Oficinas Terapêuticas com Grupo de Crianças
Transcrição
Oficinas Terapêuticas com Grupo de Crianças
UnP – Universidade Potiguar Alquimy Art Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Lato Sensu de Especialização em Arteterapia OFICINAS TERAPÊUTICAS COM GRUPO DE CRIANÇAS Helena Alessi São Paulo 1 2005 Helena Alessi OFICINAS TERAPÊUTICAS COM GRUPO DE CRIANÇAS Monografia apresentada à Universidade Potiguar, RN e ao Alquimy Art, de São Paulo, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Especialista em Arteterapia Orientador: Prof. Dr. Liomar Quinto de Andrade São Paulo 2 2005 ALESSI, Helena Oficinas Terapêuticas com Grupo de Crianças Helena Alessi. – São Paulo; [s.n.], 2005 79 p. Monografia (Especialização em Arteterapia) – Universidade Potiguar. Pró-Reitoria de Educação Profissional. Alquimy Art. 1. Oficinas Terapêuticas SP/BGSF 2. Grupo de Crianças CDV.51 3 UnP – Universidade Potiguar Alquimy Art Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Loto Sensu de especialização em Arteterapia OFICINAS TERAPÊUTICAS COM GRUPOS DE CRIANÇAS Monografia apresentada pela aluna Helena Alessi ao curso de especialização em Arteterapia em 16/04/2005 e recebendo a avaliação da Banca Examinadora constituída pelos professores: __________________________________________ Prof. Dr. Liomar Quinto de Andrade, Orientador __________________________________________ Prof. MsC. Deolinda Florim Fabietti, Coordenadora da Especialização __________________________________________ Profa. MsC. Irene Arcuri, Profa. Convidada 4 AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer primeiramente aos meus erros, à possibilidade de aceitá-los e a tudo que aprendi com eles. É difícil a vida para quem não se permite errar. Sou grata a todos aqueles que me acompanham em minhas caminhadas e expedições ao longo desses anos: Maria, Vicente, Gil e Guilherme, Gabriela, Joana, Júlia, Gabriella, e Berenice. Liomar, agradeço sua generosidade. Me ajudou a dar forma ao trabalho sem, no entanto, fazer por mim. 5 RESUMO OFICINAS TERAPÊUTICAS COM GRUPO DE CRIANÇAS Este trabalho é um estudo das bases teóricas para a realização de oficinas terapêuticas com grupos de crianças. Relaciona a teoria de grupoterapia de D. Zimerman e L. C. Osório, a teoria de D. Winnicott sobre o brincar e a criatividade, e a metodologia das Oficinas Criativas de C.D. Allessandrini e do Expressive Therapies Continuum – E.T.C. e de S. Kagin e V. B. Lusebrink. Apresenta as oficinas terapêuticas com grupo de crianças realizadas no Centro de Desenvolvimento Comunitário da Associação Cristã de Moços de Pinheiros, que começou como estágio do Curso de Especialização em Arteterapia em 2004, e continua como trabalho voluntário no ano seguinte. Faz uma leitura crítica de uma oficina terapêutica relacionando a teoria, a prática e a história de cada criança, analisando as dificuldades da terapeuta e das crianças numa dinâmica grupal e sugere modificações para a continuidade do projeto de oficinas terapêuticas. Palavras-Chave: 1. Oficinas Terapêuticas 2. Grupo de Crianças 6 ABSTRACT THERAPEUTICAL WORKSHOPS WITH GROUP OF CHILDREN This work is a study of the theoretical bases for the accomplishment of therapeutical workshops with groups of children. It relates the theory of grupoterapia of D. Zimerman and L. C. Osório, the theory of D. Winnicott on playing and the creativity, and methodology of the Workshops Creative of C.D. Allessandrini and of the Expressive Therapies Continuum - E.T.C. e of S. Kagin and V. B. Lusebrink. It presents the therapeutical workshops with group of children carried through in the Center of Communitarian Development of the Association Christian of Young men of Pines, that started as period of training of the Course of Specialization in Arteterapia in 2004, and continues as voluntary work in following year. It makes a critical reading of a therapeutical workshop relating theory, practical and the history of each child, analyzing the difficulties of the therapist and of its children in a group dynamics and suggests modifications for continuity of the project of therapeutical workshops. Key Words: 1. Therapeutical Workshops 2. Group of Children 7 SUMÁRIO RESUMO ABSTRACT 1. INTRODUÇÃO .............................................................................................. 1 TRAJETÓRIA PESSOAL 2. BASES PARA O TRABALHO COM GRUPOS ............................................. 8 2.1 Breve histórico da psicoterapia de grupo ................................................... 9 2.2 GRUPO: O que é e suas principais características .................................. 13 2.3 A dinâmica do campo grupal .................................................................... 15 2.4 O papel do grupoterapeuta e suas principais características ................... 25 3. BASES PARA O TRABALHO COM CRIANÇAS ........................................ 28 3.1 Breve histórico da psicoterapia de crianças ............................................. 28 3.2 O brincar e a criatividade na concepção de Winnicott .............................. 31 4. BASES PARA A CRIAÇÃO DE OFICINAS TERAPÊUTICAS .................... 35 4.1 A Oficina Criativa ...................................................................................... 35 4.2. O Continnum das Terapias Expressivas – E.T.C. ................................... 37 5. O ESTÁGIO EM ARTETERAPIA NO CENTRO DE DESENVOLVIMENTO DA ASSOCIAÇÃO CRISTÃ DE MOÇOS (ACM - PINHEIROS) ..................... 40 5.1 O projeto: Oficina da Fada que Tinha Idéias ............................................ 40 5.2 A apresentação ......................................................................................... 41 5.3 Estrutura e Espaço da Instituição ............................................................. 43 5.4 O processo ............................................................................................... 43 8 6. HISTÓRICO DAS CRIANÇAS E RELATO DAS OFICINAS ....................... 50 6.1 Histórico Resumido das Crianças ............................................................. 50 6.2 As Oficinas ................................................................................................ 53 7. ANÁLISE ..................................................................................................... 61 8. CONCLUSÕES FINAIS .............................................................................. 72 RERERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ............................................................... 76 9 1. INTRODUÇÃO TRAJETÓRIA PESSOAL Ao encerrar essa etapa que foi o Curso de Especialização em Arteterapia com a conclusão de uma monografia, tenho a possibilidade de fazer uma avaliação sobre meus principais aprendizados e a síntese e a elaboração de um conhecimento que posso chamar de meu, já que o vejo dentro de mim. Esses últimos dois anos foram importantes não só por serem os primeiros anos de formada em psicologia. Hoje, ao mesmo tempo em que tenho que confiar na minha “bagagem”, na vontade de continuar crescendo e seguir em frente, encarando desafios e obstáculos persistentes, preciso administrar também tudo aquilo que sei que ainda não sou – e que almejo um dia ser – na busca de uma atuação mais consistente e de ser uma pessoa mais inteira. Estes foram anos que me obrigaram a tomar decisões, sair do papel passivo do aluno, tal qual eu exercia no colegial e na faculdade, e andar com minhas pernas, percorrendo os caminhos que desconheço e que vão se construindo a cada passo dado. Nesse caso pretendo ser mais persistente do que os obstáculos que enfrentarei. Esse curso foi um grande passo em direção ao tipo de psicóloga que eu pretendo ser. E com muita satisfação vejo minhas idéias e experiências se encorpando e tomando forma, mais amadurecidas do que quando me formei. 10 Comecei a pensar a respeito do trabalho terapêutico que utiliza a arte e técnicas expressivas quando entrei em contato com o trabalho realizado por Nise da Silveira. Já com algum conhecimento da teoria junguiana, fiquei fascinada pelos símbolos arquetípicos que apareciam nas produções plásticas de seus pacientes e pela qualidade da obra de alguns deles. No mesmo ano visitei a Bienal, no Ibirapuera, em São Paulo, e lá vi pela primeira vez a exposição de algumas obras do Museu de Imagens do Inconsciente, resultado do trabalho de Nise da Silveira. Encantatei-me principalmente com as mandalas. Surgiu então a questão de qual seria o papel das artes e da expressão nos processos de diagnóstico e cura dos sofrimentos psíquicos. Na época eu trabalhava como acompanhante terapêutica de um paciente que sofria com uma psicose crônica e vivia internado há mais de quarenta anos em instituições psiquiátricas. Acompanhá-lo, para mim, era muito difícil por vários motivos. Incomodava-me demasiadamente a instituição e o tratamento dispensado a ele e a outros doentes. Conversar era um desafio, pois passeávamos pelos seus delírios desorganizados, verdadeiras histórias de ficção científica, nas quais eu me achava perdida junto com ele. Percebia que quando ia embora estava envolta num estado de profunda confusão espacial, temporal e de sentimentos. Uma das coisas que me afligia nesse acompanhamento terapêutico era a dificuldade de ambos, eu e meu paciente, tínhamos para organizar e dar forma para todas aquelas idéias oníricas e histórias caóticas que ele trazia. Mas eu não sabia, ainda, como sei hoje, que organização e forma eram essas que eu ansiava. Sentia também 11 que trabalhar sem instrumentos terapêuticos além da comunicação verbal e sem objetos intermediários, como diria Winnicott, tornava difícil transitar pelos mundos dele e pela realidade externa. Às vezes pedia a ele desenhasse. Um mapa de seu mundo para que pudéssemos visualizar melhor a rede de idéias que ele “pintava” nas nossas conversas. Quando entrei em contado com o material escrito de Nise da Silveira encontrei uma pista preciosa de qual direção profissional eu queria seguir. Ela escreveu: “(...) já havíamos verificado, desde 1948, que a pintura e a modelagem tinham em si mesmas qualidades terapêuticas, pois davam forma a emoções tumultuosas, despotencializando-as, e objetivavam forças autocurativas que se moviam em direção à consciência, isto é, à realidade”. (SILVEIRA, 2001, p. 17) Espontaneamente brotando do inconsciente esses intensos conteúdos psíquicos se tornavam passíveis de tratamento e de elaboração na medida em que ocorria sua expressão artística, isto é, sua materialização e vivência simbólica, proporcionadas pelas atividades nas oficinas de T.O.. Para mim era o início da abertura para a comunicação terapêutica por meio da “não palavra”, já que esta não é capaz de traduzir de maneira fidedigna tudo aquilo que existe na alma humana, principalmente quando o que predomina na existência são as manifestações violentas do inconsciente que a razão e a verbalização não podem alcançar, como era o caso daquele meu paciente. 12 Lembro da primeira vez que entrei em um consultório cheio de tintas, pincéis e trabalho de clientes, e até hoje percebo a importante impressão que essa experiência me deixou. Algum tempo depois acabei fazendo Terapia Artística Antroposófica num ateliê onde pela primeira vez experimentei pintar com maior freqüência e com menos crítica a respeito da qualidade artística das minhas produções. Utilizando a aquarela fui vivendo aquela soltura ao mesmo tempo em que me via nas pinturas, que expressavam símbolos, dificuldades, preferências, intensidades... Para mim essa experiência foi como um espelho onde eu me via melhor, mas também foi uma espécie de brinquedo. Nessa época, final da faculdade, havia uma associação muito natural para mim entre arte e liberdade, criatividade e soltura, espontaneidade e saúde. No início do curso de Especialização eu ainda pensava que o limite, a forma e a organização eram empecilhos para a verdadeira criação livre e espontânea, tornando esse processo no mínimo opaco. Para mim o limite e a ordem impediam a criatividade de se mostrar plenamente, nos aprisionava em suas regras e contornos, como que amarrando aquilo que deveria se soltar. No decorrer do curso, das leituras de autores como Fayga Ostrower e das minhas experiências pessoais e profissionais amadureci esta idéia e absorvi subsídios para construir um novo entendimento sobre os processos criativos e de desenvolvimento. Como psicóloga sempre aprendi a observar e a valorizar a expressão do outro, reconhecer na capacidade de ser espontâneo e criativo um sinal de saúde. Como professora num projeto de alfabetização descobri que, sem determinados limites e 13 organizações, é impossível construir qualquer conhecimento ou relação. Essa experiência me deu a oportunidade de experimentar algo sobre o que a psicologia fala muito teoricamente: o quanto o limite, a organização e a tão falada castração da psicanálise são importantes no desenvolvimento e estruturação da personalidade. Fayga (1989, p. 5) me ensinou que “(...) criar corresponde a um formar, um dar forma a alguma coisa. Sejam quais forem os modos e os meios, ao se criar algo, sempre se ordena e se configura”. Dessa forma tudo se cria a partir de algo que já existe, como experiências, idéias e sentimentos, intuições que são modeladas e que, de alguma maneira se cristalizam num resultado, esperando até a próxima fase criativa, que já está começando. O limite, a forma, a organização e a liberdade na produção criativa andam ligados de maneiras complexas e que envolvem todos os aspectos do ser. A descoberta de outras maneiras de pensar o limite me fez ver seus aspectos positivos, organizadores, reais, e possibilitaram que eu apreendesse uma nova forma de compreender a liberdade, a criatividade e a transformação do ser humano. Allessandrini (2004) escreve sobre o processo de aprendizagem que quando ressignificamos uma experiência, estamos compensando e atualizando seu sentido para nós. De certa forma, estamos dando uma nova forma a ela, que ganha fluxo e fluidez. Esse foi, sem dúvida, um dos aspectos mais importantes do meu processo no curso de arteterpia. 14 No entanto, o que justifica a escolha do tema da monografia é a necessidade que brotou da ausência sentida quando comecei a construir mais concretamente minha experiência como arteterapeuta. Foi motivada a descobrir e compreender qual o processo grupal que acompanhei e vivi durante o estágio com as crianças do Centro e Desenvolvimento Comunitário da Associação Cristã de Moços de Pinheiros onde busquei aprofundar meu conhecimento sobre as teorias de grupo, suas técnicas e história. O que procurei fazer nesse período foi buscar as raízes e clarificar minhas referências teóricas e técnicas para integrar e sustentar o trabalho que realizamos no estágio, o que continuo construindo agora como voluntária do C.D.C.. Com minha pesquisa posso agora relacionar com mais propriedade minhas experiências terapêuticas e a teoria e olhar criticamente para nossas produções enquanto grupo, na medida em que fica mais claro por que, para que e como trabalhar com grupos de crianças utilizando as técnicas expressivas nas oficinas terapêuticas. Foi apesar de dificuldades e inseguranças que decidi caminhar no sentido de me aprimorar enquanto psicoterapeuta de crianças, e pretendo realizar com elas um trabalho que possa ser uma descoberta colorida, esculpida e representada por outros elementos além de brinquedos e palavras. Já a busca de um conhecimento que me possibilite trabalhar adequadamente com grupos de crianças começou a partir da iniciativa desta monografia, e pretendo que com o tempo e os cuidados necessários se torne algo sólido e orgânico como uma boa árvore. 15 Espero não ter assustados os leitores com tamanha mudança de rumo na história da trajetória pessoal. Mas na verdade não houve nenhuma mudança brusca. O que se deu foi a transformação de algumas idéias, que se misturaram com desejos não muito conscientes: ao se chocarem com o mundo externo foram sendo absorvidos como a tinta molhada o é por um papel denso – e o desenho que surgiu, para a surpresa de todos, não era aquele imaginado a princípio. 16 2. BASES PARA O TRABALHO COM GRUPOS “O ser humano é gregário, e ele só existe, ou subsiste, em função de seus inter-relacionamentos grupais. Sempre, desde o nascimento, ele participa de diferentes grupos, numa constante dialética entre a busca de sua identidade individual e a necessidade de uma identidade grupal e social.” (ZIMERMAN, 1993, p. 51) No capítulo História da Psicoterapia de Grupo Kaplan e Sadok (1993) relatam um interessante levantamento desde os primórdios dos movimentos terapêuticos e das produções científicas ligadas ao trabalho de grupo até hoje em dia. Eles observam que a idéia de trabalhar com grupos com finalidade terapêutica acompanha a história do Homem e esteve presente desde as civilizações tribais, na Grécia Antiga e no período medieval, muito antes do aparecimento da classe de profissionais de saúde mental. As sessões xamânicas, as peças medievais de moralidade e o teatro grego antigo são exemplos desse histórico. Um dos fundamentos teóricos necessários para melhor compreender e orientar meu trabalho com as oficinas terapêuticas com grupos de crianças é sem dúvida o conjunto de conhecimentos da Psicologia Grupal, que recebeu influências da Psicologia Social, da Sociologia e da Antropologia Social e teve seu princípio no começo da década de 30. 17 2.1 Breve Histórico da Psicoterapia de Grupo No início do trabalho em grupo estava Joseph Pratt, que já em 1905 desenvolvia um método empírico de trabalho com grupos de pacientes tuberculosos e, posteriormente, de paciente neuróticos chamado de “classes coletivas”, que consistia em aulas para os pacientes sobre higiene e problemas decorrentes da tuberculose, seguida por perguntas e discussões sobre o tema. Esta idéia de trabalhar em grupo as dificuldades específicas de uma doença influenciou posteriormente a criação de grupos de apoio a familiares e associações como os Alcoólicos Anônimos. No entanto foi nos Estados Unidos, na década de 30, que Louis Wender, Paul Schilder, Jacob L. Moreno, psiquiatras, Samuel R. Slavson, educador, Fritz Redl e Alexander Wolf, psicanalistas; começaram a utilizar pequenos grupos de maneira planejada para o tratamento da patologia da personalidade (Kaplan; Sadok, 1993, p.72). Com a segunda Guerra Mundial houve um crescimento na utilização e popularidade da psicoterapia de grupo nos Estados Unidos e na Inglaterra devido aos poucos psiquiatras disponíveis e o grande número de pessoas que passaram a procurar ajuda profissional em psicoterapia. Durante a década de 50 surgem outras correntes de pensamento em psicologia para disputar a hegemonia da teoria psicanalítica, ela mesma já sofrendo divisões internas, e nascem a análise transacional, a terapia centrada na pessoa, a gestalt, a racional-cognitiva e a existencial, cada uma delas com suporte teórico e metodológico próprios para lidar com as questões e necessidades da época. 18 A literatura publicada na época demonstra que a psicoterapia de grupo amplia o alcance dos tratamentos psicoterápicos incluindo clínicas ambulatoriais, hospitais gerais e psiquiátricos, instituições correcionais e programas de habilitação, grupos de crianças, adolescentes e adultos com os mais diferentes distúrbios, revelando uma explosão na prática e na pesquisa da terapia de grupo. Contudo, o aumento progressivo do uso e de estudos teóricos e metodológicos sobre a prática da terapia em grupo não garante por si só a qualidade do atendimento e da formação dos profissionais que utilizavam tais métodos na clínica, e não eram raros nas instituições de saúde grupos terapêuticos coordenados por pessoas sem preparo ou conhecimento teórico. Dessa forma foram sendo construídas diferentes formas de trabalhar com grupos influenciadas pelas diversas abordagens psicológicas e terapêuticas que iam desde o trabalho de grupo individual, focado no indivíduo, como nos trabalhos de Schilder e Slavson; ao trabalho centrado na totalidade do grupo e nos processos dinâmicos grupais. Dentro do campo da Psicoterapia de Grupo, pesquisas apontaram para aspectos terapêuticos semelhantes, independente das diferenças nas abordagens e convicções teóricas, o que favoreceu certo pluralismo conceitual e uma abordagem eclética na prática clínica. Yalom e Vinogradov (1992) identificaram e sintetizaram os fatores terapêuticos da psicoterapia grupal que hoje são aceitos por diversas correntes teóricas, apesar de discordarem a respeito do valor atribuído aos diferentes fatores, da metodologia e da técnica empregadas: (1) instilação da esperança, (2) 19 universalidade, (3) oferecimento de informações, (4) altruísmo, (5) desenvolvimento de técnicas de socialização, (6) comportamento imitativo, (7) catarse, (8) reedição corretiva do grupo familiar primário, (9) fatores existenciais, (10) coesão do grupo, (11) aprendizagem interpessoal. O desenvolvimento das teorias e técnicas na utilização do trabalho em grupo na clínica ainda está em ascensão e tais conhecimentos podem ser utilizados tanto na área pública como na particular, apesar de muitas vezes ficarem restritos ás instituições, pois oferecem ganhos terapêuticos independentemente da condição socioeconômica dos indivíduos. Contudo, em clínicas comunitárias e instituições as teorias e técnicas de trabalho em grupo tornam possível a psicoterapia e por isso desempenham um papel social importante dadas as dificuldades de recursos pessoais e financeiros na área da saúde. Ainda nessa área, a modalidade de grupos a curto prazo, como a terapia breve orientada para crises, tem à sua frente um campo vasto de trabalho no dias de hoje. Apesar de ser um conhecimento especializado, as teorias que dão suporte para o trabalho grupal são muitas vezes baseadas no conhecimento que se tem sobre o funcionamento individual, dos vínculos familiares e vice-versa, pois os grupos pequenos costumam reproduzir as características sociais, econômicas, políticas e a dinâmica psicológica dos grandes grupos, e os indivíduos por sua vez também funcionam como sendo um grupo, na medida em que os personagens introjetados em seu mundo interno interagem. 20 O simples, porém importante, fato de todo indivíduo passar a maior parte de seu tempo interagindo com outras pessoas, desde o nascimento, já é motivo suficiente para que busquemos a compreensão e a utilização do conhecimento em psicologia grupal e da construção de vínculos. Vivemos no nosso processo de humanização a constante busca pela identidade individual e, ao mesmo tempo, a necessidade de assegurar a identidade social e grupal como foi dito no início do capítulo por Zimerman (1993). São necessidades complementares, assim como são realidades que existem simultaneamente: “A essência de todo e qualquer indivíduo consiste no fato dele ser portador de um conjunto de sistemas: desejos, identificações, valores, capacidades, mecanismos defensivos e, sobretudo, necessidades básicas, como a da dependência e a de ser reconhecido pelos outros, com os quais ele é compelido a conviver. Assim, como o mundo interior e o exterior são a continuidade um do outro, da mesma forma o individual e o social não existem separadamente, pelo contrário, eles se diluem, interpenetram, complementam e confundem entre si.” (ZIMERMAN E OSORIO,1997, p. 27) No início da década de 60 outros psicanalistas começaram a estudar sobre o funcionamento dos grupos, dando início a um trabalho terapêutico que visa a entender as manifestações do grupo ao invés das pessoais. Grimberg, langer e Rodrigué, Bion, Foulkes e Anthony, dentre outros, foram alguns desses autores que passaram a influenciar os trabalhos com grupos e a pensar uma psicanálise de grupo. 21 Existem algumas diferenças fundamentais no que diz respeito ao trabalho terapêutico com mais de uma pessoa. São conceitos importantes para que fique claro a ênfase e a direção que é dada ao grupo e seus participantes. 2.2 Grupo: O que é e suas principais características Para começarmos a discutir quais as principais características e dinâmicas grupais é preciso esclarecer o que entendo por grupo, e a que tipo de grupo pretendo dar ênfase. Procurei me fundamentar principalmente nas idéias dos psicanalistas brasileiros Zimerman (1993) e Osório (1989), que construíram um conhecimento bastante aprofundado sobre trabalhos com grupo e grupoterapias, baseados nas contribuições de W. R. Bion à psicanálise de grupos. Nesse referencial há algumas condições básicas para chamar de grupo um agrupamento, um somatório de pessoas. Num grupo todos os integrantes devem estar reunidos em torno de uma tarefa ou objetivo comuns, estabelecido dentro de um enquadre, setting, que garanta o comprimento das combinações nele feitas. São de fundamental importância o espaço, o tempo e as regras que delimitam e normatizam a atividade grupal, assim como a distribuição de posições e papéis claros. Além disso, todo grupo, terapêutico ou não, propicia a formação de um campo grupal dinâmico no qual gravitam fantasias, ansiedades, identificações, papéis e uma interação afetiva, de natureza múltipla e variada. Cabe ao grupoterapeuta perceber e trabalhar com essa dinâmica a favor do crescimento do grupo. A primeira 22 característica à qual ele deve estar atento é a existência de dois planos: o consciente e o inconsciente. Bion (1970) chama o primeiro de “grupo de trabalho”, pois nele os indivíduos estão voltados para o êxito de uma tarefa, e o segundo plano, subjacente, seria constituído pelo “grupo de supostos básicos” regidos por desejos reprimidos, ansiedades e defesas, no qual podem prevalecer sentimentos de dependência, ou luta e fuga contra os medos emergentes ou uma expectativa messiânica. Esses planos se sobrepõem e flutuam, coexistindo e alternando-se durante o processo grupal. Ainda existem duas forças contraditórias em ação num movimento grupal: coesão e desintegração. A coesão do grupo depende de que em cada participante e no grupo haja o sentimento de pertinêcia, de vestir a camisa, e pertencência, de identificar o grupo como sendo seu, o que gera um reconhecimento de cada um pelos outros e do grupo por parte de cada indivíduo. Nessa dinâmica podemos analisar como o grupo se organiza a serviço de seus integrantes e como os membros se organizam a serviço do grupo. É também importante observar que um grupo se comporta como se fosse uma individualidade, com identidade, leis e mecanismos próprios e, contudo, precisa garantir que as identidades individuais não se dissolvam. Um grupo qualquer se diferencia do grupo terapêutico pelo setting e pelo manejo por parte do grupoterapeuta dos fenômenos naturais que ocorrem no campo grupal. Resistência e contraresistência, transferência e contratransferência, actings, processos identificatórios, distribuição e alternância de papéis, ansiedades e mecanismos defensivos, tudo isto ocorre espontaneamente nos grupos. No entanto o grupo terapêutico precisa ser continente das angústias e necessidades. O setting é o 23 continente para Bion ou o responsável pelo holding de Winnicott, que é coordenado pelo terapeuta. Dentro da gama de trabalhos feitos com grupo há diferentes formas de classificar que tipo de trabalho é esse, e uma distinção possível é baseada na técnica empregada pelo coordenador do grupo: (1) Trabalho em grupo: as interpretações são dirigidas ao indivíduo. É um tratamento individual na presença do grupo. (2) Trabalho do grupo: as interpretações são dirigidas ao grupo como uma totalidade gestáltica. (3) Trabalho de grupo: a atividade interpretativa parte das individualidades para o todo e do todo para os indivíduos. O trabalho que realizamos como projeto de estágio no curso de Especialização em Arteterapia pode se incluir no trabalho de grupo, no qual tentamos avaliar e dirigir nossa atuação tanto para as questões individuais que cada um traz quanto para o movimento do grupo em relação a eles mesmos, os combinados, as terapeutas e às atividades propostas. 2.3 A Dinâmica do Campo Grupal A reunião de clientes e terapeutas gera um campo dinâmico, no qual se entrecruzam necessidades, desejos, medos, culpas, ataques, defesas, papéis, identificações, movimentos resistenciais, transferência e contratransferência, entre outros 24 elementos. Na concepção de Zimerman é de fundamental importância que o terapeuta discrimine para si os principais fatores que compõe a dinâmica do grupo para decidir qual é a ação terapêutica necessária. Escolhi alguns desses elementos para aprofundar meu estudo entendendo que são fundamentais para guiar o trabalho do terapeuta e para a análise do nosso trabalho. Para Zimerman (1993) a coluna mestra na formação dos processos inconscientes que gravitam no campo grupal, grupo de supostos básicos de Bion, é formada por ansiedades, defesas e identificações. Na teoria de Bion identifica-se três formas de funcionamento inconsciente dos grupos em determinados momentos ou situações, que funcionam como sendo uma suposição básica, que na verdade agem como defesa para fugir da frustração e do contato com a realidade que exige um nível de trabalho e aprendizado que se tenta evitar. Tentarei explicá-los resumidamente: (1) Dependência: com essa suposição básica de dependência o grupo se comporta como esperando que seu líder cuide e proteja todo o grupo. (2) Luta e fuga: reflete a convicção de que existe um inimigo a ser combatido, e o líder é quem guia e orienta o grupo para esse combate. (3) Acasalamento: representa a crença de que os problemas e necessidades do grupo serão solucionados por um líder que ainda não está presente ou por um acontecimento futuro. Essa crença corresponde a uma esperança do tipo messiânica, de quem espera um futuro “melhor”. As ansiedades variam com o momento evolutivo do grupo e podem refletir indivíduos particularmente ou expressar o que se passa com a totalidade grupal. 25 Zimerman assinala que todo começo de terapia de grupo costuma apresentar comportamentos de luta e fuga que tanto podem ser direcionados contra o terapeuta quanto para algo que está fora do grupo. Por isso o grupoterapeuta precisa reconhecer qual a ansiedade é comum ao grupo, inclusive a ele próprio, para que possa atuar de forma adequada. Mas devemos estar atentos, pois na maioria das vezes essas ansiedades não se manifestam diretamente e abertamente, e sim por meio de somatizações e actings, que são condutas geradas por sentimentos inconscientes, das quais os integrantes não se dão conta. Zimerman cita seis estados de ansiedade mais essenciais e típicos na infância e no decorrer do desenvolvimento posterior que costumam aparecer no processo grupal: (A) Ansiedade de aniquilamento: é a ansiedade de desintegração e despedaçamento. Essa é a ansiedade mais primitiva na escala evolutiva e corresponde a provável sensação da criança de que corre perigo de vida e é sentida como catastrófica e aniquiladora. No entanto tal intensidade de ansiedade também pode ocorrer em adultos com estrutura de ego e identidade frágeis como nos estados psicóticos ou nas doenças psicossomáticas. (B) Ansiedade de fusão-despersonalização: diz respeito ao estágio de desenvolvimento em que a criança e a mãe são uma unidade, uma união simbiótica. A criança ainda não constituiu uma identidade individual e não é capaz de reconhecer o outro como um “não-eu”. No adulto com forte tendência a estabelecer vínculos simbióticos essa ansiedade se manifesta como um apavoramento ante a possibilidade de fundir-se, tragar ou ser tragado, com o outro e então perder sua individualidade. 26 (C) Ansiedade de separação: esta ansiedade manifesta-se enquanto a criança ainda não conseguiu desenvolver um núcleo de segurança afetiva básica com relação à mãe. Devido ao medo de perdê-la a pessoa não consegue imaginar ficar longe da figura materna e busca o maior contato físico possível. (D) Ansiedade da perda do amor: a criança sente-se em condições de se afastar fisicamente da mãe. No entanto, devido às fantasias inconscientes, vive tensa, com medo de perder o amor da figura materna ou ser abandonada por esta, como forma de um revide. (E) Ansiedade de castração: é derivada do medo da perda de uma possibilidade importante de obtenção de prazer e vínculo exclusivo, e surge em decorrência dos conflitos edípicos. (F) Ansiedade devida ao Superego: o superego, como herdeiro do complexo de Édipo, ameaça o indivíduo com severas punições caso as exigências e expectativas não forem alcançadas, provocando medo exagerado de errar e sentimento de menos valia. Os estudos sobre o desenvolvimento mental e emocional (SPITZ, 2002) apontam que, desde o nascimento, o ego do bebê utiliza defesas que visam protegê-lo da inundação de diferentes e fortes estímulos que ameaçam sua integridade, já que seu aparelho mental não é capaz de codificar e lidar com o impacto desses estímulos. No início essas defesas são de natureza mágica e posteriormente vão se tornando mais maduras e eficientes. É importante considerar que todas as formas de defesa, conforme a intensidade e a finalidade e seu uso pelo ego, podem estar tanto a favor da saúde como da patologia psíquica. 27 As defesas que considero mais significativas para a análise do nosso trabalho são negação, projeção e introjeção, idealização, repressão, racionalização e sublimação. Contudo Zimerman (1993 e 1997) e Osório (1989 e 1997) não fizeram particularização maior a respeito dos tipos de defesas por considerarem que já são suficientemente conhecidas. No entanto achei válido buscar um tipo de definição teórica para termos um consenso em relação à utilização desses termos na hora da análise do trabalho de grupo. O Vocabulário da Psicanálise (LAPLANCHE, PONTALIS, 1992) dá as seguintes definições: (A) Negação: “Processo pelo qual o sujeito, embora formulando um dos seus desejos, pensamentos ou sentimentos até então recalcados, continua a defender-se dele negando que lhe pertença.” (p.293). (B) Projeção e Introjeção: Projeção é a ”[...] operação pela qual o sujeito expulsa de si e localiza no outro – pessoa ou coisa – qualidades, sentimentos, desejos e mesmo “objetos” que ele desconhece ou recusa nele.” (p. 374). Introjeção é o processo no qual “[...] o sujeito faz passar, de um modo fantasístico, de “fora” para “dentro”, objetos e qualidades inerentes a esses objetos. [....] Está estreitamente relacionada com a identificação.” (p. 248). (C) Idealização: “Processo psíquico pelo qual as qualidades e o valor do objeto são levados à perfeição. A identificação com o objeto idealizado contribui para a formação e para o enriquecimento das chamadas instâncias ideais da pessoa (ego ideal, ideal de ego)” (p. 224). (D) Repressão: “Em sentido amplo: operação psíquica que tende a fazer desaparecer da consciência um conteúdo desagradável ou inoportuno: idéia, afeto, etc.” (p. 457). 28 (E) Racionalização: “Processo pelo qual o sujeito procura apresentar uma explicação coerente do ponto de vista lógico, ou aceitável do ponto de vista moral, para uma atitude, uma ação, uma idéia, um sentimento, etc., cujos motivos verdadeiros não percebe [...]” (p.423). (F) Sublimação: “Processo postulado por Freud para explicar atividades humanas sem qualquer relação aparente com a sexualidade, mas que encontrariam o seu elemento propulsor na força da pulsão sexual. Freud descreveu como atividades de sublimação principalmente a atividade artística e a investigação intelectual. Diz-se que a pulsão é sublimada na medida em que é derivada para um novo objetivo não sexual e em que visa objetos socialmente valorizados.” (p. 485). As identificações exercem um significativo papel nas interações grupais inconscientes e na constituição da identidade do indivíduo. É devido a este fenômeno que nos aproximamos, simpatizamos e valorizamos, ou não, o outro, e também constituímos a nossa própria identidade. As identificações resultam de um processo de introjeção de figuras parentais e códigos de valores dentro do ego e do superego, no momento em que passamos a adjetivar a nós mesmos e o mundo. Elas podem ocorrer em três planos: (A) Na voz ativa, quando o sujeito identifica algo ou alguém. (B) Na voz passiva, quando foi identificado com, e por alguém. (C) Na voz reflexiva, quando o sujeito se identifica com um outro. As identificações costumam ocorrer no campo grupal tão intensamente e freqüentemente que os autores costumam se referir à “identificações múltiplas e 29 cruzadas” para falar da forma como, num grupo, se dão os encontros que resultarão em relacionamentos e vínculos. O campo grupal também costuma ser comparado com uma “galeria de espelhos”, “onde cada um se reflete e é refletido nos, e pelos, demais.” (ZIMERMAM, 1993, p.83) Gostaria de explorar mais alguns elementos que se manifestam no campo grupal e que são significativos para a percepção do terapeuta a respeito da dinâmica do grupo. Zimerman (1993) diz que é possível perceber, por meio de sua experiência com grupos terapêuticos, que este se comporta muitas vezes como uma estrutura na qual há uma distribuição complementaria de papéis, assim como ocorre nas famílias e instituições. Há o “burro” da turma, o “cdf”, o professor “legal”, o diretor “ditador”, o irmão mais “fragilzinho”, o outro que é exemplar, o pai que é o “estourado” e a “mãezona”. Este sistema de papéis pode operar de forma inconsciente mas estabelece uma forma das interações ocorrerem e cria uma expectativa quanto ao comportamento de seus integrantes. Considera-se um sinal de desenvolvimento do grupo e de seus componentes quando os papéis deixam de ser estereotipados e cristalizados em determinadas pessoas para tornarem-se flexíveis, intercambiáveis e adequados à situação. Em “Fundamentos Básicos das Grupoterapias” encontra-se as seguintes definições de papéis que aparecem nos grupos com maior freqüência. (A) Bode expiatório: é a pessoa escolhida pelo grupo para receber as projeções dos aspectos negativos dos outros integrantes e das situações vividas pelo grupo. Ele pode assumir também o papel de bobo da corte, que diverte os demais integrantes. 30 (B) Porta-voz: geralmente esta é a pessoa que expressa mais abertamente o que o resto do grupo pode estar pensando ou sentindo como reivindicações, protestos, verbalizações de emoções, etc. O porta-voz se manifesta também através de actings, silêncios ou dramatizações. (C) Radar: também conhecido como caixa de ressonância, este papel costuma ser exercido por pessoas mais regressivas que, por não possuírem condições de processar simbolicamente informações sutis e insipientes de angústia e ansiedade que surgem no grupo, acabam dando vazão a elas por meio de somatizações, crises e até o abandono da terapia. (D) Instigador: é o indivíduo que provoca uma perturbação no campo grupal via de intrigas e desafios, criando situações e mobilizando papéis nos outros integrantes do grupo. Dessa forma ele recria e dramatiza a configuração de seu grupo interior e também a dos demais que aderem ao seu jogo. (E) Atuador pelos demais: é aquele indivíduo para quem o grupo delega a função de executar aquilo que lhes é proibido e não aceito pelo ego. O grupo emite uma mensagem dúbia que censura e que, ao mesmo tempo, sente um prazer secreto pelas atitudes tomadas por quem exerce este papel. (F) Sabotador: este papel tem como função, usando inúmeros recursos resistenciais, tornar difícil a comunicação e esclarecimento das situações para que se desenvolvam. (G) Vestal: é o papel assumido por aquele indivíduo que pretende zelar pelas regras, a moral e os bons costumes, impedindo qualquer movimento de liberdade e criatividade inovadora. Zimerman alerta para o risco desse papel ser incorporado pelo próprio grupoterapeuta. 31 (H) Líder: o papel do líder costuma ser exercido em dois planos: Um seria designado ao terapeuta e o outro surgiria espontaneamente dentre os participanres do grupo. A liderança pode ser desempenhada de maneira construtiva, integrando e formando o espírito de grupo, ou por um líder por demais narcísico, que usa seu poder e influência para seu próprio benefício. O reconhecimento e a transformação dos papéis exercidos pelos indivíduos possibilitam a construção de uma identidade própria e a diferenciação dos demais. Por isso a percepção pelo grupoterapeuta e o apontamento para os demais integrantes da estrutura de papéis que assumiu um grupo tem caráter transformador e de laboratório para experimentar novos papéis e possibilidades que poderão, mais tarde, ser levadas para outras situações da vida. A transferência é um fenômeno essencial para qualquer tipo de terapia funcionar, e costuma ocorrer como projeção em outras relações que não sejam terapêuticas. Freud e Klein fizeram importantes estudos e conceituações em relação a esse fenômeno. A neurose de transferência conceituada por Freud seria a reedição de antigas experiências traumáticas, e para Klein a repetição das relações primárias que ela denomina de identificação projetiva. As manifestações transferenciais num grupo se dão simultaneamente como uma série de transferências cruzadas, assim como nas identificações. Zimerman (1993) coloca a seguinte questão para pensarmos a respeito da transferência: é uma necessidade de repetição ou é a repetição de necessidades não satisfeitas no passado? 32 Os tipos de transferências nos grupos se manifestam em quatro níveis que facilitam a percepção e interpretação do quadro: (1) Transferência parental: de cada indivíduo com relação à figura central do grupoterapeuta. (2) Transferência grupal: do grupo como uma totalidade em relação a essa figura central. (3) Transferência fraternal: de cada indivíduo em relação a outro(s) determinado(s) indivíduo(s). (4) Transferência de pertencência: de cada indivíduo em relação ao grupo como uma entidade abstrata. Podemos perceber que tipo de transferência é estabelecida se pensarmos qual o seu papel no contexto terapêutico, isto é, se serve ao indivíduo ou ao grupo de forma a movimentar este pra frente, ou se serve para a manutenção de um padrão de relação pouco saudável ou mesmo patológico. Para isso o terapeuta precisa identificar como se sente em relação ao movimento do grupo, fenômeno que chamamos de contratransferência. Zimerman (1993, p. 114) diz que aquilo que o terapeuta sente é aquilo que o paciente o fez sentir, e a contratransferência pode ser um instrumento para auxiliar a compreensão do que se passa no grupo se o grupoterapeuta tiver desenvolvido um trabalho pessoal que permita discriminar os sentimentos gerados pelos movimentos do grupo daquilo que seriam suas transferências pessoais, originadas de seus núcleos e questões psíquicas. 33 No campo grupal a contratransferência pode ser pensada, também, em quatro níveis que correspondem aos movimentos da transferência, mas agora partindo do terapeuta para o grupo e seus integrantes: os sentimentos do grupoterapeuta com relação a cada um dos integrantes, separadamente; os sentimentos com relação ao grupo como todo; os sentimentos que determinados pacientes têm com relação a outros pacientes especificamente; os sentimentos de cada indivíduo com relação ao que o grupo, em sua totalidade, lhe desperta. Zimerman ressalta que no processo terapêutico é importante que todos os integrantes possam reconhecer os próprios sentimentos contratransferenciais com relação aos outros, e também o que cada um, com seu comportamento, provoca aos demais. Isso auxilia o ego do indivíduo diferenciar o que é seu e o que não é, e reconhecer, por mais doloroso que seja, que seus comportamentos afetam as pessoas e, por isso, também são responsáveis pelo tipo de resposta que recebem do mundo. 2.4 O Papel do grupoterapeuta e suas principais características Na opinião de Zimerman (1993, 1997) e Osório (1989, 1997) o processo de grupoterapia depende de dois fatores: a interpretação, que é o apontamento verbal feito pelo terapeuta sobre quais são as dinâmicas que estão ocorrendo no grupo e nos indivíduos particularmente, ajudando a cada um identificar os sentimentos, pensamentos e atitudes seus; e a atitude interna da pessoa do terapeuta, que 34 serve, por meio de sua atuação, de possibilidade de modelo para as identificações e ressignificações de vivências e vínculos passados. A atitude interna do grupoterapeuta depende mais de como ele é como gente e engloba algumas características, além do respaldo teórico-técnico, experiência, e supervisão, como gostar de trabalhar com grupos, capacidade de empatia, paciência e respeito, capacidade de manter uma permanente inteireza de sentimento de identidade pessoal e de grupoterapeuta e capacidade de síntese. Levysky (1997, p.313) nos chama atenção para mais alguns atributos desejáveis para o grupoterapeuta de crianças: capacidade de comunicação simples e acessível, ser continente e agüentar frustrações, assim com ataques corporais, suportar jogos e brincadeiras muitas vezes cansativos, e poder entrar e sair do mundo mágico da criança. Para Winnicott (1975, p.75) e Axiline (1972, p.14) a psicoterapia de tipo profundo com crianças deve buscar o insight, que não necessariamente é ocasionado pela interpretação do terapeuta e, sim, pelo momento significativo no brincar quando a criança surpreende a si mesma, quando ela faz a interpretação. Dessa forma sugerem que o psicoterapeuta trabalhe sempre no aqui e agora da sessão e reflita, como um espelho, os sentimentos e atitudes expressas pela criança na tentativa de clarificá-los e fazer com que ela se reconheça. Winnicott diz que a interpretação quando a criança e o material ainda não estão maduros é doutrinação, gera submissão à figura do terapeuta e resistências ao processo terapêutico, e por isso deve ser evitada, assim como a ânsia do terapeuta em compreender e ser brilhante na sua atuação também precisa ser cuidadosamente observada. 35 O grupoterapeuta de crianças é um observador-participante que, através de seu comportamento, ajuda a criar um setting que seja delimitado e seguro, ao mesmo tempo permissivo, e aceitante, no qual a criança sente que pode confiar e expor quem ela é realmente, tanto seus aspectos positivos quanto negativos. Por interferirem diretamente na dinâmica que se estabelecerá, a instituição de um setting apropriado e a escolha dos participantes do grupo é de fundamental importância na psicoterapia de crianças. Alguns autores como Levisky (1997) sugerem também a participação de dois ou mais técnicos, dependendo do número e das características das crianças, para poderem manejar e acompanhar os movimentos do grupo sem perder de vista as necessidades individuais. Outra orientação é o trabalho paralelo com os pais das crianças, que pode acontecer em grupo, fortalecendo o vínculo com os terapeutas a fim de garantir a adesão ao tratamento e orientação ou aconselhamento para os pais. 36 3. BASES PARA O TRABALHO COM CRIANÇAS 3.1 Breve histórico da psicoterapia com crianças Pretendo agora fazer um breve relato do percurso do trabalho individual e em grupo com crianças dentro da psicanálise, incluindo também alguns autores que sofreram influência também da pedagogia. É oportuno ressaltar que considero a interfase entre as abordagens psicoterápicas e a pedagogia um campo de grande interesse para quem trabalha com crianças. No entanto não poderei me aprofundar nesse estudo e creio que esse é um assunto que merece ser pesquisado futuramente. Começarei com as duas primeiras psicanalistas que se dedicaram a estudar a psicanálise em crianças e que assumiram posições antagônicas na teoria e na técnica: Anna Freud e Melanie Klein. Anna Freud, filha e assessora de Freud, publicou em 1927 o livro Psicanálise de Crianças no qual esclarecia suas idéias sobre a análise, individual e em grupo, de crianças, difundindo e dando credibilidade à ludoterapia. Em sua opinião, para que o tratamento tivesse resultados positivos, era fundamental que a criança tivesse consciência de sua doença. Seu método era realizar uma etapa de pré-tratamento de caráter pedagógico para que a criança compreendesse sua situação e aceitasse que precisava de ajuda. 37 Outra característica de sua metodologia era considerar fundamental trabalhar com as crianças em transferência positiva, expressa nos desejos da criança de ser ajudada e de agradar ao analista. Algumas críticas a essa teoria consideram Anna Freud “adaptacionista”, pois sua psicanálise trabalha no sentido de adequar o indivíduo às demandas sociais, voltada para questões mais pedagógicas do que da área da saúde e da análise do inconsciente propriamente dita. Para Melanie Klein a psicanálise de crianças não é uma pedagogia e sim uma clínica, e por isso a criança não precisa ter consciência de seus problemas a priori, até porque por meio das fantasias e jogos o terapeuta pode perceber aspectos da patologia que são inconscientes e, aos poucos, clarificá-los para. Seu foco passa a ser, além da transferência, as ansiedades e suas defesas. No que diz respeito à transferência para Melanie Klein esta é fundamental para o tratamento, mas deve ocorrer tanto em sua forma positiva quanto negativa, pois exigir que ela seja somente positiva obriga a criança a cindir os aspectos negativos, como a agressividade e a raiva, que podem ser o caminho para a cura e o desenvolvimento integral da personalidade. Para chegar à sua própria metodologia a psicanalista percorreu um longo caminho. No início analisou seus próprios filhos e depois passou a atender seus pequenos pacientes em suas casas, com seus próprios brinquedos, e compreendeu que para que a situação transferencial se expresse abertamente é necessário que o paciente sinta que seu processo terapêutico é algo separado de sua vida familiar cotidiana. 38 No decorrer de seus trabalhos a psicanalista percebeu que é através do brincar e do jogo que se obtém acesso à problemática da criança, assim como se utiliza a associação livre com adultos. É por meio da comunicação pré-verbal que a criança exprime suas fantasias, experiências e desejos de uma maneira simbólica. Por isso os brinquedos que mais facilitavam a expressão das imagens internas das crianças são aqueles mais simples e menos caracterizados, pois podem ser utilizados para criar as mais diferentes situações. A partir disso, Melanie Klein começou a montar as caixas lúdicas individuais que continham pequenas figuras humanas de diferentes tamanhos, carros, animais, árvores, blocos, casas, papel, tesouras, lápis, cola, massa de modelar e barbante dentre outras coisas, e que continuam servindo de modelo, até hoje, aos atendimentos de ludoterapia. S. R. Slavson era um educador progressista que trabalhava com grupos e posteriormente tornou-se psicoterapeuta. Ele observou em meados da década de 30 que o contato grupal proporcionava à criança tornar-se mais espontânea, fortalecendo o ego e proporcionando a diminuição das ansiedades. Desenvolveu a terapia de grupo da atividade que favorece a expressão de fantasias e sentimentos mediante a ação e o brinquedo, mas sempre observando os sintomas e expressões individuais, sem se aprofundar na dinâmica de grupo. Para ele os ingredientes terapêuticos básicos surgem da interação das crianças umas com as outras e com o terapeuta, e se utiliza de diversos materiais, ferramentas, jogos selecionados e comida para servir a fins terapêuticos. Dentre os terapeutas brasileiros que se dedicaram ou dedicam ainda ao trabalho de grupoterapia infantil quero destacar Oswaldo di Loreto que teve um papel 39 fundamental na construção da psiquiatria infantil no Brasil e porque não dizer da nova psiquiatria. Seus estudos e experiências no sentido de entender o que facilita a cura e o que promove as doenças psíquicas têm sido norteadoras da prática de muitos jovens psis. 3.2. O Brincar e a Criatividade na Concepção de Winnicott “Porém, Freud também compara a criança que brinca com o poeta, ao dizer “toda criança que brinca se conduz como um poeta, criando para si um mundo próprio” (PELENTO, 1989, p.103) Já dissemos que na teoria kleiniana o brincar da criança equivale à associação livre do adulto, e que o brinquedo se constituiu como técnica psicoterápica. Winnicott foi um pediatra e que se tornou psicanalista, e fez psicoterapia e supervisão com Melaine Klein. Apesar de trabalhar a partir de conceito kleinianos seguiu seu próprio caminho dando ênfase ao estudo minucioso da relação mãe-bebê e buscando entender não o conteúdo do brincar e suas interpretações mas, o que é o brincar, o que é necessário para que possa ocorrer e qual o seu papel no desenvolvimento do ser humano; teoria construída a partir da noção dos fenômenos transicionais. Para Winnicott (1975) há uma evolução direta dos fenômenos transicionais para o brincar, do brincar para o brincar compartilhado, e deste para as experiências culturais e sociais. 40 O espaço transicional, intermediário, ou potencial é a possibilidade que surge na relação entre o bebê ainda indiferenciado, sem consciência do mundo interno e do mundo externo, com a figura materna. Essa relação necessita estabilidade para que o bebê possa desenvolver uma confiança afetiva básica e o sentimento de continuidade no existir. Assim ele poderá se abrir para o mundo sem se sentir tão ameaçado e ter a experiência ilusória de controle dos acontecimentos que o atingem, na forma de onipotência e controle mágico, fundamentais para o seu desenvolvimento. A partir da ilusão e da conseguinte desilusão a respeito dessa onipotência a criança passa a diferenciar-se e constituir-se como sujeito, criando e recriando nesse espaço potencial suas experiências, a consciência de si e do mundo externo por meio da brincadeira, como o poeta que cria seu próprio mundo. O espaço potencial no qual ocorre o brincar é uma intersecção do indivíduo com suas fantasias e o mundo externo a ele, com seus fatos e dados de realidade. Ele é o espaço onde ocorre a construção desses dois mundos e é onde se origina também as demais experiências criativas e culturais. Dito de outra forma a experiência do brincar permite integrar aspectos dissociados, discriminar mundo interno e mundo externo, reparar objetos internos danificados, assim como modular a angústia da criança. A brincadeira é própria do desenvolvimento saudável: “[...] o brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde; o brincar conduz aos relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma forma de comunicação na 41 psicoterapia; finalmente a psicanálise foi desenvolvida como forma altamente especializada do brincar, a serviço da comunicação consigo mesmo e com os outros.” (WINNICOTT, 1971, p.63) Fica claro que para a criança ser capaz de brincar precisa ter se constituído um sujeito, e que as crianças que tiveram a relação com a figura materna por demais conflituosa ou indiferenciada, implicando na não construção da identidade primária, não poderão ser os criadores de seus próprios mundos, não brincarão, assim como a capacidade de simbolizar, o viver espontâneo, as relações interpessoais, o trabalho e as demais experiências nas quais se põe em jogo o corpo e a mente também ficarão prejudicadas. O que Winnicott (1975) diz a respeito do brincar também se aplica aos adultos, com a diferença do elemento da comunicação verbal. O brincar conquistou um lugar privilegiado em sua teoria, pois para ele é somente na brincadeira que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral, e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre quem ele é, o seu eu ou self. Por isso o brincar para Winnicott é em si mesmo uma terapia que leva o sujeito a se descobrir. A espontaneidade está ligada à criatividade na medida em que é expressão do verdadeiro self. O termo criatividade expresso por Winnicott não se refere à criatividade especificamente artística e estética, já que esta, apesar de seu valor, pode trair a expressão espontânea e genuína com imposições de tendências e técnicas. Mas, sim, àquela operação que possibilita construir e descobrir o próprio 42 self e o significado das coisas do mundo, e relaciona-se ao sentimento de estar vivo de maneira inteira e na relação com a realidade externa. O momento criativo é aquele no qual a pessoa se encontra num estado de relaxamento e repouso que a permite expressar impulsos e vivenciar a experiência de desorganização e organização, desintegração, ou não-integração, e integração, desconstrução e construção, e pode, inclusive, compartilhá-la com o outro. Winnicott (1975) diz que o que faz a vida valer ser vivida é a percepção criadora, pois a base do sentimento do eu (self) é construída a partir dessas experiências. 43 4. BASES PARA O TRABALHO COM OFICINAS TERAPÊUTICAS Agora começaremos a ver algumas referências importantes para construir uma proposta de trabalho terapêutico que utilize a arte e de outras técnicas expressivas. As Oficinas Criativas e o Expressive Therapies Continuum – E.T.C. são duas metodologias que podem ser utilizadas conjuntamente para construir dinâmicas de trabalho educacionais ou terapêuticas e que possuem a mesma característica de serem propostas semi-diretivas. Isto é, cada uma delas oferece instrumentos para criarmos propostas específicas de atuação, dependendo do objetivo que desejamos atingir. As propostas de trabalho visam a proporcionar, num ambiente acolhedor, o contato do sujeito com seu mundo interno e com a realidade, justamente no espaço potencial que permite descobrir e transformar essas realidades. Suas técnicas servem como facilitadoras da experiência de construir uma forma única, espontânea e criativa de dar significado aos conteúdos internos e experiências, utilizando diferentes habilidades e aspectos da personalidade, e assim integrar o potencial cognitivo com o emocional, o corpo e a mente, mundo interno e mundo externo. 4.1 A Oficina Criativa “Seu objetivo é fazer com que as pessoas possam exercitar suas capacidades de aprender, fazendo uso de seu potencial psíquico e tendo seu dinamismo energético afetivo e cognitivo direcionado para uma melhor qualidade em aprendizagem.” (ALLESSANDRINI, 2004, p.83) 44 Essa forma de intervenção é baseada nos estudos de Fagali (1987, 1992) e Ferretti (1988, 1994) em seus textos sobre psicopedagogia e de Ciornai (1994) em seu trabalho de arteterapia gestáltica, sendo objeto de pesquisa de Allessandrini (1996, 2000) em diversos estudos que relacionam a aprendizagem e a criatividade. É uma sugestão de planejamento para envolver o indivíduo integralmente e, portanto possui uma estrutura básica de seqüência: (1) Sensibilização: é o momento em que a pessoa estabelece uma conexão com o trabalho que irá começar, e tem como objetivo aumentar o contato com o mundo interno, a concentração e proporcionar um estado de relaxamento interno. (2) Expressão livre: é a etapa na qual o cliente pode explorar o material escolhido por ele ou sugerido pelo terapeuta e diferentes modos de concretizações. Nesse momento seu universo interno pode se manifestar sob forma de imagem, movimento, som, pensamento, muitas vezes carregados de sentimento e emoção. (3) Apreciação: é o movimento de elaborar e redimensionar, ainda no nível nãoverbal, a produção feita na etapa anterior. O objetivo é ampliar o entendimento e significações da experiência, vendo-a de diferentes ângulos, tentando perceber resultados inesperados e ocultos até então. (4) Transposição da linguagem: é a passagem desses conteúdos e vivências para uma outra linguagem, geralmente verbal. O objetivo desse momento é organizar a experiência e torná-la mais consciente, facilitando sua apreensão. (5) Avaliação: é a retomada das etapas anteriores, possibilitando uma maior integração e consciência dos movimentos vividos que levaram a percepção de algo novo na consciência. 45 A Oficina Criativa é um processo que exige participação ativa e consciente do cliente na resolução dos desafios e descobertas que a relação com o material e com a proposta podem gerar. Por isso, na avaliação, é significativo perceber não só a reação do sujeito ao que foi produzido mas, também, todas as reações e atitudes tomadas no decorrer do processo. Todos esses elementos serão importantes para pensar o diagnóstico e o plano de trabalho voltado para as necessidades do cliente. 4.2 O Continuum das Teorias Expressivas O Continuum das Terapias Expressivas – E.T.C. (Kagin & Lusebrink, 1978, p.171179) é baseado nos estudo de Piaget e Inhelder (1977) sobre o desenvolvimento das representações imagéticas e propõe uma seqüência expressiva que reflete diferentes estágios de desenvolvimento humano. As autoras construíram um modelo conceitual de expressão e interação com o meio em diferentes níveis, visando o trabalho terapêutico. Lusebrink (1990) descreve quatro níveis, sendo que os três primeiros refletem a seqüência desenvolvimentista e a crescente abstração do processamento da informação, e o quarto nível, o criativo, pode se manifestar em qualquer dos níveis anteriores, inclusive em forma de síntese de todos os outros. (1) Nível cinestésico-sensorial: uma atividade no nível cinestésico dá ao indivíduo a oportunidade de soltar inibições e controles pela liberação da energia e da expressão por meio do movimento. Os materiais expressivos servem a este nível como facilitadores passivos da ação cinética como, por exemplo, amassar argila, dançar com lenços, experimentar temperos, chutar a bola, pintar livremente com tinta. O componente sensorial deste nível refere-se à sensação tátil ou qualquer 46 outra experimentada com o material. Na medida em que os componentes da ação aumentam a percepção sensorial diminui e vice-versa. A expressão e interação com o meio nesse nível podem levar ao conhecimento do ritmo criado por meio da ação coordenada do organismo. O ritmo em si pode ser uma experiência unificadora e curativa, visto que todo o organismo está envolvido nessa ação rítmica. A distância reflexiva é mínima quando é grande o envolvimento na ação ou na sensação. (2) Nível perceptual-afetivo: este nível representa a interação entre o aspecto perceptual e afetivo e a influência do meio sobre esta interação. No pólo perceptual estão as formas ou qualidades estruturais da expressão, tais como definir limites, diferenciar formas, perceber texturas e o esforço de alcançar a representação correta de uma experiência interna ou externa. Nesse nível existe um diálogo entre o indivíduo e o material, chamada de integração isomórfica, na qual a forma dada ao material corresponde a uma qualidade interna. Materiais com qualidades mais estruturadas, como madeira ou mosaico parecem evocar uma melhor organização interna do indivíduo do que materiais fluídos como a tinta a base de água, com os quais a pessoa tem que impor uma estrutura ao material. O componente afetivo deste nível modifica a forma e, por outro lado, a forma dá estrutura ao afeto. A utilização de cores e a geometrização da forma são exemplos de como o indivíduo pode perceber a forma ou o afeto associado à expressão. A distância reflexiva varia de uma distância considerável, quando os aspectos perceptuais da expressão estão enfatizados, a uma distância minimamente reflexiva numa experiência afetiva intensa. (3) Nível cognitivo-simbólico: este nível é qualitativamente diverso dos anteriores, pois engloba as operações conceituais e antecipatórias com imagens e as correspondentes verbalizações, descrevendo as operações analíticas e seqüenciais 47 no pensamento lógico e na resolução de problemas. A exploração das propriedades do meio e a internalização e abstração contribuem para a compreensão das ações necessárias para manipular o material e construir um plano de ações. As abstrações e representações de conceitos via formas visuais são partes das operações cognitivas. Meios resistentes e estruturados, como lápis ou construção em papel, madeira ou sucata, dão ênfase às operações do nível cognitivo, assim como denominar o produto, verbalizar o procedimento e internalizar comandos verbais. A distância reflexiva é maior nesse nível do que nos níveis anteriores. O componente simbólico está na formação do conceito intuitivo, compreensão e atualização de símbolos e à expressão simbólica do significado. Símbolos englobam o cinestésico ou dinâmico, bem como afeto, estrutura e forma e significado. Seu significado pode estar reprimido ou deslocado, ou ainda não ser sabido. (4) Nível criativo: o trabalho nesse nível enfatiza a síntese e as forças de realização do eu e pode ocorrer em qualquer um dos níveis anteriores. Para as autoras a sublimação é um exemplo de ato criativo. No nível criativo é possível a síntese entre a experiência interior e a realidade externa, entre a expressão individual e o meio, ou experiências do indivíduo em diferentes níveis do E.T.C.. O ato criativo culmina numa experiência afetiva de encerramento e um senso de unidade entre o meio e a mensagem. A distância reflexiva numa interação criativa com o meio alterna-se entre o total envolvimento do indivíduo que mantém alguma consciência da integração e o total envolvimento numa reflexão subseqüente sobre a integração. A atualização criativa envolve todo o indivíduo e, portanto, tem uma influência curadora. 48 5. O ESTÁGIO DE ARTETERAPIA NO CENTRO DE DESENVOLVIMENTO DA ASSOCIAÇÃO CRISTÃ DE MOÇOS DE PINHEIROS Realizamos o estágio de maio até dezembro de 2004. É uma experiência que ficará na memória, junto com o aprendizado que tivemos ao lidar com esses meninos e meninas com dificuldades, e com todas as nossas dificuldades durante o trajeto. Foi tão gratificante, e importante, nossa primeira experiência profissional como arteterapeutas que, terminado o estágio, decidimos prosseguir com o grupo para colher alguns dos frutos que foram plantados durante o processo, agora como voluntárias de oficinas terapêuticas. Hoje estamos mais maduras, tanto profissionalmente quanto no nível pessoal, e vemos que o vínculo com as crianças e das terapeutas, também amadureceu. Pretendo contar resumidamente um pouco do que foi essa experiência como estagiária e algumas das características do grupo e do nosso trabalho. 5.1 O Projeto: A Fada que Tinha Idéias O projeto inicial, construído por minha dupla e eu, recebeu o nome de Oficina Criativa da Fada que Tinha Idéias, e nosso objetivo principal era desenvolver a criatividade e a expressão utilizando a literatura infantil e os contos de fadas como catalisadores. Decidimos trabalhar com crianças na faixa etária de 7 a 9 anos, tendo como objetivo auxiliá-las em sua auto-descoberta, na conquista da espontaneidade e da confiança no seu potencial criativo, o que no nosso entender enriqueceria todas as experiências de aprendizado escolar, estimularia a curiosidade e o interesse pela 49 descoberta do mundo cultural e social em que estamos inseridos, além de proporcionar novos modelos de relacionamentos interpessoais por meio da relação com o grupo e com as terapeutas. Nesse processo gostaríamos de associar o prazer e o lúdico às descobertas do mundo social e do próprio mundo da criança, envolvendo todos os sentidos e habilidades nesse trabalho. Criar, imaginar, inovar sem medo de errar era a nossa proposta para construir um conhecimento unificado e não fragmentado. Pretendíamos com isso impulsionar o desenvolvimento dos aspectos criativos, cognitivos, simbólicos, perceptuais, afetivos, cinestésicos e sensoriais (Lusebrink, 1990) por meio da fantasia, da imaginação e das vivências com a arte e outras técnicas expressivas. Nós sabíamos que tínhamos, nós também, que deixar de lado os livros de receitas, já embolorados, para criar novas receitas sabendo que cada ser em si carrega o dom de ser capaz de aprender e inventar coisas belas. Com essas idéias e disposições para aprender junto com as crianças nos lançamonos nessa experiência profissional. 5.2 Apresentação Fomos ao Centro de Desenvolvimento Comunitário da A.C.M. indicadas por uma coordenadora da Pastoral do Menor da Vila Madalena. Hoje o C.D.C. recebe 25 crianças no período da manhã e mais 25 no período da tarde que estão matriculadas em escolas próximas à A.C.M., moram nas redondezas incluindo um número 50 significativo de crianças moradoras das favelas da região ou filhos de pais que trabalham no bairro. Esse projeto do C.D.C. surgiu como um pedido das próprias escolas para que houvesse um atendimento às crianças que estudavam à tarde e que normalmente ficavam sozinhas em casa ou na rua. No C.D.C. os meninos e meninas participam de atividades recreativas, educativas, terapêuticas e culturais com voluntários que contam histórias, ministram oficinas de dança, primeiros-socorros, música, computação e reforço escolar, e realizam acompanhamento terapêutico. Os educadores das oficinas são todos voluntários do C.D.C., com exceção da coordenadora, da educadora fixa e da cozinheira, que são funcionárias da ACM. Nosso projeto foi recebido com entusiasmo pela coordenadora, que a nosso pedido, identificou algumas crianças que apresentavam maiores dificuldades de relações interpessoais, escolares e familiares. Pedimos que a escolha também fosse voltada para a faixa etária dos 7 aos 9 anos, que envolve crianças que estão passando pelo processo de alfabetização e letramento, aumentando seu contato com a cultura e outras áreas de conhecimento. Outra questão na qual insistimos ao falar da Oficina Criativa da Fada que Tinha Idéias era a importância de termos um grupo reduzido de crianças, pois nosso trabalho não tinha um caráter recreativo e, sim, terapêutico. A princípio determinamos que seis crianças fosse um número suficiente para podermos trabalhar com qualidade, mas como a demanda da instituição, e até das próprias 51 crianças, era grande, tivemos que negociar e nosso grupo acabou formado por dez integrantes e duas terapeutas. 5.3 Estrutura e Espaço da Instituição O C.D.C. da A.C.M. Pinheiros fica na rua Deputado Lacerda Franco, 381, tel. 3816 6009. É um sobrado com quintal externo, uma sala de computação, a sala de administração, cozinha e refeitório. No andar superior há a brinquedoteca, uma biblioteca, um quintal coberto e uma sala de aula. Há também um banheiro feminino e outro masculino, usados pelos adultos e pelas crianças. No início dos atendimentos trabalhávamos na biblioteca por ser a sala maior, com mesa e almofadas. No entanto percebemos que o trabalho era freqüentemente interrompido por crianças e voluntários que queriam usar o banheiro feminino, que fica dentro da sala, ou que estavam curiosos para ver o que as crianças estavam fazendo. No começo do segundo semestre nos mudamos para a sala de aula com armários que fica no fundo do andar superior, e passamos a tirar as cadeiras para colocar colchonetes e o tapete de E.V.A. e a trabalhar no chão. Algumas vezes chegamos a trabalhar no quintal que ligava nossa sala e a brinquedoteca, fazendo dele nosso território expandido. 5.4 O Processo Para os primeiros atendimentos planejamos encontros baseados nas Oficinas Criativas (Allessandrini, 1996), iniciando cada sessão com brincadeiras e 52 relaxamentos para proporcionar uma sensibilização por meio da música, exploração corporal e espacial para depois introduzir o trabalho com as histórias selecionadas. Após a leitura propúnhamos a livre expressão com algum tipo de material artístico ou dramático e, no final, tentávamos fazer com que as crianças tivessem um olhar para sua própria produção e a dos colegas e se que percebessem mais. Começamos o atendimento indo às sextas-feiras no período da manhã, e permanecemos por aproximadamente duas horas em cada encontro. A partir do início do mês de novembro resolvemos incluir mais um encontro semanal e passamos a ir também às terças-feiras pela manhã para acompanhar o mesmo grupo. Essa mudança ocorreu principalmente porque percebemos que o trabalho estava sendo interrompido pelas freqüentes faltas das crianças nas sextas-feiras. Imaginamos que poderíamos melhorar o ritmo e a continuidade do acompanhamento individual e do grupo fortalecendo nosso vínculo e aumentando a freqüência das oficinas. Fomos descobrindo que as oficinas criativas, assim como pudemos observar e vivenciar durante o curso de Especialização em Arteterapia, eram muito diferentes do trabalho de oficina possível com crianças nessa faixa etária e com as características do nosso grupo da A.C.M. Tentamos então nos adaptar a essas características e aprender com as dificuldades nossas e do grupo, criando propostas de cunho terapêutico e educacional que ampliaram nossos objetivos e as idéias do projeto inicial. 53 Nosso grupo se mostrava agitado com dificuldade para se concentrar e para ouvir o outro, inclusive as propostas de atividade, e de permanecer no espaço do trabalho. Havia brigas e discussões freqüentes e algumas crianças reagiam muito mal quando eram chamadas à atenção, muitas vezes saindo do grupo, ficando agressivas ou se excluindo da atividade. Além disso, sabemos que as crianças que atendemos, na sua maioria, têm pouca experiência em trabalhos de grupo, e que o costume de esperar por sua vez, parar para ouvir o outro e respeitar algumas regras de convivência são aprendizados que precisam ser continuamente promovidos por quem coordena a turma. Essas dificuldades também são observadas pelas coordenadora e educadora do C.D.C. durante os outros períodos em que as crianças estão na instituição. Para manejar essa dinâmica tentamos criar um código de comportamento que fosse construído junto com a turma. Criamos combinados do que era permitido, ou não, fazer no grupo, e constantemente tivemos que relembrar às crianças o que foi acertado. Percebemos que eles sabem o que pode ou não ser feito, mas agem descumprindo os combinados para nos testar e possivelmente por ainda não terem internalizado essas regras. Provavelmente essas não são as mesmas regras de convivência que predominam em outros espaços onde eles vivem. Se no início nosso foco era trabalhar a espontaneidade criativa no decorrer dos encontros percebemos que era fundamental trabalhar o contraponto, isto é, os limites para ajudá-los a trabalhar em equipe, se concentrar e se respeitar mais. Sem isso qualquer trabalho que pretenda proporcionar a soltura, a livre expressão e a troca de experiência fica comprometido. Atendemos a algumas crianças que estão inseridas numa realidade familiar e social muitas vezes desfavoráveis ao seu desenvolvimento 54 emocional e cognitivo. A tensão nas relações familiares, agravadas pelas dificuldades econômicas, o desemprego, o uso de drogas e outras formas de violência se reflete no comportamento das crianças. Provavelmente não é por acaso que as crianças que apresentam sofrimento psíquico que consideramos mais preocupantes, que pode ir da agressividade destrutiva à apatia generalizada, geralmente possuem mais de um fator gerador de tensão em suas vidas e são carentes de experiências positivas num meio ambiente onde se sintam valorizados, protegidos e amados. Quando começamos a trabalhar com os jogos de regras essa desorganização melhorou significativamente. Parece que a própria estrutura do jogo, com suas condutas que precisam ser acertadas e aceitas por todos, é o jeito mais fácil de transmitir para as crianças que a regra e os combinados sociais não as impedem gratuitamente de agir de modo individualista. Sem um acordo a respeito do que pode e do que não pode, e com cada um resolvendo fazer do seu jeito, elas simplesmente não conseguirão brincar juntas. As nossas regras tentam garantir que possamos estar e fazer coisas na companhia de outras pessoas, reconhecendo-as como iguais, com os mesmos direitos e com o direito, principalmente, de ser respeitada enquanto ser humano. Para lidar com a agitação com que as crianças chegavam ao grupo optamos por usar brincadeiras como “estátua” e “telefone-sem-fio”, técnicas de relaxamento e de imaginação dirigida, a “pedra do índio”, que sinaliza para os outros quem está com a palavra, e o “minuto de silêncio”, uma proposta nova e difícil para eles realizarem mesmo olhando para o relógio de ponteiros na parede. 55 Mesmo com a utilização dessas técnicas, e trabalhando em dupla, ainda tínhamos dificuldade para acompanhar a dinâmica grupal e, ainda, prestar atenção ao processo individual das crianças, pois nosso grupo era formado por uma média de oito integrantes a cada encontro à medida que elas faltavam com alguma freqüência. Resolvemos, então, no começo de 2005, mudar a estrutura do grupo. Dividimos as dez crianças em dois grupos de cinco integrantes, a ser atendido quinzenalmente; aceitamos a entrada de mais algumas crianças, pois outras deixaram de fazer parte do grupo por motivos diversos; proibimos a participação de crianças que não faziam parte do projeto; estabelecemos regras mais claras a respeito da participação nos grupos, sendo que, agora, se a criança não quisesse participar do grupo no seu dia de atendimento só seria permitida sua participação dali a quinze dias, o que exige que ela faça uma escolha dentro das regras e da organização externa. No entanto continuamos trabalhando com os grupos nos quais variam os integrantes de acordo com o encontro, pois quando uma criança falta, o que, infelizmente, ocorre com freqüência, convidamos uma outra, que já participe das oficinas em outro dia para participar daquele encontro. A escolha da substituição é feita a partir da demanda e necessidades que observamos nas crianças. A criança que faz parte do projeto sempre pode escolher participar ou não das oficinas terapêuticas naquele dia, o que consideramos um fator importante para que um trabalho como o nosso mantenha seu perfil terapêutico. O que não permitimos é que elas fiquem entrando e saindo da atividade, e que quando optam em não participar, que esperem o próximo dia de oficina para o seu grupo. É claro que 56 também trabalhamos com as variáveis de maturidade, necessidade e interesse para guiar nossa conduta na hora de discutir com a criança a respeito da sua participação, o que cria exceções às regras. Observar durante as oficinas o aparecimento espontâneo de subgrupos, que variavam conforme o encontro e a atividade. Algumas vezes a dificuldade era juntar o grupo das meninas com o dos meninos, pois o enredo e a atividade desejada por eles era muito diverso; em outros momentos percebíamos que algumas crianças acabavam sendo excluídas ou se excluindo de alguma atividade quando surgia algum problema ou dificuldade. Nessas ocasiões, em que as crianças não conseguiam resolver entre elas a situação, nós entrávamos para facilitar a integração desses participantes. No decorrer de todo o estágio fizemos o exercício de tentar “costurar” e integrar os subgrupos e as atividades diferentes, permitindo que em determinados momentos cada um fizesse a atividade em que estava interessado. Analisando os resultados que as atividades provocavam na dinâmica do grupo fomos tentando, cada vez mais, propor oficinas que favorecessem a maior integração e o maior respeito pelos integrantes do grupo. As oficinas mais marcantes para a turma foram as dramatizações de histórias conhecidas e inventadas por nós, os teatros de bonecos, as brincadeira de cabanas, as oficinas de brigadeiros e beijinhos, as oficinas de salão de beleza, as atividades criativas com sucata, argila e jogos com regras, como o jogo da memória, damas e dominó, que não poderei descrever por não ser a proposta dessa monografia, mas estão devidamente registradas nos relatórios de atendimento do estágio. 57 É interessante observar como as crianças valorizam o espaço da oficina terapêutica, e que aquelas que não fazem parte do grupo estão sempre curiosas sobre as atividades e pedindo para participar. Para nós isso representa um reconhecimento do trabalho e um sinal de que o espaço que tentamos construir com as crianças é prazeroso e constitui um grupo com o qual as crianças com quem trabalhamos se identificam e se sentem integrantes, mesmo que em determinados momentos escolham não participar do encontro naquele dia. 58 6. HISTÓRICO DAS CRIANÇAS E RELATO DA OFICINA 6.1. Histórico Resumido das Crianças1 Pretendo fazer um resumo do perfil e da história familiar das crianças presentes na oficina que desejo analisar. Julgo que essas informações são importantes para aprofundar as hipóteses discutidas e lamento não ter mais elementos de suas vidas familiares, principalmente das que são novas no projeto. Maria, 9 anos, é magra e alta para sua idade. Tem os olhos grandes, que transparecem curiosidades. Sorriso fácil e doce, está sempre disposta a cooperar, mesmo quando não é requisitada. Esperta, tem facilidade para criar histórias e brincadeiras. No começo dos atendimentos estava com dificuldade de se expressar e de se colocar frente às situações com os colegas. Inibida, se envergonhava ao falar e parecia insegura, sempre se apoiando nas meninas mais extrovertidas. Sabemos que sua mãe já passou por cirurgia para retirada de câncer, fez o tratamento da doença e atualmente está estável. Maria mora com a mãe, o pai e os irmãos, alguns filhos de sua mãe com outros companheiros anteriores ao seu pai. Hoje em dia está mais desinibida e com freqüência lidera o grupo nas oficinas, dando idéias e ajudando a coordenar o grupo de forma positiva. Jonas, 7anos, é sobrinho de Maria, filho de uma de suas irmãs mais velhas. É um menino bonito, de estrutura pequena e cabelos claros. Logo se percebe que possui uma agitação motora que o destaca do grupo, e tem sido considerado um menino1 O nome verdadeiro das crianças foi alterado para preservar sua privacidade. 59 problema dentro da instituição. Infelizmente temos poucas informações sobre sua vida, pois a mãe nunca foi ao C.D.C.. Ele foi encaminhado no início do ano 2005 pela avó, mãe de Maria, que nos forneceu algumas informações. Desde a separação de seus pais, quando tinha 5 anos, Jonas mora na casa da avó, que fica no mesmo terreno da moradia da mãe. O pai saiu de casa, mas costuma visitá-los com freqüência, sem se envolver muito na educação ou na relação da mãe e da avó com seu filho. Ambas estão brigadas, justamente porque a avó disse não aceitar a forma como a filha trata a criança, com impaciência, gritos e agressões. Jonas tem o hábito de desrespeitar os combinados da turma e normalmente não obedece a nenhum dos adultos. Envolve-se em brigas com as crianças menores e mais fracas, mas não com as mais velhas, mas não é especificamente agressivo. Parece ser instável emocionalmente e cria situações nas quais provoca e desafia os outros, e demonstra bastante dificuldade em desenhar ou criar qualquer coisa que não seja copiada ou já conhecida. Marcos, 9 anos, é um menino forte e alto em comparação aos demais. Parece ser retraído no contato com os adultos, mas não com as outras crianças. Tem os olhos brilhantes e logo se percebe que usa sua inteligência para propor brincadeiras conversas interessantes e que possui certo grau de independência com relação aos demais. Muitas vezes se mostra emburrado, não querendo conversar, mas em outros momentos se apresenta com bom-humor e alegria. Estamos acompanhando-o desde março de 2005, apesar de ele ser aluno do C.D.C. há mais tempo, e sabemos que no início do ano seus pais se separaram e sua mãe observou que ele andava mais ansioso, comendo em maiores quantidades e confuso com a nova situação. A mãe parece ser muito presente na vida de Marcos, inclusive procurando a coordenação 60 para conversar, contando que o filho mantém contato freqüente com o pai e sua nova companheira. Roberto, 9 anos, é um garoto quase tão grande quanto Marcos, mas de atitude mais passiva. Está conosco desde o início das oficinas e percebíamos que, apesar de ser um menino extremamente inteligente e afetivo com os adultos, apresentava grandes dificuldades ao se relacionar com as crianças de sua idade. Costuma procurar os adultos quando uma criança o aborrece ou agride – nunca o vi batendo em ninguém, mas, muitas vezes, sendo agredido. Costuma brincar sozinho ou buscar as atividades com as meninas. É descriminado pelas crianças por ser mais passivo, não gostar de brincadeiras violentas nem competitivas. Às vezes se comunica com uma voz miada, infantilizada. Sabemos pela mãe que o pai hostiliza Roberto, fato que ela tenta apaziguar “dando muito amor ao filho” (sic). Ele tem uma irmã mais nova, de um ano e meio, a quem o pai é muito apegado. Fernando, 7 anos, é magro e ágil, de cabelos lisos e muitas marcas no rosto, derivadas de uma alergia ainda não identificada, mas que está em tratamento no Posto de Saúde, segundo o que diz a mãe. Essa criança também começou a freqüentar o C.D.C. e nosso projeto em março de 2005 e possuo poucas informações sobre sua história. Observo que é um menino que ainda não estabeleceu um vínculo de confiança estável com as terapeutas, evitando participar de alguns encontros. Quando está presente participa das atividades e não costuma ser agressivo no contato com os outros. Tem facilidade de brincar sozinho e quando é frustrado pelas crianças, durante as atividades, se afasta do grupo. 61 6.2 As Oficinas A oficina que irei relatar foi coordenada somente por mim, pois minha dupla estava impossibilitada de comparecer por motivo de saúde. A disposição de realizar a oficina sem a presença da outra terapeuta pode ser questionável dentro da psicoterapia, uma vez que a presença de ambas faz parte do setting. No entanto foi uma decisão tomada pela dupla, de não interromper o andamento das atividades, o que ocorreria se esperássemos por sua total recuperação. Em outros momentos já havíamos nos reunidos com o grupo sozinhas, o que são situações incomuns, mas que ocorrem devido a imprevistos e problemas pessoais ou de saúde de uma de nós. Na semana anterior eu já fora sozinha ao encontro e comunicado a ausência de minha colega, quando as crianças expressaram curiosidade e preocupação com o estado de saúde da terapeuta e o medo de que ela não retornasse, o que foi discutido no grupo. Como já estamos a mais de um ano acompanhando essas crianças elas parecem possuir uma confiança a respeito do nosso vínculo e permanência no C.D.C., e depois do primeiro impacto da notícia não houve mais comentários nem outros indícios de comportamento do grupo que eu possa relacionar a esse tema. A oficina foi criada a partir da proposta de trazermos brinquedos para as oficinas, elemento restrito às brincadeiras de cabana e representações teatrais, na forma de cenário ou elemento cênico. Vínhamos trabalhando identidade e auto-imagem com um personagem criado por eles, que se desenvolveu como sendo um personagem 62 dentro de uma família que possuía uma história. Imaginamos que trazer bonecos e outros elementos como talheres, pratos, animais, blocos de montar e carrinhos pudessem ajudá-los a experimentar as histórias e fantasias que surgiram nos encontros anteriores. Só para que fique mais clara a relação de alguns acontecimentos entre as duas oficinas, contarei, de maneira bem resumida, como foi o encontro que antecede a oficina escolhida para análise. Em 07/06 eu fizera a apresentação de uma história, inventada por mim, com bonecos e brinquedos, na qual pedi a participação do grupo para criar o desfecho da história e, depois, sugeri que cada um apresentasse sua própria história para a turma. Era um grupo de cinco crianças. Duas, as mais maduras e organizadas psiquicamente, logo se dispuseram a criar uma história e escolheram os personagens, uma terceira começou a brincar com o material de forma mais introspectiva e as duas outras com maiores dificuldades interpessoais e de organização emocional começaram a se agitar, mexendo nos brinquedos. Logo na primeira apresentação essas crianças que apresentam maiores dificuldades no grupo começaram a tumultuar a atividade, impedindo a continuidade da apresentação. Por isso tivemos conflitos e acabamos interrompendo a atividade, deixando algumas crianças frustradas e outras, talvez, aliviadas. Pensei que para resolver esse problema poderia trabalhar com duplas ou trios de crianças, que se ajudariam na criação da história e na hora da apresentação. Talvez isso facilitasse o envolvimento das crianças e diminuísse o tempo de espera pela sua 63 própria apresentação. Num grupo com cinco crianças poderia surgir uma dupla e um trio, ou duas duplas e uma criança sozinha. Resumo da Oficina de 14/06/05 Depois da reunião com a coordenação e outra psicóloga para discutir alguns casos resolvi chamar Jonas para me ajudar a arrumar a sala para o encontro e aproveitei para conversar com ele sobre os nossos combinados e as dificuldades que havíamos tido no encontro passado devido ao comportamento dele e de outra criança que atrapalhou a apresentação de bonecos das outras crianças e fez com que o encontro terminasse. Ele parecia supercooperativo, arrumando tudo com cuidado e dando atenção ao que eu dizia. Quando chegaram as outras crianças expliquei que a outra terapeuta ainda estava se recuperando da operação e que não poderia participar do grupo ainda, mas que viria na semana seguinte. As crianças nada comentaram a respeito. Falei dos problemas que tivemos no encontro passado e de como isso prejudicou o grupo, deixando todo mundo frustrado sem poder terminar a atividade e disse que continuaríamos a proposta da semana anterior, fazendo apresentações com os brinquedos, mas que dessa vez eles trabalhariam em duplas ou trios. Para começar a atividade propus uma brincadeira de aquecimento. Começamos com o telefone sem fio, brincadeira que não fazíamos há tempos. As crianças se organizaram em roda e nos aproximamos. Discutimos quais seriam as regras da brincadeira e o que precisávamos fazer para que desse certo. Marcos quis começar 64 inventando uma frase. Com algumas modificações a frase foi transmitida e as crianças riram. “Cala a boca e respeita a polícia”, foi a frase com que Marcos havia começado a brincadeira. Na seqüência Fernando quis apresentar sua frase. Depois de pensar um pouco a falou no ouvido de Jonas, que olhou para o grupo assustado e sem entender. Fernando não conseguia decidir qual frase dizer e começou falar um monte de coisas, mudando o conteúdo da frase a todo momento. Chegou a verbalizar alto essas tentativas numa frase que tentava dizer algo como “o lápis risca a lousa e o apagador apaga a lousa”. Perguntou então se podia fazer uma frase de terror e não conseguiu articulá-la também. Maria quis começar a terceira rodada. Quando estava preparada para falar Fernando mudou de lugar para que então fosse a última criança da roda. Sentou-se depois de Roberto, que não gostou da mudança porque também queria ser o último. Nenhum dos dois queria ceder e Fernando se deitou no chão, negando-se a conversar e a sentar-se. As crianças olharam para mim e uma tensão correu o grupo. Sinalizei que sem resolvermos o problema não poderíamos mais continuar a brincadeira. Diante da paralisia criada pela dinâmica gerada por Fernando propus que eles se dividissem em duplas ou trios para que pudéssemos brincar com o material que eles já conheciam. Roberto quis ser o primeiro a apresentar, pois no encontro anterior ele seria o próximo a se apresentar e foi prejudicado pela desorganização do grupo. Como dupla escolheu Maria “porque ela é boa de história” (sic). Vendo que Marcos e Fernando já haviam fechado uma dupla e começado a conversar e que Jonas ficara 65 de fora dos grupos e não parecia conseguir participar do grupo nem da atividade proposta, perguntei a ele se não queria participar de um trio com Maria e Roberto. Fernando e Marcos estavam sentados num canto e conversavam sobre alguma história que tinha acontecido. Marcos, bem articulado para se expressar e percebendo que eu me aproximava, pediu que me afastasse, pois o assunto era particular. Perguntei se eles tinham entendido qual era a atividade e Marcos já respondeu me explicando as instruções. Pedi para irem pensando na história que apresentariam e me afastei. Jonas continuava com seu comportamento um pouco apático e solitário e chegou a se deitar no chão algumas vezes e a ficar parado olhando para o nada. Enquanto Maria e Roberto escolhiam o material e bolavam o nome da história ele ensaiava montar os blocos, como se estivesse afastado de tudo, inclusive dele mesmo. Perguntei que personagem ele gostaria de ser entre os animais ou bonecos: respondeu que seria o leão e que este seria bonzinho. Jonas ainda tinha dificuldades de integração, mas mostrando-se receptivo a minha ajuda perguntei. Perguntei a Roberto e Maria se haveria lugar para o leão de Jonas na história que eles estavam criando, e eles não me responderam. Jonas continuava um pouco alheio a eles, mexendo nos blocos, sem pegar no leão. Deixei de insistir para que ele participasse, mas na hora da apresentação ele foi solicitado por Maria para representar o menino negro e participou da encenação. 66 A história criada, principalmente por Maria, envolveu duas famílias, uma branca e a outra negra. A branca morava na parte de cima da caixa e na parte de baixo, o interior da caixa, moravam os negros. A mãe branca, representada por Maria, disse ao filho, também comandado por ela, que não queria que ele brincasse com o menino negro de Jonas para não pegar piolho. Quando todos se deitaram para dormir o menino branco fugiu. A mãe acorda no meio da noite e começa a procurálo. Chama a empregada, representada por Roberto, e pergunta onde está o filho, mas ela não sabia responder. Jonas pega o menino branco e o esconde no meio dos outros bonecos negros. No fim Maria fez com que o menino branco aparecesse para a mãe, que disse que a partir daquele dia o filho podia brincar com o outro menino, “é só não encostar muito a cabeça” (sic). A história continua com a chegada da tia, irmã da mãe, e do pai do menino branco, comandados por Maria, que estão voltando de uma viagem. A tia está grávida e a mãe e a empregada a ajudam a ter o bebê. Na cena do nascimento todas as crianças do grupo se aproximaram para ver melhor o que estava acontecendo. A criança nasceu e Maria agradece a todos que ajudaram no parto. As duas famílias ficam amigas e assim termina a história. A apresentação manteve o interesse das crianças, tanto as que estavam participando quanto as da platéia, apesar de eu ter tido que convencer Marcos e Jonas a sentarem ao meu lado, deixando de lado os brinquedos, para prestarem atenção à apresentação, o que acabou acontecendo depois de eu insistir algumas vezes, mas sem maiores discussões. 67 A outra dupla pediu um instante para se organizar e saiu da sala para combinar a cena, voltando logo em seguida. Fernando gritou com as outras crianças pedindo atenção e eu sinalizei que na apresentação dele ele queria ser ouvido, pois era uma coisa importante, e que os outros também deveriam gostar de ser ouvidos. Eles arrumavam os bonecos e o cenário quando um menino veio dizer, a pedido da coordenadora, que Fernando descesse para almoçar e ir ao reforço escolar. Marcos ficou frustrado, abaixando a cabeça no meio dos braços. Depois levantou e pediu para Fernando ficar mais um pouco, para que pudessem fazer a apresentação “rapidinho” (sic). Eles finalmente começaram e quem dava as orientações era Marcos, dizendo a hora que Fernando, um pouco desorientado, falava e lembrandoo da fala que combinaram. Logo percebi que era a representação de uma piada que se passa na escola. A professora pediu de lição de casa “três palavras” (sic), mas que na verdade eram três frases. Marcos fez o papel da professora e Fernando era o aluno que, depois de terminada a aula, ia pra casa e pedia ajuda à família. Cada pessoa da família diz uma frase que era mais ou menos assim: “não tô nem aí”, “vou gostar”, “superhomem”. No dia seguinte a professora perguntava quem havia feito a lição e o aluno dizia a primeira frase: “não tô nem aí”. Então ela perguntava se ele queria ir para a diretoria, quando ele responde com a segunda frase. Na diretoria o diretor perguntava quem ele pensava que era, e ele respondia a terceira frase. E assim terminava a apresentação. 68 Maria virou para mim e disse que a história que eles apresentaram era uma piada. Nós encerramos batendo palmas e depois guardamos todo o material. Vinícius não queria arrumar a sala e ficou um tempo deitado no chão brincando de guerra com os soldadinhos. Depois que eu insisti que o grupo estava terminando e ele precisava guardar os brinquedos colocou tudo no saquinho e foi embora. 69 7. ANÁLISE A análise é um exercício que visa a identificar relações da prática com a teoria e ao mesmo tempo as distâncias que as separam, o que sintetiza uma aprendizagem por meio da reflexão. Nessa análise pretendo fazer uma leitura crítica do que foi uma de nossas oficinas terapêuticas e, para isso, escolhi um encontro que fosse atual e que contivesse elementos representativos de como tem sido nosso trabalho, inclusive com as diferenças que este apresenta com relação a uma psicoterapia de grupo “clássica”, as dificuldades práticas e as dúvidas sobre a atuação. No nosso projeto realizamos algumas propostas com o objetivo de trabalhar um tema ou uma dinâmica que percebemos no grupo. Já havíamos percebido que nossas crianças gostam de representar histórias. Apesar da dificuldade que alguns integrantes possuem para a construção de enredos, na relação interpessoal e na auto-expressão, já havíamos criado oficinas a partir dessa idéia. No entanto nunca tínhamos usado brinquedos e bonecos para intermediar as representações que, nesta ocasião, pareceram ser uma técnica interessante para dar continuidade ao trabalho que vinha sendo desenvolvido pelo grupo. A preparação de um enredo, que pode se modificar no desenrolar da história, a escolha dos elementos que farão parte da brincadeira, a apresentação para o grupo – tudo isso exige maturidade e organização psíquica. Por isso a proposta do trabalho em subgrupos foi fundamental para auxiliar as crianças que ainda não desenvolveram essas habilidades, e também para que ficassem menos ansiosas com a apresentação para o grupo. Não observei sinais de desorganização interna 70 nas crianças em função das dificuldades da atividade, como ocorreu no encontro anterior. Criar a base para uma história e depois representá-la não é uma tarefa fácil, principalmente porque demanda comunicação verbal e uma estrutura narrativa, elementos do nível cognitivo, que englobam operações conceituais e antecipatórias num trabalho mental e abstrato. O componente simbólico também está sendo estimulado por meio dos brinquedos e bonecos que ganharam vida na brincadeira, expressão e atualização de significados de experiências anteriores. Contar uma história, inventada por eles, na forma de brincadeira mobiliza os diferentes níveis do E.T.C., inclusive o criativo, e podemos observar como nessa atividade eles se misturam e surgem intersecções do nível cognitivo com o perceptual na hora da criação e da escolha do material, o afetivo com o simbólico e o cinestésico quando as crianças estão envolvidas com seus papéis na apresentação, dentre outras combinações. A brincadeira compartilhada, favorecida pela apresentação da “peça“ para o resto do grupo proporcionou uma integração, na qual todos participaram de uma emoção comum, como no momento do nascimento da criança na história de Maria. Além do mais as crianças puderam experimentar a valorização de uma criação deles, vivenciando suas histórias de maneira protegida e simbólica. A atividade inicial, do telefone-sem-fio, tinha o intuito de favorecer a descontração e a concentração e de funcionar como uma sensibilização, por meio do foco na 71 percepção auditiva favorecendo a organização ao invés da regressão. Esta brincadeira promove um envolvimento e entrosamento do grupo, deixando as crianças mais calmas e preparadas para a atividade de expressão livre que veio na seqüência. O apontamento para a discussão das regras do telefone-sem-fio vai ao encontro da necessidade de enfatizar que temos que chegar a um consenso a respeito do que vale ou não vale para nós enquanto grupo. Há muitas formas de brincar, mas precisamos escolher uma que todos conheçam e da qual possam participar. Logo no início da oficina que analisamos me percebo fazendo algo que não sei ao certo se seria o papel do terapeuta ou do educador. Chamo Jonas para ser meu ajudante na preparação da sala e, com a proximidade de estarmos sozinhos, tento fortalecer o vínculo e também a importância dos combinados feitos pelo grupo, que são uma das colunas sustentadoras do setting terapêutico. A questão dos combinados do grupo está presente em quase todos os encontros. Quando relembro o grupo da frustração e dos conflitos da semana anterior também acho que essa não é uma atitude comum nas psicoterapias, mas talvez o seja na prática pedagógica. Na verdade uma intervenção como esta talvez tenha um poder limitado, pois apesar de tentar assinalar que o grupo tem uma responsabilidade pelo que ocorrerá nos encontros, não estou trabalhando com o fato no momento em que ele acontece, ajudando-os a perceber a situação e os sentimentos vividos naquele final de oficina da outra semana. Eu poderia ter trazido para o grupo a discussão do que aconteceu no momento do conflito, para que os outros integrantes também 72 desempenhassem uma função reguladora dos combinados, que é diferente do limite trazido por um adulto. Marcos parece trazer o tema do autoritarismo e do limite, ou regra, imposto com violência na frase ”Cala a boca e respeita a polícia”. Essa é a forma pela qual eles provavelmente reconhecem no seu cotidiano as regras, que separam o que pode ser feito do que não pode. O policial é a figura que representa a lei, e esta é arbitrária e autoritária, não favorecendo a construção interna de uma medida justa como parâmetro nas relações. Será que nossa experiência com essas crianças será capaz de criar um modelo diferente de limite que, talvez, possa ser internalizado? Esperamos que sim, mesmo sabendo que na maioria das vezes as regras que prevalecem para a maioria das pessoas na nossa sociedade são perversas, no sentido de restringirem os desejos sem proporcionar um ganho significativo, isto é, que possa ser reconhecido socialmente como de valor. Tentamos exercer no grupo a função de autoridade com respeito pelas diferenças e necessidades individuais, sem perder de vista a noção do bem-comum e, com isso, ajudá-los no desenvolvimento da socialização e dos relacionamentos interpessoais. Essa intervenção parece estar baseada na nossa atitude interna como pessoaterapeuta, a partir de nossos valores, conceitos e da nossa, ainda incipiente, experiência em lidar com crianças. Nossa figura deve servir como um modelo positivo de adulto com o qual ele possa se identificar. 73 Ainda no aquecimento, quando Fernando se propõe a dizer uma frase e, mesmo depois de ter falhado ainda tenta de novo, parece que está se sentindo mais confiante para brincar no grupo. No entanto fica clara sua dificuldade em formular uma frase simples. Talvez porque seja novo no grupo, talvez pela ansiedade gerada na situação de exposição e de dificuldade, talvez devido a problemas no seu desenvolvimento cognitivo que geram um pensamento confuso. Não acompanhamos Fernando a tempo suficiente e nem possuo, no momento, informações mais pormenorizadas a respeito de seu histórico para levantar outras hipóteses sobre o significado desse comportamento. No entanto é algo que fica registrado para que possa ser mais pesquisado. Por outro lado, podemos perceber que a frase que ele formula não tem um conteúdo pessoal. Isso pode ser um sinal de que ele ainda não se sente totalmente seguro para se mostrar no grupo ou, ainda, pode querer nos impressionar com uma frase que segue o modelo das que ele aprende na escola. A mudança de lugar de Fernando, logo após sua tentativa fracassada em iniciar a brincadeira parece ser significativa da dinâmica dessa criança e mostra que algo estava ocorrendo com ele. Fernando reage mobilizado por um sentimento que não consegue verbalizar – acting – que talvez não seja nem consciente nele, e se coloca literalmente no meio da brincadeira interrompendo-a. Eu não tive clareza suficiente no momento sobre qual era a dinâmica que ocorria para ajudá-lo a entrar em contato e elaborar esses sentimentos de outra maneira, sem que precisasse destruir a brincadeira. 74 Já pude observar em outros momentos Fernando se retirando das brincadeiras quando é frustrado e não obtém o brinquedo ou o lugar que ele acha que merece, ou que gostaria de ter. Ele, porém, me surpreendeu dessa fez por não ter simplesmente se excluído da brincadeira e se afastado do grupo, o que é um sinal positivo. O que fez foi ficar no grupo e impedir que ele continuasse ou que a situação fosse discutida, agindo como um sabotador. A partir daí surge um conflito que interrompe a atividade, e a coesão do grupo fica ameaçada. No entanto esse “algo” que irrompe na dinâmica grupal, desarticulando o grupo com relação à proposta de trabalho, que é a brincadeira, gera uma tensão no grupo como um todo, e a imediata organização para buscar uma saída. As crianças olharam para mim, para que eu, no papel de líder, resolvesse a situação, como num grupo de pressupostos básicos de dependência. E, devido à minha ansiedade e medo de perder o controle da atividade, logo passei para a próxima etapa da oficina e impedi que eles próprios descobrissem uma solução para o impasse. Roberto apresenta um comportamento bem diferente do que era comum no começo do trabalho em 2004, quando provavelmente diria que não havia problema outra criança passar à sua frente na brincadeira e que aceitaria a situação só para não criar problemas no grupo. Para uma criança com o perfil e a problemática dele um comportamento assim parece ser um avanço, já que está sustentando uma posição que parecia ser importante para ele, por mais que o conflito se instaure. Na hora da representação é interessante observar como Roberto busca se aliar com Maria ao invés de buscar os outros meninos. Parece se sentir mais seguro na 75 companhia das meninas e a escolhe como parceira porque “ela é boa de história” (sic). Tenho a impressão que ele ainda não reconhece o quanto ele também é bom de história, como já demonstrou em outras situações, principalmente nas criações individuais. Há também diferenças notáveis no comportamento de Maria com relação a quando começamos a trabalhar com ela em 2004. Nesse encontro, assim como tem sido freqüente nos grupos, ela pôde demonstrar sua liderança e criatividade, reflexo da ousadia em ser quem ela é. Está mais confiante e desinibida e sua atuação no grupo funciona como um aglutinador e organizador dos outros integrantes. A partir do enredo que ela cria para apresentar logo penso se essa não seria uma história com características de sua vida pessoal. Apesar de termos algumas informações sobre sua família não há nenhuma relação aparente com os elementos do enredo encenado. Sobre as identificações com os papéis da história encenada por Maria, Roberto e Jonas nota-se que Maria se identifica com a mãe branca (sua mãe é branca e seu pai deve ser negro, pois sua pele é morena) e todos os outros papéis principais da história, e ao mesmo tempo é ela quem exerce o papel de liderança nesse subgrupo. Roberto fica com o papel de empregada, que obedece às ordens de Maria. Essa identificação com um papel feminino submisso também pode ser relacionado com os aspectos que conhecemos de sua personalidade e que foram citados anteriormente. Jonas é o menino negro da história, aquele que a mãe branca quer que fique afastado do convívio de seu filho, pois ele é sujo. Na brincadeira ele assume um 76 papel que é correspondente ao que está vivendo no grupo, que é o bode expiatório, aquele que recebe a projeção dos aspectos negativos. Quando Maria e Roberto não respondem à minha pergunta sobre a possível participação do personagem de Jonas na história e, posteriormente, chamam-no para ser o menino de quem ninguém queria ficar próximo, parece que estão dizendo que não queriam brincar com ele e expressando, simbolicamente, um sentimento que deve ter sido originado no encontro anterior, quando a apresentação de Maria foi interrompida, e a de Roberto impossibilitada, devido às atitudes de Jonas, que nesse momento estava mais próximo ao instigador, fazendo desafios e desmobilizando o trabalho do grupo em parceria com outro integrante. Jonas passou o encontro inteiro dócil, porém perdeu toda sua espontaneidade, talvez como resultado da minha conversa com ele no início do grupo, que também deve ter contribuído para que ele fosse o receptáculo das projeções, atitudes negativas e dificuldades que ocorreram na oficina anterior, também nesse encontro. Percebe-se que seu comportamento no grupo ficou tenso, distante, hesitante. Era como se não pudesse relaxar ou viraria de novo o leão, mas não seria o bonzinho dessa vez. Até a agitação motora, a dificuldade de ficar sentado, os pulos e corridas pela sala pararam. Talvez ele estivesse com medo de me aborrecer, de fazer algo que eu estava dizendo que não era certo, ou de fazer qualquer coisa, pois estava se sentindo um nada, desautorizado a ser ele. Jonas ficou um tempo sozinho, mexendo com os blocos, tentando brincar. Infelizmente minha intervenção, na direção de integrá-lo ao grupo, dificultou esse 77 momento particular dele. Nem brincar sozinho ele podia: tem que participar da atividade como quer a terapeuta – parece ser a mensagem que eu transmito com minha interferência. Minha angústia ao vê-lo ali sozinho impediu-me de dar a ele algum tempo para que pudesse se organizar e tomar suas próprias decisões sobre o que faria no grupo e minha atitude não foi o que o ajudou a participar do grupo de forma autêntica, nem se expressar com autonomia e experimentar seu potencial positivo. Como já foi dito anteriormente essa criança tem sérias dificuldades de criar, e possivelmente nos momentos em que está sendo mais espontâneo ele cria problemas para si e para os outros, recebendo inúmeras repreensões pelo seu comportamento, o que deve dificultar cada vez mais que ele possa ser quem é e possa descobrir suas potencialidades e aspectos positivos. Apesar de todas essas dificuldades, minhas e das crianças, há um momento realmente incrível nessa oficina: o nascimento do bebê no fim da história de Maria, Roberto e Jonas. No enredo é a partir do nascimento que a família branca se aproxima realmente da família negra e elas ficam amigas. Foi nesse momento que todo o grupo se reuniu ao redor da caixa, que estava servindo de palco, para participar da cena. Para cada um de nós a cena do nascimento pode evocar diferentes questões pessoais, mas para o grupo esse momento representou a integração dos participantes. O tempo que dei para que pensassem a respeito da apresentação era para que se organizassem e escolhessem alguns elementos que fariam parte da história. Mas eles podiam improvisar, como aconteceu na primeira apresentação. Pode-se perceber que foi no decorrer da apresentação que a história que eles contavam foi 78 sendo formulada, e que este não foi o fim que programaram – se é que haviam idealizado um final. E foi justamente esse momento que ocorreu espontaneamente aquele que mais significou para o grupo. Jonas já não estava retraído, Roberto ajudava ativamente no parto e os meninos que observavam queriam quase que entrar na cena de tão entusiasmados que ficaram. A idéia de apresentar a encenação da piada para o grupo foi de Marcos e devo reconhecer que foi uma solução muito eficiente para a realização da ”tarefa” dada a eles. O enredo já estruturado da piada não permite que haja muita criação ou espontaneidade na apresentação, o que pode indicar que Marcos não está muito à vontade para se mostrar tão abertamente para o grupo. Claro que a escolha da piada e a forma com que é encenada obedecem a motivações internas e muito pessoais, mas mesmo assim não possibilitaram uma experiência como a que foi vivida pelo grupo na apresentação anterior, ficando mais no nível concreto da experiência. Por outro lado fica claro que a última dupla não se apresentou somente para cumprir uma orientação dada por mim. Quando Fernando é chamado para descer e almoçar, instantes antes de começarem a apresentação, Marcos mostra que gostaria de poder mostrar para o grupo aquilo que eles haviam planejado, e pede para Fernando ficar mais um pouco, para que possam encenar a peça. Marcos se identifica com o papel da professora ao mesmo tempo em que exerce o papel de líder da dupla, apesar de ser Fernando quem pede silêncio para o resto do grupo, na tentativa de organizar a apresentação que estavam para começar. 79 Fernando representa o aluno, que é o tempo todo guiado pelas orientações de Marcos. Assim como na maioria de nossas oficinas terapêuticas com crianças, guardar o material usado e arrumar a sala é o encerramento das atividades. Nós não conseguimos ainda estabelecer uma dinâmica para que, no fim, possamos conversar ou pelo menos comentar como foi o grupo, o que cada um mais gostou, ou não gostou, numa espécie de avaliação como é proposta nas oficinas criativas. 80 8. CONCLUSÕES FINAIS Por trabalhar numa instituição com o perfil do C.D.C. nosso papel acaba sendo um pouco diferente do terapeuta clínico, que atende em seu consultório, faz seus próprios grupos e organiza seu trabalho de forma mais independente. Sabemos que temos que ser flexíveis à demanda e às características da instituição, mas com o passar do tempo entendo em quais aspectos é possível adaptar as circunstâncias sem que haja prejuízo no trabalho e quais aqueles que são a própria condição para trabalhar. Um aspecto importante que nos impede de trabalhar mais sistematicamente são os grupos móveis. A presença inconstante das crianças gera configurações diferentes a cada encontro, criando problemas para a análise da dinâmica grupal e, também, para as crianças, que não conseguem prever com quem estarão naquele dia. Deve ser mais fácil entender os processos de um grupo quando podemos acompanhá-lo com a mesma configuração, durante um período de tempo, num setting constante, o que não é o caso do nosso trabalho. Apesar de sempre tentar organizar melhor o grupo e as regras acabamos por criar margem para confusões com a entrada e saída das crianças: ora porque não quiseram participar, outra hora porque faltaram na semana anterior e entram no outro grupo, ou porque achamos que precisam de atendimento naquele dia. Tentamos garantir uma previsibilidade quanto aos grupos e seus dias de atendimento, mas hoje já trabalhamos com os grupos todos misturados. A única coisa que conseguimos 81 realmente organizar foi o número de crianças que atendemos a cada encontro, para que possamos estar mais atentos aos acontecimentos. Creio que as dificuldades com os combinados, junto com outros sinais, como a dificuldade nos relacionamentos com as outras crianças e adultos, e a inibição nas brincadeiras e outras atividades criativas, indicam uma possível dificuldade na entrada para o mundo social, que é um mundo repleto de leis e regras de convivência dentre outros conflitos importantes na estruturação da personalidade e nas relações primárias, que freqüentemente têm origem nas dinâmicas familiares. O trabalho com os pais se faz necessário para que haja alguma mudança significativa nas influências que as crianças sofrem no dia-a-dia. Atualmente há uma psicóloga voluntária que realiza entrevistas com os pais das crianças do C.D.C. e mantemos uma comunicação eventual para trocar informações e discutir alguns casos. Essa troca deveria ser mais constante para estarmos informadas sobre os acontecimentos na vida das crianças, e a psicóloga que acompanha os pais tenha mais informação sobre as dinâmicas que ocorrem no grupo. Um dos problemas no atendimento dessas crianças e seus familiares é que eles não nos procuraram para um trabalho terapêutico e, sim, buscaram o C.D.C. para matricular os filhos no horário em que não estão na escola. Muitos deles não estão interessados em um contato mais próximo com a instituição ou com profissionais da área da saúde. Mas há também aqueles pais que se sentem aliviados ao ser chamados para discutir a situação do filho e sentem que o nosso trabalho oferece um 82 apoio para quem estava sozinho e confuso, precisando conversar com um profissional. Essa também é uma diferença do nosso trabalho em relação à psicoterapia. Na psicoterapia, apesar das resistências, os pais ou familiares mais próximos são responsáveis por levar as crianças à terapia, participar de reuniões com o terapeuta e são implicados no tratamento. No C.D.C. os pais não estão, necessariamente, engajados no atendimento terapêutico dos filhos, muitos deles fogem de qualquer contato mais próximo com a psicóloga ou até com a coordenadora, e não evitam as faltas das crianças nos encontros das oficinas terapêuticas. Em relação à dinâmica do grupo, percebemos que algumas crianças desestabilizam o grupo, impedindo qualquer tipo de trabalho ou gerando grandes confusões nos encontros. A relação pessoal com elas geralmente apresenta características bem diferentes, principalmente quando podem usufruir da atenção da terapeuta com maior exclusividade. Na relação mais íntima as crianças inibidas se tornam mais ativas, e as agitadas se acalmam. Essa constatação já nos fez pensar se deveriam participar ou não do grupo, e se não seria o caso de passarem por um trabalho individual antes de ser inseridas no contexto grupal, ou pelo menos, possuírem um contato terapêutico mais particular paralelamente ao trabalho no grupo. Nossa inexperiência com crianças nos leva muitas vezes a exceder os nossos limites, gritando ou perdendo a calma, na tentativa de organizar o grupo, impedir situações de destruição deles mesmos, das produções e dos materiais. Geralmente esses episódios geram uma grande sensação de fracasso e incompetência, e 83 ocorrem quando não sabemos lidar com uma situação que vai contra uma expectativa nossa. E nos assusta. Disso para um comportamento autoritário e violento com as crianças é um pequeno passo, mas de forma nenhuma é o que desejamos: ao contrário, insistimos em ser uma espécie de modelo diferente dos adultos que são a maioria no cotidiano dessas crianças. Com relação à minha atuação como terapeuta percebo que ainda realizo um papel muito ativo na hora das decisões e que, provavelmente, a terapia seria mais proveitosa se pudessem exercitar a responsabilidade, apresentando suas opiniões e discutindo soluções para os conflitos que surgem. No entanto, em alguns momentos, ser terapeuta é agir como um educador, um adulto que mostra para uma criança quais são as regras que ordenam o mundo social, para que elas possam entender quem são e aonde estão. É delicado trabalhar com pessoas e por isso o terapeuta precisa estar atento e aberto para questionar sua prática, as expectativas que impõe e suas dificuldades. Ser terapeuta não é melhorar as pessoas, mas fazê-las sentirem-se acompanhadas no seu próprio ritmo para que elas mesmas tenham a possibilidade de fazer suas próprias escolhas, mesmo que não acreditemos serem as melhores. Preciso ainda aprender qual é o meio termo entre ser observador e ser participante sem deixar que a participação vire controle e que a terapia seja uma reprogramação de pessoas, mas dando espaço para que exercitem sua autonomia e se descubram, sem que isso se configure como abandono ou a displicência do adulto. 84 Outra dificuldade que percebo no meu trabalho é conseguir perceber e verbalizar as dinâmicas de grupo e individuais no momento em que estão ocorrendo para que minha intervenção seja mais efetiva. O que Zimerman (1993) diz a respeito de utilizar a contratransferência como instrumento auxiliar na compreensão do que se passa no grupo é um manejo difícil, na prática. Geralmente esses insights só ocorrem durante a supervisão ou, antes, na redação do relatório. Se nossas oficinas pretendem criar um espaço no qual as crianças possam ser espontâneas e criativas, temos que pensar se o ambiente que criamos está realmente facilitando esses processos. As propostas feitas na oficina não devem nunca ser sentidas como uma tarefa a ser cumprida e, sim, como um estímulo à espontaneidade e à improvisação. Improvisar possibilita que surja o que há de mais íntimo e pessoal, sem haja racionalização ou negação desses conteúdos. Quando a criança pode improvisar está sendo ela, inteira. Para Winnicott (1975) a brincadeira tem justamente esta capacidade terapêutica. Nossa proposta de trabalho com oficinas terapêuticas fica localizada num território ainda não solidificado, sofrendo influências da psicoterapia, da arte-educação e das terapias expressivas. Por isso ainda predominam muitas dúvidas na nossa atuação, na identidade profissional, nos objetivos que pretendemos alcançar com o grupo e sobre quais os limites que nos dão forma e constituem. 85 9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALLESSANDRINI, C. D. Sistemas Complexos no Desenvolvimento de Competências: O Papel dos Valores Humanos no Aprender Melhor. In anais: V Congresso Brasileiro de Psicopedagogia – ABP. I Congresso Latino Americano de Psicopedagogia. XIX Encontro Brasileiro de Psicopedagogos. São Paulo, 2000. ALLESSANDRINI, C. D. Oficina Criativa e Psicopedagogia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996. ALLESSANDRINI, C. D. Análise Microgenética da Oficina Criativa: Projeto de Modelagem em Argila. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004 AXILINE, V. M. Ludotarapia: A Dinâmica Interior da Criança. Belo Horizonte: Do Professor, 1972. ANDRADE, L. Q. Terapia Expressivas: Arte-Terapia, Arte-Educação, TerapiaArtística. São Paulo: Vetor, 2000. BION, W.R. Experiências com Grupos: Os Fundamentos da psicoterapia de Grupo. Trad. Walderedo I. de Oliveira. Rio de Janeiro: Imago, 1970. CIORNAI, S. Arte Terapia Gestáltica: Um Caminho para a Expansão da Consciência. Revista Gestalt 1 (3): p. 5-31, São Paulo, 1994 FAGALI, E. Q.. A Função da Psicopedagogia na Escola e na Clínica e sua Contribuição para os Processos de Sensibilização e Problematização da aprendizagem. Revista Construção Psicopedagógica. São Paulo, 1 (1): p. 5-10, 1992 FAGALI, E. Q. et al. Oficina Psicopedagógica para o Desenvolvimento do Raciocínio Através da Sensibilização e Linguagem não Verbal. Boletim da Associação Brasileira de Psicopedagogia. São Paulo, 6 (14): p. 39-47, 1987 FERRETTI, V.M.R. Desvelando conhecimentos. Psicopedagógica. São Paulo, 2 (2):p.13-14, 1994 Revista Construção 86 FERRETTI, V.M.R. Qual a contribuição da Abordagem Corporal na Prática Psicopedagógica? Boletim da Associação Brasileira de Psicopedagogia. São Paulo, 7 (15): p.51-53, jun. 1988 GRIMM, J.; GRIMM, W. Os Contos de Grimm. Trad. Tatiana Belinky. 6ª ed. São Paulo: Paulus, 1989. KAGIN, S. LUSEBRINK, V. B. The expressive Therapies Continuum. Art Psychotherapy, 5 (4): p. 171-179, 1978 KAPLAN, H.I.; SADOK, B. J. (Org). Compendio de Psicoterapia de Grupo. 3ª ed. Porto Alegre: ArtesMédicas, 1996. KLEIN, M. Inveja e Gratidão e Outros Trabalhos (1946-1963). Rio de janeiro: Imago, 1985, cap. 8. LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. Vocabulário da Psicanálise. Trad. Pedro Tamen. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. LEVISKY, R. B. Grupos com Crianças. In: ZIMERMAN, D. E.;OSÓRIO, L. C. et al. Como trabalhamos com Grupos. Porto Alegre; Artes Médicas, 1997. cap.28. LUSEBRINK, V. B.. Imagery and Visual Expression in Therapy. New York and London: Plenum press, 1990. OAKLANDER, V. Descobrindo Crianças: A Abordagem Gestáltica com Crianças e Adolescentes. Trad. George Schlesinger. 13ª ed. São Paulo: Summus,1980. OSÓRIO, L. C. et al. Grupoterapia Hoje. 2ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. OSTROWER, F. Criatividade e Processos de Criação. 7ª ed. Petrópolis, R.J.: Vozes, 1989. PELENTO, M. L. A Concepção do Brinquedo na Teoria de Winnicott. In: OSÓRIO, L. C. et al. Grupoterapia Hoje. 2ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. cap. 10. 87 PIAGET, J. INHELDER, B. A Imagem Mental da Criança. Trad. Bruno Charles Magne. Porto: Civilização, 1977. SPITZ, R. A..O Primeiro Ano de Vida. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002 YALOM, I.D.; VINOGRADOV, S. Manual de Psicoterapia de Grupo. Trad. Dayse Batista. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992. WINNICOTT, D. W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. ZIMERMAN, D. E.;OSÓRIO, L. C. et al. Como trabalhamos com Grupos. Porto Alegre; Artes Médicas, 1997. ZIMERMAN, D. E. Fundamentos Básicos das Grupoterapias. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. 88