Oficinas Terapêuticas com Grupo de Crianças

Transcrição

Oficinas Terapêuticas com Grupo de Crianças
UnP – Universidade Potiguar
Alquimy Art
Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Lato Sensu
de Especialização em Arteterapia
OFICINAS TERAPÊUTICAS COM
GRUPO DE CRIANÇAS
Helena Alessi
São Paulo
1
2005
Helena Alessi
OFICINAS TERAPÊUTICAS COM GRUPO DE CRIANÇAS
Monografia apresentada à Universidade Potiguar,
RN e ao Alquimy Art, de São Paulo, como parte
dos requisitos para a obtenção do título de
Especialista em Arteterapia
Orientador: Prof. Dr. Liomar Quinto de Andrade
São Paulo
2
2005
ALESSI, Helena
Oficinas Terapêuticas com Grupo de Crianças
Helena Alessi. – São Paulo; [s.n.], 2005
79 p.
Monografia (Especialização em Arteterapia) –
Universidade Potiguar. Pró-Reitoria de Educação Profissional. Alquimy Art.
1. Oficinas Terapêuticas
SP/BGSF
2. Grupo de Crianças
CDV.51
3
UnP – Universidade Potiguar
Alquimy Art
Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Loto Sensu
de especialização em Arteterapia
OFICINAS TERAPÊUTICAS COM GRUPOS DE CRIANÇAS
Monografia apresentada pela aluna Helena Alessi ao curso de especialização em
Arteterapia em 16/04/2005 e recebendo a avaliação da Banca Examinadora
constituída pelos professores:
__________________________________________
Prof. Dr. Liomar Quinto de Andrade, Orientador
__________________________________________
Prof. MsC. Deolinda Florim Fabietti, Coordenadora da Especialização
__________________________________________
Profa. MsC. Irene Arcuri, Profa. Convidada
4
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer primeiramente aos meus erros, à possibilidade de aceitá-los e
a tudo que aprendi com eles. É difícil a vida para quem não se permite errar.
Sou grata a todos aqueles que me acompanham em minhas caminhadas e
expedições ao longo desses anos: Maria, Vicente, Gil e Guilherme, Gabriela, Joana,
Júlia, Gabriella, e Berenice.
Liomar, agradeço sua generosidade. Me ajudou a dar forma ao trabalho sem, no
entanto, fazer por mim.
5
RESUMO
OFICINAS TERAPÊUTICAS COM GRUPO DE CRIANÇAS
Este trabalho é um estudo das bases teóricas para a realização de oficinas
terapêuticas com grupos de crianças. Relaciona a teoria de grupoterapia de D.
Zimerman e L. C. Osório, a teoria de D. Winnicott sobre o brincar e a criatividade, e a
metodologia das Oficinas Criativas de C.D. Allessandrini e do Expressive Therapies
Continuum – E.T.C. e de S. Kagin e V. B. Lusebrink. Apresenta as oficinas
terapêuticas com grupo de crianças realizadas no Centro de Desenvolvimento
Comunitário da Associação Cristã de Moços de Pinheiros, que começou como
estágio do Curso de Especialização em Arteterapia em 2004, e continua como
trabalho voluntário no ano seguinte. Faz uma leitura crítica de uma oficina
terapêutica relacionando a teoria, a prática e a história de cada criança, analisando
as dificuldades da terapeuta e das crianças numa dinâmica grupal e sugere
modificações para a continuidade do projeto de oficinas terapêuticas.
Palavras-Chave:
1. Oficinas Terapêuticas
2. Grupo de Crianças
6
ABSTRACT
THERAPEUTICAL WORKSHOPS WITH GROUP OF CHILDREN
This work is a study of the theoretical bases for the accomplishment of therapeutical
workshops with groups of children. It relates the theory of grupoterapia of D.
Zimerman and L. C. Osório, the theory of D. Winnicott on playing and the creativity,
and methodology of the Workshops Creative of C.D. Allessandrini and of the
Expressive Therapies Continuum - E.T.C. e of S. Kagin and V. B. Lusebrink. It
presents the therapeutical workshops with group of children carried through in the
Center of Communitarian Development of the Association Christian of Young men of
Pines, that started as period of training of the Course of Specialization in Arteterapia
in 2004, and continues as voluntary work in following year. It makes a critical reading
of a therapeutical workshop relating theory, practical and the history of each child,
analyzing the difficulties of the therapist and of its children in a group dynamics and
suggests modifications for continuity of the project of therapeutical workshops.
Key Words:
1. Therapeutical Workshops
2. Group of Children
7
SUMÁRIO
RESUMO
ABSTRACT
1. INTRODUÇÃO .............................................................................................. 1
TRAJETÓRIA PESSOAL
2. BASES PARA O TRABALHO COM GRUPOS ............................................. 8
2.1 Breve histórico da psicoterapia de grupo ................................................... 9
2.2 GRUPO: O que é e suas principais características .................................. 13
2.3 A dinâmica do campo grupal .................................................................... 15
2.4 O papel do grupoterapeuta e suas principais características ................... 25
3. BASES PARA O TRABALHO COM CRIANÇAS ........................................ 28
3.1 Breve histórico da psicoterapia de crianças ............................................. 28
3.2 O brincar e a criatividade na concepção de Winnicott .............................. 31
4. BASES PARA A CRIAÇÃO DE OFICINAS TERAPÊUTICAS .................... 35
4.1 A Oficina Criativa ...................................................................................... 35
4.2. O Continnum das Terapias Expressivas – E.T.C. ................................... 37
5. O ESTÁGIO EM ARTETERAPIA NO CENTRO DE DESENVOLVIMENTO
DA ASSOCIAÇÃO CRISTÃ DE MOÇOS (ACM - PINHEIROS) ..................... 40
5.1 O projeto: Oficina da Fada que Tinha Idéias ............................................ 40
5.2 A apresentação ......................................................................................... 41
5.3 Estrutura e Espaço da Instituição ............................................................. 43
5.4 O processo ............................................................................................... 43
8
6. HISTÓRICO DAS CRIANÇAS E RELATO DAS OFICINAS ....................... 50
6.1 Histórico Resumido das Crianças ............................................................. 50
6.2 As Oficinas ................................................................................................ 53
7. ANÁLISE ..................................................................................................... 61
8. CONCLUSÕES FINAIS .............................................................................. 72
RERERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ............................................................... 76
9
1. INTRODUÇÃO
TRAJETÓRIA PESSOAL
Ao encerrar essa etapa que foi o Curso de Especialização em Arteterapia com a
conclusão de uma monografia, tenho a possibilidade de fazer uma avaliação sobre
meus principais aprendizados e a síntese e a elaboração de um conhecimento que
posso chamar de meu, já que o vejo dentro de mim.
Esses últimos dois anos foram importantes não só por serem os primeiros anos de
formada em psicologia. Hoje, ao mesmo tempo em que tenho que confiar na minha
“bagagem”, na vontade de continuar crescendo e seguir em frente, encarando
desafios e obstáculos persistentes, preciso administrar também tudo aquilo que sei
que ainda não sou – e que almejo um dia ser – na busca de uma atuação mais
consistente e de ser uma pessoa mais inteira. Estes foram anos que me obrigaram a
tomar decisões, sair do papel passivo do aluno, tal qual eu exercia no colegial e na
faculdade, e andar com minhas pernas, percorrendo os caminhos que desconheço e
que vão se construindo a cada passo dado. Nesse caso pretendo ser mais
persistente do que os obstáculos que enfrentarei.
Esse curso foi um grande passo em direção ao tipo de psicóloga que eu pretendo
ser. E com muita satisfação vejo minhas idéias e experiências se encorpando e
tomando forma, mais amadurecidas do que quando me formei.
10
Comecei a pensar a respeito do trabalho terapêutico que utiliza a arte e técnicas
expressivas quando entrei em contato com o trabalho realizado por Nise da Silveira.
Já com algum conhecimento da teoria junguiana, fiquei fascinada pelos símbolos
arquetípicos que apareciam nas produções plásticas de seus pacientes e pela
qualidade da obra de alguns deles.
No mesmo ano visitei a Bienal, no Ibirapuera, em São Paulo, e lá vi pela primeira vez
a exposição de algumas obras do Museu de Imagens do Inconsciente, resultado do
trabalho de Nise da Silveira. Encantatei-me principalmente com as mandalas. Surgiu
então a questão de qual seria o papel das artes e da expressão nos processos de
diagnóstico e cura dos sofrimentos psíquicos.
Na época eu trabalhava como acompanhante terapêutica de um paciente que sofria
com uma psicose crônica e vivia internado há mais de quarenta anos em instituições
psiquiátricas. Acompanhá-lo, para mim, era muito difícil por vários motivos.
Incomodava-me demasiadamente a instituição e o tratamento dispensado a ele e a
outros doentes. Conversar era um desafio, pois passeávamos pelos seus delírios
desorganizados, verdadeiras histórias de ficção científica, nas quais eu me achava
perdida junto com ele. Percebia que quando ia embora estava envolta num estado de
profunda confusão espacial, temporal e de sentimentos.
Uma das coisas que me afligia nesse acompanhamento terapêutico era a dificuldade
de ambos, eu e meu paciente, tínhamos para organizar e dar forma para todas
aquelas idéias oníricas e histórias caóticas que ele trazia. Mas eu não sabia, ainda,
como sei hoje, que organização e forma eram essas que eu ansiava. Sentia também
11
que trabalhar sem instrumentos terapêuticos além da comunicação verbal e sem
objetos intermediários, como diria Winnicott, tornava difícil transitar pelos mundos
dele e pela realidade externa. Às vezes pedia a ele desenhasse. Um mapa de seu
mundo para que pudéssemos visualizar melhor a rede de idéias que ele “pintava”
nas nossas conversas.
Quando entrei em contado com o material escrito de Nise da Silveira encontrei uma
pista preciosa de qual direção profissional eu queria seguir. Ela escreveu:
“(...) já havíamos verificado, desde 1948, que a pintura e a modelagem tinham em si
mesmas qualidades terapêuticas, pois davam forma a emoções tumultuosas,
despotencializando-as, e objetivavam forças autocurativas que se moviam em direção
à consciência, isto é, à realidade”. (SILVEIRA, 2001, p. 17)
Espontaneamente brotando do inconsciente esses intensos conteúdos psíquicos se
tornavam passíveis de tratamento e de elaboração na medida em que ocorria sua
expressão artística, isto é, sua materialização e vivência simbólica, proporcionadas
pelas atividades nas oficinas de T.O.. Para mim era o início da abertura para a
comunicação terapêutica por meio da “não palavra”, já que esta não é capaz de
traduzir de maneira fidedigna tudo aquilo que existe na alma humana, principalmente
quando o que predomina na existência são as manifestações violentas do
inconsciente que a razão e a verbalização não podem alcançar, como era o caso
daquele meu paciente.
12
Lembro da primeira vez que entrei em um consultório cheio de tintas, pincéis e
trabalho de clientes, e até hoje percebo a importante impressão que essa experiência
me deixou. Algum tempo depois acabei fazendo Terapia Artística Antroposófica num
ateliê onde pela primeira vez experimentei pintar com maior freqüência e com menos
crítica a respeito da qualidade artística das minhas produções. Utilizando a aquarela
fui vivendo aquela soltura ao mesmo tempo em que me via nas pinturas, que
expressavam símbolos, dificuldades, preferências, intensidades... Para mim essa
experiência foi como um espelho onde eu me via melhor, mas também foi uma
espécie de brinquedo.
Nessa época, final da faculdade, havia uma associação muito natural para mim entre
arte e liberdade, criatividade e soltura, espontaneidade e saúde. No início do curso
de Especialização eu ainda pensava que o limite, a forma e a organização eram
empecilhos para a verdadeira criação livre e espontânea, tornando esse processo no
mínimo opaco. Para mim o limite e a ordem impediam a criatividade de se mostrar
plenamente, nos aprisionava em suas regras e contornos, como que amarrando
aquilo que deveria se soltar.
No decorrer do curso, das leituras de autores como Fayga Ostrower e das minhas
experiências pessoais e profissionais amadureci esta idéia e absorvi subsídios para
construir um novo entendimento sobre os processos criativos e de desenvolvimento.
Como psicóloga sempre aprendi a observar e a valorizar a expressão do outro,
reconhecer na capacidade de ser espontâneo e criativo um sinal de saúde. Como
professora num projeto de alfabetização descobri que, sem determinados limites e
13
organizações, é impossível construir qualquer conhecimento ou relação. Essa
experiência me deu a oportunidade de experimentar algo sobre o que a psicologia
fala muito teoricamente: o quanto o limite, a organização e a tão falada castração da
psicanálise são importantes no desenvolvimento e estruturação da personalidade.
Fayga (1989, p. 5) me ensinou que “(...) criar corresponde a um formar, um dar forma
a alguma coisa. Sejam quais forem os modos e os meios, ao se criar algo, sempre se
ordena e se configura”. Dessa forma tudo se cria a partir de algo que já existe, como
experiências, idéias e sentimentos, intuições que são modeladas e que, de alguma
maneira se cristalizam num resultado, esperando até a próxima fase criativa, que já
está começando.
O limite, a forma, a organização e a liberdade na produção criativa andam ligados de
maneiras complexas e que envolvem todos os aspectos do ser. A descoberta de
outras maneiras de pensar o limite me fez ver seus aspectos positivos,
organizadores, reais, e possibilitaram que eu apreendesse uma nova forma de
compreender a liberdade, a criatividade e a transformação do ser humano.
Allessandrini (2004) escreve sobre o processo de aprendizagem que quando
ressignificamos uma experiência, estamos compensando e atualizando seu sentido
para nós. De certa forma, estamos dando uma nova forma a ela, que ganha fluxo e
fluidez. Esse foi, sem dúvida, um dos aspectos mais importantes do meu processo
no curso de arteterpia.
14
No entanto, o que justifica a escolha do tema da monografia é a necessidade que
brotou da ausência sentida quando comecei a construir mais concretamente minha
experiência como arteterapeuta. Foi motivada a descobrir e compreender qual o
processo grupal que acompanhei e vivi durante o estágio com as crianças do Centro
e Desenvolvimento Comunitário da Associação Cristã de Moços de Pinheiros onde
busquei aprofundar meu conhecimento sobre as teorias de grupo, suas técnicas e
história.
O que procurei fazer nesse período foi buscar as raízes e clarificar minhas
referências teóricas e técnicas para integrar e sustentar o trabalho que realizamos no
estágio, o que continuo construindo agora como voluntária do C.D.C.. Com minha
pesquisa posso agora relacionar com mais propriedade minhas experiências
terapêuticas e a teoria e olhar criticamente para nossas produções enquanto grupo,
na medida em que fica mais claro por que, para que e como trabalhar com grupos de
crianças utilizando as técnicas expressivas nas oficinas terapêuticas.
Foi apesar de dificuldades e inseguranças que decidi caminhar no sentido de me
aprimorar enquanto psicoterapeuta de crianças, e pretendo realizar com elas um
trabalho que possa ser uma descoberta colorida, esculpida e representada por outros
elementos além de brinquedos e palavras. Já a busca de um conhecimento que me
possibilite trabalhar adequadamente com grupos de crianças começou a partir da
iniciativa desta monografia, e pretendo que com o tempo e os cuidados necessários
se torne algo sólido e orgânico como uma boa árvore.
15
Espero não ter assustados os leitores com tamanha mudança de rumo na história da
trajetória pessoal. Mas na verdade não houve nenhuma mudança brusca. O que se
deu foi a transformação de algumas idéias, que se misturaram com desejos não
muito conscientes: ao se chocarem com o mundo externo foram sendo absorvidos
como a tinta molhada o é por um papel denso – e o desenho que surgiu, para a
surpresa de todos, não era aquele imaginado a princípio.
16
2. BASES PARA O TRABALHO COM GRUPOS
“O ser humano é gregário, e ele só existe, ou subsiste,
em função de seus inter-relacionamentos grupais.
Sempre, desde o nascimento, ele participa de diferentes
grupos, numa constante dialética entre a busca de sua
identidade individual e a necessidade de uma identidade
grupal e social.”
(ZIMERMAN, 1993, p. 51)
No capítulo História da Psicoterapia de Grupo Kaplan e Sadok (1993) relatam um
interessante levantamento desde os primórdios dos movimentos terapêuticos e das
produções científicas ligadas ao trabalho de grupo até hoje em dia. Eles observam
que a idéia de trabalhar com grupos com finalidade terapêutica acompanha a história
do Homem e esteve presente desde as civilizações tribais, na Grécia Antiga e no
período medieval, muito antes do aparecimento da classe de profissionais de saúde
mental. As sessões xamânicas, as peças medievais de moralidade e o teatro grego
antigo são exemplos desse histórico.
Um dos fundamentos teóricos necessários para melhor compreender e orientar meu
trabalho com as oficinas terapêuticas com grupos de crianças é sem dúvida o
conjunto de conhecimentos da Psicologia Grupal, que recebeu influências da
Psicologia Social, da Sociologia e da Antropologia Social e teve seu princípio no
começo da década de 30.
17
2.1 Breve Histórico da Psicoterapia de Grupo
No início do trabalho em grupo estava Joseph Pratt, que já em 1905 desenvolvia um
método
empírico
de
trabalho
com
grupos
de
pacientes
tuberculosos
e,
posteriormente, de paciente neuróticos chamado de “classes coletivas”, que consistia
em aulas para os pacientes sobre higiene e problemas decorrentes da tuberculose,
seguida por perguntas e discussões sobre o tema. Esta idéia de trabalhar em grupo
as dificuldades específicas de uma doença influenciou posteriormente a criação de
grupos de apoio a familiares e associações como os Alcoólicos Anônimos.
No entanto foi nos Estados Unidos, na década de 30, que Louis Wender, Paul
Schilder, Jacob L. Moreno, psiquiatras, Samuel R. Slavson, educador, Fritz Redl e
Alexander Wolf, psicanalistas; começaram a utilizar pequenos grupos de maneira
planejada para o tratamento da patologia da personalidade (Kaplan; Sadok, 1993,
p.72).
Com a segunda Guerra Mundial houve um crescimento na utilização e popularidade
da psicoterapia de grupo nos Estados Unidos e na Inglaterra devido aos poucos
psiquiatras disponíveis e o grande número de pessoas que passaram a procurar
ajuda profissional em psicoterapia. Durante a década de 50 surgem outras correntes
de pensamento em psicologia para disputar a hegemonia da teoria psicanalítica, ela
mesma já sofrendo divisões internas, e nascem a análise transacional, a terapia
centrada na pessoa, a gestalt, a racional-cognitiva e a existencial, cada uma delas
com suporte teórico e metodológico próprios para lidar com as questões e
necessidades da época.
18
A literatura publicada na época demonstra que a psicoterapia de grupo amplia o
alcance dos tratamentos psicoterápicos incluindo clínicas ambulatoriais, hospitais
gerais e psiquiátricos, instituições correcionais e programas de habilitação, grupos de
crianças, adolescentes e adultos com os mais diferentes distúrbios, revelando uma
explosão na prática e na pesquisa da terapia de grupo.
Contudo, o aumento progressivo do uso e de estudos teóricos e metodológicos sobre
a prática da terapia em grupo não garante por si só a qualidade do atendimento e da
formação dos profissionais que utilizavam tais métodos na clínica, e não eram raros
nas instituições de saúde grupos terapêuticos coordenados por pessoas sem preparo
ou conhecimento teórico.
Dessa forma foram sendo construídas diferentes formas de trabalhar com grupos
influenciadas pelas diversas abordagens psicológicas e terapêuticas que iam desde
o trabalho de grupo individual, focado no indivíduo, como nos trabalhos de Schilder e
Slavson; ao trabalho centrado na totalidade do grupo e nos processos dinâmicos
grupais.
Dentro do campo da Psicoterapia de Grupo, pesquisas apontaram para aspectos
terapêuticos semelhantes, independente das diferenças nas abordagens e
convicções teóricas, o que favoreceu certo pluralismo conceitual e uma abordagem
eclética na prática clínica. Yalom e Vinogradov (1992) identificaram e sintetizaram os
fatores terapêuticos da psicoterapia grupal que hoje são aceitos por diversas
correntes teóricas, apesar de discordarem a respeito do valor atribuído aos diferentes
fatores, da metodologia e da técnica empregadas: (1) instilação da esperança, (2)
19
universalidade, (3) oferecimento de informações, (4) altruísmo, (5) desenvolvimento
de técnicas de socialização, (6) comportamento imitativo, (7) catarse, (8) reedição
corretiva do grupo familiar primário, (9) fatores existenciais, (10) coesão do grupo,
(11) aprendizagem interpessoal.
O desenvolvimento das teorias e técnicas na utilização do trabalho em grupo na
clínica ainda está em ascensão e tais conhecimentos podem ser utilizados tanto na
área pública como na particular, apesar de muitas vezes ficarem restritos ás
instituições, pois oferecem ganhos terapêuticos independentemente da condição
socioeconômica dos indivíduos. Contudo, em clínicas comunitárias e instituições as
teorias e técnicas de trabalho em grupo tornam possível a psicoterapia e por isso
desempenham um papel social importante dadas as dificuldades de recursos
pessoais e financeiros na área da saúde. Ainda nessa área, a modalidade de grupos
a curto prazo, como a terapia breve orientada para crises, tem à sua frente um
campo vasto de trabalho no dias de hoje.
Apesar de ser um conhecimento especializado, as teorias que dão suporte para o
trabalho grupal são muitas vezes baseadas no conhecimento que se tem sobre o
funcionamento individual, dos vínculos familiares e vice-versa, pois os grupos
pequenos costumam reproduzir as características sociais, econômicas, políticas e a
dinâmica psicológica dos grandes grupos, e os indivíduos por sua vez também
funcionam como sendo um grupo, na medida em que os personagens introjetados
em seu mundo interno interagem.
20
O simples, porém importante, fato de todo indivíduo passar a maior parte de seu
tempo interagindo com outras pessoas, desde o nascimento, já é motivo suficiente
para que busquemos a compreensão e a utilização do conhecimento em psicologia
grupal e da construção de vínculos. Vivemos no nosso processo de humanização a
constante busca pela identidade individual e, ao mesmo tempo, a necessidade de
assegurar a identidade social e grupal como foi dito no início do capítulo por
Zimerman (1993). São necessidades complementares, assim como são realidades
que existem simultaneamente:
“A essência de todo e qualquer indivíduo consiste no fato dele ser portador de um
conjunto de sistemas: desejos, identificações, valores, capacidades, mecanismos
defensivos e, sobretudo, necessidades básicas, como a da dependência e a de ser
reconhecido pelos outros, com os quais ele é compelido a conviver. Assim, como o
mundo interior e o exterior são a continuidade um do outro, da mesma forma o
individual e o social não existem separadamente, pelo contrário, eles se diluem,
interpenetram, complementam e confundem entre si.” (ZIMERMAN E OSORIO,1997,
p. 27)
No início da década de 60 outros psicanalistas começaram a estudar sobre o
funcionamento dos grupos, dando início a um trabalho terapêutico que visa a
entender as manifestações do grupo ao invés das pessoais. Grimberg, langer e
Rodrigué, Bion, Foulkes e Anthony, dentre outros, foram alguns desses autores que
passaram a influenciar os trabalhos com grupos e a pensar uma psicanálise de
grupo.
21
Existem algumas diferenças fundamentais no que diz respeito ao trabalho
terapêutico com mais de uma pessoa. São conceitos importantes para que fique
claro a ênfase e a direção que é dada ao grupo e seus participantes.
2.2 Grupo: O que é e suas principais características
Para começarmos a discutir quais as principais características e dinâmicas grupais é
preciso esclarecer o que entendo por grupo, e a que tipo de grupo pretendo dar
ênfase. Procurei me fundamentar principalmente nas idéias dos psicanalistas
brasileiros Zimerman (1993) e Osório (1989), que construíram um conhecimento
bastante aprofundado sobre trabalhos com grupo e grupoterapias, baseados nas
contribuições de W. R. Bion à psicanálise de grupos.
Nesse referencial há algumas condições básicas para chamar de grupo um
agrupamento, um somatório de pessoas. Num grupo todos os integrantes devem
estar reunidos em torno de uma tarefa ou objetivo comuns, estabelecido dentro de
um enquadre, setting, que garanta o comprimento das combinações nele feitas. São
de fundamental importância o espaço, o tempo e as regras que delimitam e
normatizam a atividade grupal, assim como a distribuição de posições e papéis
claros.
Além disso, todo grupo, terapêutico ou não, propicia a formação de um campo grupal
dinâmico no qual gravitam fantasias, ansiedades, identificações, papéis e uma
interação afetiva, de natureza múltipla e variada. Cabe ao grupoterapeuta perceber e
trabalhar com essa dinâmica a favor do crescimento do grupo. A primeira
22
característica à qual ele deve estar atento é a existência de dois planos: o consciente
e o inconsciente. Bion (1970) chama o primeiro de “grupo de trabalho”, pois nele
os indivíduos estão voltados para o êxito de uma tarefa, e o segundo plano,
subjacente, seria constituído pelo “grupo de supostos básicos” regidos por
desejos reprimidos, ansiedades e defesas, no qual podem prevalecer sentimentos de
dependência, ou luta e fuga contra os medos emergentes ou uma expectativa
messiânica. Esses planos se sobrepõem e flutuam, coexistindo e alternando-se
durante o processo grupal.
Ainda existem duas forças contraditórias em ação num movimento grupal: coesão e
desintegração. A coesão do grupo depende de que em cada participante e no grupo
haja o sentimento de pertinêcia, de vestir a camisa, e pertencência, de identificar o
grupo como sendo seu, o que gera um reconhecimento de cada um pelos outros e
do grupo por parte de cada indivíduo. Nessa dinâmica podemos analisar como o
grupo se organiza a serviço de seus integrantes e como os membros se organizam a
serviço do grupo. É também importante observar que um grupo se comporta como se
fosse uma individualidade, com identidade, leis e mecanismos próprios e, contudo,
precisa garantir que as identidades individuais não se dissolvam.
Um grupo qualquer se diferencia do grupo terapêutico pelo setting e pelo manejo por
parte do grupoterapeuta dos fenômenos naturais que ocorrem no campo grupal.
Resistência e contraresistência, transferência e contratransferência, actings,
processos identificatórios, distribuição e alternância de papéis, ansiedades e
mecanismos defensivos, tudo isto ocorre espontaneamente nos grupos. No entanto o
grupo terapêutico precisa ser continente das angústias e necessidades. O setting é o
23
continente para Bion ou o responsável pelo holding de Winnicott, que é coordenado
pelo terapeuta.
Dentro da gama de trabalhos feitos com grupo há diferentes formas de classificar
que tipo de trabalho é esse, e uma distinção possível é baseada na técnica
empregada pelo coordenador do grupo:
(1) Trabalho em grupo: as interpretações são dirigidas ao indivíduo. É um
tratamento individual na presença do grupo.
(2) Trabalho do grupo: as interpretações são dirigidas ao grupo como uma
totalidade gestáltica.
(3) Trabalho de grupo: a atividade interpretativa parte das individualidades para o
todo e do todo para os indivíduos.
O trabalho que realizamos como projeto de estágio no curso de Especialização em
Arteterapia pode se incluir no trabalho de grupo, no qual tentamos avaliar e dirigir
nossa atuação tanto para as questões individuais que cada um traz quanto para o
movimento do grupo em relação a eles mesmos, os combinados, as terapeutas e às
atividades propostas.
2.3 A Dinâmica do Campo Grupal
A reunião de clientes e terapeutas gera um campo dinâmico, no qual se entrecruzam
necessidades, desejos, medos, culpas, ataques, defesas, papéis, identificações,
movimentos
resistenciais,
transferência
e
contratransferência,
entre
outros
24
elementos. Na concepção de Zimerman é de fundamental importância que o
terapeuta discrimine para si os principais fatores que compõe a dinâmica do grupo
para decidir qual é a ação terapêutica necessária. Escolhi alguns desses elementos
para aprofundar meu estudo entendendo que são fundamentais para guiar o trabalho
do terapeuta e para a análise do nosso trabalho.
Para Zimerman (1993) a coluna mestra na formação dos processos inconscientes
que gravitam no campo grupal, grupo de supostos básicos de Bion, é formada por
ansiedades, defesas e identificações. Na teoria de Bion identifica-se três formas de
funcionamento inconsciente dos grupos em determinados momentos ou situações,
que funcionam como sendo uma suposição básica, que na verdade agem como
defesa para fugir da frustração e do contato com a realidade que exige um nível de
trabalho e aprendizado que se tenta evitar. Tentarei explicá-los resumidamente:
(1) Dependência: com essa suposição básica de dependência o grupo se comporta
como esperando que seu líder cuide e proteja todo o grupo.
(2) Luta e fuga: reflete a convicção de que existe um inimigo a ser combatido, e o
líder é quem guia e orienta o grupo para esse combate.
(3) Acasalamento: representa a crença de que os problemas e necessidades do
grupo serão solucionados por um líder que ainda não está presente ou por um
acontecimento futuro. Essa crença corresponde a uma esperança do tipo
messiânica, de quem espera um futuro “melhor”.
As ansiedades variam com o momento evolutivo do grupo e podem refletir
indivíduos particularmente ou expressar o que se passa com a totalidade grupal.
25
Zimerman assinala que todo começo de terapia de grupo costuma apresentar
comportamentos de luta e fuga que tanto podem ser direcionados contra o terapeuta
quanto para algo que está fora do grupo. Por isso o grupoterapeuta precisa
reconhecer qual a ansiedade é comum ao grupo, inclusive a ele próprio, para que
possa atuar de forma adequada. Mas devemos estar atentos, pois na maioria das
vezes essas ansiedades não se manifestam diretamente e abertamente, e sim por
meio de somatizações e actings, que são condutas geradas por sentimentos
inconscientes, das quais os integrantes não se dão conta.
Zimerman cita seis estados de ansiedade mais essenciais e típicos na infância e no
decorrer do desenvolvimento posterior que costumam aparecer no processo grupal:
(A)
Ansiedade
de
aniquilamento:
é
a
ansiedade
de
desintegração
e
despedaçamento. Essa é a ansiedade mais primitiva na escala evolutiva e
corresponde a provável sensação da criança de que corre perigo de vida e é sentida
como catastrófica e aniquiladora. No entanto tal intensidade de ansiedade também
pode ocorrer em adultos com estrutura de ego e identidade frágeis como nos estados
psicóticos ou nas doenças psicossomáticas.
(B) Ansiedade de fusão-despersonalização: diz respeito ao estágio de
desenvolvimento em que a criança e a mãe são uma unidade, uma união simbiótica.
A criança ainda não constituiu uma identidade individual e não é capaz de
reconhecer o outro como um “não-eu”. No adulto com forte tendência a estabelecer
vínculos simbióticos essa ansiedade se manifesta como um apavoramento ante a
possibilidade de fundir-se, tragar ou ser tragado, com o outro e então perder sua
individualidade.
26
(C) Ansiedade de separação: esta ansiedade manifesta-se enquanto a criança
ainda não conseguiu desenvolver um núcleo de segurança afetiva básica com
relação à mãe. Devido ao medo de perdê-la a pessoa não consegue imaginar ficar
longe da figura materna e busca o maior contato físico possível.
(D) Ansiedade da perda do amor: a criança sente-se em condições de se afastar
fisicamente da mãe. No entanto, devido às fantasias inconscientes, vive tensa, com
medo de perder o amor da figura materna ou ser abandonada por esta, como forma
de um revide.
(E) Ansiedade de castração: é derivada do medo da perda de uma possibilidade
importante de obtenção de prazer e vínculo exclusivo, e surge em decorrência dos
conflitos edípicos.
(F) Ansiedade devida ao Superego: o superego, como herdeiro do complexo de
Édipo, ameaça o indivíduo com severas punições caso as exigências e expectativas
não forem alcançadas, provocando medo exagerado de errar e sentimento de menos
valia.
Os estudos sobre o desenvolvimento mental e emocional (SPITZ, 2002) apontam
que, desde o nascimento, o ego do bebê utiliza defesas que visam protegê-lo da
inundação de diferentes e fortes estímulos que ameaçam sua integridade, já que seu
aparelho mental não é capaz de codificar e lidar com o impacto desses estímulos. No
início essas defesas são de natureza mágica e posteriormente vão se tornando mais
maduras e eficientes. É importante considerar que todas as formas de defesa,
conforme a intensidade e a finalidade e seu uso pelo ego, podem estar tanto a favor
da saúde como da patologia psíquica.
27
As defesas que considero mais significativas para a análise do nosso trabalho são
negação, projeção e introjeção, idealização, repressão, racionalização e sublimação.
Contudo Zimerman (1993 e 1997) e Osório (1989 e 1997) não fizeram
particularização maior a respeito dos tipos de defesas por considerarem que já são
suficientemente conhecidas. No entanto achei válido buscar um tipo de definição
teórica para termos um consenso em relação à utilização desses termos na hora da
análise do trabalho de grupo. O Vocabulário da Psicanálise (LAPLANCHE,
PONTALIS, 1992) dá as seguintes definições:
(A) Negação: “Processo pelo qual o sujeito, embora formulando um dos seus
desejos, pensamentos ou sentimentos até então recalcados, continua a defender-se
dele negando que lhe pertença.” (p.293).
(B) Projeção e Introjeção: Projeção é a ”[...] operação pela qual o sujeito expulsa de
si e localiza no outro – pessoa ou coisa – qualidades, sentimentos, desejos e mesmo
“objetos” que ele desconhece ou recusa nele.” (p. 374). Introjeção é o processo no
qual “[...] o sujeito faz passar, de um modo fantasístico, de “fora” para “dentro”,
objetos e qualidades inerentes a esses objetos. [....] Está estreitamente relacionada
com a identificação.” (p. 248).
(C) Idealização: “Processo psíquico pelo qual as qualidades e o valor do objeto são
levados à perfeição. A identificação com o objeto idealizado contribui para a
formação e para o enriquecimento das chamadas instâncias ideais da pessoa (ego
ideal, ideal de ego)” (p. 224).
(D) Repressão: “Em sentido amplo: operação psíquica que tende a fazer
desaparecer da consciência um conteúdo desagradável ou inoportuno: idéia, afeto,
etc.” (p. 457).
28
(E) Racionalização: “Processo pelo qual o sujeito procura apresentar uma
explicação coerente do ponto de vista lógico, ou aceitável do ponto de vista moral,
para uma atitude, uma ação, uma idéia, um sentimento, etc., cujos motivos
verdadeiros não percebe [...]” (p.423).
(F) Sublimação: “Processo postulado por Freud para explicar atividades humanas
sem qualquer relação aparente com a sexualidade, mas que encontrariam o seu
elemento propulsor na força da pulsão sexual. Freud descreveu como atividades de
sublimação principalmente a atividade artística e a investigação intelectual. Diz-se
que a pulsão é sublimada na medida em que é derivada para um novo objetivo não
sexual e em que visa objetos socialmente valorizados.” (p. 485).
As identificações exercem um significativo papel nas interações grupais
inconscientes e na constituição da identidade do indivíduo. É devido a este fenômeno
que nos aproximamos, simpatizamos e valorizamos, ou não, o outro, e também
constituímos a nossa própria identidade. As identificações resultam de um processo
de introjeção de figuras parentais e códigos de valores dentro do ego e do superego,
no momento em que passamos a adjetivar a nós mesmos e o mundo. Elas podem
ocorrer em três planos:
(A) Na voz ativa, quando o sujeito identifica algo ou alguém.
(B) Na voz passiva, quando foi identificado com, e por alguém.
(C) Na voz reflexiva, quando o sujeito se identifica com um outro.
As identificações costumam ocorrer no campo grupal tão intensamente e
freqüentemente que os autores costumam se referir à “identificações múltiplas e
29
cruzadas” para falar da forma como, num grupo, se dão os encontros que resultarão
em relacionamentos e vínculos. O campo grupal também costuma ser comparado
com uma “galeria de espelhos”, “onde cada um se reflete e é refletido nos, e pelos,
demais.” (ZIMERMAM, 1993, p.83)
Gostaria de explorar mais alguns elementos que se manifestam no campo grupal e
que são significativos para a percepção do terapeuta a respeito da dinâmica do
grupo. Zimerman (1993) diz que é possível perceber, por meio de sua experiência
com grupos terapêuticos, que este se comporta muitas vezes como uma estrutura na
qual há uma distribuição complementaria de papéis, assim como ocorre nas famílias
e instituições. Há o “burro” da turma, o “cdf”, o professor “legal”, o diretor “ditador”, o
irmão mais “fragilzinho”, o outro que é exemplar, o pai que é o “estourado” e a
“mãezona”. Este sistema de papéis pode operar de forma inconsciente mas
estabelece uma forma das interações ocorrerem e cria uma expectativa quanto ao
comportamento de seus integrantes. Considera-se um sinal de desenvolvimento do
grupo e de seus componentes quando os papéis deixam de ser estereotipados e
cristalizados em determinadas pessoas para tornarem-se flexíveis, intercambiáveis e
adequados à situação.
Em “Fundamentos Básicos das Grupoterapias” encontra-se as seguintes definições
de papéis que aparecem nos grupos com maior freqüência.
(A) Bode expiatório: é a pessoa escolhida pelo grupo para receber as projeções dos
aspectos negativos dos outros integrantes e das situações vividas pelo grupo. Ele
pode assumir também o papel de bobo da corte, que diverte os demais integrantes.
30
(B) Porta-voz: geralmente esta é a pessoa que expressa mais abertamente o que o
resto do grupo pode estar pensando ou sentindo como reivindicações, protestos,
verbalizações de emoções, etc. O porta-voz se manifesta também através de
actings, silêncios ou dramatizações.
(C) Radar: também conhecido como caixa de ressonância, este papel costuma ser
exercido por pessoas mais regressivas que, por não possuírem condições de
processar simbolicamente informações sutis e insipientes de angústia e ansiedade
que surgem no grupo, acabam dando vazão a elas por meio de somatizações, crises
e até o abandono da terapia.
(D) Instigador: é o indivíduo que provoca uma perturbação no campo grupal via de
intrigas e desafios, criando situações e mobilizando papéis nos outros integrantes do
grupo. Dessa forma ele recria e dramatiza a configuração de seu grupo interior e
também a dos demais que aderem ao seu jogo.
(E) Atuador pelos demais: é aquele indivíduo para quem o grupo delega a função
de executar aquilo que lhes é proibido e não aceito pelo ego. O grupo emite uma
mensagem dúbia que censura e que, ao mesmo tempo, sente um prazer secreto
pelas atitudes tomadas por quem exerce este papel.
(F) Sabotador: este papel tem como função, usando inúmeros recursos
resistenciais, tornar difícil a comunicação e esclarecimento das situações para que
se desenvolvam.
(G) Vestal: é o papel assumido por aquele indivíduo que pretende zelar pelas regras,
a moral e os bons costumes, impedindo qualquer movimento de liberdade e
criatividade inovadora. Zimerman alerta para o risco desse papel ser incorporado
pelo próprio grupoterapeuta.
31
(H) Líder: o papel do líder costuma ser exercido em dois planos: Um seria designado
ao terapeuta e o outro surgiria espontaneamente dentre os participanres do grupo. A
liderança pode ser desempenhada de maneira construtiva, integrando e formando o
espírito de grupo, ou por um líder por demais narcísico, que usa seu poder e
influência para seu próprio benefício.
O reconhecimento e a transformação dos papéis exercidos pelos indivíduos
possibilitam a construção de uma identidade própria e a diferenciação dos demais.
Por isso a percepção pelo grupoterapeuta e o apontamento para os demais
integrantes da estrutura de papéis que assumiu um grupo tem caráter transformador
e de laboratório para experimentar novos papéis e possibilidades que poderão, mais
tarde, ser levadas para outras situações da vida.
A transferência é um fenômeno essencial para qualquer tipo de terapia funcionar, e
costuma ocorrer como projeção em outras relações que não sejam terapêuticas.
Freud e Klein fizeram importantes estudos e conceituações em relação a esse
fenômeno. A neurose de transferência conceituada por Freud seria a reedição de
antigas experiências traumáticas, e para Klein a repetição das relações primárias que
ela denomina de identificação projetiva. As manifestações transferenciais num grupo
se dão simultaneamente como uma série de transferências cruzadas, assim como
nas identificações. Zimerman (1993) coloca a seguinte questão para pensarmos a
respeito da transferência: é uma necessidade de repetição ou é a repetição de
necessidades não satisfeitas no passado?
32
Os tipos de transferências nos grupos se manifestam em quatro níveis que facilitam
a percepção e interpretação do quadro:
(1) Transferência parental: de cada indivíduo com relação à figura central do
grupoterapeuta.
(2) Transferência grupal: do grupo como uma totalidade em relação a essa figura
central.
(3) Transferência fraternal: de cada indivíduo em relação a outro(s) determinado(s)
indivíduo(s).
(4) Transferência de pertencência: de cada indivíduo em relação ao grupo como
uma entidade abstrata.
Podemos perceber que tipo de transferência é estabelecida se pensarmos qual o seu
papel no contexto terapêutico, isto é, se serve ao indivíduo ou ao grupo de forma a
movimentar este pra frente, ou se serve para a manutenção de um padrão de relação
pouco saudável ou mesmo patológico. Para isso o terapeuta precisa identificar como
se sente em relação ao movimento do grupo, fenômeno que chamamos de
contratransferência.
Zimerman (1993, p. 114) diz que aquilo que o terapeuta sente é aquilo que o
paciente o fez sentir, e a contratransferência pode ser um instrumento para auxiliar a
compreensão do que se passa no grupo se o grupoterapeuta tiver desenvolvido um
trabalho pessoal que permita discriminar os sentimentos gerados pelos movimentos
do grupo daquilo que seriam suas transferências pessoais, originadas de seus
núcleos e questões psíquicas.
33
No campo grupal a contratransferência pode ser pensada, também, em quatro níveis
que correspondem aos movimentos da transferência, mas agora partindo do
terapeuta para o grupo e seus integrantes: os sentimentos do grupoterapeuta com
relação a cada um dos integrantes, separadamente; os sentimentos com relação ao
grupo como todo; os sentimentos que determinados pacientes têm com relação a
outros pacientes especificamente; os sentimentos de cada indivíduo com relação ao
que o grupo, em sua totalidade, lhe desperta.
Zimerman ressalta que no processo terapêutico é importante que todos os
integrantes possam reconhecer os próprios sentimentos contratransferenciais com
relação aos outros, e também o que cada um, com seu comportamento, provoca aos
demais. Isso auxilia o ego do indivíduo diferenciar o que é seu e o que não é, e
reconhecer, por mais doloroso que seja, que seus comportamentos afetam as
pessoas e, por isso, também são responsáveis pelo tipo de resposta que recebem do
mundo.
2.4 O Papel do grupoterapeuta e suas principais características
Na opinião de Zimerman (1993, 1997) e Osório (1989, 1997) o processo de
grupoterapia depende de dois fatores: a interpretação, que é o apontamento verbal
feito pelo terapeuta sobre quais são as dinâmicas que estão ocorrendo no grupo e
nos indivíduos particularmente, ajudando a cada um identificar os sentimentos,
pensamentos e atitudes seus; e a atitude interna da pessoa do terapeuta, que
34
serve, por meio de sua atuação, de possibilidade de modelo para as identificações e
ressignificações de vivências e vínculos passados.
A atitude interna do grupoterapeuta depende mais de como ele é como gente e
engloba algumas características, além do respaldo teórico-técnico, experiência, e
supervisão, como gostar de trabalhar com grupos, capacidade de empatia, paciência
e respeito, capacidade de manter uma permanente inteireza de sentimento de
identidade pessoal e de grupoterapeuta e capacidade de síntese. Levysky (1997,
p.313) nos chama atenção para mais alguns atributos desejáveis para o
grupoterapeuta de crianças: capacidade de comunicação simples e acessível, ser
continente e agüentar frustrações, assim com ataques corporais, suportar jogos e
brincadeiras muitas vezes cansativos, e poder entrar e sair do mundo mágico da
criança.
Para Winnicott (1975, p.75) e Axiline (1972, p.14) a psicoterapia de tipo profundo
com crianças deve buscar o insight, que não necessariamente é ocasionado pela
interpretação do terapeuta e, sim, pelo momento significativo no brincar quando a
criança surpreende a si mesma, quando ela faz a interpretação. Dessa forma
sugerem que o psicoterapeuta trabalhe sempre no aqui e agora da sessão e reflita,
como um espelho, os sentimentos e atitudes expressas pela criança na tentativa de
clarificá-los e fazer com que ela se reconheça. Winnicott diz que a interpretação
quando a criança e o material ainda não estão maduros é doutrinação, gera
submissão à figura do terapeuta e resistências ao processo terapêutico, e por isso
deve ser evitada, assim como a ânsia do terapeuta em compreender e ser brilhante
na sua atuação também precisa ser cuidadosamente observada.
35
O grupoterapeuta de crianças é um observador-participante que, através de seu
comportamento, ajuda a criar um setting que seja delimitado e seguro, ao mesmo
tempo permissivo, e aceitante, no qual a criança sente que pode confiar e expor
quem ela é realmente, tanto seus aspectos positivos quanto negativos.
Por interferirem diretamente na dinâmica que se estabelecerá, a instituição de um
setting apropriado e a escolha dos participantes do grupo é de fundamental
importância na psicoterapia de crianças. Alguns autores como Levisky (1997)
sugerem também a participação de dois ou mais técnicos, dependendo do número e
das características das crianças, para poderem manejar e acompanhar os
movimentos do grupo sem perder de vista as necessidades individuais. Outra
orientação é o trabalho paralelo com os pais das crianças, que pode acontecer em
grupo, fortalecendo o vínculo com os terapeutas a fim de garantir a adesão ao
tratamento e orientação ou aconselhamento para os pais.
36
3. BASES PARA O TRABALHO COM CRIANÇAS
3.1 Breve histórico da psicoterapia com crianças
Pretendo agora fazer um breve relato do percurso do trabalho individual e em grupo
com crianças dentro da psicanálise, incluindo também alguns autores que sofreram
influência também da pedagogia.
É oportuno ressaltar que considero a interfase entre as abordagens psicoterápicas e
a pedagogia um campo de grande interesse para quem trabalha com crianças. No
entanto não poderei me aprofundar nesse estudo e creio que esse é um assunto que
merece ser pesquisado futuramente.
Começarei com as duas primeiras psicanalistas que se dedicaram a estudar a
psicanálise em crianças e que assumiram posições antagônicas na teoria e na
técnica: Anna Freud e Melanie Klein.
Anna Freud, filha e assessora de Freud, publicou em 1927 o livro Psicanálise de
Crianças no qual esclarecia suas idéias sobre a análise, individual e em grupo, de
crianças, difundindo e dando credibilidade à ludoterapia. Em sua opinião, para que o
tratamento tivesse resultados positivos, era fundamental que a criança tivesse
consciência de sua doença.
Seu método era realizar uma etapa de pré-tratamento de caráter pedagógico para
que a criança compreendesse sua situação e aceitasse que precisava de ajuda.
37
Outra característica de sua metodologia era considerar fundamental trabalhar com as
crianças em transferência positiva, expressa nos desejos da criança de ser ajudada e
de agradar ao analista.
Algumas críticas a essa teoria consideram Anna Freud “adaptacionista”, pois sua
psicanálise trabalha no sentido de adequar o indivíduo às demandas sociais, voltada
para questões mais pedagógicas do que da área da saúde e da análise do
inconsciente propriamente dita.
Para Melanie Klein a psicanálise de crianças não é uma pedagogia e sim uma
clínica, e por isso a criança não precisa ter consciência de seus problemas a priori,
até porque por meio das fantasias e jogos o terapeuta pode perceber aspectos da
patologia que são inconscientes e, aos poucos, clarificá-los para. Seu foco passa a
ser, além da transferência, as ansiedades e suas defesas. No que diz respeito à
transferência para Melanie Klein esta é fundamental para o tratamento, mas deve
ocorrer tanto em sua forma positiva quanto negativa, pois exigir que ela seja somente
positiva obriga a criança a cindir os aspectos negativos, como a agressividade e a
raiva, que podem ser o caminho para a cura e o desenvolvimento integral da
personalidade.
Para chegar à sua própria metodologia a psicanalista percorreu um longo caminho.
No início analisou seus próprios filhos e depois passou a atender seus pequenos
pacientes em suas casas, com seus próprios brinquedos, e compreendeu que para
que a situação transferencial se expresse abertamente é necessário que o paciente
sinta que seu processo terapêutico é algo separado de sua vida familiar cotidiana.
38
No decorrer de seus trabalhos a psicanalista percebeu que é através do brincar e do
jogo que se obtém acesso à problemática da criança, assim como se utiliza a
associação livre com adultos. É por meio da comunicação pré-verbal que a criança
exprime suas fantasias, experiências e desejos de uma maneira simbólica. Por isso
os brinquedos que mais facilitavam a expressão das imagens internas das crianças
são aqueles mais simples e menos caracterizados, pois podem ser utilizados para
criar as mais diferentes situações. A partir disso, Melanie Klein começou a montar as
caixas lúdicas individuais que continham pequenas figuras humanas de diferentes
tamanhos, carros, animais, árvores, blocos, casas, papel, tesouras, lápis, cola,
massa de modelar e barbante dentre outras coisas, e que continuam servindo de
modelo, até hoje, aos atendimentos de ludoterapia.
S. R. Slavson era um educador progressista que trabalhava com grupos e
posteriormente tornou-se psicoterapeuta. Ele observou em meados da década de 30
que o contato grupal proporcionava à criança tornar-se mais espontânea,
fortalecendo o ego e proporcionando a diminuição das ansiedades. Desenvolveu a
terapia de grupo da atividade que favorece a expressão de fantasias e sentimentos
mediante a ação e o brinquedo, mas sempre observando os sintomas e expressões
individuais, sem se aprofundar na dinâmica de grupo. Para ele os ingredientes
terapêuticos básicos surgem da interação das crianças umas com as outras e com o
terapeuta, e se utiliza de diversos materiais, ferramentas, jogos selecionados e
comida para servir a fins terapêuticos.
Dentre os terapeutas brasileiros que se dedicaram ou dedicam ainda ao trabalho de
grupoterapia infantil quero destacar Oswaldo di Loreto que teve um papel
39
fundamental na construção da psiquiatria infantil no Brasil e porque não dizer da
nova psiquiatria. Seus estudos e experiências no sentido de entender o que facilita a
cura e o que promove as doenças psíquicas têm sido norteadoras da prática de
muitos jovens psis.
3.2. O Brincar e a Criatividade na Concepção de Winnicott
“Porém, Freud também compara a criança que brinca com o
poeta, ao dizer “toda criança que brinca se conduz como um
poeta, criando para si um mundo próprio”
(PELENTO, 1989, p.103)
Já dissemos que na teoria kleiniana o brincar da criança equivale à associação livre
do adulto, e que o brinquedo se constituiu como técnica psicoterápica.
Winnicott foi um pediatra e que se tornou psicanalista, e fez psicoterapia e
supervisão com Melaine Klein. Apesar de trabalhar a partir de conceito kleinianos
seguiu seu próprio caminho dando ênfase ao estudo minucioso da relação mãe-bebê
e buscando entender não o conteúdo do brincar e suas interpretações mas, o que é
o brincar, o que é necessário para que possa ocorrer e qual o seu papel no
desenvolvimento do ser humano; teoria construída a partir da noção dos fenômenos
transicionais. Para Winnicott (1975) há uma evolução direta dos fenômenos
transicionais para o brincar, do brincar para o brincar compartilhado, e deste para as
experiências culturais e sociais.
40
O espaço transicional, intermediário, ou potencial é a possibilidade que surge na
relação entre o bebê ainda indiferenciado, sem consciência do mundo interno e do
mundo externo, com a figura materna. Essa relação necessita estabilidade para que
o bebê possa desenvolver uma confiança afetiva básica e o sentimento de
continuidade no existir. Assim ele poderá se abrir para o mundo sem se sentir tão
ameaçado e ter a experiência ilusória de controle dos acontecimentos que o atingem,
na
forma
de
onipotência
e
controle
mágico,
fundamentais
para
o
seu
desenvolvimento.
A partir da ilusão e da conseguinte desilusão a respeito dessa onipotência a criança
passa a diferenciar-se e constituir-se como sujeito, criando e recriando nesse espaço
potencial suas experiências, a consciência de si e do mundo externo por meio da
brincadeira, como o poeta que cria seu próprio mundo. O espaço potencial no qual
ocorre o brincar é uma intersecção do indivíduo com suas fantasias e o mundo
externo a ele, com seus fatos e dados de realidade. Ele é o espaço onde ocorre a
construção desses dois mundos e é onde se origina também as demais experiências
criativas e culturais.
Dito de outra forma a experiência do brincar permite integrar aspectos dissociados,
discriminar mundo interno e mundo externo, reparar objetos internos danificados,
assim como modular a angústia da criança. A brincadeira é própria do
desenvolvimento saudável:
“[...] o brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde; o brincar conduz aos
relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma forma de comunicação na
41
psicoterapia; finalmente a psicanálise foi desenvolvida como forma altamente
especializada do brincar, a serviço da comunicação consigo mesmo e com os outros.”
(WINNICOTT, 1971, p.63)
Fica claro que para a criança ser capaz de brincar precisa ter se constituído um
sujeito, e que as crianças que tiveram a relação com a figura materna por demais
conflituosa ou indiferenciada, implicando na não construção da identidade primária,
não poderão ser os criadores de seus próprios mundos, não brincarão, assim como a
capacidade de simbolizar, o viver espontâneo, as relações interpessoais, o trabalho e
as demais experiências nas quais se põe em jogo o corpo e a mente também ficarão
prejudicadas.
O que Winnicott (1975) diz a respeito do brincar também se aplica aos adultos, com
a diferença do elemento da comunicação verbal. O brincar conquistou um lugar
privilegiado em sua teoria, pois para ele é somente na brincadeira que o indivíduo,
criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral, e é somente
sendo criativo que o indivíduo descobre quem ele é, o seu eu ou self. Por isso o
brincar para Winnicott é em si mesmo uma terapia que leva o sujeito a se descobrir.
A espontaneidade está ligada à criatividade na medida em que é expressão do
verdadeiro self. O termo criatividade expresso por Winnicott não se refere à
criatividade especificamente artística e estética, já que esta, apesar de seu valor,
pode trair a expressão espontânea e genuína com imposições de tendências e
técnicas. Mas, sim, àquela operação que possibilita construir e descobrir o próprio
42
self e o significado das coisas do mundo, e relaciona-se ao sentimento de estar vivo
de maneira inteira e na relação com a realidade externa.
O momento criativo é aquele no qual a pessoa se encontra num estado de
relaxamento e repouso que a permite expressar impulsos e vivenciar a experiência
de desorganização e organização, desintegração, ou não-integração, e integração,
desconstrução e construção, e pode, inclusive, compartilhá-la com o outro. Winnicott
(1975) diz que o que faz a vida valer ser vivida é a percepção criadora, pois a base
do sentimento do eu (self) é construída a partir dessas experiências.
43
4. BASES PARA O TRABALHO COM OFICINAS TERAPÊUTICAS
Agora começaremos a ver algumas referências importantes para construir uma
proposta de trabalho terapêutico que utilize a arte e de outras técnicas expressivas.
As Oficinas Criativas e o Expressive Therapies Continuum – E.T.C. são duas
metodologias que podem ser utilizadas conjuntamente para construir dinâmicas de
trabalho educacionais ou terapêuticas e que possuem a mesma característica de
serem propostas semi-diretivas. Isto é, cada uma delas oferece instrumentos para
criarmos propostas específicas de atuação, dependendo do objetivo que desejamos
atingir.
As propostas de trabalho visam a proporcionar, num ambiente acolhedor, o contato
do sujeito com seu mundo interno e com a realidade, justamente no espaço potencial
que permite descobrir e transformar essas realidades. Suas técnicas servem como
facilitadoras da experiência de construir uma forma única, espontânea e criativa de
dar significado aos conteúdos internos e experiências, utilizando diferentes
habilidades e aspectos da personalidade, e assim integrar o potencial cognitivo com
o emocional, o corpo e a mente, mundo interno e mundo externo.
4.1 A Oficina Criativa
“Seu objetivo é fazer com que as pessoas possam exercitar
suas capacidades de aprender, fazendo uso de seu potencial
psíquico e tendo seu dinamismo energético afetivo e cognitivo
direcionado para uma melhor qualidade em aprendizagem.”
(ALLESSANDRINI, 2004, p.83)
44
Essa forma de intervenção é baseada nos estudos de Fagali (1987, 1992) e Ferretti
(1988, 1994) em seus textos sobre psicopedagogia e de Ciornai (1994) em seu
trabalho de arteterapia gestáltica, sendo objeto de pesquisa de Allessandrini (1996,
2000) em diversos estudos que relacionam a aprendizagem e a criatividade. É uma
sugestão de planejamento para envolver o indivíduo integralmente e, portanto possui
uma estrutura básica de seqüência:
(1) Sensibilização: é o momento em que a pessoa estabelece uma conexão com o
trabalho que irá começar, e tem como objetivo aumentar o contato com o mundo
interno, a concentração e proporcionar um estado de relaxamento interno.
(2) Expressão livre: é a etapa na qual o cliente pode explorar o material escolhido
por ele ou sugerido pelo terapeuta e diferentes modos de concretizações. Nesse
momento seu universo interno pode se manifestar sob forma de imagem, movimento,
som, pensamento, muitas vezes carregados de sentimento e emoção.
(3) Apreciação: é o movimento de elaborar e redimensionar, ainda no nível nãoverbal, a produção feita na etapa anterior. O objetivo é ampliar o entendimento e
significações da experiência, vendo-a de diferentes ângulos, tentando perceber
resultados inesperados e ocultos até então.
(4) Transposição da linguagem: é a passagem desses conteúdos e vivências para
uma outra linguagem, geralmente verbal. O objetivo desse momento é organizar a
experiência e torná-la mais consciente, facilitando sua apreensão.
(5) Avaliação: é a retomada das etapas anteriores, possibilitando uma maior
integração e consciência dos movimentos vividos que levaram a percepção de algo
novo na consciência.
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A Oficina Criativa é um processo que exige participação ativa e consciente do cliente
na resolução dos desafios e descobertas que a relação com o material e com a
proposta podem gerar. Por isso, na avaliação, é significativo perceber não só a
reação do sujeito ao que foi produzido mas, também, todas as reações e atitudes
tomadas no decorrer do processo. Todos esses elementos serão importantes para
pensar o diagnóstico e o plano de trabalho voltado para as necessidades do cliente.
4.2 O Continuum das Teorias Expressivas
O Continuum das Terapias Expressivas – E.T.C. (Kagin & Lusebrink, 1978, p.171179) é baseado nos estudo de Piaget e Inhelder (1977) sobre o desenvolvimento das
representações imagéticas e propõe uma seqüência expressiva que reflete diferentes
estágios de desenvolvimento humano. As autoras construíram um modelo conceitual
de expressão e interação com o meio em diferentes níveis, visando o trabalho
terapêutico. Lusebrink (1990) descreve quatro níveis, sendo que os três primeiros
refletem a seqüência desenvolvimentista e a crescente abstração do processamento
da informação, e o quarto nível, o criativo, pode se manifestar em qualquer dos
níveis anteriores, inclusive em forma de síntese de todos os outros.
(1) Nível cinestésico-sensorial: uma atividade no nível cinestésico dá ao indivíduo
a oportunidade de soltar inibições e controles pela liberação da energia e da
expressão por meio do movimento. Os materiais expressivos servem a este nível
como facilitadores passivos da ação cinética como, por exemplo, amassar argila,
dançar com lenços, experimentar temperos, chutar a bola, pintar livremente com
tinta. O componente sensorial deste nível refere-se à sensação tátil ou qualquer
46
outra experimentada com o material. Na medida em que os componentes da ação
aumentam a percepção sensorial diminui e vice-versa. A expressão e interação com
o meio nesse nível podem levar ao conhecimento do ritmo criado por meio da ação
coordenada do organismo. O ritmo em si pode ser uma experiência unificadora e
curativa, visto que todo o organismo está envolvido nessa ação rítmica. A distância
reflexiva é mínima quando é grande o envolvimento na ação ou na sensação.
(2) Nível perceptual-afetivo: este nível representa a interação entre o aspecto
perceptual e afetivo e a influência do meio sobre esta interação. No pólo perceptual
estão as formas ou qualidades estruturais da expressão, tais como definir limites,
diferenciar formas, perceber texturas e o esforço de alcançar a representação correta
de uma experiência interna ou externa. Nesse nível existe um diálogo entre o
indivíduo e o material, chamada de integração isomórfica, na qual a forma dada ao
material corresponde a uma qualidade interna. Materiais com qualidades mais
estruturadas, como madeira ou mosaico parecem evocar uma melhor organização
interna do indivíduo do que materiais fluídos como a tinta a base de água, com os
quais a pessoa tem que impor uma estrutura ao material. O componente afetivo
deste nível modifica a forma e, por outro lado, a forma dá estrutura ao afeto. A
utilização de cores e a geometrização da forma são exemplos de como o indivíduo
pode perceber a forma ou o afeto associado à expressão. A distância reflexiva varia
de uma distância considerável, quando os aspectos perceptuais da expressão estão
enfatizados, a uma distância minimamente reflexiva numa experiência afetiva
intensa.
(3) Nível cognitivo-simbólico: este nível é qualitativamente diverso dos anteriores,
pois engloba as operações conceituais e antecipatórias com imagens e as
correspondentes verbalizações, descrevendo as operações analíticas e seqüenciais
47
no pensamento lógico e na resolução de problemas. A exploração das propriedades
do meio e a internalização e abstração contribuem para a compreensão das ações
necessárias para manipular o material e construir um plano de ações. As abstrações
e representações de conceitos via formas visuais são partes das operações
cognitivas. Meios resistentes e estruturados, como lápis ou construção em papel,
madeira ou sucata, dão ênfase às operações do nível cognitivo, assim como
denominar o produto, verbalizar o procedimento e internalizar comandos verbais. A
distância reflexiva é maior nesse nível do que nos níveis anteriores. O componente
simbólico está na formação do conceito intuitivo, compreensão e atualização de
símbolos e à expressão simbólica do significado. Símbolos englobam o cinestésico
ou dinâmico, bem como afeto, estrutura e forma e significado. Seu significado pode
estar reprimido ou deslocado, ou ainda não ser sabido.
(4) Nível criativo: o trabalho nesse nível enfatiza a síntese e as forças de realização
do eu e pode ocorrer em qualquer um dos níveis anteriores. Para as autoras a
sublimação é um exemplo de ato criativo. No nível criativo é possível a síntese entre
a experiência interior e a realidade externa, entre a expressão individual e o meio, ou
experiências do indivíduo em diferentes níveis do E.T.C.. O ato criativo culmina numa
experiência afetiva de encerramento e um senso de unidade entre o meio e a
mensagem. A distância reflexiva numa interação criativa com o meio alterna-se entre
o total envolvimento do indivíduo que mantém alguma consciência da integração e o
total envolvimento numa reflexão subseqüente sobre a integração. A atualização
criativa envolve todo o indivíduo e, portanto, tem uma influência curadora.
48
5. O ESTÁGIO DE ARTETERAPIA NO CENTRO DE DESENVOLVIMENTO DA
ASSOCIAÇÃO CRISTÃ DE MOÇOS DE PINHEIROS
Realizamos o estágio de maio até dezembro de 2004. É uma experiência que ficará
na memória, junto com o aprendizado que tivemos ao lidar com esses meninos e
meninas com dificuldades, e com todas as nossas dificuldades durante o trajeto. Foi
tão gratificante, e importante, nossa primeira experiência profissional como
arteterapeutas que, terminado o estágio, decidimos prosseguir com o grupo para
colher alguns dos frutos que foram plantados durante o processo, agora como
voluntárias
de
oficinas
terapêuticas.
Hoje
estamos
mais
maduras,
tanto
profissionalmente quanto no nível pessoal, e vemos que o vínculo com as crianças e
das terapeutas, também amadureceu.
Pretendo contar resumidamente um pouco do que foi essa experiência como
estagiária e algumas das características do grupo e do nosso trabalho.
5.1 O Projeto: A Fada que Tinha Idéias
O projeto inicial, construído por minha dupla e eu, recebeu o nome de Oficina
Criativa da Fada que Tinha Idéias, e nosso objetivo principal era desenvolver a
criatividade e a expressão utilizando a literatura infantil e os contos de fadas como
catalisadores. Decidimos trabalhar com crianças na faixa etária de 7 a 9 anos, tendo
como objetivo auxiliá-las em sua auto-descoberta, na conquista da espontaneidade e
da confiança no seu potencial criativo, o que no nosso entender enriqueceria todas
as experiências de aprendizado escolar, estimularia a curiosidade e o interesse pela
49
descoberta do mundo cultural e social em que estamos inseridos, além de
proporcionar novos modelos de relacionamentos interpessoais por meio da relação
com o grupo e com as terapeutas.
Nesse processo gostaríamos de associar o prazer e o lúdico às descobertas do
mundo social e do próprio mundo da criança, envolvendo todos os sentidos e
habilidades nesse trabalho. Criar, imaginar, inovar sem medo de errar era a nossa
proposta
para
construir
um
conhecimento
unificado
e
não
fragmentado.
Pretendíamos com isso impulsionar o desenvolvimento dos aspectos criativos,
cognitivos, simbólicos, perceptuais, afetivos, cinestésicos e sensoriais (Lusebrink,
1990) por meio da fantasia, da imaginação e das vivências com a arte e outras
técnicas expressivas. Nós sabíamos que tínhamos, nós também, que deixar de lado
os livros de receitas, já embolorados, para criar novas receitas sabendo que cada ser
em si carrega o dom de ser capaz de aprender e inventar coisas belas.
Com essas idéias e disposições para aprender junto com as crianças nos lançamonos nessa experiência profissional.
5.2 Apresentação
Fomos ao Centro de Desenvolvimento Comunitário da A.C.M. indicadas por uma
coordenadora da Pastoral do Menor da Vila Madalena. Hoje o C.D.C. recebe 25
crianças no período da manhã e mais 25 no período da tarde que estão matriculadas
em escolas próximas à A.C.M., moram nas redondezas incluindo um número
50
significativo de crianças moradoras das favelas da região ou filhos de pais que
trabalham no bairro.
Esse projeto do C.D.C. surgiu como um pedido das próprias escolas para que
houvesse um atendimento às crianças que estudavam à tarde e que normalmente
ficavam sozinhas em casa ou na rua. No C.D.C. os meninos e meninas participam de
atividades recreativas, educativas, terapêuticas e culturais com voluntários que
contam histórias, ministram
oficinas de dança, primeiros-socorros, música,
computação e reforço escolar, e realizam acompanhamento terapêutico. Os
educadores das oficinas são todos voluntários do C.D.C., com exceção da
coordenadora, da educadora fixa e da cozinheira, que são funcionárias da ACM.
Nosso projeto foi recebido com entusiasmo pela coordenadora, que a nosso pedido,
identificou algumas crianças que apresentavam maiores dificuldades de relações
interpessoais, escolares e familiares. Pedimos que a escolha também fosse voltada
para a faixa etária dos 7 aos 9 anos, que envolve crianças que estão passando pelo
processo de alfabetização e letramento, aumentando seu contato com a cultura e
outras áreas de conhecimento.
Outra questão na qual insistimos ao falar da Oficina Criativa da Fada que Tinha
Idéias era a importância de termos um grupo reduzido de crianças, pois nosso
trabalho não tinha um caráter recreativo e, sim, terapêutico. A princípio
determinamos que seis crianças fosse um número suficiente para podermos
trabalhar com qualidade, mas como a demanda da instituição, e até das próprias
51
crianças, era grande, tivemos que negociar e nosso grupo acabou formado por dez
integrantes e duas terapeutas.
5.3 Estrutura e Espaço da Instituição
O C.D.C. da A.C.M. Pinheiros fica na rua Deputado Lacerda Franco, 381, tel. 3816
6009. É um sobrado com quintal externo, uma sala de computação, a sala de
administração, cozinha e refeitório. No andar superior há a brinquedoteca, uma
biblioteca, um quintal coberto e uma sala de aula. Há também um banheiro feminino
e outro masculino, usados pelos adultos e pelas crianças. No início dos atendimentos
trabalhávamos na biblioteca por ser a sala maior, com mesa e almofadas. No entanto
percebemos que o trabalho era freqüentemente interrompido por crianças e
voluntários que queriam usar o banheiro feminino, que fica dentro da sala, ou que
estavam curiosos para ver o que as crianças estavam fazendo.
No começo do segundo semestre nos mudamos para a sala de aula com armários
que fica no fundo do andar superior, e passamos a tirar as cadeiras para colocar
colchonetes e o tapete de E.V.A. e a trabalhar no chão. Algumas vezes chegamos a
trabalhar no quintal que ligava nossa sala e a brinquedoteca, fazendo dele nosso
território expandido.
5.4 O Processo
Para os primeiros atendimentos planejamos encontros baseados nas Oficinas
Criativas (Allessandrini, 1996), iniciando cada sessão com brincadeiras
e
52
relaxamentos para proporcionar uma sensibilização por meio da música, exploração
corporal e espacial para depois introduzir o trabalho com as histórias selecionadas.
Após a leitura propúnhamos a livre expressão com algum tipo de material artístico ou
dramático e, no final, tentávamos fazer com que as crianças tivessem um olhar para
sua própria produção e a dos colegas e se que percebessem mais.
Começamos o atendimento indo às sextas-feiras no período da manhã, e
permanecemos por aproximadamente duas horas em cada encontro. A partir do
início do mês de novembro resolvemos incluir mais um encontro semanal e
passamos a ir também às terças-feiras pela manhã para acompanhar o mesmo
grupo. Essa mudança ocorreu principalmente porque percebemos que o trabalho
estava sendo interrompido pelas freqüentes faltas das crianças nas sextas-feiras.
Imaginamos que poderíamos melhorar o ritmo e a continuidade do acompanhamento
individual e do grupo fortalecendo nosso vínculo e aumentando a freqüência das
oficinas.
Fomos descobrindo que as oficinas criativas, assim como pudemos observar e
vivenciar durante o curso de Especialização em Arteterapia, eram muito diferentes do
trabalho de oficina possível com crianças nessa faixa etária e com as características
do nosso grupo da A.C.M. Tentamos então nos adaptar a essas características e
aprender com as dificuldades nossas e do grupo, criando propostas de cunho
terapêutico e educacional que ampliaram nossos objetivos e as idéias do projeto
inicial.
53
Nosso grupo se mostrava agitado com dificuldade para se concentrar e para ouvir o
outro, inclusive as propostas de atividade, e de permanecer no espaço do trabalho.
Havia brigas e discussões freqüentes e algumas crianças reagiam muito mal quando
eram chamadas à atenção, muitas vezes saindo do grupo, ficando agressivas ou se
excluindo da atividade. Além disso, sabemos que as crianças que atendemos, na sua
maioria, têm pouca experiência em trabalhos de grupo, e que o costume de esperar
por sua vez, parar para ouvir o outro e respeitar algumas regras de convivência são
aprendizados que precisam ser continuamente promovidos por quem coordena a
turma. Essas dificuldades também são observadas pelas coordenadora e educadora
do C.D.C. durante os outros períodos em que as crianças estão na instituição.
Para manejar essa dinâmica tentamos criar um código de comportamento que fosse
construído junto com a turma. Criamos combinados do que era permitido, ou não,
fazer no grupo, e constantemente tivemos que relembrar às crianças o que foi
acertado. Percebemos que eles sabem o que pode ou não ser feito, mas agem
descumprindo os combinados para nos testar e possivelmente por ainda não terem
internalizado essas regras. Provavelmente essas não são as mesmas regras de
convivência que predominam em outros espaços onde eles vivem.
Se no início nosso foco era trabalhar a espontaneidade criativa no decorrer dos
encontros percebemos que era fundamental trabalhar o contraponto, isto é, os limites
para ajudá-los a trabalhar em equipe, se concentrar e se respeitar mais. Sem isso
qualquer trabalho que pretenda proporcionar a soltura, a livre expressão e a troca de
experiência fica comprometido. Atendemos a algumas crianças que estão inseridas
numa realidade familiar e social muitas vezes desfavoráveis ao seu desenvolvimento
54
emocional e cognitivo. A tensão nas relações familiares, agravadas pelas
dificuldades econômicas, o desemprego, o uso de drogas e outras formas de
violência se reflete no comportamento das crianças. Provavelmente não é por acaso
que as crianças que apresentam sofrimento psíquico que consideramos mais
preocupantes, que pode ir da agressividade destrutiva à apatia generalizada,
geralmente possuem mais de um fator gerador de tensão em suas vidas e são
carentes de experiências positivas num meio ambiente onde se sintam valorizados,
protegidos e amados.
Quando começamos a trabalhar com os jogos de regras essa desorganização
melhorou significativamente. Parece que a própria estrutura do jogo, com suas
condutas que precisam ser acertadas e aceitas por todos, é o jeito mais fácil de
transmitir para as crianças que a regra e os combinados sociais não as impedem
gratuitamente de agir de modo individualista. Sem um acordo a respeito do que pode
e do que não pode, e com cada um resolvendo fazer do seu jeito, elas simplesmente
não conseguirão brincar juntas. As nossas regras tentam garantir que possamos
estar e fazer coisas na companhia de outras pessoas, reconhecendo-as como iguais,
com os mesmos direitos e com o direito, principalmente, de ser respeitada enquanto
ser humano.
Para lidar com a agitação com que as crianças chegavam ao grupo optamos por usar
brincadeiras como “estátua” e “telefone-sem-fio”, técnicas de relaxamento e de
imaginação dirigida, a “pedra do índio”, que sinaliza para os outros quem está com a
palavra, e o “minuto de silêncio”, uma proposta nova e difícil para eles realizarem
mesmo olhando para o relógio de ponteiros na parede.
55
Mesmo com a utilização dessas técnicas, e trabalhando em dupla, ainda tínhamos
dificuldade para acompanhar a dinâmica grupal e, ainda, prestar atenção ao
processo individual das crianças, pois nosso grupo era formado por uma média de
oito integrantes a cada encontro à medida que elas faltavam com alguma freqüência.
Resolvemos, então, no começo de 2005, mudar a estrutura do grupo. Dividimos as
dez crianças em dois grupos de cinco integrantes, a ser atendido quinzenalmente;
aceitamos a entrada de mais algumas crianças, pois outras deixaram de fazer parte
do grupo por motivos diversos; proibimos a participação de crianças que não faziam
parte do projeto; estabelecemos regras mais claras a respeito da participação nos
grupos, sendo que, agora, se a criança não quisesse participar do grupo no seu dia
de atendimento só seria permitida sua participação dali a quinze dias, o que exige
que ela faça uma escolha dentro das regras e da organização externa.
No entanto continuamos trabalhando com os grupos nos quais variam os integrantes
de acordo com o encontro, pois quando uma criança falta, o que, infelizmente, ocorre
com freqüência, convidamos uma outra, que já participe das oficinas em outro dia
para participar daquele encontro. A escolha da substituição é feita a partir da
demanda e necessidades que observamos nas crianças.
A criança que faz parte do projeto sempre pode escolher participar ou não das
oficinas terapêuticas naquele dia, o que consideramos um fator importante para que
um trabalho como o nosso mantenha seu perfil terapêutico. O que não permitimos é
que elas fiquem entrando e saindo da atividade, e que quando optam em não
participar, que esperem o próximo dia de oficina para o seu grupo. É claro que
56
também trabalhamos com as variáveis de maturidade, necessidade e interesse para
guiar nossa conduta na hora de discutir com a criança a respeito da sua participação,
o que cria exceções às regras.
Observar durante as oficinas o aparecimento espontâneo de subgrupos, que
variavam conforme o encontro e a atividade. Algumas vezes a dificuldade era juntar
o grupo das meninas com o dos meninos, pois o enredo e a atividade desejada por
eles era muito diverso; em outros momentos percebíamos que algumas crianças
acabavam sendo excluídas ou se excluindo de alguma atividade quando surgia
algum problema ou dificuldade. Nessas ocasiões, em que as crianças não
conseguiam resolver entre elas a situação, nós entrávamos para facilitar a integração
desses participantes. No decorrer de todo o estágio fizemos o exercício de tentar
“costurar” e integrar os subgrupos e as atividades diferentes, permitindo que em
determinados momentos cada um fizesse a atividade em que estava interessado.
Analisando os resultados que as atividades provocavam na dinâmica do grupo fomos
tentando, cada vez mais, propor oficinas que favorecessem a maior integração e o
maior respeito pelos integrantes do grupo. As oficinas mais marcantes para a turma
foram as dramatizações de histórias conhecidas e inventadas por nós, os teatros de
bonecos, as brincadeira de cabanas, as oficinas de brigadeiros e beijinhos, as
oficinas de salão de beleza, as atividades criativas com sucata, argila e jogos com
regras, como o jogo da memória, damas e dominó, que não poderei descrever por
não ser a proposta dessa monografia, mas estão devidamente registradas nos
relatórios de atendimento do estágio.
57
É interessante observar como as crianças valorizam o espaço da oficina terapêutica,
e que aquelas que não fazem parte do grupo estão sempre curiosas sobre as
atividades e pedindo para participar. Para nós isso representa um reconhecimento do
trabalho e um sinal de que o espaço que tentamos construir com as crianças é
prazeroso e constitui um grupo com o qual as crianças com quem trabalhamos se
identificam e se sentem integrantes, mesmo que em determinados momentos
escolham não participar do encontro naquele dia.
58
6. HISTÓRICO DAS CRIANÇAS E RELATO DA OFICINA
6.1. Histórico Resumido das Crianças1
Pretendo fazer um resumo do perfil e da história familiar das crianças presentes na
oficina que desejo analisar. Julgo que essas informações são importantes para
aprofundar as hipóteses discutidas e lamento não ter mais elementos de suas vidas
familiares, principalmente das que são novas no projeto.
Maria, 9 anos, é magra e alta para sua idade. Tem os olhos grandes, que
transparecem curiosidades. Sorriso fácil e doce, está sempre disposta a cooperar,
mesmo quando não é requisitada. Esperta, tem facilidade para criar histórias e
brincadeiras. No começo dos atendimentos estava com dificuldade de se expressar e
de se colocar frente às situações com os colegas. Inibida, se envergonhava ao falar
e parecia insegura, sempre se apoiando nas meninas mais extrovertidas. Sabemos
que sua mãe já passou por cirurgia para retirada de câncer, fez o tratamento da
doença e atualmente está estável. Maria mora com a mãe, o pai e os irmãos, alguns
filhos de sua mãe com outros companheiros anteriores ao seu pai. Hoje em dia está
mais desinibida e com freqüência lidera o grupo nas oficinas, dando idéias e
ajudando a coordenar o grupo de forma positiva.
Jonas, 7anos, é sobrinho de Maria, filho de uma de suas irmãs mais velhas. É um
menino bonito, de estrutura pequena e cabelos claros. Logo se percebe que possui
uma agitação motora que o destaca do grupo, e tem sido considerado um menino1
O nome verdadeiro das crianças foi alterado para preservar sua privacidade.
59
problema dentro da instituição. Infelizmente temos poucas informações sobre sua
vida, pois a mãe nunca foi ao C.D.C.. Ele foi encaminhado no início do ano 2005 pela
avó, mãe de Maria, que nos forneceu algumas informações. Desde a separação de
seus pais, quando tinha 5 anos, Jonas mora na casa da avó, que fica no mesmo
terreno da moradia da mãe. O pai saiu de casa, mas costuma visitá-los com
freqüência, sem se envolver muito na educação ou na relação da mãe e da avó com
seu filho. Ambas estão brigadas, justamente porque a avó disse não aceitar a forma
como a filha trata a criança, com impaciência, gritos e agressões. Jonas tem o hábito
de desrespeitar os combinados da turma e normalmente não obedece a nenhum dos
adultos. Envolve-se em brigas com as crianças menores e mais fracas, mas não com
as mais velhas, mas não é especificamente agressivo. Parece ser instável
emocionalmente e cria situações nas quais provoca e desafia os outros, e demonstra
bastante dificuldade em desenhar ou criar qualquer coisa que não seja copiada ou já
conhecida.
Marcos, 9 anos, é um menino forte e alto em comparação aos demais. Parece ser
retraído no contato com os adultos, mas não com as outras crianças. Tem os olhos
brilhantes e logo se percebe que usa sua inteligência para propor brincadeiras
conversas interessantes e que possui certo grau de independência com relação aos
demais. Muitas vezes se mostra emburrado, não querendo conversar, mas em outros
momentos se apresenta com bom-humor e alegria. Estamos acompanhando-o desde
março de 2005, apesar de ele ser aluno do C.D.C. há mais tempo, e sabemos que no
início do ano seus pais se separaram e sua mãe observou que ele andava mais
ansioso, comendo em maiores quantidades e confuso com a nova situação. A mãe
parece ser muito presente na vida de Marcos, inclusive procurando a coordenação
60
para conversar, contando que o filho mantém contato freqüente com o pai e sua nova
companheira.
Roberto, 9 anos, é um garoto quase tão grande quanto Marcos, mas de atitude mais
passiva. Está conosco desde o início das oficinas e percebíamos que, apesar de ser
um menino extremamente inteligente e afetivo com os adultos, apresentava grandes
dificuldades ao se relacionar com as crianças de sua idade. Costuma procurar os
adultos quando uma criança o aborrece ou agride – nunca o vi batendo em ninguém,
mas, muitas vezes, sendo agredido. Costuma brincar sozinho ou buscar as
atividades com as meninas. É descriminado pelas crianças por ser mais passivo, não
gostar de brincadeiras violentas nem competitivas. Às vezes se comunica com uma
voz miada, infantilizada. Sabemos pela mãe que o pai hostiliza Roberto, fato que ela
tenta apaziguar “dando muito amor ao filho” (sic). Ele tem uma irmã mais nova, de
um ano e meio, a quem o pai é muito apegado.
Fernando, 7 anos, é magro e ágil, de cabelos lisos e muitas marcas no rosto,
derivadas de uma alergia ainda não identificada, mas que está em tratamento no
Posto de Saúde, segundo o que diz a mãe. Essa criança também começou a
freqüentar o C.D.C. e nosso projeto em março de 2005 e possuo poucas informações
sobre sua história. Observo que é um menino que ainda não estabeleceu um vínculo
de confiança estável com as terapeutas, evitando participar de alguns encontros.
Quando está presente participa das atividades e não costuma ser agressivo no
contato com os outros. Tem facilidade de brincar sozinho e quando é frustrado pelas
crianças, durante as atividades, se afasta do grupo.
61
6.2 As Oficinas
A oficina que irei relatar foi coordenada somente por mim, pois minha dupla estava
impossibilitada de comparecer por motivo de saúde. A disposição de realizar a
oficina sem a presença da outra terapeuta pode ser questionável dentro da
psicoterapia, uma vez que a presença de ambas faz parte do setting. No entanto foi
uma decisão tomada pela dupla, de não interromper o andamento das atividades, o
que ocorreria se esperássemos por sua total recuperação. Em outros momentos já
havíamos nos reunidos com o grupo sozinhas, o que são situações incomuns, mas
que ocorrem devido a imprevistos e problemas pessoais ou de saúde de uma de
nós.
Na semana anterior eu já fora sozinha ao encontro e comunicado a ausência de
minha colega, quando as crianças expressaram curiosidade e preocupação com o
estado de saúde da terapeuta e o medo de que ela não retornasse, o que foi
discutido no grupo. Como já estamos a mais de um ano acompanhando essas
crianças elas parecem possuir uma confiança a respeito do nosso vínculo e
permanência no C.D.C., e depois do primeiro impacto da notícia não houve mais
comentários nem outros indícios de comportamento do grupo que eu possa
relacionar a esse tema.
A oficina foi criada a partir da proposta de trazermos brinquedos para as oficinas,
elemento restrito às brincadeiras de cabana e representações teatrais, na forma de
cenário ou elemento cênico. Vínhamos trabalhando identidade e auto-imagem com
um personagem criado por eles, que se desenvolveu como sendo um personagem
62
dentro de uma família que possuía uma história. Imaginamos que trazer bonecos e
outros elementos como talheres, pratos, animais, blocos de montar e carrinhos
pudessem ajudá-los a experimentar as histórias e fantasias que surgiram nos
encontros anteriores.
Só para que fique mais clara a relação de alguns acontecimentos entre as duas
oficinas, contarei, de maneira bem resumida, como foi o encontro que antecede a
oficina escolhida para análise.
Em 07/06 eu fizera a apresentação de uma história, inventada por mim, com bonecos
e brinquedos, na qual pedi a participação do grupo para criar o desfecho da história
e, depois, sugeri que cada um apresentasse sua própria história para a turma. Era
um grupo de cinco crianças. Duas, as mais maduras e organizadas psiquicamente,
logo se dispuseram a criar uma história e escolheram os personagens, uma terceira
começou a brincar com o material de forma mais introspectiva e as duas outras com
maiores dificuldades interpessoais e de organização emocional começaram a se
agitar, mexendo nos brinquedos. Logo na primeira apresentação essas crianças que
apresentam maiores dificuldades no grupo começaram a tumultuar a atividade,
impedindo a continuidade da apresentação. Por isso tivemos conflitos e acabamos
interrompendo a atividade, deixando algumas crianças frustradas e outras, talvez,
aliviadas.
Pensei que para resolver esse problema poderia trabalhar com duplas ou trios de
crianças, que se ajudariam na criação da história e na hora da apresentação. Talvez
isso facilitasse o envolvimento das crianças e diminuísse o tempo de espera pela sua
63
própria apresentação. Num grupo com cinco crianças poderia surgir uma dupla e um
trio, ou duas duplas e uma criança sozinha.
Resumo da Oficina de 14/06/05
Depois da reunião com a coordenação e outra psicóloga para discutir alguns casos
resolvi chamar Jonas para me ajudar a arrumar a sala para o encontro e aproveitei
para conversar com ele sobre os nossos combinados e as dificuldades que
havíamos tido no encontro passado devido ao comportamento dele e de outra
criança que atrapalhou a apresentação de bonecos das outras crianças e fez com
que o encontro terminasse. Ele parecia supercooperativo, arrumando tudo com
cuidado e dando atenção ao que eu dizia.
Quando chegaram as outras crianças expliquei que a outra terapeuta ainda estava
se recuperando da operação e que não poderia participar do grupo ainda, mas que
viria na semana seguinte. As crianças nada comentaram a respeito. Falei dos
problemas que tivemos no encontro passado e de como isso prejudicou o grupo,
deixando todo mundo frustrado sem poder terminar a atividade e disse que
continuaríamos a proposta da semana anterior, fazendo apresentações com os
brinquedos, mas que dessa vez eles trabalhariam em duplas ou trios.
Para começar a atividade propus uma brincadeira de aquecimento. Começamos
com o telefone sem fio, brincadeira que não fazíamos há tempos. As crianças se
organizaram em roda e nos aproximamos. Discutimos quais seriam as regras da
brincadeira e o que precisávamos fazer para que desse certo. Marcos quis começar
64
inventando uma frase. Com algumas modificações a frase foi transmitida e as
crianças riram. “Cala a boca e respeita a polícia”, foi a frase com que Marcos havia
começado a brincadeira. Na seqüência Fernando quis apresentar sua frase. Depois
de pensar um pouco a falou no ouvido de Jonas, que olhou para o grupo assustado
e sem entender. Fernando não conseguia decidir qual frase dizer e começou falar
um monte de coisas, mudando o conteúdo da frase a todo momento. Chegou a
verbalizar alto essas tentativas numa frase que tentava dizer algo como “o lápis risca
a lousa e o apagador apaga a lousa”. Perguntou então se podia fazer uma frase de
terror e não conseguiu articulá-la também.
Maria quis começar a terceira rodada. Quando estava preparada para falar
Fernando mudou de lugar para que então fosse a última criança da roda. Sentou-se
depois de Roberto, que não gostou da mudança porque também queria ser o último.
Nenhum dos dois queria ceder e Fernando se deitou no chão, negando-se a
conversar e a sentar-se. As crianças olharam para mim e uma tensão correu o
grupo. Sinalizei que sem resolvermos o problema não poderíamos mais continuar a
brincadeira. Diante da paralisia criada pela dinâmica gerada por Fernando propus
que eles se dividissem em duplas ou trios para que pudéssemos brincar com o
material que eles já conheciam.
Roberto quis ser o primeiro a apresentar, pois no encontro anterior ele seria o
próximo a se apresentar e foi prejudicado pela desorganização do grupo. Como
dupla escolheu Maria “porque ela é boa de história” (sic). Vendo que Marcos e
Fernando já haviam fechado uma dupla e começado a conversar e que Jonas ficara
65
de fora dos grupos e não parecia conseguir participar do grupo nem da atividade
proposta, perguntei a ele se não queria participar de um trio com Maria e Roberto.
Fernando e Marcos estavam sentados num canto e conversavam sobre alguma
história que tinha acontecido. Marcos, bem articulado para se expressar e
percebendo que eu me aproximava, pediu que me afastasse, pois o assunto era
particular. Perguntei se eles tinham entendido qual era a atividade e Marcos já
respondeu me explicando as instruções. Pedi para irem pensando na história que
apresentariam e me afastei.
Jonas continuava com seu comportamento um pouco apático e solitário e chegou a
se deitar no chão algumas vezes e a ficar parado olhando para o nada. Enquanto
Maria e Roberto escolhiam o material e bolavam o nome da história ele ensaiava
montar os blocos, como se estivesse afastado de tudo, inclusive dele mesmo.
Perguntei que personagem ele gostaria de ser entre os animais ou bonecos:
respondeu que seria o leão e que este seria bonzinho.
Jonas ainda tinha dificuldades de integração, mas mostrando-se receptivo a minha
ajuda perguntei. Perguntei a Roberto e Maria se haveria lugar para o leão de Jonas
na história que eles estavam criando, e eles não me responderam. Jonas continuava
um pouco alheio a eles, mexendo nos blocos, sem pegar no leão. Deixei de insistir
para que ele participasse, mas na hora da apresentação ele foi solicitado por Maria
para representar o menino negro e participou da encenação.
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A história criada, principalmente por Maria, envolveu duas famílias, uma branca e a
outra negra. A branca morava na parte de cima da caixa e na parte de baixo, o
interior da caixa, moravam os negros. A mãe branca, representada por Maria, disse
ao filho, também comandado por ela, que não queria que ele brincasse com o
menino negro de Jonas para não pegar piolho. Quando todos se deitaram para
dormir o menino branco fugiu. A mãe acorda no meio da noite e começa a procurálo. Chama a empregada, representada por Roberto, e pergunta onde está o filho,
mas ela não sabia responder. Jonas pega o menino branco e o esconde no meio
dos outros bonecos negros. No fim Maria fez com que o menino branco aparecesse
para a mãe, que disse que a partir daquele dia o filho podia brincar com o outro
menino, “é só não encostar muito a cabeça” (sic).
A história continua com a chegada da tia, irmã da mãe, e do pai do menino branco,
comandados por Maria, que estão voltando de uma viagem. A tia está grávida e a
mãe e a empregada a ajudam a ter o bebê. Na cena do nascimento todas as
crianças do grupo se aproximaram para ver melhor o que estava acontecendo. A
criança nasceu e Maria agradece a todos que ajudaram no parto. As duas famílias
ficam amigas e assim termina a história.
A apresentação manteve o interesse das crianças, tanto as que estavam
participando quanto as da platéia, apesar de eu ter tido que convencer Marcos e
Jonas a sentarem ao meu lado, deixando de lado os brinquedos, para prestarem
atenção à apresentação, o que acabou acontecendo depois de eu insistir algumas
vezes, mas sem maiores discussões.
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A outra dupla pediu um instante para se organizar e saiu da sala para combinar a
cena, voltando logo em seguida. Fernando gritou com as outras crianças pedindo
atenção e eu sinalizei que na apresentação dele ele queria ser ouvido, pois era uma
coisa importante, e que os outros também deveriam gostar de ser ouvidos.
Eles arrumavam os bonecos e o cenário quando um menino veio dizer, a pedido da
coordenadora, que Fernando descesse para almoçar e ir ao reforço escolar. Marcos
ficou frustrado, abaixando a cabeça no meio dos braços. Depois levantou e pediu
para Fernando ficar mais um pouco, para que pudessem fazer a apresentação
“rapidinho” (sic). Eles finalmente começaram e quem dava as orientações era
Marcos, dizendo a hora que Fernando, um pouco desorientado, falava e lembrandoo da fala que combinaram.
Logo percebi que era a representação de uma piada que se passa na escola. A
professora pediu de lição de casa “três palavras” (sic), mas que na verdade eram
três frases. Marcos fez o papel da professora e Fernando era o aluno que, depois de
terminada a aula, ia pra casa e pedia ajuda à família. Cada pessoa da família diz
uma frase que era mais ou menos assim: “não tô nem aí”, “vou gostar”, “superhomem”. No dia seguinte a professora perguntava quem havia feito a lição e o aluno
dizia a primeira frase: “não tô nem aí”. Então ela perguntava se ele queria ir para a
diretoria, quando ele responde com a segunda frase. Na diretoria o diretor
perguntava quem ele pensava que era, e ele respondia a terceira frase. E assim
terminava a apresentação.
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Maria virou para mim e disse que a história que eles apresentaram era uma piada.
Nós encerramos batendo palmas e depois guardamos todo o material.
Vinícius não queria arrumar a sala e ficou um tempo deitado no chão brincando de
guerra com os soldadinhos. Depois que eu insisti que o grupo estava terminando e
ele precisava guardar os brinquedos colocou tudo no saquinho e foi embora.
69
7. ANÁLISE
A análise é um exercício que visa a identificar relações da prática com a teoria e ao
mesmo tempo as distâncias que as separam, o que sintetiza uma aprendizagem por
meio da reflexão. Nessa análise pretendo fazer uma leitura crítica do que foi uma de
nossas oficinas terapêuticas e, para isso, escolhi um encontro que fosse atual e que
contivesse elementos representativos de como tem sido nosso trabalho, inclusive
com as diferenças que este apresenta com relação a uma psicoterapia de grupo
“clássica”, as dificuldades práticas e as dúvidas sobre a atuação.
No nosso projeto realizamos algumas propostas com o objetivo de trabalhar um tema
ou uma dinâmica que percebemos no grupo. Já havíamos percebido que nossas
crianças gostam de representar histórias. Apesar da dificuldade que alguns
integrantes possuem para a construção de enredos, na relação interpessoal e na
auto-expressão, já havíamos criado oficinas a partir dessa idéia. No entanto nunca
tínhamos usado brinquedos e bonecos para intermediar as representações que,
nesta ocasião, pareceram ser uma técnica interessante para dar continuidade ao
trabalho que vinha sendo desenvolvido pelo grupo.
A preparação de um enredo, que pode se modificar no desenrolar da história, a
escolha dos elementos que farão parte da brincadeira, a apresentação para o grupo
– tudo isso exige maturidade e organização psíquica. Por isso a proposta do trabalho
em subgrupos foi fundamental para auxiliar as crianças que ainda não
desenvolveram essas habilidades, e também para que ficassem menos ansiosas
com a apresentação para o grupo. Não observei sinais de desorganização interna
70
nas crianças em função das dificuldades da atividade, como ocorreu no encontro
anterior.
Criar a base para uma história e depois representá-la não é uma tarefa fácil,
principalmente porque demanda comunicação verbal e uma estrutura narrativa,
elementos do nível cognitivo, que englobam operações conceituais e antecipatórias
num trabalho mental e abstrato. O componente simbólico também está sendo
estimulado por meio dos brinquedos e bonecos que ganharam vida na brincadeira,
expressão e atualização de significados de experiências anteriores.
Contar uma história, inventada por eles, na forma de brincadeira mobiliza os
diferentes níveis do E.T.C., inclusive o criativo, e podemos observar como nessa
atividade eles se misturam e surgem intersecções do nível cognitivo com o
perceptual na hora da criação e da escolha do material, o afetivo com o simbólico e o
cinestésico quando as crianças estão envolvidas com seus papéis na apresentação,
dentre outras combinações.
A brincadeira compartilhada, favorecida pela apresentação da “peça“ para o resto do
grupo proporcionou uma integração, na qual todos participaram de uma emoção
comum, como no momento do nascimento da criança na história de Maria. Além do
mais as crianças puderam experimentar a valorização de uma criação deles,
vivenciando suas histórias de maneira protegida e simbólica.
A atividade inicial, do telefone-sem-fio, tinha o intuito de favorecer a descontração e a
concentração e de funcionar como uma sensibilização, por meio do foco na
71
percepção auditiva favorecendo a organização ao invés da regressão. Esta
brincadeira promove um envolvimento e entrosamento do grupo, deixando as
crianças mais calmas e preparadas para a atividade de expressão livre que veio na
seqüência.
O apontamento para a discussão das regras do telefone-sem-fio vai ao encontro da
necessidade de enfatizar que temos que chegar a um consenso a respeito do que
vale ou não vale para nós enquanto grupo. Há muitas formas de brincar, mas
precisamos escolher uma que todos conheçam e da qual possam participar.
Logo no início da oficina que analisamos me percebo fazendo algo que não sei ao
certo se seria o papel do terapeuta ou do educador. Chamo Jonas para ser meu
ajudante na preparação da sala e, com a proximidade de estarmos sozinhos, tento
fortalecer o vínculo e também a importância dos combinados feitos pelo grupo, que
são uma das colunas sustentadoras do setting terapêutico.
A questão dos combinados do grupo está presente em quase todos os encontros.
Quando relembro o grupo da frustração e dos conflitos da semana anterior também
acho que essa não é uma atitude comum nas psicoterapias, mas talvez o seja na
prática pedagógica. Na verdade uma intervenção como esta talvez tenha um poder
limitado, pois apesar de tentar assinalar que o grupo tem uma responsabilidade pelo
que ocorrerá nos encontros, não estou trabalhando com o fato no momento em que
ele acontece, ajudando-os a perceber a situação e os sentimentos vividos naquele
final de oficina da outra semana. Eu poderia ter trazido para o grupo a discussão do
que aconteceu no momento do conflito, para que os outros integrantes também
72
desempenhassem uma função reguladora dos combinados, que é diferente do limite
trazido por um adulto.
Marcos parece trazer o tema do autoritarismo e do limite, ou regra, imposto com
violência na frase ”Cala a boca e respeita a polícia”. Essa é a forma pela qual eles
provavelmente reconhecem no seu cotidiano as regras, que separam o que pode ser
feito do que não pode. O policial é a figura que representa a lei, e esta é arbitrária e
autoritária, não favorecendo a construção interna de uma medida justa como
parâmetro nas relações.
Será que nossa experiência com essas crianças será capaz de criar um modelo
diferente de limite que, talvez, possa ser internalizado? Esperamos que sim, mesmo
sabendo que na maioria das vezes as regras que prevalecem para a maioria das
pessoas na nossa sociedade são perversas, no sentido de restringirem os desejos
sem proporcionar um ganho significativo, isto é, que possa ser reconhecido
socialmente como de valor.
Tentamos exercer no grupo a função de autoridade com respeito pelas diferenças e
necessidades individuais, sem perder de vista a noção do bem-comum e, com isso,
ajudá-los no desenvolvimento da socialização e dos relacionamentos interpessoais.
Essa intervenção parece estar baseada na nossa atitude interna como pessoaterapeuta, a partir de nossos valores, conceitos e da nossa, ainda incipiente,
experiência em lidar com crianças. Nossa figura deve servir como um modelo
positivo de adulto com o qual ele possa se identificar.
73
Ainda no aquecimento, quando Fernando se propõe a dizer uma frase e, mesmo
depois de ter falhado ainda tenta de novo, parece que está se sentindo mais
confiante para brincar no grupo. No entanto fica clara sua dificuldade em formular
uma frase simples. Talvez porque seja novo no grupo, talvez pela ansiedade gerada
na situação de exposição e de dificuldade, talvez devido a problemas no seu
desenvolvimento cognitivo que geram um pensamento confuso. Não acompanhamos
Fernando a tempo suficiente e nem possuo, no momento, informações mais
pormenorizadas a respeito de seu histórico para levantar outras hipóteses sobre o
significado desse comportamento. No entanto é algo que fica registrado para que
possa ser mais pesquisado.
Por outro lado, podemos perceber que a frase que ele formula não tem um conteúdo
pessoal. Isso pode ser um sinal de que ele ainda não se sente totalmente seguro
para se mostrar no grupo ou, ainda, pode querer nos impressionar com uma frase
que segue o modelo das que ele aprende na escola.
A mudança de lugar de Fernando, logo após sua tentativa fracassada em iniciar a
brincadeira parece ser significativa da dinâmica dessa criança e mostra que algo
estava ocorrendo com ele. Fernando reage mobilizado por um sentimento que não
consegue verbalizar – acting – que talvez não seja nem consciente nele, e se coloca
literalmente no meio da brincadeira interrompendo-a. Eu não tive clareza suficiente
no momento sobre qual era a dinâmica que ocorria para ajudá-lo a entrar em contato
e elaborar esses sentimentos de outra maneira, sem que precisasse destruir a
brincadeira.
74
Já pude observar em outros momentos Fernando se retirando das brincadeiras
quando é frustrado e não obtém o brinquedo ou o lugar que ele acha que merece, ou
que gostaria de ter. Ele, porém, me surpreendeu dessa fez por não ter simplesmente
se excluído da brincadeira e se afastado do grupo, o que é um sinal positivo. O que
fez foi ficar no grupo e impedir que ele continuasse ou que a situação fosse discutida,
agindo como um sabotador. A partir daí surge um conflito que interrompe a atividade,
e a coesão do grupo fica ameaçada.
No entanto esse “algo” que irrompe na dinâmica grupal, desarticulando o grupo com
relação à proposta de trabalho, que é a brincadeira, gera uma tensão no grupo como
um todo, e a imediata organização para buscar uma saída. As crianças olharam para
mim, para que eu, no papel de líder, resolvesse a situação, como num grupo de
pressupostos básicos de dependência. E, devido à minha ansiedade e medo de
perder o controle da atividade, logo passei para a próxima etapa da oficina e impedi
que eles próprios descobrissem uma solução para o impasse.
Roberto apresenta um comportamento bem diferente do que era comum no começo
do trabalho em 2004, quando provavelmente diria que não havia problema outra
criança passar à sua frente na brincadeira e que aceitaria a situação só para não
criar problemas no grupo. Para uma criança com o perfil e a problemática dele um
comportamento assim parece ser um avanço, já que está sustentando uma posição
que parecia ser importante para ele, por mais que o conflito se instaure.
Na hora da representação é interessante observar como Roberto busca se aliar com
Maria ao invés de buscar os outros meninos. Parece se sentir mais seguro na
75
companhia das meninas e a escolhe como parceira porque “ela é boa de história”
(sic). Tenho a impressão que ele ainda não reconhece o quanto ele também é bom
de história, como já demonstrou em outras situações, principalmente nas criações
individuais.
Há também diferenças notáveis no comportamento de Maria com relação a quando
começamos a trabalhar com ela em 2004. Nesse encontro, assim como tem sido
freqüente nos grupos, ela pôde demonstrar sua liderança e criatividade, reflexo da
ousadia em ser quem ela é. Está mais confiante e desinibida e sua atuação no grupo
funciona como um aglutinador e organizador dos outros integrantes.
A partir do enredo que ela cria para apresentar logo penso se essa não seria uma
história com características de sua vida pessoal. Apesar de termos algumas
informações sobre sua família não há nenhuma relação aparente com os elementos
do enredo encenado.
Sobre as identificações com os papéis da história encenada por Maria, Roberto e
Jonas nota-se que Maria se identifica com a mãe branca (sua mãe é branca e seu
pai deve ser negro, pois sua pele é morena) e todos os outros papéis principais da
história, e ao mesmo tempo é ela quem exerce o papel de liderança nesse subgrupo.
Roberto fica com o papel de empregada, que obedece às ordens de Maria. Essa
identificação com um papel feminino submisso também pode ser relacionado com os
aspectos que conhecemos de sua personalidade e que foram citados anteriormente.
Jonas é o menino negro da história, aquele que a mãe branca quer que fique
afastado do convívio de seu filho, pois ele é sujo. Na brincadeira ele assume um
76
papel que é correspondente ao que está vivendo no grupo, que é o bode expiatório,
aquele que recebe a projeção dos aspectos negativos.
Quando Maria e Roberto não respondem à minha pergunta sobre a possível
participação do personagem de Jonas na história e, posteriormente, chamam-no
para ser o menino de quem ninguém queria ficar próximo, parece que estão dizendo
que não queriam brincar com ele e expressando, simbolicamente, um sentimento
que deve ter sido originado no encontro anterior, quando a apresentação de Maria foi
interrompida, e a de Roberto impossibilitada, devido às atitudes de Jonas, que nesse
momento estava mais próximo ao instigador, fazendo desafios e desmobilizando o
trabalho do grupo em parceria com outro integrante.
Jonas passou o encontro inteiro dócil, porém perdeu toda sua espontaneidade, talvez
como resultado da minha conversa com ele no início do grupo, que também deve ter
contribuído para que ele fosse o receptáculo das projeções, atitudes negativas e
dificuldades que ocorreram na oficina anterior, também nesse encontro. Percebe-se
que seu comportamento no grupo ficou tenso, distante, hesitante. Era como se não
pudesse relaxar ou viraria de novo o leão, mas não seria o bonzinho dessa vez. Até
a agitação motora, a dificuldade de ficar sentado, os pulos e corridas pela sala
pararam. Talvez ele estivesse com medo de me aborrecer, de fazer algo que eu
estava dizendo que não era certo, ou de fazer qualquer coisa, pois estava se
sentindo um nada, desautorizado a ser ele.
Jonas ficou um tempo sozinho, mexendo com os blocos, tentando brincar.
Infelizmente minha intervenção, na direção de integrá-lo ao grupo, dificultou esse
77
momento particular dele. Nem brincar sozinho ele podia: tem que participar da
atividade como quer a terapeuta – parece ser a mensagem que eu transmito com
minha interferência. Minha angústia ao vê-lo ali sozinho impediu-me de dar a ele
algum tempo para que pudesse se organizar e tomar suas próprias decisões sobre o
que faria no grupo e minha atitude não foi o que o ajudou a participar do grupo de
forma autêntica, nem se expressar com autonomia e experimentar seu potencial
positivo. Como já foi dito anteriormente essa criança tem sérias dificuldades de criar,
e possivelmente nos momentos em que está sendo mais espontâneo ele cria
problemas para si e para os outros, recebendo inúmeras repreensões pelo seu
comportamento, o que deve dificultar cada vez mais que ele possa ser quem é e
possa descobrir suas potencialidades e aspectos positivos.
Apesar de todas essas dificuldades, minhas e das crianças, há um momento
realmente incrível nessa oficina: o nascimento do bebê no fim da história de Maria,
Roberto e Jonas. No enredo é a partir do nascimento que a família branca se
aproxima realmente da família negra e elas ficam amigas. Foi nesse momento que
todo o grupo se reuniu ao redor da caixa, que estava servindo de palco, para
participar da cena. Para cada um de nós a cena do nascimento pode evocar
diferentes questões pessoais, mas para o grupo esse momento representou a
integração dos participantes.
O tempo que dei para que pensassem a respeito da apresentação era para que se
organizassem e escolhessem alguns elementos que fariam parte da história. Mas
eles podiam improvisar, como aconteceu na primeira apresentação. Pode-se
perceber que foi no decorrer da apresentação que a história que eles contavam foi
78
sendo formulada, e que este não foi o fim que programaram – se é que haviam
idealizado um final. E foi justamente esse momento que ocorreu espontaneamente
aquele que mais significou para o grupo. Jonas já não estava retraído, Roberto
ajudava ativamente no parto e os meninos que observavam queriam quase que
entrar na cena de tão entusiasmados que ficaram.
A idéia de apresentar a encenação da piada para o grupo foi de Marcos e devo
reconhecer que foi uma solução muito eficiente para a realização da ”tarefa” dada a
eles. O enredo já estruturado da piada não permite que haja muita criação ou
espontaneidade na apresentação, o que pode indicar que Marcos não está muito à
vontade para se mostrar tão abertamente para o grupo. Claro que a escolha da piada
e a forma com que é encenada obedecem a motivações internas e muito pessoais,
mas mesmo assim não possibilitaram uma experiência como a que foi vivida pelo
grupo na apresentação anterior, ficando mais no nível concreto da experiência.
Por outro lado fica claro que a última dupla não se apresentou somente para cumprir
uma orientação dada por mim. Quando Fernando é chamado para descer e almoçar,
instantes antes de começarem a apresentação, Marcos mostra que gostaria de poder
mostrar para o grupo aquilo que eles haviam planejado, e pede para Fernando ficar
mais um pouco, para que possam encenar a peça.
Marcos se identifica com o papel da professora ao mesmo tempo em que exerce o
papel de líder da dupla, apesar de ser Fernando quem pede silêncio para o resto do
grupo, na tentativa de organizar a apresentação que estavam para começar.
79
Fernando representa o aluno, que é o tempo todo guiado pelas orientações de
Marcos.
Assim como na maioria de nossas oficinas terapêuticas com crianças, guardar o
material usado e arrumar a sala é o encerramento das atividades. Nós não
conseguimos ainda estabelecer uma dinâmica para que, no fim, possamos conversar
ou pelo menos comentar como foi o grupo, o que cada um mais gostou, ou não
gostou, numa espécie de avaliação como é proposta nas oficinas criativas.
80
8. CONCLUSÕES FINAIS
Por trabalhar numa instituição com o perfil do C.D.C. nosso papel acaba sendo um
pouco diferente do terapeuta clínico, que atende em seu consultório, faz seus
próprios grupos e organiza seu trabalho de forma mais independente. Sabemos que
temos que ser flexíveis à demanda e às características da instituição, mas com o
passar do tempo entendo em quais aspectos é possível adaptar as circunstâncias
sem que haja prejuízo no trabalho e quais aqueles que são a própria condição para
trabalhar.
Um aspecto importante que nos impede de trabalhar mais sistematicamente são os
grupos móveis. A presença inconstante das crianças gera configurações diferentes a
cada encontro, criando problemas para a análise da dinâmica grupal e, também, para
as crianças, que não conseguem prever com quem estarão naquele dia. Deve ser
mais fácil entender os processos de um grupo quando podemos acompanhá-lo com
a mesma configuração, durante um período de tempo, num setting constante, o que
não é o caso do nosso trabalho.
Apesar de sempre tentar organizar melhor o grupo e as regras acabamos por criar
margem para confusões com a entrada e saída das crianças: ora porque não
quiseram participar, outra hora porque faltaram na semana anterior e entram no outro
grupo, ou porque achamos que precisam de atendimento naquele dia. Tentamos
garantir uma previsibilidade quanto aos grupos e seus dias de atendimento, mas hoje
já trabalhamos com os grupos todos misturados. A única coisa que conseguimos
81
realmente organizar foi o número de crianças que atendemos a cada encontro, para
que possamos estar mais atentos aos acontecimentos.
Creio que as dificuldades com os combinados, junto com outros sinais, como a
dificuldade nos relacionamentos com as outras crianças e adultos, e a inibição nas
brincadeiras e outras atividades criativas, indicam uma possível dificuldade na
entrada para o mundo social, que é um mundo repleto de leis e regras de
convivência dentre outros conflitos importantes na estruturação da personalidade e
nas relações primárias, que freqüentemente têm origem nas dinâmicas familiares.
O trabalho com os pais se faz necessário para que haja alguma mudança
significativa nas influências que as crianças sofrem no dia-a-dia. Atualmente há uma
psicóloga voluntária que realiza entrevistas com os pais das crianças do C.D.C. e
mantemos uma comunicação eventual para trocar informações e discutir alguns
casos. Essa troca deveria ser mais constante para estarmos informadas sobre os
acontecimentos na vida das crianças, e a psicóloga que acompanha os pais tenha
mais informação sobre as dinâmicas que ocorrem no grupo.
Um dos problemas no atendimento dessas crianças e seus familiares é que eles não
nos procuraram para um trabalho terapêutico e, sim, buscaram o C.D.C. para
matricular os filhos no horário em que não estão na escola. Muitos deles não estão
interessados em um contato mais próximo com a instituição ou com profissionais da
área da saúde. Mas há também aqueles pais que se sentem aliviados ao ser
chamados para discutir a situação do filho e sentem que o nosso trabalho oferece um
82
apoio para quem estava sozinho e confuso, precisando conversar com um
profissional.
Essa também é uma diferença do nosso trabalho em relação à psicoterapia. Na
psicoterapia, apesar das resistências, os pais ou familiares mais próximos são
responsáveis por levar as crianças à terapia, participar de reuniões com o terapeuta
e são implicados no tratamento. No C.D.C. os pais não estão, necessariamente,
engajados no atendimento terapêutico dos filhos, muitos deles fogem de qualquer
contato mais próximo com a psicóloga ou até com a coordenadora, e não evitam as
faltas das crianças nos encontros das oficinas terapêuticas.
Em relação à dinâmica do grupo, percebemos que algumas crianças desestabilizam
o grupo, impedindo qualquer tipo de trabalho ou gerando grandes confusões nos
encontros. A relação pessoal com elas geralmente apresenta características bem
diferentes, principalmente quando podem usufruir da atenção da terapeuta com
maior exclusividade. Na relação mais íntima as crianças inibidas se tornam mais
ativas, e as agitadas se acalmam. Essa constatação já nos fez pensar se deveriam
participar ou não do grupo, e se não seria o caso de passarem por um trabalho
individual antes de ser inseridas no contexto grupal, ou pelo menos, possuírem um
contato terapêutico mais particular paralelamente ao trabalho no grupo.
Nossa inexperiência com crianças nos leva muitas vezes a exceder os nossos
limites, gritando ou perdendo a calma, na tentativa de organizar o grupo, impedir
situações de destruição deles mesmos, das produções e dos materiais. Geralmente
esses episódios geram uma grande sensação de fracasso e incompetência, e
83
ocorrem quando não sabemos lidar com uma situação que vai contra uma
expectativa nossa. E nos assusta. Disso para um comportamento autoritário e
violento com as crianças é um pequeno passo, mas de forma nenhuma é o que
desejamos: ao contrário, insistimos em ser uma espécie de modelo diferente dos
adultos que são a maioria no cotidiano dessas crianças.
Com relação à minha atuação como terapeuta percebo que ainda realizo um papel
muito ativo na hora das decisões e que, provavelmente, a terapia seria mais
proveitosa se pudessem exercitar a responsabilidade, apresentando suas opiniões e
discutindo soluções para os conflitos que surgem. No entanto, em alguns momentos,
ser terapeuta é agir como um educador, um adulto que mostra para uma criança
quais são as regras que ordenam o mundo social, para que elas possam entender
quem são e aonde estão.
É delicado trabalhar com pessoas e por isso o terapeuta precisa estar atento e
aberto para questionar sua prática, as expectativas que impõe e suas dificuldades.
Ser terapeuta não é melhorar as pessoas, mas fazê-las sentirem-se acompanhadas
no seu próprio ritmo para que elas mesmas tenham a possibilidade de fazer suas
próprias escolhas, mesmo que não acreditemos serem as melhores. Preciso ainda
aprender qual é o meio termo entre ser observador e ser participante sem deixar que
a participação vire controle e que a terapia seja uma reprogramação de pessoas,
mas dando espaço para que exercitem sua autonomia e se descubram, sem que isso
se configure como abandono ou a displicência do adulto.
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Outra dificuldade que percebo no meu trabalho é conseguir perceber e verbalizar as
dinâmicas de grupo e individuais no momento em que estão ocorrendo para que
minha intervenção seja mais efetiva. O que Zimerman (1993) diz a respeito de utilizar
a contratransferência como instrumento auxiliar na compreensão do que se passa no
grupo é um manejo difícil, na prática. Geralmente esses insights só ocorrem durante
a supervisão ou, antes, na redação do relatório.
Se nossas oficinas pretendem criar um espaço no qual as crianças possam ser
espontâneas e criativas, temos que pensar se o ambiente que criamos está
realmente facilitando esses processos. As propostas feitas na oficina não devem
nunca ser sentidas como uma tarefa a ser cumprida e, sim, como um estímulo à
espontaneidade e à improvisação. Improvisar possibilita que surja o que há de mais
íntimo e pessoal, sem haja racionalização ou negação desses conteúdos. Quando a
criança pode improvisar está sendo ela, inteira. Para Winnicott (1975) a brincadeira
tem justamente esta capacidade terapêutica.
Nossa proposta de trabalho com oficinas terapêuticas fica localizada num território
ainda não solidificado, sofrendo influências da psicoterapia, da arte-educação e das
terapias expressivas. Por isso ainda predominam muitas dúvidas na nossa atuação,
na identidade profissional, nos objetivos que pretendemos alcançar com o grupo e
sobre quais os limites que nos dão forma e constituem.
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