relatam que agora, na idade adulta e, principalmente, na terceira idade, conseguem estudar, pois agora estão viúvas, mais “velhas” e, portanto, não precisam dar muita satisfação aos companheiros e/ou filhos(as). Por já estarem “mais velhas”, os companheiros não colocam tantos impedimentos e já não estabelecem tantos limites (MOTTA, 201 2; OLIVEIRA; SANTOS; DOMINGUES, 201 2). Muitas senhoras afirmam que é na terceira idade que elas ganham, finalmente, a liberdade, autonomia para fazerem o que querem e para realizar muitos sonhos, dentre eles freqüentar a escola, aprender a ler e escrever, para poderem realizar com maior autonomia e destreza as atividades que exigem essas habilidades, dentro e fora de casa (CAMARGO, 2005). Atualmente, existem no Brasil cerca de 1 3,9 milhões de pessoas analfabetas/desescolarizadas e de acordo com MEC/INEP (201 2) existem hoje cerca de 3.906.877 alunos(as) matriculados(as) na EJA, no ensino fundamental e no ensino médio. E a maioria são mulheres. Com intuito de entender quais são as necessidade e dificuldades das mulheres de camadas populares que tentavam estudar, Nogueira (2003) criou subsídios para o estudo de gênero na educação de adultos, discutindo a política educacional. Em sua conclusão, afirma que para a mulher que decide voltar a estudar, são várias as dificuldades enfrentadas entre a matrícula e a permanência nas aulas, ou seja, contar com o apoio do marido, parentes, filhos, patroas ou 445 com a violência física e psicológica; luta solitária pela sobrevivência; deixar de ser obediente ao marido e brigar pelo seu direito de estudar; assumir, no contexto profissional, a opção pelo estudo e enxergar que o marido não tem o direito de impedir que ela prossiga seus estudos (NOGUEIRA, 2003). Nos países latino-americanos e caribenhos a situação das mulheres também é de luta para garantir melhores condições de vida, trabalho e escolaridade. Na maioria desses países também se constata um grande número de mulheres analfabetas/desescolarizadas e também um contingente maior de mulheres matriculadas nos programas de educação de adultos (RIVERO ET AL., 2007; HERNÁNDEZ ET AL., 2008; GRANDOIT ET AL., 2008; LEDEZMA; LIZARAZO; BADILLA, 2009; RODRÍGUES ET AL., 2009). Segundo Freire (2001 , p. 11 3), por volta de 1 870, no Brasil a ideologia da interdição do corpo feminino é difundida com maior consistência, pregando a submissão voluntária das mulheres aos homens, por meio da educação. Cabia aos homens afastar/interditar as mulheres de “espaços pecaminosos”, tais como salas de aula, lugares de ações políticas, os quais ela tivesse a oportunidade de adquirir algum prestígio. Essa ideologia continua presente em vários contextos da atualidade, de forma implícita, mascarada muitas vezes, ou até mesmo explícita. Apesar de várias conquistas já alcançadas pelas mulheres, muitas delas ainda precisam lutar pela equidade de direitos e oportunidades em vários papéis que exercem: filhas, esposas, mães, avós, trabalhadoras, profissionais e, principalmente, mulheres (QUEIROZ, 1 952 apud QUEIROZ, 201 2; MOURA; ARAÚJO, 2004). Algumas, inclusive, correm riscos de perder o casamento e a família, são ameaçadas pelos maridos/“companheiros” e filhos porque querem apenas estudar, querem ir 446 para a escola para aprender coisas novas (CAMARGO, 2005). Para compreender melhor as relações entre gênero, EJA e escolaridade, a seguir vamos aprofundar nossas reflexões sobre gênero por meio das considerações de alguns autores que estudam essa temática. Breves reflexões sobre gênero Trabalhamos com a concepção de gênero fundamentada pelas múltiplas formas de simbolizar a diferença entre os seres humanos de acordo com o corpo biológico. O comportamento social de homens e mulheres se apresenta através de representações simbólicas das definições para o que é tipicamente masculino ou feminino. Tratar das questões de gênero como meio de falar das relações sociais ou entre os sexos baseado na diferença percebida entre eles implica, a representação simbólica em seus contextos. Os conceitos normativos que os interpretam e os validam aparecem sob a forma de oposição entre o masculino, o feminino e a identidade subjetiva é legitimada pela ordem social (SCOTT, 1 995). Papéis hierárquicos de homens e mulheres provêm de conceitos androcêntricos ocidentais, mesmo que, “[...] não é a anatomia que posiciona mulheres e homens em âmbitos hierárquicos distintos, e sim a simbolização que as sociedades fazem dela”. (LAMAS, 2000, p.1 3). Esta dicotomia sexual baseada em símbolos normatiza comportamentos e determina a posição e o papel social de homens e mulheres. De acordo com Costa-Junior (201 0), as simbolizações sociais tornam homens e mulheres diferentes como seres humanos e essas diferenças se justificam pelas concepções de gênero construídas. 447 Por isso, a dominação masculina é a conjugação entre as aparências biológicas e seus efeitos nos corpos e nas mentes, produzidos por um longo trabalho coletivo de “socialização do biológico” e de “biologização do social”, segundo o princípio de divisão androcêntrico (BOURDIEU, 1 999). [...] as caracterizações da “natureza” ou essa “essência” das mulheres [...] tendem a refletir a perspectiva daqueles que as fazem. E como aqueles que têm poder para fazê-las nas sociedades de origem européia contemporâneas geralmente são brancos, heterossexuais e profissionais de classe média, tais caracterizações tendem a refletir a predisposição desses grupos (NICHOLSON, 2000, p.1 7). Para Silva (2002), as repercussões da desigualdade possuem dimensões sociais, culturais, econômicas e políticas propiciadas pela diferença sexual. As normas de comportamento marcam a diferença social e sua hierarquia. Com base nestes sistemas simbólicos foram definidas a “natureza” da mulher e suas aptidões, determinantes em última instância, de sua posição cultural, social, psicológica, fazendo com que ela interiorize incumbências, discursos, incapacidades, proibições ligadas ao seu status inferior (TEDESCHI, 2008, p. 90). Scott (2005 p. 1 4) argumenta que “[...] igualdade e diferença não são opostos, mas conceitos interdependentes que estão necessariamente em tensão”. As normatizações nos fazem acreditar que nossa sexualidade é biológica e natural, porém, Louro (2000) nos remete a uma sexualidade 448 que envolve processos culturais e plurais e é moldada pelas redes de poder de uma sociedade, e, portanto, não tem nada de natural. De forma simplificada e puramente explicativa, os processos normalizadores sempre operam interseccionalmente tendo as categorias raça e sexualidade como eixo formador simultâneo de identidades hegemônicas e subalternas (MISKOLCI, 2009, P. 1 76). Assim, poder e gênero se constroem mutuamente de acordo com o contexto social, e são percebidos por características atribuídas ao masculino ou ao feminino normatizando comportamentos. “As identidades de gênero e sexuais são, portanto, compostas e definidas por relações sociais, elas são moldadas pelas redes de poder de uma sociedade” (LOURO, 2003, p. 6). As relações de poder entre os sexos estão intimamente ligadas com a construção do gênero de forma subjetiva através das significações do simbólico de forma generalizada. Todavia, as generalizações são sínteses de construções sociais baseadas nas diferenças físicas que sustentam a sociedade na forma em que se apresentam. E essas relações tangenciam os processos de ensino e de aprendizagem nos contextos da educação de pessoas jovens, adultas e idosas, impulsionando fracassos ou sucessos. Por isso é muito significativo que os(as) profissionais da educação estejam atentos(as) e considerem a essas articulações nos espaços não-escolares e escolares. Objetivo O objetivo deste trabalho é apresentar algumas refle449 xões acerca dos temas educação de pessoas jovens, adultas e idosas e gênero, por meio de alguns trabalhos e pesquisas que tiveram como objeto de análise essa temática. Apresentamos também algumas reflexões sobre os desafios e perspectivas na intersecção dessas duas áreas, que ainda na atualidade carecem de olhares e pesquisas mais atentos às suas peculiaridades. Esse é um tema que merece atenção por parte dos profissionais da educação que atuam na EJA, para oportunizar elementos para compreensão dos aspectos históricos, sociais, étnicos e culturais da clientela atendida por essa modalidade, possibilitando uma aprendizagem dialógica, crítica e emancipadora. Metodologia A metodologia desse trabalho consistiu na investigação em diferentes fontes, dentre elas o banco de teses da CAPES e outros trabalhos e estudos científicos disponíveis ao domínio público sobre os temas gênero e educação de jovens e adultos. Apresentamos uma reflexão teórica que possa despertar um olhar mais atento, dos profissionais da educação, na intersecção dessas áreas. Resultados Após a realização de uma revisão de literatura, algumas pesquisas foram localizadas que abordam esses complexos temas: EJA, gênero e os seus resultados serão explicitados a seguir. Pincano (1 990) realizou pesquisa com empregadas domésticas, na faixa etária de 20 a 57 anos, desvelando quais são os fatores da vida cotidiana que afetam o desempenho da escrita, no que se refere à produção de textos e investigou os efeitos das contribuições lingüísticas. Enquan450 to Barbosa (1 994) verificou como as alunas concluintes do um programa de alfabetização de jovens e adultos, avaliaram os efeitos positivos da alfabetização em suas vidas, do ponto de vista profissional, familiar e pessoal, por meio da análise das falas das mulheres, no relato de suas experiências. Mello (2007) se preocupou em analisar a relação entre gênero e saber. Foram participantes de sua pesquisa, mulheres populares em processo de alfabetização no contexto de EJA. A coleta de dados se deu a partir de observações sistemáticas de aulas com foco nas falas das educandas. Segundo a autora, a pesquisa mostrou a pertinência e relevância dessa discussão para o campo da educação. Pessoas do sexo feminino consideram a elevação da escolaridade como meio de se igualarem socialmente as pessoas do sexo masculino, devido às subjetividades construídas. Conhecer as trajetórias das egressas do Programa de Educação Básica de Jovens e Adultos da UFMG, bem como os efeitos da escolarização em suas vidas foi o desafio de Bastos (2011 ). Para tanto, dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas. Os resultados mostraram a importância simbólica da escolarização para mudança na vida das mulheres: crescimento profissional, independência financeira e aumenta da autoestima, além de sentimento de igualdade perante seus maridos, filhos e amigos. Amorim (2007), por sua vez, objetivou analisar como as relações de gênero interferem nas trajetórias educacionais das mulheres camponesas jovens e adultas em assentamentos de reforma agrária, na região Tocantina-MA. Entrevistas semiestruturadas e análise de relatos foram os instrumentos utilizados para coletar dados. Esse estudo mostrou a influência das relações de gênero na elaboração das representações sociais nas condições específicas des451 tas mulheres. As subjetividades simbólicas femininas fazem com que mulheres busquem qualificação profissional através da escolarização podendo desta maneira conquistar simbolicamente paridade com pessoas do sexo masculino. Saber como a elevação da escolaridade integrada à qualificação profissional das mulheres, foi o objetivo do trabalho de Alves (2006) quando investigou as trabalhadoras da cidade de Alagoinhas - BA no âmbito do Programa Integrar da Confederação Nacional dos Metalúrgicos da Central Única dos Trabalhadores - CNM/CUT. Entrevistas com as educandas, análise de documentos, como diários de classe e fichas de matrícula propiciaram a coleta de dados. Como resultado, constatou-se que a educação e a ocupação produtiva com segurança, liberdade e remuneração adequada são garantia de dignidade para essas mulheres. A escolaridade é fundamental para mulheres em todas as esferas sociais. A análise do discurso e observações foram meios encontrados pela autora para constatar a importância das subjetividades e das simbologias que orientam as práticas escolares das educandas, no contexto da EJA (ALVES, 2006). O objetivo do trabalho de Toledo (201 0) foi compreender as ações de qualificação profissional no âmbito do PNQ (Plano Nacional de Qualificação), as ações voltadas para a qualificação profissional de mulheres e identificar suas mediações com o projeto de reorganização capitalista no Brasil, por meio da análise de documentos. A autora evidenciou, que o Estado, priorizando ações afirmativas no PNQ, dentre elas a questão de gênero, dissimula os embates entre capital e trabalho, escondendo a realidade estrutural do sistema, contribuindo para a fragmentação e conformação da classe das mulheres trabalhadora. Interessada na coerência sobre o significado de res452 ponsabilidade entre Programa de Ação da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, realizada no Cairo em 1 994 e o discurso de homens e mulheres (casados e solteiros, com e sem filhos, residentes em São Paulo), tendo como pano de fundo estudos de gênero e os recentes trabalhos sobre as masculinidades na América Latina, Silva (1 999), transcreveu reuniões de grupos focais promovidas pela instituição onde exerce atividade profissional e estudou atentamente o referido documento. A autora percebeu então que, ambos os textos tratam de responsabilidade como encargo ou dever, o texto do programa é essencialmente normativo, contribuindo com o estereótipo de que homens, assim como jovens de ambos os sexos, são irresponsáveis, devendo ser para tornarem-se "responsáveis". E a análise de conteúdo dos discursos de homens e mulheres mostra que ter filhos, os tornam responsáveis. O texto do programa direciona homens e adolescentes a incrementar sua responsabilidade adiando o filho, pelo controle da vida reprodutiva mostrando incoerência entre o que norteia o documento e o que pensam as pessoas participantes do grupo focal (SILVA, 1 999). Para analisar como as concepções de masculinidade interferem no processo de escolarização e no cotidiano escolar, Menezes (2008) trabalhou com alunos do sexo masculino de turmas da EJA, de duas escolas da rede municipal de ensino de João Pessoa (Paraíba) e também utilizou as memórias como instrumento de coleta de dados. Os resultados alcançados foram a identificação do trabalho como elemento que ajuda a construir uma identidade masculina socialmente valorizada, do provedor do lar. Enquanto meninos e rapazes, as pessoas do sexo masculino se vêem como mais propensos à bagunça, enquanto as garotas seriam mais dedicadas aos estudos, justificando estes fatores como responsáveis pelas experiências de fracasso escolar. 453 Buscando refletir sobre a simbologia dos conteúdos de gênero, Brito (2009) investigou jovens rapazes estudantes de um projeto de EJA, da rede municipal de São Paulo, o CIEJA. Para coletar os dados, utilizou relatos narrativos dessas pessoas de sexo masculino. Concluiu que as masculinidades são afirmadas através de simbologias culturais do significado de ser homem. Estas simbologias se tornam normas praticadas, linguísticas e corporais ao longo da vida escolar regular. Se perceberem fortes é uma das estratégias para preservar o símbolo de gênero no espaço escolar, estas estratégias se dão pela capacidade de causar problemas e terem sucesso nos esportes (BRITO, 2009). As questões de gênero se relacionam aos conceitos construídos por subjetividades do discurso tanto para pessoas do sexo masculino como para pessoas do sexo feminino. Para mostrar que mulheres e homens constituem e mobilizam práticas de numeramento em função dos discursos, Souza (2008) investigou as práticas de numeramento das alunas e dos alunos da EJA, com idade compreendida entre 1 8 e 76 anos. Esses alunos são trabalhadores de uma associação de catadoras e catadores de materiais recicláveis. A observação das aulas, registros de episódios e entrevistas foram utilizados para coleta de dados. A autora percebeu que persiste, na contemporaneidade, o discurso da “razão como posse do homem” e o “cuidado” como prática, essencialmente feminina. Com a finalidade de saber como se constitui as intersubjetividades das identidades étnico raciais e de gênero no contexto escolar de centros urbanos, Matos (2008) estudou adolescentes, jovens e adultos em contexto escolares nos distritos federais do México e do Brasil, utilizando metanarrativas. A interdisciplinaridade favoreceu este diálogo e possibilitou as interpretações, permitindo assim, as comparações. Foi percebido que os sujeitos assumem um 454 pertencimento étnico racial, de gênero e os dramatizam nos espaços escolares. Oliveira (201 0) visou analisar como sexualidade e gênero se manifestam nas práticas escolares e nas falas de professores de EJA e de seus alunos maiores de 50 anos. A autora percebeu que nestas falas o corpo é percebido no aspecto físico e sua historicidade é desconsiderada. O conhecimento se limita ao currículo e os professores evitam discutir sobre sexualidade e velhice temendo gerar algum incômodo. Para analisar como o gênero e a sexualidade aparecem em práticas escolares de uma escola de EJA, no Distrito Federal, Soares (201 2) realizou observações sistemáticas em sala de aula da 7ª série do ensino fundamental com alunos de idades superiores a 50 anos. A autora percebeu a necessidade da adoção de perspectiva histórico-cultural na abordagem de temas relacionados à educação sexual que descaracterize aspectos higienistas, ascéticos, cartesianos e propõe a incorporação dos estudos sobre o corpo, gênero e sexualidade às aulas de ciências. Nos baseando nos resultados das pesquisas, podemos inferir que no bojo destas discussões encontramos as percepções de gênero como fator decorrente de construções simbólicas normatizadas através dos discursos subjetivos que envolvem homens e mulheres em um dispositivo de poder que os separam socialmente e define os papéis a serem representados. Discursos promovem as distinções biologistas entre homens e mulheres. As masculinidades também se constroem no campo do discurso subjetivo. Assumir papéis de gênero é algo comum. No contexto escolar, as percepções de gênero se confundem com a percepção biologista, tanto para os estudantes como para os professores. Documentos também contribuem para a personificação das simbologias de masculinidades e feminilidades. 455 Considerações finais Pesquisas relacionadas às temáticas de feminilidades, masculinidades no campo simbólico mostram como estes fatores perpassam as questões de gênero e apontam interferências no processo educativo e no desempenho escolar. Os pesquisadores concordam que para as mulheres, sentar nos bancos escolares, representa o nascimento de uma nova vida, valorizada, reconhecida por ser alguém que adquiriu conhecimentos no contexto escolar e, principalmente, a possibilidade de realizar vários sonhos, tais como o de ler a bíblia; ler e cantar as músicas na igreja; ler para os outros; escrever cartas; aprender mais do que somente escrever o nome; ler, escrever e fazer receitas e controlar as finanças da família. Todas estas mudanças levam a mulher a rever o princípio de autoridade, a contestar o poder masculino, as relações hierárquicas desiguais e a refletir sobre si mesma. Chamam a atenção para a necessidade de políticas públicas, que viabilizem o enfoque de gênero na organização dos currículos ou projetos destinados a essa modalidade de ensino. É grande número de mulheres que freqüentam as classes destinadas à educação de pessoas jovens, adultas e idosas. As pesquisas localizadas explicitam a complexidade na articulação dos temas gênero, EJA, processos de escolarização, emancipação, demonstrando a necessidade de pesquisas que tenham como objetivo de estudo analisar, profundamente, essas relações e socializar os resultados. Dessa forma, contribuir para que a EJA possa efetivamente concretizar suas funções e que suas alunas e seus alunos conquistem seus direitos com plenitude, independe de etnia, cor, classe social, nível econômico e gênero. 456 Referências ALVES, Francisca Elenir. Mulheres trabalhadoras, sim. Alunas, por que não? Estudo sobre gênero, trabalho e educação na Bahia . 2006. 1 41 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2006. AMORIM, Elisângela Santos de. Trajetória educacional de mulheres em assentamentos de reforma agrária na região tocantina . 2007. 1 26 f Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Maranhão, São Luis, 2007. BARBOSA, Paulo Correa. 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Constatou-se que á educação ambiental vem sendo articulada a EJA de uma forma ainda pontual, sendo ainda preciso atrelar as questões ambientais com o cotidiano das educandas e dos educandos. Verificou-se que há necessidade de políticas públicas associadas a esses dois temas, que possam fomentar que a educação ambien1 MOVA/EMEJA Austero Manjerona, São Carlos. Email: mazacharias@ hotmail.com 2 EAD/UFSCar e SESC. Email: carol_unicamp@ yahoo.com.br 3DEMa, PPGCAm, GEPEA e NIASE, UFSCar. Email: amadeu@ ufscar.br 465 tal e a educação de pessoas jovens e adultas venham a ser relacionadas nas práticas escolares, efetivando a característica interdisciplinar da educação ambiental, tendo em vista a formação de sujeitos autônomos e críticos de sua situação de exclusão, bem como dos impactos ambientais decorrentes da atividade humana. Nesse contexto, é necessário que os profissionais da educação atualizem-se e estabeleçam diálogos com as educandas e os educandos para lidar, de um lado, com as questões ambientais de forma contextualizada e não autoritária e, de outro, com as peculiares necessidades e demandas das pessoas jovens e adultas que procuram a escolarização, como um de seus direitos de mover-se no mundo com mais igualdade e de capacitar-se para uma atuação como sujeitos históricos, especialmente na luta por justiça às pessoas mais desprotegidas social e ambientalmente. Palavras-chave: educação ambiental, educação de jovens e adultos, diálogo, crítica, meio ambiente. Introdução O presente artigo é resultado da monografia (ZACHARIAS, 2011 ) realizada para o Curso de Especialização em Educação de Pessoas Jovens e Adultas (Ceeja), oferecido pelo Núcleo de Investigação e Ação Social e Educativa (Niase) da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). Tal pesquisa é fruto das experiências vividas com alfabetização de pessoas jovens e adultas desde 1 998, somada ao aprofundamento teórico possibilitado pela especialização, bem como da vontade de superação da relação de opressão social, a qual está vinculada à relação de exploração da natu466 reza pelo ser humano. O recorte realizado foi organizado de forma que o/a leitor/a pudesse compreender o contexto histórico da educação de pessoas jovens e adultas (EJA) e da educação ambiental (EA), bem como seus campos teóricos e posteriormente algumas possíveis relações entre eles, tendo em vista apresentar como a educação ambiental vem sendo contextualizada na educação de pessoas jovens e adultas e quais suas potencialidades na formação das educandas e dos educandos da EJA. Para isso, faz-se necessário conhecer, inicialmente, o contexto histórico da educação de pessoas jovens e adultas no Brasil, que teve início no período colonial pelos jesuítas no processo de difusão do catolicismo e de educação à elite colonizadora, seguindo posteriormente para a apresentação do contexto da educação ambiental.(HADDAD & DI PIERRO, 2000) Ao fazermos uma retrospectiva histórica, verificamos que a EJA é marcada por características que denotam explicitamente situações de opressão e humilhação vivida por diferentes grupos que sofrem, até os dias de hoje, de algum tipo de desigualdade, são eles: homens negros, mulheres negras e brancas, índios e trabalhadores braçais que ainda sofrem os vestígios da ideologia imposta pela elite colonizadora. Tal fato se confirma desde 1 824, quando a Constituição Imperial reservou para as pessoas que vivem no país o ensino primário gratuito, estabelecendo porém que só as pessoas livres poderiam receber titularidade, ou seja, somente a elite alcançaria níveis de escolaridade. (SALDANHA, 2009) Ao passar dos anos, pequenas melhoras podem ser verificadas no surgimento das primeiras políticas públicas de EJA. Em 1 934, por exemplo, a constituição estabeleceu a criação de um Plano Nacional de Educação que indicava 467 pela primeira vez a educação de pessoas adultas de forma gratuita e de frequência obrigatória como dever do Estado, porém ainda como educação compensatória, de baixa qualidade e pouco crítica. (BRASIL, 1 934) Segundo Lopes e Souza (2005), na década de 40 houve uma articulação política e pedagógica que ampliou a educação de pessoas jovens e adultas, estabilizando-a como educação nacional. Nesse período, houve uma preocupação por parte de diferentes setores com a qualidade no ensino supletivo que resultou em pesquisas, desenvolvimento de materiais didáticos específicos para pessoas adultas e, em 1 945, com o fim da ditadura de Vargas, a EJA ganhou destaque passando a formar profissionalmente para desenvolver trabalhos comunitários, por meio de Campanha Nacional para Erradicação do Analfabetismo (CNEA). (SALDANHA, 2009) Outro destaque nesse período refere-se à Declaração Universal de Direitos Humanos de 1 948, no seu artigo 26, que estabelece o direito de todos à educação, apesar de apresentar limitações sobre o ensino superior pautadas na meritocracia. Na década de 1 960, o Estado, associado à Igreja Católica, impulsiona a EJA e as campanhas de alfabetização se intensificam. Nesse período, Paulo Freire chamou a atenção para as causas sociais do analfabetismo, abordando uma nova pedagogia libertadora, voltada para a valorização humana, evidenciando a consciência crítica existencial, por meio da dialogicidade, a qual ganha destaque e muitos seguidores, de acordo com Sampaio (2009). Paulo Freire propunha uma educação para que mulheres e homens fossem reconhecidos como pessoas produtoras de cultura e não como ignorantes desprovidos de saberes. Ao enfatizar a possibilidade de uma educação transformadora a partir do diálogo, elaborou uma proposta 468 crítica para a alfabetização de pessoas adultas e que vinha favorecer o processo de tomada de consciência de condições sociais opressoras. (BRASIL, 2001 , p. 24) Porém, em 1 964, com o Golpe Militar, houve a ruptura da proposta de alfabetização iniciada por Paulo Freire e a pedagogia libertadora tornou-se uma ameaça. Devido a esse golpe, a educação continua sendo conservadora e assistencialista nas práticas, por meios de doações para suprir as necessidades básicas dos/as educandos/as, o que incitou em 1 968, seguindo as orientações da UNESCO, a criação do Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) e seu surgimento na lei Federal de Educação 5. 692/71 , porém ainda com o discurso compensatório e excludente. (SAMPAIO, 2009; DI PIERRO, 2005) Após muitos anos de resistência, a década de 80 é caracterizada por movimentos sociais vitoriosos e, assim, os projetos de alfabetização se intensificam, iniciando-se a abertura política que trouxe inúmeros avanços legais ao campo da EJA. Esses avanços consubstanciaram-se nos princípios estabelecidos pela Constituição Federal de 1 988, que estendeu aos jovens e adultos o direito à educação fundamental. (VIEIRA; FONSECA, 2000 p. 3) Segundo Di Pierro (2008 p. 399), “a constituição Federal de 1 988 reconheceu o direito dos jovens e adultos ao ensino fundamental, obrigando os poderes públicos à sua oferta gratuita – Art. 208.”. Inspirada nessa constituição, em 1 996 a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) vem garantir à EJA a inserção como modalidade da Educação Básica. (BRASIL, 1 996) Nesse período, há uma resistência à política e à economia neoliberais que se estabeleciam e se desenvolviam, contrapondo-se às lutas dos movimentos sociais. Os efeitos neoliberais se estendiam para o campo educacional: as políticas estabelecidas visavam atividades 469 administrativas e técnicas no sistema escolar voltadas para o mercado consumista. Destacam-se, nesse período, as organizações dos movimentos sociais do campo e das periferias urbanas, os quais reivindicaram o direto de pessoas jovens e adultas à educação e à democratização das políticas governamentais. Neste caso, surgem o Movimento de Alfabetização – MOVA – e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – Pronera –, instituídos a partir de intensas pressões dos movimentos rurais.Esses movimentos têm parcerias com agentes governamentais, universidades, sindicatos, igrejas e organizações da sociedade civil. De acordo com a perspectiva dos movimentos sociais, é interessante destacar os fóruns de “EJA”, constituídos pelas organizações sociais por ocasião do processo preparatório da Conferência Internacional de Educação de Jovens e Adultos – V Confintea –, que definiu alguns consensos sobre educação continuada e educação ao longo da vida, em Hamburgo de 1 997. (HADDAD, 2007) Durante essa importante conferência, foram discutidos diferentes temas que reconhecem a EJA como um direito chave para o século XXI. Destacamos aqui um deles (2), referindo-se à EJA de modo geral, e um outro (1 7), que relaciona o campo com a questão da sustentabilidade ambiental. O primeiro deles reforça a ideia de que a EJA deve tornar-se mais que um direito: é a chave para o século XXI, atuante como condição para uma plena participação na sociedade. Além do mais, é um poderoso argumento em favor do desenvolvimento ecológico sustentável, da democracia, da justiça, da igualdade entre os sexos, do desenvolvimento socioeconômico e científico, além de ser um requisito fundamental para a construção de um mundo onde a violência cede lugar ao diálogo e à cultura de paz baseada na justiça. O segundo relaciona a sustentabilidade ambiental à educação, afirmando que ela deve ser um processo de 470 aprendizagem oferecido durante toda a vida e que, ao mesmo tempo, avalia os problemas ecológicos dentro de um contexto socioeconômico, político e cultural. A educação ambiental de adultos pode desempenhar um papel fundamental no que se refere à mobilização das comunidades e de seus líderes, visando também ações na área ambiental. Diante desses itens podemos dizer que a V Confintea contribuiu com diretrizes importantes para a EJA, que ganha centralidade no exercício da cidadania e no desenvolvimento do ser humano em uma sociedade participativa justa e sustentável. Nesse sentido, a visão de aprendizagem como processo que acontece durante toda a vida exige complementaridade e continuidade, sendo esta uma responsabilidade do Estado para a educação de pessoas. Com isso, surgem novos desafios às práticas atuais, exigindo criatividade e flexibilidade ao ensino. Os investimentos nacionais e internacionais são ressaltados como importantes para as ações da EJA, relacionadas ao fortalecimento e à integração de grupos excluídos que lutam por saúde, pelo acesso à informação e pelo direito de aprender durante toda a vida. Apesar das reflexões da EJA apresentadas na V Confintea, segundo Haddad (2007, p. 1 0), no Brasil, o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1 994-2002) fez com que a EJA ficasse à margem da educação nacional, como consequência da priorização de outras modalidades da educação. Com esta atitude, os estados e municípios não tiveram incentivos para ampliar a oferta de EJA. Com isso, apenas no ano 2000 foi incorporada a nova concepção de educação de jovens e adultos às normas e diretrizes nacionais da educação básica, por meio do parecer do Conselho Nacional da Educação de Nº. 11 /2000, relatado por Carlos R. Jamil Cury. (HADDAD, 2007) De acordo com Di Pierro (2005 p. 1 4), “empossado 471 em 2003, o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva operou inicialmente uma mudança discursiva, em que a alfabetização de jovens e adultos passou a ser mencionada no rol de prioridades governamentais”. Haddad (2007) comenta que o governo Lula fez com que o Ministério da Educação assumisse a responsabilidade da EJA e criasse a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, a Secadi. Em 2003 a EJA ganha um espaço na agenda do governo, sendo criados vários programas educacionais: Brasil Alfabetizado, Projovem, Proeja, Profea, que apesar de aspectos criticáveis pautam questões que podem contribuir com a superação de diferentes tipos de discriminação. Várias iniciativas do governo federal em prol da EJA no período de 2003 a 2009 foram importantes, entre elas a VI Confintea, realizada em 2009 na cidade de Belém do Pará, promovida pela Unesco no Brasil. Contudo, apesar dos movimentos populares e de encontros e fóruns se articularem para que a educação de pessoas adultas fosse valorizada como as demais modalidades de ensino, percebe-se que ainda há falta de divulgação dos eventos quando se trata da EJA. (DI PIERRO, 201 0 p. 31 ) Diante desse breve histórico, torna-se possível reconhecer que o Brasil possui uma base legal com inúmeros indicativos de obrigatoriedade, gratuidade e respeito à especificidade da educação de pessoas jovens e adultas. Contudo, verificamos que o pleno exercício dessa legislação ainda deixa a desejar e que muitos de seus desafios estão relacionados à educação ambiental, uma vez que a educação ambiental de pessoas adultas apresenta papel importante para a mobilização das comunidades e dos sujeitos visando ações para a transformação socioambiental. Em trabalho anterior Logarezzi (201 0), era destacada a relevância do exercício da educação ambiental, sobretudo 472 numa perspectiva crítica que implica o conhecimento das necessidades e dos interesses, das potencialidades e das limitações que caracterizam os ambientes em que vivem as pessoas. E no reconhecimento específico da importância da participação das classes populares nos problemas socioambientais e na busca de suas soluções, sempre por meio de processos dialógicos em que as pessoas vão buscando atuar como sujeitos históricos, capazes de transformar participativamente o contexto social em que vivem, nele incluídos o espaço e os seres ambientais do suporte em que realizamos nosso mundo, na perspectiva freiriana. Ao tratar das questões ambientais e da busca pela construção de um mundo menos desigual baseado em sociedades sustentáveis, importante destacar a relevância da educação ambiental, originária do movimento ambientalista e concebida como uma nova orientação em educação para o processo de enfrentamento da crise civilizatória atual, realizando, na perspectiva contra hegemônica, práticas educativas transformadoras e questionadoras do modelo de organização, produção e consumo vigente. A conferência de Tbilisi realizada em 1 977 é um marco relevante para educação ambiental e destaca que a prática da educação ambiental deve considerar todos os aspectos que compõem a questão ambiental, ou seja, aspectos políticos, sociais, econômicos, científicos, tecnológicos, éticos, culturais, ecológicos, dentro de uma visão inter e multidisciplinar. (SOUZA, 2003) Sobre esse aspecto, Oliveira (2007, p. 1 04-11 3) aponta alguns questionamentos à transformação da educação ambiental enquanto disciplina no currículo escolar. Porém enfatiza que quando se objetiva educar ambientalmente as comunidades escolares, é importante focar a formação ambiental na esfera da cidadania, visto que os conteúdos da educação ambiental estão fundamentados em questões de 473 ordem social, econômica, política, devendo, portanto, serem abarcados num sentido mais amplo, transversal, atingindo seu caráter crítico, transformador e emancipatório. A autora coloca como uma das dificuldades para a inserção da educação ambiental enquanto disciplina a fragilidade da formação das professoras e dos professores para atuar na área socioambiental, bem como a organização, a gestão da escola e sua estrutura curricular. Em contrapartida, cita exemplos favoráveis à inserção da dimensão ambiental nas escolas, como é o caso de Portugal, onde as escolas básicas possuem em seu currículo uma área de projetos, viabilizando o desenvolvimento da temática no contexto escolar. Devido à complexidade da crise em que vivemos que se desdobra em diferentes tipos de desigualdade, sociais, ambientais, econômicas, culturais etc., a educação ambiental está diante de um difícil desafio há algumas décadas. Para compreendermos seu contexto histórico consideramos relevante utilizar os cadernos da Secadi, que documentaram as bases históricas da educação, bem como da educação ambiental. Sobre o histórico da educação ambiental, destacamos aqui a importância significativa do Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global, de 1 992, orientador de alguns princípios fundamentais, dentre eles, o direito de sermos uma comunidade educadora consciente com base no pensamento crítico e transformador, enfocando a relação entre o ser humano, a natureza e o universo de forma interdisciplinar, estimulando a solidariedade, a igualdade e o respeito aos direitos humanos, valendo-se de estratégias democráticas e da interação entre as culturas, tratando as questões globais críticas, suas causas e inter-relações em uma perspectiva sistêmica, em seu contexto social e histórico. (Promea-SC, 2008). O tratado foi elaborado pela sociedade civil planetá474 ria, em 1 992, em evento paralelo à Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92). Tal documento possui diferenças explícitas e até polêmicas com relação à formulação da Agenda 21 (que é o documento síntese do evento oficial da ONU), uma vez que o tratado reflete as questões políticas e culturais da época, correspondente a diferentes países e grupos multiculturais de forma participativa, a partir de princípios democráticos. Este documento ressalta o caráter crítico, político e emancipatório da educação ambiental e marca a mudança do ideário desenvolvimentista para a noção de "sociedades sustentáveis", procurando fortalecer a ideia de que todas as pessoas se conscientizem da importância de utilizar o meio ambiente para satisfazer suas necessidades sem diminuir as possibilidades das gerações futuras de tal utilização. Ao pesquisarmos sobre a constituição da educação ambiental como política pública, verificamos que no início dos anos de 1 970 no Brasil, um grupo de pessoas preocupadas com o meio ambiente, os chamados conservacionistas, já destacavam a importância da educação ambiental antes mesmo do Governo Federal institucionalizá-la. (BRASIL, 2007) Outros fatores complementares, como a criação da Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema), a criação da Política Nacional de Meio Ambiente (PNMA) em 1 981 que estabeleceu, a necessidade de inclusão da educação ambiental em todos os níveis de ensino, a conferência Rio 92 organizada por uma comissão interministerial, bem como a Coordenação Geral da Educação Ambiental (CGEA/MEC), a divisão de Educação Ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (IBAMA), a criação do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama) e do Programa de Nacional de Educação Ambiental (Pronea), somaram forças para que a educação ambiental se configurasse como política pública. 475 Outros fatores, como a elaboração, em 1 997, dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), a aprovação e regulamentação da Lei n° 9.795/99 junto ao Órgão Gestor da PNEA com a submissão a Consultas públicas, a criação de Comissões Interinstitucionais Estaduais de Educação Ambiental (CIEAs), as Redes de Educação Ambiental, e a criação do Programa Nacional de Formação de Educadoras/es Ambientais (Profea) em 2006, também contribuíram significativamente para que as políticas públicas ganhassem um caráter multicultural. Dessa forma, promover o diálogo referente à educação ambiental possibilita que as pessoas possam refletir de forma crítica sobre os fatos que estão relacionadas com a nossa existência, como sujeitos, no cotidiano, e como humanidade, cuja vivência dos sujeitos implica uma interação metabólica da nossa espécie com os sistemas naturais do planeta. Tal reflexão dialógica, se exercida na práxis do dia a dia das pessoas, pode levar a um melhor entendimento das nossas interações sociais e ambientais, o que potencializa a transformação da realidade, implicando novas leituras dos desafios socioambientais que enfrentamos e novas posturas diante deles. Por fim, a educação como um direito para todas as pessoas em qualquer etapa da vida implica a educação de pessoas jovens e adultas e, considerando ainda a importância que as questões socioambientais vêm tendo nas últimas décadas, torna-se também implicada a educação ambiental, especialmente se adotamos como referência a construção de sociedades sustentáveis. Como vemos, há muitas aproximações relevantes a serem feitas entre esses dois campos. Objetivo Identificar os avanços da contextualização da educa476 ção ambiental no campo da educação de pessoas jovens e adultas, refletindo sobre as possíveis contribuições da educação ambiental na formação de suas educandas e de seus educandos. Metodologia A metodologia da pesquisa contou com levantamento bibliográfico utilizando abordagem qualitativa no sentido de verificar como vem sendo abordada a temática da educação ambiental na EJA. Com base em Lima e Mioto, (2007) foram escolhidas algumas obras para compreender as temáticas mencionadas. Com base nos trabalhos pesquisados, elaboramos um roteiro de leituras de reconhecimento do material, uma busca nos artigos acadêmicos recentes em bibliotecas, anais, revistas, livros, materiais disponibilizados durante o curso de especialização Ceeja/Niase/Ufscar, oferecido em 2009, e nos bancos de dados da Anped, do Scielo e da Capes. Após o reconhecimento, foi feita uma leitura exploratória para verificar se as informações contidas na literatura estavam coerentes com o objetivo propostos no estudo. Em seguida, fez-se uma leitura seletiva para verificar os dados mais relevantes e, a partir daí, seguir com uma leitura crítica para maior compreensão do conteúdo exposto pelas/os autoras/es das obras. Para finalizar, realizou-se uma leitura interpretativa, sendo esta a mais minuciosa, pois permitiu fazer uma análise dos conteúdos das obras para articulá-los em uma fundamentação teórica sobre a problemática em foco neste estudo, tendo em vista o objetivo traçado. As autoras e os autores estudados com esse propósito podem ser observados no quadro 1. 477 Quadro 1. Levantamento bibliográfico do tema da pesquisa utilizado na sua fundamentação teórica. Posteriormente, procuramos fazer uma análise da relação da educação ambiental com a educação de pessoas jovens e adultas desde o período colonial até os momentos atuais, focalizando os momentos mais significativos para a educação, tendo em vista responder como a educação ambiental está sendo contextualizada na educação de pessoas 478 jovens e adultas e quais as suas potencialidades na formação das educandas e dos educandos da EJA. Tais questões nos guiaram em direção ao objetivo da pesquisa, numa discussão que perpassou pelas autoras e pelos autores apresentados no quadro 2. Por uma questão de espaço, parte das obras listadas nos dois quadros são citadas na fundamentação e na discussão teóricas do artigo. Quadro 2. Levantamento bibliográfico do tema da pesquisa utilizado na sua discussão teórica. Resultados e discussão Verificou-se que a educação de pessoas jovens e adultas no Brasil se articula conforme os movimentos históricos, econômicos e políticos do país. Nesse contexto, a educação, e principalmente a educação de pessoas jovens e adultas, por exemplo, tem sofrido processo de marginali479 zação. Pudemos verificar que o nosso país tem uma grande dívida social com a população empobrecida, que envolve a população negra e os povos indígenas. A partir das pesquisas, verificamos que os jesuítas iniciaram o processo de alfabetização das pessoas adultas ao mesmo tempo em que executavam um processo de aculturação dos nativos e de degradação ambiental. Como vimos, foram, e ainda são, inúmeras as iniciativas para que a educação de pessoas adultas se firme como uma questão nacional, democrática e que garanta uma escolarização transformadora, contribuindo para que os sujeitos da EJA saiam do estado de submissão, tornando-se capazes de entenderem-se como fazedores atuantes da história tendo em vista a transformação socioambiental. (FREIRE, 1 996) De acordo com Sorrentino, et al. (2009), é relevante que se formulem políticas públicas voltadas para a modalidade da EJA e que a educação ambiental esteja presente nesse âmbito, uma vez que essa presença não tem sido frequente. De acordo com Timothy (2007), a educação ambiental também é um processo permanente que acompanha a vida toda, pois toda interação entre ser humano e natureza gera algum tipo de impacto socioambiental o qual pode ser mitigado. Desde a década de 1 970 podemos verificar inúmeras ações dos movimentos populares e seus desdobramentos no que se refere à questão ambiental e à EJA; por exemplo, o Mobral, que tinha como objetivo erradicar o analfabetismo. Em 1 971 foram implementados os cursos supletivos em todo o país, tendo em vista a necessidade de preparar as pessoas para o mercado de trabalho. Nessa época, a educação ambiental também ganha um espaço maior nas discussões trazendo grandes preocupações devido ao desenvolvimento industrial. Essas discussões propici480 aram que a educação ambiental tivesse um capítulo na Constituição Brasileira de 1 988, garantindo a todas/os as/os cidadãs/ãos, um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e de preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (BRASIL, 1 988, Art. 225) Assim, a educação ambiental torna-se obrigatória nos diferentes níveis de ensino, para que todas as pessoas possam se conscientizar sobre a relevância da preservação ambiental e de sua articulação com a justiça social. Percebe-se que essa inclusão da educação ambiental na EJA, ainda que indireta, representa um avanço nas políticas públicas para essa temática. A EJA, assim como as demais modalidades de ensino, precisam que as práticas educacionais sejam de qualidade, no sentido de que os sujeitos que aprendem possam se apropriar dos conhecimentos instrumentais que lhes importa para acessar os equipamentos culturais de sua época e de seu lugar e, com isso, buscar sua inserção social, apropriação esta que implica a educação ambiental em articulação com a EJA no processo educativo. Nesse sentido, passamos em seguida a discutir alguns fundamentos para formação de educadoras e educadores para promover a articulação entre EJA e EA. Notamos que às vezes o/a educador/a, por não ter uma formação atualizada, compromete a prática educacional por não saber contextualizar a teoria com a realidade dos/as educandos/educandas. Trabalhar com as questões ambientais em interação dialógica com os sujeitos pode contribuir nesse sentido, proporcionando momentos de aprendizagem a ambas as partes. As/os educandas/os da EJA possuem um amplo conhecimento de mundo, devido a sua experiência de vida, e a educação baseada no diálogo 481 permite uma maior interação, levando a aprendizagens que decorrem das questões diversas apresentadas por cada pessoa e do processo de discussão coletiva que envolve todas as pessoas, educandas e educadora. Cavazotti et al. (2007) mencionam que os trabalhos em percepção ambiental buscam promover a compreensão dos fenômenos naturais, bem como o desenvolvimento do sistema de percepção e compreensão do ambiente vivido por meio do conhecimento científico. Isso possibilita às pessoas jovens e adultas alfabetizandas melhor interação com sua comunidade e participação não apenas reativa, mas também propositiva. (p. 1 2) Complementarmente, nesse sentido, Borges et al. (201 0) sugerem a observação de imagens fotográficas, como um recurso importante para abordar as questões ambientais e contribuir no aprendizado no ensino fundamental e na educação de pessoas jovens e adultas. Como diz Freire (2000), a leitura crítica do mundo é um quefazer pedagógico-político indicotomizável do quefazer político-pedagógico, isto é, da ação política que envolve a organização dos grupos e das classes populares para intervir na reinvenção da sociedade. (FREIRE, p. 42) Nesse sentido, é importante que as/os educandas/os da EJA compreendam a importância da ação política para a realização dos seus sonhos, os quais aos poucos vão sendo modelados na elaboração reflexiva e crítica da realidade denunciada. Como cita Freire (2000, p. 43), é preciso defender uma prática docente em que o ensino rigoroso dos conteúdos jamais se faça de forma fria, mentirosa e neutra. (FREIRE, 2000 p. 43) Nessa perspectiva, a educação ambiental vem colaborar na formação das/as educandas/os da EJA, quando o/a educador/a, ao discutir as questões ambientais com os sujeitos, leva em consideração a sua bagagem sociocultural. Um dos caminhos importantes para discutir tais questões é o diálogo, tendo em vista que este garante opor482 tunidades à fala do outro e respeita seu valor argumentativo. A VI Confintea, realizada em Belém em 2009, enfatizou a importância da aprendizagem ao longo da vida para resolver as questões globais e os desafios educacionais. Sorrentino, Portugal e Viezzer (2009, p. 1 ) relataram em documentos que antecederam aquela conferência e o Fórum Internacional da Sociedade Civil (Fisc), destacando a urgente necessidade de se incluir a educação ambiental na formação de pessoas jovens e adultas e a relevância e a necessidade de convergência entre as ações, as políticas, os programas e os projetos de educação ambiental e de educação de pessoas jovens e adultas. O autor e as autoras salientam ainda o que se espera para a EJA nas discussões que possam fortalecer e difundir o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global, levando-o para o conhecimento e debate crítico de pessoas jovens e adultas, promovendo o envolvimento participativo dos grupos sociais. Espera-se também e principalmente que a EJA promova a interpretação e o debate sobre as distintas realidades socioambientais, local e global e o compromisso individual e coletivo com ações voltadas a sua transformação no sentido do bem comum – da conservação, recuperação e melhoria do meio ambiente e da qualidade de vida de todas as pessoas. (SORRENTINO, PORTUGAL & VIZZER, 2009, p. 31 0) É importante salientarmos que a educação ambiental não deve ser entendida tão somente como uma forma de preservar a natureza da humanidade. É necessário destacar que os seres humanos também fazem parte da natureza e que, portanto, ao pensar em preservação ambiental é preciso lembrar que existem milhões de pessoas com baixa proteção social ou até sem qualquer tipo de proteção social. Tal quadro tem sua injustiça ainda reforçada pela maior vulnerabilidade aos efeitos decorrentes dos impactos ambientais 483 antrópicos, aos quais estão sujeitas as populações mais desprotegidas socialmente, constituindo-se em questão que demanda abordagem socioambiental. As discussões que as/os educadoras/es verbalizam no espaço escolar influenciam a vida dos sujeitos fora desses espaços também. E, então, ao se falar em meio ambiente as educandas e os educandos da EJA podem compreender como se dá a relação cultural com o meio ambiente e, portanto, a educação ambiental vai além dos currículos. Esse fator demonstra como é importante que a educação ambiental seja amplamente contextualizada e implementada mais fortemente nos currículos e não como uma disciplina específica, porque ela faz parte de todas as áreas educacionais. Sobre isso, Timothy (2007, p. 235-245) comenta que a educação ambiental deve ser discutida como um tema transversal e aprofundada em todas as áreas do conhecimento já no início da alfabetização. Ainda diz que a integração da educação ambiental na educação de pessoas jovens e adultas, de uma forma concreta e não de uma forma simbólica como uma disciplina isolada, não é uma opção, mas uma necessidade. A educação ambiental colabora para que os sujeitos potencializem-se para a transformação da realidade individual e coletiva do contexto em que estão inseridos. Segundo Timothy (2007, p. 232), a educação deve ser crítica e ativa, procurando aprofundar a compressão de mundo de cada pessoa para transformá-lo, porque a educação faz parte da vida. Por isso a educação ambiental é tão relevante na educação de pessoas jovens e adultas. De acordo com Silva e Abílio (2011 , p. 43), há muito que se recontar na história oficial e a educação ambiental pode prestar relevante serviço neste aspecto ao criticar o modelo vigente e rememorar os modelos de sociedade que 484 foram forjados na opressão de povos e culturas e geradores da dívida ecológica. A EJA não pode continuar sendo vista apenas à margem da educação. É preciso investir seriamente nessa modalidade; os sujeitos da educação de jovens e adultos há muito tempo têm esperado por mudanças. Ao se falar em EJA politicamente, não há de ser amanhã, é preciso ser agora, e depende de cada um de nós, não podemos passar pela vida na neutralidade, fechando os olhos enquanto milhões de pessoas estão esperando ser vistos e reconhecidos como seres humanos. Como diz Freire (1 987), é preciso que, ao respeitar a leitura do mundo da/o educanda/o para ir mais além dela, o/a educador/a deixe claro que a curiosidade fundamental à inteligibilidade do mundo é histórica e se dá na história, se aperfeiçoa, muda qualitativamente, se faz metodicamente rigorosa. (FREIRE, 1 987, p. 77) O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na história. (p. 86) A educação ambiental e a educação de pessoas jovens e adultas trazem grandes possibilidades para que a sociedade civil e as autoridades governamentais movam-se para construir politicamente um ambiente, onde todas as pessoas sem nenhum tipo de discriminação possam viver dignamente. A educação ambiental, como já mencionado, é parte da vida das pessoas em qualquer idade, portanto faz se necessário contribuir politicamente para que os sujeitos da EJA participem atuantes desse processo. Para elas e eles a oportunidade de emancipação em busca da transformação de sua história de vida atual e futura traduz-se no renascer da esperança por uma atuação no mundo livre da opressão à qual foram submetidos no decorrer de suas trajetórias de vida. 485 Considerações finais Consideramos fundamental que o/a educador/a da EJA compreenda o contexto de vida de cada educanda/o, para que a educação ao longo da vida se torne plena e atenda as diferentes necessidades destas pessoas. Destacamos ainda a relevância da educação ambiental para este cenário de crise que afeta de maneira desigual as pessoas, em aspectos sociais e ambientais, imbricadamente. Tomando como referência a educação ambiental que parte da reflexão socioambiental, articulando portanto os impactos ambientais às injustiças sociais, percebe-se que as pessoas que sofrem diferentes tipos de desigualdade (por idade, por gênero, por raça, por classe etc.) são as mesmas que mais intensamente serão atingidas pelos impactos ambientais, sobretudo porque as pessoas relacionam-se diretamente com o meio, seja pela moradia, pelo trabalho, pela alimentação, pelo lazer, pela formação etc. Há de se pensar em processos educativos contínuos, ao longo da vida e que façam sentido para as pessoas, pois carregamos toda uma trajetória de comportamentos, valores e atitudes em relação ao meio ambiente que precisa ser discutida diante do momento histórico que vivemos. Portanto, trabalhar a temática da educação ambiental no contexto da EJA numa perspectiva dialógica e crítica se faz relevante, uma vez que os/as educandos/das da EJA são pessoas que, além de sofrerem violações de seus direitos de realizar a leitura da palavra, também sofrem os impactos e as injustiças ambientais. Tais pessoas possuem uma história de vida que também está ligada às mudanças ambientais que ocorreram ao longo do tempo. Essas mudanças não estão desvinculadas destes sujeitos. Freire (2000, p. 40) comenta que: “a consciência do mundo e a consciência de mim me fazem um ser não ape486 nas no mundo, mas com o mundo, e com os outros. Um ser capaz de intervir no mundo e não só de a ele se adaptar”. Por isso, a contribuição direta desse autor tanto para a educação de pessoas jovens e adultas como para a educação ambiental, uma vez que ele traz nas suas teorias e nas suas práticas princípios de uma educação libertadora, voltada para a superação da relação de opressão social, a qual está vinculada à relação de exploração da natureza pelo ser humano. Com a fundamentação e a discussão apresentadas, essa pesquisa procurou contribuir com informações e reflexões relevantes para o meio acadêmico, para as ações pedagógicas e para os espaços educativos escolares e não escolares que articulam estas duas áreas educacionais: educação ambiental e educação de pessoas jovens e adultas. Referências bibliográficas ARROYO, M. G. Educação de jovens - adultos: um campo de direitos e de responsabilidade pública. In: SOARES, L., GIOVANETTI, M. A., GOMES, N. L. (orgs.). Diálogos na educação de jovens e adultos. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. BARCELOS, V. 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Em 1 985 criou-se a Comissão Municipal de EJA, iniciando-se a implantação das primeiras classes, tendo estagiários como docentes e neste ano foi elaborada a Proposta de Educação de Jovens e Adultos da Prefeitura Municipal de Bauru. Em 1 986 firmou convênio com a Fundação Educar, após a extinção do MOBRAL e criou a Divisão da Educação de Jovens e Adultos em 25/04/86 e realizou-se o 1 º concurso de provas e títulos para provimento das funções de Monitores de EJA. O CEJA proporciona escolarização equivalente às quatro primeiras séries da Educação 1 Email: 2 Email: ma_couto@ yahoo.com.br faty.ams@ gmail.com 493 Básica, atualmente é constituído por classes, em diversos bairros, funcionando em Escolas Municipais de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Centros Comunitários, Igrejas, Regionais Administrativas, Polos ou qualquer espaço que ofereça infraestrutura mínima. Os educadores são concursados e a metodologia do CEJA é articulada a proposta de Paulo Freire com as demais que existem na educação. Em 2006 elaborou-se coletivamente o Projeto Político Pedagógico e em 2007 iniciou-se a Inclusão Digital possibilitando aos alunos novos conhecimentos e habilidades para interagirem ativamente na era tecnológica e na sociedade. Em 2009 iniciou-se o trabalho pioneiro de Professor Coordenador Pedagógico. Durante a trajetória o CEJA faz parte da história da EJA e, mesmo com os desafios, conquista seu espaço na Educação. Palavras - chave: Trajetória. CEJA. 27 anos. Introdução A Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma modalidade da Educação Básica que proporciona oportunidade aos jovens e adultos para iniciar e/ou dar continuidade aos seus estudos. Entre os alunos da EJA, estão os jovens e adolescentes recém excluídos do sistema regular, os adultos, os portadores de necessidades especiais e, atualmente um contingente maior de alunos idosos que retornam aos bancos escolares. A Constituição de 1 988, em seu art. 208, inciso I, garante o acesso ao ensino fundamental gratuito, inclusive àqueles que a ele não tiveram acesso na idade própria. A Educação de Jovens e Adultos (EJA) no município de Bauru é realizada pelo Centro Educacional de Jovens e 494 Adultos (CEJA) que tem como meta a realização de uma Educação de qualidade àqueles que foram excluídos do saber escolar. Este trabalho “Centro Educacional de Jovens e Adultos (CEJA): 27 Anos de trajetória em Bauru/SP” é um relato objetivando compartilhar a trajetória destes 27 anos da Unidade Escolar no município de Bauru. Trata-se de um “olhar” histórico e neste olhar há muita satisfação, sonhos, paixões por essa modalidade de ensino que busca vencer os desafios conquistando seu espaço na Educação. O nosso convite, por meio desta pesquisa, é para “olhar” essa trajetória do CEJA e certamente, com isso, aguçar reflexões amplas sobre a modalidade EJA, especificamente sobre o CEJA, para a compreensão desta trajetória e o que a Unidade enfrentou em termos de dificuldades e as conquistas adquiridas nestes anos. Objetivo geral Compartilhar o breve histórico dos vinte e sete anos do Centro Educacional de Jovens e Adultos (CEJA) - Bauru/SP. Objetivos específicos - Traçar os principais acontecimentos da trajetória do CEJA; - Mostrar o trabalho realizado pela Unidade Escolar: suas dificuldades e conquistas; - Fomentar futuras pesquisas com a temática Educação de Jovens e Adultos (EJA). Metodologia A metodologia utilizada foi pesquisa bibliográfica com o intuito de conhecer as referências que tratam sobre o as495 sunto e com o levantamento e análise histórico documental na Secretaria Municipal de Educação de Bauru, na sede administrativa do Centro Educacional de Jovens e Adultos (CEJA) e nos trabalhos acadêmicos de Graduação em Pedagogia e Especialização em Gestão Escolar de duas educadoras do CEJA. Desenvolvimento No âmbito deste trabalho apresentamos o estudo histórico sobre a EJA no Município de Bauru enfatizando o Centro Educacional de Jovens e Adultos (CEJA) que atesta a relevância do trabalho referente à importância do retorno dos jovens, adultos, portadores de necessidades especiais e idosos aos bancos escolares. A trajetória do CEJA iniciou-se quando a Administração Municipal de Bauru criou em 1 984 um serviço municipal de Educação de Jovens e Adultos, coordenado por uma equipe de professores, psicólogos e pedagogos. A necessidade de se realizar um trabalho efetivo na área era de extrema importância, uma vez que no município com uma população de 223,6 mil habitantes, 35 mil pessoas eram consideradas analfabetas, ou aproximadamente 1 5,6% da população, o que configurava uma situação inadmissível em uma sociedade democrática. Em 1 985 foi criada a Comissão Municipal de Educação de Jovens e Adultos, iniciando-se a implantação das primeiras classes de EJA, tendo estagiários como docentes. Neste ano também foi elaborada a Proposta de Educação de Jovens e Adultos da Prefeitura Municipal de Bauru. (...) Seria necessário, portanto, um organismo que coordenasse este novo trabalho, e foi criada a Comissão Municipal de Educação de Adultos. As pessoas que 496 faziam parte tinham uma história de envolvimento político com a educação, inclusive de movimento sindical e com movimento de trabalhadores da educação. Esta Comissão foi a que traçou um plano de Educação de adultos para o município de Bauru. (CASÉRIO, 2003 p. 59). A proposta pretendia ir além do domínio do instrumento básico, enriquecer o conteúdo programático com atividades e práticas mais amplas, que extravasassem o âmbito, muitas vezes, estreito da programação escolar, tornando a atividade escolar aberta as diferentes manifestações da comunidade, uma vez que se entendia a educação de adultos como educação de base comunitária. No ano de 1 986 ocorreu a implantação da Divisão Municipal de EJA, por meio de convênio com a Fundação Educar e a realização do 1 º concurso de provas e títulos para provimento das funções de Monitores de EJA. A Divisão de Educação de Jovens e Adultos foi criada em 25/04/1 986 por meio de Convênio com a Fundação Educar, após o fim do MOBRAL. Até 1 990 os certificados eram emitidos pelo MEC, através da Fundação Educar, mas neste mesmo ano, o Governo Federal extinguiu a Fundação Educar transferindo as responsabilidades aos Estados e Municípios, em Bauru foi autorizado o curso Supletivo – Suplência I vinculada a três Escolas Municipais de Ensino Fundamental (EMEFs). Após a extinção da Fundação Educar, os certificados fornecidos pela Secretaria Municipal de Educação não tinham validade em nível de escolarização, dentro do sistema oficial de ensino. Assim em 1 993, autorizou-se o funcionamento do curso Supletivo Modalidade I incluindo a elaboração participativa do novo Regimento Escolar e de um Plano Específico. 497 Em 1 996, é aprovada a Lei de Diretrizes e Bases 9.394/96, na qual existem dois artigos tratando da EJA. Em 1 998 a Educação de Jovens e Adultos de Bauru passa a ter uma sede própria, criando-se o Centro Educacional de Jovens e Adultos (CEJA), com autonomia administrativa, de acordo com a LDBEN nº. 9394/96. Em 1 999 entrou em vigor o novo Regimento Escolar da Rede Municipal de Ensino. A necessidade de regulamentação do Ensino Supletivo em nível de Suplência I proporcionou a elaboração de um novo Regimento Escolar para toda a Rede Municipal de Educação, reformulando e adequando assim todos os procedimentos educacionais que eram praticados e sanando inúmeras irregularidades, trazendo benefícios para o ensino municipal como um todo em suas diferentes modalidades. Por fim, em 2000 foram aprovadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos. Em 2004 foi inaugurada a unidade II do CEJA, o primeiro local que abrigaria várias classes num espaço próprio, onde também seria possível promover eventos de socialização. No ano de 2006, iniciou-se a elaboração coletiva do Projeto Político Pedagógico, para tanto a Secretaria Municipal de Educação ofereceu cursos aos profissionais da educação ministrados por especialistas da UNESP/ Bauru, o que facilitou o processo de elaboração. A partir de 2007 foram inaugurados os Pólos de Educação de Jovens e Adultos, construídos em vários bairros da cidade, em virtude da necessidade possuir um espaço voltado para o público jovem e adulto, pois até então as salas eram improvisadas em locais que muitas vezes não contavam com mobiliário adequado. Neste mesmo ano a Secretaria Municipal de Educação de Bauru em parceria com o Planeta Educação criaram 498 o Projeto Click Inclusão, tendo como um dos objetivos propiciarem aos seus educadores uma formação tecnológica propondo ações de informática educativa possibilitando recursos tecnológicos como ferramenta enriquecedora no trabalho pedagógico. O Projeto contou com profissionais especialistas, mediadores atuando junto aos educadores para aprendizagem didática tecnológica nos laboratórios de informática. Alguns mediadores davam suportes nas unidades escolares atuando junto ao educador e educandos na construção de projetos pedagógicos e também outros mediadores atuavam junto aos funcionários da rede municipal com noções básicas de informática para os inserirem no mundo tecnológico. O Projeto aconteceu também em 2008 e 2009 com sucesso. Em Agosto de 2008 a sede administrativa foi transferida para Rua Saint Martin nº. 20-81 Altos da Cidade e atualmente permanece neste local. Em Novembro de 2009, iniciou-se um trabalho pioneiro: Professor Coordenador Pedagógico, uma grande conquista, pois a unidade contava com três coordenadores de área e as classes subdivididas em setores para facilitar o trabalho de supervisão e devido ao número de classes para cada setor a supervisão pedagógica ficava comprometida. Em 201 0, infelizmente venceu o contrato com a empresa Planeta Educação e as unidades escolares ficaram sem os laboratórios de Informática para desenvolver o trabalho das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), mas em 2011 a Secretaria Municipal de Educação de Bauru firmou parceria com outra empresa, a Mstech para dar continuidade neste trabalho “Inclusão Digital” no município de Bauru. Nesse sentido, os laboratórios de Informática, disponibilizados em diversas escolas municipais, inclusive no CEJA retomaram o trabalho com os professores e com algumas classes de acordo com o interesse e disponibilida499 de do cronograma do projeto Inclusão Digital, sendo oferecido ônibus da Prefeitura Municipal de Bauru tendo como incumbência transportar os alunos, em média três classes de bairros distintos, conduzindo-os até o Laboratório de Informática. É imprescindível salientar que durante todo percurso histórico do CEJA, a Secretaria Municipal de Educação disponibilizou Formação Continuada para os profissionais municipais e em 2011 ocorreu o I Congresso Municipal de Educação possibilitando aos educadores a oportunidade de compartilhar o trabalho realizado nas diferentes modalidades de ensino, inclusive a EJA. A estrutura organizacional do CEJA é composta hierarquicamente por: Diretor de Divisão que atua junto a Secretaria Municipal de Educação, um Coordenador, que responde pela diretoria na Unidade Escolar do CEJA, um Professor Coordenador Pedagógico, Professores de EJA, alunos, apoio administrativo: secretária, auxiliar administrativo, servente, merendeira e auxiliar geral. O CEJA oferece curso semestral com 1 00 dias letivos presenciais de 1 º ao 4º Termo, equivalente às quatro primeiras séries da Educação Básica aos jovens a partir de 1 5 anos, adultos, alunos portadores de necessidades especiais e idosos, sendo este um dos desafios para o CEJA devido ao crescente número, principalmente do sexo feminino, uma vez que as mulheres sempre fizeram parte do grupo dos excluídos, onde o direito à Educação era privilégio masculino. A educação de idosos ainda é um desafio. A Lei nº. 1 0741 , que dispõe sobre o estatuto do idoso, definem este como a pessoa com idade igual ou superior a 60 anos e no Art.2º garante os seus direitos: “O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, [...] assegurando-lhe, por lei ou por ou- 500 tros meios, todas as oportunidades e facilidades, para a preservação de sua saúde física, mental e seus aperfeiçoamentos morais, intelectuais, espirituais e sociais em condições de liberdade e dignidade”. (BRASIL, 2003, p.3) O trabalho do CEJA baseia-se na filosofia de Paulo Freire articulada com as demais existentes na educação, visando possibilitar ao aluno o pensar crítico sobre sua realidade e como mudá-la, levando-os a ter comprometimento com valores e ideais que sejam exemplos de cidadania. Toda estrutura do CEJA é mantida pela Prefeitura Municipal de Bauru, via Secretaria Municipal de Educação. As classes do CEJA estão localizadas em diversos bairros de Bauru, a fim de facilitar o acesso dos alunos interessados às aulas, situadas em Escolas Municipais de Ensino Fundamental, Escolas Municipais de Educação Infantil, Igrejas, Centros Comunitários, Polos e Regionais Administrativas da Prefeitura Municipal. O CEJA, em toda sua trajetória educacional, proporciona oportunidades de escolarização aos alunos preparando-os para produzirem e expressarem suas ideias, transformando a vida destas pessoas além de acesso a cultura escrita e informação, embora ainda haja muito para realizar a estes alunos para fazer valer todo esforço de terem concluído o 4º termo, como por exemplo, a implantação de classes de EJA de 5º ano ao Curso Médio, para que os mesmos possam dar continuidade nos estudos porque as existentes não suprem a clientela devido à localidade em apenas alguns bairros de Bauru. Durante esses vinte e sete anos de trajetória o CEJA faz parte da história da EJA e, mesmo com os desafios, diariamente conquista seu espaço na Educação porque como nos lembra Freire: “Fazer a história é estar presente nela e 501 não simplesmente nela estar representado”. Conclusão Na historia da educação a modalidade EJA representa uma dívida social não reparada para com os que não tiveram acesso a e nem domínio da escrita e da leitura como bens sociais, na escola ou fora dela. Ser privado deste acesso é, de fato, a perda de um instrumento imprescindível para uma presença significativa na convivência social contemporânea. A educação escolar é imprescindível na formação do indivíduo, pois tem como papel a formação e a socialização do cidadão de forma plena, sendo a base para a garantia de condições mínimas de equidade. Hoje essa formação não se reduz a infância ou adolescência, mas se faz necessária durante toda a vida do indivíduo. E foi pensando nesta formação que durante todos estes anos a política educacional do CEJA foi voltada aos alunos que não tiveram oportunidades de frequentarem uma escola ou concluírem seus estudos. Com a redemocratização das instituições políticas na década dos 80, alguns destes grupos passaram a receber apoio financeiro de órgãos governamentais, como a Fundação Educar. E foi nessa época que Bauru tomou para si a tarefa de planejar, organizar e executar um programa voltado para o atendimento de adultos para erradicação do analfabetismo no Município, desde então desenvolveu uma proposta político – pedagógica voltada aos interesses e necessidades daqueles que não tiveram acesso à Educação Básica. A Divisão de Jovens e Adultos em seus vinte e sete anos de existência, foi criada com a finalidade de oferecer acesso à escolaridade àqueles que por diversas razões, não 502 pôde ser atendida na época oportuna. A EJA em Bauru, realizada pelo CEJA, está presente em diversos bairros sempre com a finalidade de levar atendimento educacional onde se encontra a clientela. A Unidade CEJA, neste percurso, teve muitos desafios, mas também muitas conquistas como: a Sede administrativa, a inauguração da Unidade CEJA II, a elaboração do Projeto Político Pedagógico, os Pólos, a contratação de um professor Coordenador Pedagógico e a Inclusão Digital que possibilitou a presença da EJA nos laboratórios de Informática. Nesse sentido, o CEJA tem avançado bastante nesta trajetória, embora tenha muito ainda a realizar. O desafio atual da sociedade não é propor mais metas para a educação ou mais projetos de EJA, mas avaliar os impactos qualitativos das experiências existentes em cada canto do país e realmente erradicar o analfabetismo no Brasil, mas para que isso ocorra é preciso que tenha vontade política para a superação de problemas na educação que favoreça a uma educação com qualidade. Muitas administrações municipais vêm buscando assumir esse compromisso com propostas curriculares, formação docente e produção de materiais didáticos. Donde a importância da existência de uma fonte permanente de recursos a fim de viabilizar o caráter includente desse direito, como ocorre em Bauru. Democratizar o ensino não é só instalar escola pública, mas garantir que os educandos, além de ir à escola, aprendam com vontade e prazer de aprender. Precisamos refletir sobre a situação real dos alunos e as interferências que a escola pode realizar no dia a dia, possibilitando um avanço na formação do sujeito de forma plena para o exercício de sua cidadania. A trajetória do CEJA, nestes vinte e sete anos, en503 frentou dificuldades, mas conquistou seu espaço na Educação proporcionando oportunidades aos que por alguma razão não tiveram acesso a educação. Espera-se que com a realização deste trabalho fomente em outros pesquisadores o interesse de novas pesquisas na modalidade da Educação de Jovens e Adultos. Referências BAURU, Secretaria Municipal de Educação de – Um olhar histórico sobre a Educação Municipal de Bauru – 1 996. BAURU, Divisão de Educação de Jovens e Adultos da Prefeitura Municipal de Bauru , 1 987, Bauru, SP. BAURU, Centro Educacional de Jovens e Adultos. Educação direito de todos e dever do estado , 1 988, Bauru, SP. BAURU, Centro Educacional de Jovens e Adultos. Histórico da Educação de Jovens e Adultos em Bauru, 1 990, Bauru, SP. BAURU, Centro Educacional de Jovens e Adultos: Plano de Gestão do Centro Educacional de Jovens e Adultos, 2005, Bauru, SP. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1 988 .1 0ª ed. atualizada e ampliada: São Paulo: Saraiva,1 994.1 90p. BRASIL, Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação de Jovens e Adultos. Parecer CNE/CEB nº 1 1 /2000, aprovado em 1 0 de maio de 2000. BRASIL. Educação de Jovens e Adultos: Proposta curricular para 504 o 1 º segmento do ensino fundamental, São Paulo/ Brasília, 1 997. BRASIL, Ministério da Educação e da Cultura. Salto para o Futuro – Educação de Jovens e Adultos / Secretaria de Educação à distância . Brasília. Ministério da Educação. SEED, 1 999. BRASIL. Lei nº 1 0741. Estatuto do Idoso . Publicado no D.O.U. em 1 º de Outubro de 2003. BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria da Educação Fundamental Plano Nacional de Educação . Brasília, 2000. CASÉRIO, Vera Mariza Regino. Educação de jovens e adultos: pontos e contrapontos. Bauru, SP, Edusc, 2003. GADOTTI, Moacir e ROMÃO, José E. – E ducação de Jovens e Adultos: Teoria, prática e proposta . SP – ED. Cortez, 2001. LEÔNCIO, Soares José Gomes. Educação de Jovens e Adultos. RJ – 2002 SANTOS, Fátima Aparecida Machado dos e COUTO, Maria Aparecida. Trabalho de Conclusão de Curso - A Trajetória do CEJA no fim do século XX e no início do século XXI; Gestão Escolar e Projeto Político Pedagógico do CEJA. 505 506 artigo O PROEJA NO IFMT: DESAFIOS E POSSIBILIDADES NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DO TRABALHADOR Maria Helena Moreira Dias Serra1 Érica Lopes Rascher Costa Marques2 Silvia Maria dos Santos Stering 3 Resumo Este estudo, motivado pelo desejo de apreender vozes que raramente são ouvidas, embora sejam os reais beneficiados ou atingidos pelo (in)sucesso das práticas pedagógicas, procura apresentar vozes e olhares dos alunos no intuito de desvelar as impressões que têm de si e do curso de Edificações – PROEJA – ofertado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso – IFMT, campus Pontes e Lacerda. Vozes e olhares aqui entendidos não como manifestações físicas ou audíveis, mas como visões de mundo que resultam ser conflitantes, refletindo o fato de que nem sempre são escolhas pessoais, mas se desenvolvem através da vivência de cada um e dentro de transformações sociais em andamento que podem dar origem a crenças que, por sua vez, podem influenciar o comportamento e re- 1 Discente do Programa de Doutorado em Educação da UNESP. Email: mhelenaserra@ hotmail.com 2 Docente do IFMT. Email:erica.rascher@ plc.ifmt.edu.br 3Discente do Programa de Doutorado em Educação da UNESP. Email: silvia.stering@ ifmt.edu.br 507 fletir na motivação e disposição para a aprendizagem. Os dados foram coletados por meio de aplicação de questionários e submetidos à análise de conteúdo por categorização. Espera-se que os apontamentos dessa investigação possam contribuir para a aproximação da teoria e prática de sala de aula, utilizada por instituições de ensino e professores, à prática cotidiana, exercida pelo aluno-cidadão na realização de suas atividades humanas, seja na esfera pessoal/social ou profissional, já que o curso em questão propõe profissionalizá-lo através da formação integral do indivíduo. Os resultados apontam para impressões positivas, no entanto, não concluem ou encerram a investigação, ao contrário, chamanos a reflexões e novos percursos investigativos. Palavras-chave: PROEJA, impressões, crenças e atitudes. Introdução Em 2005, foi criado no Brasil o Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA), com finalidade de abranger cursos e programas de formação inicial e continuada de trabalhadores e educação profissional técnica de nível médio. Esse programa sofreu alterações, como veremos no corpo deste trabalho, e aos Institutos Federais foi atribuída à responsabilidade de implantar cursos que atendessem ao estabelecido pelo PROEJA, respeitando as demandas regionais e locais. Desta forma, no primeiro semestre de 2009, o recém criado campus de Pontes e Lacerda do Instituto Federal de Mato Grosso – IFMT – iniciou a oferta do curso Técnico em Edificações Integrado ao Ensino Médio na Modalidade de Jovens e Adultos – PROEJA Edificações - buscando atender à proposta do programa e às 508 necessidades da população. A opção pelo curso técnico de Edificações ocorreu considerando que o segmento da construção civil têm sido de grande importância para o desenvolvimento da nação, sendo um dos responsáveis pelas bases da sociedade industrial e indispensável ao prosseguimento do processo de industrialização. Além disso, o setor ainda contribui significativamente para o atual crescimento econômico quando colabora para a diminuição do desemprego, por meio da geração de vagas diretas e indiretas, absorvendo grande porcentagem da mão de obra do país. Outra contribuição do setor é no campo social, pois, por meio das novas moradias que surgem, oferece melhor qualidade de vida à população brasileira e local. A literatura que aborda o tema sugere que a formação profissional ocorra de forma integrada à formação geral e também de forma integral e não apenas tecnicista, mecânica e conteudista, visando a desenvolver apenas a habilidade de reprodução e não de produção e de aplicação dos conhecimentos adquiridos na escola nas diversas áreas da vida humana. No entanto, há no meio acadêmico questionamentos acerca do “distanciamento entre o saber acadêmico e a vida dos sujeitos”, como afirmam Cox e Assis-Peterson (2002, p.1 9) há um descompasso entre a “teoria e a prática, o saber acadêmico e o saber vivencial”. Diante do exposto, decidi ouvir os discentes envolvidos no processo com o intuito de verificar a visão que têm da formação que a escola lhes está oferecendo, de forma a apreender os significados que atribuem à aprendizagem escolar, de forma geral e sua aplicação em seu cotidiano pessoal, social e profissional. Pois, tão importante quanto conhecer as teorias e abordagens de ensino e aprendizagem é conhecer o aluno, suas expectativas e necessidades, para que esse saber possa ser utilizado para criar contextos que favoreçam a aprendizagem. 509 Veremos, no decorrer do estudo, que as impressões que os indivíduos têm de si e de outrem são formadoras de crenças, que, por sua vez, são norteadoras das atitudes individuais e sociais, sendo assim, seu estudo torna-se essencial para que a escola apreenda os discursos que permeiam a formação escolar, de forma geral e possa criar contextos que possibilitem aos professores e alunos “se engajarem efetivamente em trocas múltiplas de significados” que façam diferença em todas as esferas da atividade humana. 1 . DESAFIOS A realidade brasileira nos mostra que para parte significativa da população, a escola, independente de seu nível, se constitui em mecanismo de transformação humana, no sentido de que a escola é o locus de construção do capital cultural, o qual dá originam aos demais capitais, tais como o econômico e o social, indiscutivelmente necessários para o exercício da vida em sociedade. Se por um lado, a escola se caracteriza como sendo um espaço de produção de saberes com bases científicas, fortemente elaborados e sistematicamente produzidos, na mesma medida, a escola também se constitui em espaço público de integração, organização e lazer, desvinculando a mesma de seu real papel, enquanto instituição responsável pela formação humana no aspecto cultural em seu sentido pleno. Diante desta constatação, a escola precisa firmar-se como um efetivo polo cultural, a serviço da superação da desigualdade social. No contexto do processo de superação das desigualdades sociais, as quais estão submetidas os trabalhadores, fica evidente que a escola precisa deixar de reproduzir o processo de dominação e alienação do traba51 0 lhador e se tornar uma escola comprometida com as transformações sociais, mediante um projeto pedagógico que seja permeado pela vida concreta de cada um e cada uma, possibilitando diferentes abordagens mediante uma construção coletiva pela comunidade escolar. A proposição para a concretude de uma escola capaz de lincar a formação do trabalhador no contexto de uma formação integral não é de uma ação educadora qualquer, mas uma educação vinculada a um Projeto Democrático,comprometido com a emancipação dos setores excluídos de nossa sociedade. Uma educação que assimila e supera os princípios e conceitos da escola e incorpora aqueles gestados pela sociedade organizada. Trata-se de um processo de via de mão dupla em que a comunidade educa a própria escola e é educada por ela, que passa a assumir um papel mais amplo na superação da exclusão social. Neste sentido, o conceito de inclusão que deverá perpassar a Educação Profissional e Tecnológica deve abrigar o combate a todas as formas de opressão e preconceitos, também geradores de violência e intolerância, por meio de uma educação humanista, pacifista, preocupada com a preservação da natureza e profundamente vinculada à solidariedade entre todos os povos independentemente de fronteiras geográficas, diferenças étnicas, religiosas ou quanto à orientação sexual (PACHECO, 2011 ). As práticas educativas desenvolvidas no processo de formação do trabalhador devem estar vinculadas à promoção da emancipação dos trabalhadores, na mesma medida em que deve possibilitar também os princípios básicos da cidadania, tais como a tomada de consciência, a organização e a mobilização. Ou seja, a transformação do trabalhador em sujeito da história. 2. À LUZ DOS DADOS 511 Questão 1 - Quais foram os principais motivos de ter parado de estudar, anteriormente? Para representar o resultado desta questão, as repostas foram analisadas e classificadas em três categorias: trabalho, falta de oportunidade e casamento e filhos, conforme mostra o quadro e o gráfico abaixo: Quadro 1 : Motivos de terem deixado a escola. 51 2 Gráfico 1 : Motivos de terem deixado a escola. Muito embora o acesso à escola já tenha galgado alguns degraus, segundo dados fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – e divulgado no Documento Base do PROEJA (2007), o sistema educacional brasileiro ainda não inclui a todos e com relação à permanência a situação é ainda mais grave. A formação humana integral proposta pelo Documento, entre outros aspectos, considera o mundo do trabalho e o tema tem permeado as teorias educacionais ao longo dos séculos. O trabalho, no entanto, paradoxalmente, se mostra nesta pesquisa também como a principal razão de o cidadão deixar a escola, muito embora tenha a consciência da necessidade das certificações da escolaridade formal e para que possa inserir-se e/ou manter-se no mercado de trabalho e, inclusive pleitear melhores salários, bem como estar preparado para as oportunidades vindouras. Esse problema é reconhecido pelo próprio Documento Base do PROEJA: [...] a sociedade brasileira não conseguiu reduzir as desigualdades socioeconômicas e as famílias são obrigadas a buscar no trabalho das crianças uma alternativa para a composição de renda mínima, roubando o tempo da infância e o tempo da escola. Assim, mais tarde esses jovens retornam, via EJA, convictos da falta que faz a escolaridade em 51 3 suas vidas, acreditando que a negativa em postos de trabalho e lugares de emprego se associa exclusivamente à baixa escolaridade, desobrigando o sistema capitalista da responsabilidade que lhe cabe pelo desemprego estrutural (BRASIL, Documento Base, 2007, p.1 0-11 ). O tema trabalho também é responsável pelo retorno ao ambiente escolar, como mostram as respostas à próxima questão. Questão 2 - Por que você decidiu voltar à escola? Aqui, as categorias de classificação, também delineadas a partir das respostas obtidas, foram: para atender às necessidades do mercado de trabalho, ingresso em ensino superior e pessoais. Quadro 2: Motivos por que voltaram à escola. 51 4 Gráfico 2: Motivos por que voltaram à escola. Devido às similaridades, as respostas da questão 2 e 3 serão analisadas conjuntamente. Questão 3 - Por que escolheu o curso de PROEJA Edificações? Quadro 3: Razão da opção pelo curso PROEJA Edificações 51 5 Gráfico 3: Razão da opção pelo curso PROEJA Edificações Este último gráfico ratifica o anterior com relação à importância dada ao “mercado de trabalho”. Nesse aspecto, além da realidade dos sujeitos da pesquisa, pode estar ocorrendo influência dos discursos que os professores proferem em sala de aula (que não foram ouvidos nesta pesquisa), do plano de ensino (que não foi ana51 6 lisado neste trabalho), do plano de curso e do próprio Documento Base do PROEJA, que é o norteador de todo o programa. Muito embora esse último pregue que a “perspectiva estreita de formação para o mercado de trabalho”, deve ser abandonada para “assumir a formação integral dos sujeitos, como forma de compreender e se compreender no mundo” (BRASIL, Documento Base, 2007, p.2), traz em suas 74 páginas a repetição da palavra “trabalho” 85 vezes, em expressões como “mercado de trabalho”, “mundo do trabalho”, “trabalho e emprego”, “postos de trabalho”, “condições de trabalho”, “integração do trabalho com ciência, tecnologia e trabalho”, “planos de trabalho”, “bolsa de trabalho”, “educação e trabalho”, “políticas públicas de trabalho”, “sociedade e trabalho”, “saúde e trabalho”, “etnicidade e trabalho”, “relações de trabalho”, “noção de trabalho”. Traz também 81 vezes a expressão “educação profissional”, 1 3 vezes “formação profissional” e outras 1 3 vezes o termo “profissional” em expressões diversas, tais como, “qualificação profissional”, “ocupação profissional” e “atuação profissional”. O que não é de se surpreender, pois um dos seis princípios do PROEJA (o quarto princípio) compreende o trabalho como princípio educativo, muito embora esclareça que: A vinculação da escola média com a perspectiva do trabalho não se pauta pela relação com a ocupação profissional diretamente, mas pelo entendimento de que homens e mulheres produzem sua condição humana pelo trabalho — ação transformadora no mundo, de si, para si e para outrem (BRASIL, Documento Base, 2007, p.38). O Plano do curso PROEJA Edificações, por sua vez, segue a linha do Documento Base e justifica que o curso ar51 7 ticula “trabalho, cultura, ciência, tecnologia e tempo, visando o acesso ao universo de saberes e conhecimentos científicos e tecnológicos, produzidos historicamente” (CEFET-M, Plano de curso, 2009, p.2). Apesar de as propostas serem a integração da “qualificação social e profissional”, que conforme afirma o Documento Base “permite a inserção e atuação cidadã no mundo do trabalho, com efetivo impacto para a vida e o trabalho das pessoas” o interesse dos alunos é na educação profissional visando em primeiro plano o mercado de trabalho. No que refere a aprendizagem, considerando o curso de forma geral foi unânime a afirmativa de que a aprendizagem está ocorrendo. Quanto à forma como percebem essa aprendizagem (a que atribuem) é que houve variação. Vejamos. Questão 4 - Você acredita que está tendo uma boa aprendizagem nesse curso? Por quê? Quadro 4: Impressões acerca da aprendizag em 51 8 Gráfico 4: Impressões acerca da aprendizagem Nesta questão, demonstram ter consciência do próprio aprendizado atribuindo os resultados positivos ao próprio desempenho e ao dos seus professores. Essa impressão de senso comum encontra ressonância em resultados de pesquisa realizada por psicólogos 51 9 sociais. Por exemplo, Rosenthal & Jacobson (1 968a, 1 968b) mostraram que o conceito da “profecia da autorrealização” (self-fulfilling prophecy) é uma das razões (e não apenas o fato de que a criança é de classe social menos favorecida) a explicar o baixo rendimento de alunos das classes populares na escola. A base do conceito da profecia de autorrealização é a de que a expectativa inicial que uma pessoa tenha sobre o comportamento de outra, de alguma forma, sutilmente influencia a sua concretização. Esses autores realizaram uma pesquisa experimental com professores de 1 8 turmas de uma escola primária. Eles aleatoriamente escolheram algumas das crianças (20%) de cada sala e disseram aos professores que elas eram “alunos auspiciosos” (intellectual bloomers) e que teriam desenvolvimento notável durante o ano. Os resultados mostraram que esses alunos alcançaram dois pontos a mais no QI de habilidade verbal e quatro pontos no QI em geral. Aparentemente, os alunos auspiciosos fizeram o que os professores esperavam deles. Dessa forma, a conclusão do estudo de Rosenthal & Jacobson aponta para o seguinte: altas expectativas levam ao alto desempenho; baixas expectativas ao baixo desempenho. Nesse aspecto, pode-se ressaltar a atuação das crenças nas ações/atitudes, ao acreditar na própria capacidade e na qualificação e empenho dos professores procuram não decepcionar o outro, nem a si mesmo. É nesse sentido que alimentam a motivação e também mantém a autoestima, sendo esta o julgamento de valor que o indivíduo faz de si mesmo. Questão 5 - O que você está aprendendo tem aplicação prática em sua vida? ( ) Sim. ( ) Não. Cite exemplos: Para responder a esta pergunta, os alunos foram ori520 entados que se tratava de todas as disciplinas. Quadro 5: Impressões acerca da aplicação da aprendizagem escolar na vida social Gráfico 5: Impressões acerca da aplicação da aprendizagem escolar na vida social e profissional No plano de curso de PROEJA Edificações, já citado anteriormente, há um equilíbrio entre a carga horária do núcleo comum, com 1.21 8 horas e formação profissional com 1.235 horas. Isso se considerando o curso em sua totalida521 de. No entanto, nos dois primeiros semestres, objeto dessa investigação, há grande disparidade entre as horas destinadas às disciplinas de formação geral e as de formação específica, sendo 31 8h e 284h, primeiro e segundo semestre, respectivamente, de disciplinas do núcleo comum, enquanto a formação profissional conta com apenas 33h no primeiro e 66h no segundo semestre. Mesmo assim, as declarações levantadas, revelam impressões de maior incidência de aplicação na vida profissional dos indivíduos. Repete-se aqui o já comentado na análise das questões 2 e 3, que além das experiências e perspectivas pessoais, os alunos podem estar sofrendo influência dos discursos que permeiam o curso, que, por sua vez são oriundos da legislação vigente. Fato positivo é que há indícios de que estej