Mobilidade linguística e cultural em A filha do restaurador de ossos
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Mobilidade linguística e cultural em A filha do restaurador de ossos
Mobilidade linguística e cultural em A filha do restaurador de ossos de Amy Tan Valéria Silveira Brisolara* Eliane Lopes** Resumo Amy Tan é uma das mais destacadas autoras contemporâneas escrevendo em língua inglesa nos Estados Unidos. Filha de imigrantes chineses, sua escrita é marcada pela cultura e língua chinesas. Na obra A filha do restaurador de ossos, Amy Tan nos apresenta personagens divididos entre duas culturas e dois idiomas distintos e seus movimentos por entre esses dois universos linguísticos e culturais a fim de conciliá-los. Este trabalho analisa elementos do romance à luz dos conceitos de mobilidade linguística e mobilidade cultural. Palavras-chave: Mobilidade linguística. Autoria. Língua inglesa. Cultura. Introdução Amy Tan é uma das mais destacadas autoras contemporâneas escrevendo em língua inglesa nos Estados Unidos. Filha de imigrantes chineses, sua escrita é marcada pela cultura e língua chinesas. Suas obras exploram as mobilidades culturais, principalmente através de uma análise das relações entre mães e filhas, que servem de pano de fundo para discussões sobre língua e cultura. Seus romances foram traduzidos para vários idiomas e uma de suas obras mais marcantes, A filha do restaurador de ossos, foi publicada no Brasil em 2002. O título da obra já remete a questões culturais, pois chama nossa atenção e nos leva a pensar a respeito do que seria um restaurador de ossos, um elemento estranho à nossa cultura.1 A filha do restaurador de ossos traz a história de Lu Ling, que imigrou para os Estados Unidos, fugindo da Segunda Guerra Mundial, mas manteve suas tradições chinesas, e de sua filha americana, Ruth, que tem dificuldade em entender sua mãe e, principalmente, suas atitudes com relação à * ** 1 Doutora em Letras. Professora dos cursos de Letras e do Programa de Pós-graduação em Letras do Uniritter. Tradutora Juramentada. (E-mail: [email protected]). Aluna do curso de Letras do Unilasalle. Bolsista de Iniciação Científica no Projeto Mobilidade Linguística durante os anos de 2009 e 2010. (E-mail: [email protected]). Na verdade, o título original da primeira edição da obra, publicada em 2001 nos Estados Unidos, era The Bonecutter’s Daughter, mudado para The Bonesetter’s Daughter e editado nos Estados Unidos em 2001. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 39-49, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 39 família e ao passado. Assim, Amy Tan nos apresenta Ruth, uma personagem dividida entre duas culturas e dois idiomas distintos, e suas tentativas de conciliar esses dois universos linguísticos e culturais, deslocando-se por entre eles e tentando traduzir os elementos culturais de um para outro universo. Ruth encontra-se no que Greenblatt (2009, p. 4), ao falar de mobilidades culturais, chama de uma zona de contato cultural, pois há uma negociação cultural. Isso acontece frequentemente no caso das literaturas migrantes ou de exílio, em que os autores lidam com mais de um universo linguístico e cultural e, frequentemente, fazem dessa negociação cultural o tema de suas obras. Dentro dessa perspectiva, a obra de Tan tematiza as mobilidades culturais que a sociedade contemporânea exige. Nesse contexto, este trabalho tem como objetivo apresentar a obra A filha do restaurador de ossos de Amy Tan e analisar elementos relacionados à mobilidade linguística e cultural presentes no romance. 1 Mobilidade linguística e cultural Muitos autores que escrevem ficção em língua inglesa nos Estados Unidos têm suas vidas marcadas pela migração, pelo exílio e pelo abandono da língua materna. Sua escrita é frequentemente marcada por questões identitárias e relacionadas à mobilidade cultural e ao que consideramos uma mobilidade linguística. Esse fenômeno foi identificado, nomeado e descrito em “Mobilidade linguística” (BRISOLARA, 2010). Muitos desses autores tomam o exílio, em todas as suas nuances, como seu tema central. Esses autores são sujeitos que se movem por e entre línguas e tematizam sua mobilidade linguística e cultural. No caso de Amy Tan, sua mobilidade se deve ao fato de sua família ser de imigrantes chineses, e, em virtude disso, sua língua materna ficar marcada pela cultura e língua chinesas, assim como a de Ruth, a protagonista da obra A filha do restaurador de ossos, que tematiza esse processo de negociação linguística e cultural. Wendy Lesser explora essa questão em sua obra The genius of language (2004). Na obra, Lesser escolheu 15 renomados escritores que escrevem em língua inglesa e pediu para que escrevessem sobre suas experiências como escritores divididos entre suas línguas maternas e seus idiomas de adoção. Amy Tan foi uma das escritoras que Lesser escolheu. Em seu ensaio intitulado “Yes and no”, Tan fala de seus sentimentos em relação a sua família bicultural e bilíngue: “Como qualquer criança de pais imigrantes sabe, há um tipo especial de duplo vínculo anexado ao conhecer duas línguas.”2 (2004, p. 28). Nesse ensaio, Tan relaciona a questão da linguagem à da cultura através do uso do sim e do não na língua chinesa e na língua inglesa. Tan afirma: “O que é inglês? O que é chinês? As categorias se manifestam por elas mesmas: passiva e agressiva, experimental e afirmativa, indireto e direto. E eu percebi que elas são apenas variações do mesmo tema: que pessoas chinesas são discretas e modestas” (2004, p. 29). 2 40 As traduções neste trabalho são de nossa autoria. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 39-49, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/in6ex.php/arquivos> Em outro ensaio, intitulado “Mother tongue” (1999), Tan discute a sua mobilidade linguística e cultural. No caso de Tan, sua língua materna é a língua de sua mãe, o inglês que ela falava com todas as suas imperfeições e marcas do chinês, do qual Tan admite ter sentido vergonha (1999, p. 352). Segundo a autora, esse inglês macarrônico impecável é sua língua materna (1999, p. 352). Assim, Tan reconhece que sua língua materna não é nem o chinês nem o inglês padrão, mas o inglês marcado pelo chinês que sua mãe falava: um híbrido. A esse respeito, é interessante observar que o falante bilíngue, como sua mãe, é frequentemente subestimado, pois, para Romaine (2007, p. 525), o problema é que sempre houve uma tendência em avaliar a competência bilíngue como a soma da aquisição da competência em cada uma das duas línguas ao invés de um sistema único que permite a escolha dos recursos a partir das duas línguas. Com relação a esse sentimento, Tan afirma: Eu acreditava que seu inglês refletia a qualidade do que ela tinha para dizer. Isto é, porque ela os expressava imperfeitamente, seus pensamentos eram imperfeitos. E eu tinha muitas evidências: o fato de que as pessoas nas lojas, nos bancos e nos restaurantes não a levavam a sério, não a atendiam bem, fingiam que não a entendiam, ou mesmo agiam como se não estivessem a ouvindo (1999, p. 352). Ela mesma admite que o fato de o inglês de sua mãe ser considerado limitado fazia com que ela e outros a considerassem uma pessoa limitada. O fato de que muitas pessoas acabavam, às vezes, até não entendendo o que sua mãe falava, e não entendiam como não “dominava” o inglês após tantos anos nos Estados Unidos, chamou a atenção de Tan. Ela afirma: Para mim, o inglês da minha mãe era perfeitamente claro e natural. É a minha língua materna. A língua dela, como eu ouvia, é vívida, direta, cheia de observação e imagens. Aquilo era a linguagem que ajudou a dar forma à maneira que eu via as coisas, as expressava, interpretava o mundo (1999, p. 351). Inegavelmente, língua e cultura são inseparáveis. Kramsch discute essa relação entre língua e cultura. Para a autora, “os usuários de uma língua tendem a classificar e distinguir as experiências diferentemente de acordo com as categorias semânticas que os seus respectivos códigos lhes oferecem” (KRAMSCH, 1998, p. 13). Isso cria a necessidade de uma mobilidade linguística e, ao mesmo tempo, cultural, para que as diferenças culturais sejam negociadas. As questões trazidas por Tan em seus ensaios são muito similares às questões exploradas por ela no romance, através das personagens Lu Ling e Ruth, que serão apresentadas e analisadas a seguir. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 39-49, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 41 2 A filha do restaurador de ossos A relação entre língua e cultura é absolutamente central na obra. Há os conflitos da matriarca Lu Ling ao lidar com sua filha Ruth, americana e falante de inglês; e há os dramas desta personagem, que parece não conseguir compreender nem sua mãe, nem seu comportamento em relação a ela. A necessidade de uma tradução ou negociação cultural é evidente, e isso é espelhado na obra, pois cada capítulo começa com um título em inglês e seu equivalente em chinês. Esses títulos são representações de conceitos abstratos como “verdade”, “silêncio”, etc. A obra é dividida em duas grandes histórias, contadas em três partes. Na primeira parte da narrativa, um narrador em terceira pessoa conta a história de Ruth e sua mãe, e todas as confusões de suas vidas. Na segunda parte, Lu Ling, a mãe de Ruth, escreve uma carta em chinês contando à filha o início de sua vida em um pequeno vilarejo até o dia que ela imigrou para os Estados Unidos, sendo ela a narradora. Na terceira parte, após Ruth ler a carta, temos suas reações à leitura e ao conhecimento da história, através de uma volta à narrativa em terceira pessoa. Assim, dois terços da obra são escritos em um tipo de linguagem diferente do terço central, na voz de Lu Ling. Há momentos em que as narrativas se misturam e se confundem. Na primeira parte da obra, temos Ruth, descrita como uma mulher americana de origem chinesa que vive em São Francisco, e que se preocupa com sua mãe, Lu Ling, uma senhora de 77 anos, que parece estar ficando demente. Ruth tenta achar uma explicação para o problema de sua mãe: “Durante algum tempo, Ruth achou que a mãe estava cansada, que talvez estivesse perdendo um pouco a audição, ou então que seu inglês estava piorando” (TAN, 2002, p. 42). Ao longo da narrativa, Lu Ling parece cada vez mais esquecida e faz comentários aparentemente bizarros sobre sua família e sobre seu passado. Ela afirma: Gao Ling não minha irmã [...] ela minha cunhada. Todo mundo riu, Lu Ling tinha transformado a situação numa piada! É claro, elas eram cunhadas, casadas com dois irmãos. Que alivio! Sua mãe não só estava lúcida, como era esperta (TAN, 2002, p. 99). A questão da memória parece estar fortemente marcada dentro da obra, não só do ponto de vista de Ruth com relação a sua mãe, Lu Ling, mas no caso dela própria, pois parece ser meio desmemoriada, não só pelo fato de sua vida ser uma confusão, mas por toda a sua história, dela e de sua mãe. Para tentar fugir dessa relativa perda de memória, Ruth usa um dispositivo, o de contar nos dedos, que sua mãe ensinou, como por exemplo: 42 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 39-49, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/in6ex.php/arquivos> Ruth lembrou-se das tarefas que precisava realizar durante o dia. [...] Um, levar as meninas na aula de patinação. Dois pegar os ternos de Art no tintureiro. Três, fazer compras para o jantar. Quatro apanhar as meninas na patinação. Cinco e seis ligar para aquele cliente arrogante. [...] nove tinha algo a ver com sua mãe. [...] Tinha sido Lu Ling quem havia ensinado a usar os dedos como truque de memória (TAN, 2002, p. 26-27). Logo no início da obra, há parte da biografia de Lu Ling, em primeira pessoa. Há uma afirmação: “Estas são as coisas que sei que são verdadeiras” (TAN, 2002, p. 9) e, mais adiante, “nos últimos oito anos, sempre a partir do dia 12 de agosto Ruth Young perdia a voz” (TAN, 2002, p. 17). O leitor é então convidado a compartilhar com Ruth da história de sua mãe e a tentar fazer sentido da narrativa truncada que ela havia escrito em chinês e que havia sido traduzida, com muita dificuldade, para o inglês; tendo também que mover-se entre esses diferentes tipos de linguagem, pois a narrativa de Lu Ling é povoada por seus fantasmas, imagens e superstições de origem chinesa, que parecem estranhas mesmo a sua filha, que as tenta traduzir. A questão da tradução é central à obra não só por isso. Ruth é uma ghost writer. Seu trabalho consiste em traduzir as ideias e os pensamentos das pessoas que escrevem livros de autoajuda para um inglês mais adequado à obra. Ela afirma: “Eu costumo pensar em mim mesma mais como sendo uma tradutora, ajudando as pessoas a transferir o que está em suas cabeças para uma página em branco” (TAN, 2002, p. 36). Entretanto, outras pessoas acabam definindo sua profissão como sendo médica de livros, revisora de livros, revisora de vidas, revisora de estórias. Sua profissão parece ser perfeita para quem tem crises de mudez e problemas identitários, pois o nome de um ghost writer não aparece na capa de nenhum livro. Além disso, há o fato de Ruth não querer usar o próprio nome, o que talvez seja um dos motivos de sua profissão, pois ela tem um nome que é problemático não só para ela, mas principalmente para sua mãe, que, incapaz de pronunciar o nome inglês de sua filha, sempre a chamou de Lootie: “Lootie me causa tanto problema [...] que talvez eu tenha que mandá-la para Taiwan para uma escola de crianças más” (TAN, 2002, p. 53). Além disso, Ruth parece ter problemas de identidade; o fato de perder a voz sempre na mesma semana de agosto desde a infância é emblemático. Apesar de ela começar a mentir, dizendo que é silêncio voluntário, a fim de disfarçar, isso não resolve seu problema: “Ruth explicou aos seus clientes e amigos que estava planejando passar uma semana recolhida em silêncio verbal” (TAN, 2002, p. 18). Além disso, Art, o namorado de Ruth, também é intérprete de linguagem de sinais e, como especialista, ele é capaz de conviver com os períodos de silêncio ou mudez de Ruth. A segunda parte é sobre o que Lu Ling escreve à Ruth. Anos antes, ela havia escrito a história de sua vida em chinês, e entregado a Ruth, para incentivar sua filha a ler em chinês. Ela diz: “minha história começa Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 39-49, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 43 quando eu era pequena. Escrevi para mim mesma, mas talvez você possa ler, aí você vai saber como foi que eu cresci, como vim parar nesse país” (TAN, 2002, p. 20). Ruth, por sua vez, tenta identificar alguns caracteres, mas, como não consegue, procura um tradutor pra ajudá-la. Apesar das tentativas de sua mãe em lhe ensinar caligrafia chinesa, ela não se esforça para aprender e, muitas vezes, caba vendo isso como um castigo, como aparece na citação abaixo: Ao longo dos anos, diversas pessoas haviam dito a Ruth que a caligrafia de sua mãe era um trabalho de artista, uma caligrafia clássica de primeira categoria. [...] Ruth tinha tido um papel neste sucesso: era ela quem corrigia a grafia das palavras em inglês. – É “grapefruit” [...] e não “grapefoot”. É uma fruta (fruit) e não um pé (foot). Naquela noite, Lu Ling começou a ensinar-lhe a escrever em chinês. Ruth sabia que era um castigo pelo que ela tinha dito mais cedo (TAN, 2002, p. 60). Mas ao mesmo tempo em que Lu Ling tentava ensinar chinês para sua filha Ruth, Lu Ling não conseguia melhorar seu inglês. Essa passagem ilustra bem os fatores envolvidos na aquisição de uma língua, como o fator afetivo, ou seja, as motivações: A ironia era que a mãe dela costumava ter orgulho de ter aprendido inglês sozinha, aquele inglês macarrônico que havia aprendido na China e em Hong Kong. E desde que havia imigrado para os Estados Unidos, cinquenta anos antes, não tinha melhorado nem a pronúncia nem o vocabulário (TAN, 2002, p. 53). Lu Ling, então, explica para Ruth as diferenças entre o chinês e o inglês e as diferentes formas de se pensar em idiomas diferentes. Para ela, cada idioma tem uma forma única e uma lógica diferente de se pensar: quando se aprende outro idioma, o indivíduo acaba sendo “forçado” a mudar a sua forma de pensar, a forjar um novo modelo de pensamento, para que se faça entender nesse segundo idioma. Lu Ling tenta mostrar a sua filha essas diferenças e afirma: – Escrever caracteres chineses – disse-lhe a mãe – é inteiramente diferente de escrever palavras em inglês. Você pensa diferente. Você sente diferente – e era verdade: Lu Ling era diferente quando estava escrevendo e pintando. Ela era calma, organizada e decidida (TAN, 2002, p. 60). Quando Lu Ling tenta mostrar a Ruth que, para escrever em caracteres chineses, ela precisava sentir diferente, pensar diferente – o sujeito então passa a ver o mundo de outra forma, de acordo com a língua em questão –, Ruth, então, consegue o documento traduzido e descobre a verdade sobre a vida de sua mãe na China, o que a faria entender melhor certas atitudes de sua mãe, pois, no fundo, Ruth sabia que “com palavras 44 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 39-49, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/in6ex.php/arquivos> chinesas sua mãe fazia sentido, Ruth raciocinou. Ou será que não?” (TAN, 2002, p. 62). Lu Ling acreditava que “usando palavras chinesas, [...] podia colocar todo tipo de sabedoria na cabeça de Ruth. Ela podia alertá-la do perigo, da doença e da morte” (TAN, 2002, p. 76). Em uma das passagens de sua biografia, Lu Ling fala de como ela e a sua ama-seca, que era muda, se comunicavam. Ela afirma: “Ela escrevia a respeito do mundo no meu quadro-negro portátil. Ela também desenhava com suas mãos escurecidas. Linguagem das mãos, linguagem do rosto, linguagem do giz, foram as linguagens com as quais eu cresci, fortes e sem som” (TAN, 2002, p. 10). Surge aí a primeira referência à relação da mãe de Ruth com a mudez, pois, como será mostrado, a mãe de Ruth também havia silenciado sobre muitas coisas de seu passado. O silêncio de Ruth era explicável por elementos outros do que somente a cultura chinesa. Sua história havia sido silenciada. Embora ame sua mãe, Ruth sabe que há algo escondido, mas também sofre pelas duras críticas que sofria quando criança, quando sua mãe a forçava a obedecer às duras regras chinesas. Mesmo na velhice, e após tantos anos nos Estados Unidos, Lu Ling ainda é uma mulher que vive guiada pela sua ancestral cultura. Sua vida é assombrada pelos fantasmas do seu passado e sobre a história que nunca pode contar. Lu Ling também acreditava que, Ruth, quando era mais jovem, tinha a habilidade de se comunicar com o mundo dos espíritos e, frequentemente, esperava que ela reproduzisse mensagens do espírito de Titia Preciosa, a ama-seca de Lu Ling, escrevendo sobre uma bandeja de areia, como a citação abaixo mostra: Ela pôs o pauzinho na areia e sem saber o que escrever, desenhou uma linha e outra linha abaixo desta. Desenhou mais duas linhas e fez um quadrado. – boca! Sua mãe exclamou, mostrando o quadrado. – este é o caractere de ‘boca’! Ela olhou para Ruth. – você escreveu isso e nem sabe escrever em chinês! Você sentiu titia preciosa guiando a sua mão? (TAN, 2002, p. 85). Nessa segunda parte do livro, onde é contada a autobiografia de Lu Ling, essa história dentro de outra história descreve o início de sua vida em um pequeno vilarejo chinês chamado Coração Imortal. Lu Ling é criada por Titia Preciosa, a ama-seca muda, que havia sido queimada. Mais tarde, revela-se que os ferimentos de Titia Preciosa foram causados por ela ter engolido resina de tinta em chamas, conforme o relato a seguir: “então ela viu um pote de resina preta. Enfiou uma caneca no líquido e colocou-o sobre o fogão. A tinta oleosa tornou-se uma sopa de chamas azuis. Ela virou a caneca e bebeu.” (TAN, 2002, p. 182). Apesar de ser criada como a filha mais velha da família, Lu Ling é ignorada por sua mãe em favor de sua irmã mais nova, Gao Ling. No entanto, Titia Preciosa é extremamente devotada a cuidar de Lu Ling, que fala de seus sentimentos em relação à mãe e a Gao Ling: Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 39-49, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 45 Eu sempre tinha ciúme quando Gao Ling recebia mais atenção da mãe que nós dividíamos. Eu ainda achava que era a filha mais velha. Eu era mais inteligente. Tinha me saído melhor na escola. No entanto, Gao Ling sempre tinha a honra de sentar ao lado de mamãe, de dormir na sua k’ang, enquanto eu tinha a titia preciosa (TAN, 2002, p. 188). A história de Lu Ling retrocede mais, descrevendo a infância de Titia Preciosa como a filha de um restaurador de ossos local. A adolescente Titia Preciosa é a única pessoa que sabe a localização de uma caverna oculta onde muitos “ossos antigos de dragão” podem ser encontrados, conhecimento que ela guarda consigo, mesmo depois de queimada e vindo a viver com a família de Lu Ling. Após a descoberta do “homem de Pequim”, ossos fossilizados e informações sobre onde eles podiam ser encontrados se tornam extremamente valiosos. Uma família local, os Changs, pretende organizar um casamento entre Lu Ling e o filho deles, Fu Nan, pois eles acreditam que Lu Ling possa levá-los à caverna do fóssil. A família de Lu Ling aprova o casamento, mas Titia Preciosa é contra. Impossibilitada de falar dos detalhes, ela escreve a Lu Ling uma longa carta explicando suas razões, mas Lu Ling não lê. Somente após a morte da Titia Preciosa, Lu Ling compreende que sua ama é, na verdade, sua mãe, e que a mulher que ela chamava de mãe era, na realidade, irmã de seu pai. Lu Ling acredita em maldições, pois sua vida foi cercada por tragédias marcantes, como as mortes do avô e do pai, o fato dela ter sido criada pela tia que dizia ser sua mãe, e uma ama-seca, Titia Preciosa, que era muda e que, de fato, era sua mãe. Esses medos foram colocados diante de Ruth pela sua mãe, e, possivelmente, a perda de voz se refletia de certa forma no silêncio de Lu Ling sobre a ama-seca e no silêncio da própria ama. Lemos: Quando Gao Ling saiu, eu ainda não tinha entendido tudo o que ela dissera, e, no entanto, eu sabia. Encontrei as páginas que Titia Preciosa havia escrito para mim. Eu terminei de lê-las. Finalmente, eu li as palavras dela. Sua mãe, eu sou sua mãe (TAN, 2002, p. 22). Depois da morte de Titia Preciosa, Gao Ling casa-se com Fu Nan, e Lu Ling é mandada para um orfanato onde ela completa sua educação, cresce e se torna professora. Lá, ela conhece seu primeiro marido, Pan kai Jin. Lu Ling vive em um orfanato como professora durante a Segunda Guerra Mundial. Anos mais tarde, ela se reencontra com Gao Ling e as duas “irmãs” imigram para a América separadamente e se casam com dois irmãos, Edmond e Edwin. O segundo marido de Lu Ling morre em um acidente de carro, quando Ruth tinha apenas dois anos. Lu Ling relembra: “Eu parti para a América, uma terra sem maldições nem fantasmas. Quando desembarquei, eu estava cinco anos mais moça. No entanto, eu me sentia muito mais velha” (TAN, 2002, p. 305). 46 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 39-49, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/in6ex.php/arquivos> Lu Ling parece estar ficando demente, dizendo que sua mãe na realidade é outra, dizendo que sua irmã na realidade é a sua cunhada. Só após Ruth ler a autobiografia de sua mãe e ver a foto de sua verdadeira avó, todos os medos e inseguranças que sua mãe tinha e que, por um momento, pareciam ser loucura, fizeram sentido para Ruth. Então, lendo a autobiografia de Lu Ling, Ruth descobre com detalhes o passado de sua mãe, as circunstâncias que moldaram a personalidade tempestuosa de Lu Ling e as verdades adormecidas sobre suas origens. E a terceira parte da narrativa mostra a reação de Ruth após ler o que sua mãe havia escrito. Ela, então, passa a refletir sobre tudo que acabara de ler: “Ela começou a enumerar todas as coisas verdadeiras que estava aprendendo, mas perdeu logo a conta, uma vez que cada fato levava a mais indagações” (TAN, 2002, p. 319). Ruth descobre suas origens e as verdades escondidas sobre a história de sua mãe e encontra uma solução para os problemas de Lu Ling. Compreende os silêncios dela e está no caminho para compreender os seus próprios. 3 Mobilidade linguística e cultural em A Filha do Restaurador de Ossos A língua materna de Lu Ling é o chinês. Ela carrega essa língua juntamente com sua história e cultura para os Estados Unidos e sua vida é guiada por essa cultura, embora circule por diversos universos nos Estados Unidos. O fantasma de Titia Preciosa, assim como as maldições da cultura chinesa que foram impostas a ela na infância, assombram sua vida. Entretanto, não consegue dar voz a seus medos em inglês. Na medida em que o tempo passa, seu inglês parece ser cada vez mais cheio de sotaque e marcas do chinês. Ao invés de apagar o seu sotaque, agarra-se a ele. Em vários momentos da obra, suas falas deixam claro que apagar o sotaque seria apagar a sua cultura, a sua identidade de mulher chinesa, o que ela não quer. Por isso, não surpreende que tenha recorrido ao seu chinês ancestral para falar sobre o que tinha silenciado por tanto tempo e é um tradutor que revela sua história e, de certa maneira, salva Lu Ling e sua filha, justamente com sua história. Lu Ling não conseguiu falar sobre sua história em inglês para a filha, mas conseguiu registrar a sua história. O que conseguiu fazer foi escrevê-la em sua língua materna. O passado de Lu Ling é resgatado através da tradução de sua narrativa, mas é necessário um terceiro para fazê-lo, já que Ruth e sua mãe não falam a mesma língua. A necessidade de uma tradução cultural é visível nesse contexto e o tradutor é uma metáfora para o processo. O fato de Lu Ling ter escrito sua autobiografia em chinês e depois ter entregado para sua filha ler mesmo sabendo que Ruth não sabia falar chinês e era capaz de reconhecer apenas alguns poucos caracteres, sugere que talvez ela só pudesse contar essa história em chinês, na língua Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 39-49, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 47 que tanto diferenciou do inglês e associou a sua cultura. Ruth consegue o documento traduzido e lê as memórias de sua mãe. Segundo Márcio Seligmann-Silva (2005, p. 155), “a relação com o passado pode ser também pensada nos termos de uma relação tradutória: a tarefa da tradução deve ser vista como, a um só tempo, parcial e infinita”. Essa “relação tradutória” que Seligmann-Silva defende é vista no sentido de que a pessoa, na realidade, faz uma tradução de seu passado, trazendo isso para o seu presente. Sua filha Ruth, no começo da narrativa, tem dificuldade em lidar com sua herança linguística e cultural, principalmente porque não sabe exatamente o que está herdando, além de fantasmas. Entretanto, ao longo da narrativa, Ruth começa a reconhecer que o passado de sua mãe é o seu presente de silenciamento. Qual a relação entre os fantasmas de Lu Ling e o fato de ela mesma ser um fantasma? Lu Ling escreve a sua autobiografia talvez para poder entender seu presente que encontra preso em seu passado. Isso lembra-nos de Seligmann-Silva (2005, p. 212) quando afirma que “o trabalho da memória parte do pressuposto de que o embate com o passado é guiado pela nossa situação no presente”. Somente após desejar ler a história de sua mãe e usar de um tradutor, Ruth consegue identificar-se com sua mãe e sua história e perceber que não pode negar sua história, mas, sim, aprender a mover-se entre esses dois universos linguísticos e culturais e, assim, conciliar as diferenças entre eles. Finalmente reconhece seu hibridismo. A impossibilidade de Ruth de falar com Art sobre seus problemas, a sua impossibilidade de falar com sua mãe e suas enteadas, acompanhadas de seus períodos de mudez total, espelham a impossibilidade de falar de Lu Ling. Ruth tem dificuldade em ter voz própria. A questão é: como recuperar a voz? Na obra, essa apropriação é feita a partir de uma recuperação da própria história, por mais dolorosa que seja. No fim da narrativa, Ruth parece pronta para ganhar voz e deixar de ser uma ghost writer. Parece pronta para contar a sua própria história, na sua própria língua, que talvez seja a língua de Amy Tan: um híbrido de inglês e chinês. Recebido em outubro de 2011. Aprovado em outubro de 2011. Linguistic and Cultural Mobility in The Bonesetter’s Daughter by Amy Tan Abstract Amy Tan is one of the most famous contemporary writers in the United States. Daughter of Chinese immigrants, her writing is marked by the Chinese culture and language. In her book The Bonesetter’s Daughter, Amy Tan shows us characters not only divided between two cultures and two distinct languages, but also moving between these two linguistic and cultural universes in order to conciliate them. This article analyses elements from the novel in the light of linguistic and cultural concepts. Keywords: Linguistic mobility. Authorship. English culture. 48 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 39-49, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/in6ex.php/arquivos> Referências BRISOLARA, Valéria. Mobilidade linguística. In: BERND, Zilá (Org.). Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Litteralis, 2010. GREENBLATT, Stephen. Cultural mobility: a manifesto. New York: Cambridge University Press, 2009. KRAMSCH, Claire. Language and culture. Oxford: OUP, 1998. LESSER, Wendy (Ed.). The genius of language: fifteen writers reflect on their mother tongues. New York: Pantheon, 2004. ROMAINE, Suzane. Multilingualism. 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