Relações Luso-Nipónicas nos sécs. XVI e XVII – (1)

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Relações Luso-Nipónicas nos sécs. XVI e XVII – (1)
Relações Luso-Nipónicas nos sécs. XVI e XVII – (1)
Carlos Jaca
Professor de História
A opção e publicação deste tema, já desenvolvido na Revista “História” quando
das comemorações (1993) dos 450 anos da chegada dos Portugueses ao Japão, considereia oportuna pelo facto de estar a decorrer no “País do Sol Nascente”, entre 25 de Março e
25 de Setembro, a primeira Exposição Universal do século XXI.
A participação de Portugal num dos eventos culturais mais importantes do planeta
é uma presença justificada e significativa. Acerca deste acontecimento já o suplemento
“Cultura” deu a relevância necessária e
suficiente, no passado dia 23 de Março, dois
dias
antes
da
abertura
da
Exposição
Universal de Aichi 2005, Japão.
As relações entre o Japão e Portugal,
que datam da chegada de uma nau portuguesa ao lugar de Tanegashima no século XVI,
são das mais antigas estabelecidas pelos portugueses no Oriente. E mais, é o primeiro
contacto de um País Europeu com o Japão.O “Vocabulário da Língoa de Japan”, o
primeiro dicionário de japonês em língua estrangeira, da autoria do Padre João
Rodrigues, da Companhia de Jesus, foi o primeiro passo para a aproximação entre as duas
culturas que Portugal, no momento presente da sua História, deseja manter e intensificar.
Finalizando esta breve explicação, pode dizer-se que, nos referidos séculos, coube a
Portugal o papel de representante do mundo ocidental e introdutor da cultura
europeia.Este influxo da cultura ocidental que o Japão foi absorvendo, adoptando e
adaptando, durante os dois séculos seguintes poderá, em grande parte, explicar a rapidez
com que o Japão se ocidentalizou no século XIX, tornando-se no século passado o país
mais progressivo e de mais alto índice de crescimento económico do mundo.
Assim, periodicamente, e durante algum tempo, irei abordar (com ligeiras
modificações em relação aos textos de 1993), os aspectos que me pareceram mais notáveis
e marcantes da presença portuguesa em terras nipónicas durante os sécs. XVI e XVII.
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Notícias do Japão antes de 1543.
Para além da própria riqueza da cidade a conquista de Malaca, em 1511,
incluída no plano de Afonso de Albuquerque para se apoderar das posições-chave
marítimas, abria aos portugueses os mares da China e fazia deles os pioneiros do
Extremo-Oriente.
Pela sua situação geográfica privilegiada, Malaca prestava à expansão
portuguesa pelo Oriente um apoio insubstituível, porquanto passava de terminus a base
de operações, donde partiam os navios de exploração das ilhas indonésias, das Molucas,
da China e do Japão.
O primeiro europeu que nos informa acerca do Japão é Marco Polo.Com efeito,
a edição portuguesa de 1922 do Livro de Marco Polo por Francisco M. Esteves Pereira,
correspondente à versão portuguesa,
feita pelo próprio impressor Valentim
Fernandes, em 1502, refere-se no seu
capítulo II à grande ilha de Cipango:
«Agora nos cheguemos a demostrar e
decrarar
as
terras
de
Índia
e
começarey em a ilha Grande de
Cipangu.Esta ylha da parte do oriente
he alongada no alto mar da ribeyra de
Mangi per mill e quinhentas milhas e he muyto grande.Os moradores della som alvos e
de convinhavel estatura.Som ydolatras e tem rey próprio, mas nom som tributários a
outro alguu.Ha hy ouro em muy grande abastança, mas el rey nom leyxa levar de
ligeyro fora da ilha, pella qual cousa vam la poucos mercadores e assi muy poucas vezes
som levadas las naaos de outras partes… Ally há aljofar em avondança muy grande, ho
qual he redondo e grosso e de coor vermelho, que em preço e valor sobrepoja ho aljofar
branco.Ha hy outrosy muytas perlas e muytas pedras preciosas.E por esto a ylha de
Cipangu he muy rica a maravilha».
Nascido em Veneza no ano de 1254 partiu, no de 1271, com seu pai e tio, por
terra, para a China, onde conseguindo as boas graças do rei dos Mongóis foi
governador de Yangiu entre 1282 e 1287.Durante a sua permanência na corte mongol,
Marco Polo terá ouvido falar de uma tal ilha de Ji-pan-ku, nome que ele corrompeu e
divulgou na forma de Cipango ou Zipango, e que se encontra representada em várias
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cartas anteriores a 1500, como a carta mural da Salla delle Scudo do Palácio do Doge,
em Veneza, a Carta Catalã de 1375, a Carta Bórgia, o Mapa-Múndi de Fra Mauro
(1459), o Globo de Nuremberga de Martim Behaim (1492), o Mapa-Múndi de Martellus
(1492) e o Globo de Laon (1493).
Quando Cristóvão Colombo descobriu em 1492 a ilha de Haiti, pensava ele que
tinha aportado à “ilha do Ouro”, ao misterioso
Cipango de Marco Polo, «julgando ver em Cuba
o Cataio e na América Central a terra firme da
Ásia.Mas, em 1513, Nunes de Balboa atravessou
o Istmo de Darien e descobriu o mar do Sul.Não
podia portanto o continente americano ser Ásia,
nem as Antilhas as 7448 ilhas do Mar da China,
nem Haiti o Cipango».
Desde Marco Polo encontramos nos
cartógrafos numerosas ilhas a oriente da China
e, entre elas, uma com o nome de Cipango,
porém, até ao séc. XVI em nenhum dos grandes
viajantes, como Fr.Odorico de Pordenone (1330) ou Nicolo de Conti (1415-1439) parece
encontrar-se qualquer referência ao Japão, conquanto vários historiadores tenham
pretendido identificá-lo com algumas ilhas por eles apresentadas.
Nos “Commentarios do Grande Afonso Dalboquerque” há referência aos
“gores” que o Vice-Rei encontrou em Malaca, os quais traziam ouro «de huma ilha, que
esta perto delles, que se chama Perioco». C. R. Boxer admite que estes “gores” sejam os
nipões e que, assim, o primeiro encontro de portugueses com japoneses date
de1511.Outros autores têm exprimido opinião semelhante, mas também há quem
suponha que os “gores” sejam os coreanos.
O primeiro texto do século XVI que tem o nome do Japão é a “Suma Oriental”
de Tomé Pires. Farmacêutico de profissão, nasceu em Leiria nos meados do séc. XV,
esteve na Índia com Afonso de Albuquerque que, depois da conquista de Malaca em
1511, aí o deixou como escrivão e contador da feitoria. Aqui, em Malaca, escreveu Pires
a sua “Summa Orientall que Trata do Mar Roxo athee aos Chijs”, notável documento
para a história da geografia, sem dúvida a mais importante e completa descrição do
Oriente produzida na primeira metade do séc. XVI, pois foi escrita em 1512-1515. É a
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primeira descrição das Índias Orientais feita, em grande parte, pelo que ele próprio viu,
e do maior interesse. Para a descrição da China e do Extremo-Oriente dependia
geralmente dos outros.
Efectivamente, na “Suma Oriental”, Tomé Pires já emprega a forma malaia
Japun ou Japang, referindo-se à ilha de Japaon de que, provavelmente, tivera
conhecimento através dos mercadores muçulmanos, os “luções” das Filipinas.
No planisfério de Canério (1506?), de inspiração portuguesa, encontra-se
desenhada a ilha Chingirica, no extremo oriental da Ásia, que possivelmente representa
o Japão.
De qualquer modo, só a partir de meados do séc.XVI, e com base nas relações
jesuítas e na experiência de viajantes portugueses, se alargam e definem os
conhecimentos cartográficos sobre o Japão. Precisamente em carta de 1550, atribuída a
Giacomo Gastaldi, aparece já a antiga Cipango denominada Giapam, porém, ainda sem
grande modificação em relação às representações anteriores.
A primeira representação cartográfica do arquipélago japonês, de autêntico
valor geográfico, assente em dados positivos de lá trazidos por portugueses, que em
meados do séc.XVI já frequentavam regularmente aquelas ilhas, corresponde à carta
do Atlas de 1558, de Diogo Homem. Embora ainda de uma maneira confusa,
reconhecem-se já as três ilhas principais do arquipélago – Hondo, Sikoko e Kiosio – e se
encontra bastante exacto o desenho da cadeia de ilhas que ligam o Japão à Formosa. De
Diogo Homem conhece-se também outra carta do Japão do Atlas de 1561,existente em
Viena, onde a nomenclatura é mais desenvolvida… Por outro lado, a influência das
relações jesuítas encontra-se documentada no Planisfério de Bartolomeu Velho, de
1561,que representa de uma maneira particularmente notável o arquipélago japonês.
De 1568 data a primeira carta especial do Japão, desenhada pelo grande
cartógrafo Fernão Vaz Dourado e que se encontra no Atlas do Duque de Alba, de 1568.
Provavelmente elaborada antes de 1563, inclui apenas a parte sul do Japão, faltando
parte da ilha de Hondo e a ilha de Iedo
Directa, ou indirectamente, as fontes dos missionários jesuítas, através dos
portugueses que serviam de intermediários aos cartógrafos italianos ou flamengos, e até
as próprias fontes nipónicas, irão exercer notável influência sobre a cartografia
europeia do Japão na 2ª metade do séc.XVI que se seguirá ao desembarque português.
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Conclui-se este capítulo recorrendo a uma das maiores autoridades em
japonologia. Refiro-me ao alemão Georg Schurhammer S.J., correspondente da
Academia Portuguesa de História.
Schurhammer ao tratar o tema sobre o descobrimento do Japão recorreu a
textos de autores ocidentais, árabes e persas, que acerca do Japão nos deixaram
relações de supostas ou verdadeiras notícias.Estes textos, depois de rigorosamente
interpretados, deveriam provar que os portugueses foram os primeiros ocidentais que
alcançaram o Japão e que a eles se deviam as primeiras, minuciosas e certas
informações daquele longínquo arquipélago e reino do Sol Nascente.
Assim dos textos propostos e exaustivamente analisados por Schurhammer,
consta:
1) Os Gregos e os Romanos não tinham conhecimento nenhum do Japão.
2) Os Persas tinham relações comerciais com o reino de Silã na Coreia e ouviam
falar do Japão. O antigo nome do Japão Wa-koku ( no dialecto de Cantão Wo-kwok )
encontra-se pela primeira vez, cerca de
886,
no
geógrafo
Khoordâdzbeh
sob
persa
a
forma
Ibn
de
Wâkwâk. As suas notícias repetem-se
fantasticamente
enfeitadas
pelos
geógrafos persas e árabes.Nas obras
deles tornou-se Wâkwâk em ilha
fabulosa,
cuja
situação
ninguém
conheceu.
3) Marco Polo esteve na China, na corte do Grão-Cão dos Mongóis, quando este
mandou contra o Japão duas mal afortunadas expedições. Aí ouviu ele falar desse país
com o nome chinês Ji-pan-ku, e foi dos europeus o primeiro que deu notícias do Japão
como de uma ilha chamada Cipango. Da sua obra, muito lida, passou a ilha para a
cartografia do séc.XV e princípio do XVI, sem que se soubesse a posição exacta da ilha.
4) Encontra-se, pela primeira vez o nome malaio Japung para Japão na “Summa
Oriental” de Tomé Pires; e desta forma veio o nome português do Japão.Mas antes de
1543 era desconhecida aos europeus a posição exacta da ilha.
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Descobrimento do Japão pelos Portugueses (1543).
É ideia corrente, e unanimemente se aceita, terem sido os Portugueses os
primeiros europeus a pisarem o solo do Japão cabendo, assim, aos nossos viajantes e
missionários inaugurar a era moderna da história da região do “Sol Nascente”,
estabelecendo o seu contacto com o mundo ocidental.
Se bem que date de 1543 a mais antiga viagem
conhecida que levou os portugueses a aportar ao Japão,
não é de rejeitar a possibilidade de lá terem chegado
anteriormente em qualquer navegação ignorada. Nada tem
de extraordinário que, propositadamente ou arrastados por
temporal, houvessem chegado ao Cipango de Marco Polo.
Muito mais que pelas vagas indicações de venezianos, os
portugueses tiveram conhecimento real da existência do
Japão por referências colhidas nos portos da Índia e da
China, dos navegantes árabes e entre os vários marinheiros
e comerciantes asiáticos.Afonso de Albuquerque, Gaspar
Correia, Lopes de Castanheda, João de Barros, Tomé Pires, falam dos Gores ou
Léquios, naturais do arquipélago de Riukiu, ao sul do Japão. Em 1517, Jorge de
Mascarenhas tenta desembarcar na ilha Léquia, e Simão de Andrade, em Agosto de
1518, aconselha D.Manuel a descobrir as “ilhas dos Léquios”.
É muito provável que os portugueses tivessem encontrado japoneses, sobretudo
na costa da China onde por vezes apareciam barcos nipónicos.
A proibição de entrar na China, que em 1480 o imperador deste país havia
decretado contra os piratas japoneses, não foi observada pelos nipónicos até ao tempo
de Oda Nobunaga e Toyotomi Hideyoshi.
Portugueses e japoneses viviam por 1540, dois ou três anos antes da chegada dos
portugueses ao Japão, nas pequenas ilhas à entrada de Liampó (Ning-Po) porto situado
na embocadura do rio Chekiang, em frente da costa japonesa, onde costumavam
ancorar. Ali, portugueses e japoneses, construíram pequenas casas e cabanas. A este
porto de Liampó se dirigia o junco (barco oriental) proveniente do Sião que, na versão
tradicional, uma violenta tempestade desviou e fez ir dar à ilha de Tanegashima, ao sul
do Japão
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Se, como já foi dito, a descoberta do Japão pelos portugueses é hoje
unanimemente aceite, o mesmo não acontece em relação ao ano da descoberta e à
identidade dos descobridores, problema que ao longo dos anos tem sido objecto de
discussões e divergências.
Quanto à data da descoberta, as principais fontes históricas apontam para o ano
de 1542 ou 1543; quanto ao nome dos portugueses que primeiro aportaram a
Tanegashima a questão consiste em considerar o imaginativo e aventureiro Fernão
Mendes Pinto como um deles, ou atribuir a prioridade a António da Mota, Francisco
Zeimoto e António Peixoto, argumentando que a
1ª viagem de Mendes Pinto não podia ter
acontecido antes de 1544; há, ainda, quem associe
o nome de Fernão Mendes Pinto não aos
portugueses acima referidos, mas a Cristóvão
Borralho e Diogo Zeimoto. Por outro lado, o
Cardeal Saraiva, ilustre historiador dos nossos
descobrimentos, adopta uma solução ecléctica
sustentando que os dois grupos de portugueses deviam ter alcançado o Japão pelo
mesmo tempo, negando qualquer direito de prioridade
A versão vulgarizada pertence ao historiador António Galvão, governador das
Molucas, que dá como descobridores do Japão os três portugueses António da Mota,
Francisco Zeimoto e António Peixoto, os quais teriam arribado à praia da ilha de
Tanegashima, num junco, por via de uma tempestade: «No anno de1542 achando-se
Diogo de Freytas no Reino de Siam na cidade Dodra capitam de hum navio, lhe fogiram
três portugueses em um junco que hia pêra a China; chamavam-se António da Mota,
Francisco Zeimoto e António Peixoto.Hindo de caminho para tomar porto na cidade de
Liampo, que está em trinta e tantos graus de altura, que lhe deu tal tormenta a popa,
que os apartou da terra e em poucos dias ao Levante viram huma ylha em trinta e dous
graus, a que se chamam os Japões, que parecem ser aqueles Sipangas de que tanto
falam as escripturas, e suas riquezas: e assi estas também tem ouro e muita prata e
outras riquezas».
Embora a tradição corrente na história seja a que foi consagrada por A. Galvão
no referente à identidade dos descobridores (Diogo do Couto e outros autores antigos e
modernos são do parecer de Galvão) o cronista terá apontado erradamente para 1542
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como o ano da descoberta, uma vez que os testemunhos referentes a 1543 são
inegavelmente mais ponderosos.
Na colectânea de estudos de vários autores japoneses intitulada “Acceptance of
Western Cultures in Japan From the Sixteenth Century to the Mid – nineteenth
Century (The Centre for East Asian Cultural Studies”, Tokio, 1964), todos os autores
sem excepção, dão a data de 1543 para a chegada dos portugueses ao Japão.
O “Teppô – ki”, crónica japonesa sobre a história da introdução da espingarda
no Japão, escrita em 1606 pelo Nampo Bunshi, padre budista da seita Zen de Satsuma,
é a fonte mais minuciosa e a única que designa o dia, o mês, o ano, bem como o lugar
exacto do desembarque: a praia de Nishimura Ko-oura em Tanegashima.
O “Teppô – Ki”, dá como dia de desembarque dos portugueses no Japão o dia 23
de Setembro de 1543, indicando o número dos recém-chegados, o nome do intérprete
chinês (Gohô), do chefe da aldeia japonesa próxima (Oribenojó), e até o pormenor das
perguntas e respostas trocadas entre estes e o processo como comunicavam, escrevendo
na areia.
Reforçando a data de 1543, é o que parece
deduzir-se do testemunho proporcionado por S.
Francisco Xavier. A primeira notícia que se deu com
mais exactidão sobre o descobrimento do Japão pelos
portugueses é uma carta ditada por S. Francisco e por
sua mão assinada, e cujo original se conserva no
Arquivo Geral da Companhia de Jesus. Datada de
Cochim, 29 de Janeiro de 1552, é dirigida aos seus
irmãos da Europa: «Esta terra de Japão hé muito
grande em estremo, são ilhas… há oyto ou nove annos que forão descobertas estas ilhas
de Japão pelos portugueses».
Em 8 de Abril do mesmo ano escrevia de Goa a Simão Rodrigues, referindo que:
«Os japões tem para si que não há outros homens em o mundo senão elles, isto hé
porque nunca conversarão com outra gente, até que os portugueses novamente
descubrirão aquelas ilhas, que faz agora oito ou nove annos».
A informação de Francisco Xavier, de Janeiro e Abril de 1552, não deixa de
estar de acordo com a data do “Teppô-ki,” porquanto de Setembro de 1543 até Janeiro
de 1552 vão oito anos e quatro meses, e até Abril de 1552 oito anos e sete meses.Salientese que o Padre Mestre Francisco conheceu pessoalmente os portugueses que naqueles
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primeiros anos mantinham comércio com o Japão e , além disso, permanecera um ano
inteiro em Kagoshima, não longe de Tanegashima.
O ilustre orientalista Schurhammer, após ter reunido uma interessante e
exaustiva colectânea das supostas ou reais notícias sobre o Japão e dos textos relativos
ao descobrimento pelos portugueses, procedeu à análise critica das fontes portuguesas e
japonesas, concluindo que os portugueses só em1543 foram pela primeira vez ao Japão.
E mais, Fernão Mendes Pinto nunca lá estivera antes de 1544.
Fernão Mendes Pinto.
A “Peregrinação”e, obviamente, Fernão Mendes
Pinto, constituem um tema demasiadamente vasto (e até
complexo) para poder ser tratado aqui e agora, não podendo
assim conferir-lhe a dimensão que merece.
Conforme se pode concluir da carta de Malaca,
Dezembro de 1554, dirigida aos Padres e Irmãos da
Companhia de Jesus em Portugal e do capítulo 1º da sua
“Peregrinação”, Fernão Mendes Pinto nasceu entre 1509 e
1511, na vila de Montemor-o-Velho.
Afirma ter passado os seus primeiros anos na «miséria e estreiteza da pobre
casa» de seu pai, até que um tio desejoso de lhe garantir melhor futuro o encaminhou
para Lisboa.Insatisfeito com a mediocridade da sua situação, Fernão Mendes embarca
para a Índia com pouco mais de vinte anos.
A vida aventurosa do autor da “Peregrinação”, tal como ele a descreve, inicia-se,
precisamente, a 11 de Março de 1573, quando embarcado numa das naus que naquele
ano partiram de Portugal, veio a desembarcar na barra de Diu a 5 de Setembro de 1537
(e não de 1538 como, por lapso, se diz na “Peregrinação.”)
Após algumas aventuras que o deixaram desiludido troca, sem saudades, a Índia
pelo Extremo – Oriente entrando para o serviço do capitão da fortaleza de Malaca,
Pedro de Faria, recentemente nomeado.Por volta de 1539 parece ter-se fixado em
Malaca, servindo o capitão à maneira de uma espécie de embaixador itinerante, sendo
enviado em missões diplomáticas oficiais aos pequenos reinos de Samatra, que eram à
época aliados dos portugueses contra os muçulmanos de Achin, no norte de Samatra.
Essas missões permitiam-lhe comerciar por sua conta, olhando simultaneamente pelos
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interesses comerciais dos funcionários que servia, muitos dos quais, conforme observa
maldosamente, enriqueciam comerciando por sua conta, em detrimento do rei e dos
seus aliados, que vão sendo derrotados.
Por mandado de Pedro de Faria foi, segundo diz, parar a Patane onde se
encontra com um grupo de compatriotas – nesta cidade viviam numerosos portugueses
que mercadejavam no Sião e na China.Levantando âncora de Patane e levando consigo
o feitor Cristóvão Borralho, «homem entendido no negócio da mercância», e que por
longo tempo o acompanhará, Fernão Mendes Pinto «teria percorrido as costas da
China até à região fria do norte, penetrando na Coreia e na Manchúria; atravessado o
seu interior em várias direcções, até atingir a Mongólia e o Tibete; medido aos palmos
com as suas próprias mãos a muralha da China; pertencido ao primeiro bando de
portugueses que desembarcaram no Japão; penetrado na ilha Formosa.Teria sido
muitas vezes mercador, e outras pirata, outras vagabundo a pedir pelos caminhos,
ainda, escravo».
O facto é que regressou a Goa, muito rico, em 1554.Um jesuíta que o conheceu,
caracterizava-o nesta época como um mercador da China, que conseguira amealhar
grande fortuna durante dezassete anos de actividade.Entretanto, encontra os jesuítas e
quando chega a Goa depara-se com o cadáver do bem-aventurado S. Francisco Xavier,
que
Fernão
Mendes
tão
bem
conhecia
e
com
quem
tivera
excelente
relacionamento.Perante o corpo em perfeito estado de conservação e da enorme
multidão que se comprimia para tocar no Apóstolo, Fernão Mendes Pinto,
possivelmente acometido por um acesso de fervor religioso, propõe-se abraçar a vida de
missionário, como irmão leigo.Logo ali, resolve,
colocar ao dispor da Companhia meios que
viabilizassem uma missão ao Japão e utilizar os
seus conhecimentos para facilitar as relações com
os reis da terra.
A expedição realizou-se (1554-1556) indo
nela o sucessor de Xavier, Padre Belchior Nunes
Barreto, enquanto Mendes Pinto viajava na
qualidade de embaixador do Vice-Rei ao dáimio
ou senhor feudal do Bungo, na ilha de Kiushu, o
qual manifestara desejo de se converter à fé cristã, em carta recebida pouco antes pelo
governador da Índia, só que… «a espectacular enviatura a Bungo não deu os resultados
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apetecidos, em razão das guerras civis e pôs em cheque a vocação religiosa de Fernão
Mendes, fazendo-o desertar ou, melhor, pedido para ser despedido da Companhia».
Sabe-se de facto que,ou ainda no Japão ou já em Goa, o grande aventureiro foi
dispensado dos votos que contraíra como jesuíta. É duvidoso se teria saído
voluntariamente da Companhia ou, se esta, por qualquer motivo ainda desconhecido, o
compeliu a pedir a dispensa.O certo é que o homem a quem os correligionários
chamavam nas suas cartas «o caríssimo irmão Fernão Mendes», se via agora pouco
menos que pobre e com o seu nome sistematicamente riscado dos documentos da
Companhia.
A renúncia ao voto que tão «levianamente formulara» parece (aparentemente)
não ter originado qualquer incompatibilidade com os padres, embora algo de estranho
se tenha passado no trajecto Goa – Japão – Goa que o levaria a mudar de ideias,
mudança essa em que apenas podemos admitir conjecturas.Conjecturas sugeridas a
partir do próprio espírito da “Peregrinação”, é o que parece ressaltar do juízo
formulado pelo Prof. António José Saraiva quando aventa que, «tanto aquela entrada
como esta saída são golpes de teatro inverosímeis, embora incontestavelmente
verdadeiros.Parecem revelar ao nosso autor interesses que excedem, em geral, a
capacidade de um mercador bem sucedido.Devemos entretanto lembrar-nos de que
Fernão Mendes Pinto não é só mercador, mas também o autor de um livro como a
“Peregrinação”.A hipótese mais provável, é que ele terá ficado profundamente
impressionado pela personalidade excepcional de S. Francisco Xavier e que idealizou
uma Companhia de Jesus à imagem do apóstolo.
Mais tarde, ou porque o conhecimento mais íntimo da Companhia lhe tivesse
amortecido a tensão heróica, ou porque os hábitos de estreme individualismo contraídos
na sua larga aventura se lhe revelassem incompatíveis com a abdicação pessoal que a
Companhia exige dos seus membros, ou por ambas as razões, arrependeu-se do seu
primeiro entusiasmo».
O ambiente em Goa não lhe seria propício.Assim, provido de atestados de bons
serviços passados pelo governador, partiu para Portugal, tendo chegado a Lisboa em 22
de Setembro de 1558.
Fixa residência em Almada, na sua quinta do Pragal, onde, porventura já casado
com Maria Correia de Brito se vai dedicando a escrever as suas “Memórias,”
queixando-se amargamente dos quatro anos e meio a caminhar com os papeis para os
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oficiais do Paço, por não ter conseguido, ainda, a sinecura real pelos largos anos em que
prestara serviço a Deus e ao Rei.
Pouco tempo antes de morrer conseguiu, finalmente, uma tença de dois moios de
trigo, a partir de 1 de Janeiro de 1583, «em respeito dos serviços que…tem feytos nas
partes da Índia». Pouco tempo a gozou, porquanto veio a falecer em 8 de Julho do
mesmo ano, legando aos filhos (ou à Casa das Penitentes de Lisboa) a sua
“Peregrinação” – «um livro em que a verdade e o mito se confundem a tal ponto que o
mito parece história pura, e a verdade prodigiosa fantasia».
Mendes Pinto, um dos descobridores das Ilhas Nipónicas?
Parece-me, agora, ser oportuno abordar a tão
debatida questão: se Mendes Pinto se contou com
verdade
entre
os
“descobridores”
das
Ilhas
Nipónicas.
Há quem considere como ponto assente que
Fernão Mendes Pinto, com Diogo Zeimoto e
Cristóvão Borralho, foram os primeiros portugueses
de que há conhecimento terem chegado ao Japão.
Citando apenas alguns, referirei H.Haas, S. Puschas,
D. Osborne e Ioxitomo Okamoto entre os historiadores estrangeiros e Cristóvão Aires,
J. Abranches Pinto, Luís Norton e Armando Cortesão entre os portugueses.Outros,
como já foi referido, atribuem a descoberta a António da Mota, Francisco Zeimoto e
António Peixoto, indicados pelos historiógrafos quinhentistas António Galvão e Diogo
do Couto e confirmados por fontes japonesas, como parece também demonstrar Georg
Schurhammer, pela análise minuciosa das informações fornecidas pela própria
“Peregrinação”e por outras relações portuguesas e nipónicas.
Aos relatos de Galvão e Couto contrapõem-se as afirmações de Fernão Mendes
Pinto nos capítulos 132 a 137 da sua “Peregrinação”, atribuindo-se a si próprio e aos
dois companheiros, o mérito do “descobrimento”tendo visitado demoradamente a ilha
de Tanegashima, cujo governador seria presenteado com uma espingarda, a primeira
arma de fogo que existiu em qualquer terra japonesa: «E ancorando em frente da ilha
em setenta braças, nos saíram da terra duas almadias pequenas em que vinham seis
homens, os quais, chegando a bordo, depois de fazerem as suas salvas e cortesias ao seu
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modo, nos perguntaram de onde vinha o junco, ao que se respondeu que da China, com
mercadorias para fazer ali negócios com eles, se para isso nos dessem licença; um dos
seis respondeu-nos que a licença, o Nautaquim, senhor daquela ilha de Tanixumá
(Tanegashima), a daria de boa vontade, se lhe pagássemos os direitos que se
costumavam pagar no Japão, que era aquela grande terra que defronte de nós
aparecia».
Pode afirmar-se que a verdade relatada por Fernão Mendes Pinto, chamando a
si a glória de ser um dos descobridores do Japão é considerada como verídica, pelo
menos, por uma parte dos historiadores japoneses. Assim, Brito Rebelo no prefácio da
sua edição da “Peregrinação”refere um discurso pronunciado pelo médico japonês Dr.
Kamon, no Congresso de medicina realizado em Lisboa, 1906, destacando a seguinte
passagem: «Desde que o português Mendes Pinto, em 1542, como primeiro europeu,
pisou o solo japonês, tem-se, pelo decurso dos séculos, cimentado relações que
asseguram ao Japão um lugar no concurso de todas as nações civilizadas» … Esta
mesma opinião é compartilhada pelo erudito investigador japonês Ioxitomo Okamoto
no seu valioso trabalho sobre a “Origem das relações entre Japoneses e Portugueses.”
Do referido autor japonês em colaboração com o português J. Abranches Pinto é
o artigo publicado em 1929, pela Sociedade Luso-Japonesa, “Mendes Pinto e o
descobrimento do Japão”, onde crêem ter ficado provado que a notícia do Japão dada
pelo autor da “Peregrinação” é verdadeira e que as suas descrições, com excepção de
um ou outro nome estropiado, são exactas.
Armando Cortesão considera que o facto de António Galvão não citar o nome de
Fernão Mendes Pinto, bem como as divergências nos respectivos relatos, têm servido de
argumento aos partidários do estafado trocadilho – “Fernão, Mentes? Minto,» para
afirmarem que o autor da “Peregrinação” não foi o descobridor do Japão e
indignamente se apropriou de glória que a outros pertencia.
Também nenhum dos numerosos jesuítas que se têm dedicado ao estudo do
Japão lhe atribui o seu descobrimento. A este propósito não pode omitir-se que Fernão
Mendes Pinto entrou, em 1554, como irmão leigo para a Companhia de Jesus, onde foi
sempre bem recebido, e citado com frequência em cartas de padres da Instituição de
Stº. Inácio.Em 1556,sem se saber ao certo porquê, Mendes Pinto abandonou a
Companhia. Possivelmente, esta atitude terá sido considerada ofensa grave, sem
perdão, afirmando um dos seus mais ilustres biógrafos que, a animadversão dos jesuítas
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por Fernão Mendes Pinto, ao ponto de mandarem riscar o seu nome em todos os seus
registos, não teria contribuído em pouco para o descrédito da “Peregrinação.”
O Padre jesuíta Luís Frois que tantas referências lhe fizera nas suas “Cartas”,
nem uma só vez o cita na sua “História de Japão”.
O Prof. Manuel Ramos, reportando-se ao Códice 49-IV-53 da Biblioteca da
Ajuda, intitulado “História do Japão,”refere-se ao
descobrimento do arquipélago dando a versão de
Galvão e Couto que o atribui a Zeimoto, Peixoto e
Mota, acrescentando: «Fernão Mendes Pinto no
seu livro de fingimentos se quer fazer um destes
três – mas é falso, como o são muitas outras coisas
de seu livro, que parece compôs mais para
recreação que para dizer verdades» … «Dum só
golpe, arrancou-se ao antigo irmão leigo a glória
de descobridor e o mérito da veracidade.Livro de
fingimentos! Com este estigma passou o livro à
posteridade e até numa comédia de Shakespeare
encontrou eco aquela terrível denominação».
Alguns autores jesuítas, nomeadamente
Domingos Maurício, rejeitam liminarmente qualquer animosidade em relação a Fernão
Mendes Pinto, ou ainda que se tivesse urdido uma tremenda conjuração, primeiro de
descrédito, e depois de silêncio; o ilustre jesuíta refere uma série de circunstâncias que
descartam o suposto ódio ou ressentimento dos inacianos, e até demonstram a existência
de relações cordiais entre eles e o seu antigo confrade.Isto mesmo se pode depreender
dos termos, sempre respeitosos, em que o escritor montemorense se refere ao Padre
Belchior Barreto, que não só o levou ao Japão, mas foi quem o desligou da Companhia.
A “Peregrinação”
Há quem conteste o valor documental / histórico da obra de Mendes Pinto.No
entanto, nela se relatam muitos factos cuja historicidade é indiscutível, mesmo que
tenhamos que distinguir entre a factualidade dos eventos narrados e o protagonismo do
autor.
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A “Peregrinação” foi dada à estampa em 1614, isto é, trinta e um anos depois da
morte do autor. Segundo testemunho do Conde da Ericeira, teria sido Francisco de
Andrade quem preparou para a imprensa o manuscrito, ordenando-o em capítulos e
havendo indícios reais de ter alterado o texto aqui e acolá.
O Padre Francisco de Herrera Maldonado, o tradutor espanhol da obra, indica
algumas variantes referindo-se, expressamente ao original manuscrito, «que tinha
diante dos olhos».
Acrescente-se ainda, que os livros submetidos à Inquisição o eram em
manuscritos, e o segredo das alterações, cortes
ou mesmo acrescentos ficava entre o autor
(neste caso Francisco de Andrade, responsável
pelo texto) e o censor.Desta forma, há que
admitir que o texto que nos chegou não é
exactamente o que Fernão Mendes Pinto
esreveu.Difícil será, a não ser que o acaso nos
traga o manuscrito primitivo, decidir o que na
“Peregrinação” não é da responsabilidade do
autor.E mesmo neste caso haveria que ter em conta a pressão psicológica a que ele
estava submetido, perante uma censura «vigilante, astuta e verrumosa».
Suspeito da falta de verosimilhança, o relato das “vagabundagens” de Fernão
Mendes Pinto apresenta-se como uma autobiografia, memórias, se se quiser, sabendo-se
que nestes géneros o realismo, a objectividade e a fidelidade são características muito
relativas. Saliente-se que Mendes Pinto não pretendeu fazer um trabalho histórico, mas
simplesmente um livro de memórias não deixando, por isso, de ser um notável
repositório documental.
Eduardo Prado Coelho considera que a análise da “Peregrinação”é feita muitas
vezes em termos de verdade ou mentira e, que, embora aceitando a grande margem de
fantasia que existe no texto de Mendes Pinto, verifica tratar-se de um livro com enorme
valor documental e pode-se, muitas vezes, encontrar a referência efectiva a que
corresponde a narração de determinada aventura.
Com efeito, poder-se-á dizer que «a despeito de grande parte das suas descrições
quanto à sua riqueza (ou pobreza) de cada região que ia percorrendo, da sua história
remota ou próxima, dos seus hábitos, costumes, religiões, vida social, e tantos outros
aspectos, resultarem por seu turno de narrações que lhe eram feitas (o que de resto
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Fernão Mendes não omite); não obstante abundarem transcrições de discursos e de
cartas (em certos casos com uma extensão nada pequena) de dezenas de personagens os
mais variados, que, como é óbvio, o autor poderia reproduzir com fidelidade volvidos
tantos anos…pese embora a todas estas e por certo várias outras observações
semelhantes que se poderiam fazer, a “Peregrinação” ergue-se diante de nós como um
indiscutível monumento de realismo histórico». Porém, como um dos aspectos desta 1ª
parte abrange a polémica questão da primeira viagem de Fernão Mendes Pinto às Ilhas
Nipónicas, o problema que, de imediato, se põe tem muito a ver com a fidelidade
cronológica da”Peregrinação, isto é, se o autor merece confiança quando refere datas,
durações, prazos.
Assim, tem-se procurado investigar se há ou não contradições nas datas
indicadas pelo autor, impossibilidade de determinada acção ou percurso se ter realizado
em tempo tão reduzido ou, ainda, se determinada festa litúrgica terá coincidido com o
dia indicado pelo autor e se haverá ou não coincidência do dia da semana com o dia do
mês mencionado.
As grandes discrepâncias e contradições na cronologia de Mendes Pinto levam a
concluir que, acerca deste aspecto, a “Peregrinação” merece geralmente pouca
confiança.
Foi Brito Rebelo quem melhor demonstrou as frequentes imprecisões de carácter
cronológico ao longo de todo o texto, quando se deu à paciente tarefa de reunir uma
série de casos e concluir pela falta de exactidão da maior parte deles.
Efectivamente, «as datas andam totalmente misturadas umas com as outras.
Estão muitas vezes em contradição directa com as das fontes contemporâneas e seguras,
e consigo mesmo.Se, por exemplo, seguirmos as datas particulares de Mendes Pinto e
somarmos os meses e anos que ele próprio conta para o espaço de tempo de 1542 a 1541,
encontramo-nos com 13 anos em vez de 10; ficam-nos, por conseguinte, 3 anos, pelo
menos, que não podemos acomodar aos acontecimentos». Um exemplo: a viagem de
Mendes Pinto ao interior da China.
Ora, a crítica considera inverosímil, e com razão, tal viagem, pois como ele a
descreve é fisicamente impossível: «Depois de haver dous meses e meio que andavamos
nesta cidade de Pequim, num sábado treze dias do mês de Janeiro de 1544, nos levarão
para a cidade de Quansy a cõprirmos o nosso degredo, onde, chegados, nos mandou o
Chaen levar perante sy» …
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Pela maneira como se expõe o caso, não se pode calcular que haja entre Pequim
(ao norte) e Quansy (ao sul) uma extensão de 1800 quilómetros em linha recta, que
teriam sido percorridos por Fernão Mendes e companhia de «uma forma misteriosa».
E, parece que há pior…Mas não se pode esquecer que a “Peregrinação” é um livro de
memórias, escrito, portanto, posteriormente, numa situação que já não era a vivida e
não um diário escrito dia a dia, à medida que a vida e a experiência se
desenrolam.Como memórias trata-se de «uma síntese, duma visão global onde é muito
difícil achar uma linha contínua de evolução mental e de transformação de valores, em
que as contradições aparecem surpreendentemente, sem ordem, coisa que certamente
não sucederia num diário».
Em reforço desta pertinente observação, parece-me significativa a opinião do
francês Michel Tournier quando, a propósito da literatura de viagens, e nomeadamente
de Marco Polo, afirma: «ninguém pode evitar que a memória e a imaginação se
misturem inextricavelmente, o que tanto mais se verificará quando espaços mais vastos
e durações mais longas se intercalem entre os factos e a sua relação».
As Viagens ao Japão.
Dos inúmeros autores que se têm dedicado à investigação exaustiva de Fernão
Mendes Pinto e da “Peregrinação”, abarcando-os nas suas diferentes facetas, destaca-se
muito justamente o erudito Georg Schurhammer. O eminente orientalista pretende
demonstrar, e parece tê-lo conseguido, que o
autor da “Peregrinação” não fazia parte do
grupo de portugueses que em 1543 aportou à
ilha de Tanegashima, reconhecendo, no entanto,
que Mendes Pinto teria visitado muito cedo o
Japão, talvez por volta de 1544.
Os documentos investigados atestam, de
facto, que Fernão Mendes Pinto já desde 1540 comerciava na China, que anteriormente
a 1554 estivera mais que uma vez no Japão e que era homem bem conhecido dos reis e
senhores do Japão, principalmente do de Bungo.
Já se referiu, e provou, que o Japão foi descoberto em 1543.Assim, se Mendes
Pinto, como ele pretende, era um dos primeiros, teria navegado forçosamente nesse ano
para o Japão.
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Porém, as fontes consultadas por Schurhammer levam à conclusão que a
primeira viagem de Mendes Pinto ao arquipélago nipónico não foi em 1543, mas sim em
1544.
Mendes Pinto desde 1540 andava comerciando na China.Assim teve
imediatamente, com certeza, notícia do descobrimento do Japão e entrou no “rush” (a
corrida) do ano de 1544.Informações suas provam que realmente assim sucedeu.
O “rush” de 1544 é testemunhado pela relação de Pero Diez, que nele teve
parte.Que Mendes Pinto tenha entrado no feito, ele próprio o afirma, ainda que invente
junto das ilhas Léquias o naufrágio, que na carta de 1454 ainda não atribui a si mesmo.
É claro que os portugueses nesta segunda jornada seguiram o mesmo itinerário
dos descobridores e navegaram com rumo a Tanegashima atestado por fontes
japonesas.
Mendes Pinto declara que navegou de Tanegashima para Bungo e enumera com
exactidão os portos situados neste caminho, como os encontrámos já em 1547 na relação
de Jorge Álvares, mas esta viagem dos portugueses de Tanegashima para o Bungo
sucedeu na segunda ida dos portugueses, como o atesta Nampo Bunshi, o sacerdote
budista.
Sem dúvida que Fernão Mendes Pinto foi dos primeiros portugueses a pisar solo
japonês, e teria mesmo demandado o arquipélago nipónico por quatro vezes.
A 1ª em 1544.Após desavenças entre si, no porto de Chincheu, na China,
embarcaram os portugueses na companhia do corsário Samipocheca. Desviados por
uma tempestade, e depois de muitos trabalhos no mar, aportaram a Tanegashima, ao
sul da ilha de Kiushu, onde foram muito bem recebidos pelo governador Nautaquim
(Cap. 133) e permanecendo aí cinco meses e meio (Cap.134).
A pedido do rei do Bungo, Fernão Mendes Pinto parte para a ilha de Kiushu
onde se instala em Fucheu, regressando depois, após várias peripécias, entre elas o
acidente que sucedeu com o filho do rei por ter tentado utilizar a espingarda do nosso
escritor. Regressa a Tanegashima e daí volta a Liampó, na costa da China
A 2ª terá ocorrido nos finais de 1546 e princípios de 1547 a bordo de uma
caravela de que era capitão Jorge Álvares (Cap. 200).
Depois deter visitado Tanegashima parte para Fucheu, no Bungo, de onde tem
de abalar apressadamente para Hiamangó (Yamagawa) por via de uma revolta que
naquela cidade havia contra o rei (Cap. 202). Neste mesmo capítulo, Mendes Pinto
conta-nos como foi recebido a bordo da nau um japonês a quem os portugueses
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chamavam Angiró, e que veio a tomar o nome de Paulo de Santa Fé.Depois de vender
bem a sua mercadoria parte de Hiamangó a 16 de Janeiro da 1547,chegando catorze
dias depois ao porto de Chincheu seguindo de Lamau para Malaca (Cap. 203).
A 3ª realiza-se em 1551.Em Setembro do referido ano está novamente no Bungo,
onde se encontra com o Padre Mestre Francisco Xavier, assistindo aos debates
teológicos do Apóstolo com sacerdotes budistas japoneses e, concedendo-lhe 300
cruzados para a construção da «primeira igreja e casa da Companhia» em Yamaguchi.
No regresso, viajando na nau de Duarte Gama, separam-se: Francisco Xavier seguiu
para Malaca e posteriormente para Goa, enquanto Mendes Pinto
continuaria viagem até ao Sião.
A 4ª e última viagem ao Japão ocorreu em 1556 na
companhia do sucessor de Francisco Xavier, Padre Belchior Nunes
Barreto.Fernão Mendes Pinto viajava na qualidade de embaixador
do Vice-Rei e como noviço da Companhia.
Na descrição desta viagem Mendes Pinto refere uma
grandiosa recepção no paço real em Fucheu, à qual se terá seguido
outra em honra do Padre Belchior Nunes, na mesma capital, e
conseguida por seu intermédio.Recebido pelo rei, o Padre Belchior
diz que o objectivo da sua ida a Fucheu é «mandá-lo o vice-rei para
o servir e mostrar-lhe o caminho certo da sua salvação».
Partiu Mendes Pinto definitivamente do Japão, com o Padre
Belchior, a 14 de Novembro de 1556 desembarcando em Goa a 17 de Fevereiro de 1557.
Em Lisboa, a 22 de Setembro do ano seguinte, tiveram fim as “Peregrinações” de
Fernão Mendes Pinto pelas sete partidas da Ásia.
Curiosamente, dez anos antes da chegada de Fernão Mendes a Lisboa, o capitão
Jorge Álvares que o acompanhara na sua segunda viagem, fornece-nos, saída da sua
pena, uma informação completa que é o primeiro relato directo de um ocidental sobre a
terra e a gente japonesas.
Pelo seu valor e interesse, porquanto fala directamente do que viu e
detalhadamente observou, a informação de Jorge Álvares impõe-nos, em tempo
oportuno, a divulgação das suas mais significativas passagens.
Carlos Jaca
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Bibliografia Consultada
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Notas de Armando Cortesão.Acta Universitatis Conimbricensis, 1978.
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1º
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Carlos Jaca
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Pinto”.Editorial Comunicação, 1983.
“Tratado, que compôs o nobre e notável capitão Antonio Galvão, dos diversos e
desvayrados caminhos, por onde nos tempos passados a pimenta e especiaria veyo da
Índia às nossas partes, e assi de todos os descobrimentos antigos e modernos, que são
feitos até a era de mil quinhentos e cincoenta” (Lisboa, 1563). Cit. por “Anais”Academia Portuguesa de História, II série, Vol. I.Lisboa, MCMXLVI.
Carlos Jaca
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