3outubro/2012 issn 2237-9576
Transcrição
3outubro/2012 issn 2237-9576
q3 outubro/2012 ISSN 2237-9576 editorial q mais páginas A Lado C chega ao número 3, com quatro páginas a mais, como uma das poucas publicações críticas e de debates sobre cinema e audiovisual no Brasil. A entrevista com Luiz Carlos Lacerda, publicada na edição anterior, repercutiu no meio cinematográfico além da ponte Hercílio Luz. A Lado C já não é mais uma publicação paroquial. E ela existe graças ao apoio fundamental do Fundo Municipal de Cinema, uma instituição idealizada e conquistada por diretores e produtores da Ilha de Santa Catarina, tornando-se exemplo a ser seguido como política pública que extrapola as políticas de governo, solidificando-se como uma real política de estado. Neste número, o cinema uruguaio é historicamente rememorado pelo Germán Silveira. Além disso, entrevistamos o poeta Mauro Faccioni Filho, um dos pioneiros do ressurgimento das produções cinematográficas em Santa Catarina a partir dos anos 80 do século passado. Carol Marins faz um apanhado sobre as possibilidades reais de coproduções, principalmente com países da América Latina. Marlon Krüger faz uma homenagem crítica ao cineasta Carlos Reichenbach, morto recentemente. O jornalista José Geraldo Couto analisa os filmes de Nelson Pereira dos Santos sobre Tom Jobim. Dorva Rezende escreve sobre a cinematografia de ficção científica, principalmente a partir da literatura de Ray Bradbury. Luiz Carlos Lacerda narra o brevíssimo encontro que teve com o mestre Michelangelo Antonioni. Victor da Rosa comenta o baú literário de Rogério Sganzerla. Pedro MC continua o debate com Ricardo Weschenfelder. Por fim, mas não só, Fernando Weber ilustra as páginas da Lado C. Boa leitura. Carol Marins | produtora graduada em publicidade. Estudou produção executiva e mercado internacional na EICTV/Cuba. Atuou como diretora de produção em mais de 60 filmes. É coordenadora da seleção do curso regular da EICTV no Sul do Brasil. É membro do Conselho de Ética do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Audiovisual em SC (SINTRACINE) e do Conselho Nacional de Cineclubes. CHICO CAPRARIO | roteirista e operário de cinema em Florianópolis desde 1997. Dirigiu obras como Sorria você está sendo filmado e Histórias de Cinema, e interpretou personagens em diversos filmes realizados em Santa Catarina. DORVA REZENDE | jornalista, mestre em letras pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). GERMÁN SILVEIRA | doutorando em Etudes Transculturelles pela Universidad Jean Moulin Lyon 3, na França. Mestre em ciência da comunicação e das mídias pela Universidad de Ginebra. Professor convidado do curso teorías de la recepción de la maestría en comunicación, na Universidad Católica del Uruguay. GUSTAVO JAHN e MELISSA DULLIUS | são artistas e juntos formam o duo Distruktur. Desde 2006, vivem em Berlim. Seus filmes foram exibidos na Berlinale, Torino International Film Festival, The New Museum, Caixa Cultural e Moscow International Film Festival. JOSÉ GERALDO COUTO | jornalista, crítico de cinema e tradutor. Publicou, entre outros, os livros André Breton (Brasiliense) e Brasil: anos 60 (Ática). Colabora regularmente com as revistas Bravo! e Carta Capital e mantém uma coluna de cinema no blog do Instituto Moreira Salles. Luiz Carlos Lacerda, o Bigode | diretor e roteirista. Foi professor da Escuela Internacional de Cine e TV de Cuba. É autor de vários filmes, entre eles Leila, para sempre Diniz (1987) e For All (1997), pelo qual recebeu o Kikito de melhor filme no Festival de Gramado. Neste ano, lançou o filme A mulher de longe, baseado em um roteiro do escritor Lúcio Cardoso. PEDRO MC | cursou fases de graduação de design gráfico, letras e cinema. Trabalha com design e web desde 1994. Documentarista, dirigiu Paisagem Urbana (2007), Maciço (2009) e Entrelinhas (2009). O lado da capa Apoio 02 q3 ISSN 2237-9576 outubro/2012 Diretoria (gestão 2011-2012) Reno Luiz Caramori Filho Presidente Natália Poli Diretora Financeira Flávia Person Diretora Administrativa Fausto Correa Júnior Diretor de Comunicação e Difusão Conselho (gestão 2011-2013) [email protected] [email protected] http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/funcine/ Cláudia Cárdenas Presidente Sulanger Bavaresco Vice-Presidente Sandra Ouriques Secretária Fábio Brüggemann Edição Ayrton Cruz Planejamento gráfico Denize Gonzaga Revisão Flávia Person Coordenação Gráfica Natal Impressão 2.000 exemplares Tiragem Conselho editorial Realização é uma publicação da Cinemateca Catarinense — ABD/SC e Fundo Municipal de Cinema de Florianópolis (Funcine) Patrocínio A imagem da capa desta edição foi gentilmente cedida pelo fotógrafo Scott Macleay. Canadense de nascimento, escolheu a Ilha de Santa Catarina para viver. A foto faz parte da série “Primatas”, exibida pela primeira vez em Nova Iorque, em 1985. MARLON KRÜGER | graduado em cinema pela UFSC. Escreveu, editou e cofundou a Punctum, colaborou para a Foco e é redator da revista Contracampo. Victor da Rosa | ensaísta, porta e cronista do Diário Catarinense. Mestre em literatura pela UFSC, na qual frequenta o doutorado. Organizou, em parceria com Ronald Polito, a antologia 99 poemas, de Joan Brossa (Annablume/Demônio Negro, 2009). Em 2010, ganhou o Prêmio Rumos, de Crítica Literária, do Itaú Cultural. Mantém o blog: http://www.victordarosa.blogspot.com. Cláudia Cárdenas Fábio Brüggemann Flávia Person Natália Poli Ricardo Weschenfelder Cinemateca Catarinense Travessa Ratclif, 56 Centro — Florianópolis/SC Telefone: (48) 3224-7239 Funcine (Fundo Municipal de Cinema) Rua Antônio Luz, 206 — Forte Santa Bárbara Centro — Florianópolis/SC Telefone: (48) 3224-6591 opinião Linha tensionada sobre superfície inventada C Pedro MC oncordando que temos em nossa terra uma narrativa de descontinuidade inconjugável sobre ruptura de pensamento “moderno” e tradicional, fazendo mover nossa cinematografia num eterno recomeço de referências, procuro achar em uma determinada dicotomia um movimento que tentará, enfim, aproximar olhares. A visão de Ricardo Weschenfelder em valorizar imagens que se mostrem em linhas difusas, dispersas e duvidosas, buscando desse mesmo conjunto identidade e reinvenção, me parece seguir um trajeto em que inevitavelmente as linhas se fecharão, em algum tempo, em moldura estática, carimbada com zelo histórico, protocolada em serviços de burocracia e tecnicamente decente. A reinvenção é um devaneio como o sonho, e não há fronteiras no sonho, no desejo do sonho. Inventar, desejar mudança e transformação é uma sugestão do sonho como devaneio da dimensão poética. O próprio filme recente de Weschenfelder, Dicionário, pontua esse estado onírico sobre a realidade dura. E foge da moldura velha, ainda sim comportadamente (o que merece um texto à parte). Em suas linhas, na segunda edição da revista Lado C (“Tradição negativa e eterno recomeço”), o cineasta discorre em concordâncias discutíveis sobre contrapontos propositivos, como o debate, a interação, o conteúdo. Tensiona, ainda, os fios e afirma que a relatividade deve ser nossa amiga estética na ruptura. Penso em analogia que relativa é a forma utilizada na ruptura de uma tradição que não existe, na relação entre moldura e símbolo que também não existe. O ponto de vista de Weschenfelder parece defender uma ligação afetiva com os filmes já realizados em terras cata- rinenses, mas o que joguei como provocação, em termos, no texto “Intenção e Movimento”, da primeira edição desta revista, foi o que é ser catarinense, afinal? Minha provocação fez suscitar uma réplica que movimenta intenções contíguas, supondo que se os fios descontínuos se alinhassem sobre um terreno sem nome, o doesto seria idêntico. E invento mais. Tensões dialógicas esticam fios que conectam tramas, criando linhas que se cruzam na temática da reinvenção estética ou que se movem à margem da relatividade histórica. Não importa: o desenrolar do novelo traz novas saídas; são criados novos labirintos. O local geográfico pode se tornar apenas local narrativo. Anacrônico, o cinema daqui deve se reinventar usando a seu favor uma relatividade histórica, em termos estéticos. Mas o que é cinema daqui? Cinema é linguagem universal, é uma forma de expressão sobre o mundo; encanta e enche os olhos das pessoas (e tem ainda por aqui um falso glamour herdado lá no “nosso” modernismo ainda vigente, ou, talvez, pelo provincianismo latente). A descontinuidade adquirida de uma cinematografia regional que não dá pistas sobre sua ruptura permite uma saída que vem paradoxal e cegamente por uma descoberta e invenção de si mesmo. Saber-nos como seres humanos contemporâneos — homo-rapiens do consumo, submissos de um trabalho por um progresso do capital, tão escravizados quanto Sísifo, animais experimentais, pessoas com desejos múltiplos — é fundamental para refletir na tela mais do que uma historinha. E é nesse sentido que critico o imbróglio do cinema feito por aqui em terras acima do mar, quando o audiovisual se deixa levar pela navegação segura da prosa, fechado na escotilha. “Meus velhos brinquedos de sonho, Compondo fora de mim minha vida interior!”, esbraveja contra a segurança de uma navegação sem alma, Fernando Pessoa: “Sede vós os frutos da árvore da minha imaginação, / Tema de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência, / Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética, / Fornecei-me metáforas imagens, literatura, / Porque em real verdade, a sério, literalmente, / Minhas sensações são um barco de quilha prò ar, / Minha imaginação uma âncora meio submersa, / Minha ânsia um remo partido, / E a tessitura dos meus nervos uma rede a secar na praia!” (“Ode marítima”, Álvaro de Campos, 1915). Além da superfície E encontro ontem à noite, em sua estreia, intuindo que o assistindo mudaria todo este texto, o filme Linha do Mar, de Felipe Vernizzi. Tudo que foi tensionado no texto emerge nesta obra com simplicidade. Uma simplicidade comovente, de fato. Simplicidade tão cara ao cinema, num plano, Vernizzi tem a liberdade do ar tão plástica que é capaz de filmar o horizonte do mar de cabeça para baixo, plano de sonho que remete ao cinema de Terrence Malick, ressonando a fotografia de Paris, Texas (Wim Wenders, 1984) e Daunbailó (Jim Jarmusch, 1986), de Robby Müller, a textura da natureza em movimento com um fio de narrativa ligada ao homem. Se a forma resolvesse algum aspecto provocativo de localidade, Vernizzi consegue transmutar a questão. O que se chama de Florianópolis são todas as praias do mundo. A areia é apenas a areia. A realidade não é só colorida. A realidade, no cinema, é uma busca eterna pelo aumento das fronteiras do próprio cinema. Transmutar o significado das coisas que inventamos, sentido maior para a vida em movimento. Linha do Mar, filme de Felipe Vernizzi 03 entrevista Mauro Faccioni Filho Entrevista concedida a Fábio Brüggemann 04 M auro Faccioni Filho é engenheiro elétrico de formação e dirige uma empresa de infraestrutura em tecnonogia de informação. O leitor pode perguntar o que faz um engenheiro nas páginas da Lado C. Quem não viveu na Ilha de Santa Catarina na década de 80 do século passado, possivelmente não assistiu aos filmes produzidos por ele. Entre eles, o mais polêmico, está o média-metragem Bruxas, uma leitura bastante pessoal do universo ilhéu. Mauro produziu também o primeiro longa-metragem feito em vídeo no estado. Ainda em VHS, Loba é inspirado no cinema de Rogério Sganzerla e, por consequência, no Acossado, de Jean-Luc Godard. Desde àquela época, Mauro tem se dedicado também à poesia, que o colocou entre os mais importantes poetas de sua geração. Além disso, publicou várias revistas literárias, entre elas, e que permanece até os dias de hoje, a Babel, em parceria com o poeta Ademir Demarchi. LADO C | Mas não lhe interessa mais, mesmo que seja para um suposto “pouco público”, fazer “filmes de pensamento”? De algum modo, cineastas que “fazem pensar” também têm pouco público. Mauro | Não, não me interessa mais, porque esse pensamento a que me referi não consegue ser bem estruturado dentro da produção fílmica, no meu entender. Pois, como está dito, é uma produção. Assim, o ato de pensar acaba se diluindo de alguma maneira, acaba se enfraquecendo. Acho que a função do cinema, prioritária, fundamental, não é mesmo a do pensamento. É a da fruição. LADO C | Você diz que prefere os poemas, mas a arte poética também tem um público ínfimo. As tiragens de livros de poemas no Brasil, com mais de 200 milhões de habitantes, não passam de mil exemplares. Mauro | O poema não é uma produção industrial, então não tem a função “público” como uma característica. Além disso, o poema é individual, é uma oferta individual para um entrevista LADO C | No começo dos anos 1980 você não só fez vários filmes experimentais, médias e curtas, mas também agrupou outros jovens que até hoje continuam fazendo filmes. Um dia você não quis mais, dizendo que o modo “industrial” exigido para se fazer filmes não lhe interessava, e que não havia recursos para a produção de filmes experimentais, ou que não dependesse do esquema tradicional de produção e distribuição para recuperar o suposto investimento. Passados quase vinte anos sem fazer filmes, você ainda pensa assim? Mauro Faccioni Filho | Passados esses vinte anos, muitas coisas mudaram, muitos pensamentos mudaram. Acho que o filme experimental ganhou uma dimensão nova, pois as tecnologias permitiram mudar o modo de produção, facilitaram muito o modo de produção. Agora ficou bem mais fácil fazer um trabalho experimental, e também é muito fácil publicá-lo, mostrar ao público. Mas o problema será o de ter algum público. Colocar um trabalho experimental na internet não quer dizer que haverá algum público. Haverá uma vitrine compartilhada infinitamente. Enfim, há um gargalo que não é de produção, mas de “querer dizer”. Experimentar por experimentar não tem muito sentido, é apenas exercício. Acho então que o filme de pensamento, que era o que eu queria fazer (e que não é experimental), esse continua muito difícil de encaixar no sistema de produção e veiculação. Prefiro os poemas. público individual. Então a questão do volume não cabe na fórmula; por isso não tem importância relevante. Um poema importante terá uma resistência capaz de fazê-lo sobreviver, e o público vai se montando na linha do tempo. Caso não tenha resistência, irá desaparecer. Não há problema nesse caso. LADO C | Mas a história provou que vários filmes, ainda que tenham tido públicos restritos, também tiveram essa resistência para a sobrevivência. Seria o suporte o inimigo? Porque o livro você carrega para onde quiser, ao contrário do filme. Mauro | Acho que o suporte é apenas um dos inimigos. Mas o principal é a estrutura interna do filme. Com o passar do tempo, a estrutura física que dá suporte à dramática vai ficando mais proeminente, acabando, então, com sua sobrevivência. Ao contrário da fotografia estática, pois essa é uma composição individual como a pintura. LADO C | Os diretores de cinema, pelo menos os diretores “donos” de seus filmes, o “diretor-artista” (em contraponto ao diretor da indústria), até os anos 1980 eram mais leitores, mais intelectuais, mais pensadores. Hoje, mesmo os diretores que tentam fazer filmes independentes parecem que perderam o gosto pelo pensamento. É mesmo a vitória da fruição? Mauro | Não acho que a fruição tenha algo a ver com isso. E os diretores que queriam ser donos de seus filmes não eram tão intelectuais assim. Provavelmente faziam muita pose, e nós compramos essa imagem. O ato de pensar é uma fruição. LADO C | Há uns dez anos, se não me engano, você publicou no Diário Catarinense um extenso artigo crítico sobre os filmes produzidos em Santa Catarina. Significa que você estava interessado nessa produção, mesmo que pelo viés crítico. Tem visto as últimas produções depois disso? Mauro | Sempre tive interesse nas produções, e sempre me interessei pela análise crítica. Mas infelizmente não tenho visto as produções recentes (por culpa do tempo, de responsabilidades e de outros problemas). LADO C | Voltando um pouco, quando você fala de cineastas que faziam pose, está se referindo a algum especial, ou de uma época? Mauro | Fazer pose tem a ver com se mostrar, se exibir. Os cineastas da época do Cinema Novo tinham isso como parte do negócio “... Agora ficou bem mais fácil fazer um trabalho experimental, e também é muito fácil publicá-lo, mostrar ao público. Mas o problema será o de ter algum público. Colocar um trabalho experimental na internet não quer dizer que haverá algum público.” 05 entrevista “... E parecer inteligente e culto era algo que vendia bem. No entanto, o conteúdo não era equivalente ao tamanho da pose. Era oco. O problema é que isso permaneceu como parte do negócio mesmo depois, e até hoje tem gente de cinema que tenta clonar esse estilo.” 06 deles, sem dúvida. Era uma fase, um jeito de ser. E parecer inteligente e culto era algo que vendia bem. No entanto, o conteúdo não era equivalente ao tamanho da pose. Era oco. O problema é que isso permaneceu como parte do negócio mesmo depois, e até hoje tem gente de cinema que tenta clonar esse estilo. LADO C | Você se importaria de exibir seus filmes novamente? Mauro | Claro que não. Não me importo e acredito que os filmes têm a sua vida, não são objetos para se guardar. Estão livres para exibição onde houver interessados em assisti-los. LADO C | Certa vez você falou que depois que assistiu ao Bandido da Luz Vermelha, do Rogério Sganzerla, sua ideia de cinema havia mudado. Seus filmes, principalmente Loba, têm alguma influência dele? Mauro | Muita influência. Adorei os filmes do Sganzerla. E ao mesmo tempo descobri algo absolutamente surpreendente, que era o fato de o cinema dele ser tão excepcional, e ele pessoalmente alguém tão banal (mas com muita pose). A fala, os discursos, tudo meio sem nexo, nem sentido, ao contrário dos filmes, cheios de inteligência e sutilezas. Até hoje não sei explicar, ou então eu mesmo é que não entendi nada. LADO C | E sobre os poemas, esperamos que não tenha abandonado a feitura deles. Alguma publicação em vista? Mauro | Não abandonei. Pelo contrário, tenho me dedicado a eles. Revisando uns textos, escrevendo outros. Tenho um volume que estou arrumando para tentar publicar. Mas estou em dúvida sobre a qualidade. De vez em quando fico indagando se há valor neles; então deixo um pouco guardado para amadurecer. Daí releio, e volta e meia jogo alguns fora. Outros vão aparecendo e tento criar alguma unidade no conjunto. Os que não se encaixam nessa visão de “conjunto”, deixo de lado por uns tempos, até chegar a hora de continuar com eles, ou jogar fora. LADO C | Algum outro cineasta ou filme especificamente fez parte da sua formação como diretor? Mauro | Glauber fez dois filmes excepcionais (Deus e o Diabo e Terra em Transe), mas o resto é muito fraco. LADO C | Hoje há uma preocupação maior em relação à preservação e, em alguns casos, à restauração das obras cinematográficas. Falando nisso, seus filmes — muitos deles feitos em 16mm, outros em vídeo, no formato VHS ainda, e até o Bruxas (curta em 35mm) — estão bem preservados? Mauro | Os negativos dos filmes em 16mm estão na Cinemateca Guido Viaro, em Curitiba. O resto está se perdendo, devido ao tempo. LADO C | Você tem revisto seus filmes ou os exibido em algum lugar? Mauro | Não, não os revejo, nem os tenho exibido. LADO C | Você fundou e editou várias revistas literárias. A última, Babel, ainda é publicada, apesar de você não fazer mais parte da edição. Você tem vontade de voltar a editar outra revista? Mauro | A Babel que está sendo publicada é um projeto especial que o Ademir Demarchi conquistou junto ao Ministério da Cultura. É um conjunto de edições especiais. Ao final, retornaremos à Babel. Mas é provável que a gente invente outra. De fato tenho fundado revistas desde muito tempo atrás. Lançamos a 84, depois a ExVia, depois a Babel, e talvez tenha alguma coisa avulsa aí pelo meio. LADO C | Se o cinema de Rogério Sganzerla foi bastante influente na sua formação cinematográfica, que poeta (ou quais) foi ou é fundamental na sua formação como poeta? Mauro | Isso tem mudado com o tempo. A cada época me sinto influenciado por um diferente, e isso vai e volta. Comecei com o Drummond, depois o Borges, mas antes foi o Leminski, depois foi o Homero com a Ilíada, então traduzi o Yeats, e mais pra frente algo do Pessoa. Na verdade acho que é uma mistura bem geral; tenho muitas afinidades, mas não sei quem seria o fundamental. Como disse, vai variando. No entanto, tenho a impressão de que meus poemas não variam tanto quanto meus gostos literários. 16mm + vídeo + 35mm slide | Brasil/Alemanha | desde 2006 Gustavo Jahn e Melissa Dullius F luxus et Refluxus é um projeto que vem acontecendo desde a nossa mudança de Porto Alegre para Berlim. A viagem começa a bordo de um navio cargueiro singrando um oceano e continua em Berlim até os dias de hoje. Um filme travessia, que representa em imagens e sons o acúmulo de vivências e a passagem do tempo. A forma do filme e o formato de exibição são flexíveis, acompanhando o nosso desenvolvimento técnico e poético. A vida é uma aventura. x Fluxus et Refluxus lembra o título de um filme português, Vai e Vem. O repuxo é perigoso. No mais, tudo o que aconteceu depois de seis anos. E o silêncio do abismo. A conta sempre chega, dizia um sábio amigo. Começamos sobre o preto do Oceano Atlântico. Pois o azul, depois de um tempo, tornou-se preto. Em uma festa, uma voz da pista de dança clama: sempre pra frente! Há um navio navegando. E é isso. x Outro dia alguém perguntou, mas é sobre o quê? - Sobre pedras. E o que vocês falam das pedras? - A gente apenas mostra elas. x A imagem é. Imagine. x Relato de dois viajantes sobre um filme visto em algum lugar não se sabe quando x O navio singra no mar escuro, cinza escuro quase preto. Nuvens muito brancas pairando acima da linha que divide mar e céu. x A silhueta da mulher diante da janela. A luz passa pela cortina e inebria todo o espaço. Ela não consegue dormir, parece nervosa. O corpo do homem se mexe sobre os lençóis; ele fala para ela não se preocupar, abrir a janela. Ela deixa um pouco de ar entrar no quarto e volta para a cama, tira a blusa e se deita de lado. Deitada, mantém os olhos abertos. x Trens partem na hora marcada. x Pessoas deitadas num quarto pequeno. Há uma cama, o homem e a mulher estão deitados nela. Os outros estão espalhados, no chão, em poltronas. Repentinamente alguém en- tra no quarto, uma mulher talvez, e vê todos dormindo. Há um deles que finge dormir. x Letras sobre um horizonte formam as palavras: FLUXUS ET REFLUXUS. x Na beira da praia um grupo de pessoas acena, agitando lenços brancos. x O homem caminhando por uma rua encontra uma carta, um ás de copas. Guarda a carta no bolso de sua camisa, uma camisa branca. x Um objeto pontiagudo corta o oceano. É o bulbo da proa, na dianteira do casco. Os reflexos do sol na água produzem um chuvisco de estrelas. x O homem todo de vermelho sentado no chão torna-se uma abstração, um arco-íris nervoso. Tshhhh... tshhh... uma lata de spray. Ainda está ali o espectro do homem, que se tornou a paleta de suas cores a vibrar, espectro-movimento. x Um terremoto, ou pelo menos tudo treme, ruas em declive, atalhos, prédios. x Uma cerca protege um terreno baldio. Uma sacola de plástico desfiada balança ao vento como uma bandeira. x Uma paisagem em U, uma depressão suave, um half pipe natural. De longe, alguém desce o U de bicicleta, e depois cruza um campo coberto de folhas amarelas em alta velocidade. x Um cavalo azul. x A mulher vestindo um chapéu branco e um vestido de seda entra numa loja de flores. x Uma construção vista de cima, uma cratera enorme onde se movimentam diversos trabalhadores e máquinas. O chão do lugar é branco, parece neve ou areia. x Na popa de um navio, sob o sol a pino, um trabalhador solitário puxa uma corda, arrastando-a pelo chão. Ao fundo, o rastro de espuma branca que o navio deixa no mar. x O homem de perfil balança enquanto fuma, para frente e para trás. A expressão de um anjo esculpida em mármore observando o homem. x O sol se põe no mar. x Uma cratera no meio da cidade, uma pessoa girando dentro dela. x O homem entra em uma cabine telefônica e faz uma ligação. Numa escada rolante, encontra outro homem e os dois trocam objetos, papel por papel. x Mão voa sobre a espuma do mar. Pássaro de asas abertas. Navio no horizonte. x Em preto e branco, a proa de um navio. Ao longe, a linha do horizonte que sobe e desce, e no alto, nuvens que se movem rapidamente, para esconder, depois revelar o sol. O homem surge, pequenino ante o cenário, e caminha até o ponto mais dianteiro da proa. x Fim de tarde, a luz do sol divide o céu com nuvens cinza. A mulher andando por uma avenida larga, olhando para o nada. O vento bagunça os cabelos dela. Aperta os braços contra o próprio corpo como se sentisse frio. x O rosto da mulher e depois do homem aparecem na lua. x Com a luz do dia filtrada pela cor das cortinas, não se vê mais que silhuetas. Uma mulher com cabelos longos presos num rabo de cavalo faz uma massagem no corpo da mulher que está deitada de bruços em uma mesa. A mulher deitada não se move, é um corpo inerte manipulado pela massagista. x A espuma no mar fica para trás e forma uma estrada branca. x Sobre uma mesa, a mulher manipula com um inseto verde e vermelho. Sem querer arranca sua cabeça e depois encaixa de novo no corpo. x Um terreno atrás de um prédio com o mato crescido. x Chegando a um porto, linhas de montanhas no horizonte, pequenos barcos à frente. Um barco de polícia se aproxima em velocidade de outro barco pequeno. x Luzes do navio atracado brilham na noite, guindastes empilhando contêineres sobre o casco. Dentro da cabine, silêncio. roteiro Fluxus et Refluxus 07 coproduções fotos divulgação Cena de O Gigante, de Júlio Vanzeler e Luís da Matta Almeida, produzido pelo português, radicado em Santa Catarina, Igor Pitta COPRODUÇÃO O filme além do umbigo Quando contar histórias rompe barreiras geográficas, de idioma, de conceitos e se torna indústria O 08 Carol Marins Brasil de hoje se apresenta como um ótimo parceiro para as coproduções internacionais. É de fato um mercado crescente e ainda muito paternalizado. Na contramão do hiato político histórico do setor, é inegável o esforço em âmbito nacional e a função estratégica que o Itamaraty, o MinC e a Ancine têm para ampliar a participação brasileira no mercado externo: programas como o Cinema do Brasil e Ibermedia; acordos de coprodução multilaterais e bilaterais com diversos países, editais bilaterais para coproduções com Espanha, Uruguai e também com a Argentina. Aqui no Florianópolis Audiovisual Mercosul (FAM), berço da Reunião Internacional de Autoridades Cinematográficas e Audiovisuais do Mercosul (Recam), foi lançado o edital Brasil/Argentina, que investirá US$ 800 mil na produção de quatro projetos de longa-metragem independente. Sem falar na aprovação da lei n.o 12.485, surgindo como uma nova oportunidade para tornar a produção brasileira mais atrativa. Claro que ainda falta quebrar muitas barreiras para a coprodução internacional se tornar mais expressiva e sem oscilações a cada “tombo” político. Ainda durante o Fórum do FAM, Manoel Rangel, presidente da Ancine, apresentou os esforços políticos do setor que esbarram na burocracia e em interesses de leis de importação e exportação. Em pesquisa com produtores, os anseios dessa complexa e sofisticada economia são: ajustar certas exigências trabalhistas para países que não têm acordo de coprodução com o Brasil; garantir que os recursos de editais e do Fundo Setorial Audiovisual tenham um prazo definido; criar uma linha de desenvolvimento de projeto específico para coproduções; isentar de impostos as remessas de dinheiro destinadas a coproduções que tenham que ser filmadas no exterior e adequar o orçamento à realidade do mercado brasileiro. Ralf Tambke, da Plural Filmes e presidente do Sindicato da Indústria Audiovisual de Santa Catarina (Santacine), conta que sua primeira produção após a universidade já foi uma coprodução internacional: o longa-metragem de 7 episódios, Os Sete Sacramentos de Canudos (Die Sieben Sakramente von Canudos). Produzido por Peter Przygodda, ZDF (segunda TV Alemã), coprodução dos realizadores brasileiros Joel de Almeida, Jorge Furtado, Otto Guerra, Luís Alberto Pereira, Pola Ribeiro, Ralf Tambke e Sandra Werneck. “Foi um grande aprendizado, em 1994, famosa era pós-Collor; tivemos todos os ingredientes necessários para uma coprodução dar errado. Somente um país coprodutor tinha recursos finaceiros, a Alemanha. Foram diversos diretores brasileiros, em diferentes estágios de experiência e todos ávidos por recursos; as histórias eram autorais, mas a expectativa dos coprodutores alemães era de episódios que se comunicassem entre si, o que foi impossível, visto que os brasileiros não dialogavam; não havia um distribuidor, ou TV brasileira, interessado no projeto.” Quando o próprio roteiro trata de questões de diferentes países ou de regiões nacionais, fica mais fácil o posicionamento do filme no mercado. A coprodução se torna natural, orgânica. É o caso de Infancia Clandestina, que estreou em Cannes, na Quinzena do Realizador, e abrirá a mostra Horizontes Latinos do Festival de San Sebastian, uma das maiores vitrines europeias do cine latino-americano. Em entrevista à Lado C, o roteirista do filme, Marcelo Muller, afirma que começou a trabalhar com o argentino Benjamin Ávila em 2005/2006, muito antes de existir uma coprodução formal entre as produtoras envolvidas no filme. “Tenho uma relação de parceria no trabalho com ele há muito tempo, desde a Eictv; dessa maneira, a integração da indústria brasileira e argentina vem complementar uma vontade anterior de um argentino e um brasileiro que achavam que suas visões poderiam trabalhar juntas em benefício da obra. Como o roteiro aborda uma questão muito particular de um momento da história argentina, um brasileiro trabalhando junto com o diretor no roteiro po- uma boa fatia. E aqui em Santa Catarina não é diferente. A blumenauense Belly Studio, especializada em animação, destaca especialmente os eventos de negócios MIPJr (França), TAC (Canadá) e Kidscreen (USA). Atualmente, estão construindo uma relação no Canadá com o projeto História de Amor. Aline Belly afirma que uma coprodução é como um casamento, cada um contribui com algo, com seus direitos e deveres. Acrescenta que uma particularidade brasileira que aumenta o risco de investimento nesse mercado é quando a produtora tem que arcar com o “custo de saída”, desde a ideia, roteiro, piloto e o desenvolvimento do projeto em si, enquanto em outros países existem programas de investimento para essa etapa, chamado seeds. “Se você vai começar hoje, mas com bons projetos, e com boa base de formação de como funciona o mercado, pode fazer negócio no primeiro evento que participar. Mas se for começar do zero, eu diria que no segundo ano é mais provável. É preciso estar preparado e conhecer as práticas do mercado para poder lidar com os que já têm experiência”, aconselha João Roni. O português Igor Pitta Simões mora em Santa Catarina há 8 anos, e em todas as produções tem a participação de seu país de origem. Já teve, está tendo e terá coproduções internacionais. A relação com nosso estado iniciou quando em férias por Florianópolis, na época dirigindo a animação Pescador de Sonhos, foi apresentado ao Chico Caprario, que participou da coprodução. Por sua nacionalidade, Igor tem acesso aos mecanismos de fomento do Instituto do Cinema e Audiovisual de Portugal (ICA), o que é um facilitador de todo o processo. Sempre em parceria com a portuguesa Zeppelin Filmes, seu último trabalho envolveu parceiros também da Espanha e da Inglaterra. Trata-se de O Gigante, ganhador do Prêmio Funcine (Fundo Municipal de Cinema de Florianópolis), em que Igor é produtor executivo. O Gigante ganhou o prêmio de melhor animação pelo júri popular do 45.o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e foi selecionado em quinze festivais nacionais e internacionais (Espanha, Canadá e Alemanha). Assim como Pescador de Sonhos, premiado no Animatu, em Portugal, O Gigante já nasce com uma trajetória internacional. Já em terras tupiniquins, onde compartilhamos os modi operandi da produção cinematográfica, a associação entre produtoras é mais simples e menos burocrática. Cíntia Bittar, Ana Paula Mendes e Carol Gesser, da Novelo Filmes, citam o exemplo do estado do Rio de Janeiro, que desde o ano passado, através de sua Film Commission, investe em coproduções internacionais e nacionais com sua chamada pública. Neste ano, a Novelo está concorrendo com um projeto em coprodução com a carioca Modo Operante. Iniciativas como essa são im- coproduções deria ajudar para que o filme encontrasse uma visão mais fresca e próxima do público, que não está tão envolvido com essas questões.” O longa foi coproduzido com a argentina Historias Cinematográficas, empresa de Luis Puenzo, que ganhou o Oscar de filme estrangeiro por La Historia Oficial. “O filme foi realizado com recursos próprios e, na época, Ávila e a Academia buscavam patrocínio para a finalização. Somente no começo de abril a coprodução foi oficializada pela Ancine para poder captar”, finaliza. Também em San Sebastian, mas na Competição Internacional de Novos Diretores, voltada a cineastas iniciantes e obras inéditas, está o filme Cores, dirigido por André Gevaerd, de Balneário Camboriú, com produção da Kinoosfera Filmes, que também já passou pelo Festival de Toulouse. A Ocean Films, também catarinense, está com várias coproduções em andamento com produtoras brasileiras em conteúdos para TV e cinema. “Acabamos de aprovar a coprodução de uma série de documentários com 13 episódios que vamos rodar em 5 países da América Latina em coprodução com a Abbas Filmes. Vai veicular no canal Infinito da Turner e na TV Futura. Também para a Turner, mas para o canal TNT, temos um curta que foi coproduzido com a Casa de Cinema do RS para o programa ‘Fronteiras’, apresentado por Juan Campanella, diretor de O Segredo dos seus Olhos”, diz João Roni, que também é membro do Conselho Federal da Associação Brasileira de Produtores Independentes de Televisão (Abpitv). O Brazilian TV Producers — programa de exportação da Abpitv — tem promovido diversas ações de aproximação entre os setores audiovisuais nacional e internacional, estimulando a participação de produtoras nos mais importantes mercados de conteúdos como Mipcom, Miptv. A Abpitv realiza, desde 2011, um dos mais importantes mercados de conteúdo multiplataforma da América Latina: RioContentMarket. Segundo a entidade, em suas duas edições, o evento reuniu mais de 4 mil participantes, com representantes de mais de 30 países. Gerou expectativas de negócios superiores a US$ 70 milhões. Outra ação que surgiu também como uma forma de fomentar os produtores, e que passou por SC em março, foi o “ABPITV nos estados”, cujo foco é capacitar e estimular a produção audiovisual fora do eixo Rio–São Paulo. São considerados os principais eventos de negócio internacional para filmes: Cannes, Toronto e Berlinale. Obviamente, a indústria cinematográfica e audiovisual é grande e vai além desses dois segmentos — tv e cinema, existindo um mapa específico para gênero de obra, região de origem e jovens cineastas, como o Nuevas Miradas, no Festival de Cine Latino Americano , em Cuba, e o Berlinale Talent Campus. A diversidade de produtos e segmentos é enorme. Cada um com suas especificidades, e algumas têm mais oportunidades de mercado. A animação, por exemplo, porque possui flexibilidade para diversas traduções, representa portantes e vitais para o aquecimento do mercado interno de produção, e deveriam se multiplicar entre os demais estados. Também é do RJ a coprodutora Cavídeo, com quem desenvolvem um longa de ficção. “Em 2012, nossa produtora trouxe a produção de um curta-metragem Promessa em Azul e Branco, ficção paraense, para ser filmado em Florianópolis. O filme foi rodado na capital com recursos do Edital do MinC, mobilizando diversos trabalhadores locais e gerando renda para o município”, afirmam. Organizar o setor em Santa Catarina é desbravar. É fato, está acontecendo e é importante destacar e reconhecer que aqui essa organização tem conquistado um espaço importante com objetivo de produzir e qualificar nossos profissionais e produtores. Mas de nada adianta sermos o cenário perfeito e termos produções lapidadas à exigência internacional se falta muito ainda. Falta maturidade de projetos. Falta desenvolvimento de projetos de coprodução natural. Falta visão de público. Falta o interesse de produtores em participar de eventos, importante para criar uma rede de relacionamentos. Falta conhecer como o mercado funciona: quem decide, o que os canais de TV querem, o que os distribuidores buscam e quais mecanismos de financiamentos se adequam aos seus projetos. Falta por parte da política local também um estímulo aos produtores buscarem coproduções no exterior e no Brasil. Entre tantos retalhos de faltas, há uma importante falta: abrir o gargalo da distribuição e exibição. 09 exposição foto divulgação Foto de Toldo Pinhal, de Chico Faganello, 1994 Mostra 26 Celebração dos 26 anos da Cinemateca Catarinense D e 4 a 10 de junho de 2012, a Cinemateca Catarinense comemorou seus 26 anos de existência, expondo, no Museu da Imagem e do Som (MIS/SC), no Centro Integrado de Cultura (CIC), fotos de vários filmes produzidos nesse pouco mais de um quarto de século. Além das imagens, foram exibidos alguns filmes da Vera Cruz, produzidos nos anos de 1950, mesma época da produção de O preço da ilusão, dos modernistas catarinenses, homenageados na mostra. 10 Foto still de Farra do Boi, o documentário, de Zeca Pires, 1991 exposição Eglê Malheiros em O preço da ilusão, 1957 Daniel Izidoro em Naturezas Mortas, de Penna Filho, 1995 Lima Duarte em Novembrada, de Eduardo Paredes, 1998 Cena de Extra Ser, de Celso do Santos, 1989 11 homenagem foto divulgação Falsa Loura: filme-testamento F Rosanne Mulholland e Cauã Reymond em Falsa Loura, de Carlos Reichenbach (2008) 12 Marlon Krüger alsa Loura coloca o trabalhador no seu lugar: de consumidor. Num mundo onde tudo se tornou comensurável, intercambiável e descartável, Falsa Loura nos apresenta Rosanne Mulholland no papel de Silmara. Os filmes de Carlos Reichenbach possuem, historicamente, mulheres fortes, indomáveis, que fazem uma escolha e percorrem esse caminho por acreditarem no quê?, e colhendo os sofrimentos e as felicidades dessas escolhas. Aurélia Schwarzenega, a personagem de Michelle Valle em Garotas do ABC, apaixona-se por um jovem que participa de atentados a negros e nordestinos na região de São Bernardo: ela entra no relacionamento sabendo exatamente o que pode lhe acontecer, mas querendo o suficiente para arriscar ainda assim. Em Lilian M., a protagonista apaixona-se por um mascate e abandona a sua família no interior, lutando por sua vida na capital, sempre orgulhosa, sempre corajosa. Reichenbach, percebemos, é um romântico. Um utopista, como o próprio se classificava. O amor no mundo cruel de Reichenbach já nasce condenado, e quanto mais profundo o êxtase, maior será o pathos. Então, suas mulheres se apaixonam, seguem seus corações e sofrem por isso. Prazer e dor estão materia- lizados no corpo de Rosanne Mulholland ao longo do filme. Ela nos evidencia como os dois estão próximos, como diz a frase de Sócrates que abre o filme. Este texto poderia se chamar muito bem “Alma corsária”, referindo-se a um dos filmes que Reichenbach rodou. Ele traduziu perfeitamente o espírito profundo de um artista engajado na sociedade brasileira de seu tempo: buscou inscrever suas criações cinematográficas nos maiores movimentos de transgressão possíveis. Por isso suas personagens: Lilian/ Maria/Célia, Silmara, Aurélia. Sua figura corsária era o que havia de mais desconcertante em sua personalidade. Seu navio atracou em diversos cineastas (Fuller, Bava, Zurlini, os filmes B americanos e os japoneses — de Corman a Imamura) e só saía dali para retornar no futuro. Baixando filmes, indicando sites, permanecendo no underground paulista, depois adentrando o território das comédias eróticas toleradas pela censura, Reichenbach foi uma fígura atípica no cinema brasileiro, respeitado por uns e por outros, mas que se aproveitava das estruturas de produção locais como ninguém. Sua carreira nunca parou. Sofreu com problemas de saúde e de produção que atrasaram alguns filmes e transições ao longo de sua caminhada, mas o que Reichenbach deixa, além dos filmes a serem redescobertos e reavaliados longe de sua persona carismática, é o ímpeto pela atividade cinematográfica e imbuída aí a busca por um público local. Aos que costumam se referir como o “problema do cinema brasileiro”, isto é, aquilo de não nos reconhecermos diante da tela, Reichenbach faz desse talvez seu principal assunto. Simultaneamente, ele não é capaz de abrir mão de escolhas em prol de um público mais amplo. O resultado é que seus últimos filmes, melodramas femininos que refletem o destino das personagens e investigam suas imagens, terminariam por ser exibidos em sua maioria nos circuitos de cinemas distantes das locações de seus filmes, ou seja, da periferia paulistana. O trabalho de Reichenbach se situa entre o cinema experimental e o cinema popular. No entanto, é de fácil acesso ao grande público por tratar-se de cinema de gênero. As referêcias dele não são, então, muito diferentes dos nomes que povoaram a vida de um cinéfilo: Samuel Fuller, Jean-Luc Godard, Nicholas Ray, Shohei Imamura, mas também o soberano do filme B, Roger Corman. Em todos os filmes de Reichenbach se nota, direta ou indiretamente, um cinema popular, poderia-se dizer um cinema “retornado”, um cinema feito para dinamitar as barreiras inerentes a todos os gêneros do cinema. Para frustar a censura política que segurava o país firmemente — e onde nada relacionado à moral ou à política poderiam ser ditos — resistiu fazendo pornôs softs. Na época, a censura política era bastante dura, mas nunca chegou a se ocupar com os filmes de sexo, e mesmo a censura moral não se ocupava do conteúdo político desses filmes. Evidentemente, muitos diretores embarcaram nessa oportunidade. Mas poucos eram realmente talentosos como Reichenbach, além de Jean Garrett, Claudio Cunha ou Ody Fraga. Poucos decidiram jogar com os clichês do pornô, poucos se preocuparam em fazer desvios, em recusar seu contéudo machista e principalmente em fazer um filme de acordo com sua concepção. Essa “antroprofagia da bricolagem”, que Reichenbach impunha a si mesmo, transformava esse tipo de cinema manco a jogar pela descontrução completa da linguagem cinematográfica habitual ao genêro. Por isso o erotismo é tão notável na primeira metade de sua carreira, em filmes como: O Paraíso Proibido, de 1971; Lilian M.: Relatório Confidencial, de 1975; A Ilha dos Prazeres Proibidos, de 1979; O Império do Desejo, de 1981; Amor, Palavra Prostituta, de 1982; Extremos do Prazer, de 1984. O ponto de virada na filmografia de Reichenbach é um pouco lenta como a democratização e abertura política brasileira dos anos 1980: aos trancos e barrancos, filmes diferentes, que permitiam escapar ao genêro erótico, surgiam. Filme Demência, de 1986, talvez seja o primeiro grande sinal: era um filme sobre cinema, desde o título. Um ano depois, com Anjos do Arrabalde, Reichenbach anunciava uma dramaturgia mais cuidadosa, com formatos dramáticos mais rígidos, movimento que culminará num dos grandes filmes brasileiros da última década: Bens Confiscados, quase um veículo para Beth Goulart. O retorno à democracia permitiu a Carlão aproximar diretamente as questões políticas ou sociais que esse filho de editores educado à base de gibis e Proudhon trazia no coração (uma das grandes características dele era a conversa interminável, a paixão desgarrada por seus assuntos queridos): em 1993, Alma Corsária celebra o mundo e a amizade dos poetas (mas também Sam Fuller). Põe em andamento seu projeto audacioso de seis retratos que mapeariam o mundo feminino do ABC paulista e suas noites no Clube Alvorada (no já citado Garotas do ABC e outros), e evoca o fantasma dos anos de repressão política (em Dois Córregos, a cidade que adotou como sua ao ponto de transformá-la em filme). Raramente a classe operária, em especial em sua composição feminina, terá sido contornada com tanta precisão e respeito. Elas podem estar trabalhando nas fábricas ou ensinando nos colégios, mas seus retratos de mulheres sempre vão buscar o essencial. Mesmo nos detalhes, pois são eles que fazem a vida e a injetam sentido. Em Filme Demência (ou “filme de cinema”) podemos ter ideia do tipo de guinada fascinante que Reichenbach dá ao seu cine- ma: reencontramos suas obsessões familiares, acompanhadas de uma nova reflexão sobre a força (e a fraqueza), o êxito (e o fracasso) e o desejo forçado do sonho (com alguns momentos de realidade em volta). A partir da história de Fausto, este filme de cinema vai derivar (a deriva é um grande assunto de Alma Corsária também, e indo mais longe, foi o grande tema de seu professor e mentor, Luís Sérgio Person, em São Paulo Sociedade Anônima) docemente (embora com a segurança de quem conhece o gênero) para o thriller poético, enquanto a encenação de Reichenbach passa, depois de extremos pornotropicais a um estilo mais próximo do esboço. As mais belas cenas são violentamente inventivas como, em particular, na utilização astuciosa do carrinho de Cocteau (leva-se o personagem até a câmera, e não o contrário); associada a efeitos de profundidade de campo, essa técnica permite a Reichenbach inventar um espaço absolutamente inédito, em que seus heróis (aqui, Fausto) deslocam-se como fantasmas; e em Falsa Loura, no último segmento do filme, é Silmara quem se desloca até a câmera, ou melhor, dentro da estrutura interna do filme, desloca-se como uma fantasma até o olhar do garoto, antes de ir até seu quarto, garoto que é uma pequena retroprojeção autobiográfica de burguês urbano em confronto com seus fantasmas sob a forma de prostitutas lascivas e de esposas masoquistas que assombraram os personagem masculinos de Reichenbach em muitos de seus filmes. O grosso da crítica de cinema passou ao largo dos assuntos, todos muito triviais, dos últimos filmes de Reichenbach. E o que se pode ler sobre Falsa Loura ou Garotas do ABC, positivamente (a fluidez da decupagem e da montagem, excelência nos diálogos e da interpretação), ou negativamente (estilo televisivo, moleza do enredo), era verdade ao mesmo que passava ao largo do que importa. Além de todo o componente erudito de sua formação (deixei de citar Lang, Rocha, Ozu e muitos outros, pois Reichenbach era um grande glutão, nunca satisfeito em parar de cavar por novos cineastas), o que destoa de seus colegas é, por um lado, sua tendência tecnicista. Reichenbach simplesmente foi operador de câmera em todos seus filmes, e chegou a assinar a fotografia de mais um punhado trabalhando para amigos ou na publicidade. Por outro, o recuo crítico: notadamente no diário japonês São Paulo Shimbun, ao lado de Jairo Ferreira, e onde conheceu seus primeiros filmes japoneses. Todos esses componentes fundam um cinema que o mínimo que se pode dizer é que não é simples. É um segredo muito bem guardado: Carlos Reichenbach terá sido um dos raros cineastas contemporâneos para quem a mise en scène é um absoluto, mas para quem o absoluto da mise en scène é a sua supressão diante da realidade. Essa louca ambição de fazer triunfar a arte através do apagamento do artista é uma das mais preciosas heranças dos filmes B de estúdio americanos e da nouvelle vague, que a tomou dos grandes clássicos. Reichenbach passou a maior parte de seu tempo, ao menos desde Filme Demência, e talvez desde sempre, a se afastar da história que contava para se aproximar da realidade filmada. E quanto mais Carlão fazia filmes, mais sua mise en scène se sofisticava, e mais a realidade que ele descrevia se revelava rica, profunda e nova. Assim, Falsa Loura é o seu filme mais experimental, e ao mesmo tempo o mais realista. Ele me fez pensar em Lilian M. e Bens Confiscados. Nesses dois filmes não há nada que não seja muito banal, e no entanto tudo se destaca pelo cruzamento de duas pesquisas: aquela do cineasta e aquela dos personagens, que nos conduz a esta outra dimensão onde cada momento vale por si mesmo, e que nos perde ao se encontrarem. São mundos em que o mais ínfimo acidente perturba profundamente, isto é, de forma secreta. À parte quaisquer vigílias, não há sombra de um explorado, a não ser emocionalmente, em Falsa Loura. O filme é centrado em Rosanne Mulholland, a quem se vê evoluir de forma muito lenta e doce, de acordo com seus encontros, seus humores, do avanço de sua vida. Não é a história dos relacionamentos amorosos de Silmara que deve ser seguida, mas a maneira como muda quase que imperceptivelmente uma pessoa que acreditava poder fazer triunfar seus princípios e cujos princípios, com o passar do tempo, transformam-se. Em quê? O que houve? Isto é o que você não viu em lugar algum. Ou o que se vê estampado no último plano de Falsa Loura, o rosto de Silmara caminhando contra o vento (que, através de uma fusão, mistura-se com a cidade) entrando na fábrica, voltando ao trabalho, num plano filmado exatamente do outro eixo do qual os irmãos Lumière filmaram, certa vez, a saída dos trabalhadores de uma fábrica. No mundo de hoje, apenas se volta ao trabalho, enfrentam-se as lágrimas. Observando o corpo de filmes, textos, entrevistas e ações, é possível notar que Carlos Reichenbach foi um dos profetas do cinema, ao estilo de seus heróis da nouvelle vague, do cinema japonês ou do filme B americano, que, de uma maneira ou de outra, anteviram o destino. A missão de Reichenbach era também essa, mas à sua maneira: sarcástico, colorido, duro, violento, um tipo de Fassbinder dos trópicos. A nós, resta olhar. homenagem O filme de sexo é uma questão de abertura do diafragma 13 arquivo c Encontro com o mestre A O cineasta italiano Michelangelo Antonioni 14 Luiz Carlos Lacerda ntonioni e seus emblemáticos filmes marcaram toda a minha geração de jovens cineastas iniciantes e politizados. Numa época (anos 1960) marcada pela radicalização das ideias, o cinema era classificado de maneira maniqueísta e dividido entre o ideologicamente revolucionário e o “alienado”, pequeno burguês, mesmo que os filmes ditos de vanguarda estivessem sob as asas do mais conformista discurso cinematográfico — contrariando a máxima do poeta russo Wladmir Maiakóvski de que “conteúdo revolucionário deve ter forma revolucionária”. Pois Antonioni, então, deveria ser considerado um cineasta burguês, que se preocupava com os conflitos psicológicos das classes dominantes, enquanto o povo — a vanguarda da revolução — vivia os grandiosos e hegemônicos conflitos sociais (estes sim, importantes e definitivos) aos quais os artistas deveriam dedicar seus filmes. Mas a grandeza do cinema desse arquiteto dos grandes espaços, esse meticuloso investigador da alma humana, nos emocio- nou a todos. Impossível passar incólume por Jeanne Moreau, toda de preto, encostada numa parede externa de um grande prédio, tomando a tela em La Note, com sua angústia comovente e arrebatadora. Ninguém tirava o foco da beleza e presença da deprimida Monica Vitti de O eclipse, ou da famosa sequência do jogo de tênis com uma imaginária bola em Blow-up, já na época da contracultura e das drogas, ou das imagens metafóricas da cena final de Zabriskie Point, em que uma explosão de objetos de consumo de todas as categorias e cores, em câmera lenta, slow motion, vale mais do que qualquer discurso contemporâneo contra a sociedade de consumo ou a poluição do planeta — naqueles tempos restrito à minoria ativista do movimento hippie. Antonioni conquistou a alma irrequieta e transgressora da minha geração com a sua delicadeza e seu discurso sobre a incomunicabilidade humana — isso é o que se convencionou dizer de seus filmes. Muitos anos se passaram, e no fim da década de 1980 e início da década seguinte, participando do Festival de Gramado que o homenageava, ocorreu um encontro como- Foto divulgação vente e inesquecível entre nós. Estávamos hospedados no mesmo hotel, mas ainda não o tinha visto. Ao abrir a porta do elevador, ele surge — já acometido pelo AVC que o emudecera e limitara seus movimentos do lado direito — e sai, ensaiando um passo meio trôpego, de dentro do elevador. Diante daquela figura conhecida, de cabeleira escassa, mas esvoaçante, os olhos arregalados como um tigre sempre à espreita do mundo que o cerca e que lhe causa uma permanente perplexidade, o reverencio emocionado: — Maestro! Ele sorri, agradecido, e, querendo preservar a sua elegância comprometida pelo derrame, balbucia para sua secretária e acompanhante algumas palavras que talvez somente eles compreendessem o seu significado. E ele se recusa a sair, não quer exibir-se dessa forma para alguém que o conhecia e admirava, manifestado pelo entusiasmo do meu cumprimento. Eu o compreendo e vejo nos seus olhos uma espécie de agradecimento pelo meu gesto solidário e respeitoso — fecho a porta do elevador e o sorriso traumatizado pela dor desaparece entre as grades — como num filme de Antonioni. N foto divulgação José Geraldo Couto elson Pereira dos Santos concebeu seus dois documentários sobre Tom Jobim como um díptico, à maneira dos que havia feito em torno do historiador e ensaísta Sérgio Buarque de Holanda em 2003: um seria sobre a vida e outro sobre a obra do retratado. Os dois filmes dedicados a Tom Jobim foram realizados mais ou menos ao mesmo tempo. O “biográfico”, A Luz de Tom, ficou pronto antes, mas demorou mais para conseguir distribuidor e foi exibido publicamente pela primeira vez só em junho deste ano, no Florianópolis Audiovisual Mercosul (FAM), depois que a outra metade, A Música Segundo Tom Jobim, já tinha feito uma bela carreira nos cinemas. A desigualdade entre os dois é flagrante, não apenas em termos de estrutura e linguagem, mas também de qualidade e relevância. Vamos tentar entender por que uma das metades deu muito certo e a outra não. Cada um dos dois documentários estabeleceu para si próprio algumas regras rígidas de estrutura — um “dispositivo”, para usar um termo difundido pelo grande documentarista Eduardo Coutinho. No caso de A Música de Tom Jobim, codirigido pela neta do compositor, Dora Jobim, tratava-se de dispensar qualquer locução, narração verbal ou texto explicativo, deixando toda a narração ser construída pela música em si: as composições do autor executadas pelos mais variados intérpretes mundo afora. Permitiu-se, porém, a introdução de filmes documentais e imagens de arquivo, exibidas ocasionalmente entre as canções ou “sob” elas. A partir dessa moldura estrutural — ou antes, dentro dela —, o filme se desenvolve com uma leveza notável, conduzido inteiramente pela música de Tom Jobim. Vemos na tela as pérolas de seu cancioneiro desfilando nas mais diversas vozes, instrumentos e estilos, em cenários familiares ou exóticos, elegantes ou cafonas, austeros ou modernosos. Uma música literalmente sem fronteiras. Parece fácil. Afinal de contas, dirá o senso comum, alinhavar apresentações de gente como Frank Sinatra, Elis Regina, Dizzy Gillespie, Ella Fitzgerald e Charles Aznavour, executando canções maravilhosas de Tom, não tem como dar errado. Não é bem assim. Se é verdade que o material reunido representa metade do caminho andado, e que uma colagem aleatória das várias apresentações provavelmente resultaria num conjunto no mínimo agradável e interessante, há que se perceber que o filme é muito mais do que isso — é uma tentativa, a meu ver bem-sucedida, de traduzir em sua própria estrutura a fluên- c de crítica Tom segundo Nelson: um díptico quebrado cia, a exuberância e o frescor da música de Tom Jobim. Para isso foi necessário um trabalho cuidadoso, inspirado e discreto de montagem, de diálogo entre som e imagem, em que a concatenação entre as partes obedece ora a critérios cronológicos, ora a parâmetros exclusivamente musicais, ora a sugestões vagamente temáticas. Às vezes encadeiam-se várias interpretações de uma mesma canção, em épocas e lugares diferentes, ignorando a cronologia. Tom cantando “Desafinado” ao violão num programa de TV americano em 1964 é seguido por Ella Fitzgerald interpretando a mesma música em 1963 e por Sammy Davis Jr., que, como escrevi em outro lugar, leva ao extremo o scating vocal esboçado por Ella e reduz o canto a sílabas onomatopaicas. O eixo, digamos, temático, ora assume o primeiro plano — como quando os acordes da “Sinfonia de Brasília” se sobrepõem a imagens fixas da construção da cidade, a fotos de Juscelino e Niemeyer, e a manuscritos da composição, por Tom e Vinicius —, ora se reduz a uma alusão mais discreta, como as imagens em movimento de bondes lotados no Rio antigo, exibidas sob “A Felicidade” na voz de Agostinho dos Santos. Há momentos particularmente felizes da relação entre som e imagem como meio de produção de sentido e emoção. Ao final, por exemplo, vemos o desfile da Mangueira em que Tom Jobim foi o homenageado. Sobre as imagens festivas do sambódromo, o que ouvimos não é o samba-enredo, nem tampouco qualquer música alegre ou carnavalesca, mas sim os graves e melancólicos acordes da composição sinfônica “Saudade do Brasil”, em que o maestro parece ter sintetizado seu doloroso e nem sempre correspondido amor por seu país. Já em A Luz de Tom, o “dispositivo” é bem outro. Aqui, o que se vetou foram as imagens — fixas ou em movimento — de época. Tudo se reduz a três longos depoimentos de três mulheres marcantes na vida de Tom Jobim: sua irmã Helena e suas duas esposas, Thereza e Ana Lontra. Cada uma delas fala em um local específico: Helena em Florianópolis, com as praias e lagoas da ilha “mimetizando” o Rio da infância do irmão; Thereza na serra fluminense, onde o casal teve casa por muitos anos; Ana no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, que o Tom cada vez mais ecológico dos últimos anos passava longas horas. Não há intercalação ou mistura entre os Tom Jobim em imagem de depoimentos. Segue-se fielmente a cronolo- arquivo que está gia: Helena fala da infância, Thereza da vida no documentário adulta e Ana da meia-idade do compositor. A A Música música de Tom pontua esses depoimentos de Segundo Tom Jobim, de modo geralmente pouco inspirado. Há um ou Nelson Pereira outro momento divertido — sobretudo nas dos Santos declarações de Thereza, a primeira mulher — e uma ou outra informação relevante, como a de que Tom queria mesmo era ser pianista e foi desencorajado pela professora, que o aconselhou a compor. O resultado, contrastando com a riqueza e variedade de A Música Segundo Tom Jobim, é pouco menos que monótono. Cabeças falantes (ou melhor, andantes, pois elas caminham quase o tempo todo) despejando lembranças em meio a cenários naturais exuberantes. Pode ser que o sentimento de frustração e de anticlímax produzidos pelo filme se deva ao fato de ter vindo depois da metade musical. Se a ordem de exibição fosse invertida, talvez o efeito fosse outro. Agora não dá mais para saber. 15 ensaio Foto AP File Photo O futuro demasiado humano Ray Bradbury tornou-se um mestre da ficção científica ao retratar as aventuras e as desventuras do homem onde quer que ele vá, na Terra ou nas estrelas 16 N Dorva Rezende uma decisão inesperada e intempestiva, a direção da Udesc, alguns anos atrás, interrompeu ao meio o curso de Filosofia e Cinema, aberto ao público, que a professora de filosofia Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho (irmã da Brígida Miranda, atriz, diretora e professora de teatro e uma das idealizadoras do projeto Cinema Falado do Museu Victor Meirelles) ministrava no antigo prédio da Faed (hoje Museu da Escola Catarinense), na Saldanha Marinho. Mas, antes que o curso fosse abruptamente encerrado, Maria Cecília conseguiu exibir (e fazer um belo debate sobre) o clássico de François Truffaut baseado no romance de Ray Bradbury, Fahrenheit 451 (1953). Na distopia de Bradbury filmada em 1966, em inglês, por Truffaut (único registro do cineasta francês na língua do outro lado do Canal da Mancha), os bombeiros não apagam incêndios, mas queimam livros, objetos considerados uma ameaça ao sistema vigente na sociedade de um futuro não muito distante imaginada pelo escritor norte-americano. Fahrenheit 451 seria a temperatura ideal para a combustão dos livros, e a vida do bombeiro Guy Montag (o ator austríaco Oskar Werner, de Jules et Jim, também de Truffaut) muda ao conhecer uma vizinha de 17 anos, Clarisse McClellan (Julie Christie), que questiona o seu trabalho. Quando a garota desaparece, Montag começa a recolher alguns dos livros que encontra nas casas de leitores denunciados aos bombeiros e a lê-los escondido. Tornado um rebele, decide fugir e encontrar outros leitores, pessoas que se refugiam numa floresta e memorizam os livros para preservar a cultura e o pensamento humanos. No livro de Bradbury, Montag escolhe ser O Eclesiastes. No filme de Truffaut, Tales of Mystery and Imagination, a mais famosa coletânea na língua original dos contos de Edgar Allan Poe. ensaio Sobre a versão de Truffaut, Bradbury contou depois, no livro Zen e arte de escrever, que o cineasta francês quis, como muitos leitores que lhe enviaram cartas protestando pelo desaparecimento, saber o destino de Clarisse. No filme, ela reaparece na floresta junto dos homens-livros. E, assim como Truffaut, Bradbury resgatou a personagem do limbo na adaptação para o teatro de Fahrenheit 451. “Senti a necessidade de salvá-la, pois, afinal de contas, em muitos sentidos, foi ela a responsável por Montag começar a se perguntar sobre os livros e o que havia neles. Na minha peça, portanto, Clarisse surge para saudar Montag e dar um final um pouco mais feliz ao que era, basicamente, um material bem sinistro”, escreveu Bradbury. Morto aos 91 anos, no dia 05 de junho passado, Ray Douglas Bradbury, nascido em Waukegan, Illinois, em 22 de agosto de 1920, foi um dos cinco maiores escritores de ficção científica do século 20 (ao lado de Arthur C. Clarke, Isaac Asimov, Philip K. Dick e Robert Silverberg), um esteta do gênero e o artífice de uma escritura de feições barrocas, cujo livro Crônicas Marcianas (1950) provocou os seguintes comentários de Jorge Luis Borges, no prólogo à edição castelhana (Minotauro, 1955): “O que fez esse homem de Illinois, pergunto-me, ao fechar as páginas do seu livro, para que episódios de conquista de outro planeta povoem-me de terror e solidão? Como podem tocar-me essas fantasias, e de modo tão íntimo?” Bradbury era um homem do interior, e sua Waukegan natal (a Green Town de diversos contos e novelas) sempre o acompanhou, mesmo que ele tenha passado a maior parte de sua vida morando e trabalhando em Hollywood. Seus objetos de interesse nunca foram as máquinas, os foguetes, os inventos que caracterizam a ficção científica. O que lhe interessava como escritor eram as pessoas e as suas reações, seus sentimentos, seus anseios, no presente ou no futuro. Assim, quando John Huston o convidou para adaptar Moby Dick, de Herman Melville, um livro que ele nunca teve a paciência de ler, e o fez passar seis meses na Irlanda para escrever o roteiro filmado em 1956 (com Gregory Peck, como o capitão Ahab, e Richard Basehart, o almirante Nelson do seriado Viagem ao fundo do mar, como Ishmael), Bradbury, que ganhou o Oscar de melhor roteiro pelo trabalho, teve pesadelos com a baleia branca enquanto tentava entender a extrema pobreza dos irlandeses de meados dos anos 1950. A difícil relação com o mítico diretor de O Tesouro de Sierra Madre (1948), O Homem que Queria ser Rei (1975) e À Sombra do Vulcão (1984) rendeu um livro escrito quase 35 anos depois, Green Shadows, White Whale (1992), e um conto, Banshee, adaptado para a tevê com Peter O’Toole no papel de Huston. “Enquanto eu lamentava a dureza do trabalho e minha incapacidade, dia a dia, de me sentir tão parecido a Herman Melville como eu desejava, minha interioridade se mantinha alerta, farejava as profundezas, observava com rigor e arquivava a Irlanda e sua gente até o dia em que relaxei e me surpreenderam surgindo em torrentes”, revelou Bradbury em Zen e a arte de escrever. Outros romances e contos de Bradbury foram adaptados para o cinema, o teatro e a tevê. Algumas versões cinematográficas, a exemplo de Fahrenheit 451, foram razoavelmente bem sucedidas. Mas outras revelaram-se estrondosos fracassos. Um dos principais livros de contos de Bradbury, O Homem Ilustrado (1951), foi filmado em 1969 por Jack Smight (diretor do filme-catástrofe Aeroporto 1975), com Rod Steiger e Claire Bloom nos papéis principais. O roteiro de Howard B. Kreitsek costurou de forma atabalhoada 03 dos 18 contos do livro (“O estepe”, “A longa chuva” e “A última noite do mundo”), e a direção errática de Smight acabou por trucidar o filme, devidamente execrado pela crítica. Uma nova adaptação de O Homem Ilustrado foi encomendada pela Warner, em 2007, ao diretor Zack Snyder (de 300 e Watchmen), ainda sem data de produção. Melhor resultado teve outro grande livro de Bradbury, Something Wicked This Way Comes (título tirado da primeira cena do quarto ato de Macbeth, de Shakespeare), traduzido no Brasil como Algo Sinistro vem por Aí, pelo escritor fluminense de ficção científica Jorge Luiz Calife. O filme, dirigido em 1983 por Jack Clayton, teve o próprio Bradbury como roteirista e foi estrelado por Jason Robards (Longa Jornada Noite Adentro, Todos os Homens do Presidente, Julia, O Jornal e Magnólia) e Jonathan Pryce (Brazil, o Filme e Evita). A história que se passa na Green Town das memórias afetivas de Bradbury trata da chegada de um circo de horrores numa pequena cidade americana e de como dois garotos, com a ajuda do pai de um deles, conseguem salvar seus vizinhos, colegas, professores e amigos das crueldades trazidas pelo parque de diversões diabólico. Uma divertida história de Bradbury, The Magic White Suit, publicada no Saturday Evening Post, em 1957, virou o filme The Wonderful Ice Cream Suit, em 1998 (O Terno Encantado, no Brasil). Com roteiro também do próprio Bradbury, o filme conta as aventuras de cinco amigos (Joe Mantegna, Esai Morales, Edward James Olmos, Clifton Collins e Sid Caesar) que juntam dinheiro para comprar um terno branco na vitrina de uma loja do bairro. Mas a roupa, com propriedades mágicas, muda completamente suas vidas e rende cenas hilárias. Foi dirigido por Stuart Gordon, um fã de H.P Lovecraft, que levou às telas Re-Animator (1985) e From Beyond (1986), entre outros títulos do mestre do horror de Providence. Uma das últimas adaptações de histórias de Ray Bradbury foi A Sound of Thunder (O Som do Trovão), de 2005, baseado no conto homônimo escrito em 1952, dirigido por Peter Hyams e estrelado por Edward Burns, Catherine McCormack e Ben Kingsley. Uma empresa cria uma espécie de safári no tempo, onde pessoas podem caçar dinossauros que estão prestes a morrer de forma natural, mas, acidentalmente, um dos “turistas” do passado mata uma borboleta pré-histórica que não deveria ser morta, o que acaba por alterar todo o futuro, em princípio de forma sutil, mas depois, com as sucessivas ondas temporais, radicalmente. A história de Bradbury também inspirou o filme O Efeito Borboleta (2004), com Ashton Kutcher e Eric Stoltz. Entre 1985 e 1992, o escritor adaptou 65 de seus contos para a tevê no The Ray Bradbury Theater, exibido na HBO e no The USA Network. As Crônicas Marcianas também foram adaptadas para a tevê pela NBC em coprodução com a BBC, em 1980, em uma minissérie de três episódios estrelados por Rock Hudson e Roddy McDowall. Com a morte recente do escritor, novas versões de suas histórias, sinistras ou não, devem vir por aí. Ray Bradbury, um dos mais admirados escritores de ficção científica 17 resenha Um homem com a máquina de escrever na mão A 18 Victor da Rosa recente publicação dos textos críticos de Rogério Sganzerla (Edifício Rogério, EdUFSC, 2010) deve sugerir também a indicação de que o melhor crítico do cineasta — e tento pensar nisso sem a menor afetação — ainda parece ser o próprio cineasta. Nos textos que escreveu quando não tinha vinte anos de idade ainda, publicados principalmente no suplemento literário do Estado de S.Paulo, mas quase sempre sobre cinema, Rogério realiza um duplo movimento. Por um lado, acompanha com textos analíticos, quase sempre escritos com certo fôlego, a produção cinematográfica (brasileira e internacional) em debate no final da década de 1960, além de textos que poderíamos chamar de ensaios teóricos; por outro, parece também construir as bases — estéticas, éticas, digamos assim, por falta de melhor nome — do que viria a ser a sua trajetória como cineasta. É interessante notar a maneira como esses textos do crítico Rogério Sganzerla passam a ecoar nos seus próprios filmes, através de suas temáticas, mas também através de seus procedimentos, deixando a impressão curiosa de que, afinal, Sganzerla escrevia apenas sobre o cinema que realizaria durante as três décadas seguintes. É consenso afirmar que “Não foi só com a câmera de filmar que Rogério Sganzerla fez cinema”, como escreve José Geraldo Couto na orelha do livro que reúne parte dos textos críticos de Rogério — consenso que, aliás, é insinuado pelo próprio cineasta, através de algumas de suas entrevistas, e repetido por uma série de críticos nos anos seguintes. Se o consenso existe, parece que nenhum crítico se dedicou a analisar com detalhes o modo como é construído. Um dos traços mais evidentes dessa operação, e nem poderia ser diferente, está ligado às escolhas dos filmes que Rogério analisava. Seu paideuma — ou seu edifício, para usar a expressão que os organizadores de seus textos críticos também usaram — vai de Orson Welles a Jean-Luc Godard, passando por Noel Rosa, João Gilberto e Jimi Hendrix, “o artista mais importante deste século”, nas palavras do próprio Rogério, com o exagero que lhe era peculiar. Em um texto que chama a atenção pela precocidade, intitulado “A câmera cínica”, publicado em 1964 — Rogério estava com exatos dezoito anos na ocasião e era um estudante desinteressado de Direito —, o crítico já intui, através da evidência da imagem no cinema, que a linguagem deve ser pensada pelo regime da aparência, como “pura visibilidade”. O filme de Godard, principalmente Uma mulher é uma mulher, na medida em que suprime qualquer noção adjetiva — no título, como se vê, mas sobretudo na maneira de filmar —, torna-se o paradigma de Rogério para o desenvolvimento de sua ideia de câmera cínica. De outra maneira, a câmera cínica será para ele algo muito próximo daquilo que, mais de dez anos depois será o neutro para Roland Barthes, ou seja: “A câmera cínica é a câmera que deixou de participar do movimento dramático, distanciou-se dele; olha-o indiferentemente, olha-o apenas”; e ainda, talvez com maior precisão: “A câmera realiza, então, um trabalho difícil: o esvaziamento do heroísmo dos personagens.” O que interessa do cinema de Godard para Rogério Sganzerla são duas coisas, principalmente: a opacidade da imagem e o despojamento. É neste texto que aparece a primeira menção a um conceito que reaparece em outros textos de Rogério: “o herói vazio” — retomado às vezes como “herói fechado” — que se refere à negação da psicologia, do personagem que não se deixa conhecer, e que tem como precursor e protótipo justamente o Cidadão Kane, de Orson Welles. Em um tex- to intitulado “Becos sem saída”, Rogério diz: “O filme não se dispõe a ‘explicar’ ou definir o interior do personagem, seja através da psicologia, psicanálise, intimismo, etc. (...) o ser é impenetrável.” Existe uma cena do clássico de Welles que será uma das obsessões de Rogério, comentada em alguns de seus textos críticos e recuperada mesmo em alguns de seus filmes, que é a cena da morte de Kane: “O precursor e também protótipo do herói fechado é, provavelmente, Cidadão Kane, que pronuncia no leito de morte uma palavra desconhecida e inexplicável (“Rosebud”). Um repórter, incumbido de descobrir o seu significado, entrevista os contemporâneos de Kane, mas nem estes personagens conseguem defini-lo (...).” Entre Welles e Godard, tanto em suas análises de Cidadão Kane e Viver a Vida quanto na formulação de conceitos como “herói fechado” e “cinema impuro”, Rogério Sganzerla parece querer dar um passo adiante às noções mais tradicionais de representação. Em um dos dois textos que escreveu sobre o filme de Godard, o crítico brasileiro valoriza o tratamento “despojado e econômico” como forma “para alcançar a absoluta ausência de sentido dos seres e objetos”, pois dessa maneira “a câmera não se preocupa em descrever a verdade dos locais, dos bares e ruas parisienses, como em Acossado”, filme anterior de Godard. Em outras palavras, Rogério trata de um cinema que, opaco, se situa no limite da representação, solicitando outras operações de leitura que se coloquem, elas também, além da hermenêutica. Se a “câmera cínica” não oferece o sentido, ou a verdade dos objetos, mas apenas seu regime de aparência, então a leitura alegórica, na medida em que prevê que o objeto está sempre em relação a outro discurso, não estaria destinada ao fracasso? Rogério responde à sua maneira: “Também não se pode transformar os objetos em símbolos ou metáforas, o que é típico do resenha expressionismo e dos filmes de até poucos anos atrás.” Não será o cinema de Rogério Sganzerla também um cinema sem metáforas? Os textos de Sganzerla, de certa maneira, são desdobramentos de um mesmo embate que pode afinal ter vários nomes: opacidade versus transparência, manifestação versus essência, corpo versus alma, circularidade versus progressão, segredo versus esclarecimento, Acossado versus Viver a Vida, O Bandido da Luz Vermelha versus Vidas Secas, enfim. No entanto, o que parece ainda mais interessante são as maneiras como Rogério retorna a determinados temas e procedimentos, fazendo de sua forma de escrever uma máquina absolutamente paranoica, mas também inserindo na experiência crítica um caráter provisório. Ou seja, não apenas o que diz, mas o modo como se propõe a dizer. O crítico Samuel Paiva, na apresentação que faz dos textos de Sganzerla, não deixa de perceber justamente esta dinâmica revisionista — que prefiro chamar de arqueológica, já que não está em jogo exatamente uma correção, mas uma sobreposição de camadas — na maneira como Rogério opera inclusive com suas próprias matrizes. Ou seja, retornar aos mesmos lugares de partida “se constitui como recurso para se colocar em xeque tanto o ato de criar quanto o próprio produto da criação, numa poética de re(des)construção (...)”. Será esta também, a meu ver, a lição de seu cinema: o retorno incessante como maneira de rasura; o cinema não como produto fechado, portanto, mas como processo, experiência. Retornar, a rigor, é reconhecer que a peça anterior está inacabada, como um puzzle que falta uma peça, imagem recorrente nos textos críticos de Rogério; é reconhecer então que o destino de uma peça de arte é o fracasso. “Eu sei que fracassei”, diz o bandido já em uma de suas primeiras falas. Basta pensar, por outro lado, como lembra o mesmo Samuel Paiva, que Rogério realizou nada menos do que quatro filmes, em um intervalo de quase vinte anos, em torno do filme não realizado de Orson Welles, a saber: Nem tudo é verdade, de 1986, Linguagem de Orson Welles, de 1991, Tudo é Brasil, de 1997, e finalmente O signo do caos, de 2003, seu último longa — isso sem falar de Documentário, primeiro curta de Sganzerla, em que a referência ao cineasta norte-americano já aparece em um cartaz de cinema; e também no livro do qual Rogério Sganzerla foi organizador: O pensamento vivo de Orson Welles, também de 1986. Com Noel Rosa acontece praticamente o mes- mo, com menos regularidade: Sganzerla realizou Noel por Noel, um misto de documentário e ficção, em 1980, e retornou ao compositor brasileiro em Isto é Noel Rosa, um curta, dez anos depois. Tal dinâmica, além de aparecer nos filmes e nos textos críticos — o conceito de câmera cínica retorna dez anos depois como câmera clínica — aparece traduzida também dos filmes em relação aos próprios textos. Ou seja, não há hierarquia aqui, mas sobreposições entre peças soltas. Se ao ler os textos de Rogério temos a impressão de que o crítico escreve sobre os filmes que realizaria anos depois, como já foi dito, também o contrário é verdadeiro, naturalmente — seus filmes revivem um processo crítico. Não há, entretanto, nesses retornos, o objetivo de esclarecimento, de definição de uma verdade que até então não havia sido percebida, por exemplo, ou mesmo a ideia de que é viável corrigir um erro anterior, e sim a noção de que o maior movimento que se pode fazer diante de um objeto é circular por ele, jamais penetrá-lo. Por isso talvez suas peças devam ser tomadas como inacabadas: para que seja necessário dar uma segunda volta ao redor do parafuso. Daí vem a grande diferença em relação à maneira como Ismail Xavier entende o cinema de Sganzerla em seu ensaio clássico, Alegorias do Subdesenvolvimento; a saber, um cinema onde “não se elimina o impulso de montar uma representação capaz de figurar uma totalidade”. Isso, afinal, para mim, é o mais importante: na obra de Rogério, a ênfase está sempre no procedimento mesmo do retorno, no jogo da apropriação e da rasura, como se aí o cineasta delineasse para si uma espécie de procedimento cover. Como proposta de leitura dos filmes de Rogério Sganzerla, o cover interessa na medida em que explicita que a representação é uma moeda falsa. Ou seja, no cover, diferente do que ocorre na alegoria e na metáfora, a linguagem não quer se comportar como imagem de outra realidade, e sim como autoconsumação, por um lado, e processo parasitário, por outro. Dessa maneira, até mesmo a expressão “terceiro mundo” pode ser lida de outra maneira — como um mundo que, sendo de terceira categoria, só pode ser um mundo falsificado, um mundo cover, e não somente subdesenvolvido. Enfim, o procedimento cover parece nos dizer, em outras palavras, ou talvez em sentido mais radical, aquilo que Rogério diz sobre a câmera cínica: ao mesmo tempo a busca pelo concreto e pela displicência, a aparência pura e o mau gosto, enfim, o esvaziamento pelo chavão. foto divulgação 19 cinema latino-americano foto divulgação Cena da filmagem de O banheiro do Papa (2007) Depois de renascer Recepção e cinema uruguaio contemporâneo GErmán silveira (texto traduzido por Fausto Correa Júnior) O 20 cinema uruguaio sempre foi um cinema de autor. Mais pela ausência de uma indústria cinematográfica — que até hoje não pôde se desenvolver totalmente, apesar de certa infraestrutura, uma produção em aumento e algumas obras de qualidade — do que pela filiação dos cineastas àquela política impulsionada pelos Cahiers du Cinéma nos anos 1960. Desde os primeiros intentos nos anos de 1920, no Uruguai, cada filme se fazia no peito, sendo um empenho solitário levado adiante por apaixonados sem nenhum apoio estatal ou empresarial. Na falta de todos esses elementos que permitiriam uma continuidade na produção nacional, cada novo filme se convertia, então, no primeiro, e, pela força dos impulsos individuais, o cinema uruguaio renascia seguidamente. Cada estreia significava para o espectador a possibilidade de ir ver um novo esforço de (re)fundação da cinematografia nacional. Foi assim até meados dos anos 1990, com a estreia do último “primeiro” filme uruguaio, El Dirigilbe (1994), do diretor Pablo Dotta (1960). Tão polêmica foi a estreia que finalmente acabou a discussão de qual havia sido o primeiro filme (uruguaio), para começar a falar do filme em si, para voltar (ou começar) a falar de cinema. Acreditamos que essa tenha sido a grande colaboração de El Dirigible para o cinema nacional do ponto de vista da recepção. “Eu entendi El Dirigible”, apregoava uma memorável pichação em um muro da cidade, fazendo alusões às carências da linha narrativa do filme, e que de alguma maneira resumia estupendamente o debate público, inesperado para o cinema uruguaio e muito bem-vindo para as bilheterias, que foi criado por esse filme. El Dirigible significou uma ruptura nesse sentido. Por outro lado, insistia com a eterna busca da identidade uruguaia que, a essa altura, o cinema praticamente tinha o dever de devolver ao público, quase obrigado pela imposição de certos autoritarismos críticos de longa data. A reação do público foi bastante contraditória com o filme, ainda que, de um modo ou de outro, o tema da identificação com as locações, com uma forma de ver, com essa identidade reclamada, esteja sempre presente nos depoimentos dos espectadores colhidos pelo semanário Búsqueda na saída do cinema. “Nem gostei, nem desgostei. Um filme meio louco. Mas que me emocionou em alguns momentos quando via lugares por onde eu ia ou passava, cenários nossos. A atuação não está mal. E, bem, é a primeira coisa nossa. O que mais me emocionou foi me sentir um pouco personificada ao ver os cenários, modos e coisas que nós somos. Um começo louco, mas digno”, opinava Matilde (45 anos) na saída do cinema. Graciela (45 anos), por sua vez, mostrava uma grande simpatia pelo que tinha visto: “Gostei muito. Pareceu muito aparentada com Subiela [Eliseo Subiela, diretor de cinema argentino], pois tem algo de muito nostálgico, triste. Com grande imaginação.” Sonia (24 anos) expressava certa inquietude: “Não entendi, não entendi”; enquanto Maria José (36 anos) confessava: “Teria gostado se tivesse gostado.” El dirigible deve se situar em um contexto histórico e político particular: “Existe nessa história uma cidade desolada, que é Montevidéu, e que foi magnificamente captada. As cabines telefônicas expostas a um vento incessante, um obscuro e sujo salão nas entranhas do Palácio Salvo depois de uma noite de baile, o Parque Rodó vazio, um Volkswagen branco com um Tintim pendurado no espelho retrovisor, a Faculdade de Veterinária e sua inquietante coleção de cachorros mortos, um céu portuário sob o qual um grupo de coreanos jogam cartas”, relata a coluna do crítico Eduardo Alvariza. É a Montevidéu (o Uruguai) do cinema pós-ditadura. Diferentemente do que havia acontecido no Brasil, por exemplo, com a Embrafilme, a ditadura uruguaia acabou com qualquer incentivo à produção cinematográfica e, no nível cultural, fez com que as pessoas se esquecessem de falar de cinema uruguaio. O cinema uruguaio não existiu durante mais de 20 anos. Até que Pablo Dotta se animou a dizer alguma coisa. Um pouco como uma anedota, El Dirigible integrou a Semana Internacional da Crítica do Festival de Cannes, que aconteceu entre 13 e 21 de maio de 1994. O filme foi, uma vez mais, apresentado como “fundador” pelo dossiê de imprensa: “El Dirigible, an uruguayan film. Have you ever seen one? [O dirigível, um filme uruguaio, você já viu algum?].” tem muito a dizer sobre a penúria do cinema”. A partir de então, o trio de cineastas formado por Juan Pablo Rebella, Pablo Stoll e Fernando Epstein funda sua própria produtora (Control Z) e poucos anos depois se consagra definitivamente com Whisky (2004), uma obra maior. Ao tratar do cinema uruguaio, não podemos deixar de considerar, em parte devido à pobreza de recursos já mencionada, a importância do gênero documental na história cinematográfica do país. Ao mesmo tempo, abordar de modo significativo esse gênero significa falar de Mario Handler (1935), o que nos leva outra vez a uma submersão na ideia de um cinema de autor, e, nesse caso, de um autor muito particular, porque Handler sempre teve a virtude da polêmica. Com Aparte (2002), um documentário sobre a marginalização, além de suscitar um grande debate que alcançou as esferas políticas, gerou (por consequência) uma boa resposta do público. Durante a segunda semana de exibição, em junho de 2003, essa “não-ficção” (assim prefere chamá-lo Handler) superava os espectadores de Matrix reloaded e Procurando Nemo, e em sua quarta semana em cartaz levava já mais de 30.000 espectadores aos cinemas. Para realizar esse filme, o diretor filmou durante 18 meses um grupo de jovens do mundo da favela (cantegril), compartilhando algumas câmeras entre os protagonistas, para que captassem suas próprias imagens. Assim conseguiu fazer as câmeras entrarem em Colonia Berro, a prisão onde se internam os menores infratores, e captou cenas dos internos fazendo cortes em seus próprios braços. Para Mario Handler, um dos mais criativos representantes do cinema militante latino-americano dos anos 1960, integrante do grupo dos jovens cineastas da Cinemateca del Tercer Mundo, primeiro se trata de “filmar e depois filosofar”. Respondendo às acusações de caráter ético de que foi acusado por supostas condutas ilícitas, como a de comprar drogas para os protagonistas, o cineasta responderia sem deixar seu lugar de criador: “Jamais comprei drogas, jamais produzi situações irreais, nem os incitei a cometer delitos. Sou diretor de cinema, o que quer dizer um artista. Mas, para além disso, me comprometo solidariamente com o ser humano, por ele fiz um filme que pretende ser arte e humanidade.” Outro filme que acreditamos ter se tornado uma referência em matéria de público e de qualidade artística na história recente do cinema nacional é O banheiro do Papa (2007), codirigido por Enrique Fernández e César Charlone, este último conhecido no Brasil por realizar a fotografia de Cidade de Deus (2002). O banheiro do Papa é uma história baseada em um fato real. Em 1998, o Papa João Paulo II visitou o Uruguai, e um dos destinos previstos foi a pequena e fronteiriça cidade de Melo. Entre os habitantes começa a gerar uma grande expectativa, porque alguns cálculos previam que 50.000 pessoas concorreriam para ver o Papa, não apenas uruguaios, mas também de excursões provenientes do Brasil. Para a população mais pobre, vender comida e bebida seria suficiente para ganhar dinheiro, mas para Beto, um contrabandista de botijões de gás brasileiro, que cruza semanalmente a fronteira de bicicleta com esses botijões de 13kg, lhe ocorreu uma ideia um pouco mais original: construir um banheiro no jardim de sua casa, e cobrar por seu uso para os fiéis que ali chegariam. Por fim o Santo Padre não convocou mais do que 8.000 pessoas, e os negócios previstos serão um fracasso, arruinando ainda mais os pobres do lugar. Um dos grandes méritos do filme foi o de ter trabalhado com habitantes de Melo como atores. Os poucos atores profissionais, por sua vez, souberam captar a essência da idiossincrasia fronteiriça, o que evitou defasagens entre atores e amadores. Christian Duurvoort, que havia trabalhado no Brasil com Charlone, teve aqui um papel muito importante como acting coach daqueles atores não profissionais que deram um toque de realismo, honestidade e credibilidade à história. O banheiro do Papa foi o segundo filme uruguaio mais visto na história, atrás de En la puta vida (2001), de Beatriz Flores Silva, filme sem grandes acertos artísticos, mas com a sustentação de um grande aparato publicitário. Ao eleger apenas quatro filmes para representar um resumo do panorama do cinema contemporâneo uruguaio, evidentemente deixamos de fora um número importante de produções que nos últimos anos alcançaram bons níveis de qualidade e reconhecimento internacional. No entanto, a escolha desses quatro é significativa da evolução que tem experimentado a produção cinematográfica do país. Em matéria de números, por outro lado, segundo os dados do ICAU (Instituto de Cinema e Audiovisual do Uruguai, criado em 2008), atualmente estreiam uma média de 10 filmes uruguaios por ano nas salas de cinema, enquanto são 1,5 milhões de espectadores que assistem anualmente à produção nacional de cinema. O audiovisual gera ainda 4.000 postos diretos de trabalho no país. Os números não trazem muita informação, é verdade, sobre a qualidade artística, mas são um bom indício para perceber que o cinema uruguaio começa a solidificar-se, não apenas na produção, mas também na atração do público. Finalmente, si Dios quiere — como se diz popularmente, em um país com grandes carências econômicas e falta de recursos (também para o cinema) —, começa a se consolidar ao menos uma infraestrutura sólida para o fomento da produção. Porque, como diz sua esposa a Beto, protagonista de O banheiro do Papa: “Se Deus não ajuda os pobres, a quem vai ajudar?.” cinema latino-americano Alguns anos mais tarde, o cinema uruguaio iria encontrar definitivamente um caminho próprio e original graças a uma dupla de jovens diretores que mudaram radicalmente a forma de fazer e, portanto, de ver cinema no Uruguai. Com 25 watts (2001), Juan Pablo Rebella (1974-2006) e Pablo Stoll (1974) romperam com muitos esquemas, desprezando recomendações de críticos qualificados a propósito do roteiro, e propondo uma história simples, contada com muito humor, em branco e preto. É um filme onde “nada acontece”, que conta a história de três amigos “nessa idade em que voltávamos para casa sem termos conseguido dar uns amassos na mocinha que gostávamos, sem termos nos embebedado o bastante”, como contam os próprios roteiristas e diretores. Desse modo, com simplicidade, honestidade, e quase sem querer, Rebella e Stoll foram os responsáveis por refundar o cinema nacional. Uma vez terminado, 25 watts passou a rodar em festivais internacionais e obteve inesperadamente o prêmio de melhor filme, e um prêmio especial do júri jovem do Festival de Rotterdam. Logo ganharia o prêmio da crítica do Festival de Cinema Independente de Buenos Aires, além do prêmio de melhor ator para os três protagonistas (Daniel Hendler, Alfonso Tort, Jorge Temponi). Depois dessa cascata de prêmios, o filme estreou no Uruguai, onde não havia sido fácil conseguir distribuição e exibição: “De início, ninguém nos dava muita bola. Quando souberam que iríamos para Rotterdam, mostraram-se um pouquinho interessados, e quando ganhamos o prêmio estavam muito interessados. Passamos da situação em que não respondiam aos telefonemas de nosso produtor Fernando Epstein, a uma cena em que nem bem voltamos da Europa e estavam já nos esperando”, contam com humor Rebella e Stoll. Tão pouco tinha sido fácil para esses jovens cupinchas da universidade conseguir fundos para financiar a produção de 25 watts, o primeiro filme de ambos. O projeto havia sido recusado pelo FONA (Fundo Nacional de Audiovisual, criado em 1994), devido à linguagem utilizada por seus atores. O júri, presidido por Homero Alsina Thevenet (1922-2006, periodista e escritor, considerado um mestre da crítica cinematográfica no Uruguai e na Argentina), entendia que “o excesso de palavrões que abundam nos diálogos podem dificultar sua difusão televisiva”. No entanto, obtiveram do Fundo Capital da Prefeitura de Montevidéu um aporte de quinze mil dólares, facilitando o início da produção. Uma vez estreada em solo uruguaio, a crítica nacional, apesar da pífia recepção que tinha mostrado quando o filme se encontrava em fraldas, se somará ao coro de vozes favoráveis provenientes das mais diversas partes do mundo (França, Holanda, México). Dessa maneira, 25 watts era apresentado por parte da imprensa uruguaia como “o filme que triunfou em Rotterdam” ou como “o melhor filme uruguaio visto nas telas desde muito tempo”, pois “mais do que sobre Montevidéu, Uruguai, a juventude atual e seus problemas, 25 watts 21 LÁ DO CÊ foto divulgação Mostra de Cinema Infantil de Florianópolis A Mostra de Cinema Infantil de Florianópolis participa de discussões sobre o tema em diversos fóruns e debates pelo país e pelo mundo. Na edição de numero 11, realizada em julho, promoveu o oitavo Encontro Nacional de Cinema para a Infância, e, sob o tema Desafios Criativos: Distribuição e Conteúdo, reuniu Ana Paula Santana, secretária do Audiovisual, realizadores e distribuidores que acordaram, entre outros tópicos, com a criação de uma linha de crédito especial para financiamento de filmes infantis. foto divulgação Plano Nacional de Cultura em Santa Catarina Em setembro, o Senado aprovou o Plano Estadual de Cultura (PEC), que acrescenta ao artigo 216 da Constituição a criação do Sistema Nacional de Cultura (SNC), o qual assegura a transparência e o controle social do setor cultural e objetiva a integração das três esferas de política cultural, incluindo administrações municipais, estaduais e o governo federal. De julho a setembro, a Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte de Santa Catarina, o Conselho Estadual de Cultura e a Fundação Catarinense de Cultura promoveram o Fórum de Planejamento Regional de Cultura, em 10 cidades catarinenses (Itajaí, Blumenau, São Miguel do Oeste, Chapecó, Joinville, Florianópolis, Joaçaba, Lages, Tubarão e Araranguá), que representam estrategicamente as macrorregiões definidas pela atividade turística do estado. Reuniram-se artistas, produtores culturais e representantes do governo para discutir diretrizes e ações, iniciar o processo de construção do Plano Estadual de Cultura para os próximos 10 anos, e atender, assim, uma das propostas do SNC. Os representantes da cultura, que compareceram em tímida quantidade na maioria dos fóruns regionais, elaboraram propostas que foram validadas em plenária e sucederam em matrizes situacionais de cultura. Comissões Regionais de Cultura foram formadas e são agora responsáveis por promover reuniões de debate e consulta à população sobre o Plano Estadual de Cultura. Os relatórios finais serão apresentadas no Fórum Estadual de Cultura, programado para novembro deste ano. Durante os encontros, representantes do poder público adiantaram que, por determinação do governador, não existe qualquer interesse em separar as pastas da secretaria mista para criar uma secretaria única de cultura — principal reivindicação dos fóruns e uma das propostas do SNC. Além disso, o secretário das três pastas em atividade, Celso Calcagnotto, anunciou recentemente corte de R$ 70 milhões na receita da secretaria e afirmou que recursos somente serão liberados para projetos considerados prioritários para o governo, como as Festas de Outubro. Um Plano Estadual de Cultura que determine diretrizes de atuação do estado a partir de políticas publicas estratégicas, levando em consideração as expectativas das diferentes áreas da cultura e as demandas e potencialidades regionais, é urgente para fortalecer o setor, de fundamental importância para o desenvolvimento de Santa Catarina, e coibir as hoje aplicadas políticas públicas de captação de recursos públicos para financiamento de campanha eleitoral, políticas públicas de visibilidade das ações do governo, políticas públicas de interesses decorrentes de acordos partidários, políticas públicas para a proliferação da cultura de massa que só fazem embebedar de ignorância a população. CASOS DE FINANCIAMENTO COLETIVO Cena do filma La vida útil, de Federico Veiroj (Uruguai) Cine Pitangueira O Cine Pitangueira, uma realização da Cinemateca Catarinense ABD/SC, vem desde julho dedicando sua programação à exibição de filmes latinos não comerciais. Passaram pelas telas do cineclube ciclos argentinos, uruguaios, cubanos e brasileiros. O interesse pelo cinema latino partiu do público que, todas as terças-feiras, comparece à Casa das Máquinas, na Lagoa da Conceição, para as sessões. Na programação, destaque para os longasmetragens O pântano, de Lucrecia Martel (Argentina) e La vida útil, de Federico Veiroj (Uruguai). O próximo e último ciclo será composto por filmes chilenos. 22 Os produtores do longa-metragem independente Raízes Subterrâneas, de Rafael Schlichting, inscreveram o filme em um site de financiamento coletivo com o intuito de arrecadar recursos para a finalização de som e imagem. Em troca das contribuições em forma de cotas — R$ 20,00 a R$ 5.500,00 —, ofereceram recompensas que iam desde links para download do filme até bolsas de curso livre de cinema digital. Ao sexagésimo dia no ar, limite final para a arrecadação, as contribuições atingiram R$ 1.805,00 e, por não terem alcançado os R$ 10 mil solicitados, foram restituídas aos doadores. Recentemente, dois projetos da área da música de Florianópolis inscreveram, no mesmo site, suas propostas de arrecadações e recompensas para financiar a gravação de CDs. Solicitaram, cada um deles, R$ 12 mil e R$ 13.500,00. Arrecadaram, respectivamente, R$ 12.820,00 e R$ 15.070,00. Os CDs, trabalhos de estreia dos dois projetos, já foram gravados. Os casos fazem pensar como o cinema ainda é uma arte distante do público da cidade. Seu longo, metodológico e custoso processo de realização é, de certa maneira, desconhecido do grande público, e carrega uma caracterização glamourosa que não permite que propensos espectadores interajam e contribuam com o processo de produção. O trabalho de roteiristas, diretores e demais membros das equipes técnicas e de criação se faz silencioso, e autores dificilmente ganham a empatia do público. Não existe um envolvimento, uma identificação com a figura desses artistas, como mais comumente acontece com músicos. É indiscutível que na música, mais do que no cinema, se possa ter uma prova prévia de confiança na qualidade do produto final de um artista, e que a relação entre autor e público se estabeleça de forma muito mais fluida, de trocas mais palpáveis. Mas também é indiscutível que, em qualquer setor, artistas necessitem de oportunidades para expandir e espalhar sua arte, seja por meio de músicas gravadas ou filmes finalizados. O caminho a ser traçado na busca do reconhecimento e da compreensão da arte de fazer cinema é o fomento à produção. E o público, tendo acesso a obras cinematográficas, terá despertado o desejo de contribuir com a realização delas. LÁ DO CÊ MVM e Fundação Badesc foto divulgação Duas instituições, não focadas ao tema, respondem hoje como difusoras do cinema de qualidade em Florianópolis e, assim como propõem os cineclubes, formaram seu público. A Fundação Badesc tem agenda semanal fixa com exibições diárias de cinema. Parcerias com instituições de ensino, cineclubes, curadores e convidados possibilitam programas de exibição de propostas variadas, sempre com o convite à reflexão após as sessões. O Museu Victor Meirelles, além de seu cineclube quinzenal, promove palestras, mostras, ciclos e exibições pontuais, também comentadas, e, em setembro, admiravelmente, realizou o Loop Godard com 10 horas seguidas de projeção de filmes do cineasta. Vale registrar que, além da programação de cinema, as instituições promovem regularmente exposições e concursos de arte, lançamentos de livros e filmes, discussões e palestras, workshops e oficinas. Quando do fechamento do CIC para reforma, a população ficou desamparada. Com a reabertura, órfã definitiva. O MVM e a Fundação Badesc acolheram-na. Consulte os sites www.museuvictormeirelles.gov.br e www. fundacaoculturalbadesc.com para informações sobre programação e atividades, sempre gratuitas. Semana de Cinema da UFSC A Semana de Cinema da UFSC, desde 2007, promove concorridas atividades gratuitas como oficinas, palestras e exibições. O cinema de Horror Fantástico foi o tema da edição 2012, que contou com convidados vindos de várias partes do país, considerados referência na realização e no pensar do gênero. É uma pena a Universidade Federal de Santa Catarina pouco apoiar o evento, que este ano teve data adiada, pois o espaço a ele reservado havia sido cedido a outra atividade. Edital Catarinense de Cinema A Fundação Catarinense de Cultura anunciou no dia 24 de setembro os projetos premiados no Edital Catarinense de Cinema 2011-2012. Foram 30 selecionados em 4 categorias, incluindo pesquisa e desenvolvimento de roteiro, realização de curtas e um longa-metragem, totalizando R$ 3 milhões (R$ 1,9 milhão a mais do que a edição anterior). Porém, o que ninguém anuncia é que um incremento de quase 60% não reflete maiores investimentos na produção audiovisual do estado já que, ano após ano, o governo lança a premiação como bienal mesmo que, por lei, e em seu orçamento, conste recursos anuais para a realização do prêmio. foto daniel guilhamet 23 anos de Funcine Em setembro de 1989, por meio de acordos de cooperação entre a sociedade civil (representada pela Cinemateca Catarinense ABD/SC), a Prefeitura Municipal de Florianópolis e a Universidade Federal de Santa Catarina, nasceu o Fundo Municipal de Cinema de Florianópolis com o objetivo de incentivar programas e projetos de natureza audiovisual no município. O Funcine é hoje um dos principais fomentadores da atividade cinematográfica no estado. Premia, atualmente, em seu edital anual, 8 projetos de curta-metragem num valor total de R$ 250 mil, apoia financeiramente cineclubes, publicações, mostras e festivais, promove oficinas de formação audiovisual e disponibiliza, gratuitamente e sob disputada reserva, equipamentos, claro, já bastante manipulados, de projeção e captação de imagem e som. Possui, inclusive, uma câmera de 16mm e seu conjunto de acessórios e lentes em perfeito estado. Porém, existem algumas pedras no caminho: o fundo trava embates regulares com a prefeitura por conta de anúncios de corte em seu tíbio orçamento de um pouco mais R$ 400 mil, e luta, anualmente, para a manutenção dele. Não tem sede própria — duas pequenas salas emprestadas pela Fundação Franklin Cascaes, nos porões do Forte Santa Bárbara, abrigam sua secretaria, documentos e acervo. Uma terceira, já localizada num alto nível do forte, abriga os equipamentos. E ainda corre o risco de ficar sem teto caso a Fundação Franklin Cascaes tenha que desocupar o Forte em favor da Marinha, proprietária do castelo de janela cor de vinho de Santa Bárbara e que vem reivindicando sua propriedade. Felizmente os pequenos percalços não ofuscam a luz do Funcine de Florianópolis, e a trajetória de 23 anos teve comemoração à altura de sua relevância na romântica Escadaria da rua Pedro Soares, onde lançou e exibiu 5 curtas-metragens, realizados com recursos do Prêmio Funcine de Produção Audiovisual Armando Carreirão. A pequena mostra de 3 ficções e 2 documentários reflete o caráter democrático do prêmio, que incentiva em seu moderno e simplificado edital o experimento cinematográfico. A diversidade dos olhares, abordagens, técnicas e estéticas entre os filmes exibidos e a diversidade do perfil de seus realizadores são exemplo disso. O público, heterogêneo e curioso, disputou cadeiras para assistir aos filmes e também é prova da democratização da cultura promovida pelo Funcine, raro modelo fomentador a ser seguido por outros municípios do país. Nelson Pereira dos Santos foi homenageado no 16.o FAM FAM O FAM 2012, entre uma exibição e outra de 70 filmes, homenageou Nelson Pereira dos Santos e lançou nacionalmente seu filme A Luz do Tom. Convidou Cláudio Assis, recebeu Manoel Rangel — que anunciou incremento de R$ 400 milhões no Fundo Setorial do Audiovisual —, sediou o lançamento do Edital de Cooperação Brasil-Argentina no valor de US$ 800 mil e premiou 19 categorias em 4 mostras competitivas de curta-metragem. Na mostra principal, o prêmio de Melhor Filme foi para Quando Morremos a Noite (Eduardo Morotó, RJ). Celulares — Contraponto A produtora Contraponto foi contemplada no Edital de apoio à produção de obras cinematográficas de ficção de baixo orçamento, do MinC. O projeto Celulares tem roteiro e direção de Jeferson De, premiado cineasta paulista, autor do manifesto Dogma Feijoada e dos filmes Carolina e Bróder. A premiação no edital, que tem foco regional e seleciona projetos por cotas geográficas, vai possibilitar um ótimo intercâmbio à produção e aos profissionais. 23 caderno de produção 24 Charge de Chico Caprário