análise de parâmetros biomecânicos na marcha de
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ANÁLISE DE PARÂMETROS BIOMECÂNICOS NA MARCHA DE CRIANÇAS COM PÉ TORTO CONGÊNITO Renato José Soares1, Mariana Borsoi Moraes1,4, Rafael Araújo Boaretto1,4, Augusto Gaeta Bernardi1,4, Fernanda Michelone Acquesta 1, Kátia Brandina1 , Daniel Zekhry1, Laura Fernanda Alves Ferreira 2, Luis Mochizuki1,3, Julio Cerca Serrão1, Alberto Carlos Amadio1 1 Laboratório de Biomecânica – Escola de Educação Física e Esporte – Universidade de São Paulo – São Paulo. 2 3 4 Hospital Universitário – Universidade de São Paulo – São Paulo. Escola de Artes Ciências e Humanidades – Universidade de São Paulo – São Paulo. Grupo PET - Escola de Educação Física e Esporte – Universidade de São Paulo – São Paulo. Resumo: O atual trabalho investigou variáveis biomecânicas, na fase de apoio da marcha, em crianças com acometimento unilateral de pé torto congênito, tratadas de forma cirúrgica. Foi utilizada uma plataforma de pressão plantar (EMED System, Novel CO.) montada em uma passarela de dez metros de comprimento, na qual as crianças caminharam em velocidade auto-selecionada. Os parâmetros relativos à pressão plantar foram analisados em quatro áreas do pé: retropé, mediopé, antepé e artelhos. Os resultados evidenciaram que, para ambos os apoios, nas crianças com PTC, existiram diferenças em parâmetros relativos ao pico de pressão, da área de contato e da máxima força de reação do solo vertical máxima, quando comparados com os dados de um grupo controle. Apesar dessas crianças não apresentarem dificuldades funcionais no dia a dia, as diferenças nos parâmetros biomecânicos encontrados, para essa população, apontam diferentes estratégias durante a marcha. Palavras Chave: pé torto congênito; pressão plantar, força de reação do solo, marcha. Abstract: The aim of this study was to evaluate biomechanical parameters of the stance phase of children undertaken unilaterally by clubfoot after surgical treatment, while they walked at auto selected velocity on 10 meters long walkway with a pressure plate (EMED System, Novel CO.) inserted on it. Those parameters were analyzed considering 4 different areas: Rear foot, Middle foot, Forefoot and Toes. There were differences on both feet on the characteristics of peak pressure, contact area and maximum vertical ground reaction force of children with this pathology when compared to a control group. Despite there were no functional lost on daily activities, the differences encountered on these biomechanical parameters of these population, had pointed different strategies during gait. Keywords: clubfoot; plantar pressure, ground reaction force; gait. INTRODUÇÃO O pé torto congênito idiopático (PTC) é a O tratamento, cirúrgico ou conservador, deformidade congênita de maior prevalência na deve ser realizado precocemente para a obtenção ortopedia. Sua incidência no Reino Unido é de da correção das deformidades do pé. Os métodos aproximadamente 1:1000 nascidos vivos [1]. No clássicos para a determinação da gravidade do Brasil acomete cerca de 2:1000 nascidos vivos [2]. acometimento e da evolução do tratamento A denominação mais comum encontrada na incluem o exame clínico especializado, imagens literatura é a de pé torto eqüinovaro congênito, ou fotográficas e radiológicas, filmes e questionários talipes eqüinovarus. O termo “talipes” refere-se à específicos. Nas últimas décadas, os métodos de centralização da deformidade no tálus, o “eqüino” avaliação biomecânica evoluíram muito, fato que à flexão plantar fixa e o “varo” à rotação medial do trouxe novas perspectivas para o entendimento da médio e antepé [3]. locomoção humana. Atualmente a análise da marcha constitui um parâmetro importante na 1202 Instrumento de medição avaliação destes pacientes. Investigações sobre a pressão plantar e força de reação do solo (FRS) são utilizadas tanto para a identificação de parâmetros Foi utilizada uma plataforma de pressão do biomecânicos em crianças saudáveis [4,5,6] quanto sistema Emed - Novel GmbH (Figura 1), que em situações patológicas [7,8]. Considerando que possui dimensões de 582x340x20 mm e uma área crianças com história de PTC, mesmo após de sensores com 360x190 mm. Essa plataforma tratamentos alterações possui 1377 sensores com resolução de 2 anatômicas e funcionais, tal investigação pode sensor/cm2 [9]. A plataforma foi montada e auxiliar na melhor compreensão de possíveis nivelada na porção média de uma passarela de 10 características desse grupo populacional. m de distância. Foram realizados registros dos corretivos, Portanto, o apresentam objetivo do trabalho foi dados com freqüência de amostragem de 70 Hz. investigar a marcha de crianças com PTC, tratadas de forma cirúrgica, por meio da investigação de parâmetros de pressão plantar e de FRS. MATERIAIS E MÉTODOS Amostra Participaram da pesquisa cinco crianças com PTC unilateral, sem histórias de lesões músculo Figura 1 - Ilustração do sistema Emed (Novel esqueléticas nos últimos seis meses, sem queixas de dor nos pés e sem limitações funcionais nas GmbH). atividades habituais (6,8±0,9 anos, 30,0±5,1 kg, 1,30±0,05 m). Para compor o grupo controle, Procedimento experimental foram selecionadas cinco crianças, sem história de acometimento do PTC, assintomáticas e sem Os voluntários foram instruídos a andar em história de trauma nos últimos seis meses (7,6±0,7 velocidade natural ao longo da passarela de 10 m anos, 26,3±4,3 kg, 1,30±0,06 m). de comprimento na qual estava montada a As implicações éticas que envolveram os plataforma de pressão. A velocidade média de procedimentos desse estudo foram analisadas e deslocamento dos voluntários foi determinada por aprovadas pela comissão de ética local. Os meio do cálculo da razão entre uma distância responsáveis legais pelas crianças assinaram o conhecida pelo tempo percorrido nessa extensão. O Termo de Consentimento Livre Esclarecido. tempo foi mensurado com um cronômetro. Foram realizadas três coletas com registros apenas para o apoio direito. O procedimento foi repetido para o apoio esquerdo. 1203 Variáveis analisadas Para comparação das variáveis, foi utilizado na análise de variância (ANOVA) com um fator e Para as análises dos dados, por meio de um post-hoc TUKEY para amostras desiguais. Foi programa específico (Automask – 4 mask standard analisado o efeito da perna nas comparações entre division, Novel GmbH), os pés foram divididos em PTC lado acometido (Acom), PTC lado não quatro áreas: retropé, mediopé, antepé e artelhos. acometido (NAcom) e controle (Cont.), com nível As divisões entre retropé e mediopé e entre de significância p ≤ 0,05. Previamente a este teste, médiopé e antepé foram definidas usando 73% e foram realizadas investigações exploratórias dos 45% do comprimento total do pé respectivamente. dados, com análises mediante as observações de Já as divisões referentes aos artelhos foram medidas qualitativas, por meio de histogramas com definidas pelo gradiente de pressão ao redor do sobreposição da curva normal e teste estatístico de pico dessa magnitude na região (Figura 2). Shapiro-Wilk (SPSS, versão 11.5). RESULTADOS As maiores áreas de contato do pé com o solo foram encontradas no grupo controle, com tendência de menores valores para o lado acometido do grupo com PTC. Nas comparações entre áreas, constatou-se para o retropé, mediopé e antepé, existiram diferenças entre grupos. Em todas essas regiões, em ambos os lados do grupo com PTC, as áreas de contato foram menores, com tendência, na região do mediopé, de diminuição Figura 2 - Divisão das áreas da planta do pé: desses valores para o lado acometido (Tabela 1). retropé, mediopé, antepé e artelhos (Automask – 4 mask standard division, Tabela 1: Área de contato (cm2) nas regiões Novel GmbH). avaliadas, durante marcha das crianças. PTC lado acometido (Acom), PTC lado Por meio de programas da Novel GmbH, não acometido (NAcom) e controle que permitem obter os parâmetros de interesse na (Cont.). condição experimental, foram analisadas, em cada Área de contato (cm2) uma das áreas pré-determinadas, os seguintes dados: 1) área de contato; 2) pico de pressão; 3) n Acom NAcom Cont. 15 17,6± ±4,5 16,93± ±1,5 25,67± ±3,4 Mediopé* 15 12,3± ±3,6 16,58± ±3,1 21,03± ±2,4 24,9± ±14,2 25,1± ±3,1 36,8± ±2,4 Retropé* máxima FRS vertical. A intensidade da FRS foi normalizada pelo peso corporal das crianças. Tratamento estatístico dos dados Antepé* 15 Artelhos ±10,5 10,92± ±3,4 11,83± ±3,4 15 11,83± * Cont. > Acom./ NAcom (p ≤0,05) 1204 DISCUSSÃO Em todos grupos, para o pico de pressão plantar, não houve diferença para o retropé e artelhos. Para o mediopé, os menores valores A locomoção humana caracteriza-se por encontrados foram para o grupo com PTC lado não apresentar movimentos complexos. O estudo de acometido (Tabela 2). suas especificidades, por meio da metodologia Tabela 2: Pico de pressão nas regiões avaliadas, utilizada no atual trabalho, pode contribuir para o durante marcha das crianças. PTC lado entendimento dos mecanismos que garantem um acometido movimento eficiente de crianças com PTC. (Acom), PTC lado não Foram observadas diferenças entre os grupos acometido (NAcom) e controle (Cont.). controle e PTC para o a força vertical máxima e Pico de pressão (KPa) n Acom Cont. para a área de contato. Foi verificado que no grupo 238± ±68,7 com PTC, indiferentemente do lado, apresenta 66,4± ±20,5 128,3± ±35,8 diferenças na magnitude das variáveis avaliadas 161± ±39 259± ±60,3 durante 172± ±54,2 comparado com um grupo controle. Este achado NAcom ±71,6 202,1± ±38,1 15 201,8± Retropé ±65,4 Mediopé* 15 106,1± ±87,2 15 186,3± Antepé ±62,2 170,4± ±87,1 15 140,4± Artelhos a marcha auto-selecionada, quando está de acordo com a literatura sobre o assunto [8]. * NAcom. < Acom./ Cont. (p ≤0,05) No entanto, de forma geral, foi encontrada apenas uma tendência para o desequilíbrio entre Para a FRS vertical, foram encontradas apoios maiores magnitudes para o grupo controle, nas não teve PTC, com uma FRS do lado acometido das crianças com PTC. menores na região do antepé do lado acometido A artelhos com mediopé, além de menor magnitude da máxima entanto, uma tendência das magnitudes serem dos crianças diminuição na área de contato na região do regiões do retropé, mediopé e antepé. Existiu, no região das Muito se discute sobre as causas destes diferenças desequilíbrios [10]. A tendência de menor área de significativas entre os grupos (Tabela 3). contato do lado acometido está de acordo com características Tabela 3: Força vertical máxima (%PC) durante marcha das acometido crianças. PTC FRS encontrada pode estar relacionada com a hipotrofia do músculo tríceps sural, descrita na FRS Máxima (%PC) Retropé* NAcom literatura sobre o assunto [11, 12], associada com Cont. ±41,6 143,5± ±19,2 152,9± ±70,6 15 131,4± Mediopé* 15 50,3± ±34,9 46,0± ±34,5 87,5± ±33,6 Antepé* ±35,1 140,0± ±17,1 214,3± ±57,1 15 125,7± Artelhos 15 67,5± ±56,6 66,8± ±24,4 dessa menor nesse segmento. Já a menor magnitude da (Acom), PTC lado não Acom gerais população, as quais demonstram um tamanho de pé lado acometido (NAcom) e controle (Cont). n antropométricas 76,7± ±31,1 * Cont. > Acom./ NAcom (p ≤0,05) 1205 os procedimentos cirúrgicos adotados e com as deformidades residuais existentes após tratamento [11, 12]. CONCLUSÃO [5] Kellis E. Plantar pressure distribution during barefoot standing, walking and landing in preschool boys. Gait and Posture, 2001, 14:92-97. As assimetrias encontradas de parâmetros [6] Machado DB, Hennig E, Riehle H. Plantar pressure distribution in children: movement patterns and footwear influences. Brazilian Journal of Biomechanics. 2001, 2:19-25. biomecânicos na marcha em velocidade autoselecionada indicam que apesar das crianças não relatarem dificuldade funcional, persistem desequilíbrios. O entendimento de características [7] Widhe T, Berggren L. Gait analysis and dynamic pressure in the assessment of treated clubfoot. Foot & Ankle International. 1999, 15(4): 186-90. funcionais, analisadas de forma quantitativa, pode auxiliar na orientação e conduta clínica de crianças com história de PTC. [8] Favre P, Exner GU, Drerup B, Schimid Wetz HH, Jabob HA. The contralateral foot children with unilateral clubfoot: a study pressures and forces involved in gait. Journal Pediatric Orthopedics. 2007. 27(7):54-59. AGRADECIMENTOS Agradecemos ao apoio da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior [9] (CAPES) e Secretaria de Educação Superior (SESu) – Ministério da Educação. Agradecemos também aos alunos vinculados D, in of of Novel Internet site address: http://www.novel.de/productinfo/systemsemed.htm em 23/12/2003 [10] Theologis TN, Harrington ME, Thonmpsom N, Benson MKD. Dynamic foot movement in children treated for congenital talipes equinovarus. The Journal of Bone and Joint Surgery. 2003, 85(4): 572-77. ao Programa de Educação Tutorial da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (PET-EEFEUSP). [11] Otis JC, Bohne WH. O. Gait analysis in surgically treated clubfoot. Journal of Pediatric Orthopedics. 1986, 6(2):162-64. REFERÊNCIAS [1] Wainwright AM, Auld T, Benson, MK, Theologis, TN. The classification of congenital talipes equinovarus. The Journal of Bone and Joint Surgery. 2002, 84: 1020-24. [12] Karol LA, Concha MC, Johnston CE. Gait analysis and muscle strength in children with surgically treated clubfeet. Journal Pediatric Orthopaedic. 1997, 17(6):790-95. [2] Sodré H. Pé torto eqüinovaro congênito. In: BRUSCHINI S. Ortopedia pediátrica. 2. ed. São Paulo: Atheneu, 1998. p.124-130. e-mail: [email protected] [email protected] [3] Richards BS. Atualização em conhecimentos ortopédicos: pediatria. São Paulo: Atheneu, 2002. p.617-645. [email protected] [4] Hennig EM, Rosenbaum D. Pressure distribution patterns under the feet of children in comparation with adults. Foot & Ankle. 1991, 5(11): 306-11. 1206