Mobilidade linguística e cultural em A filha do restaurador de ossos

Transcrição

Mobilidade linguística e cultural em A filha do restaurador de ossos
Mobilidade linguística e cultural em
A filha do restaurador de ossos de Amy Tan
Valéria Silveira Brisolara*
Eliane Lopes**
Resumo
Amy Tan é uma das mais destacadas autoras contemporâneas escrevendo em língua inglesa
nos Estados Unidos. Filha de imigrantes chineses, sua escrita é marcada pela cultura e língua
chinesas. Na obra A filha do restaurador de ossos, Amy Tan nos apresenta personagens divididos entre duas culturas e dois idiomas distintos e seus movimentos por entre esses dois
universos linguísticos e culturais a fim de conciliá-los. Este trabalho analisa elementos do
romance à luz dos conceitos de mobilidade linguística e mobilidade cultural.
Palavras-chave: Mobilidade linguística. Autoria. Língua inglesa. Cultura.
Introdução
Amy Tan é uma das mais destacadas autoras contemporâneas escrevendo em língua inglesa nos Estados Unidos. Filha de imigrantes chineses,
sua escrita é marcada pela cultura e língua chinesas. Suas obras exploram as
mobilidades culturais, principalmente através de uma análise das relações
entre mães e filhas, que servem de pano de fundo para discussões sobre língua e cultura. Seus romances foram traduzidos para vários idiomas e uma
de suas obras mais marcantes, A filha do restaurador de ossos, foi publicada no
Brasil em 2002. O título da obra já remete a questões culturais, pois chama
nossa atenção e nos leva a pensar a respeito do que seria um restaurador de
ossos, um elemento estranho à nossa cultura.1
A filha do restaurador de ossos traz a história de Lu Ling, que imigrou
para os Estados Unidos, fugindo da Segunda Guerra Mundial, mas manteve suas tradições chinesas, e de sua filha americana, Ruth, que tem dificuldade em entender sua mãe e, principalmente, suas atitudes com relação à
*
**
1
Doutora em Letras. Professora dos cursos de Letras e do Programa de Pós-graduação em
Letras do Uniritter. Tradutora Juramentada. (E-mail: [email protected]).
Aluna do curso de Letras do Unilasalle. Bolsista de Iniciação Científica no Projeto Mobilidade Linguística durante os anos de 2009 e 2010. (E-mail: [email protected]).
Na verdade, o título original da primeira edição da obra, publicada em 2001 nos Estados
Unidos, era The Bonecutter’s Daughter, mudado para The Bonesetter’s Daughter e editado
nos Estados Unidos em 2001.
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família e ao passado. Assim, Amy Tan nos apresenta Ruth, uma personagem
dividida entre duas culturas e dois idiomas distintos, e suas tentativas de
conciliar esses dois universos linguísticos e culturais, deslocando-se por entre eles e tentando traduzir os elementos culturais de um para outro universo. Ruth encontra-se no que Greenblatt (2009, p. 4), ao falar de mobilidades
culturais, chama de uma zona de contato cultural, pois há uma negociação
cultural. Isso acontece frequentemente no caso das literaturas migrantes ou
de exílio, em que os autores lidam com mais de um universo linguístico e
cultural e, frequentemente, fazem dessa negociação cultural o tema de suas
obras. Dentro dessa perspectiva, a obra de Tan tematiza as mobilidades culturais que a sociedade contemporânea exige.
Nesse contexto, este trabalho tem como objetivo apresentar a obra
A filha do restaurador de ossos de Amy Tan e analisar elementos relacionados
à mobilidade linguística e cultural presentes no romance.
1 Mobilidade linguística e cultural
Muitos autores que escrevem ficção em língua inglesa nos Estados
Unidos têm suas vidas marcadas pela migração, pelo exílio e pelo abandono
da língua materna. Sua escrita é frequentemente marcada por questões identitárias e relacionadas à mobilidade cultural e ao que consideramos uma
mobilidade linguística. Esse fenômeno foi identificado, nomeado e descrito em “Mobilidade linguística” (BRISOLARA, 2010). Muitos desses autores
tomam o exílio, em todas as suas nuances, como seu tema central. Esses
autores são sujeitos que se movem por e entre línguas e tematizam sua mobilidade linguística e cultural. No caso de Amy Tan, sua mobilidade se deve
ao fato de sua família ser de imigrantes chineses, e, em virtude disso, sua
língua materna ficar marcada pela cultura e língua chinesas, assim como a
de Ruth, a protagonista da obra A filha do restaurador de ossos, que tematiza
esse processo de negociação linguística e cultural.
Wendy Lesser explora essa questão em sua obra The genius of language
(2004). Na obra, Lesser escolheu 15 renomados escritores que escrevem em
língua inglesa e pediu para que escrevessem sobre suas experiências como
escritores divididos entre suas línguas maternas e seus idiomas de adoção.
Amy Tan foi uma das escritoras que Lesser escolheu. Em seu ensaio intitulado “Yes and no”, Tan fala de seus sentimentos em relação a sua família bicultural e bilíngue: “Como qualquer criança de pais imigrantes sabe, há um
tipo especial de duplo vínculo anexado ao conhecer duas línguas.”2 (2004,
p. 28). Nesse ensaio, Tan relaciona a questão da linguagem à da cultura através do uso do sim e do não na língua chinesa e na língua inglesa. Tan afirma:
“O que é inglês? O que é chinês? As categorias se manifestam por elas mesmas: passiva e agressiva, experimental e afirmativa, indireto e direto. E eu
percebi que elas são apenas variações do mesmo tema: que pessoas chinesas
são discretas e modestas” (2004, p. 29).
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As traduções neste trabalho são de nossa autoria.
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Em outro ensaio, intitulado “Mother tongue” (1999), Tan discute a
sua mobilidade linguística e cultural. No caso de Tan, sua língua materna
é a língua de sua mãe, o inglês que ela falava com todas as suas imperfeições e marcas do chinês, do qual Tan admite ter sentido vergonha (1999,
p. 352). Segundo a autora, esse inglês macarrônico impecável é sua língua
materna (1999, p. 352). Assim, Tan reconhece que sua língua materna não
é nem o chinês nem o inglês padrão, mas o inglês marcado pelo chinês que
sua mãe falava: um híbrido. A esse respeito, é interessante observar que o
falante bilíngue, como sua mãe, é frequentemente subestimado, pois, para
Romaine (2007, p. 525), o problema é que sempre houve uma tendência em
avaliar a competência bilíngue como a soma da aquisição da competência
em cada uma das duas línguas ao invés de um sistema único que permite
a escolha dos recursos a partir das duas línguas. Com relação a esse sentimento, Tan afirma:
Eu acreditava que seu inglês refletia a qualidade do que ela
tinha para dizer. Isto é, porque ela os expressava imperfeitamente, seus pensamentos eram imperfeitos. E eu tinha
muitas evidências: o fato de que as pessoas nas lojas, nos
bancos e nos restaurantes não a levavam a sério, não a atendiam bem, fingiam que não a entendiam, ou mesmo agiam
como se não estivessem a ouvindo (1999, p. 352).
Ela mesma admite que o fato de o inglês de sua mãe ser considerado limitado fazia com que ela e outros a considerassem uma pessoa
limitada. O fato de que muitas pessoas acabavam, às vezes, até não entendendo o que sua mãe falava, e não entendiam como não “dominava”
o inglês após tantos anos nos Estados Unidos, chamou a atenção de Tan.
Ela afirma:
Para mim, o inglês da minha mãe era perfeitamente claro
e natural. É a minha língua materna. A língua dela, como
eu ouvia, é vívida, direta, cheia de observação e imagens.
Aquilo era a linguagem que ajudou a dar forma à maneira
que eu via as coisas, as expressava, interpretava o mundo
(1999, p. 351).
Inegavelmente, língua e cultura são inseparáveis. Kramsch discute
essa relação entre língua e cultura. Para a autora, “os usuários de uma
língua tendem a classificar e distinguir as experiências diferentemente de
acordo com as categorias semânticas que os seus respectivos códigos lhes
oferecem” (KRAMSCH, 1998, p. 13). Isso cria a necessidade de uma mobilidade linguística e, ao mesmo tempo, cultural, para que as diferenças
culturais sejam negociadas.
As questões trazidas por Tan em seus ensaios são muito similares
às questões exploradas por ela no romance, através das personagens Lu
Ling e Ruth, que serão apresentadas e analisadas a seguir.
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2 A filha do restaurador de ossos
A relação entre língua e cultura é absolutamente central na obra.
Há os conflitos da matriarca Lu Ling ao lidar com sua filha Ruth, americana e falante de inglês; e há os dramas desta personagem, que parece
não conseguir compreender nem sua mãe, nem seu comportamento em
relação a ela. A necessidade de uma tradução ou negociação cultural é
evidente, e isso é espelhado na obra, pois cada capítulo começa com um
título em inglês e seu equivalente em chinês. Esses títulos são representações de conceitos abstratos como “verdade”, “silêncio”, etc.
A obra é dividida em duas grandes histórias, contadas em três
partes. Na primeira parte da narrativa, um narrador em terceira pessoa
conta a história de Ruth e sua mãe, e todas as confusões de suas vidas.
Na segunda parte, Lu Ling, a mãe de Ruth, escreve uma carta em chinês contando à filha o início de sua vida em um pequeno vilarejo até o
dia que ela imigrou para os Estados Unidos, sendo ela a narradora. Na
terceira parte, após Ruth ler a carta, temos suas reações à leitura e ao
conhecimento da história, através de uma volta à narrativa em terceira
pessoa. Assim, dois terços da obra são escritos em um tipo de linguagem
diferente do terço central, na voz de Lu Ling. Há momentos em que as
narrativas se misturam e se confundem.
Na primeira parte da obra, temos Ruth, descrita como uma mulher
americana de origem chinesa que vive em São Francisco, e que se preocupa com sua mãe, Lu Ling, uma senhora de 77 anos, que parece estar ficando demente. Ruth tenta achar uma explicação para o problema de sua
mãe: “Durante algum tempo, Ruth achou que a mãe estava cansada, que
talvez estivesse perdendo um pouco a audição, ou então que seu inglês
estava piorando” (TAN, 2002, p. 42). Ao longo da narrativa, Lu Ling parece cada vez mais esquecida e faz comentários aparentemente bizarros
sobre sua família e sobre seu passado. Ela afirma:
Gao Ling não minha irmã [...] ela minha cunhada. Todo
mundo riu, Lu Ling tinha transformado a situação numa
piada! É claro, elas eram cunhadas, casadas com dois irmãos. Que alivio! Sua mãe não só estava lúcida, como era
esperta (TAN, 2002, p. 99).
A questão da memória parece estar fortemente marcada dentro da
obra, não só do ponto de vista de Ruth com relação a sua mãe, Lu Ling,
mas no caso dela própria, pois parece ser meio desmemoriada, não só pelo
fato de sua vida ser uma confusão, mas por toda a sua história, dela e
de sua mãe. Para tentar fugir dessa relativa perda de memória, Ruth usa
um dispositivo, o de contar nos dedos, que sua mãe ensinou, como por
exemplo:
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Ruth lembrou-se das tarefas que precisava realizar durante
o dia. [...] Um, levar as meninas na aula de patinação. Dois
pegar os ternos de Art no tintureiro. Três, fazer compras
para o jantar. Quatro apanhar as meninas na patinação.
Cinco e seis ligar para aquele cliente arrogante. [...] nove
tinha algo a ver com sua mãe. [...]
Tinha sido Lu Ling quem havia ensinado a usar os dedos
como truque de memória (TAN, 2002, p. 26-27).
Logo no início da obra, há parte da biografia de Lu Ling, em primeira pessoa. Há uma afirmação: “Estas são as coisas que sei que são verdadeiras” (TAN, 2002, p. 9) e, mais adiante, “nos últimos oito anos, sempre
a partir do dia 12 de agosto Ruth Young perdia a voz” (TAN, 2002, p. 17).
O leitor é então convidado a compartilhar com Ruth da história de sua
mãe e a tentar fazer sentido da narrativa truncada que ela havia escrito em
chinês e que havia sido traduzida, com muita dificuldade, para o inglês;
tendo também que mover-se entre esses diferentes tipos de linguagem,
pois a narrativa de Lu Ling é povoada por seus fantasmas, imagens e superstições de origem chinesa, que parecem estranhas mesmo a sua filha,
que as tenta traduzir.
A questão da tradução é central à obra não só por isso. Ruth é uma
ghost writer. Seu trabalho consiste em traduzir as ideias e os pensamentos
das pessoas que escrevem livros de autoajuda para um inglês mais adequado à obra. Ela afirma: “Eu costumo pensar em mim mesma mais como
sendo uma tradutora, ajudando as pessoas a transferir o que está em suas
cabeças para uma página em branco” (TAN, 2002, p. 36). Entretanto, outras pessoas acabam definindo sua profissão como sendo médica de livros,
revisora de livros, revisora de vidas, revisora de estórias. Sua profissão
parece ser perfeita para quem tem crises de mudez e problemas identitários, pois o nome de um ghost writer não aparece na capa de nenhum
livro. Além disso, há o fato de Ruth não querer usar o próprio nome, o que
talvez seja um dos motivos de sua profissão, pois ela tem um nome que é
problemático não só para ela, mas principalmente para sua mãe, que, incapaz de pronunciar o nome inglês de sua filha, sempre a chamou de Lootie:
“Lootie me causa tanto problema [...] que talvez eu tenha que mandá-la
para Taiwan para uma escola de crianças más” (TAN, 2002, p. 53). Além
disso, Ruth parece ter problemas de identidade; o fato de perder a voz
sempre na mesma semana de agosto desde a infância é emblemático. Apesar de ela começar a mentir, dizendo que é silêncio voluntário, a fim de
disfarçar, isso não resolve seu problema: “Ruth explicou aos seus clientes
e amigos que estava planejando passar uma semana recolhida em silêncio
verbal” (TAN, 2002, p. 18). Além disso, Art, o namorado de Ruth, também
é intérprete de linguagem de sinais e, como especialista, ele é capaz de
conviver com os períodos de silêncio ou mudez de Ruth.
A segunda parte é sobre o que Lu Ling escreve à Ruth. Anos antes, ela havia escrito a história de sua vida em chinês, e entregado a Ruth,
para incentivar sua filha a ler em chinês. Ela diz: “minha história começa
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quando eu era pequena. Escrevi para mim mesma, mas talvez você possa
ler, aí você vai saber como foi que eu cresci, como vim parar nesse país”
(TAN, 2002, p. 20). Ruth, por sua vez, tenta identificar alguns caracteres,
mas, como não consegue, procura um tradutor pra ajudá-la. Apesar das
tentativas de sua mãe em lhe ensinar caligrafia chinesa, ela não se esforça
para aprender e, muitas vezes, caba vendo isso como um castigo, como
aparece na citação abaixo:
Ao longo dos anos, diversas pessoas haviam dito a Ruth
que a caligrafia de sua mãe era um trabalho de artista, uma
caligrafia clássica de primeira categoria. [...] Ruth tinha tido
um papel neste sucesso: era ela quem corrigia a grafia das
palavras em inglês. – É “grapefruit” [...] e não “grapefoot”.
É uma fruta (fruit) e não um pé (foot). Naquela noite, Lu
Ling começou a ensinar-lhe a escrever em chinês. Ruth sabia que era um castigo pelo que ela tinha dito mais cedo
(TAN, 2002, p. 60).
Mas ao mesmo tempo em que Lu Ling tentava ensinar chinês para
sua filha Ruth, Lu Ling não conseguia melhorar seu inglês. Essa passagem
ilustra bem os fatores envolvidos na aquisição de uma língua, como o fator
afetivo, ou seja, as motivações:
A ironia era que a mãe dela costumava ter orgulho de ter
aprendido inglês sozinha, aquele inglês macarrônico que
havia aprendido na China e em Hong Kong. E desde que
havia imigrado para os Estados Unidos, cinquenta anos antes, não tinha melhorado nem a pronúncia nem o vocabulário (TAN, 2002, p. 53).
Lu Ling, então, explica para Ruth as diferenças entre o chinês e o
inglês e as diferentes formas de se pensar em idiomas diferentes. Para ela,
cada idioma tem uma forma única e uma lógica diferente de se pensar:
quando se aprende outro idioma, o indivíduo acaba sendo “forçado” a
mudar a sua forma de pensar, a forjar um novo modelo de pensamento,
para que se faça entender nesse segundo idioma. Lu Ling tenta mostrar a
sua filha essas diferenças e afirma:
– Escrever caracteres chineses – disse-lhe a mãe – é inteiramente diferente de escrever palavras em inglês. Você pensa
diferente. Você sente diferente – e era verdade: Lu Ling era
diferente quando estava escrevendo e pintando. Ela era calma, organizada e decidida (TAN, 2002, p. 60).
Quando Lu Ling tenta mostrar a Ruth que, para escrever em caracteres chineses, ela precisava sentir diferente, pensar diferente – o sujeito então passa a ver o mundo de outra forma, de acordo com a língua
em questão –, Ruth, então, consegue o documento traduzido e descobre a
verdade sobre a vida de sua mãe na China, o que a faria entender melhor
certas atitudes de sua mãe, pois, no fundo, Ruth sabia que “com palavras
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chinesas sua mãe fazia sentido, Ruth raciocinou. Ou será que não?” (TAN,
2002, p. 62). Lu Ling acreditava que “usando palavras chinesas, [...] podia
colocar todo tipo de sabedoria na cabeça de Ruth. Ela podia alertá-la do
perigo, da doença e da morte” (TAN, 2002, p. 76).
Em uma das passagens de sua biografia, Lu Ling fala de como ela e
a sua ama-seca, que era muda, se comunicavam. Ela afirma: “Ela escrevia a
respeito do mundo no meu quadro-negro portátil. Ela também desenhava
com suas mãos escurecidas. Linguagem das mãos, linguagem do rosto,
linguagem do giz, foram as linguagens com as quais eu cresci, fortes e sem
som” (TAN, 2002, p. 10).
Surge aí a primeira referência à relação da mãe de Ruth com a mudez, pois, como será mostrado, a mãe de Ruth também havia silenciado
sobre muitas coisas de seu passado. O silêncio de Ruth era explicável por
elementos outros do que somente a cultura chinesa. Sua história havia sido
silenciada. Embora ame sua mãe, Ruth sabe que há algo escondido, mas
também sofre pelas duras críticas que sofria quando criança, quando sua
mãe a forçava a obedecer às duras regras chinesas. Mesmo na velhice, e
após tantos anos nos Estados Unidos, Lu Ling ainda é uma mulher que
vive guiada pela sua ancestral cultura. Sua vida é assombrada pelos fantasmas do seu passado e sobre a história que nunca pode contar. Lu Ling
também acreditava que, Ruth, quando era mais jovem, tinha a habilidade
de se comunicar com o mundo dos espíritos e, frequentemente, esperava
que ela reproduzisse mensagens do espírito de Titia Preciosa, a ama-seca
de Lu Ling, escrevendo sobre uma bandeja de areia, como a citação abaixo
mostra:
Ela pôs o pauzinho na areia e sem saber o que escrever,
desenhou uma linha e outra linha abaixo desta. Desenhou
mais duas linhas e fez um quadrado. – boca! Sua mãe exclamou, mostrando o quadrado. – este é o caractere de ‘boca’!
Ela olhou para Ruth. – você escreveu isso e nem sabe escrever em chinês! Você sentiu titia preciosa guiando a sua
mão? (TAN, 2002, p. 85).
Nessa segunda parte do livro, onde é contada a autobiografia de
Lu Ling, essa história dentro de outra história descreve o início de sua
vida em um pequeno vilarejo chinês chamado Coração Imortal. Lu Ling
é criada por Titia Preciosa, a ama-seca muda, que havia sido queimada.
Mais tarde, revela-se que os ferimentos de Titia Preciosa foram causados
por ela ter engolido resina de tinta em chamas, conforme o relato a seguir:
“então ela viu um pote de resina preta. Enfiou uma caneca no líquido e colocou-o sobre o fogão. A tinta oleosa tornou-se uma sopa de chamas azuis.
Ela virou a caneca e bebeu.” (TAN, 2002, p. 182). Apesar de ser criada
como a filha mais velha da família, Lu Ling é ignorada por sua mãe em
favor de sua irmã mais nova, Gao Ling. No entanto, Titia Preciosa é extremamente devotada a cuidar de Lu Ling, que fala de seus sentimentos em
relação à mãe e a Gao Ling:
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Eu sempre tinha ciúme quando Gao Ling recebia mais atenção da mãe que nós dividíamos. Eu ainda achava que era
a filha mais velha. Eu era mais inteligente. Tinha me saído melhor na escola. No entanto, Gao Ling sempre tinha a
honra de sentar ao lado de mamãe, de dormir na sua k’ang,
enquanto eu tinha a titia preciosa (TAN, 2002, p. 188).
A história de Lu Ling retrocede mais, descrevendo a infância de
Titia Preciosa como a filha de um restaurador de ossos local. A adolescente
Titia Preciosa é a única pessoa que sabe a localização de uma caverna oculta onde muitos “ossos antigos de dragão” podem ser encontrados, conhecimento que ela guarda consigo, mesmo depois de queimada e vindo a viver com a família de Lu Ling. Após a descoberta do “homem de Pequim”,
ossos fossilizados e informações sobre onde eles podiam ser encontrados
se tornam extremamente valiosos. Uma família local, os Changs, pretende
organizar um casamento entre Lu Ling e o filho deles, Fu Nan, pois eles
acreditam que Lu Ling possa levá-los à caverna do fóssil. A família de Lu
Ling aprova o casamento, mas Titia Preciosa é contra. Impossibilitada de
falar dos detalhes, ela escreve a Lu Ling uma longa carta explicando suas
razões, mas Lu Ling não lê.
Somente após a morte da Titia Preciosa, Lu Ling compreende que
sua ama é, na verdade, sua mãe, e que a mulher que ela chamava de mãe
era, na realidade, irmã de seu pai. Lu Ling acredita em maldições, pois sua
vida foi cercada por tragédias marcantes, como as mortes do avô e do pai,
o fato dela ter sido criada pela tia que dizia ser sua mãe, e uma ama-seca,
Titia Preciosa, que era muda e que, de fato, era sua mãe. Esses medos foram colocados diante de Ruth pela sua mãe, e, possivelmente, a perda de
voz se refletia de certa forma no silêncio de Lu Ling sobre a ama-seca e no
silêncio da própria ama. Lemos:
Quando Gao Ling saiu, eu ainda não tinha entendido tudo
o que ela dissera, e, no entanto, eu sabia. Encontrei as páginas que Titia Preciosa havia escrito para mim. Eu terminei
de lê-las. Finalmente, eu li as palavras dela. Sua mãe, eu sou
sua mãe (TAN, 2002, p. 22).
Depois da morte de Titia Preciosa, Gao Ling casa-se com Fu Nan,
e Lu Ling é mandada para um orfanato onde ela completa sua educação,
cresce e se torna professora. Lá, ela conhece seu primeiro marido, Pan kai
Jin. Lu Ling vive em um orfanato como professora durante a Segunda
Guerra Mundial. Anos mais tarde, ela se reencontra com Gao Ling e as
duas “irmãs” imigram para a América separadamente e se casam com dois
irmãos, Edmond e Edwin. O segundo marido de Lu Ling morre em um
acidente de carro, quando Ruth tinha apenas dois anos. Lu Ling relembra:
“Eu parti para a América, uma terra sem maldições nem fantasmas.
Quando desembarquei, eu estava cinco anos mais moça. No entanto,
eu me sentia muito mais velha” (TAN, 2002, p. 305).
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Lu Ling parece estar ficando demente, dizendo que sua mãe na
realidade é outra, dizendo que sua irmã na realidade é a sua cunhada.
Só após Ruth ler a autobiografia de sua mãe e ver a foto de sua verdadeira avó, todos os medos e inseguranças que sua mãe tinha e que, por um
momento, pareciam ser loucura, fizeram sentido para Ruth. Então, lendo
a autobiografia de Lu Ling, Ruth descobre com detalhes o passado de sua
mãe, as circunstâncias que moldaram a personalidade tempestuosa de Lu
Ling e as verdades adormecidas sobre suas origens. E a terceira parte da
narrativa mostra a reação de Ruth após ler o que sua mãe havia escrito.
Ela, então, passa a refletir sobre tudo que acabara de ler: “Ela começou a
enumerar todas as coisas verdadeiras que estava aprendendo, mas perdeu logo a conta, uma vez que cada fato levava a mais indagações” (TAN,
2002, p. 319). Ruth descobre suas origens e as verdades escondidas sobre
a história de sua mãe e encontra uma solução para os problemas de Lu
Ling. Compreende os silêncios dela e está no caminho para compreender
os seus próprios.
3 Mobilidade linguística e cultural
em A Filha do Restaurador de Ossos
A língua materna de Lu Ling é o chinês. Ela carrega essa língua
juntamente com sua história e cultura para os Estados Unidos e sua vida
é guiada por essa cultura, embora circule por diversos universos nos Estados Unidos. O fantasma de Titia Preciosa, assim como as maldições da
cultura chinesa que foram impostas a ela na infância, assombram sua vida.
Entretanto, não consegue dar voz a seus medos em inglês. Na medida em
que o tempo passa, seu inglês parece ser cada vez mais cheio de sotaque
e marcas do chinês. Ao invés de apagar o seu sotaque, agarra-se a ele.
Em vários momentos da obra, suas falas deixam claro que apagar o sotaque seria apagar a sua cultura, a sua identidade de mulher chinesa, o que
ela não quer. Por isso, não surpreende que tenha recorrido ao seu chinês
ancestral para falar sobre o que tinha silenciado por tanto tempo e é um
tradutor que revela sua história e, de certa maneira, salva Lu Ling e sua
filha, justamente com sua história.
Lu Ling não conseguiu falar sobre sua história em inglês para a filha, mas conseguiu registrar a sua história. O que conseguiu fazer foi escrevê-la em sua língua materna. O passado de Lu Ling é resgatado através
da tradução de sua narrativa, mas é necessário um terceiro para fazê-lo,
já que Ruth e sua mãe não falam a mesma língua. A necessidade de uma
tradução cultural é visível nesse contexto e o tradutor é uma metáfora para
o processo. O fato de Lu Ling ter escrito sua autobiografia em chinês e depois ter entregado para sua filha ler mesmo sabendo que Ruth não sabia
falar chinês e era capaz de reconhecer apenas alguns poucos caracteres,
sugere que talvez ela só pudesse contar essa história em chinês, na língua
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que tanto diferenciou do inglês e associou a sua cultura. Ruth consegue
o documento traduzido e lê as memórias de sua mãe. Segundo Márcio
Seligmann-Silva (2005, p. 155), “a relação com o passado pode ser também
pensada nos termos de uma relação tradutória: a tarefa da tradução deve
ser vista como, a um só tempo, parcial e infinita”. Essa “relação tradutória”
que Seligmann-Silva defende é vista no sentido de que a pessoa, na realidade, faz uma tradução de seu passado, trazendo isso para o seu presente.
Sua filha Ruth, no começo da narrativa, tem dificuldade em lidar
com sua herança linguística e cultural, principalmente porque não sabe
exatamente o que está herdando, além de fantasmas. Entretanto, ao longo
da narrativa, Ruth começa a reconhecer que o passado de sua mãe é o seu
presente de silenciamento. Qual a relação entre os fantasmas de Lu Ling e
o fato de ela mesma ser um fantasma? Lu Ling escreve a sua autobiografia talvez para poder entender seu presente que encontra preso em seu
passado. Isso lembra-nos de Seligmann-Silva (2005, p. 212) quando afirma
que “o trabalho da memória parte do pressuposto de que o embate com o
passado é guiado pela nossa situação no presente”. Somente após desejar
ler a história de sua mãe e usar de um tradutor, Ruth consegue identificar-se com sua mãe e sua história e perceber que não pode negar sua história, mas, sim, aprender a mover-se entre esses dois universos linguísticos e
culturais e, assim, conciliar as diferenças entre eles. Finalmente reconhece
seu hibridismo.
A impossibilidade de Ruth de falar com Art sobre seus problemas, a
sua impossibilidade de falar com sua mãe e suas enteadas, acompanhadas
de seus períodos de mudez total, espelham a impossibilidade de falar de
Lu Ling. Ruth tem dificuldade em ter voz própria. A questão é: como recuperar a voz? Na obra, essa apropriação é feita a partir de uma recuperação
da própria história, por mais dolorosa que seja. No fim da narrativa, Ruth
parece pronta para ganhar voz e deixar de ser uma ghost writer. Parece
pronta para contar a sua própria história, na sua própria língua, que talvez
seja a língua de Amy Tan: um híbrido de inglês e chinês.
Recebido em outubro de 2011.
Aprovado em outubro de 2011.
Linguistic and Cultural Mobility in The Bonesetter’s Daughter by Amy Tan
Abstract
Amy Tan is one of the most famous contemporary writers in the United States. Daughter of
Chinese immigrants, her writing is marked by the Chinese culture and language. In her book
The Bonesetter’s Daughter, Amy Tan shows us characters not only divided between two cultures and two distinct languages, but also moving between these two linguistic and cultural
universes in order to conciliate them. This article analyses elements from the novel in the
light of linguistic and cultural concepts.
Keywords: Linguistic mobility. Authorship. English culture.
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Referências
BRISOLARA, Valéria. Mobilidade linguística. In: BERND, Zilá (Org.).
Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos. Porto Alegre:
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