3outubro/2012 issn 2237-9576

Transcrição

3outubro/2012 issn 2237-9576
q3
outubro/2012
ISSN 2237-9576
editorial
q
mais páginas
A Lado C chega ao número 3, com quatro páginas a mais, como uma das
poucas publicações críticas e de debates sobre cinema e audiovisual no
Brasil. A entrevista com Luiz Carlos Lacerda, publicada na edição anterior,
repercutiu no meio cinematográfico além da ponte Hercílio Luz. A Lado
C já não é mais uma publicação paroquial. E ela existe graças ao apoio
fundamental do Fundo Municipal de Cinema, uma instituição idealizada
e conquistada por diretores e produtores da Ilha de Santa Catarina, tornando-se exemplo a ser seguido como política pública que extrapola as
políticas de governo, solidificando-se como uma real política de estado.
Neste número, o cinema uruguaio é historicamente rememorado pelo Germán Silveira. Além disso, entrevistamos o poeta Mauro Faccioni Filho, um
dos pioneiros do ressurgimento das produções cinematográficas em Santa
Catarina a partir dos anos 80 do século passado. Carol Marins faz um
apanhado sobre as possibilidades reais de coproduções, principalmente
com países da América Latina. Marlon Krüger faz uma homenagem crítica
ao cineasta Carlos Reichenbach, morto recentemente. O jornalista José
Geraldo Couto analisa os filmes de Nelson Pereira dos Santos sobre Tom
Jobim. Dorva Rezende escreve sobre a cinematografia de ficção científica, principalmente a partir da literatura de Ray Bradbury. Luiz Carlos
Lacerda narra o brevíssimo encontro que teve com o mestre Michelangelo Antonioni. Victor da Rosa comenta o baú literário de Rogério Sganzerla. Pedro MC continua o debate com Ricardo Weschenfelder. Por fim,
mas não só, Fernando Weber ilustra as páginas da Lado C. Boa leitura.
Carol Marins | produtora graduada em publicidade.
Estudou produção executiva e mercado internacional na
EICTV/Cuba. Atuou como diretora de produção em mais
de 60 filmes. É coordenadora da seleção do curso regular
da EICTV no Sul do Brasil. É membro do Conselho de Ética
do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Audiovisual
em SC (SINTRACINE) e do Conselho Nacional de Cineclubes.
CHICO CAPRARIO | roteirista e operário de cinema em
Florianópolis desde 1997. Dirigiu obras como Sorria
você está sendo filmado e Histórias de Cinema, e interpretou personagens em diversos filmes realizados em
Santa Catarina.
DORVA REZENDE | jornalista, mestre em letras pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
GERMÁN SILVEIRA | doutorando em Etudes Transculturelles pela Universidad Jean Moulin Lyon 3, na França.
Mestre em ciência da comunicação e das mídias pela
Universidad de Ginebra. Professor convidado do curso
teorías de la recepción de la maestría en comunicación,
na Universidad Católica del Uruguay.
GUSTAVO JAHN e MELISSA DULLIUS | são artistas e
juntos formam o duo Distruktur. Desde 2006, vivem em
Berlim. Seus filmes foram exibidos na Berlinale, Torino
International Film Festival, The New Museum, Caixa Cultural e Moscow International Film Festival.
JOSÉ GERALDO COUTO | jornalista, crítico de cinema e
tradutor. Publicou, entre outros, os livros André Breton
(Brasiliense) e Brasil: anos 60 (Ática). Colabora regularmente com as revistas Bravo! e Carta Capital e mantém
uma coluna de cinema no blog do Instituto Moreira Salles.
Luiz Carlos Lacerda, o Bigode | diretor e roteirista. Foi professor da Escuela Internacional de Cine e TV
de Cuba. É autor de vários filmes, entre eles Leila, para
sempre Diniz (1987) e For All (1997), pelo qual recebeu o
Kikito de melhor filme no Festival de Gramado. Neste ano,
lançou o filme A mulher de longe, baseado em um roteiro
do escritor Lúcio Cardoso.
PEDRO MC | cursou fases de graduação de design gráfico, letras e cinema. Trabalha com design e web
desde 1994. Documentarista, dirigiu Paisagem Urbana (2007), Maciço (2009) e Entrelinhas (2009).
O lado
da capa
Apoio
02
q3
ISSN 2237-9576
outubro/2012
Diretoria (gestão 2011-2012)
Reno Luiz Caramori Filho
Presidente
Natália Poli
Diretora Financeira
Flávia Person
Diretora Administrativa
Fausto Correa Júnior
Diretor de Comunicação e Difusão
Conselho (gestão 2011-2013)
[email protected]
[email protected]
http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/funcine/
Cláudia Cárdenas
Presidente
Sulanger Bavaresco
Vice-Presidente
Sandra Ouriques
Secretária
Fábio Brüggemann
Edição
Ayrton Cruz
Planejamento gráfico
Denize Gonzaga
Revisão
Flávia Person
Coordenação
Gráfica Natal
Impressão
2.000 exemplares
Tiragem
Conselho editorial
Realização
é uma publicação
da Cinemateca
Catarinense
— ABD/SC e
Fundo Municipal
de Cinema de
Florianópolis
(Funcine)
Patrocínio
A imagem da capa desta edição foi
gentilmente cedida pelo fotógrafo Scott
Macleay. Canadense de nascimento,
escolheu a Ilha de Santa Catarina
para viver. A foto faz parte da série
“Primatas”, exibida pela primeira
vez em Nova Iorque,
em 1985.
MARLON KRÜGER | graduado em cinema pela UFSC. Escreveu, editou
e cofundou a Punctum, colaborou
para a Foco e é redator da revista Contracampo.
Victor da Rosa | ensaísta,
porta e cronista do Diário Catarinense. Mestre em literatura
pela UFSC, na qual frequenta o
doutorado. Organizou, em parceria com Ronald Polito, a antologia
99 poemas, de Joan Brossa (Annablume/Demônio Negro, 2009). Em
2010, ganhou o Prêmio Rumos, de Crítica Literária, do Itaú Cultural. Mantém o
blog: http://www.victordarosa.blogspot.com.
Cláudia Cárdenas
Fábio Brüggemann
Flávia Person
Natália Poli
Ricardo Weschenfelder
Cinemateca Catarinense
Travessa Ratclif, 56
Centro — Florianópolis/SC
Telefone: (48) 3224-7239
Funcine (Fundo Municipal de Cinema)
Rua Antônio Luz, 206 — Forte Santa Bárbara
Centro — Florianópolis/SC
Telefone: (48) 3224-6591
opinião
Linha tensionada sobre
superfície inventada
C
Pedro MC
oncordando que temos em nossa terra uma narrativa de descontinuidade
inconjugável sobre ruptura de pensamento “moderno” e tradicional, fazendo mover
nossa cinematografia num eterno recomeço de
referências, procuro achar em uma determinada
dicotomia um movimento que tentará, enfim,
aproximar olhares.
A visão de Ricardo Weschenfelder em valorizar imagens que se mostrem em linhas difusas, dispersas e duvidosas, buscando desse
mesmo conjunto identidade e reinvenção, me
parece seguir um trajeto em que inevitavelmente as linhas se fecharão, em algum tempo, em
moldura estática, carimbada com zelo histórico,
protocolada em serviços de burocracia e tecnicamente decente.
A reinvenção é um devaneio como o sonho,
e não há fronteiras no sonho, no desejo do sonho. Inventar, desejar mudança e transformação
é uma sugestão do sonho como devaneio da
dimensão poética. O próprio filme recente de
Weschenfelder, Dicionário, pontua esse estado
onírico sobre a realidade dura. E foge da moldura velha, ainda sim comportadamente (o que
merece um texto à parte).
Em suas linhas, na segunda edição da revista Lado C (“Tradição negativa e eterno recomeço”), o cineasta discorre em concordâncias discutíveis sobre contrapontos propositivos, como
o debate, a interação, o conteúdo. Tensiona,
ainda, os fios e afirma que a relatividade deve
ser nossa amiga estética na ruptura.
Penso em analogia que relativa é a forma
utilizada na ruptura de uma tradição que não
existe, na relação entre moldura e símbolo que
também não existe. O ponto de vista de Weschenfelder parece defender uma ligação afetiva com os filmes já realizados em terras cata-
rinenses, mas o que joguei como provocação,
em termos, no texto “Intenção e Movimento”,
da primeira edição desta revista, foi o que é ser
catarinense, afinal?
Minha provocação fez suscitar uma réplica
que movimenta intenções contíguas, supondo
que se os fios descontínuos se alinhassem sobre
um terreno sem nome, o doesto seria idêntico.
E invento mais. Tensões dialógicas esticam fios
que conectam tramas, criando linhas que se cruzam na temática da reinvenção estética ou que
se movem à margem da relatividade histórica.
Não importa: o desenrolar do novelo traz novas
saídas; são criados novos labirintos. O local geográfico pode se tornar apenas local narrativo.
Anacrônico, o cinema daqui deve se reinventar usando a seu favor uma relatividade histórica, em termos estéticos. Mas o que é cinema
daqui? Cinema é linguagem universal, é uma
forma de expressão sobre o mundo; encanta
e enche os olhos das pessoas (e tem ainda por
aqui um falso glamour herdado lá no “nosso”
modernismo ainda vigente, ou, talvez, pelo provincianismo latente).
A descontinuidade adquirida de uma cinematografia regional que não dá pistas sobre sua
ruptura permite uma saída que vem paradoxal
e cegamente por uma descoberta e invenção
de si mesmo. Saber-nos como seres humanos
contemporâneos — homo-rapiens do consumo,
submissos de um trabalho por um progresso do
capital, tão escravizados quanto Sísifo, animais
experimentais, pessoas com desejos múltiplos
— é fundamental para refletir na tela mais do
que uma historinha.
E é nesse sentido que critico o imbróglio
do cinema feito por aqui em terras acima do
mar, quando o audiovisual se deixa levar pela
navegação segura da prosa, fechado na escotilha. “Meus velhos brinquedos de sonho,
Compondo fora de mim minha vida interior!”,
esbraveja contra a segurança de uma navegação sem alma, Fernando Pessoa: “Sede vós os
frutos da árvore da minha imaginação, / Tema
de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência, / Vosso seja o laço que me une ao
exterior pela estética, / Fornecei-me metáforas
imagens, literatura, / Porque em real verdade,
a sério, literalmente, / Minhas sensações são
um barco de quilha prò ar, / Minha imaginação
uma âncora meio submersa, / Minha ânsia um
remo partido, / E a tessitura dos meus nervos
uma rede a secar na praia!” (“Ode marítima”,
Álvaro de Campos, 1915).
Além da superfície
E encontro ontem à noite, em sua estreia, intuindo que o assistindo mudaria todo este texto,
o filme Linha do Mar, de Felipe Vernizzi. Tudo
que foi tensionado no texto emerge nesta obra
com simplicidade. Uma simplicidade comovente, de fato. Simplicidade tão cara ao cinema, num
plano, Vernizzi tem a liberdade do ar tão plástica
que é capaz de filmar o horizonte do mar de cabeça para baixo, plano de sonho que remete ao
cinema de Terrence Malick, ressonando a fotografia de Paris, Texas (Wim Wenders, 1984) e
Daunbailó (Jim Jarmusch, 1986), de Robby Müller, a textura da natureza em
movimento com um fio de narrativa
ligada ao homem.
Se a forma resolvesse algum
aspecto provocativo de localidade,
Vernizzi consegue transmutar a questão. O que se chama de Florianópolis são todas
as praias do mundo. A areia é apenas a areia.
A realidade não é só colorida. A realidade, no
cinema, é uma busca eterna pelo aumento das
fronteiras do próprio cinema. Transmutar o significado das coisas que inventamos, sentido
maior para a vida em movimento.
Linha do Mar,
filme de Felipe
Vernizzi
03
entrevista
Mauro
Faccioni
Filho
Entrevista concedida a Fábio Brüggemann
04
M
auro Faccioni Filho é engenheiro elétrico de formação e
dirige uma empresa de infraestrutura em tecnonogia de
informação. O leitor pode perguntar o que faz um engenheiro
nas páginas da Lado C. Quem não viveu na Ilha de Santa Catarina na
década de 80 do século passado, possivelmente não assistiu aos filmes
produzidos por ele. Entre eles, o mais polêmico, está o média-metragem
Bruxas, uma leitura bastante pessoal do universo ilhéu. Mauro
produziu também o primeiro longa-metragem feito em vídeo no estado.
Ainda em VHS, Loba é inspirado no cinema de Rogério Sganzerla e, por
consequência, no Acossado, de Jean-Luc Godard. Desde àquela época,
Mauro tem se dedicado também à poesia, que o colocou entre os mais
importantes poetas de sua geração. Além disso, publicou várias revistas
literárias, entre elas, e que permanece até os dias de hoje, a Babel, em
parceria com o poeta Ademir Demarchi.
LADO C | Mas não lhe interessa mais, mesmo
que seja para um suposto “pouco público”,
fazer “filmes de pensamento”? De algum
modo, cineastas que “fazem pensar” também
têm pouco público.
Mauro | Não, não me interessa mais, porque
esse pensamento a que me referi não consegue
ser bem estruturado dentro da produção fílmica, no meu entender. Pois, como está dito, é
uma produção. Assim, o ato de pensar acaba
se diluindo de alguma maneira, acaba se enfraquecendo. Acho que a função do cinema,
prioritária, fundamental, não é mesmo a do
pensamento. É a da fruição.
LADO C | Você diz que prefere os poemas,
mas a arte poética também tem um público
ínfimo. As tiragens de livros de poemas no
Brasil, com mais de 200 milhões de habitantes, não passam de mil exemplares.
Mauro | O poema não é uma produção industrial, então não tem a função “público” como
uma característica. Além disso, o poema é
individual, é uma oferta individual para um
entrevista
LADO C | No começo dos anos 1980 você
não só fez vários filmes experimentais, médias e curtas, mas também agrupou outros
jovens que até hoje continuam fazendo filmes. Um dia você não quis mais, dizendo que
o modo “industrial” exigido para se fazer
filmes não lhe interessava, e que não havia
recursos para a produção de filmes experimentais, ou que não dependesse do esquema
tradicional de produção e distribuição para
recuperar o suposto investimento. Passados
quase vinte anos sem fazer filmes, você ainda pensa assim?
Mauro Faccioni Filho | Passados esses vinte
anos, muitas coisas mudaram, muitos pensamentos mudaram. Acho que o filme experimental ganhou uma dimensão nova, pois as
tecnologias permitiram mudar o modo de produção, facilitaram muito o modo de produção.
Agora ficou bem mais fácil fazer um trabalho
experimental, e também é muito fácil publicá-lo, mostrar ao público. Mas o problema será
o de ter algum público. Colocar um trabalho
experimental na internet não quer dizer que haverá algum público. Haverá uma vitrine compartilhada infinitamente. Enfim, há um gargalo
que não é de produção, mas de “querer dizer”.
Experimentar por experimentar não tem muito
sentido, é apenas exercício. Acho então que o
filme de pensamento, que era o que eu queria
fazer (e que não é experimental), esse continua
muito difícil de encaixar no sistema de produção e veiculação. Prefiro os poemas.
público individual. Então a questão do volume
não cabe na fórmula; por isso não tem importância relevante. Um poema importante terá
uma resistência capaz de fazê-lo sobreviver, e
o público vai se montando na linha do tempo.
Caso não tenha resistência, irá desaparecer.
Não há problema nesse caso.
LADO C | Mas a história provou que vários
filmes, ainda que tenham tido públicos restritos, também tiveram essa resistência para
a sobrevivência. Seria o suporte o inimigo?
Porque o livro você carrega para onde quiser,
ao contrário do filme.
Mauro | Acho que o suporte é apenas um dos
inimigos. Mas o principal é a estrutura interna
do filme. Com o passar do tempo, a estrutura
física que dá suporte à dramática vai ficando
mais proeminente, acabando, então, com sua
sobrevivência. Ao contrário da fotografia estática, pois essa é uma composição individual
como a pintura.
LADO C | Os diretores de cinema, pelo menos os diretores “donos” de seus filmes, o
“diretor-artista” (em contraponto ao diretor
da indústria), até os anos 1980 eram mais
leitores, mais intelectuais, mais pensadores.
Hoje, mesmo os diretores que tentam fazer
filmes independentes parecem que perderam
o gosto pelo pensamento. É mesmo a vitória
da fruição?
Mauro | Não acho que a fruição tenha algo a
ver com isso. E os diretores que queriam ser
donos de seus filmes não eram tão intelectuais assim. Provavelmente faziam muita pose, e
nós compramos essa imagem. O ato de pensar
é uma fruição.
LADO C | Há uns dez anos, se não me engano, você publicou no Diário Catarinense um extenso artigo crítico sobre os filmes
produzidos em Santa Catarina. Significa que
você estava interessado nessa produção, mesmo que pelo viés crítico. Tem visto as últimas
produções depois disso?
Mauro | Sempre tive interesse nas produções,
e sempre me interessei pela análise crítica.
Mas infelizmente não tenho visto as produções
recentes (por culpa do tempo, de responsabilidades e de outros problemas).
LADO C | Voltando um pouco, quando você
fala de cineastas que faziam pose, está se referindo a algum especial, ou de uma época?
Mauro | Fazer pose tem a ver com se mostrar, se exibir. Os cineastas da época do Cinema Novo tinham isso como parte do negócio
“... Agora ficou bem
mais fácil fazer um
trabalho experimental,
e também é muito fácil
publicá-lo, mostrar
ao público. Mas o
problema será o de
ter algum público.
Colocar um trabalho
experimental na internet
não quer dizer que
haverá algum público.”
05
entrevista
“... E parecer inteligente
e culto era algo que
vendia bem. No entanto,
o conteúdo não era
equivalente ao tamanho
da pose. Era oco. O
problema é que isso
permaneceu como parte
do negócio mesmo
depois, e até hoje tem
gente de cinema que
tenta clonar esse estilo.”
06
deles, sem dúvida. Era uma fase, um jeito de
ser. E parecer inteligente e culto era algo que
vendia bem. No entanto, o conteúdo não era
equivalente ao tamanho da pose. Era oco. O
problema é que isso permaneceu como parte
do negócio mesmo depois, e até hoje tem gente
de cinema que tenta clonar esse estilo.
LADO C | Você se importaria de exibir seus
filmes novamente?
Mauro | Claro que não. Não me importo e
acredito que os filmes têm a sua vida, não
são objetos para se guardar. Estão livres
para exibição onde houver interessados em
assisti-los.
LADO C | Certa vez você falou que depois
que assistiu ao Bandido da Luz Vermelha,
do Rogério Sganzerla, sua ideia de cinema
havia mudado. Seus filmes, principalmente
Loba, têm alguma influência dele?
Mauro | Muita influência. Adorei os filmes do
Sganzerla. E ao mesmo tempo descobri algo
absolutamente surpreendente, que era o fato de
o cinema dele ser tão excepcional, e ele pessoalmente alguém tão banal (mas com muita
pose). A fala, os discursos, tudo meio sem
nexo, nem sentido, ao contrário dos filmes,
cheios de inteligência e sutilezas. Até hoje não
sei explicar, ou então eu mesmo é que não entendi nada.
LADO C | E sobre os poemas, esperamos que
não tenha abandonado a feitura deles. Alguma publicação em vista?
Mauro | Não abandonei. Pelo contrário, tenho
me dedicado a eles. Revisando uns textos, escrevendo outros. Tenho um volume que estou
arrumando para tentar publicar. Mas estou em
dúvida sobre a qualidade. De vez em quando
fico indagando se há valor neles; então deixo
um pouco guardado para amadurecer. Daí releio, e volta e meia jogo alguns fora. Outros
vão aparecendo e tento criar alguma unidade
no conjunto. Os que não se encaixam nessa visão de “conjunto”, deixo de lado por uns tempos, até chegar a hora de continuar com eles,
ou jogar fora.
LADO C | Algum outro cineasta ou filme
especificamente fez parte da sua formação
como diretor?
Mauro | Glauber fez dois filmes excepcionais
(Deus e o Diabo e Terra em Transe), mas o
resto é muito fraco.
LADO C | Hoje há uma preocupação maior
em relação à preservação e, em alguns casos,
à restauração das obras cinematográficas.
Falando nisso, seus filmes — muitos deles
feitos em 16mm, outros em vídeo, no formato
VHS ainda, e até o Bruxas (curta em 35mm)
— estão bem preservados?
Mauro | Os negativos dos filmes em 16mm estão na Cinemateca Guido Viaro, em Curitiba.
O resto está se perdendo, devido ao tempo.
LADO C | Você tem revisto seus filmes ou os
exibido em algum lugar?
Mauro | Não, não os revejo, nem os tenho exibido.
LADO C | Você fundou e editou várias revistas literárias. A última, Babel, ainda é publicada, apesar de você não fazer mais parte da
edição. Você tem vontade de voltar a editar
outra revista?
Mauro | A Babel que está sendo publicada é
um projeto especial que o Ademir Demarchi
conquistou junto ao Ministério da Cultura.
É um conjunto de edições especiais. Ao final, retornaremos à Babel. Mas é provável
que a gente invente outra. De fato tenho
fundado revistas desde muito tempo atrás.
Lançamos a 84, depois a ExVia, depois a
Babel, e talvez tenha alguma coisa avulsa
aí pelo meio.
LADO C | Se o cinema de Rogério Sganzerla foi bastante influente na sua formação
cinematográfica, que poeta (ou quais) foi
ou é fundamental na sua formação como
poeta?
Mauro | Isso tem mudado com o tempo. A
cada época me sinto influenciado por um diferente, e isso vai e volta. Comecei com o
Drummond, depois o Borges, mas antes foi o
Leminski, depois foi o Homero com a Ilíada,
então traduzi o Yeats, e mais pra frente algo do
Pessoa. Na verdade acho que é uma mistura
bem geral; tenho muitas afinidades, mas não
sei quem seria o fundamental. Como disse, vai
variando. No entanto, tenho a impressão de
que meus poemas não variam tanto quanto
meus gostos literários.
16mm + vídeo + 35mm slide | Brasil/Alemanha | desde 2006
Gustavo Jahn e Melissa Dullius
F
luxus et Refluxus é um projeto que
vem acontecendo desde a nossa mudança de Porto Alegre para Berlim. A
viagem começa a bordo de um navio cargueiro
singrando um oceano e continua em Berlim até
os dias de hoje.
Um filme travessia, que representa em
imagens e sons o acúmulo de vivências e a
passagem do tempo. A forma do filme e o formato de exibição são flexíveis, acompanhando
o nosso desenvolvimento técnico e poético.
A vida é uma aventura.
x
Fluxus et Refluxus lembra o título de um filme português, Vai e Vem.
O repuxo é perigoso. No mais,
tudo o que aconteceu depois de seis
anos.
E o silêncio do abismo.
A conta sempre chega, dizia um
sábio amigo.
Começamos sobre o preto do Oceano Atlântico. Pois o azul, depois
de um tempo, tornou-se preto.
Em uma festa, uma voz da pista
de dança clama: sempre pra frente!
Há um navio navegando. E é isso.
x
Outro dia alguém perguntou, mas
é sobre o quê?
- Sobre pedras.
E o que vocês falam das pedras?
- A gente apenas mostra elas.
x
A imagem é. Imagine.
x
Relato de dois viajantes sobre
um filme visto em algum lugar não se
sabe quando
x
O navio singra no mar escuro,
cinza escuro quase preto. Nuvens
muito brancas pairando acima da linha que divide mar e céu.
x
A silhueta da mulher diante da
janela. A luz passa pela cortina
e inebria todo o espaço. Ela não
consegue dormir, parece nervosa. O
corpo do homem se mexe sobre os
lençóis; ele fala para ela não se
preocupar, abrir a janela. Ela deixa um pouco de ar entrar no quarto
e volta para a cama, tira a blusa
e se deita de lado. Deitada, mantém
os olhos abertos.
x
Trens partem na hora marcada.
x
Pessoas deitadas num quarto pequeno. Há uma cama, o homem e a mulher estão deitados nela. Os outros
estão espalhados, no chão, em poltronas. Repentinamente alguém en-
tra no quarto, uma mulher talvez, e
vê todos dormindo. Há um deles que
finge dormir.
x
Letras sobre um horizonte formam
as palavras: FLUXUS ET REFLUXUS.
x
Na beira da praia um grupo de
pessoas acena, agitando lenços
brancos.
x
O homem caminhando por uma rua
encontra uma carta, um ás de copas.
Guarda a carta no bolso de sua camisa, uma camisa branca.
x
Um objeto pontiagudo corta o
oceano. É o bulbo da proa, na dianteira do casco. Os reflexos do sol
na água produzem um chuvisco de estrelas.
x
O homem todo de vermelho sentado no chão torna-se uma abstração,
um arco-íris nervoso. Tshhhh...
tshhh... uma lata de spray. Ainda
está ali o espectro do homem, que
se tornou a paleta de suas cores a
vibrar, espectro-movimento.
x
Um terremoto, ou pelo menos tudo
treme, ruas em declive, atalhos,
prédios.
x
Uma cerca protege um terreno
baldio. Uma sacola de plástico desfiada balança ao vento como uma bandeira.
x
Uma paisagem em U, uma depressão suave, um half pipe natural.
De longe, alguém desce o U de bicicleta, e depois cruza um campo
coberto de folhas amarelas em alta
velocidade.
x
Um cavalo azul.
x
A mulher vestindo um chapéu
branco e um vestido de seda entra
numa loja de flores.
x
Uma construção vista de cima,
uma cratera enorme onde se movimentam diversos trabalhadores e máquinas. O chão do lugar é branco,
parece neve ou areia.
x
Na popa de um navio, sob o sol a
pino, um trabalhador solitário puxa
uma corda, arrastando-a pelo chão.
Ao fundo, o rastro de espuma branca
que o navio deixa no mar.
x
O homem de perfil balança enquanto fuma, para frente e para trás.
A expressão de um anjo esculpida em
mármore observando o homem.
x
O sol se põe no mar.
x
Uma cratera no meio da cidade,
uma pessoa girando dentro dela.
x
O homem entra em uma cabine telefônica e faz uma ligação. Numa
escada rolante, encontra outro homem e os dois trocam objetos, papel
por papel.
x
Mão voa sobre a espuma do mar.
Pássaro de asas abertas. Navio no
horizonte.
x
Em preto e branco, a proa de um
navio. Ao longe, a linha do horizonte que sobe e desce, e no alto,
nuvens que se movem rapidamente,
para esconder, depois revelar o
sol. O homem surge, pequenino ante
o cenário, e caminha até o ponto
mais dianteiro da proa.
x
Fim de tarde, a luz do sol divide o céu com nuvens cinza.
A mulher andando por uma avenida
larga, olhando para o nada. O vento
bagunça os cabelos dela. Aperta os
braços contra o próprio corpo como
se sentisse frio.
x
O rosto da mulher e depois do
homem aparecem na lua.
x
Com a luz do dia filtrada pela
cor das cortinas, não se vê mais
que silhuetas. Uma mulher com cabelos longos presos num rabo de cavalo faz uma massagem no corpo da
mulher que está deitada de bruços
em uma mesa. A mulher deitada não
se move, é um corpo inerte manipulado pela massagista.
x
A espuma no mar fica para trás e
forma uma estrada branca.
x
Sobre uma mesa, a mulher manipula com um inseto verde e vermelho. Sem querer arranca sua cabeça e depois encaixa de novo no
corpo.
x
Um terreno atrás de um prédio
com o mato crescido.
x
Chegando a um porto, linhas de
montanhas no horizonte, pequenos
barcos à frente. Um barco de polícia se aproxima em velocidade de
outro barco pequeno.
x
Luzes do navio atracado brilham
na noite, guindastes empilhando
contêineres sobre o casco. Dentro
da cabine, silêncio.
roteiro
Fluxus et Refluxus
07
coproduções
fotos divulgação
Cena de
O Gigante,
de Júlio Vanzeler
e Luís da
Matta Almeida,
produzido pelo
português,
radicado em
Santa Catarina,
Igor Pitta
COPRODUÇÃO
O filme além do umbigo
Quando contar histórias rompe barreiras geográficas,
de idioma, de conceitos e se torna indústria
O
08
Carol Marins
Brasil de hoje se apresenta como um
ótimo parceiro para as coproduções
internacionais. É de fato um mercado crescente e ainda muito paternalizado. Na
contramão do hiato político histórico do setor,
é inegável o esforço em âmbito nacional e a
função estratégica que o Itamaraty, o MinC e
a Ancine têm para ampliar a participação brasileira no mercado externo: programas como
o Cinema do Brasil e Ibermedia; acordos de
coprodução multilaterais e bilaterais com diversos países, editais bilaterais para coproduções com Espanha, Uruguai e também com a
Argentina. Aqui no Florianópolis Audiovisual
Mercosul (FAM), berço da Reunião Internacional de Autoridades Cinematográficas e Audiovisuais do Mercosul (Recam), foi lançado o
edital Brasil/Argentina, que investirá US$ 800
mil na produção de quatro projetos de longa-metragem independente. Sem falar na aprovação da lei n.o 12.485, surgindo como uma nova
oportunidade para tornar a produção brasileira
mais atrativa.
Claro que ainda falta quebrar muitas barreiras para a coprodução internacional se tornar mais expressiva e sem oscilações a cada
“tombo” político. Ainda durante o Fórum do
FAM, Manoel Rangel, presidente da Ancine,
apresentou os esforços políticos do setor que
esbarram na burocracia e em interesses de
leis de importação e exportação. Em pesquisa
com produtores, os anseios dessa complexa e
sofisticada economia são: ajustar certas exigências trabalhistas para países que não têm
acordo de coprodução com o Brasil; garantir
que os recursos de editais e do Fundo Setorial Audiovisual tenham um prazo definido;
criar uma linha de desenvolvimento de projeto específico para coproduções; isentar de
impostos as remessas de dinheiro destinadas a
coproduções que tenham que ser filmadas no
exterior e adequar o orçamento à realidade do
mercado brasileiro.
Ralf Tambke, da Plural Filmes e presidente
do Sindicato da Indústria Audiovisual de Santa
Catarina (Santacine), conta que sua primeira
produção após a universidade já foi uma coprodução internacional: o longa-metragem de
7 episódios, Os Sete Sacramentos de Canudos
(Die Sieben Sakramente von Canudos). Produzido por Peter Przygodda, ZDF (segunda TV
Alemã), coprodução dos realizadores brasileiros Joel de Almeida, Jorge Furtado, Otto Guerra, Luís Alberto Pereira, Pola Ribeiro, Ralf
Tambke e Sandra Werneck. “Foi um grande
aprendizado, em 1994, famosa era pós-Collor;
tivemos todos os ingredientes necessários para
uma coprodução dar errado. Somente um país
coprodutor tinha recursos finaceiros, a Alemanha. Foram diversos diretores brasileiros,
em diferentes estágios de experiência e todos
ávidos por recursos; as histórias eram autorais,
mas a expectativa dos coprodutores alemães
era de episódios que se comunicassem entre si,
o que foi impossível, visto que os brasileiros
não dialogavam; não havia um distribuidor, ou
TV brasileira, interessado no projeto.”
Quando o próprio roteiro trata de questões
de diferentes países ou de regiões nacionais,
fica mais fácil o posicionamento do filme no
mercado. A coprodução se torna natural, orgânica. É o caso de Infancia Clandestina, que estreou em Cannes, na Quinzena do Realizador,
e abrirá a mostra Horizontes Latinos do Festival de San Sebastian, uma das maiores vitrines
europeias do cine latino-americano. Em entrevista à Lado C, o roteirista do filme, Marcelo
Muller, afirma que começou a trabalhar com
o argentino Benjamin Ávila em 2005/2006,
muito antes de existir uma coprodução formal entre as produtoras envolvidas no filme.
“Tenho uma relação de parceria no trabalho
com ele há muito tempo, desde a Eictv; dessa maneira, a integração da indústria brasileira
e argentina vem complementar uma vontade
anterior de um argentino e um brasileiro que
achavam que suas visões poderiam trabalhar
juntas em benefício da obra. Como o roteiro
aborda uma questão muito particular de um
momento da história argentina, um brasileiro
trabalhando junto com o diretor no roteiro po-
uma boa fatia. E aqui em Santa Catarina não
é diferente.
A blumenauense Belly Studio, especializada em animação, destaca especialmente
os eventos de negócios MIPJr (França), TAC (Canadá) e Kidscreen (USA). Atualmente, estão
construindo uma relação no
Canadá com o projeto História de Amor. Aline Belly
afirma que uma coprodução
é como um casamento, cada
um contribui com algo, com
seus direitos e deveres. Acrescenta que uma particularidade
brasileira que aumenta o risco
de investimento nesse mercado
é quando a produtora tem que arcar com o “custo de saída”, desde a
ideia, roteiro, piloto e o desenvolvimento
do projeto em si, enquanto em outros países
existem programas de investimento para essa
etapa, chamado seeds.
“Se você vai começar hoje, mas com bons
projetos, e com boa base de formação de como
funciona o mercado, pode fazer negócio no
primeiro evento que participar. Mas se for começar do zero, eu diria que no segundo ano
é mais provável. É preciso estar preparado e
conhecer as práticas do mercado para poder lidar com os que já têm experiência”, aconselha
João Roni.
O português Igor Pitta Simões mora em
Santa Catarina há 8 anos, e em todas as produções tem a participação de seu país de origem.
Já teve, está tendo e terá coproduções internacionais. A relação com nosso estado iniciou
quando em férias por Florianópolis, na época
dirigindo a animação Pescador de Sonhos, foi
apresentado ao Chico Caprario, que participou
da coprodução. Por sua nacionalidade, Igor
tem acesso aos mecanismos de fomento do
Instituto do Cinema e Audiovisual de Portugal
(ICA), o que é um facilitador de todo o processo. Sempre em parceria com a portuguesa
Zeppelin Filmes, seu último trabalho envolveu
parceiros também da Espanha e da Inglaterra.
Trata-se de O Gigante, ganhador do Prêmio
Funcine (Fundo Municipal de Cinema de Florianópolis), em que Igor é produtor executivo.
O Gigante ganhou o prêmio de melhor animação pelo júri popular do 45.o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e foi selecionado
em quinze festivais nacionais e internacionais
(Espanha, Canadá e Alemanha). Assim como
Pescador de Sonhos, premiado no Animatu,
em Portugal, O Gigante já nasce com uma trajetória internacional.
Já em terras tupiniquins, onde compartilhamos os modi operandi da produção cinematográfica, a associação entre produtoras é mais
simples e menos burocrática. Cíntia Bittar,
Ana Paula Mendes e Carol Gesser, da Novelo
Filmes, citam o exemplo do estado do Rio de
Janeiro, que desde o ano passado, através de
sua Film Commission, investe em coproduções
internacionais e nacionais com sua chamada
pública. Neste ano, a Novelo está concorrendo
com um projeto em coprodução com a carioca
Modo Operante. Iniciativas como essa são im-
coproduções
deria ajudar para que o filme encontrasse uma
visão mais fresca e próxima do público, que
não está tão envolvido com essas questões.” O
longa foi coproduzido com a argentina Historias Cinematográficas, empresa de Luis Puenzo, que ganhou o Oscar de filme estrangeiro
por La Historia Oficial. “O filme foi realizado
com recursos próprios e, na época, Ávila e a
Academia buscavam patrocínio para a finalização. Somente no começo de abril a coprodução foi oficializada pela Ancine para poder
captar”, finaliza. Também em San Sebastian,
mas na Competição Internacional de Novos
Diretores, voltada a cineastas iniciantes e
obras inéditas, está o filme Cores, dirigido por
André Gevaerd, de Balneário Camboriú, com
produção da Kinoosfera Filmes, que também
já passou pelo Festival de Toulouse.
A Ocean Films, também catarinense, está
com várias coproduções em andamento com
produtoras brasileiras em conteúdos para TV
e cinema. “Acabamos de aprovar a coprodução de uma série de documentários com 13
episódios que vamos rodar em 5 países da
América Latina em coprodução com a Abbas
Filmes. Vai veicular no canal Infinito da Turner e na TV Futura. Também para a Turner,
mas para o canal TNT, temos um curta que
foi coproduzido com a Casa de Cinema do
RS para o programa ‘Fronteiras’, apresentado
por Juan Campanella, diretor de O Segredo
dos seus Olhos”, diz João Roni, que também é
membro do Conselho Federal da Associação
Brasileira de Produtores Independentes de
Televisão (Abpitv).
O Brazilian TV Producers — programa de
exportação da Abpitv — tem promovido diversas ações de aproximação entre os setores
audiovisuais nacional e internacional, estimulando a participação de produtoras nos mais
importantes mercados de conteúdos como
Mipcom, Miptv.
A Abpitv realiza, desde 2011, um dos
mais importantes mercados de conteúdo multiplataforma da América Latina: RioContentMarket. Segundo a entidade, em suas duas
edições, o evento reuniu mais de 4 mil participantes, com representantes de mais de 30
países. Gerou expectativas de negócios superiores a US$ 70 milhões. Outra ação que
surgiu também como uma forma de fomentar
os produtores, e que passou por SC em março, foi o “ABPITV nos estados”, cujo foco é
capacitar e estimular a produção audiovisual
fora do eixo Rio–São Paulo.
São considerados os principais eventos
de negócio internacional para filmes: Cannes,
Toronto e Berlinale. Obviamente, a indústria
cinematográfica e audiovisual é grande e vai
além desses dois segmentos — tv e cinema,
existindo um mapa específico para gênero
de obra, região de origem e jovens cineastas,
como o Nuevas Miradas, no Festival de Cine
Latino Americano , em Cuba, e o Berlinale Talent Campus.
A diversidade de produtos e segmentos é
enorme. Cada um com suas especificidades, e
algumas têm mais oportunidades de mercado.
A animação, por exemplo, porque possui flexibilidade para diversas traduções, representa
portantes e vitais para o
aquecimento do mercado interno de produção,
e deveriam se multiplicar entre os demais estados. Também é do RJ a coprodutora Cavídeo,
com quem desenvolvem um longa de ficção.
“Em 2012, nossa produtora trouxe a produção
de um curta-metragem Promessa em Azul e
Branco, ficção paraense, para ser filmado em
Florianópolis. O filme foi rodado na capital
com recursos do Edital do MinC, mobilizando
diversos trabalhadores locais e gerando renda
para o município”, afirmam.
Organizar o setor em Santa Catarina é desbravar. É fato, está acontecendo e é importante
destacar e reconhecer que aqui essa organização tem conquistado um espaço importante
com objetivo de produzir e qualificar nossos
profissionais e produtores.
Mas de nada adianta sermos o cenário perfeito e termos produções lapidadas à exigência
internacional se falta muito ainda. Falta maturidade de projetos. Falta desenvolvimento de
projetos de coprodução natural. Falta visão
de público. Falta o interesse de produtores em
participar de eventos, importante para criar
uma rede de relacionamentos. Falta conhecer
como o mercado funciona: quem decide, o que
os canais de TV querem, o que os distribuidores buscam e quais mecanismos de financiamentos se adequam aos seus projetos. Falta
por parte da política local também um estímulo aos produtores buscarem coproduções no
exterior e no Brasil. Entre tantos retalhos de
faltas, há uma importante falta: abrir o gargalo
da distribuição e exibição.
09
exposição
foto divulgação
Foto de Toldo
Pinhal, de Chico
Faganello, 1994
Mostra 26
Celebração dos 26 anos
da Cinemateca Catarinense
D
e 4 a 10 de junho de 2012, a Cinemateca Catarinense comemorou seus
26 anos de existência, expondo, no
Museu da Imagem e do Som (MIS/SC), no
Centro Integrado de Cultura (CIC), fotos de
vários filmes produzidos nesse pouco mais de
um quarto de século. Além das imagens, foram
exibidos alguns filmes da Vera Cruz, produzidos nos anos de 1950, mesma época da produção de O preço da ilusão, dos modernistas
catarinenses, homenageados na mostra.
10
Foto still de Farra do Boi, o documentário, de Zeca Pires, 1991
exposição
Eglê Malheiros
em O preço da
ilusão, 1957
Daniel Izidoro em Naturezas Mortas, de Penna Filho, 1995
Lima Duarte em Novembrada, de Eduardo Paredes, 1998
Cena de Extra Ser,
de Celso do Santos,
1989
11
homenagem
foto divulgação
Falsa Loura: filme-testamento
F
Rosanne
Mulholland
e Cauã
Reymond em
Falsa Loura,
de Carlos
Reichenbach
(2008)
12
Marlon Krüger
alsa Loura coloca o trabalhador no
seu lugar: de consumidor. Num mundo onde tudo se tornou comensurável,
intercambiável e descartável, Falsa Loura
nos apresenta Rosanne Mulholland no papel
de Silmara. Os filmes de Carlos Reichenbach
possuem, historicamente, mulheres fortes, indomáveis, que fazem uma escolha e percorrem esse caminho por acreditarem no quê?, e
colhendo os sofrimentos e as felicidades dessas escolhas. Aurélia Schwarzenega, a personagem de Michelle Valle em Garotas do
ABC, apaixona-se por um jovem que participa
de atentados a negros e nordestinos na região
de São Bernardo: ela entra no relacionamento
sabendo exatamente o que pode lhe acontecer, mas querendo o suficiente para arriscar
ainda assim. Em Lilian M., a protagonista
apaixona-se por um mascate e abandona a sua
família no interior, lutando por sua vida na
capital, sempre orgulhosa, sempre corajosa.
Reichenbach, percebemos, é um romântico.
Um utopista, como o próprio se classificava.
O amor no mundo cruel de Reichenbach
já nasce condenado, e quanto mais profundo
o êxtase, maior será o pathos. Então, suas mulheres se apaixonam, seguem seus corações e
sofrem por isso. Prazer e dor estão materia-
lizados no corpo de Rosanne Mulholland ao
longo do filme. Ela nos evidencia como os
dois estão próximos, como diz a frase de Sócrates que abre o filme.
Este texto poderia se chamar muito bem
“Alma corsária”, referindo-se a um dos filmes
que Reichenbach rodou. Ele traduziu perfeitamente o espírito profundo de um artista engajado na sociedade brasileira de seu tempo:
buscou inscrever suas criações cinematográficas nos maiores movimentos de transgressão
possíveis. Por isso suas personagens: Lilian/
Maria/Célia, Silmara, Aurélia. Sua figura corsária era o que havia de mais desconcertante em sua personalidade. Seu navio atracou
em diversos cineastas (Fuller, Bava, Zurlini,
os filmes B americanos e os japoneses — de
Corman a Imamura) e só saía dali para retornar no futuro. Baixando filmes, indicando sites, permanecendo no underground paulista,
depois adentrando o território das comédias
eróticas toleradas pela censura, Reichenbach
foi uma fígura atípica no cinema brasileiro,
respeitado por uns e por outros, mas que se
aproveitava das estruturas de produção locais
como ninguém.
Sua carreira nunca parou. Sofreu com problemas de saúde e de produção que atrasaram
alguns filmes e transições ao longo de sua caminhada, mas o que Reichenbach deixa, além
dos filmes a serem redescobertos e reavaliados
longe de sua persona carismática, é o ímpeto
pela atividade cinematográfica e imbuída aí
a busca por um público local. Aos que costumam se referir como o “problema do cinema
brasileiro”, isto é, aquilo de não nos reconhecermos diante da tela, Reichenbach faz desse
talvez seu principal assunto. Simultaneamente,
ele não é capaz de abrir mão de escolhas em
prol de um público mais amplo. O resultado é
que seus últimos filmes, melodramas femininos que refletem o destino das personagens e
investigam suas imagens, terminariam por ser
exibidos em sua maioria nos circuitos de cinemas distantes das locações de seus filmes, ou
seja, da periferia paulistana.
O trabalho de Reichenbach se situa entre
o cinema experimental e o cinema popular.
No entanto, é de fácil acesso ao grande público por tratar-se de cinema de gênero. As referêcias dele não são, então, muito diferentes
dos nomes que povoaram a vida de um cinéfilo: Samuel Fuller, Jean-Luc Godard, Nicholas
Ray, Shohei Imamura, mas também o soberano do filme B, Roger Corman. Em todos
os filmes de Reichenbach se nota, direta ou
indiretamente, um cinema popular, poderia-se dizer um cinema “retornado”, um cinema
feito para dinamitar as barreiras inerentes a
todos os gêneros do cinema.
Para frustar a censura política que segurava o país firmemente — e onde nada relacionado à moral ou à política poderiam ser ditos
— resistiu fazendo pornôs softs. Na época, a
censura política era bastante dura, mas nunca
chegou a se ocupar com os filmes de sexo, e
mesmo a censura moral não se ocupava do
conteúdo político desses filmes. Evidentemente, muitos diretores embarcaram nessa oportunidade. Mas poucos eram realmente talentosos como Reichenbach, além de Jean Garrett,
Claudio Cunha ou Ody Fraga. Poucos decidiram jogar com os clichês do pornô, poucos se
preocuparam em fazer desvios, em recusar seu
contéudo machista e principalmente em fazer
um filme de acordo com sua concepção. Essa
“antroprofagia da bricolagem”, que Reichenbach impunha a si mesmo, transformava esse
tipo de cinema manco a jogar pela descontrução completa da linguagem cinematográfica
habitual ao genêro. Por isso o erotismo é tão
notável na primeira metade de sua carreira, em
filmes como: O Paraíso Proibido, de 1971;
Lilian M.: Relatório Confidencial, de 1975; A
Ilha dos Prazeres Proibidos, de 1979; O Império do Desejo, de 1981; Amor, Palavra Prostituta, de 1982; Extremos do Prazer, de 1984.
O ponto de virada na filmografia de Reichenbach é um pouco lenta como a democratização e abertura política brasileira dos anos
1980: aos trancos e barrancos, filmes diferentes, que permitiam escapar ao genêro erótico,
surgiam. Filme Demência, de 1986, talvez seja
o primeiro grande sinal: era um filme sobre
cinema, desde o título. Um ano depois, com
Anjos do Arrabalde, Reichenbach anunciava
uma dramaturgia mais cuidadosa, com formatos dramáticos mais rígidos, movimento que
culminará num dos grandes filmes brasileiros
da última década: Bens Confiscados, quase
um veículo para Beth Goulart. O retorno à
democracia permitiu a Carlão aproximar diretamente as questões políticas ou sociais que
esse filho de editores educado à base de gibis
e Proudhon trazia no coração (uma das grandes características dele era a conversa interminável, a paixão desgarrada por seus assuntos
queridos): em 1993, Alma Corsária celebra o
mundo e a amizade dos poetas (mas também
Sam Fuller). Põe em andamento seu projeto
audacioso de seis retratos que mapeariam o
mundo feminino do ABC paulista e suas noites
no Clube Alvorada (no já citado Garotas do
ABC e outros), e evoca o fantasma dos anos de
repressão política (em Dois Córregos, a cidade
que adotou como sua ao ponto de transformá-la em filme). Raramente a classe operária, em
especial em sua composição feminina, terá
sido contornada com tanta precisão e respeito. Elas podem estar trabalhando nas fábricas
ou ensinando nos colégios, mas seus retratos
de mulheres sempre vão buscar o essencial.
Mesmo nos detalhes, pois são eles que fazem a
vida e a injetam sentido.
Em Filme Demência (ou “filme de cinema”) podemos ter ideia do tipo de guinada
fascinante que Reichenbach dá ao seu cine-
ma: reencontramos suas obsessões familiares,
acompanhadas de uma nova reflexão sobre a
força (e a fraqueza), o êxito (e o fracasso) e o
desejo forçado do sonho (com alguns momentos de realidade em volta). A partir da história
de Fausto, este filme de cinema vai derivar (a
deriva é um grande assunto de Alma Corsária
também, e indo mais longe, foi o grande tema
de seu professor e mentor, Luís Sérgio Person,
em São Paulo Sociedade Anônima) docemente (embora com a segurança de quem conhece o gênero) para o thriller poético, enquanto
a encenação de Reichenbach passa, depois
de extremos pornotropicais a um estilo mais
próximo do esboço. As mais belas cenas são
violentamente inventivas como, em particular,
na utilização astuciosa do carrinho de Cocteau
(leva-se o personagem até a câmera, e não o
contrário); associada a efeitos de profundidade
de campo, essa técnica permite a Reichenbach
inventar um espaço absolutamente inédito,
em que seus heróis (aqui, Fausto) deslocam-se como fantasmas; e em Falsa Loura, no
último segmento do filme, é Silmara quem se
desloca até a câmera, ou melhor, dentro da estrutura interna do filme, desloca-se como uma
fantasma até o olhar do garoto, antes de ir até
seu quarto, garoto que é uma pequena retroprojeção autobiográfica de burguês urbano em
confronto com seus fantasmas sob a forma de
prostitutas lascivas e de esposas masoquistas
que assombraram os personagem masculinos
de Reichenbach em muitos de seus filmes.
O grosso da crítica de cinema passou ao
largo dos assuntos, todos muito triviais, dos últimos filmes de Reichenbach. E o que se pode
ler sobre Falsa Loura ou Garotas do ABC,
positivamente (a fluidez da decupagem e da
montagem, excelência nos diálogos e da interpretação), ou negativamente (estilo televisivo,
moleza do enredo), era verdade ao mesmo que
passava ao largo do que importa. Além de todo
o componente erudito de sua formação (deixei
de citar Lang, Rocha, Ozu e muitos outros,
pois Reichenbach era um grande glutão, nunca
satisfeito em parar de cavar por novos cineastas), o que destoa de seus colegas é, por um
lado, sua tendência tecnicista. Reichenbach
simplesmente foi operador de câmera em todos
seus filmes, e chegou a assinar a fotografia de
mais um punhado trabalhando para amigos ou
na publicidade. Por outro, o recuo crítico: notadamente no diário japonês São Paulo Shimbun, ao lado de Jairo Ferreira, e onde conheceu
seus primeiros filmes japoneses. Todos esses
componentes fundam um cinema que o mínimo que se pode dizer é que não é simples.
É um segredo muito bem guardado: Carlos
Reichenbach terá sido um dos raros cineastas
contemporâneos para quem a mise en scène
é um absoluto, mas para quem o absoluto da
mise en scène é a sua supressão diante da realidade. Essa louca ambição de fazer triunfar a
arte através do apagamento do artista é uma
das mais preciosas heranças dos filmes B de
estúdio americanos e da nouvelle vague, que
a tomou dos grandes clássicos. Reichenbach
passou a maior parte de seu tempo, ao menos
desde Filme Demência, e talvez desde sempre,
a se afastar da história que contava para se
aproximar da realidade filmada. E quanto mais
Carlão fazia filmes, mais sua mise en scène se
sofisticava, e mais a realidade que ele descrevia se revelava rica, profunda e nova.
Assim, Falsa Loura é o seu filme mais experimental, e ao mesmo tempo o mais realista.
Ele me fez pensar em Lilian M. e Bens Confiscados. Nesses dois filmes não há nada que não
seja muito banal, e no entanto tudo se destaca
pelo cruzamento de duas pesquisas: aquela do
cineasta e aquela dos personagens, que nos
conduz a esta outra dimensão onde cada momento vale por si mesmo, e que nos perde ao
se encontrarem. São mundos em que o mais
ínfimo acidente perturba profundamente, isto
é, de forma secreta.
À parte quaisquer vigílias, não há sombra
de um explorado, a não ser emocionalmente,
em Falsa Loura. O filme é centrado em Rosanne Mulholland, a quem se vê evoluir de forma
muito lenta e doce, de acordo com seus encontros, seus humores, do avanço de sua vida. Não
é a história dos relacionamentos amorosos de
Silmara que deve ser seguida, mas a maneira
como muda quase que imperceptivelmente
uma pessoa que acreditava poder fazer triunfar seus princípios e cujos princípios, com o
passar do tempo, transformam-se. Em quê? O
que houve? Isto é o que você não viu em lugar
algum. Ou o que se vê estampado no último
plano de Falsa Loura, o rosto de Silmara caminhando contra o vento (que, através de uma
fusão, mistura-se com a cidade) entrando na
fábrica, voltando ao trabalho, num plano filmado exatamente do outro eixo do qual os irmãos Lumière filmaram, certa vez, a saída dos
trabalhadores de uma fábrica. No mundo de
hoje, apenas se volta ao trabalho, enfrentam-se
as lágrimas.
Observando o corpo de filmes, textos, entrevistas e ações, é possível notar que Carlos
Reichenbach foi um dos profetas do cinema,
ao estilo de seus heróis da nouvelle vague, do
cinema japonês ou do filme B americano, que,
de uma maneira ou de outra, anteviram o destino. A missão de Reichenbach era também essa,
mas à sua maneira: sarcástico, colorido, duro,
violento, um tipo de Fassbinder dos trópicos. A
nós, resta olhar.
homenagem
O filme de sexo é uma questão de abertura do diafragma
13
arquivo c
Encontro com o mestre
A
O cineasta
italiano
Michelangelo
Antonioni
14
Luiz Carlos Lacerda
ntonioni e seus emblemáticos filmes
marcaram toda a minha geração de
jovens cineastas iniciantes e politizados. Numa época (anos 1960) marcada
pela radicalização das ideias, o cinema era
classificado de maneira maniqueísta e dividido entre o ideologicamente revolucionário
e o “alienado”, pequeno burguês, mesmo
que os filmes ditos de vanguarda estivessem
sob as asas do mais conformista discurso
cinematográfico — contrariando a máxima
do poeta russo Wladmir Maiakóvski de que
“conteúdo revolucionário deve ter forma revolucionária”.
Pois Antonioni, então, deveria ser considerado um cineasta burguês, que se preocupava com os conflitos psicológicos das
classes dominantes, enquanto o povo — a
vanguarda da revolução — vivia os grandiosos e hegemônicos conflitos sociais (estes
sim, importantes e definitivos) aos quais os
artistas deveriam dedicar seus filmes.
Mas a grandeza do cinema desse arquiteto dos grandes espaços, esse meticuloso
investigador da alma humana, nos emocio-
nou a todos. Impossível passar incólume por
Jeanne Moreau, toda de preto, encostada
numa parede externa de um grande prédio,
tomando a tela em La Note, com sua angústia comovente e arrebatadora. Ninguém
tirava o foco da beleza e presença da deprimida Monica Vitti de O eclipse, ou da famosa sequência do jogo de tênis com uma
imaginária bola em Blow-up, já na época
da contracultura e das drogas, ou das imagens metafóricas da cena final de Zabriskie
Point, em que uma explosão de objetos de
consumo de todas as categorias e cores, em
câmera lenta, slow motion, vale mais do que
qualquer discurso contemporâneo contra a
sociedade de consumo ou a poluição do planeta — naqueles tempos restrito à minoria
ativista do movimento hippie.
Antonioni conquistou a alma irrequieta
e transgressora da minha geração com a sua
delicadeza e seu discurso sobre a incomunicabilidade humana — isso é o que se convencionou dizer de seus filmes.
Muitos anos se passaram, e no fim da
década de 1980 e início da década seguinte,
participando do Festival de Gramado que o
homenageava, ocorreu um encontro como-
Foto divulgação
vente e inesquecível entre nós. Estávamos
hospedados no mesmo hotel, mas ainda não
o tinha visto. Ao abrir a porta do elevador,
ele surge — já acometido pelo AVC que o
emudecera e limitara seus movimentos do
lado direito — e sai, ensaiando um passo
meio trôpego, de dentro do elevador. Diante
daquela figura conhecida, de cabeleira escassa, mas esvoaçante, os olhos arregalados
como um tigre sempre à espreita do mundo
que o cerca e que lhe causa uma permanente
perplexidade, o reverencio emocionado:
— Maestro!
Ele sorri, agradecido, e, querendo preservar a sua elegância comprometida pelo
derrame, balbucia para sua secretária e
acompanhante algumas palavras que talvez
somente eles compreendessem o seu significado. E ele se recusa a sair, não quer exibir-se dessa forma para alguém que o conhecia
e admirava, manifestado pelo entusiasmo do
meu cumprimento. Eu o compreendo e vejo
nos seus olhos uma espécie de agradecimento pelo meu gesto solidário e respeitoso —
fecho a porta do elevador e o sorriso traumatizado pela dor desaparece entre as grades
— como num filme de Antonioni.
N
foto divulgação
José Geraldo Couto
elson Pereira dos Santos concebeu
seus dois documentários sobre Tom
Jobim como um díptico, à maneira
dos que havia feito em torno do historiador e
ensaísta Sérgio Buarque de Holanda em 2003:
um seria sobre a vida e outro sobre a obra do
retratado.
Os dois filmes dedicados a Tom Jobim
foram realizados mais ou menos ao mesmo
tempo. O “biográfico”, A Luz de Tom, ficou
pronto antes, mas demorou mais para conseguir distribuidor e foi exibido publicamente
pela primeira vez só em junho deste ano, no
Florianópolis Audiovisual Mercosul (FAM),
depois que a outra metade, A Música Segundo
Tom Jobim, já tinha feito uma bela carreira
nos cinemas.
A desigualdade entre os dois é flagrante,
não apenas em termos de estrutura e linguagem, mas também de qualidade e relevância.
Vamos tentar entender por que uma das metades deu muito certo e a outra não.
Cada um dos dois documentários estabeleceu para si próprio algumas regras rígidas
de estrutura — um “dispositivo”, para usar
um termo difundido pelo grande documentarista Eduardo Coutinho. No caso de A Música
de Tom Jobim, codirigido pela neta do compositor, Dora Jobim, tratava-se de dispensar
qualquer locução, narração verbal ou texto
explicativo, deixando toda a narração ser
construída pela música em si: as composições
do autor executadas pelos mais variados intérpretes mundo afora. Permitiu-se, porém, a
introdução de filmes documentais e imagens
de arquivo, exibidas ocasionalmente entre as
canções ou “sob” elas.
A partir dessa moldura estrutural — ou antes, dentro dela —, o filme se desenvolve com
uma leveza notável, conduzido inteiramente
pela música de Tom Jobim. Vemos na tela as
pérolas de seu cancioneiro desfilando nas mais
diversas vozes, instrumentos e estilos, em cenários familiares ou exóticos, elegantes ou cafonas, austeros ou modernosos. Uma música
literalmente sem fronteiras.
Parece fácil. Afinal de contas, dirá o senso comum, alinhavar apresentações de gente
como Frank Sinatra, Elis Regina, Dizzy Gillespie, Ella Fitzgerald e Charles Aznavour,
executando canções maravilhosas de Tom, não
tem como dar errado. Não é bem assim.
Se é verdade que o material reunido representa metade do caminho andado, e que
uma colagem aleatória das várias apresentações provavelmente resultaria num conjunto
no mínimo agradável e interessante, há que se
perceber que o filme é muito mais do que isso
— é uma tentativa, a meu ver bem-sucedida,
de traduzir em sua própria estrutura a fluên-
c de crítica
Tom segundo Nelson:
um díptico quebrado
cia, a exuberância e o frescor da música de
Tom Jobim.
Para isso foi necessário um trabalho cuidadoso, inspirado e discreto de montagem, de
diálogo entre som e imagem, em que a concatenação entre as partes obedece ora a critérios
cronológicos, ora a parâmetros exclusivamente musicais, ora a sugestões vagamente
temáticas.
Às vezes encadeiam-se várias interpretações de uma mesma canção, em épocas e lugares diferentes, ignorando a cronologia. Tom
cantando “Desafinado” ao violão num programa de TV americano em 1964 é seguido por
Ella Fitzgerald interpretando a mesma música
em 1963 e por Sammy Davis Jr., que, como
escrevi em outro lugar, leva ao extremo o scating vocal esboçado por Ella e reduz o canto a
sílabas onomatopaicas.
O eixo, digamos, temático, ora assume o
primeiro plano — como quando os acordes da
“Sinfonia de Brasília” se sobrepõem a imagens
fixas da construção da cidade, a fotos de Juscelino e Niemeyer, e a manuscritos da composição, por Tom e Vinicius —, ora se reduz a
uma alusão mais discreta, como as imagens em
movimento de bondes lotados no Rio antigo,
exibidas sob “A Felicidade” na voz de Agostinho dos Santos.
Há momentos particularmente felizes da
relação entre som e imagem como meio de
produção de sentido e emoção. Ao final, por
exemplo, vemos o desfile da Mangueira em
que Tom Jobim foi o homenageado. Sobre
as imagens festivas do sambódromo, o que
ouvimos não é o samba-enredo, nem tampouco qualquer música alegre ou carnavalesca,
mas sim os graves e melancólicos acordes da
composição sinfônica “Saudade do Brasil”,
em que o maestro parece ter sintetizado seu
doloroso e nem sempre correspondido amor
por seu país.
Já em A Luz de Tom, o “dispositivo” é bem
outro. Aqui, o que se vetou foram as imagens
— fixas ou em movimento — de época. Tudo
se reduz a três longos depoimentos de três mulheres marcantes na vida de Tom Jobim: sua
irmã Helena e suas duas esposas, Thereza e
Ana Lontra. Cada uma delas fala em um local
específico: Helena em Florianópolis, com as
praias e lagoas da ilha “mimetizando” o Rio da
infância do irmão; Thereza na serra fluminense, onde o casal teve casa por muitos anos; Ana
no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, que o
Tom cada vez mais ecológico dos últimos anos
passava longas horas.
Não há intercalação ou mistura entre os Tom Jobim em
imagem de
depoimentos. Segue-se fielmente a cronolo- arquivo que está
gia: Helena fala da infância, Thereza da vida no documentário
adulta e Ana da meia-idade do compositor. A A Música
música de Tom pontua esses depoimentos de Segundo Tom
Jobim, de
modo geralmente pouco inspirado. Há um ou Nelson Pereira
outro momento divertido — sobretudo nas dos Santos
declarações de Thereza, a primeira mulher —
e uma ou outra informação relevante, como
a de que Tom queria mesmo era ser pianista e foi desencorajado pela professora, que o
aconselhou a compor.
O resultado, contrastando com a riqueza
e variedade de A Música Segundo Tom Jobim, é pouco menos que monótono. Cabeças falantes (ou melhor, andantes, pois elas
caminham quase o tempo todo) despejando
lembranças em meio a cenários naturais exuberantes. Pode ser que o sentimento de frustração e de anticlímax produzidos pelo filme
se deva ao fato de ter vindo depois da metade
musical. Se a ordem de exibição fosse invertida, talvez o efeito fosse outro. Agora não
dá mais para saber.
15
ensaio
Foto AP File Photo
O futuro demasiado humano
Ray Bradbury
tornou-se um mestre
da ficção científica
ao retratar as aventuras
e as desventuras
do homem onde quer
que ele vá, na Terra
ou nas estrelas
16
N
Dorva Rezende
uma decisão inesperada e intempestiva, a direção da Udesc, alguns anos
atrás, interrompeu ao meio o curso de
Filosofia e Cinema, aberto ao público, que a
professora de filosofia Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho (irmã da Brígida Miranda, atriz, diretora e professora de teatro
e uma das idealizadoras do projeto Cinema
Falado do Museu Victor Meirelles) ministrava no antigo prédio da Faed (hoje Museu da
Escola Catarinense), na Saldanha Marinho.
Mas, antes que o curso fosse abruptamente
encerrado, Maria Cecília conseguiu exibir
(e fazer um belo debate sobre) o clássico de
François Truffaut baseado no romance de Ray
Bradbury, Fahrenheit 451 (1953).
Na distopia de Bradbury filmada em 1966,
em inglês, por Truffaut (único registro do cineasta francês na língua do outro lado do Canal
da Mancha), os bombeiros não apagam incêndios, mas queimam livros, objetos considerados uma ameaça ao sistema vigente na sociedade de um futuro não muito distante imaginada
pelo escritor norte-americano. Fahrenheit 451
seria a temperatura ideal para a combustão dos
livros, e a vida do bombeiro Guy Montag (o
ator austríaco Oskar Werner, de Jules et Jim,
também de Truffaut) muda ao conhecer uma
vizinha de 17 anos, Clarisse McClellan (Julie
Christie), que questiona o seu trabalho.
Quando a garota desaparece, Montag
começa a recolher alguns dos livros que encontra nas casas de leitores denunciados aos
bombeiros e a lê-los escondido. Tornado um
rebele, decide fugir e encontrar outros leitores,
pessoas que se refugiam numa floresta e memorizam os livros para preservar a cultura e o
pensamento humanos. No livro de Bradbury,
Montag escolhe ser O Eclesiastes. No filme de
Truffaut, Tales of Mystery and Imagination, a
mais famosa coletânea na língua original dos
contos de Edgar Allan Poe.
ensaio
Sobre a versão de Truffaut, Bradbury
contou depois, no livro Zen e arte de escrever, que o cineasta francês quis, como muitos
leitores que lhe enviaram cartas protestando
pelo desaparecimento, saber o destino de Clarisse. No filme, ela reaparece na floresta junto
dos homens-livros. E, assim como Truffaut,
Bradbury resgatou a personagem do limbo na
adaptação para o teatro de Fahrenheit 451.
“Senti a necessidade de salvá-la, pois, afinal
de contas, em muitos sentidos, foi ela a responsável por Montag começar a se perguntar
sobre os livros e o que havia neles. Na minha peça, portanto, Clarisse surge para saudar
Montag e dar um final um pouco mais feliz ao
que era, basicamente, um material bem sinistro”, escreveu Bradbury.
Morto aos 91 anos, no dia 05 de junho
passado, Ray Douglas Bradbury, nascido
em Waukegan, Illinois, em 22 de agosto de
1920, foi um dos cinco maiores escritores de
ficção científica do século 20 (ao lado de Arthur C. Clarke, Isaac Asimov, Philip K. Dick
e Robert Silverberg), um esteta do gênero e o
artífice de uma escritura de feições barrocas,
cujo livro Crônicas Marcianas (1950) provocou os seguintes comentários de Jorge Luis
Borges, no prólogo à edição castelhana (Minotauro, 1955): “O que fez esse homem de
Illinois, pergunto-me, ao fechar as páginas do
seu livro, para que episódios de conquista de
outro planeta povoem-me de terror e solidão?
Como podem tocar-me essas fantasias, e de
modo tão íntimo?”
Bradbury era um homem do interior,
e sua Waukegan natal (a Green Town de diversos contos e novelas) sempre o acompanhou, mesmo que ele tenha passado a maior
parte de sua vida morando e trabalhando em
Hollywood. Seus objetos de interesse nunca
foram as máquinas, os foguetes, os inventos
que caracterizam a ficção científica. O que lhe
interessava como escritor eram as pessoas e as
suas reações, seus sentimentos, seus anseios,
no presente ou no futuro. Assim, quando John
Huston o convidou para adaptar Moby Dick,
de Herman Melville, um livro que ele nunca
teve a paciência de ler, e o fez passar seis meses na Irlanda para escrever o roteiro filmado
em 1956 (com Gregory Peck, como o capitão
Ahab, e Richard Basehart, o almirante Nelson
do seriado Viagem ao fundo do mar, como
Ishmael), Bradbury, que ganhou o Oscar de
melhor roteiro pelo trabalho, teve pesadelos
com a baleia branca enquanto tentava entender
a extrema pobreza dos irlandeses de meados
dos anos 1950.
A difícil relação com o mítico diretor de
O Tesouro de Sierra Madre (1948), O Homem
que Queria ser Rei (1975) e À Sombra do Vulcão (1984) rendeu um livro escrito quase 35
anos depois, Green Shadows, White Whale
(1992), e um conto, Banshee, adaptado para a
tevê com Peter O’Toole no papel de Huston.
“Enquanto eu lamentava a dureza do trabalho
e minha incapacidade, dia a dia, de me sentir
tão parecido a Herman Melville como eu desejava, minha interioridade se mantinha alerta,
farejava as profundezas, observava com rigor
e arquivava a Irlanda e sua gente até o dia em
que relaxei e me surpreenderam surgindo em
torrentes”, revelou Bradbury em Zen e a arte
de escrever.
Outros romances e contos de Bradbury foram adaptados para o cinema, o teatro e a tevê.
Algumas versões cinematográficas, a exemplo
de Fahrenheit 451, foram razoavelmente bem
sucedidas. Mas outras revelaram-se estrondosos fracassos. Um dos principais livros de contos de Bradbury, O Homem Ilustrado (1951),
foi filmado em 1969 por Jack Smight (diretor
do filme-catástrofe Aeroporto 1975), com Rod
Steiger e Claire Bloom nos papéis principais.
O roteiro de Howard B. Kreitsek costurou de
forma atabalhoada 03 dos 18 contos do livro
(“O estepe”, “A longa chuva” e “A última noite do mundo”), e a direção errática de Smight
acabou por trucidar o filme, devidamente execrado pela crítica. Uma nova adaptação de O
Homem Ilustrado foi encomendada pela Warner, em 2007, ao diretor Zack Snyder (de 300 e
Watchmen), ainda sem data de produção.
Melhor resultado teve outro grande livro de
Bradbury, Something Wicked This Way Comes
(título tirado da primeira cena do quarto ato de
Macbeth, de Shakespeare), traduzido no Brasil
como Algo Sinistro vem por Aí, pelo escritor
fluminense de ficção científica Jorge Luiz Calife. O filme, dirigido em 1983 por Jack Clayton,
teve o próprio Bradbury como roteirista e foi
estrelado por Jason Robards (Longa Jornada
Noite Adentro, Todos os Homens do Presidente, Julia, O Jornal e Magnólia) e Jonathan
Pryce (Brazil, o Filme e Evita). A história que
se passa na Green Town das memórias afetivas de Bradbury trata da chegada de um circo
de horrores numa pequena cidade americana
e de como dois garotos, com a ajuda do pai
de um deles, conseguem salvar seus vizinhos,
colegas, professores e amigos das crueldades
trazidas pelo parque de diversões diabólico.
Uma divertida história de Bradbury, The
Magic White Suit, publicada no Saturday Evening Post, em 1957, virou o filme The Wonderful Ice Cream Suit, em 1998 (O Terno Encantado, no Brasil). Com roteiro também do
próprio Bradbury, o filme conta as aventuras
de cinco amigos (Joe Mantegna, Esai Morales,
Edward James Olmos, Clifton Collins e Sid
Caesar) que juntam dinheiro para comprar um
terno branco na vitrina de uma loja do bairro.
Mas a roupa, com propriedades mágicas, muda
completamente suas vidas e rende cenas hilárias. Foi dirigido por Stuart Gordon, um fã de
H.P Lovecraft, que levou às telas Re-Animator
(1985) e From Beyond (1986), entre outros títulos do mestre do horror de Providence.
Uma das últimas adaptações de histórias
de Ray Bradbury foi A Sound of Thunder (O
Som do Trovão), de 2005, baseado no conto
homônimo escrito em 1952, dirigido por Peter
Hyams e estrelado por Edward Burns, Catherine McCormack e Ben Kingsley. Uma empresa
cria uma espécie de safári no tempo, onde pessoas podem caçar dinossauros que estão prestes a morrer de forma natural, mas, acidentalmente, um dos “turistas” do passado mata uma
borboleta pré-histórica que não deveria ser
morta, o que acaba por alterar todo o futuro,
em princípio de forma sutil, mas depois, com
as sucessivas ondas temporais, radicalmente. A
história de Bradbury também inspirou o filme
O Efeito Borboleta (2004), com Ashton Kutcher e Eric Stoltz.
Entre 1985 e 1992, o escritor adaptou 65
de seus contos para a tevê no The Ray Bradbury Theater, exibido na HBO e no The USA
Network. As Crônicas Marcianas também foram adaptadas para a tevê pela NBC em coprodução com a BBC, em 1980, em uma minissérie de três episódios estrelados por Rock
Hudson e Roddy McDowall.
Com a morte recente do escritor, novas
versões de suas histórias, sinistras ou não, devem vir por aí.
Ray Bradbury,
um dos mais
admirados
escritores de
ficção científica
17
resenha
Um homem com a máquina
de escrever na mão
A
18
Victor da Rosa
recente publicação dos textos críticos
de Rogério Sganzerla (Edifício Rogério, EdUFSC, 2010) deve sugerir
também a indicação de que o melhor crítico do
cineasta — e tento pensar nisso sem a menor
afetação — ainda parece ser o próprio cineasta. Nos textos que escreveu quando não tinha
vinte anos de idade ainda, publicados principalmente no suplemento literário do Estado
de S.Paulo, mas quase sempre sobre cinema,
Rogério realiza um duplo movimento. Por um
lado, acompanha com textos analíticos, quase
sempre escritos com certo fôlego, a produção
cinematográfica (brasileira e internacional)
em debate no final da década de 1960, além
de textos que poderíamos chamar de ensaios
teóricos; por outro, parece também construir
as bases — estéticas, éticas, digamos assim,
por falta de melhor nome — do que viria a ser
a sua trajetória como cineasta. É interessante
notar a maneira como esses textos do crítico
Rogério Sganzerla passam a ecoar nos seus
próprios filmes, através de suas temáticas,
mas também através de seus procedimentos,
deixando a impressão curiosa de que, afinal,
Sganzerla escrevia apenas sobre o cinema que
realizaria durante as três décadas seguintes.
É consenso afirmar que “Não foi só com
a câmera de filmar que Rogério Sganzerla fez
cinema”, como escreve José Geraldo Couto
na orelha do livro que reúne parte dos textos
críticos de Rogério — consenso que, aliás, é
insinuado pelo próprio cineasta, através de
algumas de suas entrevistas, e repetido por
uma série de críticos nos anos seguintes. Se o
consenso existe, parece que nenhum crítico se
dedicou a analisar com detalhes o modo como
é construído. Um dos traços mais evidentes
dessa operação, e nem poderia ser diferente,
está ligado às escolhas dos filmes que Rogério
analisava. Seu paideuma — ou seu edifício,
para usar a expressão que os organizadores de
seus textos críticos também usaram — vai de
Orson Welles a Jean-Luc Godard, passando
por Noel Rosa, João Gilberto e Jimi Hendrix,
“o artista mais importante deste século”, nas
palavras do próprio Rogério, com o exagero
que lhe era peculiar.
Em um texto que chama a atenção pela
precocidade, intitulado “A câmera cínica”, publicado em 1964 — Rogério estava com exatos dezoito anos na ocasião e era um estudante
desinteressado de Direito —, o crítico já intui,
através da evidência da imagem no cinema,
que a linguagem deve ser pensada pelo regime
da aparência, como “pura visibilidade”. O filme de Godard, principalmente Uma mulher é
uma mulher, na medida em que suprime qualquer noção adjetiva — no título, como se vê,
mas sobretudo na maneira de filmar —, torna-se o paradigma de Rogério para o desenvolvimento de sua ideia de câmera cínica. De outra
maneira, a câmera cínica será para ele algo
muito próximo daquilo que, mais de dez anos
depois será o neutro para Roland Barthes, ou
seja: “A câmera cínica é a câmera que deixou
de participar do movimento dramático, distanciou-se dele; olha-o indiferentemente, olha-o
apenas”; e ainda, talvez com maior precisão:
“A câmera realiza, então, um trabalho difícil: o
esvaziamento do heroísmo dos personagens.”
O que interessa do cinema de Godard
para Rogério Sganzerla são duas coisas, principalmente: a opacidade da imagem e o despojamento. É neste texto que aparece a primeira menção a um conceito que reaparece
em outros textos de Rogério: “o herói vazio”
— retomado às vezes como “herói fechado”
— que se refere à negação da psicologia, do
personagem que não se deixa conhecer, e que
tem como precursor e protótipo justamente o
Cidadão Kane, de Orson Welles. Em um tex-
to intitulado “Becos sem saída”, Rogério diz:
“O filme não se dispõe a ‘explicar’ ou definir
o interior do personagem, seja através da psicologia, psicanálise, intimismo, etc. (...) o ser é
impenetrável.” Existe uma cena do clássico de
Welles que será uma das obsessões de Rogério,
comentada em alguns de seus textos críticos e
recuperada mesmo em alguns de seus filmes,
que é a cena da morte de Kane: “O precursor
e também protótipo do herói fechado é, provavelmente, Cidadão Kane, que pronuncia
no leito de morte uma palavra desconhecida
e inexplicável (“Rosebud”). Um repórter, incumbido de descobrir o seu significado, entrevista os contemporâneos de Kane, mas nem
estes personagens conseguem defini-lo (...).”
Entre Welles e Godard, tanto em suas análises de Cidadão Kane e Viver a Vida quanto
na formulação de conceitos como “herói fechado” e “cinema impuro”, Rogério Sganzerla
parece querer dar um passo adiante às noções
mais tradicionais de representação. Em um dos
dois textos que escreveu sobre o filme de Godard, o crítico brasileiro valoriza o tratamento
“despojado e econômico” como forma “para
alcançar a absoluta ausência de sentido dos seres e objetos”, pois dessa maneira “a câmera
não se preocupa em descrever a verdade dos
locais, dos bares e ruas parisienses, como em
Acossado”, filme anterior de Godard. Em outras palavras, Rogério trata de um cinema que,
opaco, se situa no limite da representação, solicitando outras operações de leitura que se coloquem, elas também, além da hermenêutica.
Se a “câmera cínica” não oferece o sentido, ou
a verdade dos objetos, mas apenas seu regime
de aparência, então a leitura alegórica, na medida em que prevê que o objeto está sempre em
relação a outro discurso, não estaria destinada
ao fracasso? Rogério responde à sua maneira:
“Também não se pode transformar os objetos
em símbolos ou metáforas, o que é típico do
resenha
expressionismo e dos filmes de até poucos
anos atrás.” Não será o cinema de Rogério
Sganzerla também um cinema sem metáforas?
Os textos de Sganzerla, de certa maneira,
são desdobramentos de um mesmo embate que
pode afinal ter vários nomes: opacidade versus transparência, manifestação versus essência, corpo versus alma, circularidade versus
progressão, segredo versus esclarecimento,
Acossado versus Viver a Vida, O Bandido da
Luz Vermelha versus Vidas Secas, enfim. No
entanto, o que parece ainda mais interessante
são as maneiras como Rogério retorna a determinados temas e procedimentos, fazendo de
sua forma de escrever uma máquina absolutamente paranoica, mas também inserindo na
experiência crítica um caráter provisório. Ou
seja, não apenas o que diz, mas o modo como
se propõe a dizer.
O crítico Samuel Paiva, na apresentação
que faz dos textos de Sganzerla, não deixa de
perceber justamente esta dinâmica revisionista — que prefiro chamar de arqueológica, já
que não está em jogo exatamente uma correção, mas uma sobreposição de camadas — na
maneira como Rogério opera inclusive com
suas próprias matrizes. Ou seja, retornar aos
mesmos lugares de partida “se constitui como
recurso para se colocar em xeque tanto o ato
de criar quanto o próprio produto da criação,
numa poética de re(des)construção (...)”. Será
esta também, a meu ver, a lição de seu cinema:
o retorno incessante como maneira de rasura;
o cinema não como produto fechado, portanto, mas como processo, experiência. Retornar,
a rigor, é reconhecer que a peça anterior está
inacabada, como um puzzle que falta uma
peça, imagem recorrente nos textos críticos
de Rogério; é reconhecer então que o destino
de uma peça de arte é o fracasso. “Eu sei que
fracassei”, diz o bandido já em uma de suas
primeiras falas.
Basta pensar, por outro lado, como lembra
o mesmo Samuel Paiva, que Rogério realizou
nada menos do que quatro filmes, em um intervalo de quase vinte anos, em torno do filme
não realizado de Orson Welles, a saber: Nem
tudo é verdade, de 1986, Linguagem de Orson
Welles, de 1991, Tudo é Brasil, de 1997, e finalmente O signo do caos, de 2003, seu último
longa — isso sem falar de Documentário, primeiro curta de Sganzerla, em que a referência
ao cineasta norte-americano já aparece em um
cartaz de cinema; e também no livro do qual
Rogério Sganzerla foi organizador: O pensamento vivo de Orson Welles, também de 1986.
Com Noel Rosa acontece praticamente o mes-
mo, com menos regularidade: Sganzerla realizou Noel por Noel, um misto de documentário
e ficção, em 1980, e retornou ao compositor
brasileiro em Isto é Noel Rosa, um curta, dez
anos depois. Tal dinâmica, além de aparecer
nos filmes e nos textos críticos — o conceito
de câmera cínica retorna dez anos depois como
câmera clínica — aparece traduzida também
dos filmes em relação aos próprios textos. Ou
seja, não há hierarquia aqui, mas sobreposições entre peças soltas. Se ao ler os textos de
Rogério temos a impressão de que o crítico
escreve sobre os filmes que realizaria anos depois, como já foi dito, também o contrário é
verdadeiro, naturalmente — seus filmes revivem um processo crítico.
Não há, entretanto, nesses retornos, o objetivo de esclarecimento, de definição de uma
verdade que até então não havia sido percebida, por exemplo, ou mesmo a ideia de que é
viável corrigir um erro anterior, e sim a noção
de que o maior movimento que se pode fazer
diante de um objeto é circular por ele, jamais
penetrá-lo. Por isso talvez suas peças devam
ser tomadas como inacabadas: para que seja
necessário dar uma segunda volta ao redor do
parafuso. Daí vem a grande diferença em relação à maneira como Ismail Xavier entende
o cinema de Sganzerla em seu ensaio clássico, Alegorias do Subdesenvolvimento; a saber,
um cinema onde “não se elimina o impulso
de montar uma representação capaz de figurar
uma totalidade”. Isso, afinal, para mim, é o
mais importante: na obra de Rogério, a ênfase
está sempre no procedimento mesmo do retorno, no jogo da apropriação e da rasura, como
se aí o cineasta delineasse para si uma espécie
de procedimento cover.
Como proposta de leitura dos filmes de
Rogério Sganzerla, o cover interessa na medida em que explicita que a representação é uma
moeda falsa. Ou seja, no cover, diferente do
que ocorre na alegoria e na metáfora, a linguagem não quer se comportar como imagem de
outra realidade, e sim como autoconsumação,
por um lado, e processo parasitário, por outro.
Dessa maneira, até mesmo a expressão “terceiro mundo” pode ser lida de outra maneira
— como um mundo que, sendo de terceira categoria, só pode ser um mundo falsificado, um
mundo cover, e não somente subdesenvolvido.
Enfim, o procedimento cover parece nos dizer,
em outras palavras, ou talvez em sentido mais
radical, aquilo que Rogério diz sobre a câmera
cínica: ao mesmo tempo a busca pelo concreto
e pela displicência, a aparência pura e o mau
gosto, enfim, o esvaziamento pelo chavão.
foto divulgação
19
cinema latino-americano
foto divulgação
Cena da
filmagem de
O banheiro do
Papa (2007)
Depois de renascer
Recepção e cinema
uruguaio contemporâneo
GErmán silveira
(texto traduzido por Fausto Correa Júnior)
O
20
cinema uruguaio sempre foi um cinema de autor. Mais pela ausência de
uma indústria cinematográfica — que
até hoje não pôde se desenvolver totalmente,
apesar de certa infraestrutura, uma produção
em aumento e algumas obras de qualidade
— do que pela filiação dos cineastas àquela política impulsionada pelos Cahiers du
Cinéma nos anos 1960. Desde os primeiros
intentos nos anos de 1920, no Uruguai, cada
filme se fazia no peito, sendo um empenho
solitário levado adiante por apaixonados sem
nenhum apoio estatal ou empresarial. Na falta de todos esses elementos que permitiriam
uma continuidade na produção nacional, cada
novo filme se convertia, então, no primeiro, e,
pela força dos impulsos individuais, o cinema
uruguaio renascia seguidamente. Cada estreia
significava para o espectador a possibilidade
de ir ver um novo esforço de (re)fundação da
cinematografia nacional.
Foi assim até meados dos anos 1990, com
a estreia do último “primeiro” filme uruguaio,
El Dirigilbe (1994), do diretor Pablo Dotta
(1960). Tão polêmica foi a estreia que finalmente acabou a discussão de qual havia sido
o primeiro filme (uruguaio), para começar a
falar do filme em si, para voltar (ou começar)
a falar de cinema. Acreditamos que essa tenha
sido a grande colaboração de El Dirigible para
o cinema nacional do ponto de vista da recepção. “Eu entendi El Dirigible”, apregoava uma
memorável pichação em um muro da cidade,
fazendo alusões às carências da linha narrativa do filme, e que de alguma maneira resumia
estupendamente o debate público, inesperado
para o cinema uruguaio e muito bem-vindo para
as bilheterias, que foi criado por esse filme. El
Dirigible significou uma ruptura nesse sentido.
Por outro lado, insistia com a eterna busca da
identidade uruguaia que, a essa altura, o cinema
praticamente tinha o dever de devolver ao público, quase obrigado pela imposição de certos
autoritarismos críticos de longa data.
A reação do público foi bastante contraditória com o filme, ainda que, de um modo ou
de outro, o tema da identificação com as locações, com uma forma de ver, com essa identidade reclamada, esteja sempre presente nos
depoimentos dos espectadores colhidos pelo
semanário Búsqueda na saída do cinema.
“Nem gostei, nem desgostei. Um filme
meio louco. Mas que me emocionou em alguns
momentos quando via lugares por onde eu ia
ou passava, cenários nossos. A atuação não está
mal. E, bem, é a primeira coisa nossa. O que
mais me emocionou foi me sentir um pouco
personificada ao ver os cenários, modos e coisas
que nós somos. Um começo louco, mas digno”,
opinava Matilde (45 anos) na saída do cinema.
Graciela (45 anos), por sua vez, mostrava uma
grande simpatia pelo que tinha visto: “Gostei
muito. Pareceu muito aparentada com Subiela
[Eliseo Subiela, diretor de cinema argentino],
pois tem algo de muito nostálgico, triste. Com
grande imaginação.” Sonia (24 anos) expressava certa inquietude: “Não entendi, não entendi”;
enquanto Maria José (36 anos) confessava: “Teria gostado se tivesse gostado.”
El dirigible deve se situar em um contexto
histórico e político particular: “Existe nessa história uma cidade desolada, que é Montevidéu,
e que foi magnificamente captada. As cabines
telefônicas expostas a um vento incessante, um
obscuro e sujo salão nas entranhas do Palácio
Salvo depois de uma noite de baile, o Parque
Rodó vazio, um Volkswagen branco com um
Tintim pendurado no espelho retrovisor, a Faculdade de Veterinária e sua inquietante coleção de cachorros mortos, um céu portuário sob
o qual um grupo de coreanos jogam cartas”,
relata a coluna do crítico Eduardo Alvariza. É a
Montevidéu (o Uruguai) do cinema pós-ditadura. Diferentemente do que havia acontecido no
Brasil, por exemplo, com a Embrafilme, a ditadura uruguaia acabou com qualquer incentivo à
produção cinematográfica e, no nível cultural,
fez com que as pessoas se esquecessem de falar
de cinema uruguaio. O cinema uruguaio não
existiu durante mais de 20 anos. Até que Pablo
Dotta se animou a dizer alguma coisa. Um pouco como uma anedota, El Dirigible integrou a
Semana Internacional da Crítica do Festival de
Cannes, que aconteceu entre 13 e 21 de maio
de 1994. O filme foi, uma vez mais, apresentado como “fundador” pelo dossiê de imprensa:
“El Dirigible, an uruguayan film. Have you
ever seen one? [O dirigível, um filme uruguaio,
você já viu algum?].”
tem muito a dizer sobre a penúria do cinema”.
A partir de então, o trio de cineastas formado
por Juan Pablo Rebella, Pablo Stoll e Fernando
Epstein funda sua própria produtora (Control
Z) e poucos anos depois se consagra definitivamente com Whisky (2004), uma obra maior.
Ao tratar do cinema uruguaio, não podemos deixar de considerar, em parte devido à
pobreza de recursos já mencionada, a importância do gênero documental na história cinematográfica do país. Ao mesmo tempo, abordar de modo significativo esse gênero significa
falar de Mario Handler (1935), o que nos leva
outra vez a uma submersão na ideia de um
cinema de autor, e, nesse caso, de um autor
muito particular, porque Handler sempre teve
a virtude da polêmica. Com Aparte (2002), um
documentário sobre a marginalização, além de
suscitar um grande debate que alcançou as esferas políticas, gerou (por consequência) uma
boa resposta do público. Durante a segunda
semana de exibição, em junho de 2003, essa
“não-ficção” (assim prefere chamá-lo Handler)
superava os espectadores de Matrix reloaded e
Procurando Nemo, e em sua quarta semana em
cartaz levava já mais de 30.000 espectadores
aos cinemas.
Para realizar esse filme, o diretor filmou
durante 18 meses um grupo de jovens do mundo da favela (cantegril), compartilhando algumas câmeras entre os protagonistas, para que
captassem suas próprias imagens. Assim conseguiu fazer as câmeras entrarem em Colonia
Berro, a prisão onde se internam os menores
infratores, e captou cenas dos internos fazendo cortes em seus próprios braços. Para Mario
Handler, um dos mais criativos representantes
do cinema militante latino-americano dos anos
1960, integrante do grupo dos jovens cineastas
da Cinemateca del Tercer Mundo, primeiro se
trata de “filmar e depois filosofar”. Respondendo às acusações de caráter ético de que foi acusado por supostas condutas ilícitas, como a de
comprar drogas para os protagonistas, o cineasta responderia sem deixar seu lugar de criador:
“Jamais comprei drogas, jamais produzi situações irreais, nem os incitei a cometer delitos.
Sou diretor de cinema, o que quer dizer um
artista. Mas, para além disso, me comprometo
solidariamente com o ser humano, por ele fiz
um filme que pretende ser arte e humanidade.”
Outro filme que acreditamos ter se tornado uma referência em matéria de público e de
qualidade artística na história recente do cinema nacional é O banheiro do Papa (2007),
codirigido por Enrique Fernández e César
Charlone, este último conhecido no Brasil por
realizar a fotografia de Cidade de Deus (2002).
O banheiro do Papa é uma história baseada em um fato real. Em 1998, o Papa João
Paulo II visitou o Uruguai, e um dos destinos
previstos foi a pequena e fronteiriça cidade
de Melo. Entre os habitantes começa a gerar
uma grande expectativa, porque alguns cálculos previam que 50.000 pessoas concorreriam
para ver o Papa, não apenas uruguaios, mas
também de excursões provenientes do Brasil.
Para a população mais pobre, vender comida
e bebida seria suficiente para ganhar dinheiro,
mas para Beto, um contrabandista de botijões
de gás brasileiro, que cruza semanalmente a
fronteira de bicicleta com esses botijões de
13kg, lhe ocorreu uma ideia um pouco mais
original: construir um banheiro no jardim de
sua casa, e cobrar por seu uso para os fiéis que
ali chegariam. Por fim o Santo Padre não convocou mais do que 8.000 pessoas, e os negócios previstos serão um fracasso, arruinando
ainda mais os pobres do lugar.
Um dos grandes méritos do filme foi o de
ter trabalhado com habitantes de Melo como
atores. Os poucos atores profissionais, por sua
vez, souberam captar a essência da idiossincrasia fronteiriça, o que evitou defasagens entre
atores e amadores. Christian Duurvoort, que
havia trabalhado no Brasil com Charlone, teve
aqui um papel muito importante como acting
coach daqueles atores não profissionais que
deram um toque de realismo, honestidade e
credibilidade à história. O banheiro do Papa
foi o segundo filme uruguaio mais visto na história, atrás de En la puta vida (2001), de Beatriz Flores Silva, filme sem grandes acertos artísticos, mas com a sustentação de um grande
aparato publicitário.
Ao eleger apenas quatro filmes para representar um resumo do panorama do cinema
contemporâneo uruguaio, evidentemente deixamos de fora um número importante de produções que nos últimos anos alcançaram bons
níveis de qualidade e reconhecimento internacional. No entanto, a escolha desses quatro é
significativa da evolução que tem experimentado a produção cinematográfica do país.
Em matéria de números, por outro lado,
segundo os dados do ICAU (Instituto de Cinema e Audiovisual do Uruguai, criado em
2008), atualmente estreiam uma média de 10
filmes uruguaios por ano nas salas de cinema,
enquanto são 1,5 milhões de espectadores que
assistem anualmente à produção nacional de
cinema. O audiovisual gera ainda 4.000 postos
diretos de trabalho no país. Os números não
trazem muita informação, é verdade, sobre a
qualidade artística, mas são um bom indício
para perceber que o cinema uruguaio começa
a solidificar-se, não apenas na produção, mas
também na atração do público. Finalmente, si
Dios quiere — como se diz popularmente, em
um país com grandes carências econômicas e
falta de recursos (também para o cinema) —,
começa a se consolidar ao menos uma infraestrutura sólida para o fomento da produção.
Porque, como diz sua esposa a Beto, protagonista de O banheiro do Papa: “Se Deus não
ajuda os pobres, a quem vai ajudar?.”
cinema latino-americano
Alguns anos mais tarde, o cinema uruguaio iria encontrar definitivamente um caminho próprio e original graças a uma dupla de
jovens diretores que mudaram radicalmente
a forma de fazer e, portanto, de ver cinema
no Uruguai. Com 25 watts (2001), Juan Pablo Rebella (1974-2006) e Pablo Stoll (1974)
romperam com muitos esquemas, desprezando recomendações de críticos qualificados a
propósito do roteiro, e propondo uma história
simples, contada com muito humor, em branco e preto. É um filme onde “nada acontece”,
que conta a história de três amigos “nessa idade em que voltávamos para casa sem termos
conseguido dar uns amassos na mocinha que
gostávamos, sem termos nos embebedado o
bastante”, como contam os próprios roteiristas e diretores. Desse modo, com simplicidade, honestidade, e quase sem querer, Rebella
e Stoll foram os responsáveis por refundar o
cinema nacional.
Uma vez terminado, 25 watts passou a
rodar em festivais internacionais e obteve
inesperadamente o prêmio de melhor filme, e
um prêmio especial do júri jovem do Festival de Rotterdam. Logo ganharia o prêmio da
crítica do Festival de Cinema Independente
de Buenos Aires, além do prêmio de melhor
ator para os três protagonistas (Daniel Hendler, Alfonso Tort, Jorge Temponi). Depois
dessa cascata de prêmios, o filme estreou no
Uruguai, onde não havia sido fácil conseguir
distribuição e exibição: “De início, ninguém
nos dava muita bola. Quando souberam que
iríamos para Rotterdam, mostraram-se um
pouquinho interessados, e quando ganhamos
o prêmio estavam muito interessados. Passamos da situação em que não respondiam aos
telefonemas de nosso produtor Fernando Epstein, a uma cena em que nem bem voltamos
da Europa e estavam já nos esperando”, contam com humor Rebella e Stoll.
Tão pouco tinha sido fácil para esses jovens cupinchas da universidade conseguir fundos para financiar a produção de 25 watts, o
primeiro filme de ambos. O projeto havia sido
recusado pelo FONA (Fundo Nacional de Audiovisual, criado em 1994), devido à linguagem utilizada por seus atores. O júri, presidido por Homero Alsina Thevenet (1922-2006,
periodista e escritor, considerado um mestre
da crítica cinematográfica no Uruguai e na Argentina), entendia que “o excesso de palavrões
que abundam nos diálogos podem dificultar
sua difusão televisiva”. No entanto, obtiveram
do Fundo Capital da Prefeitura de Montevidéu
um aporte de quinze mil dólares, facilitando o
início da produção.
Uma vez estreada em solo uruguaio, a
crítica nacional, apesar da pífia recepção que
tinha mostrado quando o filme se encontrava
em fraldas, se somará ao coro de vozes favoráveis provenientes das mais diversas partes
do mundo (França, Holanda, México). Dessa
maneira, 25 watts era apresentado por parte da
imprensa uruguaia como “o filme que triunfou em Rotterdam” ou como “o melhor filme
uruguaio visto nas telas desde muito tempo”,
pois “mais do que sobre Montevidéu, Uruguai,
a juventude atual e seus problemas, 25 watts
21
LÁ DO CÊ
foto divulgação
Mostra de Cinema Infantil
de Florianópolis
A Mostra de Cinema Infantil de
Florianópolis participa de discussões
sobre o tema em diversos fóruns e debates
pelo país e pelo mundo. Na edição de
numero 11, realizada em julho, promoveu
o oitavo Encontro Nacional de Cinema
para a Infância, e, sob o tema Desafios
Criativos: Distribuição e Conteúdo,
reuniu Ana Paula Santana, secretária do
Audiovisual, realizadores e distribuidores
que acordaram, entre outros tópicos, com
a criação de uma linha de crédito especial
para financiamento de filmes infantis.
foto divulgação
Plano Nacional de Cultura em Santa Catarina
Em setembro, o Senado aprovou o Plano Estadual de Cultura (PEC), que acrescenta ao
artigo 216 da Constituição a criação do Sistema Nacional de Cultura (SNC), o qual assegura
a transparência e o controle social do setor cultural e objetiva a integração das três esferas de
política cultural, incluindo administrações municipais, estaduais e o governo federal.
De julho a setembro, a Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte de Santa Catarina, o Conselho Estadual de Cultura e a Fundação Catarinense de Cultura promoveram o
Fórum de Planejamento Regional de Cultura, em 10 cidades catarinenses (Itajaí, Blumenau,
São Miguel do Oeste, Chapecó, Joinville, Florianópolis, Joaçaba, Lages, Tubarão e Araranguá), que representam estrategicamente as macrorregiões definidas pela atividade turística do
estado. Reuniram-se artistas, produtores culturais e representantes do governo para discutir
diretrizes e ações, iniciar o processo de construção do Plano Estadual de Cultura para os
próximos 10 anos, e atender, assim, uma das propostas do SNC. Os representantes da cultura, que compareceram em tímida quantidade na maioria dos fóruns regionais, elaboraram
propostas que foram validadas em plenária e sucederam em matrizes situacionais de cultura.
Comissões Regionais de Cultura foram formadas e são agora responsáveis por promover reuniões de debate e consulta à população sobre o Plano Estadual de Cultura. Os relatórios finais
serão apresentadas no Fórum Estadual de Cultura, programado para novembro deste ano.
Durante os encontros, representantes do poder público adiantaram que, por determinação do governador, não existe qualquer interesse em separar as pastas da secretaria mista
para criar uma secretaria única de cultura — principal reivindicação dos fóruns e uma das
propostas do SNC. Além disso, o secretário das três pastas em atividade, Celso Calcagnotto,
anunciou recentemente corte de R$ 70 milhões na receita da secretaria e afirmou que recursos somente serão liberados para projetos considerados prioritários para o governo, como as
Festas de Outubro.
Um Plano Estadual de Cultura que determine diretrizes de atuação do estado a partir de
políticas publicas estratégicas, levando em consideração as expectativas das diferentes áreas
da cultura e as demandas e potencialidades regionais, é urgente para fortalecer o setor, de fundamental importância para o desenvolvimento de Santa Catarina, e coibir as hoje aplicadas
políticas públicas de captação de recursos públicos para financiamento de campanha eleitoral, políticas públicas de visibilidade das ações do governo, políticas públicas de interesses
decorrentes de acordos partidários, políticas públicas para a proliferação da cultura de massa
que só fazem embebedar de ignorância a população.
CASOS DE
FINANCIAMENTO COLETIVO
Cena do filma La vida útil, de Federico Veiroj (Uruguai)
Cine Pitangueira
O Cine Pitangueira, uma
realização da Cinemateca
Catarinense ABD/SC, vem desde
julho dedicando sua programação
à exibição de filmes latinos não
comerciais. Passaram pelas telas
do cineclube ciclos argentinos,
uruguaios, cubanos e brasileiros.
O interesse pelo cinema latino partiu
do público que, todas as terças-feiras,
comparece à Casa das Máquinas, na
Lagoa da Conceição, para as sessões.
Na programação, destaque para os longasmetragens O pântano, de Lucrecia Martel
(Argentina) e La vida útil, de Federico
Veiroj (Uruguai). O próximo e último
ciclo será composto por filmes chilenos.
22
Os produtores do longa-metragem independente Raízes Subterrâneas, de Rafael Schlichting, inscreveram o filme em um site de financiamento coletivo com o intuito de arrecadar recursos para a finalização
de som e imagem. Em troca das contribuições em forma de cotas — R$ 20,00 a
R$ 5.500,00 —, ofereceram recompensas que iam desde links para download do filme
até bolsas de curso livre de cinema digital. Ao sexagésimo dia no ar, limite final para a
arrecadação, as contribuições atingiram R$ 1.805,00 e, por não terem alcançado os R$ 10 mil
solicitados, foram restituídas aos doadores.
Recentemente, dois projetos da área da música de Florianópolis inscreveram, no mesmo site, suas
propostas de arrecadações e recompensas para financiar a gravação de CDs. Solicitaram, cada um deles,
R$ 12 mil e R$ 13.500,00. Arrecadaram, respectivamente, R$ 12.820,00 e R$ 15.070,00. Os CDs, trabalhos de estreia dos dois projetos, já foram gravados.
Os casos fazem pensar como o cinema ainda é uma arte distante do público da cidade. Seu longo, metodológico e custoso processo de realização é, de certa maneira, desconhecido do grande público, e carrega
uma caracterização glamourosa que não permite que propensos espectadores interajam e contribuam com
o processo de produção. O trabalho de roteiristas, diretores e demais membros das equipes técnicas e de
criação se faz silencioso, e autores dificilmente ganham a empatia do público. Não existe um envolvimento, uma identificação com a figura desses artistas, como mais comumente acontece com músicos.
É indiscutível que na música, mais do que no cinema, se possa ter uma prova prévia de confiança na qualidade do produto final de um artista, e que a relação entre autor e público se estabeleça de forma muito mais fluida, de trocas mais palpáveis. Mas também é indiscutível
que, em qualquer setor, artistas necessitem de oportunidades para expandir e espalhar
sua arte, seja por meio de músicas gravadas ou filmes finalizados. O caminho
a ser traçado na busca do reconhecimento e da compreensão da arte de
fazer cinema é o fomento à produção. E o público, tendo acesso
a obras cinematográficas, terá despertado o desejo de
contribuir com a realização delas.
LÁ DO CÊ
MVM e
Fundação
Badesc
foto divulgação
Duas instituições,
não focadas ao tema,
respondem hoje como
difusoras do cinema de
qualidade em Florianópolis e, assim como
propõem os cineclubes,
formaram seu público.
A Fundação Badesc
tem agenda semanal
fixa com exibições
diárias de cinema. Parcerias com instituições
de ensino, cineclubes,
curadores e convidados possibilitam programas de exibição
de propostas variadas,
sempre com o convite
à reflexão após as sessões. O Museu Victor
Meirelles, além de seu cineclube quinzenal, promove palestras, mostras,
ciclos e exibições pontuais, também comentadas, e, em setembro, admiravelmente, realizou o Loop Godard com 10 horas seguidas de projeção de
filmes do cineasta. Vale registrar que, além da programação de cinema, as
instituições promovem regularmente exposições e concursos de arte, lançamentos de livros e filmes, discussões e palestras, workshops e oficinas.
Quando do fechamento do CIC para reforma, a população ficou desamparada. Com a reabertura, órfã definitiva. O MVM e a Fundação Badesc
acolheram-na. Consulte os sites www.museuvictormeirelles.gov.br e www.
fundacaoculturalbadesc.com para informações sobre programação e atividades, sempre gratuitas.
Semana de Cinema da UFSC
A Semana de Cinema da UFSC, desde 2007, promove concorridas atividades gratuitas como oficinas,
palestras e exibições. O cinema de Horror Fantástico
foi o tema da edição 2012, que contou com convidados
vindos de várias partes do país, considerados referência na realização e no pensar do gênero. É uma pena a
Universidade Federal de Santa Catarina pouco apoiar
o evento, que este ano teve data adiada, pois o espaço
a ele reservado havia sido cedido a outra atividade.
Edital Catarinense de Cinema
A Fundação Catarinense de Cultura anunciou no
dia 24 de setembro os projetos premiados no Edital
Catarinense de Cinema 2011-2012. Foram 30 selecionados em 4 categorias, incluindo pesquisa e desenvolvimento de roteiro, realização de curtas e um
longa-metragem, totalizando R$ 3 milhões (R$ 1,9
milhão a mais do que a edição anterior). Porém, o
que ninguém anuncia é que um incremento de quase
60% não reflete maiores investimentos na produção
audiovisual do estado já que, ano após ano, o governo lança a premiação como bienal mesmo que, por
lei, e em seu orçamento, conste recursos anuais para
a realização do prêmio.
foto daniel guilhamet
23 anos de Funcine
Em setembro de 1989, por meio de acordos de cooperação entre a sociedade civil
(representada pela Cinemateca Catarinense ABD/SC), a Prefeitura Municipal de Florianópolis e a Universidade Federal de Santa Catarina, nasceu o Fundo Municipal de Cinema de
Florianópolis com o objetivo de incentivar programas e projetos de natureza audiovisual no
município. O Funcine é hoje um dos principais fomentadores da atividade cinematográfica
no estado. Premia, atualmente, em seu edital anual, 8 projetos de curta-metragem num valor total de R$ 250 mil, apoia financeiramente cineclubes, publicações, mostras e festivais,
promove oficinas de formação audiovisual e disponibiliza, gratuitamente e sob disputada
reserva, equipamentos, claro, já bastante manipulados, de projeção e captação de imagem
e som. Possui, inclusive, uma câmera de 16mm e seu conjunto de acessórios e lentes em
perfeito estado. Porém, existem algumas pedras no caminho: o fundo trava embates regulares com a prefeitura por conta de anúncios de corte em seu tíbio orçamento de um pouco
mais R$ 400 mil, e luta, anualmente, para a manutenção dele. Não tem sede própria — duas
pequenas salas emprestadas pela Fundação Franklin Cascaes, nos porões do Forte Santa
Bárbara, abrigam sua secretaria, documentos e acervo. Uma terceira, já localizada num alto
nível do forte, abriga os equipamentos. E ainda corre o risco de ficar sem teto caso a Fundação Franklin Cascaes tenha que desocupar o Forte em favor da Marinha, proprietária do
castelo de janela cor de vinho de Santa Bárbara e que vem reivindicando sua propriedade.
Felizmente os pequenos percalços não ofuscam a luz do Funcine de Florianópolis, e a
trajetória de 23 anos teve comemoração à altura de sua relevância na romântica Escadaria
da rua Pedro Soares, onde lançou e exibiu 5 curtas-metragens, realizados com recursos
do Prêmio Funcine de Produção Audiovisual Armando Carreirão. A pequena mostra de 3
ficções e 2 documentários reflete o caráter democrático do prêmio, que incentiva em seu
moderno e simplificado edital o experimento cinematográfico. A diversidade dos olhares,
abordagens, técnicas e estéticas entre os filmes exibidos e a diversidade do perfil de seus
realizadores são exemplo disso. O público, heterogêneo e curioso, disputou cadeiras para
assistir aos filmes e também é prova da democratização da cultura promovida pelo Funcine,
raro modelo fomentador a ser seguido por outros municípios do país.
Nelson Pereira dos Santos foi homenageado no 16.o FAM
FAM
O FAM 2012, entre uma exibição e outra de 70
filmes, homenageou Nelson Pereira dos Santos e lançou nacionalmente seu filme A Luz do Tom. Convidou
Cláudio Assis, recebeu Manoel Rangel — que anunciou incremento de R$ 400 milhões no Fundo Setorial
do Audiovisual —, sediou o lançamento do Edital de
Cooperação Brasil-Argentina no valor de US$ 800
mil e premiou 19 categorias em 4 mostras competitivas de curta-metragem. Na mostra principal, o prêmio
de Melhor Filme foi para Quando Morremos a Noite
(Eduardo Morotó, RJ).
Celulares — Contraponto
A produtora Contraponto foi contemplada no Edital de apoio à produção de obras cinematográficas de
ficção de baixo orçamento, do MinC. O projeto Celulares tem roteiro e direção de Jeferson De, premiado
cineasta paulista, autor do manifesto Dogma Feijoada
e dos filmes Carolina e Bróder. A premiação no edital,
que tem foco regional e seleciona projetos por cotas
geográficas, vai possibilitar um ótimo intercâmbio à
produção e aos profissionais.
23
caderno de produção
24
Charge de Chico Caprário

Documentos relacionados