Podemos obervar que em seus prelúdios notados em semibreves
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Podemos obervar que em seus prelúdios notados em semibreves
Universidade Federal do Rio de Janeiro Escola de Música Ana Cecilia Prista Tavares Ladeira OS PRELÚDIOS NON MESURÉS PARA CRAVO NO SÉCULO XVII – ÊNFASE NO PRELÚDIO TRIPARTITE EM RÉ MENOR DE LOUIS COUPERIN Rio de Janeiro 2006 Ana Cecilia Prista Tavares Ladeira OS PRELÚDIOS NON MESURÉS PARA CRAVO NO SÉCULO XVII – ÊNFASE NO PRELÚDIO TRIPARTITE EM RÉ MENOR DE LOUIS COUPERIN Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro para obtenção do título de Mestre em Música. Área de Concentração: Práticas Interpretativas - Cravo. Orientador: Professor Doutor Marcelo Fagerlande Rio de Janeiro 2006 ii iii Para José Eduardo, com todo o meu amor. iv AGRADECIMENTOS Agradeço às pessoas que contribuíram para o aprimoramento desta pesquisa, indicando livros, artigos em periódicos, cedendo material ou passando seus próprios conhecimentos: Florence Gétreau, Marcelo Fagerlande, Huguette Dreyfus, Olivier Baumont, Edmundo Hora, Rosana Lanzelotte, Pedro Persone, Karla Dias, Fernando Lopes, Fernando Marques, Mayra Pereira, Ângela Mello, João Carlos Santos, Maria Aída Barroso, Aline Fidelis, Maria de Barros e Lúcia Barrenechea. Agradeço aos colegas da Escola de Música de Brasília, à minha aluna Luiza Chiarelli, pelo grande apoio e, em especial, ao diretor desse estabelecimento, Maestro Carlos Galvão, pelo incentivo e entusiasmo que sempre demonstrou. A Sérgio Nogueira, professor de análise e composição da UnB e à colega Maria Aída Barroso pela contribuição inestimável na abordagem dos aspectos técnicos musicais do trabalho e pelo ótimo convívio na música. Agradeço especialmente à colega Mayra Pereira por sua intensa colaboração, amizade, contato musical e troca de idéias sobre os temas estudados ao longo do curso. Agradeço também a João Rival e Clara Albuquerque, pelos bons momentos compartilhados no cravo, assim como a todos os demais colegas e professores da Escola de Música da UFRJ, pelo relacionamento harmonioso e amigável durante todo o período. Um agradecimento especial ao Professor Doutor Marcelo Fagerlande, pelo apoio, ao longo desses dois anos, pela excelente orientação durante a pesquisa e pela profícua convivência musical. v Agradeço a todos os amigos músicos, colegas profissionais, que souberam compreender as dificuldades que envolvem um trabalho como este e, especialmente, aos meus familiares, que me apoiaram em todos os momentos. Um obrigado especial à Adriana Tavares, Liana Mattos de Mello e Marilene Guiot Tavares. Agradeço aos meus filhos, Luis e Pedro, pelo carinho, alegria e estímulo que sempre me passaram durante este período intenso de estudos, não me deixando nunca esmorecer. Obrigada ao Luis, pela paciência e dedicação nas longas horas de trabalho minucioso com a editoração das figuras e na revisão, e obrigada ao Pedro, pela presteza e boa vontade no tratamento digital de imagens importantes. Agradeço especialmente à minha querida tia Anita Milek, que me dedicou amor de mãe em todas as minhas temporadas nesta cidade do Rio de Janeiro. Agradeço ao meu pai, Paulo Tavares, pelo exemplo de alguém que abraçou a carreira universitária e continua, hoje, incansável pesquisador, sempre buscando aprender mais. Agradeço de todo coração à minha mãe, Maria Apparecida Prista Tavares, in memoriam, brilhante pianista, sensibilidade marcante, companheira sempre, e minha grande amiga na música. Agradeço especialmente ao meu marido, José Eduardo, pela convivência de paz, pelo carinho e amor que sempre demonstrou e pelo seu apoio permanente em toda a minha vida artística. Agradeço a Deus acima de todas as coisas. vi RESUMO TAVARES-LADEIRA, Ana Cecilia P.. Os prelúdios non mesurés para cravo no século XVII – ênfase no prelúdio tripartite em ré menor de Louis Couperin. 2006. 144 f. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Esta dissertação aborda o prelúdio non mesuré do século XVII para cravo e contém um estudo dos quatro autores que o cultivaram: Louis Couperin, Nicolas Lebègue, Elisabeth Jacquet de la Guerre e Jean Henry D’Anglebert. O caminho para a compreensão da notação non mesurée é abordado com o detalhamento dos aspectos que caracterizam o gênero, tais como: ornamentos, notas melódicas, passagens, ligaduras e linhas retas, visando um entendimento dos eventos tanto melódicos quanto harmônicos. As semelhanças do prelúdio non mesuré com a toccata foram também apontadas. O trabalho foi complementado com o estudo de caso da interpretação da notação non mesurée do prelúdio em ré menor de Louis Couperin que ilustra um exemplo interessante de prelúdio tripartite. Palavras-chave: música, cravo, prelúdios non mesurés, séc. XVII, França, Louis Couperin, Prelúdio 1. vii ABSTRACT TAVARES-LADEIRA, Ana Cecilia P.. The 17th century unmeasured preludes for harpsichord – emphasis on Louis Couperin’s D minor tripartite prelude. 2006. 144 p. Dissertation (Master in Music) – Escola de Música, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brazil. 2006. This dissertation deals with the 17th century unmeasured prelude for harpsichord and includes an study on the four composers who cultivated it: Louis Couperin, Nicolas Lebègue, Elisabeth Jacquet de la Guerre and Jean Henry D’Anglebert. The way to understand the unmeasured notation are investigated by means of detailing the features which typically characterize that musical form, such as ornaments, melodic notes, passages, ties and straight lines, aiming to understand the melodic and harmonic events. The similarities between non mesurées preludes and toccatas are investigated as well. The work is complemented by a case study on the interpretation of the unmeasured notation of Louis Couperin’s D minor prelude, which illustrates an interesting example of tripartite preludes. Key words: music, harpsichord, unmeasured preludes, 17th century, France, Louis Couperin, Prelude #1. viii ÍNDICE DE FIGURAS: Capítulo II - Figura 1: Prelúdio em Fá Maior Louis Couperin – Notação -Pág. 23 - Figura 2: Prelúdio em ré menor – Jacquet de la Guerre – Notação- Pág. 24 - Figura 3: Prelúdio 3 em lá menor – Nicolas Lebègue – Notação - Pág. 26 - Figura 4: Prelúdio 3 em sol maior – D’Anglebert – Notação em semibreves - Pág. 27 - Figura 5: Prelúdio 3 em sol maior – D’Anglebert – Notação mista - Pág. 27 - Figura 6: Prelúdio 3 em ré menor – D’Anglebert – Acordes em colcheias - Pág. 28 - Figura 7: Prelúdio 3 em sol menor – D’Anglebert – Acordes em colcheias - Pág. 28 - Figura 8: Prelúdio 3 em lá menor – J de la Guerre – Acordes em colcheias -Pág. 29 - Figura 9: Prelúdio 3 em sol menor – J de la Guerre – Notação - Pág. 30 2.1) Ornamentos - Figura 10: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin – Pág. 31 - Figura 11: Prelúdio 2 em ré maior - Louis Couperin – cheute sur une note - Pág. 31 - Figura 12: Prelúdio 4 em sol menor - Louis Couperin – cheute sur deux notes e port de voix - Pág. 31 - Figura 13: Alguns trechos da tabela de ornamentos in Moroney, 1985 - Pág. 33 - Figura 14: Prelúdio 2 em ré maior - Louis Couperin – “ornamento vocal” - Pág. 34 - Figura 15: Prelúdio 14 em mi menor – Louis Couperin – coulé sur deux notes de suíte - Pág. 34 - Figura 16: Prelúdio 3 em sol menor – D’Anglebert – Pincé - Pág. 35 - Figura 17: Prelúdio 13 em fá maior –Louis Couperin – Pincé - Pág. 35 ix - Figura 18: Prelúdio 3 em sol maior – D’Anglebert – Notação mista, ornamento – Pág.35 - Figura 19: Prelúdio 3 em sol maior – D’Anglebert – Notação em semibreves, ornamento - Pág. 35 - Figura 20: Prelúdio em sol menor – J de la Guerre – port de voix - Pág. 36 - Figura 21: Prelúdio 10 em dó maior- Louis Couperin –melodia em arpejos- Pág. 36 - Figura 22: Prelúdio 7 em lá menor- Louis Couperin –melodia em estilo recitativo Pág. 36 - Figura 23: Prelúdio 3 em sol menor- Louis Couperin – Affetti - Pág. 39 - Figura 24: Prelúdio 13 em fá maior- Louis Couperin – Affetti - Pág. 40 - Figura 25: Toccata II-Livro de 1649 - Froberger – Passagem - Pág. 40 - Figura 26: Prelúdio 3 em sol menor - Louis Couperin – Passagem - Pág. 40 - Figura 27: Prelúdio 16 em sol maior - Louis Couperin – Passagem - Pág. 42 - Figura 28: Prelúdio 10 em dó maior- Louis Couperin – Passagem - Pág. 42 - Figura 29: Prelúdio 14 em mi menor- Louis Couperin – Motivos - Pág. 42 - Figura 30: Prelúdio 10 em dó maior- Louis Couperin – Motivos - Pág. 43 2.2) Ligaduras - Figura 31: St Lambert – Ligaduras - Pág. 44 - Figura 32: Prelúdio 1 em ré menor- Louis Couperin – Ligaduras múltiplas - Pág. 47 - Figura 33: Prelúdio em sol menor- D’Anglebert – Ligaduras - Pág. 48 - Figura 34: Prelúdio em ré menor- D’Anglebert – Ligaduras –notação mista - Pág. 48 - Figura 35: Prelúdio em ré menor- D’Anglebert – Ligaduras –notação em semibreves Pág. 48 - Figura 36: Prelúdio 9 em dó maior- Louis Couperin – coulé de tierce - Pág. 48 x - Figura 37: Prelúdio 9 em ré menor- D’Anglebert– Coulé de tierce- notação em semibreves - Pág. 49 - Figura 38: Prelúdio 9 em ré menor- D’Anglebert– Coulé de tierce- notação mista – Pág. 49 - Figura 39: Prelúdio em lá menor – J de la Guerre – Ligaduras em acordes - Pág. 49 - Figura 40: Prelúdio 3 em lá menor – N. Lebègue – Ligaduras em acordes - Pág. 50 - Figura 41: Prelúdio em ré menor – J. de la Guerre – Ligaduras em notas iguais – Pág. 50 - Figura 42: Prelúdio em ré menor – J. de la Guerre – Ligaduras em notas iguais - Pág. 51 2.3) Linhas retas - Figura 43: Prelúdio 3 em sol menor - Louis Couperin –Linha reta - Pág. 51 - Figura 44: Prelúdio 11 em dó maior - Louis Couperin –Linha reta - Pág. 52 - Figura 45: Prelúdio em ré menor – D’Anglebert–Linha reta - Pág. 52 CAPÍTULO III - Figura 46: Prelúdio 8 em lá maior- Louis Couperin –cascades - Pág. 61 - Figura 47: Toccata VI-Livro de 1656 - Froberger - cascades - Pág. 61 - Figura 48: Estudo comparativo – L. Couperin e Froberger - Pág. 62 - Figura 49: Prelúdio 1 em ré menor - Louis Couperin –Início - Pág. 65 - Figura 50: Prelúdio 6 em lá menor - Louis Couperin – arpejo inicial - Pág. 65 - Figura 51: Toccata VI-Livro de 1656 - Froberger – Início - Pág. 65 - Figura 52: Prelúdio 3 em sol menor - Louis Couperin – Mudança de seção - Pág. 67 - Figura 53: Toccata III- Livro de 1649 - Froberger– Mudança de seção - Pág. 67 xi - Figura 54: Prelúdio 3 em sol menor - Louis Couperin – Passagem - Pág. 68 - Figura 55: Toccata III- Livro de 1649 - Froberger– Passagem - Pág. 68 - Figura 56”Prelúdio em sol menor – J. de la Guerre – Motivo - Pág 71 - Figura 57: Prelúdio em ré menor – J. de la Guerre – Motivo e mudança de seção Pág.72 - Figura 58: Prelúdio em sol menor – J. de la Guerre – Mudança de seção - Pág. 72 - Figura 59: Tocade em fá maior– J. de la Guerre – Mudança de seção - Pág. 73 - Figura 60 - Froberger, trecho da Toccata VI em Lá menor, livro de 1656, com mudança de seção e notação original em edição moderna - Pág. 76 - Figura 61 - Froberger, trecho da Toccata VI em Lá menor, livro de 1656 com mudanças de seção e notação proposta - Pág. 77 CAPÍTULO IV – Figura 62: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin in Tilney -Pág. 82 – Figura 63: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin in Moroney - Pág. 82 – Figura 64: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin fac-símile in Tilney - Pág. 83 – Figura 65: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin – Final trecho 3 – Pág 84 – Figura 66: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin – Acordes linha 30 - Pág. 84 – Figura 67: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin – Acordes linha 30 - Pág. 84 – Figura 68: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin – Transição e trecho 5 - Pág. 85 – Figura 69: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin – Passagem e mudança de seção Pág. 85 – Figura 70: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin – Passagem e trecho 4 - Pág. 86 – Figura 71: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin – Ligaduras - Pág. 87 xii – Figura 72: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin – Ligaduras no fac-símile - Pág. 87 – Figura 73: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin – Ligaduras em graus conjuntos Linha 32- Pág. 88 – Figura 74: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin – Ligaduras em graus conjuntos Linha 29 - Pág. 89 – Figura 75: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin – Ligaduras do editor – Linha 3 – Pág. 89 – Figura 76: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin – Motivo a - Pág. 90 – Figura 77: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin – Motivo b - Pág. 90 – Figura 78: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin – Motivo c - Pág. 90 – Figura 79: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin – Motivo d - Pág. 90 – Figura 80: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin – Semelhança trecho de prelúdio 3 em sol menor - Pág. 92 – Figura 81: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin – Semelhança trecho de prelúdio 3 em sol menor - Pág. 92 – Figura 82: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin – Semelhança com trecho de tombeaux de Froberger - Pág. 93 – Figura 83: Tombeaux Froberger– Semelhança com trecho de Prelúdio 1 em ré menor de L. Couperin - Pág.93 – Figura 84: Prelúdio 1 em ré menor – Louis Couperin – Seqüência de terças - Pág. 95 xiii OS PRELÚDIOS NON MESURÉS PARA CRAVO NO SÉCULO XVII – ÊNFASE NO PRELÚDIO TRIPARTITE EM RÉ MENOR DE LOUIS COUPERIN SUMÁRIO Introdução 1 Capítulo I - Aspectos históricos 7 1.1 Origem 8 1.2 Compositores – cronologia – repertório 16 Capítulo II - Compreensão da notação non mesurée 2.1 Ornamentos 2.2 Notas melódicas e passagens 2.3 Ligaduras 2.4 Linhas retas 23 30 36 43 51 Capítulo III - Notação mensurada e prelúdios tripartite 3.1 Notação mensurada das toccatas 3.2 O prelúdio non mesuré com mudança de movimento, dito prelúdio italiano ou tripartite 53 54 63 Capítulo IV - Uma abordagem interpretativa da notação non mesurée no prelúdio tripartite em Ré menor de Louis Couperin 4.1 Estrutura do prelúdio em ré menor 4.2 Compreensão da harmonia 4.3 Figuração melódica 4.4 Interpretação 4.5 Prelúdio tripartite em ré menor com a partitura proposta 78 Conclusão 107 Bibliografia 117 Anexo I - Tabela de ornamentos de D’Anglebert 123 Anexo II - Tabelas de ornamentos elaboradas por Moroney (1985) 125 Anexo III - Toccata VI de Froberger, livro de 1656: partituras com 128 80 86 89 93 97 notação proposta e com notação original em edição moderna Anexo IV - Fac-símile do prelúdio tripartite em ré menor de Louis Couperin 137 INTRODUÇÃO 2 INTRODUÇÃO Esta pesquisa se propõe a estudar o prelúdio non mesuré através de seu breve período de existência, restrito a um único país, a França. Os prelúdios eram inicialmente improvisados, prática habitual entre os alaudistas e cravistas. Não se sabe ao certo se estas peças foram deixando de ser improvisadas, abrindo então um espaço para os prelúdios notados, ou se as duas práticas, tanto a escrita quanto a improvisada, coexistiram durante todo o período que compreende os prelúdios non mesurés compostos e notados para cravo. As pesquisas sobre o tema mostram que praticamente não existem fontes de época que indiquem como estes prelúdios deveriam ser tocados. Encontramos em uma carta de Nicolas Lebègue, que será comentada no decorrer desta dissertação, algumas poucas indicações de como se deve interpretar seus prelúdios, sobretudo como se deve compreender sua notação. Sabemos que a arte do prelúdio non mesuré provém do alaúde, mas nesta dissertação não se fez um aprofundamento no repertório deste instrumento, pelo fato de tratar-se de obras que abrangem aspectos inerentes ao alaúde, apesar do parentesco que tanto influenciou o cravo. A presente dissertação se concentrará somente nos prelúdios criados para cravo no séc. XVII, representados por quatro compositores que, à exceção de Louis Couperin, tiveram ainda em vida seus prelúdios editados, juntamente com outras peças, no próprio séc. XVII. Louis Couperin, Nicolas Lebègue, Elisabeth Jacquet de la Guerre e Jean Henry D’Anglebert trazem, em suas respectivas obras, características próprias que, juntas, reúnem os mais diversos aspectos inerentes ao gênero. Para cada aspecto abordado, seja ele de ornamentação, ligadura ou melodia, foi realizado um estudo de observação e execução dos prelúdios de cada um dos quatro 3 compositores, o que poderá ser evidenciado por meio dos comentários e os exemplos escolhidos. A maneira de utilizar os recursos do prelúdio non mesuré tem particularidades na obra de cada um, como poderemos observar ao longo da pesquisa. No primeiro capítulo será apresentado inicialmente um breve histórico dos prelúdios non mesurés, analisando o seu papel e função dentro de um contexto musical e, em seguida, os aspectos históricos serão direcionados para os quatro compositores com descrição e enumeração de suas obras no gênero e principais características. O capítulo II se propõe a estabelecer os caminhos para a compreensão da notação non mesurée que, comparada à notação mesurée escrita no período barroco, apresenta muitas dúvidas e demanda ao executante não só uma interpretação coerente, como também o conhecimento do que caracteriza essa notação e o que ela significa. Os aspectos que marcam um prelúdio non mesuré serão aqui classificados e demonstrados por meio de exemplos específicos. Conforme veremos no decorrer da pesquisa, são citados ornamentos, notas melódicas, passagens, ligaduras, que muitas vezes se apresentam interligados. O ato de classificá-los visa a uma maior organização para auxiliar o leitor. As tabelas de ornamentação francesas são as mais elaboradas na época e D’Anglebert foi, entre os compositores franceses, quem criou a mais completa. Nesta pesquisa, utilizaremos a tabela de D’Anglebert (anexo), como referência para o estudo dos ornamentos. Usaremos os termos propostos por esse autor para designá-los na língua original, o francês. É importante ressaltar que os sinais gráficos que representam os ornamentos só serão utilizados muito raramente, pois o que é importante para a compreensão da notação non mesurée é a visualização do ornamento escrito por extenso. 4 Outro aspecto enfocado no capítulo II será o das ligaduras, que apesar de serem claras na intenção dos compositores, apresentam uma grande divergência de terminologia nos estudos sobre o tema. Essas terminologias serão também abordadas, tanto em fontes de época, como o tratado de Michel de Saint Lambert, quanto nas fontes modernas que tratam do assunto. Tenue, liaison, line são os termos mais utilizados com diferentes significados nos estudos musicológicos sobre o tema. Optamos nesta dissertação pela utilização do termo “ligadura”, por ser da língua portuguesa e também pelo fato de abranger todos os tipos de ligaduras. Também as linhas retas serão explicadas e exemplificadas, principalmente na obra de Louis Couperin e D’Anglebert. No capítulo III será abordada a notação mensurada das toccatas e o prelúdio tripartite. Os compositores mais representativos do gênero da toccata são Frescobaldi e Froberger, sendo que na obra deste último encontramos muitas semelhanças com os prelúdios non mesurés, principalmente os de Louis Couperin. Por esta razão, há diversos estudos que comparam os dois compositores e buscam analogias em suas respectivas obras, mas poderemos observar ao longo da pesquisa que, dependendo do enfoque, estas semelhanças podem ficar menos acentuadas. Um aspecto de grande relevância é o das fugas encontradas nos prelúdios tripartite de Louis Couperin, em que o autor demonstra um grande domínio da linguagem contrapontística, semelhante à de Froberger nas seções em fugato de suas toccatas. Nesta pesquisa evidenciaremos alguns aspectos históricos da vida musical de Froberger, embora nosso foco sejam os prelúdios franceses, compostos com a notação non mesurée. O fato de abordarmos também as toccatas se explica porque notações tão diferentes se assemelham na interpretação, ou seja, na execução. 5 Os prelúdios com mudança para a seção mensurada, que serão enfocados nesse capítulo, podem ser chamados de tripartite, embora somente alguns sejam realmente em três partes, os demais possuindo a terceira seção muito breve, uma coda. Estes prelúdios descritos são de autoria de dois compositores: Louis Couperin e Jacquet de la Guerre, os únicos entre os quatro a comporem obras em três partes. O prelúdio tripartite em ré menor de Louis Couperin será nosso objeto de estudo no capítulo IV, com enfoque na interpretação da notação non mesurée. Buscaremos primeiramente evidenciar nesse prelúdio os aspectos abordados ao longo da pesquisa, como ornamentos, ligaduras, desenhos melódicos, passagens, harmonia, assim como maneiras de se interpretar e executar a obra. A realização desta pesquisa foi motivada pelo fato de o prelúdio non mesuré propiciar ao cravista grandes possibilidades de criação interpretativa e também por ser, em princípio, parte integrante do repertório para cravo. O fascínio que esses prelúdios exercem provém do estilo livre, podendo também ser chamado de stylus fantasticus 1 . Sua notação, totalmente desprovida de compasso, representa um desafio para o intérprete, habituado à música compassada. A interpretação dessa notação, assim como sua execução, foram um forte motivo para nos aprofundarmos no tema. As diversas possibilidades interpretativas ficam evidenciadas na atmosfera a ser criada durante o prelúdio: os momentos expressivos se entrelaçam a passagens, trechos em caráter de improvisação, ou ainda outros típicos do gênero, criando diferentes climas que não se manterão iguais por muito tempo, pois as mudanças são uma característica marcante dessas peças. 1 stylus fantasticus- um estilo que provém da livre improvisação e pode ser também chamado de estilo de fantasia. Tal estilo não se origina nem do contraponto, nem da música de dança. 6 Acreditamos que nossa experiência como intérprete desse repertório em concertos, gravações e no ensino constitui uma bagagem que, ao ser transmitida, poderá contribuir para o aprofundamento do assunto. Um dos motivos que justificam a escolha desse tema é a ausência quase total de bibliografia em português, e a que existe em outras línguas nem sempre é acessível em nosso país. Julgamos então importante a realização desta pesquisa, uma vez que no Brasil cresce o número de instituições que abrigam cursos oficiais de cravo (Escola de Música da UFRJ, Unicamp e CEP - Escola de Música de Brasília). Além dessas, há regularmente cursos oferecidos nos diversos festivais de música por todo o país. Assim, nos últimos anos cresceu o alunado. A escolha do tema se justifica pela importância do gênero no âmbito do repertório do instrumento. Aprender a tocar uma música no estilo livre faz parte da formação de todo cravista. Com esta pesquisa pretendemos responder às seguintes questões: a) Como lidar com a notação em semibreves? b) Como lidar com a notação mista? c) Existe diferença entre as duas? d) Como identificar os ornamentos, notas melódicas e passagens? e) Como compreender as ligaduras? f) Qual a relação do prelúdio non mesuré com a toccata? CAPÍTULO I ASPECTOS HISTÓRICOS 8 CAPÍTULO I ASPECTOS HISTÓRICOS 1.1) Origem Os prelúdios non mesurés para cravo foram escritos principalmente nos séc. XVII e XVIII. Sua principal característica é a ausência de ritmo e métrica, sendo grafados normalmente em semibreves dispostas em diagonal, representando acordes, passagens ou ornamentos. Embora as semibreves estejam presentes nos prelúdios de praticamente todos os compositores da época, quase sempre representando os acordes, outros valores podem ser acrescentados pelo compositor para facilitar a compreensão do intérprete. Os prelúdios non mesurés para cravo originaram-se na França em torno de 1650, se desenvolveram sofrendo algumas transformações, mas sem nunca perder a sua principal característica, que é a interação entre intérprete e compositor no momento da execução. O fato de não terem barras de compasso e os valores não obedecerem a nenhuma métrica faz com que o papel do intérprete seja da maior importância na execução desses prelúdios. Não há como falar do prelúdio non mesuré sem afirmar que a maior marca deste tipo de prelúdio consiste principalmente na maneira como eram notados. É sabido pelos estudiosos do assunto que o prelúdio non mesuré aparece em primeiro lugar entre os alaudistas, com nomes como entrée, recherche e também prelúdio. Embora os cravistas tenham utilizado a mesma técnica de composição vinda dos alaudistas na arte do prelúdio non mesuré, tais obras para os dois instrumentos não 9 se iniciaram ao mesmo tempo. Somente a notação, afirma Prévost 2 , que não revela o conteúdo musical, pode ser considerada uma herança transmitida do alaúde para o cravo na arte destes prelúdios. Nas peças non mesurées para alaúde, os prelúdios, que, como foi mencionado acima, também eram chamados de entrées, e recherches, são encontrados em antologias por Pierre Ballard, importante editor da época. A primeira, publicada em 1631, contém quatro peças livres, e na última antologia para alaúde solo3 (1638), encontram-se peças de diversos alaudistas, compositores da época, agrupadas. Depois disso, no entanto, entrées e recherches vão desaparecendo aos poucos até não fazerem mais parte dos livros impressos ou manuscritos de alaúde 4 . Denis Gautier (1603-1672), célebre alaudista da época, publicou a obra Rhétorique des dieux (1652) e colocou duas peças livres no recueil, mas tais peças não possuíam título. Em 1670, o livro pièces de luth de Denis Gautier sur differens modes nouveaux já possuía quatro prelúdios e a partir daí as peças non mesurés para alaúde passam a aparecer com mais freqüência e são chamadas de prelúdios 5 . É sabido que Chambonnières (1601-1672) foi o compositor que iniciou toda uma escola de cravo na França. Através de sua obra foi inaugurada uma tradição de música francesa para o cravo, com a linguagem própria do instrumento, considerada talvez a mais representativa. Embora seu talento fosse reconhecido desde 1636, em sua obra para cravo, pièces de clavecin, composta em dois volumes publicados em 1670, não são encontrados prelúdios, somente danças de suítes. Apesar de sua obra ter sido publicada na mesma época que parte da obra de Denis Gautier (1603- 1672), não se conhece 2 PRÉVOST, Paul. Le prélude non mesuré pour clavecin: France 1650-1700. Baden-Baden & Bouxwiller, Alemanha: Éditions Valentin Koerner, 1987. p.75. 3 Tablature de luth des differents autheurs sur les accords nouveaux, Paris France: Pierre Ballard, 1638. 4 PRÉVOST, 1987, p. 13. 5 PRÉVOST, 1987, p.14. 10 nenhum prelúdio escrito por ele. Prévost apresenta duas hipóteses para a falta de registro dos prelúdios non mesurés na obra para cravo deste período: A primeira hipótese é a de que tal fato possa ser compreendido num contexto de uma prática de improvisação em que não havia necessidade do registro escrito. A outra hipótese é a de que os manuscritos possam ter se perdido. Além disso, o cravo passou um período apagado na França até o surgimento de Chambonnières 6 . Os prelúdios non mesurés existiram na França sem nunca terem saído do país, embora se encontrem em outros lugares peças em estilo livre com outros nomes. Ao pesquisarmos sobre diferentes títulos dados a composições livres com caráter de introdução ou peças isoladas, percebemos uma divergência significativa de informações. As peças em estilo preludiado, ritmicamente livres, eram comuns antes do séc. XVII, mas a notação usada era métrica, precisa, ainda que não obedecesse a um padrão regular na divisão. Tais peças, como lembra D. Moroney 7 , podiam ter outros títulos tais como intonazione, toccata, ricercare e prelúdio. Prévost também comenta que às peças livres foram dados diferentes títulos e o fato de serem notadas do modo convencional poderia aproximá-las das peças comuns. No entanto, como sua execução permitia liberdade ao intérprete, poderiam ser classificadas como peças em estilo improvisado. O autor ressalta ainda que: Pelo fato de possuir a notação somente parcial o prelúdio non mesuré contém ao mesmo tempo a peça escrita e o caprice improvisado. Completando o trabalho do autor no domínio rítmico, o intérprete passa a ser parte ativa na composição da obra que se torna um tipo de semi-improvisação. 8 6 PRÉVOST, 1987, p. 25. MORONEY, Davitt - Prélude non mesuré. Grove Music Online. Ed. L. Macy disponível em <http://www.grovemusic.com> Acessado em 01.07.2004. 8 PRÉVOST, 1987, p. 23. Tradução nossa. 7 11 É verdade que nos deparamos com comentários sobre peças no estilo improvisado e alguns autores chegam mesmo a classificar prelúdios como improvisações, mas a improvisação, como a entendemos, é o que se cria no momento. Prévost cita Matheson, que explicou em poucas palavras, mas com muita sabedoria, essa dualidade: Embora à primeira vista estas peças pretendam ter o caráter daquilo que se toca em improvisação, elas são, na maior parte do tempo, cuidadosamente registradas, escritas no papel. Sendo impraticável delimitá-las e categorizá-las, pode-se dificilmente dar a essas peças um outro nome a não ser “inspirations heureuses”; sua marca, 9 portanto, é a inspiração . Matheson não as coloca junto a peças no estilo improvisado, pois são cuidadosamente escritas; mas, por outro lado, desistiu de qualquer tentativa de defini-las ou classificá-las, e de maneira poética preferiu chamá-las de inspirações felizes. Alan Curtis 10 faz uma colocação interessante sobre esse assunto, ressaltando a atenção que tem sido dada por historiadores e intérpretes da música antiga à livre improvisação no passado e à relação entre liberdade e forma fixa. O autor considera que um dos exemplos mais tocantes de improvisação controlada é o prelúdio non mesuré. Tais prelúdios, comenta Curtis, foram pouco a pouco sendo escritos, elaborados, compostos e não mais improvisados. Jean Jacques Rousseau (1712–1778), em seu Dictionnaire de musique, define de maneira sucinta o prelúdio, dando um maior enfoque para o seu papel introdutório. Quanto à definição de préluder, Rousseau diz que a arte de preludiar no cravo ou no 9 PRÉVOST, 1987, p. 22. Tradução nossa CURTIS, Alan. Prefácio à edição de Pieces de clavecin de Louis Couperin. Paris, France: Heugel, 1970. (Coleção Le Pupitre). 10 12 órgão, “(...) é compor e tocar de improviso peças repletas de tudo que a composição tem de mais profundo em escrita, em fuga, em modulação e em harmonia (...)”11 . Jacques Hotteterre (1674-1762), compositor e flautista francês, no prefácio de seu livro “L’Art de preluder sur la flûte traversière”12 , considera que existem dois tipos de prelúdio: o primeiro tipo é encontrado nas óperas, cantatas, suítes e sonatas como primeira peça, com o caráter de introdução e com forma definida. O outro tipo é o que Hotteterre chama de prelúdio de caprice, a que considera como o verdadeiro prelúdio. Tal peça deveria ser criada no momento da execução, sem nenhuma preparação. Bordet Toussaint, flautista e editor de música 13 , em seu método, tem uma abordagem parecida com a de Hotteterre, pois diz que existem duas formas de prelúdio e à primeira forma dá o nome de ritournelle 14 . Tal prelúdio seria composto de maneira refletida, observando-se as regras. O Ritournelle, como o denominou, se encontra nas óperas e cantatas. Para Bordet, o verdadeiro prelúdio é um chant de caprice, criado no momento da execução, e é assim descrito por esse autor: (...) é desse tipo de prelúdio que uma pessoa com habilidade se serve para fazer brilhar a sua genialidade no instrumento que toca, percorrendo com arte diferentes tons nos dois modos e terminando no seu tom original, quase sem se perceber que se tenha distanciado dele (...). 15 Percebemos uma grande similaridade nas duas últimas definições, embora as datas das edições estejam distantes. Ambas parecem se referir ao prelúdio de caprice ou chant de caprice como uma improvisação, pois são criados no momento da execução. 11 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Dictionnaire de Musique. Paris, France: chez la veuve Duchesne, Librairie, 1764. p. 383. 12 13 HOTTETERRE, J.. L’Art de preluder sur la flûte traversiere. Paris, France: L’Auteur, Foucault, 1719, facs. p.1. LESCAT, Phillippe. Traités Musicaux en France, 1660-1800. La Villette, Paris, France: Institut de pédagogie musicale et choréographique, 1991. p. 206. 14 BORDET, Toussaint. Méthode raisonnée pour apprendre la musique d’une façon plus claire et plus precis. Paris, France: l’Auteur, Bayle-Lyon, Bretonne, s.d. premier tirage, 1755. p.15. 15 BORDET, 1755, p. 15. 13 No Dictionnaire de Musique de Rousseau (1764), encontramos a definição de caprice como “um tipo de peça musical livre na qual o compositor, sem se submeter a nenhum tema, dá asas ao seu talento e se entrega a toda chama da composição”. 16 Ao lermos as descrições da época, percebemos diferentes terminologias entre os estudiosos e compositores do período. Devemos, porém, levar em consideração o fato de que muitas dessas definições foram escritas quando os prelúdios non mesurés já haviam praticamente desaparecido. Nicolas Lebègue (1631-1702) parece ter sido o único compositor do gênero no século XVII a esclarecer e orientar um pouco sobre a interpretação de seus prelúdios. No seu primeiro livro (1677), Les Pièces de Clavessin 17 , junto à tabela de ornamentos, Lebègue escreve um breve prefácio explicando sua tentativa de apresentar seus prelúdios com toda facilidade possível tanto para a conveniência quanto para o toque do cravo. Lebègue indica a maneira de arpejar os acordes nesse instrumento, que não possui o mesmo recurso do órgão, em que os acordes são sustentados. Conclui sua recomendação se desculpando por uma possível incompreensão ou dificuldade, justificando-se pela grande complexidade de tornar esse método de preludiar mais claro às pessoas. Outros compositores do século XVII, no domínio do prelúdio non mesuré, escreveram pequenos prefácios em seus livros editados, mas não encontramos, lamentavelmente, nada sobre o prelúdio non mesuré. Uma carta de Lebègue dirigida a um cravista inglês (1684), William Dundass, o qual parecia não compreender a maneira de executar essas obras, tornou-se um importante documento para uma maior compreensão de seus prelúdios. Tal carta, citada no livro de Prévost e Colin Tilney 18 , 16 ROUSSEAU, 1764, p.74. LEBÈGUE, Nicolas. Les Pièces de clavecin, Paris, France: Baillon, L’Auteur, 1677; facs., Courlay, France: Éditions Fuzeau, 2003 (collection Méthodes et Traités 12, v.1). 18 TILNEY, Colin. The art of unmeasured preludes for harpsichord: France 1660-1720. London, England: Schott, 1991. p. 4. 17 14 será discutida mais à frente, mas é importante deixar registrada neste capítulo a sua definição sobre prelúdio: “O prelúdio não é outra coisa senão uma preparação para se tocarem peças de um tom e também para experimentar o teclado antes de executar as peças e passear no tom em que queremos tocar”. 19 François Couperin (1668-1733), já no século XVIII, expressa sua visão em seu tratado L’Art de toucher le clavecin: “Os prelúdios não somente anunciam agradavelmente o tom das peças que vamos tocar, mas eles servem para desembaraçar os dedos e freqüentemente para experimentar os teclados aos quais ainda não estamos acostumados”. 20 François Couperin registrou seus prelúdios em notação convencional, alegando que seriam mais fáceis para aprender ou ensinar, mas explica como devem ser interpretados: “Prelúdio é uma composição livre em que a imaginação se entrega a tudo que a ela se apresenta”. 21 Couperin recomenda que seus prelúdios sejam tocados de maneira natural sem se prender à precisão dos “mouvemens”(sic), a menos quando indicado o termo mesuré, concluindo o parágrafo com uma frase marcante: “Pode-se arriscar afirmar que dentre muitos assuntos, a Música (em comparação à Poesia) tem sua prosa e seus versos”.22 Para compreender o sentido de tal frase, Davitt Moroney 23 comenta esse trecho do tratado, onde François Couperin, segundo sua interpretação, faz uma analogia entre prosa e prelúdio, em que a prosa representa a linguagem comum e, num contexto literário, se distingue da poesia pelo seu ritmo irregular e mutante e por sua proximidade com a linguagem falada. Já as peças escritas metricamente, como os movimentos de 19 PRÉVOST, 1987, p.120. Tradução nossa. COUPERIN, François. L’Art de toucher le clavecin. Paris: L’Auteur, Foucault, édition de 1717. facs., Courlay, France: Éditions Fuzeau, 2003. p. 51. Tradução nossa. 21 COUPERIN, 1717, p. 60. Tradução nossa. 22 COUPERIN, 1717, p.61. Tradução nossa. 23 MORONEY, Davitt – Prefácio à nova revisão de Pieces de clavecin: Louis Couperin. Monaco: L’Oiseau-Lyre, 1985. p. 27. 20 15 dança, por exemplo, com seu ritmo regular, podem ser comparadas à poesia. Concordamos com Moroney ao afirmar que se trata de uma comparação interessante e esclarecedora. As pesquisas revelam que os prelúdios non mesurés em muito se assemelham aos tombeaux franceses, peças que seguem a estrutura de uma oração fúnebre 24 , e às toccatas italianas. Ambos notados metricamente, demandam ao instrumentista uma interpretação non mesurée. Davitt Moroney confirma isso, classificando esses prelúdios em dois grupos: toccatas e tombeaux. O autor estabelece um paralelo com as toccatas de Frescobaldi e Froberger e também com os tombeaux franceses compostos como elegias, em sua maior parte, em homenagem a mestres, superiores ou amigos falecidos 25 . A liberdade desses prelúdios é inspirada na notação do alaúde, comenta Colin Tilney (1991), mas seu conteúdo provém, principalmente na obra de Louis Couperin (1626-1661), das toccatas italianas de Frescobaldi (1538-1643), J.J. Froberger (16161667) e dos tombeaux 26 . Prévost discorre sobre os traços de semelhança que unem as toccatas italianas ao prelúdio non mesuré e explica a possível influencia de Frescobaldi na obra de Louis Couperin. Suas toccatas já tinham mais de um quarto de século quando Couperin chegou a Paris e provavelmente já deviam circular nos meios musicais da capital. Por outro lado Froberger, durante sua permanência na França, deve ter ajudado na difusão da obra de seu mestre. 27 Prévost demonstra ainda, por meio de exemplos musicais, analogias entre as toccatas de Frescobaldi e os prelúdios de Louis Couperin, mas apesar das semelhanças 24 LANZELOTTE, R.S.G.. Aspectos retóricos da música do século XVII: um estudo do Tombeau de Mr. Blancrocher de Louis Couperin. Anais do IX Encontro Anual da ANPPOM (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música), p. 323 a 326, agosto, 1996. 25 MORONEY,1985, p. 27 26 TILNEY, 1991, p. 2 27 PRÉVOST, 1987, p. 75-76. Tradução nossa. 16 o autor considera que “os elementos de escrita comuns aos dois músicos são bem limitados e a toccata de Frescobaldi já era antiga quando Louis compôs seus prelúdios” 28 . Embora encontremos com freqüência comparações entre esses dois gêneros em livros e artigos publicados sobre o assunto, tais trabalhos se referem quase sempre aos prelúdios de Louis Couperin e às toccatas de Froberger especificamente. Colin Tilney, por exemplo, se aprofunda mais ainda nas semelhanças entre as composições de Louis Couperin e Froberger, ressaltando que a maneira como Froberger tocava foi motivo de inspiração para os prelúdios de Louis Couperin. Percebem-se em sua música passagens e melodias reelaboradas das toccatas e suítes do livro de 1640 de Froberger, e é possível que Louis Couperin quisesse registrar exatamente como Froberger realizava seus acordes quando improvisava. O pesquisador descreve a personalidade “simpática e original” de Froberger, que, aliada a sua habilidade como cravista e organista, deve ter propiciado uma boa receptividade no “círculo de amigos” de Louis Couperin em Paris 29 . 2.2) Compositores – Cronologia - Repertório A proposta da nossa pesquisa é enfocar o prelúdio non mesuré composto para cravo no século XVII. Louis Couperin (1626-1661) é considerado o primeiro a compor esse tipo de prelúdio. Não sabemos a data exata em que ele compôs tais obras, pois além de não haver manuscrito autógrafo, sua obra não foi publicada, talvez pelo fato de ter falecido aos 35 anos de idade. Certos documentos, porém, ajudam a localizar o período em que foram compostas. 28 29 id. p.77 TILNEY, 1991. p. 2. 17 David Fuller e Bruce Gustafson 30 comentam que o manuscrito de Guy Oldham, que contém obras para órgão de Louis Couperin e é considerado autógrafo, ajuda a compreender as fases do compositor. Boa parte das fantasias e fugas contidas neste manuscrito possuem as datas e os locais em que foram compostas, a partir do que podese considerar os demais períodos como os de maior produção de peças para o cravo. Poderíamos estimar então que em torno de 1650 deu-se início às composições de prelúdios non mesurés para cravo na França. Neste capítulo optamos pela ordem cronológica de publicação das obras dos compositores do século XVII: • Louis Couperin – 1626-1661 – 16 prelúdios não publicados. • Nicolas Lebègue - 1631-1702 – 5 prelúdios publicados em 1677. • Elisabeth Jacquet de la Guerre – 1664-1729 – 4 prelúdios publicados em 1687. • Jean Henry D’Anglebert – 1626-1691 – 3 prelúdios publicados em 1689. O prelúdio em Dó maior não faz parte dessa impressão, pois só foi encontrado posteriormente em um manuscrito autógrafo. No século XVIII encontramos ainda outros compositores que escreveram prelúdios non mesurés: Gaspard Leroux (?-1707) – 4 prelúdios publicados em 1705; Louis-Nicolas Clérambault (1676-1749) – 2 prelúdios publicados em 1704; Louis Marchand (1669-1732) – 1 prelúdio publicado em 1702; Jean-Philippe Rameau (16831764) – 1 prelúdio publicado em 1706; Nicolas Siret (1663-1754) – 1 prelúdio editado em 1719; e Jean-François Dandrieu (1682-1738) – 4 prelúdios publicados entre 1715 e 1720. Além desses encontramos também prelúdios anônimos em diferentes manuscritos. 30 FULLER, David. Louis Couperin. Grove Music Online. Ed. L. Macy. Disponível em <http://www.grovemusic.com.>. Acesso em 01.jul.2004. 18 Louis Couperin Louis Couperin é considerado o compositor mais importante na arte do prelúdio non mesuré. Além de criar uma linguagem nova para o cravo, seus prelúdios são de uma complexidade e riqueza significativas, com harmonias rebuscadas, nem sempre sendo fácil perceber a frase, a linha melódica em meio a arpejos, ornamentos, escalas e mudanças de harmonia. Seus prelúdios encontram-se em dois manuscritos: Ms Bauyn, fonte de grande importância, principalmente para a música francesa, e o Ms de Parville. Nenhum dos dois é autógrafo, mas acredita-se que, no Ms de Bauyn, as peças tenham sido copiadas por alguém da família de Couperin poucos anos após sua morte. Na verdade, comenta Siegbert Rampe, tudo que se tem até hoje são especulações contraditórias em relação às suas origens. 31 Louis Couperin compôs 16 prelúdios, todos notados somente em semibreves, sendo que quatro deles compõem-se de três partes. Esses prelúdios, também chamados tripartite, possuem uma seção na parte central, com a escrita mensurada, normalmente uma fuga. Nicolas Lebègue Os primeiros prelúdios a serem impressos foram os de Lebègue, em 1677, que foi também o primeiro compositor a acrescentar valores rítmicos à notação em semibreves, característica da obra de L. Couperin. Com o crescimento da música impressa para teclado em 1670, os compositores começaram a experimentar novas notações para auxiliar instrumentistas a melhor compreender sua música, já que estes não teriam a oportunidade do contato pessoal com o compositor. Nicolas Lebègue utilizou esse procedimento e ainda comenta em seu prefácio a grande dificuldade de 31 RAMPE, Siegbert. Prefácio à edição de Keyboard and Organ Works from Copied Sources. Kassel, Germany: Barenreiter - Verlag, 2002. p. LXXIV. 19 fazer a notação dos prelúdios de uma maneira clara sem perder a essência musical desse método de preludiar 32 . No seu livro, deixou uma recomendação explicando sua tentativa de facilitar seus prelúdios, mas sem discorrer sobre essa maneira de notá-los. Lebègue escreve sobre a maneira de arpejar os acordes no cravo, repetindo as notas ao invés de sustentálas como no órgão 33 . Entretanto, as dificuldades de leitura são grandes e o compositor escreve uma carta para um cravista inglês, Mr. William Dundass, como já foi explicado, o qual parecia não compreender a maneira de executar essas obras. Esta carta é muito importante para a interpretação dessas obras, não apenas porque provém do autor, mas porque é um registro de como interpretar esse tipo de música. Ao começar a carta, Lebègue fala da função do prelúdio, que seria uma preparação para se tocar peças em uma determinada tonalidade, assim como experimentar o teclado antes de tocar e passear na tonalidade escolhida, como já foi comentado item anterior. Lebègue explica também, no mesmo parágrafo, a razão de não ter colocado barras de compasso em seus prelúdios, ao contrário do que fez nas outras peças, porque “nesta música não existe nada de determinado”, e ainda orienta sobre a leitura das notas, para ser efetuada na ordem em que estão escritas, ou seja, em diagonal, como já foi comentado 34 . A opção de Lebègue de mudar a notação proposta por L. Couperin provavelmente se deve ao fato de não confiar totalmente no sistema proposto por seu antecessor 35 . 32 MORONEY, Davitt, The performance of unmeasured harpsichord preludes. Early Music, Oxford, England. v. IV, p. 143-151, Abril, 1976. p. 143. 33 PRÉVOST, 1987, p. 119. 34 PRÉVOST 1987, p. 120, cita Gustavson, Bruce in Letter from Mr Lebègue Concerning his Preludes. Recherches XVII, Paris, France: Picard, 1977, p. 9-10. 35 TILNEY, 1991, p. 13. 20 Elisabeth Jacquet de la Guerre O livro Pièces de clavecin, de 1687, de autoria de Jacquet de la Guerre, até há alguns anos era tido como perdido, impedindo-se assim que a compositora fosse citada em inúmeros artigos sobre o prelúdio non mesuré. É sabido que Jacquet de la Guerre foi uma virtuose do cravo, grande compositora, e existem documentos da época que confirmam seu talento desde muito nova, inclusive como improvisadora 36 . Jacquet era muito jovem quando teve publicado seu primeiro livro de peças para cravo, e sua “juventude e vitalidade” estão refletidas em sua música, assim como uma forte ligação com a música vocal italiana 37 . Compôs música religiosa, dramática e obras para música de câmera. Suas sonatas e cantatas, que estão entre as primeiras compostas na França, são muito importantes, assim como a tragédia lírica Céphale et Procris, a primeira obra de uma mulher a ser apresentada na ópera de Paris 38 . Elisabeth Jacquet de la Guerre compôs quatro suítes, sempre precedidas por uma peça non mesuré. É interessante observarmos que, dos quatro prelúdios que escreveu, três são tripartite, como alguns de Louis Couperin39 . A uma dessas peças livres, Jacquet de la Guerre deu o título de tocade. Tal peça é curiosamente notada como os prelúdios da época, ou seja, com notação non mesurée, ao contrário das toccatas que conhecemos. Sua Tocade é provavelmente a única do gênero em toda a literatura francesa para cravo. Jacquet de la Guerre parece ter se destacado na maneira como organizou seu livro de cravo, que possui uma uniformidade na disposição das danças não encontrada em outros compositores 40 . 36 BATES, Carol Henry. Prefácio à edição de Pièces de clavecin de Elisabeth Jacquet de le Guerre. coleção Le Pupitre. Paris, France: Heugel, 1982, p. V. 37 TILNEY, 1991, p.13. 38 BATES, 1982, p. V. 39 Louis Couperin, prelúdios tripartite: n° 1, 3, 6 e 12. 40 CESSAC, Catherine. Elisabeth Jacquet De La Guerre: une femme compositeur sous le règne de Louis XIV. Arles, France: Actes sud, 1995. 213 p.. 21 Jean Henry D’Anglebert D’Anglebert está entre os grandes compositores franceses e traz em sua obra a elegância e bom gosto característicos da música francesa, mas suas composições sobrepõem-se a tudo isso, pela profundidade, força expressiva e riqueza de escrita 41 . D’Anglebert compôs seus prelúdios em semibreves, mas, para a publicação em 1689, mudou a notação original para a notação mista, talvez com o intuito de auxiliar o intérprete a uma melhor compreensão de sua obra nesse domínio. Na verdade, o uso da notação mista se tornara uma tendência da época, pois, com a possibilidade de impressão e ampla divulgação das obras, uma notação aparentemente primitiva como a notação em semibreves poderia parecer complexa ao intérprete. No entanto, podemos considerar que se D’Anglebert não tivesse usado uma notação tão detalhada para seus prelúdios e tivéssemos que tocá-los em suas versões originais, suas idéias musicais, ou seja, suas intenções na arte da composição continuariam a ser compreendidas pelo executante, pois sua música é elaborada com clareza. Willi Apel era um incansável defensor do talento de D’Anglebert, comenta Howard Schott 42 . Apel fez uma apreciação sobre o compositor, classificando-o como o mais extraordinário dentre os alunos de Chambonnières, aquele que representava o mais alto nível na música francesa. Em seu livro History of keyboard music to 1700, Apel ainda comenta que com D’Anglebert “(...) a música para teclado alcança o seu ápice em relação à plenitude e magnificência do barroco (...)” 43 . Apel prossegue, especificando as diversas habilidades de D’Anglebert como, por exemplo, no desenvolvimento da melodia, nos encadeamentos harmônicos e na ornamentação. 41 GILBERT, Kenneth. Prefácio à edição de Pièces de clavecin de Jean Henry D’Anglebert. Paris, France: Heugel, 1975. p. V. 42 SCHOTT, Howard. Pièces de clavecin: Jean Henry D’Anglebert. Early Music, Oxford, England, v. IV, April, 1976. p. 213. 43 SCHOTT, 1976, p. 213. 22 No seu livro de 1689, encontramos três prelúdios: em sol maior, sol menor e ré menor, todos precedendo danças agrupadas numa mesma tonalidade, como suítes. D’Anglebert incluiu ainda transcrições tiradas de óperas de Lully às suas suítes. O quarto prelúdio de D’Anglebert em dó maior só foi encontrado em um manuscrito autógrafo com notação em semibreves. Segundo Kenneth Gilbert, pesquisas sobre o documento determinaram que a obra era, de fato, um manuscrito autógrafo de D’Anglebert, o único que se encontrou de um cravista francês. O manuscrito contém 48 peças, sendo 20 de autoria do compositor 44 , incluindo o referido prelúdio. D’Anglebert é conhecido e respeitado também pela sua tabela de ornamentos, que contém muitos sinais e é extremamente rica e detalhada. A publicação do seu livro de Pièces de clavecin em 1689 é um exemplo da elegante tipografia da época e parece ter sido amplamente distribuído, comenta Howard Schott, com um razoável número de cópias. Acredita-se que J. S. Bach tenha tido acesso ao livro, porque a tabela de ornamentos que colocou no Klavierbüchlein für Wilhelm Friedmann Bach parece ser advinda da tabela de sinais de D’Anglebert 45 . 44 45 GILBERT, 1975, p. V. SCHOTT, 1976, p. 213. CAPÍTULO II COMPREENSÃO DA NOTAÇÃO NON MESURÉE 24 CAPÍTULO II COMPREENSÃO DA NOTAÇÃO NON MESURÉE A notação dos prelúdios non mesurés se apresenta de duas maneiras: a notação em semibreves (figura 1), que foi usada por Louis Couperin, D’Anglebert, Léroux e posteriormente por Dandrieu, e a notação mista ou semi mesurée, usada por praticamente todos os outros compositores que se dedicaram a esse gênero. A notação mista visava tornar mais clara a idéia do compositor, que passaria a fazer uso de diferentes valores musicais além da semibreve, como semínimas, colcheias, semicolcheias e, mesmo, como na obra de alguns, notas pontuadas. Este tipo de notação se apresenta de diferentes formas, variando bastante de um compositor para outro, mas a notação usual para os acordes era em semibreves (figura 2). Figura 1 - Notação em semibreves, Prelúdio 12 em Fá M, Louis Couperin, in TILNEY (1991), p. 38 Figura 2 - Notação mista, Prelúdio em Rém, Jacquet de la Guerre, op. cit., p. 52 A notação dos prelúdios non mesurés na música francesa para cravo os torna tão enigmáticos quanto fascinantes, comenta Richard Troeger 46 , que expõe as diferenças entre as notações e a função da ligadura 47 , mostrando o quanto uma nota deve ser sustentada enquanto a música prossegue. O autor observa que, apesar das diferenças 46 47 TROEGER, Richard. Metre in unmeasured preludes, Early Music 3/ XI (1983), S.340-345 Liaison, tenue, linhas. 25 superficiais na maneira particular de cada compositor, o estudo da notação se centra no contraste entre as diversas possibilidades rítmicas e a lógica e consistência desse sistema. Poderíamos refletir sobre essa colocação, partindo do princípio de que, se as notas estão escritas na ordem em que devem ser tocadas, assim como os arpejos, que na maior parte das vezes são totalmente escritos, e os ornamentos, que tanto podem ser grafados como também escritos com todas as notas, a grande criação do intérprete está, de fato, no ritmo, que pode mudar totalmente o fraseado da música. Davitt Moroney 48 analisa os estudos sobre esta notação nos prelúdios de Louis Couperin e conclui que ela é, na verdade, muito menos vaga do que parece, pois seu sistema é preciso e contém todas as indicações necessárias para uma interpretação. Moroney considera que a notação livre ajuda o intérprete, que, através dessa prática, se liberta do rigor ou da imposição rítmica da notação convencional. David Ledbetter também expressa uma opinião semelhante à de Moroney, mas seu estudo é direcionado principalmente para o alaúde e sua influência em diversos aspectos da música para cravo, tais como forma de arpejar, ornamentos e a consciência da ressonância de seu instrumento logo após o acorde inicial. (...) A notação aparentemente livre destes prelúdios é, na verdade, uma indicação mais precisa para o executante do que a notação mais convencional, já que, como acontece nos prelúdios non mesurés para alaúde, ela mostra precisamente o número de notas num acorde e as adições de dissonâncias, quer sejam acciacaturas, port de voix ou notas de passagem. 49 48 MORONEY, Davitt. Prefácio à nova revisão de Pièces de clavecin de Louis Couperin. Mônaco: L’Oiseau-Lyre, 1985, p. 26. 49 LEDBETTER, D.. Aspects of 17c French lute style reflected in works of the 'clavecinistes'. The Lute, Guildford, England. v. XXII, part 2. 1982. p. 55-67. Tradução nossa. 26 A maneira de se tocar esses prelúdios sempre levanta dúvidas e demanda do intérprete um conhecimento dos aspectos mais importantes, pois quase não encontramos fontes de época que indiquem como deveriam ser tocados. Lebègue parece ter sido o único no séc. XVII a deixar instruções de como interpretar seus prelúdios ao cravo, como já foi comentado no capítulo I; mas, ao que nos parece, sua maior preocupação era a de explicar sua nova notação, a notação mista ou semi mesurée. Podemos observar que as mudanças propostas por Lebègue foram mais visíveis do que as de seus sucessores, que notavam os acordes quase sempre em semibreves e faziam uso de menor variedade de valores musicais por prelúdios. De uma maneira geral os acordes nos prelúdios de Lebègue são notados em semínimas, mas podemos encontrar acordes notados também em mínimas, semibreves e às vezes até em colcheias. Percebemos também o uso de notas pontuadas tanto para sugerir o ritmo como também para prolongar valores ao invés da utilização das habituais ligaduras. Figura 3 - Prelúdio 3, Lebègue, op. cit., p. 49 A obra de D’Anglebert pode ser considerada de suma importância para elucidar e exemplificar a transição da notação em semibreves para a notação mista, pois têm-se as duas versões em fontes autógrafas para estudo. Não conhecemos outro compositor deste período que tenha deixado seus prelúdios notados em semibreves e transformados posteriormente para a notação mista. Sendo assim, através da partitura de D'Anglebert notada em semibreves, pode-se comparar e compreender os métodos que utilizou ao transformá-la para a notação mista. 27 Supõe-se que D'Anglebert talvez tenha transformado seus prelúdios para a notação mista devido ao sucesso de seus predecessores, Lebègue e Jacquet de la Guerre. Ambos publicaram seus livros antes de D'Anglebert e utilizaram a notação mista em seus prelúdios. O fato de os prelúdios de D'Anglebert terem sido criados com a notação em semibreves e transformados para serem editados (figuras 4 e 5), fez com que a estrutura da notação original continuasse presente. Algumas passagens conservam o texto original, enquanto outras sofrem mudanças mais profundas 50 . Ao observarmos a notação mista dos prelúdios de D'Anglebert, constatamos que o compositor só utilizou semibreves e colcheias. As raras semicolcheias que aparecem fazem parte da ornamentação. Figura 4 - Notação em semibreves, D’Anglebert, Prelúdio em Sol M, op. cit., p. 62 Figura 5 - Notação mista, D’Anglebert, Prelúdio em Sol M, op. cit., p. 63 Segundo Kenneth Gilbert, as notas que constituem o acorde são escritas em semibreves; as notas de passagem e as da melodia, em colcheias, o que torna esses 50 PRÉVOST,1987 p.113. 28 prelúdios mais fáceis de serem compreendidos à primeira vista do que os de Louis Couperin 51 . Podemos observar, no entanto, que, apesar de os acordes serem notados normalmente em semibreves, encontramos muitas vezes acordes notados em colcheias, como se vê nas figuras 6 e 7. Figura 6 - Prelúdio em Ré m, D’Anglebert, op. cit., p. 71 Figura 7 - Prelúdio em Sol m, D’Anglebert, op. cit., p. 67 Prévost também explica a notação de D'Anglebert, reafirmando que as colcheias dão vida ao texto musical e os arpejos, ornamentados ou não, são notados normalmente em semibreves; mas, por outro lado, Prévost mostra exemplos de arpejos notados em colcheias ao invés de semibreves. Para esse fato, o autor argumenta que tal diferenciação nos valores musicais se daria pela vontade do compositor de estabelecer uma relação das durações. Prévost ressalta, porém, que a flexibilidade natural deste tipo de prelúdio dispensa toda relação matemática entre os valores 52 . Esse assunto é comentado também por Howard Ferguson 53 , que demonstra que quando as notas de valor menor do que a semibreve aparecem, compreende-se que essas notas não devem 51 GILBERT, 1975 p. II. PRÉVOST, 1987 p.134. 53 FERGUSON, Howard. La interpretación de los instrumentos de teclado Del siglo XIV al XIX (Oxford University Press, 1975). Ed. cast.: Madrid: Alianza Editorial, S.A.. 2003. p.36. 52 29 ser tomadas rigorosamente na relação de valores entre elas, nem em relação às semibreves. Davitt Moroney também se refere à notação mista com enfoque na obra de D'Anglebert, reforçando o que já foi dito antes, que a notação básica nos prelúdios deste compositor é representada pela semibreve, mas fragmentos melódicos e notas de passagem costumam ser notados em colcheias. Sobre o uso de colcheias para alguns arpejos, Moroney interpreta de maneira interessante, considerando que tal notação sugere que o arpejo não deva ser tocado tão rápido, mas, sim, melodicamente. A notação mista, com exceção da utilizada por Nicolas Lebègue, não é mais métrica do que a notação em semibreve usada por Louis Couperin ou D'Anglebert em seus prelúdios manuscritos 54 . Nos prelúdios de Jacquet de la Guerre, acordes notados em colcheias só aparecem uma vez e, ao que tudo indica, sugerem a maneira de arpejar (figura 8). Figura 8 - Prelúdio em Lá m, Jacquet de la Guerre, op. cit., p. 57 Jacquet concebeu seus prelúdios pouco antes de D'Anglebert e observa-se que, como nos prelúdios deste compositor, as semibreves representam a estrutura harmônica, e as semínimas mostram os sons melódicos e não harmônicos 55 . Ao contrário de D'Anglebert, Jacquet de La Guerre utiliza diferentes valores em cada prelúdio, mantendo porém a semibreve para os acordes. Quanto à melodia ou passagens, elas podem ser representadas por colcheias, como no prelúdio em ré menor, ou 54 MORONEY, Davitt, The performance of unmeasured harpsichord preludes. Early Music, Oxford, England. v. IV, p. 143-151, Abril, 1976. p.150. 55 CESSAC, 1995, p. 49. 30 semicolcheias, como no prelúdio em lá menor. Em muitos momentos encontramos acordes que formam um arpejo figuré utilizando semínimas para representar notas de passagem. O prelúdio em Sol menor (figura 9), por exemplo, se compõe de uma seqüência de acordes notados em semibreves com ornamentações e notas de passagem escritas em semínimas. Figura 9 - Prelúdio em Sol m, Jacquet de la Guerre, op. cit., p. 54 2.1- Ornamentos Quanto à ornamentação, o uso de sinais aumentou à medida que o prelúdio non mesuré foi se expandindo pela França. Louis Couperin, como já foi mencionado, fez pouco uso de sinais para ornamentação. Encontramos o sinal do pincé 56 na maioria de seus prelúdios embora Couperin não o tenha utilizado constantemente. O sinal do tremblement 57 aparece com freqüência, mas uma particularidade desta música é justamente o fato de as notas serem todas escritas por extenso, ora sugerindo um tremblement (figura 10), ora um port de voix, uma cadence 58 ou mesmo uma cheute sur une note (figura 11) ou sur deux notes (figura 12). Nas composições de Louis Couperin, por exemplo, todos os port de voix 59 são escritos com as semibreves (figura 12). 56 Pincé (mordente) Tremblement - trillo 58 Cadence- Grupeto 59 Port de voix - Appoggiatura 57 31 Figura 10 – Tremblements nas duas mãos. Prelúdio 1 em Ré m, Louis Couperin, in Tilney, op. cit., p. 2 Figura 11 - Cheute sur une note. Prelúdio 2 em Ré M, Louis Couperin, op. cit., p. 10 Figura 12 – Cheute sur deux notes e Port de voix, Prelúdio 4 em Sol m, Louis Couperin, op. cit., p. 9 A música de Louis Couperin apresenta grandes dificuldades no aspecto da ornamentação. No manuscrito de Parville (ver Capítulo I) encontra-se uma maior incidência de ornamentos do que no manuscrito de Bauyn, mas tudo indica que não devam ter sido escritos por Couperin 60 . Em grande parte das fontes de música francesa impressa na época para teclado, a ornamentação é completa e escrita com muito cuidado, comenta Howard Ferguson, e o intérprete não precisa acrescentar novos ornamentos; mas em obras manuscritas, que não haviam sido preparadas para a impressão, como o manuscrito de Bauyn, faz-se necessária uma ornamentação adicional 61 . 60 61 MORONEY, 1985. p. 32. FERGUSON, Howard, 2003. p.150. 32 É sabido que as obras mais antigas das quais se tem conhecimento, seja para canto ou instrumento, eram naturalmente ornamentadas pelo intérprete. Segundo Robert Donington, a antiga tradição da livre ornamentação, na Renascença, fez com que a música barroca, além da herança de tal prática, desenvolvesse pequenos ornamentos específicos 62 . Moroney realizou um estudo profundo da obra de Louis Couperin encontrada no manuscrito de Bauyn e percebeu a ornamentação usada pelo compositor através de seus prelúdios. Observou todos os ornamentos representados por notas musicais nos prelúdios e buscou nas tabelas de ornamentos de D’Anglebert e Chambonnières o sinal gráfico correspondente. Sendo assim, o autor criou no seu prefácio uma tabela de ornamentos com exemplos (Figura 13) de trechos dos prelúdios de Couperin e, ao lado, o sinal da tabela de seus contemporâneos, D’Anglebert e Chambonnières 63 . O trabalho de Moroney é sempre comentado e elogiado. Ele foi o primeiro editor a analisar profundamente o problema da notação dos prelúdios non mesurés. A edição dessa obra, que é uma revisão da antiga edição Brunold-Dart, vai muito além disso. Como os dois manuscritos, Bauyn e Parville, não são autógrafos, fica difícil saber, por exemplo, onde começa ou termina uma determinada ligadura. O enfoque de Moroney é direcionado à interpretação, e Ledbetter, em seu artigo, aconselha intérpretes que queiram consultar diretamente o manuscrito de Bauyn a lerem antes o prefácio de Moroney. A enorme variedade de ornamentos encontrados nos prelúdios só aparecem inteiramente notados por D'Anglebert em 1689. 64 62 DONINGTON, Robert. Baroque Music. Style and Performance. A Handbook. London, England: Faber Music Ltd, 1982. p. 91. 63 MORONEY, 1985. p. 32. 64 LEDBETTER , David. French Harpsichord. The Musical Times, East Sussex, England. v. 127, p. 156, mar 1986. n° 1717. p.156. 33 Figura 13 - Alguns exemplos da tabela feita por Moroney (1985) Colin Tilney comenta seu trabalho, detalhando que Moroney identificou 17 tipos de ornamentos em sua “preciosa lista”: quatro tipos de tremblement, 3 tipos de coulé 65 , diversos port de voix e muitas formas de arpejos. 66 Também Prévost faz um estudo aprofundado de análise dos ornamentos. A notação não abreviada possibilita a variação do número de batimentos (battements) dos ornamentos. O mais curto só possui dois batimentos, mas encontram-se com freqüência três, quatro ou cinco. O autor cita ainda muitos outros ornamentos e chama a atenção para a presença de um desconhecido das tabelas de ornamentos de seus contemporâneos, que propõe a repetição de uma nota e é normalmente reservado à música vocal, aos instrumentos de arco e sopro 67 (Figura 14). 65 Coulé (fr), acciaccatura doppia (it), slide (ing), schleifer (ger) (BRACCINI, Roberto. Praktisches Wörterbuch der Musik; Serie Musik Atlantis - Schott. Mainz, Germany: Atlantis Musikbuch-Verlag, 2005 (1992). p.120-121) 66 TILNEY, 1991, p. 6 67 PRÉVOST, 1987 p 182, 183 34 Figura 14 – Prelúdio 2 em Ré M, Louis Couperin, op. cit., p. 8 Outro ornamento muito utilizado por Louis Couperin é o coulé sur deux notes de suite, descrito na tabela de ornamentos de D’Anglebert e exemplificado na tabela de Moroney. No prelúdio em mi menor, Couperin utiliza este ornamento com imitações (figura 15). Figura 15 – Coulé sur deux notes de suíte, Prelúdio 14 em Mi m, Louis Couperin, in Tilney, op. cit., p. 43 Nos prelúdios de D'Anglebert podemos observar que, na versão em semibreves, os ornamentos grafados em sinais são os mesmos de Louis Couperin, ou seja: Pincé e tremblement. O sinal utilizado por D’Anglebert para o pincé (figura 16) é diferente do sinal utilizado por Couperin (figura 17), mas essa diferença na maneira de grafar existe entre os compositores franceses embora o resultado musical seja o mesmo. Por esse motivo, alguns deixaram tabelas de ornamentos para ajudar o intérprete e também para evitar uma deturpação de sua música, como explicou Chambonnières em seu pequeno prefácio. 35 Figura 16 - Pincé, Prelúdio 3 em Sol m, D’Anglebert, op. cit., p. 65 Figura 17 - Pincé, Prelúdio 13 em Fá M, Louis Couperin, id. ibid., p. 40 D’Anglebert, em seus prelúdios, usa mais sinais para os ornamentos do que Couperin, mas conserva muitos ainda por extenso, não atingindo assim o mesmo número de ornamentos representados por sinais encontrados em suas peças non mesurées. Quanto à ornamentação na versão mista de seus prelúdios, observamos que algumas cadences (Figura 18) são grafadas com sinais, enquanto que na versão em semibreves o ornamento correspondente é apenas um tremblement com terminação. (Figura 19) Observamos então que, por alguns momentos, as duas versões divergem quanto à ornamentação. Figura 18 - Versão mista, Prelúdio em Sol M, D’Anglebert, op. cit., p. 63 Figura 19 - Versão em semibreves, Prelúdio em Sol M, D’Anglebert, op. cit., p. 62 36 Diferentemente de D'Anglebert, Jacquet de La Guerre não emprega as pequenas notas para marcar coulés e port de voix no seu livro de 1687. A compositora utiliza preferencialmente o sinal + para os port de voix 68 embora não tenha deixado tabela de ornamentos. Encontramos também alguns port de voix escritos com notas. Figura 20 - Port de voix com sinais e com notas, Prelúdio em Sol m, Jacquet de la Guerre, op. cit., p. 54 Para concluir esse assunto, julgamos interessante ressaltar que os aspectos abordados, assim como os que ainda serão discutidos neste capítulo, são na verdade interligados. A proposta de explorá-los separadamente visa a uma organização em tópicos, mas as ligaduras, por exemplo, envolvem os ornamentos e a harmonia, os acordes também implicam arpejos com notas de passagem que podem ser classificadas como ornamentação. Os ornamentos muitas vezes compõem a melodia, e há momentos em que as passagens se confundem com ela. Portanto, na análise de todos esses aspectos agrupados em tópicos, é de se esperar que eles reapareçam no decorrer das explicações. 2.2) Notas melódicas e passagens: Um prelúdio é composto por vários acordes e a maneira de arpejá-los é detalhada pela própria notação. As notas que compõem os acordes são, muitas vezes, acrescidas 68 SAINT-ARROMAN, Jean. Agrémentation dans l'oeuvre D'Elisabeth Jacquet de La Guerre, Facs., Courlay, France: Éditions Fuzeau, 1997. 37 de outras, chamadas de notas de passagem ou notas estranhas 69 . Essas notas, que também podem ser chamadas de ornamentais, são muito freqüentes e, ao observarmos a tabela de ornamentos de D'Anglebert, por exemplo, encontraremos os sinais gráficos correspondentes a essas notas, tais como: cheute sur une note, cheute sur deux notes e coulé sur une tierce 70 , que, nos prelúdios, aparecem sob a forma de appogiatura ou nota de passagem. No séc. XVII os sinais de ornamentos utilizados nos prelúdios non mesurés se restringiam ao tremblement, pincé, port de voix e cadence, e os outros mais rebuscados eram escritos com todas as notas. As notas ornamentais são notas estranhas à harmonia e podem ser denominadas tradicionalmente como: appogiaturas, notas de passagem, broderies, echappées e antecipações, como já descrito neste item. Esta ornamentação pode ser representada por sinais ou escrita por extenso. Por isso, num primeiro momento não é fácil perceber a diferença entre ornamento e nota estranha, pois um ornamento escrito com notas, ou seja, sem a utilização de sinais, pode estar enquadrado nas duas categorias 71 . Outro aspecto abordado nas análises melódicas dos prelúdios non mesurés é o recitativo. Reportando-nos à reflexão de Moroney sobre as palavras de François Couperin em um trecho de seu tratado, L'Art de toucher le clavecin, 72 já demonstrado no capítulo I, o prelúdio non mesuré poderia ser comparado à prosa e a música métrica à poesia. A prosa, ao contrário da poesia, não possui métrica, é irregular e se aproxima da linguagem falada 73 . Tal interpretação é de grande importância para a compreensão dos prelúdios non mesurés, pois em muitos casos passamos por momentos essencialmente 69 Notas estranhas: (...) Entre os tipos mais comuns encontram-se a nota de passagem, a antecipação, a nota auxiliar, a echappée, a nota cambiata e a appogiatura (...)DICIONÁRIO GROVE DE MÚSICA: edição concisa/editado por Stanley Sadie, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1994. 70 MORONEY, 1985. p. 26. 71 PRÉVOST. p. 169. 72 (...) Ainsi, on peut hazarder de dire, que dans beaucoup des choses, la Musique (par comparaison à la Poésie) a sa prose et ses vers. Couperin, François, 1717 op. cit., p. 60. 73 MORONEY, 1985. p. 27. 38 harmônicos em que o próprio ato de arpejar já nos fornece a melodia (figuras 21). Existem outros que se aproximam da linguagem falada, da prosa, utilizando inflexões vocais, recursos próprios dos recitativos e o afeto, ou seja, o sentimento, a expressão. Figura 21 - Melodia em arpejos, Prelúdio em Dó M, L. Couperin, op. cit., p. 34 As inflexões vocais involuntárias que representam as emoções que movem um cantor ou um orador são vestígios das comunicações instintivas anteriores à linguagem e seus efeitos são tão marcantes que era natural que seu uso fosse cultivado por músicos de todos os tempos, fazendo nascer a ornamentação musical que, mesmo sendo praticada em diferentes instrumentos, tem a voz como ponto comum de origem 74 . Alguns ornamentos, como o port de voix, tão freqüentes nos prelúdios non mesurés, ajudam a fortalecer a emoção, o afeto do momento. Nos prelúdios de L.Couperin encontra-se uma melodia ornamentada, de natureza harmônica e irregular, que em muito se aproxima do estilo recitativo. Diferentemente do recitativo vocal, a melodia pode mover-se para o baixo enquanto a harmonia move-se para a mão direita (Figura 22). 75 Figura 22 - Prelúdio 7, L. Couperin, op. cit., p. 20 74 GEOFFROY, Dechaume. Les secrets de la musique anciènne. Recherches sur l'interpretation XVI,XVII, XVIII siècles. Lorient, France: Fasquelle Éditeurs 1964. p. 59. 75 PRÉVOST, p. 159. 39 Para Colin Tilney o recitativo é “(...) a contraparte vocal do prelúdio non mesuré, pois modula livremente e utiliza ritmos falados para se expressar (...)” 76 . O autor se reporta a Frescobaldi, que em seus avvertimenti comparou seu estilo de toccata, novo na época, aos modernos madrigais de Monteverdi, em que a pulsação, dependendo do afeto da música ou até mesmo o significado das palavras, poderia mover-se lentamente num momento, rapidamente em outro ou até ficar suspenso no ar. Primeiramente, este modo de tocar não deve estar submetido a uma rigidez de compasso; como observa-se na prática dos madrigais modernos (séc. XVII), que apesar de difíceis, tornam-se fáceis com o compasso conduzido ora languidamente, ora rapidamente e mesmo suspenso no ar segundo expressão ou sentido das palavras. 77 Tilney esclarece que essas diferenças de tempo determinam as passaggi 78 e affetti 79 de Frescobaldi. Tais mudanças de tempo se encontram também nos prelúdios de Louis Couperin. Tilney cita alguns exemplos de momentos na música de Louis Couperin que poderiam ser interpretados como passaggi e outros como affetti. Ao observarmos os prelúdios delimitando as passagens e afetos, constatamos que esse fenômeno reaparece em vários prelúdios apesar de serem mais freqüentes na obra de Louis Couperin (Figuras 23 e 24). Figura 23 - Affetti, Prelúdio 3 em Sol m, L. Couperin, op. cit., p. 12 76 TILNEY, p. 7. Frescobaldi avvertimenti I in DARBELLAY, Etiènne. Liberté, variété, et "affetti cantabili" chez Girolamo Frescobaldi. Revue de Musicologie, Paris, France. T. LXI, p. 197-243, 1975, n° 2. p. 201. 78 Passaggio (it), passage (ing), passage/ trait (fr), (BRACCINI, Roberto, Praktisches Wörterbuch der Musik; Serie Musik Atlantis-Schott. Mainz: Atlantis Musikbuch-Verlag,2005. p.188, 189). 79 Affetti (it): “expression” (fr) DARBELLAY, 1975. p. 201. 77 40 Figura 24 - Affetti, Prelúdio 13 em Fá M, L. Couperin, op. cit., p. 40 As passagens, de uma maneira geral, parecem indicar um tempo mais rápido e na notação mista são normalmente escritas em colcheias ou semicolcheias, como por exemplo no prelúdio em lá menor de Jacquet de la Guerre. O prelúdio em ré menor de D'Anglebert, por exemplo, possui mais passagens que o prelúdio em sol menor e podemos observar que elas, muitas vezes, não têm ligaduras. O mesmo pode ser constatado nos prelúdios de Louis Couperin, que nota suas passagens em geral sem ligaduras. As passagens no prelúdio non mesuré em muito se assemelham às que encontramos nas toccatas em estilo italiano, principalmente as de Froberger, nas seções mais livres, podendo também, sugerir uma aceleração (Figuras 25 e 26). Figura 25 – Passagem, Toccata em Ré m, Froberger, ed. Barenreiter, vol. I, p. 6 Figura 26 – Prelúdio 3 em Sol m, passagem in Tilney, op. cit., p. 13 41 A chamada passagem ornamental 80 é normalmente utilizada para representar, retratar seções floreadas e, em geral, tem enfoque no brilhantismo e nas habilidades do executante. Encontra-se principalmente nas peças para teclado e seu conteúdo, do ponto de vista motívico, não é significativo. Pode também ser chamada de passaggio. Para Rousseau, o termo passage é um “ornamento que porta um trait de canto (...), composto de várias notas ou diminuições que se cantam ou se tocam très légèrement”. No mesmo dicionário, afirma-se que légèrement indica um movimento rápido, intermediário entre o gai e o vîte 81 . Em relação aos prelúdios non mesurés podemos imaginar que as passagens ornamentadas devem ser tocadas légèrement, mas com menor enfoque no virtuosismo do que, por exemplo, nas toccatas italianas. Sua interpretação seria, talvez, uma fusão do movimento rápido com a leveza. Tal imagem parece-nos importante para a execução das passaggi (passagens) nos prelúdios non mesurés. Elas devem guardar a vitesse (velocidade) e a souplesse (flexibilidade) ao mesmo tempo, pois a interpretação de um prelúdio non mesuré não visa à destreza das mãos e sim à valorização das harmonias que se sucedem e o affetti cantabili (expressão cantante) tão característicos desta música. É importante evitar que as idéias musicais se misturem a ponto de causar incompreensão, portanto supõe-se que as passagens, mesmo que tocadas rapidamente, devem manter-se na mesma atmosfera do prelúdio. As passagens ornamentais, chamadas de trait por Prévost 82 , são normalmente fragmentos de uma escala ou até uma escala inteira e podem às vezes unir duas harmonias diferentes. Há momentos também em que certas passagens interrompem sua seqüência e retrocedem algumas notas, para prosseguirem em seguida (Figura 27). 80 O termo passagem ornamental corresponde à: passage work (ing), passagenwerk (al), pasaggio (it); Grove, 1994. 81 ROUSSEAU, 1764, passage e Légèrement. Tradução nossa. 82 PRÉVOST, p. 171. 42 Evidenciamos também passagens que começam no agudo e vão para o grave, passando para a outra mão, atingindo quase três oitavas de extensão (Figura 28). Figura 27 – Prelúdio 16 em Sol M, L. Couperin, id. ibid., p. 45 Figura 28 – Prelúdio 9 em Dó M, L. Couperin, id. ibid., p. 31 Observamos a presença de desenhos melódicos que se imitam numa seqüência, em diferentes posições, com maior ou menor número de notas. Tal fenômeno aparece com freqüência, principalmente na obra de Louis Couperin (Figuras 29 e 30). Estes desenhos melódicos serão chamados de “motivos” nesta dissertação. Figura 29 – Prelúdio 14 em Mi m, L. Couperin, id. ibid., p. 43 43 Figura 30 – Prelúdio 10 em Dó M, L. Couperin, id. Ibid., p. 34 2.3) Ligaduras A função da ligadura 83 é a de mostrar ao executante como "...construir uma harmonia antes de mudar para a próxima, isto é, que notas ligar e por quanto tempo."84 Poderíamos dizer que as ligaduras seriam a linguagem harmônica do prelúdio non mesuré. Não há uma uniformidade quanto aos termos empregados, não só na época, mas também atualmente. As duas mais importantes fontes francesas que tratam das ligaduras na obra para cravo do século XVII são o tratado de St Lambert e uma carta de Lebègue, já comentada no capítulo anterior. Saint Lambert, após descrever cuidadosamente a função de uma tenue, em seu tratado (1702), procede da mesma forma em relação à liaison. O autor distingue a tenue da liaison, pois a primeira seria uma ligadura para notas de uma mesma altura, ou seja, notas iguais que não deveriam ser tocadas novamente. Para Saint Lambert “(…) as notas contidas numa tenue nunca se encontram sobre graus diferentes (...). Depois de ter tocado a primeira dessas notas encadeadas, não se deve levantar novamente o dedo para 83 O termo ligadura ( legatura (it.), tie (ing.) e liaison ( fr), em português contempla tanto a ligadura de duração quanto a de fraseado e articulação. Em outras línguas, ao contrário, encontra-se uma diferenciação: legature di valore (it.); tie (ing.) e signe de tenue ( fr) ; Legature de fraseggio ( it.); Phrase mark ( ing.) e Signe de liaison du phrasé (fr.) (BRACCINI, Roberto, Praktisches Wörterbuch der Musik; Serie Musik Atlantis-Schott. Mainz: Atlantis Musikbuch-Verlag,2005. p.132-133) 84 TILNEY, 1991, p. 5. 44 tocar as outras, mas sustentar a primeira delas até que o tempo correspondente às outras se expire” 85 . Quanto à liaison, Saint Lambert explica e coloca como regra geral que todas as notas contidas numa liaison devem ser tocadas e sustentadas até que termine a ligadura. O autor esclarece também as situações em que as liaisons funcionam diferentemente como, por exemplo, quando notas mais longas lideram e finalizam a liaison, tendo, entre elas, notas mais curtas. Neste caso, a indicação é de se ligarem a primeira e a última e se desligarem as mais curtas. Quando as notas estão em graus conjuntos devem-se ligar somente a primeira e a última, e quando as notas contidas numa liaison se seguem por graus disjuntos, deve-se seguir a mesma regra, observando-se, porém, a posição da linha. Saint Lambert mostra dois exemplos: o primeiro exemplo é de uma liaison colocada abaixo das notas, o que implicaria desligar as notas do meio; e no segundo exemplo a liaison é colocada em cima das notas, o que indicaria que todas as notas seriam ligadas 86 . O autor ainda explica que a liaison é usada especialmente nos prelúdios, e no final do seu Tratado, no capítulo Remarques, comenta que se faz pouco uso da liaison, deixando-a mais reservada para os prelúdios. No seu ponto de vista, a liaison deveria ser usada, em todas as peças, “... nos lugares onde as partes entram uma após a outra” 87 . Figura 31 – St Lambert, 1702, p. 14 85 SAINT-LAMBERT, Michel de. LES PRINCIPES DU CLAVECIN Contenant une Explication exacte de tout ce qui concerne la Tablature & le Clavier. Paris, France: Christophe Ballard, 1702. facs., Courlay, France: Éd. Fuzeau, 2003 (collection Méthodes et Traités 12, v.1). De la tenue. p. 12, Tradução nossa. 86 ST LAMBERT. p. 13 e 14. 87 ST LAMBERT, Remarques, p. 61, 62. 45 Ao observarmos os diferentes prelúdios escritos para cravo, a posição das ligaduras em grande parte das vezes não se enquadra às especificações propostas por Saint Lambert na maior parte da literatura. Muitas ligaduras colocadas abaixo das notas em graus disjuntos parecem indicar que as notas devam ser ligadas, e não desligadas como demonstrou St Lambert. Quanto às recomendações de Lebègue no que diz respeito às ligaduras, sabemos que a única fonte de que se tem conhecimento é uma carta do compositor dirigida a um cravista inglês que parecia não compreender a notação mista dos prelúdios de Lebègue, de seu livro impresso em 1677. O segundo e terceiro itens dessa carta, enumerados pelo próprio compositor, são dedicados às ligaduras e suas diferentes funções nestas peças. Lebègue se refere primeiramente às ligaduras utilizando o termo petit cercle e recomendando que as notas contidas ali fossem prolongadas para conservar a harmonia. No item seguinte o compositor se refere a um grande acorde com tenues ou cercles e sua recomendação é de sustentar o acorde enquanto a outra parte passeia 88 . Ao usar o termo tenue, Lebègue parece se referir ao sentido moderno da palavra, em que notas iguais, ligadas, não devem ser repetidas. Nos prelúdios non mesurés de outros autores do período abordado, no entanto, as tenues encontradas em notas iguais, de mesma altura, são em geral repetidas 89 , mesmo que não encontremos na França fontes de teclado da época que afirmem isto. Através do conteúdo musical fica evidente a necessidade do som repetido de uma determinada nota ligada. Nos prelúdios de Lebègue, no entanto, as ligaduras em notas iguais sugerem, na maior parte das vezes, que elas devam ser ligadas e não repetidas. Sua notação parece se aproximar bastante da notação moderna, embora não possua compassos. 88 89 PRÉVOST, 1987, p. 120. FERGUSON, 2003, p. 38 e MORONEY, 1985, p. 29. 46 Não há um consenso quanto à terminologia nas fontes da época, e também os estudos mais representativos do assunto usam termos diferentes entre si. Davitt Moroney sustenta que a tenue, no sentido hoje adotado, é uma linha curva que reúne duas notas de mesma altura, e, como mencionado acima, a segunda nota não deve ser tocada. O autor explica que a tenue com essa função “... não tem lugar em uma música non mesurée (…)”. Assim, as ligaduras que aparecem nos prelúdios de Louis Couperin não são tenues, no sentido moderno do termo. 90 Moroney parece ter optado pelo termo tenue porque as ligaduras na música de Louis Couperin são geralmente individuais, ou seja, uma tenue para cada nota do acorde. O autor justifica que tais curvas, por outro lado, não podem ser chamadas de liaison, no caso de L. Couperin, porque em geral são relativas a uma só nota. No seu artigo The performance of unmeasured harpsichord preludes, anterior à citada Introdução, Moroney descreve os prelúdios non mesurés de diversos compositores e, quanto ao uso de ligaduras, às quais chama aqui simplesmente de slurs, considera que são um importante elemento para a compreensão das peças non mesurées. Para ele, as ligaduras na notação em semibreves são usadas para indicar as notas que devem ser sustentadas. Em geral, as notas contidas nesta ligadura formam um acorde, e não uma linha melódica. Qualquer nota que caia entre os acordes pode ser considerada como nota de passagem. As ligaduras também são usadas para indicar um ornamento ou uma melodia, ou até para “...isolar notas daquilo que as precede e daquilo que as segue” 91 . Colin Tilney salienta que Moroney, em seu estudo sobre Louis Couperin, usou o termo tenue para explicar o fenômeno das ligaduras, enquanto que Paul Prévost preferiu empregar a palavra liaison, talvez porque Saint Lambert comente em seu tratado que a liaison é especialmente utilizada nos prelúdios. Tilney optou pela palavra linha (line), 90 91 MORONEY, 1985, p. 29, tradução nossa. MORONEY, 1976, p. 147, tradução nossa. 47 que pode servir para tenue assim como para liaison. Como esses termos têm significados diferentes, Tilney determinou que quando uma "linha" tiver a função de uma tenue será chamada de “simples” ou “de uma nota”, e quando tiver a função de liaison será considerada como tendo “múltiplas notas” ou “complexa” 92 . "Simples" seria a ligadura individual e significa que a nota a ela ligada deve ser sustentada até o final da ligadura. As ligaduras com função de liaison, segundo Tilney, ocorrem quando a nota possui os dois lados ligados e "implicam em que todas as notas harmonicamente relevantes sejam sustentadas até que a nota final seja tocada" 93 . Encontramos essas ligaduras, as quais podemos chamar de "múltiplas", na obra de Louis Couperin (figura 32), mas são menos freqüentes do que as ligaduras individuais que aparecem com grande regularidade na maioria dos acordes. Figura 32 – Ligaduras múltiplas, Prelúdio 1 em Ré m, L. Couperin, id. ibid., p. 2 A notação dos prelúdios non mesurés, embora enigmática à primeira vista, possui tamanha clareza, que percebemos, pela posição das linhas, quando a primeira nota deve ser sustentada e as outras desligadas. Reportando-nos ao que disse Saint Lambert em seu tratado, em relação à posição das ligaduras, não se torna possível aplicar suas regras ao prelúdio non mesuré de uma maneira geral. No prelúdio em sol menor de D'Anglebert, por exemplo, (figura 33) percebemos seu cuidado ao colocar as linhas. Tanto na notação mista quanto na notação em semibreves, D'Anglebert especifica as notas que devem ser sustentadas. Mesmo quando uma ligadura envolve 92 93 TILNEY, 1991, p. 4 e 5. TILNEY, 1991. p. 5. 48 várias notas, sua notação é clara em relação a quais devem ser sustentadas (Figuras 34 e 35). Figura 33 – Prelúdio em Sol m, D’Anglebert, id. ibid., p. 65 Figura 34 – Notação mista, Prelúdio em Ré m, D’Anglebert, id. ibid., p. 71 Figura 35 – Notação em semibreves, Prelúdio em Ré m, D’Anglebert, id. ibid., p. 70 Nos prelúdios de Louis Couperin fica claro que somente as notas ligadas devem ser sustentadas. Como já mencionado, Couperin usou linhas individuais para a maior parte das notas que constituem os acordes. Algumas ligaduras mais curtas de duas notas são appoggiaturas, ou port de voix. Encontramos também, principalmente nos prelúdios de D'Anglebert e Louis Couperin, ligaduras em alguns ornamentos, como o coulé de tierce (Figuras 36, 37, 38), que é normalmente grafado da seguinte forma: Figura 36 – coulé de tiercePrelúdio 9 em Dó M, L. Couperin, id. ibid., p. 30 49 Figura 37 – coulé de tierce, Notação em semibreves, Prelúdio em Ré m, D’Anglebert, id. ibid., p. 68 Figura 38 – Notação mista, Prelúdio em Ré m, D’Anglebert, id. ibid., p. 69 Percebe-se na maior parte das ligaduras nos prelúdios de Jacquet de la Guerre uma preocupação em demonstrar, tornar mais claras por meio da notação mista, as notas que deveriam ser ligadas. Jacquet de la Guerre representa normalmente seus acordes em semibreves com liaison, e para as notas de passagem coloca um valor menor (figura 39). O acorde pode ser representado por ornamento encontrado na tabela de D’Anglebert (anexo), com o nome de Cheute sur une note. Quase não se encontram ligaduras múltiplas ou acordes com ligaduras individuais nos prelúdios de Jacquet. Figura 39 – Prelúdio em Lá m, Jacquet de la Guerre, id. ibid., p. 56 Conforme foi mencionado anteriormente, Lebègue parece fazer uso das ligaduras de duração como na notação moderna. Observa-se que o compositor tem o cuidado de ligar cada nota de um arpejo com ligaduras múltiplas, transformando-as em um único acorde que se manterá e não deverá ser tocado novamente (Figura 40). Também no mesmo exemplo encontramos ligaduras que se adaptam ao que foi dito pelo 50 próprio compositor na carta mencionada anteriormente, ou seja, que um grande acorde com tenues ou cercles deveria ser sustentado durante a exposição da outra parte. Figura 40 – Prelúdio 3 em Lá m, Lebègue, id. ibid., p. 49 Howard Ferguson, em conformidade com o que já foi exposto antes, frisa que uma ligadura que una duas notas idênticas num prelúdio non mesuré não deve ser confundida com a ligadura de duração, "...portanto sempre se deve voltar a tocá-la". 94 Esta afirmação é verdadeira para a grande maioria dos prelúdios escritos para cravo no séc. XVII, mas, como antes mencionado, nem sempre para aqueles de Lebègue. Não obstante, ao observarmos os prelúdios desse período, podemos concluir que notas de mesma altura ligadas não são tão freqüentes. Nos prelúdios de D'Anglebert, embora tais ligaduras ocorram mais amiúde, parecem indicar que a nota deva ser repetida. Nos prelúdios de Jacquet de la Guerre, somente aquele em Ré menor deixa dúvidas em dois momentos, pois pelo contexto musical, as notas não aparentam ser repetidas (Figuras 41 e 42). Figura 41 - Prelúdio em Ré m, Jacquet de la Guerre, id. ibid., p. 52 94 FERGUSON, 2003, p. 38. 51 Figura 42 - Prelúdio em Ré m, Jacquet de la Guerre, id. ibid., p. 53 Em seus quatro prelúdios praticamente não ocorrem ligaduras de duas notas de mesma altura. Já nos prelúdios de Louis Couperin, a disposição das linhas, principalmente na partitura impressa, é muito clara, e uma nota ligada à outra de mesma altura acontece muito raramente, indicando-se, pela própria notação, que ela deve ser repetida. 2.4)Linhas retas Colin Tilney e Davitt Moroney classificam em três tipos as linhas retas nos prelúdios de Louis Couperin. O primeiro tipo trata de uma linha reta que se assemelha a uma barra de compasso e, ao que tudo indica, a nota que se segue a essa linha é importante e demanda uma acentuação (figura 43). Figura 43 – Prelúdio 3 em Sol m, L. Couperin, id. ibid., p. 13 D'Anglebert, na sua versão mista dos prelúdios, utiliza algumas barras de compasso, mas essas parecem sinalizar o final de uma seção, mesmo que incompleta. 52 As linhas retas colocadas embaixo ou em cima de uma determinada nota encontram-se na música de Louis Couperin e também na de D'Anglebert e parecem indicar que a nota é um tempo forte. Esse seria o segundo tipo de linhas verticais descrito por esses autores (figura 44). Figura 44 – Prelúdio 11 em Dó M, L. Couperin, id. ibid., p. 36 Observa-se ainda um terceiro tipo de linhas retas verticais que aparece na música de Louis Couperin, Jean Henry D'Anglebert e, posteriormente, François Couperin. Tal linha é colocada entre uma nota da mão direita e outra da mão esquerda e indica certamente que as notas devem ser tocadas ao mesmo tempo. Na obra de François Couperin, no entanto, ela indica um uníssono, o que não se aplicaria aos prelúdios de D'Anglebert e Louis Couperin, em que tal linha une duas notas de alturas diferentes 95 . Tal observação é verdadeira, mas encontramos alguns raros exemplos de linha reta unindo duas notas iguais, principalmente na obra de D'Anglebert (figura 45). Figura 45 – Prelúdio em Ré m, D'Anglebert, id. ibid., p. 73 95 TILNEY, 1991, p. 5 e MORONEY, 1985, p. 28. CAPÍTULO III NOTAÇÃO MENSURADA E PRELÚDIOS TRIPARTITE 54 CAPÍTULO III NOTAÇÃO MENSURADA E PRELÚDIOS TRIPARTITE 3.1) Notação mensurada das toccatas Traços de semelhança unem a toccata ao prelúdio non mesuré pela sua flexibilidade e liberdade na interpretação, conforme já mencionado no Capítulo I deste trabalho. A notação da toccata é totalmente métrica, embora sua interpretação seja livre em vários momentos; enquanto o prelúdio non mesuré, não possuindo barra de compasso e, portanto, nenhuma métrica, deve ser interpretado com liberdade do começo ao fim, desde que compreendida e observada a maneira de se tocar (Capítulo II). “Quando um prelúdio ou uma toccata mostram indícios de sua origem improvisada, tal circunstância deve refletir-se na interpretação. O grau de liberdade que se requer depende do conteúdo musical" 96 . Numa dada toccata podemos identificar suas seções livres observando, por exemplo, os momentos em que não exista um motivo determinado e as idéias musicais passeiem em forma de tiratas 97 , ou passagens, ou ornamentos, oferecendo ao executante liberdade na interpretação, com motivos soltos e inacabados que muitas vezes se repetem, acordes e, por fim, cadências que freqüentemente conduzem a outra diferente seção. Nesta nova seção um ou mais motivos são desenvolvidos muitas vezes num estilo em fugato. Tal momento demanda do intérprete precisão, destreza e clareza nos motivos apresentados, pois, embora a notação seja a mesma em todas as seções, o conteúdo musical fica diferente e mais regular. Muitas vezes esta nova seção com tema 96 FERGUSON, 2003, pp 33. Tirade, “Quando duas notas são separadas por um intervalo disjunto e completamos este intervalo com todas as notas diatônicas, isto se chama tirata.” ROUSSEAU, 1764, p. 515. 97 55 definido se apresenta e depois se desmancha gradativamente até retornar ao estilo recitativo ou improvisado. A toccata é uma peça escrita geralmente para o teclado, freqüentemente com a forma livre e era vista no princípio como uma demonstração de destreza. 98 Girolamo Frescobaldi foi o compositor mais importante deste gênero. Escreveu, entre outras obras, dois livros de toccatas, e seu prefácio contém recomendações de extrema profundidade musical que orientam o executante sobre a “maneira” de interpretar suas toccatas. Tais recomendações, chamadas de avvertimenti, são fonte de pesquisa permanente para os interessados no assunto e até os dias de hoje geram discussões, em alguns aspectos, sobre a real intenção do autor, o que será detalhado mais à frente. Mestre de grande importância, Frescobaldi foi o primeiro compositor que se concentrou na música instrumental, e suas obras para teclado, além de abrangerem praticamente todos os tipos de composição da época, superam também em quantidade as de seus contemporâneos, ou mesmo antecessores. 99 Antigas tablaturas e partituras italianas eram escritas para todo tipo de teclado e havia da parte dos compositores talvez uma preocupação em escrever peças possíveis de serem tocadas em qualquer instrumento do gênero. Apesar da tablatura italiana para teclado mostrar interessantes aspectos da performance prática, não havia indicações técnico-interpretativas mais precisas na música escrita. A interpretação dessas obras no cravo (instrumento com plectra, emplumados) demanda do executante uma especial habilidade para não deixar vazios sonoros na execução devido à natureza do 98 CALDWELL, John. Toccata. Grove Music Online, Ed. L. Macy. Disponível em o <http://www.grovemusic.com>, acessado em 1. de julho de 2004. 99 SILBIGER, Alexander. Frescobaldi, Girolamo – 8.Works: characteristics and historical importance. Grove Music Online, Ed. L. Macy. Disponível em <http://www.grovemusic.com>, acessado em 1.o de julho de 2004. 56 instrumento. Para isso seria recomendável o uso de arpejos, ornamentos e articulação, principalmente nas figuras musicais de maior duração 100 . Girolamo Diruta, em seu método, explica que quando se tocam breves e semibreves em instrumentos emplumados “... mais da metade da harmonia estará perdida (...)”, e o modo de remediar a deficiência do instrumento “... apóia-se na vivacidade e destreza das mãos (...) golpeando a tecla graciosamente muitas vezes”. 101 A Itália foi o país, à exceção da Espanha, que menos se utilizou dos sinais de ornamentação em toda a Europa. Naquele país a abordagem da ornamentação concentra-se sobretudo na improvisação de notas de adorno, como os tremoli e tremoletti (trinados longos e curtos), os accenti (apoggiaturas) e os groppi (utilizados para decorar linhas conjuntas e completar linhas disjuntas). O Tratado de Diruta explica, por meio de exemplos, a maneira de realizar essa ornamentação 102 e inclui toccatas do próprio Diruta, de Claudio Merulo, Andrea e Giovanni Gabrieli, Antonio Romanini, Paolo Quagliati, Vincenzo Bellavere, Gioseffo Guami e Luzzaschi, que foi professor de Frescobaldi. 103 Pode-se presumir que esse Tratado teria sido utilizado por músicos da época e até por seus sucessores. Não se conhecem as circunstâncias pelas quais Johann Jakob Froberger tomou conhecimento da obra de Frescobaldi, mas é sabido que admirava sua arte e com ele estudou em Roma do outono de 1637 à primavera de 1641. Chama a atenção, no entanto, o fato de ter sido publicado em 1977, por Henning Siedentopf, o inventário da biblioteca do pai de J. J. Froberger, Basilius Froberger, em que consta o conhecido 100 TAGLIAVINI, L.F. The Art of ‘Not Leaving the Instrument Empty’: Comments on Early Italian Harpsichord Playing. Early Music, Vol. 11, p. 300, Julho, 1983, no 3. 101 ‘Modo di sonar musicalmente nell’instrumento da penna’. Il Transilvano dialogo sopra il vero modo di sonar organi et instromenti da penna, I (Venice, 1593), ff 5v-6r. In TAGLIAVINI, L.F. Julho, 1983. p. 300. 102 FERGUSON (2003), pp. 144 e 147. 103 CALDWELL, op. cit. 57 método para teclado le Transilvano, de Diruta. 104 Siegbert Rampe, em seu prefácio105 , considera de total relevância o fato de esse tratado pertencer a Basilius Froberger e, por se tratar da única obra pedagógica da biblioteca, pode-se presumir com segurança que J. J. Froberger tenha sido instruído por esse método. Embora não existam documentos que possam comprová-lo, supõe-se que Froberger tenha estudado com os organistas Adam Steigleder (1561-1633) e Johann Ulrich Steigleder (1539-1635). É provável que tenha recebido instrução de Biaggio Marini (1587-1663), violinista e compositor italiano, e com o organista alemão Samuel Scheidt (1587-1654), durante o período que passaram em Stuttgart entre 1625 e 1627. Acredita-se que a extensa biblioteca de Basilius Froberger tenha sido de vital importância para a formação de J. J. Froberger, pois lá havia 103 volumes de música impressa com obras de diversos compositores alemães, do inglês Thomas Simpson e uma considerável coleção de obras de compositores italianos 106 . Também se encontrava nessa biblioteca "La Censura" 107 , de Mutio Effrem que enaltece a arte de Frescobaldi e é provável que os amigos e professores de Froberger, já familiarizados com a música de Frescobaldi, possam tê-la transmitido a Froberger. 108 Um aspecto abordado por Siedendopf é a maneira como as obras de Frescobaldi e Froberger foram divulgadas. Frescobaldi teve sua obra editada e difundida durante sua vida, enquanto a de Froberger foi transmitida por meio de originais ou cópias. Conseqüentemente a obra de Frescobaldi foi conservada na sua totalidade e a de Froberger se apresenta de modo fragmentado. 109 A criatividade de Frescobaldi foi 104 SIEDENTOPF, H. Froberger et Frescobaldi. in J.J.Froberger Musicien Européen – Colloque organisé par la ville et l'École Nationale de Musique de Montbéliard, 1990. Klincksieck, 1998. p. 89-98. 105 RAMPE, Siegbert. Prefácio à edição de Keyboard and Organ Works from Copied Sources. Kassel: Barenreiter-Verlag, 2002. v. III, p. LVI. 106 RAMPE, 2002. v. III, p. LVI. 107 Uma crítica a Marco da Gagliano, Grove- Edmond Strainchamps, p. 61-62, 1980 - vol. VI. 108 SIEDENTOPF, 1998, p. 90. 109 SIEDENTOPF, 1998, p. 90. 58 também inspirada nas expressivas dissonâncias e cromatismos do madrigal da época, as figuras afetivas do recitativo seconda prattica, ritmos declamatórios, e ainda pelas obras de texturas livres compostas para alaúde e teorba, assim como prelúdios e interlúdios improvisados por organistas da Igreja. 110 As toccatas de Froberger foram compostas no estilo das de Frescobaldi, seu mestre, mas ao observarmos suas obras podemos perceber diferenças importantes. No seu primeiro livro de toccatas, Frescobaldi utiliza pequenas células rítmicas de grande intensidade expressiva com imitações constantes nas duas mãos. Os motivos acontecem numa velocidade tão grande e de forma tão variada que as idéias musicais não permanecem, mudando a todo instante. Já em seu segundo livro, Frescobaldi amplia suas seções, tornando sua música menos fragmentada e mais bem construída. Neste momento fica mais simples comparar a obra dos dois. Uma toccata de Froberger começa normalmente por uma seção no stylus fantasticus com acordes arpejados à maneira de Frescobaldi, e esses acordes são seguidos de uma seção que se desenvolve a partir de um motivo, tratado como imitação quasi contrapontística com ritmo preciso e caráter jocoso. As toccatas finalizam normalmente com uma curta passagem improvisatória que leva à cadencia final. 111 Muitos estudos referentes à interpretação dos prelúdios non mesurés se reportam a essas toccatas de Froberger. Sua notação, como já foi comentado, é rigorosamente métrica, embora passe por longos momentos em que a interpretação deve ser livre como nos prelúdios non mesurés. A maneira de tocar essas peças deve, em princípio, seguir os avvertimenti de seu mestre, Frescobaldi, a mais preciosa fonte para a interpretação desse estilo de música. Frescobaldi em seus avvertimenti mostra a importância de não confundir uma passagem com outra e comenta com detalhes a marcante flexibilidade de 110 SILBIGER, In Grove on line, 2004 59 tempo nesse gênero musical. Nas cadências deve-se tomar um tempo mais lento e os começos das toccatas são adágio e arpeggiando. Étiènne Darbellay comenta que na interpretação dessas peças livres, expressivas, não se deve conservar uma rigidez rítmica, que não seria própria ao estilo, nem, por outro lado, acrescentar adornos rítmicos duvidosos e inoportunos que vêm a toda hora quebrar o elã112 . É comum encontrarmos pesquisas 113 que se voltem a esses avvertimenti como auxílio na interpretação dos prelúdios non mesurés, mas ao observarmos as toccatas de Frescobaldi e os prelúdios franceses, compreenderemos que são universos diferentes. No que diz respeito a Froberger, encontramos trabalhos que mostram a proximidade de suas toccatas com os prelúdios non mesurés, sobretudo os de Louis Couperin. Embora a notação seja mesurée, toda toccata de Froberger começa por uma parte livre, declamatória, que lembra os prelúdios de Louis Couperin. Tanto as toccatas quanto os prelúdios atingem um alto nível de complexidade em termos composicionais. As seções livres das toccatas se entrelaçam com aquelas em andamento rápido e a volta à seção livre é muito bem construída, pois o tema vai se alargando até ficar solto, livre em meio a passagens, trinados e arpejos onde somente a notação é métrica. As toccatas têm em geral duas seções em estilo imitativo em meio a seções livres, mas encontramos algumas que possuem três seções em fugato. A imitação se faz presente algumas vezes na seção livre, com pequenos motivos que se repetem como nos prelúdios non mesurés, embora menos freqüentemente. Embora Froberger pusesse em prática os ensinamentos de seu mestre, sua obra teve também outras influências. Talvez pelo fato de ter vivido em outros países além da Alemanha, Froberger foi um músico que reuniu os diversos estilos em sua obra e soube 111 SCHOTT, In Grove on line, 2004 DARBELLAY, 1975, op. cit., p. 216. 113 Dissertações, teses de doutorado, artigos em periódicos e livros. 112 60 absorver a cultura de cada país em que viveu. Suas suítes se enquadram no estilo de dança francês do século XVII. Os Tombeaux, Lamenti, e algumas allemandes de Froberger são peças de interpretação livre, e algumas portam no título 114 a indicação de como devem ser tocadas: Lentement sans observer aucune mesure; à la discrétion. Observamos, no entanto, que tais peças possuem a notação métrica. Se refletirmos sobre o assunto da interpretação non mesuré nas peças escritas metricamente, alguns importantes documentos, além dos avvertimenti de Frescobaldi que comprovam a flexibilidade rítmica das toccatas, são esses Lamentos e Tombeaux de Froberger, com indicações em francês de como devem ser tocados. O termo discrétion, tão utilizado por Froberger nesse tipo de música, deixa ainda muitas perguntas no ar. Howard Schott, em seu artigo "Parâmetros de interpretação da música de Froberger", cita, entre outras, a explicação de Matheson em 1739, sobre a expressão ceci se joue à la discrétion ou, em italiano, con discrezione. Segundo Matheson o termo indica que não se deve manter-se estritamente no tempo, mas sim tocar ora devagar, ora rapidamente, de acordo com o sentimento do intérprete. Matheson comenta que Froberger foi muito famoso em seu tempo e que trabalhou especificamente este tipo de escrita. 115 Encontramos documentos interessantes, como a carta da Princesa Sibylla, que demonstra toda admiração que guardava por seu mestre, Froberger, e explica que somente quem houvesse recebido orientação do referido compositor poderia compreender a correta maneira de se tocar avec discrétion. 116 114 Meditation, faite sur ma mort future la quelle se joue lentement avec discretion. - Tombeau fait à Paris sur la mort de Monsieur Blancheroche; lequel se joue fort lentemeent à la discretion sans observer aucune mesure.-Lamentation faîte sur la mort (...) et se joue lentement avec discretion. An 1657- Plainte faite a Londres pour passer la Melancholie, laquelle se joue lentement avec discretion. 115 SCHOTT, H. Parameters of interpretation in the music of Froberger, in J.J.Froberger Musicien Européen, 1998. p. 102 116 Trecho da carta da Princesa Sibylle de Wurtemberg à Monsieur Huygens, Chevalier (RUGGERI, Y. Froberger à Montbéliard. in J.J.Froberger Musicien Européen, 1998 p. 28, 29). 61 A semelhança das toccatas de Froberger com os prelúdios non mesurés não é percebida na obra de todos os compositores. Nos prelúdios de Louis Couperin encontramos certamente semelhanças em vários momentos, assim como alguns trechos dos prelúdios de Jacquet de la Guerre, mas nos prelúdios de D'Anglebert, por exemplo, não encontramos aparentemente traços de semelhança com essas toccatas. Prosseguindo em uma comparação dos dois gêneros, podemos observar que os prelúdios são menos ativos musicalmente do que as toccatas com suas inúmeras passagens e sua constante mutação. O traço mais comum entre os dois são as cascades 117 (Figuras 46 e 47), por vezes em ambas as mãos e também as modulações inesperadas. Figura 46 - Prelúdio 8 em Lá M, L. Couperin, in Tilney op. cit., p. 28 Figura 47 - Toccata VI em Lá m, Froberger, Livro de 1656, in Schott, Heugel, p. 124 As Toccatas se voltam para o virtuosismo, embora de maneira intermitente, enquanto que os prelúdios tendem mais para o lado da ornamentação, harmonia e introspecção. Ambos os estilos criam atmosferas, climas próprios que nos fazem pensar em suas origens. As toccatas de Froberger Da sonarsi alla Levatione e também a toccata V do livro de 1656, que, ao contrário das outras, não possuem mudança visível 117 Modelo que se abre em marchas melódicas descendentes, tipo de cascades( em série, seqüência) onde as notas reais são precedidas por appoggiaturas. 62 de seção nem partes em fugato, apesar de se aproximarem mais dos prelúdios non mesurés, guardarão mesmo assim suas características inconfundíveis. Catherine Massip mostra analogias da toccata quinta Da Sonarsi alla levatione, do livro de 1649 de Froberger, com trechos do prelúdio 13 de L. Couperin ( Figura 48) e considera que se trata mais de um parentesco de estilos do que uma citação "rigorosa". Figura 48 - Estudo comparativo do Prelúdio 13, em Fá M, de L. Couperin e Toccata quinta Da Sonarsi alla levatione, de Froberger, in Prévost, 1987, p. 80. 63 A autora ressalta que a data do livro de Froberger, 1649, se aproxima do período em que ele viveu na França pela primeira vez. Outro fato abordado também é a proximidade das obras de L. Couperin e Froberger no manuscrito de Bauyn. 118 3.2) O prelúdio non mesuré com mudança de movimento, dito prelúdio italiano ou tripartite Nos prelúdios non mesurés habituais do período abordado nesta pesquisa, a oscilação tempo/liberdade, métrico/não métrico, tão comum às toccatas não é visível, embora existam momentos mais compassados do que outros. Já os prelúdios non mesurés com mudança de movimento, também chamados tripartite, têm mais semelhanças com as toccatas por causa de suas seções mesurées, as quais chamamos simplesmente mouvement nos prelúdios desse formato na obra de Jacquet de la Guerre, e Changement de mouvement naqueles de Louis Couperin. Enquanto numa toccata podemos observar várias partes ou seções, no prelúdio non mesuré tripartite, como diz o nome, só encontramos três partes, sendo, em alguns prelúdios, a última parte quase uma coda. A parte chamada Changement de mouvement é sempre a do meio, criando uma imagem interessante de dois estilos que se contrapõem. Bukofzer observa com precisão que “(...) a distinção entre escrita estrita ou métrica e escrita livre, corresponde, de uma certa forma, a esta oposição do estilo antigo e estilo moderno. O conflito entre os dois estilos, antigo e moderno, deixou sua marca na música barroca”. 119 118 119 MASSIP, Catherine. Froberger et la France. in J.J.Froberger Musicien Européen, 1998, p. 73. BUKOFZER, Manfred. La musique Baroque, 1600-1750: de Monteverdi à Bach. Tradução C. Chauvel, D. Collins, F. Langlois, N. Wild. Paris: Ed. Jean-Claude Lattès, 1982. 491 p. 64 Louis Couperin compôs 4 prelúdios divididos em três partes cada um, todos com uma seção mensurada no meio, normalmente em caráter de fuga. O prelúdio 1 em ré menor e o prelúdio 6 em lá menor possuem praticamente o mesmo formato, com três partes distintas e de certa forma conclusivas, embora tenham sido compostas para se tocarem sem interrupção. Ambos começam por uma seção non mesurée, um pouco extensa, que se conclui com um acorde na tônica, normalmente em modo maior. Uma nova seção, chamada Changement de mouvement, se segue, desta vez com notação mesurée, em forma de fuga, com a imitação do tema nas diferentes vozes. Neste momento podemos perceber o domínio do compositor no campo da linguagem contrapontística. A fuga é concluída com um acorde na tônica em modo maior e a última seção, com notação livre, se inicia também na tonalidade principal, em modo menor, parecendo querer reafirmar a tonalidade e modo iniciais. As três partes são praticamente da mesma duração, fazendo destes prelúdios um perfeito exemplo de obra tripartite. É interessante observarmos o equilíbrio e simetria dessas obras, apesar de o prelúdio nº 6 em lá menor ter a primeira seção um pouco mais longa que a terceira. O início dos dois prelúdios formam um interessante objeto de estudo, pois contrastam entre si. Normalmente as notas de um acorde, principalmente na obra de Couperin, são escritas na ordem em que devem ser tocadas, formando assim, um arpejo ao gosto do compositor. Apesar de indicar a maneira de se arpejar na maioria de seus prelúdios, no prelúdio 1 Couperin escreveu o acorde inicial com notação vertical como nas toccatas "italianas" de Froberger e Frescobaldi. Não se sabe a real intenção do compositor, pois tanto pode sugerir um arpejo ao gosto do intérprete, como também um acorde plaqué 120 (figura 49). No prelúdio em Lá menor, no entanto, Couperin se esmera como nunca nas diferentes maneiras de se arpejar um acorde inicial, neste caso, 120 Plaqué é o acorde que não é arpejado. 65 em lá menor. Este prelúdio é sempre citado em estudos pois essa obra foi encontrada tanto no Ms de Bauyn quanto no Ms de Parville, mas o interessante é que neste último havia um título: "Prelude de Mr Couperin à l'imitation de Mr Froberger" (figura 50). Figura 49 - Prelúdio 1 em Ré m, L. Couperin, in Tilney, op. Cit., p. 2 Figura 50 - Prelúdio 6 em Lá m, L. Couperin, op. cit., p. 21. Figura 51 - Toccata I - Froberger, Livro de 1649, in Schott, Heugel, p. 2 O início desse prelúdio é uma citação da tocata em lá menor do livro de 1649 de Froberger (Figura 51). Talvez, ao escrever esses arpejos, Louis Couperin tivesse desejado demonstrar a maneira como Froberger executava suas toccatas, à maneira de Frescobaldi ou simplesmente pretendesse homenagear o músico que tanto admirava e que tanto o influenciou. O que é curioso é que no Ms de Bauyn, o qual acredita-se ter 66 sido escrito por alguém da família de Louis Couperin, não encontramos nenhuma referencia à toccata de Froberger, enquanto que no Ms de Parville, o título é, por si só, uma homenagem ao compositor. Siegbert Rampe acredita que o fato de se encontrar citações de toccatas de Froberger em prelúdios de Louis Couperin, como este descrito acima, não significa que o músico estivesse influenciado especificamente pelos temas de Froberger, mas sim, vivamente impactado pelo stylus fantasticus dos organistas, encontrado nas toccatas de Froberger com enfoque em sua habilidade na inclusão de trechos em fugato. Este stylus fantasticus com "detalhes escritos" para o teclado foi uma novidade em Paris e a possível influencia de Froberger na música de Couperin foi de grande importância para o músico, pois sua notação, já inovadora, pôde ser aprimorada ainda mais 121 . O prelúdio 3 em sol menor de Louis Couperin, embora escrito em três partes, não possui a mesma simetria das duas obras discutidas acima. Este prelúdio parece se aproximar um pouco mais da forma das toccatas de Froberger, justamente pelo fato de as duas últimas seções serem interligadas. A primeira seção se encerra com um acorde no tom principal e dá-se então, início à segunda seção, uma fuga, que porta o mesmo título das seções centrais dos outros prelúdios, ou seja, Changement de mouvement. No final desta segunda seção, mais especificamente nos compassos 28/29, embora ainda em notação métrica, Couperin, diferentemente dos prelúdios já descritos, procede como nas toccatas em estilo italiano, em que a seção métrica vai se alargando, no aspecto da interpretação, até retornar à parte livre no estilo improvisado, recitativo, criando a atmosfera característica destes prelúdios ( Figura 52). Numa toccata tal mudança ocorre mas a notação se mantém métrica, como vimos (Figura 53). Nesse prelúdio, Couperin 121 RAMPE, 2002, Vol. III, p. XXXI. 67 nos dá um belíssimo exemplo desse fenômeno, tão próprio das toccatas e, aqui, representado pela mudança de notação. Figura 52 - Prelúdio 3, em Sol m, compasso 29, trecho 19, L. Couperin, in Tilney, op. cit., p. 15 Figura 53 - Toccata III, compasso 29, mudança de seção, Froberger, Livro de 1649, in Schott, op. cit., p. 11 Nas toccatas de Froberger, as seções em fugato começam, em geral, no tom original da peça e um ponto de semelhança entre os prelúdios tripartite e essas toccatas, é o fato de Couperin também começar o trecho em fugato no tom original da peça, com exceção do prelúdio 12 em fá maior. A maneira como os dois compositores chegam à essas seções são um pouco diferentes pois Froberger passa normalmente por uma seção mais livre, como uma transição, que termina muitas vezes em um acorde na dominante, para começar o fugato na tônica. Louis Couperin, como já foi explicado, conclui a seção 68 com um acorde na tônica e sua fuga, embora seja escrita na mesma tonalidade, é separada da seção anterior. Na seção non mesurée do referido prelúdio, encontramos passagens que se adequam ao 4º avvertimenti de Frescobaldi (...) "Na última nota, seja de trinado ou de passagem (...) deve-se parar, mesmo que esta nota seja uma colcheia, ou fusa, ou ainda um valor diferente das seguintes. Esta parada evitará a confusão de uma passagem com outra" 122 . Darbellay comenta que a parada no final de trinados e passagens pode ser vista como um elemento imitativo da arte vocal, entre tantos que já existem. 123 As duas passagens do prelúdio em sol menor de Couperin, comentadas acima, parecem necessitar de uma parada na última nota ao serem executadas, como em muitos momentos das toccatas de Froberger. Podemos observar que Couperin demonstra sempre um cuidado, através da notação, em não confundir uma passagem com o trecho que se segue. Em uma dessas passagens encontramos, ao final, um exemplo de linha reta na notação de Couperin que indica normalmente que a nota seguinte deverá ser valorizada, acentuada (Figura 54). Neste mesmo trecho, a passagem que se move e para subitamente, seguida de uma nota muito distante no baixo, é encontrada em vários momentos nas toccatas de Froberger ( Figura 55). São passagens de grande agilidade que se interrompem repentinamente e nos passam a sensação de deixar um eco no ar. Daí, talvez, o sentido do avvertimenti de Frescobaldi, de se parar na última nota. Figura 54 - Prelúdio 3, L. Couperin, op. cit., p. 13 122 123 Frescobaldi, avvertimenti 4, in DARBELLAY, 1975. DARBELLAY, 1975, p. 224. 69 Figura 55 - Toccata III, Froberger, Livro de 1649, op. cit., p. 11 A última seção do prelúdio é curta se comparada à dos outros prelúdios comentados anteriormente, o que faz com que alguns autores não o considerem uma obra tripartite. Prévost em seu trabalho explica que, pelo fato da primeira seção ser completa, com uma cadencia final no tom principal, a última seção non mesurée, a qual trata como uma coda, seria a conclusão da segunda seção, pois “… sua brevidade não permite contabilizá-la” 124 . David Fuller também concorda com Prévost nesse aspecto e acrescenta, em conformidade ao que foi descrito acima em nosso trabalho, que a fuga transforma-se gradativamente em uma coda non mesurée 125 . Ao observarmos as toccatas de Froberger, podemos perceber que apesar de manterem mais ou menos o mesmo formato, divergem bastante entre si. Em geral as terminações das toccatas são breves seções livres como esta do prelúdio em sol menor. Outras toccatas terminam com passagens virtuosísticas, às vezes com escalas nas duas mãos, como na toccata IV (1649) ou toccata VI (1656), ou podem também terminar com fragmentos do tema em meio a um ritmo flexível, como na toccata II em ré menor, mas a duração da parte final é aproximadamente a mesma deste prelúdio de Louis Couperin em sol menor, o que reforça a idéia de ser este, dentre os quatro prelúdios tripartite de Couperin, o que mais se assemelha às toccatas de Froberger, principalmente pela sua arquitetura. O prelúdio 12 em fá maior de Couperin também possui o Changement de mouvement com notação mesurée, mas seu formato é um pouco diferente das obras 124 125 PRÉVOST, 1997, p. 252. FULLER, Grove, 2004. 70 descritas acima. A parte non mesurée inicial tem menor duração neste prelúdio e a mudança para a seção com notação métrica, não é preparada com uma cadencia no tom da peça. Sua mudança se dá subitamente e ao contrário das outras seções mesurées,não se trata de uma fuga embora tenha um motivo que se imite. Esta seção, Changement de mouvement não começa na tonalidade principal e se conclui com um acorde de Fá maior, tom original da peça, dando prosseguimento à terceira seção, muito breve, com um pedal no baixo com a nota fá. Prévost considera que o prelúdio em fá maior de Louis Couperin, apesar de ser breve, tem um razoável número de acordes e modulações, sendo então, uma exceção na análise paradigmática que realizou em sua pesquisa onde são demonstrados, dentre outros aspectos, o número de acordes e índice de imobilidade harmônica de cada prelúdio de Louis Couperin e seus contemporâneos. Os prelúdios de Louis Couperin mantêm uma regularidade na relação entre a duração da peça, modulações e número de acordes. Em geral observa-se que o prelúdio mais curto modula menos. No prelúdio em fá maior, no entanto, encontram-se modulações a cada 2,31 acordes, ou seja, mais rapidamente do que um prelúdio tão breve quanto este e possui 44 acordes e 19 tonalidades 126 . Jacquet de la Guerre escreveu quatro prelúdios non mesurés 127 , sendo três com seção mesurée à qual chamou de mouvement. Os prelúdios em ré menor e sol menor se assemelham em termos de proporção, formato, mas são diferentes, tanto na seção non mesurée, quanto na mesurée. O prelúdio em ré menor apresenta um motivo claro, imponente que sugere, de certa forma, um ritmo em sua interpretação. Cessac chama a 126 127 PRÉVOST, 1987, p. 253. Prelúdio em ré m, Sol m, lá m e uma tocade em fá maior 71 atenção para a dramaticidade deste começo de prelúdio 128 , e poderíamos até imaginar que o motivo inicial desta peça guarda em sua essência um pouco do caráter da ouverture à la française, mesmo que o ritmo não seja escrito e, dependendo, é claro, da maneira como o executante conceba sua interpretação. Os prelúdios non mesurés, mesmo os que deixam mais visível a intenção do compositor, podem ser interpretados com outra expressão, outra maneira, pelo executante. A primeira seção do prelúdio em sol menor de Jacquet, ao contrário desse em ré menor, não tem um motivo definido e se baseia principalmente nas harmonias. No final da seção non mesurée encontramos uma célula motívica que começa a se apresentar com imitações que conduzem à seção mesurée (Figura 56), o mouvement. Diferentemente dos prelúdios tripartite de Louis Couperin, as seções mensuradas destes prelúdios de Jacquet não começam na tonalidade original da peça. Figura 56 – Prelúdio em sol m, Jacquet de la Guerre, in Tilney, op. cit., p. 54-55 Ao observarmos a passagem da seção mesurée, retornando para a non mesurée nesses dois prelúdios em ré e sol, percebemos que, no primeiro, Jacquet apresenta, no final do mouvement, um motivo no compasso 17 e 18 e entra em seguida na terceira 128 CESSAC, 1995, p. 49. 72 seção com notação livre, mas ainda conservando o motivo anterior nas sete primeiras notas da mão direita (Figura 57). Figura 57 - Prelúdio em Ré m, Jacquet de la Guerre, in Tilney, op. cit., p. 55. No prelúdio em sol menor, compasso 15 do mouvement a compositora faz uma espécie de transição para a seção livre, utilizando valores diferentes com a intenção de sugerir uma desaceleração da peça durante quatro compassos (Figura 58). Nesse momento a interpretação começa aos poucos a se libertar da pulsação até chegar à última seção com notação e interpretação livres. Figura 58 - Prelúdio em Sol m, Jacquet de la Guerre, in Bates, Heugel, p. 17 A tocade em fá maior que, parece ser a única peça escrita no gênero em toda literatura francesa para cravo 129 , possui as seções livres, no começo e no final, 129 BATES, 1982; CESSAC, 1995. 73 relativamente curtas, notadas em semibreves e semínimas. Se observarmos com atenção poderemos supor que esta peça em muito se assemelha às toccatas de Froberger. Na verdade, a peça pode ser dividida em cinco seções. A primeira, totalmente livre, é uma seqüência de acordes arpejados e podemos nos lembrar dos avvertimenti de Frescobaldi onde o começo das toccatas é adágio e arpejando. Logo em seguida começa uma seção mesurée, na tonalidade original da peça, com escalas ascendentes e descendentes por aproximadamente oito compassos. A terceira seção apresenta um tema que reaparece algumas vezes, lembrando o estilo contrapontístico de Froberger (figura 59), embora este último trabalhasse com mais profundidade o contraponto. A quarta seção retorna às semicolcheias que se imitam em um caráter virtuosístico, finalizando com uma breve parte non mesurée. Figura 59 – Tocade em Fá M, Jacquet de la Guerre, id. Ibid., p. 58 Catherine Cessac e Prévost concordam que a compositora soube reunir nesta obra o estilo das toccatas italianas e a linguagem dos prelúdios franceses. Prévost acredita que a tradução do título mostra a vontade da compositora de criar uma música francesa fazendo, porém, alusão ao modelo italiano. A fusão dos dois estilos, italiano e francês, poderia ter sido uma renovação na arte dos prelúdios non mesurés ao invés do desaparecimento e empobrecimento 130 que ocorreram no começo do século XVIII. Embora Jacquet tenha inovado tanto, manteve o padrão francês próprio destes prelúdios com mouvement, ou seja, duas seções livres que cercam uma seção com 74 notação mesurée. A diferença é que nesta tocade, a seção mesurée, como descrito anteriormente, se divide em várias outras, espelhando assim, a arte das toccatas italianas, mas o que falta são as seções livres que conduzem aos fugatos, característica das toccatas de Froberger. Concordamos com Prévost quando diz que o prelúdio não evoluiu, pois ao observarmos o que se compôs no século XVII, a possibilidade de uma integração Prelúdio-toccata, era de se esperar, mas isso só ocorreu isoladamente. O que faltou para haver uma verdadeira união de formas que criasse o prelúdio-toccata ou toccataprelúdio? Sabemos que a toccata italiana, mais especificamente a de Froberger, tem seções livres e seções em fugato, mas sua notação, porém, permanece sempre a mesma. Os prelúdios non mesurés tripartite sinalizam claramente através da notação as mudanças de seção, non mesurée/ mouvement/ non mesurées, mas não se conhece nenhum prelúdio neste formato que contenha mais de duas seções livres como nas toccatas. Propomos aqui a apresentação de um trecho da toccata VI de Froberger com a notação similar à utilizada por Louis Couperin em seus prelúdios tripartite, podendo-se assim, através desta notação, sinalizar as seções livres de uma toccata. Para fins de comparação, apresentaremos o mesmo trecho notado tradicionalmente (Figura 60). A partitura integral desta toccata VI do livro de 1656 com a notação proposta, e com notação tradicional, se encontram no anexo III desta dissertação. Nossa opção pela notação em semibreves ao invés da mista, deve-se ao fato de Froberger e Couperin terem vivido na mesma época, deste último ter sido muito influenciado por Froberger, e, além disso, era a notação usual deste gênero de prelúdios na época. Ao observarmos esta toccata reescrita (Figura 61),percebemos que as notas 130 PRÉVOST, 1987, p. 270. 75 iguais ligadas, nesse tipo de peça, principalmente no baixo, deixam dúvidas quanto à sua repetição, devendo ser observado o conteúdo musical, enquanto que no prelúdio de Louis Couperin, onde as ligaduras são cuidadosamente colocadas, notas iguais ligadas, sempre se repetem. O trecho aqui apresentado começa no segundo fugato da toccata (compasso 27), sendo seguido da parte livre que leva à última seção, um novo fugato. É uma experiência musical interpretativa interessante a de abordar uma toccata de Froberger notada desta forma. O impacto visual de deixarmos a notação mensurada, com certeza resultaria em uma interpretação mais livre da parte do executante que muitas vezes, ao tocar uma seção deste tipo, encontrada nestas toccatas, nem sempre consegue se libertar da pulsação. 76 Figura 60 - Froberger, trecho da Toccata VI em Lá menor, livro de 1656, com mudança de seção e notação original em edição moderna (in Schott, op. cit., p. 124125): 77 Figura 61 - Froberger, trecho da Toccata VI em Lá menor, livro de 1656 com mudanças de seção e notação proposta: CAPÍTULO IV UMA ABORDAGEM INTERPRETATIVA DA NOTAÇÃO NON MESURÉE DO PRELÚDIO TRIPARTITE EM RÉ MENOR DE LOUIS COUPERIN 79 CAPÍTULO IV UMA ABORDAGEM INTERPRETATIVA DA NOTAÇÃO NON MESURÉE DO PRELÚDIO TRIPARTITE EM RÉ MENOR DE LOUIS COUPERIN No estudo desse prelúdio serão abordados os diversos aspectos da notação non mesurée apresentados no decorrer desta pesquisa. Como demonstrado no capítulo II, as harmonias estão contidas nas ligaduras e Louis Couperin expressou um imenso cuidado ao colocá-las, tornando possível a compreensão dos acordes através delas, na maior parte das vezes. Os compositores escreveram seus prelúdios, mas não fizeram uso de cifragens, com exceção de Léroux (?-1707) 131 , que colocou cifras no baixo provavelmente para identificar as harmonias. No estudo desse prelúdio em ré menor de Louis Couperin utilizamos o recurso do baixo cifrado para uma compreensão mais rápida do acorde. Outro recurso escolhido foi a utilização de um novo pentagrama para verticalizar as harmonias, ou seja, notar os acordes na exata posição em que foram escritos. Sabemos que na realização de um baixo cifrado existe a possibilidade de se utilizarem diferentes posições para os acordes, desde que observadas as regras para uma boa realização; mas aqui neste estudo, optamos por seguir a altura das notas tal qual na partitura, sem a preocupação com a correta condução das vozes. Ornamentos, passagens, figurações melódicas indicam a melodia, enquanto que arpejos ornamentados ou simples representam a harmonia, muito embora algumas seqüências de arpejos possam também constituir uma melodia em si. O ato de separar todos estes aspectos visa a uma maior organização, mas, como já mencionado no capítulo 131 Gaspard Le Roux ( ...1707) editou seu livro em 1705, contendo quatro prelúdios: Prelúdio 1 em ré m, prelúdio 2 em lá m, prelúdio 3 em fá M, e prelúdio 4 em sol m, todos precedendo uma suíte. 80 II, harmonia e melodia caminham juntas e o ornamento é o elemento comum aos dois aspectos. Encontramos nos prelúdios de Louis Couperin modelos improvisatórios característicos que se apresentam em grande parte das vezes com cascades 132 , longos trinados e passagens. Estes modelos podem também por vezes se copiar, como poderemos observar no decorrer deste capítulo. Nos prelúdios desse compositor evidenciamos também algumas citações de obras de Froberger, como já descrito no capítulo III, e alguns trechos semelhantes em seus próprios prelúdios, ou seja, sua própria citação. Os desenhos melódicos se apresentam nesse prelúdio, se imitam e algumas vezes fazem parte de um modelo improvisatório característico de Couperin. Apesar de não possuírem ritmo definido, para estes desenhos melódicos utilizaremos o termo “motivo”. A demonstração desses elementos será feita por meio do exemplo em partitura proposto neste capítulo e apresentado ao final, páginas 97-106, detalhando os motivos que se imitam, ornamentos, passagens e as cifras por nós incluídas. Observamos que as seções principais do prelúdio apresentam momentos diferentes que são interligados, mas podem também, como será explicado mais à frente, ser divididos em sous sections. Para essas sous sections utilizaremos, na partitura proposta, o termo “trecho”. 4.1 Estrutura do prelúdio em ré menor O prelúdio tripartite em ré menor de Louis Couperin possui uniformidade em suas três seções. As duas seções com notação non mesurée, ou seja, a primeira e a terceira, se iniciam por um acorde notado verticalmente, prática não muito habitual em seus prelúdios, e finalizam com um acorde maior na tonalidade principal, notado da 132 cascades, ver Capítulo III pág 61 81 mesma forma que os acordes iniciais, conforme comentado no capítulo III 133 . A seção central, que possui notação mesurée, é uma fuga. Nessa fuga Louis Couperin demonstra um grande domínio da linguagem contrapontística, inspirada no estilo antigo. A força do modalismo, ainda muito presente, é percebida principalmente na exposição do tema, pois, o dó# e o si b não aparecem, aqui, com as alterações que caracterizam a tonalidade de ré m. Percebemos que a textura do trecho não é trabalhada pelo autor de maneira ortodoxa, sendo apresentada ora a 3, ora a 4 vozes. Esta parte contrapontística contrapõe-se ao estilo moderno, também conhecido por stylus fantasticus, representado pelas seções non mesurées do prelúdio. É interessante constatarmos que o prelúdio non mesuré tripartite apresenta em uma mesma peça os dois estilos, antigo e fantástico. Algo marcante neste prelúdio é a presença de quartas e quintas diminutas nas duas seções non mesurées. Logo no início da peça, Couperin já apresenta estes intervalos, como se quisesse mostrar o afeto desta primeira seção em meio a ligaduras múltiplas e ligaduras de duas em duas notas, trazendo dúvidas de execução que serão demonstradas mais à frente neste capítulo. As duas partes non mesurées possuem características e afetos diversos na maior parte do prelúdio, embora tal fato não seja percebido à primeira vista. Em uma análise mais voltada para as mudanças de clima na peça, torna-se possível fragmentar essas seções em várias outras, menores, de acordo com o conteúdo musical. Nem sempre fica clara tal divisão, pois muitas dessas seções se interligam de tal forma, que qualquer organização em partes poderia parecer incoerente. Nesta primeira seção encontramos um longo ornamento e uma passagem que conduzem a um fragmento de seção (linha 5), com um acorde em sol menor, um dos 133 Capítulo III pág 64 82 raros acordes notados verticalmente no decorrer de um prelúdio. Um fato interessante neste trecho é que a nota do soprano, um si bemol, é a nota mais aguda do prelúdio, levando-nos a crer, principalmente pelo contexto musical, ser este o clímax da seção. Este clímax é preparado e o fato de tratar-se de um acorde notado verticalmente faz-nos imaginar que o compositor, através da visível mudança da notação em diagonal para a vertical, neste acorde, tenha desejado tornar claro que a música passaria para um outro momento, um fragmento de seção o qual chamaremos de trecho 2. É interessante observarmos neste novo trecho que as ligaduras são direcionadas para cima e não se prolongam para outra nota, provavelmente para enfatizar este novo momento. Estas ligaduras são colocadas após cada nota do baixo e do soprano, e no facsímile são notadas como linhas retas em diagonal, certamente para ordenar a melodia, ou seja, estabelecer a ordem dos eventos. A interpretação das ligaduras diverge um pouco nas edições de Tilney (1991, Figura 62) e Moroney (1985, Figura 63), consideradas as mais importantes atualmente. Ao observarmos o Ms de Bauyn (Fig. 64), veremos que as ligaduras colocadas pelo copista da obra de Couperin nem sempre estão posicionadas no lugar correto da nota, o que dá margem a reflexões e suscita diferenças entre os editores modernos no que diz respeito à compreensão do fac-símile. No trecho discutido acima, por exemplo, a versão de Tilney é a mais fiel às ligaduras do original. Figura 62 – Tilney, op. cit., p. 2 Figura 63 – Moroney, op. cit., p. 42 83 Figura 64 – fac-símile, in Tilney, op. cit. vol 1, p. 1 O início da terceira seção, após a fuga, se dá com um acorde, seguido de um trecho em estilo recitativo com pedal em ré no baixo e a utilização do ornamento port de voix repetidas vezes. Este breve momento de apenas quinze notas se apresenta, e inicia-se então uma seqüência de acordes, às vezes interligados por ornamentos, com uma conseqüente mudança no caráter da seção. Percebemos então que o trecho torna-se mais harmônico e enérgico, com uma direção mais acentuada, conduzida pela voz do soprano, que é ascendente e o baixo descendente, gerando acordes de grande extensão, grande abertura, e um maior caráter de improvisação harmônica. É interessante observarmos como a peça passa a ser mais dinâmica, com pouca incidência de cascades e passagens, diferentemente de sua primeira seção. O trecho 3 compreenderá as quinze notas iniciais em estilo recitativo, conforme mencionado acima, que seriam o “discurso inicial” desta terceira seção, seguido da seqüência de acordes também já descrita acima. Mas, como as mudanças nos prelúdios de Louis Couperin são constantes, esse momento de maior condução harmônica e dinamismo não permanece por um longo tempo. A finalização do trecho 3 ocorre de maneira interessante e expressiva, pois o encadeamento harmônico vai aos poucos diminuindo a tensão criada pelos sucessivos acordes até atingir o último, na linha 26, que é um acorde com grande intervalo entre as vozes (figura 65). Tal acorde é colocado de maneira interessante pelo compositor, pois cria um clima de suspensão, expectativa, 84 que se pode comparar às toccatas de Froberger em seus muitos momentos de grandes saltos que sugerem, em geral, uma parada na última nota antes do intervalo, deixando a lembrança de um som que permanece parado no ar. Figura 65 – Tilney, op. cit., vol. 2, p. 6 Após esse acorde temos uma passagem no final da linha 26, que conduz a um novo momento, o trecho 4, na linha 27(ver figura 70). Neste trecho 4, o caráter da peça muda quase que totalmente, apresentando primeiramente um breve momento no estilo recitativo com momentos expressivos que se transformam em interessantes desenhos melódicos, retornando aos poucos às passagens, ornamentos, cascades, arpejos, ou seja, modelos improvisatórios característicos do compositor, que duram até o final da linha 31 aproximadamente. Percebemos ainda dois momentos em que as vozes extremas caminham novamente em acordes com a condução do soprano. Um desses momentos se encontra na linha 30 (Figura 66) e o outro na linha 33 (Figura 67), mas ambos de forma muito breve. Figura 66 – Tilney, op. cit., p. 7 Figura 67 – Tilney, op. cit., p. 7 85 Encontramos passagens curtas na linha 31, seguidas de alguns acordes, que formam uma transição para o trecho 5. Este novo trecho 5, na linha 32, se apresenta inicialmente em estilo recitativo, onde podemos observar alguns expressivos intervalos de quartas diminutas (Figura 68). Transição Trecho 5 Figura 68 – Tilney, op. cit., p. 7 A primeira parte parece ter maior variedade de motivos que se imitam do que a terceira, mas esta última possui mais fragmentos de seções, menor ocorrência de modelos improvisatórios e mais trechos harmônicos. Percebemos nesta terceira parte a presença de três ou mais trechos com transições. Em ambas as partes non mesurées do prelúdio, as mudanças mais significativas para um novo trecho ocorrem junto com uma passagem, uma escala com quase duas oitavas de extensão. No trecho 1 da primeira parte do prelúdio, uma passagem conduz ao acorde com notação vertical, que é o início do trecho 2 (Figura 69), e na terceira parte, a passagem na linha 26 parece marcar o começo do trecho 4 (Figura 70), conforme já demonstrado anteriormente. Figura 69 – Moroney, op. cit., p. 42 86 Passagem Trecho 4 Figura 70 – Tilney, op. cit., p. 6 4.2 Compreensão da harmonia A delimitação dos trechos corresponde a um esquema harmônico usual que fica em torno de I-IV-V-I, mas tal fato não é percebido em um primeiro contato com a peça, pois o tom principal tanto pode vir rapidamente como pode passar por muitas tonalidades diferentes até retornar. Na análise paradigmática dos prelúdios non mesurés feita por Prévost, foram encontrados nesse prelúdio 112 acordes, 48 tonalidades e 46 modulações. 134 Trecho 1: I Æ IV Trecho 2: IV Æ V-I (coda) Trecho 3: I Æ V (linha 26) Trecho 4: I Æ V/Vm Trecho 5: Vm Æ I No início do prelúdio, as ligaduras do soprano sobre as notas si bemol e fá, que lideram cada uma um grupo de quatro notas, deixam claro que tanto o si bemol quanto o fá deverão ser sustentados até o final da ligadura de quatro notas. As outras pequenas 134 PRÉVOST, 1987, p. 253 e 254. 87 ligaduras, envolvendo, no primeiro grupo, o si bemol, fá#, sol e mi e, no segundo grupo, o fá, dó#, ré e si, são mais difíceis de explicar, e tudo indica, pela maneira como estão colocadas no Ms de Bauyn, que devem ser articuladas de duas em duas. 135 Na primeira grande ligadura o fá# é uma appoggiatura para o sol e, na ligadura seguinte, também de quatro notas, o dó# é appoggiatura para o ré ( Figuras 71 e 72). Na cifragem proposta neste estudo, tais notas não foram incluídas, pois são estranhas à harmonia. Ao observarmos os prelúdios de Louis Couperin, veremos que ligaduras deste tipo não são tão freqüentes. Em seus prelúdios, ligaduras de três ou quatro notas são normalmente colocadas em notas que estão em graus conjuntos. Quando, em uma ligadura de muitas notas, encontrarmos notas tanto em graus conjuntos como também disjuntos, teremos com freqüência ligaduras menores, em geral de duas notas, contidas nesta grande ligadura. Isso demonstra a atenção do compositor com a harmonia da peça. É importante lembrar que seus acordes são, em grande parte, notados com ligaduras individuais, ou seja, uma para cada nota. Figura 71 – Tilney, op. cit., p. 1 Figura 72 – Facsímile in Tilney, op. cit. vol 1, p. 1 135 MORONEY, 1985, p. 30. 88 Quando a ligadura envolve três notas em graus conjuntos, indica normalmente um ornamento, como, por exemplo, o coulé sur une tierce 136 ou o coulé sur deux notes de suite 137 . No caso de a ligadura envolver quatro notas em graus conjuntos, podemos imaginar que se trate de uma ligadura de expressão ou simplesmente uma indicação de interpretação das notas com maior fluência, guardando a expressividade e flexibilidade (Figura 73). Figura 73 – Tilney, op. cit. vol 2, p. 7 Apesar da grande mobilidade harmônica dos prelúdios de Louis Couperin, percebemos que suas ligaduras na maior parte das vezes não deixam dúvidas em relação à harmonia, como vimos anteriormente. A cifragem proposta nesse capítulo diz respeito somente às notas ligadas de um acorde, mesmo que na partitura tais notas por vezes pareçam distantes umas das outras. Alguns trechos deixam dúvidas, como, por exemplo, o último acorde da linha 29, onde ligaduras individuais são colocadas em três notas dispostas em graus conjuntos (Figura 74). Neste caso, a cifra não incluirá o mi, que é estranho à harmonia. Em outros momentos sentimos a falta de ligaduras em determinadas notas importantes para a harmonia, como, por exemplo, o dó # e o dó bequadro no final da linha 3 (Figura 75), que estão sem ligaduras no fac-símile apesar de terem sido acrescentadas por Tilney e por Moroney em suas respectivas edições. É importante lembrar que tanto as ligaduras quanto algumas notas encontradas no facsímile podem ser compreendidas ou interpretadas, em seus momentos de menor clareza, 136 137 Ver capítulo II pág. 33. Ver capítulo II pág. 34. 89 de maneiras diferentes nas edições de Tilney e Moroney, conforme já mencionado, assim como algumas notas. Observamos que as ligaduras, na edição de Tilney, se assemelham mais ao texto original (Ms de Bauyn), mas, por outro lado, o autor modificou algumas notas que, na edição de Moroney, parecem permanecer mais fiéis ao texto, o Ms de Bauyn. Figura 74 – Tilney, op. cit., p. 7 Figura 75 – Tilney, op. cit., p. 2 4.3 Figuração melódica Quanto aos “motivos”, encontramos alguns que se imitam ao longo do prelúdio, principalmente na primeira parte, e que são, em geral, fragmentos de modelos improvisatórios característicos da obra deste compositor. Talvez o fato de se imitarem em outras vozes indique que se tornaram motivos, apesar de tradicionalmente considerarmos como motivo um fragmento com ritmo e intervalos definidos. 90 São estes os motivos encontrados: Figura 77 - Motivo b Figura 76 - Motivo a, com imitação na mão esquerda Figura 78 - Motivo c Figura 79 – Motivo d Os motivos a, b e c possuem combinações que poderão ser observadas na partitura ao final deste capítulo. O primeiro agrupamento melódico do prelúdio, composto das notas lá, si bemol, fá # e sol, é o motivo que aparece diversas vezes ao longo do prelúdio. Encontramos este motivo somente com quatro notas, ou complementado por outras e, às vezes, ligeiramente modificado. É importante lembrar que, neste motivo e em suas respectivas imitações, observamos muitas vezes a presença de quartas diminutas no interior do motivo, caracterizando a sonoridade geral do prelúdio. O motivo d, ao qual chamamos de clímax no início do capítulo, encontra-se no trecho 2 da primeira seção da peça e compõe-se de três notas, si bemol, lá e sol, e é separado do momento seguinte por uma linha diagonal reta, típica na notação de Couperin, que, ao que tudo indica, serve para separar os eventos. Neste motivo, a última nota, o sol, porta um ornamento que reforça a nota (Figura 62, 3ª nota da mão direita). 91 Após a linha reta, o sol se repete duas vezes, à maneira dos recitativos vocais, como que para representar uma expressão, um afeto (Figura 62, 4ª e 5ª notas da mão direita). Após linhas retas diagonais que separam o tenor, o motivo retorna com o mesmo trinado sobre a nota sol. Uma hipótese plausível é a de que o tema comece no lá, última nota da passagem, pois o motivo reaparece junto com esta nota; mas, por outro lado, ao observarmos a passagem que conduz a esse momento, veremos que o lá é a última nota da passagem (Figura 63) e, pela maneira como foi notada no fac-símile (Anexo IV), não parece fazer parte do motivo, mas sim da passagem. Nesse tipo de música, muitas conclusões podem deixar dúvidas, como, por exemplo, o motivo inicial com as quartas diminutas, que possui ligaduras não condizentes com o papel de motivo, levando-nos a crer, mais uma vez, que as ligaduras talvez sejam, de fato, harmônicas. No que diz respeito aos já mencionados modelos improvisatórios característicos desses prelúdios de Couperin, encontramos nesta primeira seção um trecho longo semelhante a um outro do prelúdio 3 em sol menor. Couperin usou as mesmas notas nas duas peças. No prelúdio 1 em ré menor, a partir do trinado da mão esquerda, linha 6 da edição de Moroney (Figura 80), até o ré do baixo no início da linha 7, encontramos trecho igual em ambas as mãos, na linha 9 do prelúdio 3 em sol menor (Figura 81), a partir do trinado da mão esquerda até a nota ré no baixo, que inicia a linha 10 na edição de Tilney. 92 Figura 80 – Prelúdio em ré menor in Moroney, op. cit., p. 43 Figura 81 – Prelúdio 3 em sol menor inTilney, op. cit., p. 13 Existe uma alteração colocada no fá da mão esquerda, que no prelúdio em sol menor é sustenido, com certeza para conduzir o retorno a sol menor, tonalidade da peça. Outra diferença que pode ser considerada de pouca importância, pois não muda a harmonia, é que encontramos no acorde da mão direita (trecho entre colchetes) um sol a mais no prelúdio 3 em sol menor. No final da primeira seção do prelúdio em ré menor, encontramos uma escala descendente e ascendente (Figura 82) que é muito semelhante a um trecho de uma peça de Froberger, o Tombeau fait à Paris sur la mort de M. Blancheroche; lequel se joue fort lentement à la discretion sans observer aucune mesure (Figura 83). 93 Figura 82 Prelúdio em ré menor L. Couperin – Tilney, op. cit., p. 3 Figura 83 Tombeau Froberger– Schott, op. cit., p. 158, compasso 18 Na terceira parte encontramos menor incidência de motivos, e os encontrados são, em geral, fragmentos de modelos improvisatórios, conforme já comentado anteriormente, semelhantes aos da primeira parte. Sabemos que esta terceira seção é mais voltada para a harmonia, dando vez, em alguns momentos, a trechos em estilo recitativo e improvisatório, com a utilização de ornamentos característicos. 4.4 Interpretação No aspecto interpretativo, o início deste prelúdio apresenta muitas dúvidas quanto à execução, talvez pela sua complexidade melódica e pelo modo como as ligaduras foram notadas. O maior problema consiste em como articular as quartas diminutas. Quanto à interpretação dessas ligaduras, diferentes comentários são observados nos estudos sobre o gênero, assim como interpretações bem opostas podem ser realizadas ao instrumento. Ao optarmos pelo ritmo lombárdico à maneira de Frescobaldi, a percepção auditiva desses intervalos de quarta diminuta seria mais 94 presente, embora a fluência das notas talvez ficasse menor. Também uma interpretação de duas em duas notas, embora evidente em relação à notação, impediria, de certa maneira, o deslizar das oito notas. Sabemos que o si bemol, que lidera a primeira ligadura, e o fá, que lidera a segunda, devem manter-se ligados durante a execução das quatro notas. Os graus conjuntos não devem ser ligados neste caso. Nenhum outro trecho neste prelúdio parece apontar tantos caminhos diferentes como este enigmático início. É importante explicar que, ao executarmos os dois grupos de quatro notas com maior rapidez e leveza, imaginando os acordes que formam sem articulações exageradas nas ligaduras, a interpretação ficará mais leve, facilitando a condução ao acorde seguinte, embora as quartas diminutas passem mais despercebidas. Ao refletirmos sobre os motivos mencionados neste capítulo, perceberemos que as ligaduras nem sempre parecem indicar a maneira de interpretá-los, pois o motivo apresentado no começo da peça se inicia no lá e não no si bemol, onde foi colocada a ligadura; ou seja, as ligaduras deixam transparecer que estão mais relacionadas às harmonias do que a indicações de expressão. Cada escolha interpretativa num momento específico resultará em uma diferente continuação ao longo do prelúdio. Cada mudança na execução de um trecho vai gerar outra maneira diferente no trecho mais próximo. O afeto que se coloca num determinado motivo é que criará uma atmosfera única que só poderá ser mudada no momento apropriado. Observamos como as mudanças no prelúdio non mesuré, principalmente nos de Couperin, são freqüentes, e que todas essas situações descritas acima se transformam muito rapidamente. Outro trecho interessante é a seqüência de terças no trecho 2 (Figura 84), com ligaduras de duas em duas notas. A opção por um ritmo lombárdico, neste momento, trará à peça um caráter mais marcante, mais enérgico, que irá se dissipando aos poucos 95 até chegar à passagem que virá a seguir. Já a opção por uma interpretação mais melódica e natural sem um ritmo tão forte, irá se integrar imediatamente ao arpejo ornamentado do trecho 3, mantendo a mesma expressão, o mesmo afeto. Figura 84 – Tilney, op. cit., p. 2 Na primeira parte, apesar dos motivos que se imitam, a quantidade de tremblements (trinados) e passagens é bem maior do que na terceira e, conseqüentemente , a progressão harmônica nesta primeira parte é mais entrecortada por esses eventos, devendo o intérprete cuidar para que o discurso musical não fique excessivamente fragmentado. Na terceira seção, após breve momento em estilo recitativo, os blocos de acordes entremeados por ornamentos e notas de passagem conduzem a um maior dinamismo na interpretação. Tal fato faz com que as idéias musicais sejam mais direcionadas e com menos momentos em que modelos improvisatórios tornem-se recursos recorrentes, como acontece na primeira seção. A linha 26, nesta terceira seção, cria um clima de mistério, de interrogação, já abordados neste capítulo. A interpretação deve, em princípio, estar dentro desta atmosfera, pois a maneira como Couperin concebeu este momento, até culminar no acorde, é clara. Os blocos de acordes do trecho 3 se abrem, dando um caráter mais enérgico e progressivo ao trecho, e vão aos poucos se dissipando, suavizando, e na linha 26 ocorre a mudança (ver Figura 65). Uma intervenção no agudo com as notas ré, mi, fá e, ainda mais uma vez, o fá, interrompem repentinamente a seqüência da seção, dando lugar a este clima, como o silêncio expressivo entre o fá e o dó#, que finaliza o trecho. 96 A interpretação deve retratar os afetos, as expressões contidas na música, pois, por se tratar de peça longa e complexa, é importante ter a consciência de todos os momentos para que as idéias sejam ordenadas, e não colocadas como uma avalanche de escalas, arpejos e motivos que poderiam soar estranhos ou confusos ao ouvido. Interpretar um prelúdio non mesuré não significa apenas tocar, ligar as notas indicadas e identificar ornamentos. É preciso compreender o caráter da peça e também suas mudanças de expressão, e entender que o prelúdio non mesuré não é simplesmente uma peça aleatória. Por mais que restem inúmeras possibilidades ao intérprete, um esboço, um tronco ou estrutura já são dados pelo compositor. Talvez a tarefa mais importante seja a de tentar chegar o mais próximo possível a esse esboço do autor. 97 4.5 Prelúdio tripartite em ré menor com a partitura proposta. 98 99 100 101 102 103 104 105 106 CONCLUSÃO 108 CONCLUSÃO Os prelúdios non mesurés são, em sua maior parte, desprovidos de uma linha melódica definida. A complexidade e indefinição melódica são características inerentes ao prelúdio non mesuré, que se somam às mudanças inesperadas de acordes. Poderíamos concluir que esta complexidade harmônica e melódica buscou uma notação aparentemente tão complexa quanto ela. Tanto o prelúdio quanto a sua notação fogem aos padrões tradicionais da música européia dos sécs. XVII e XVIII, ou seja, com o ritmo, melodia e o encadeamento harmônico mais definidos. Alguns raros prelúdios não se enquadram tão bem neste grupo, pois possuem uma definição rítmico-melódica tão evidente que nos induz a imaginar barras de compasso, mas podemos observar que esse não é o padrão do prelúdio non mesuré, principalmente no século XVII. Observamos também alguns prelúdios que apresentam maior definição da linha melódica, como, por exemplo, o prelúdio em sol menor de D’Anglebert, onde a harmonia se funde a essa linha, ou, por exemplo também, o prelúdio em ré menor de Jacquet de la Guerre, que possui uma linha melódica desde o início, embora se modifique ao longo do prelúdio. No século XVIII encontramos alguns outros prelúdios que se enquadram nesse formato, como, por exemplo, o prelúdio em dó menor de Clérambault, que poderia representar um tipo de prelúdio melódico. Trata-se, porém, de uma peça isolada, e é importante lembrar que sua outra composição neste mesmo gênero se enquadra normalmente nos moldes tradicionais do prelúdio non mesuré. É interessante observarmos que o prelúdio permaneceu no séc. XVII e parte do séc. XVIII, conservando mais ou menos as mesmas características. No que diz respeito ao seu desenvolvimento, podemos concluir que poucas mudanças ocorreram. A grande 109 transformação ocorreu logo no início, com a criação da notação mista em torno de 1677, portanto posterior a Louis Couperin, mas a maneira como ela foi desenvolvida, cultivada a partir de então, não trouxe novidades significativas. Ao observarmos o belíssimo exemplo de D’Anglebert, que nos fornece em seus prelúdios a notação em semibreves e, depois, a nova versão deles em notação mista, podemos concluir que a notação em semibreves é muito eficaz e não apresenta dúvidas na música deste compositor ou mesmo na de Louis Couperin. Outros compositores fizeram uso desta notação no século XVIII, destacando-se, dentre eles, Léroux, que escreveu quatro prelúdios non mesurés em semibreves. Seus prelúdios são de fácil compreensão e conservam as características inerentes ao gênero. Parece-nos que o conteúdo de um prelúdio, no que diz respeito à sua elaboração como composição, é mais decisivo na interpretação e compreensão da peça do que sua representação em notação mista ao invés de semibreves. Podemos concluir que de nada vale ter uma notação detalhada com o intuito de auxiliar o intérprete, se as intenções do compositor não são claras. Os prelúdios de Louis Couperin, Lebègue, Jacquet e D’Anglebert possuem traços característicos que demonstram diferentes maneiras de compor, diferentes abordagens e também diferentes personalidades. Nos prelúdios de Couperin percebemos que as harmonias rebuscadas, o caráter improvisatório, as inúmeras mudanças de afeto numa mesma peça, as imitações de motivos e a perfeita notação das ligaduras são alguns dos aspectos que demonstram a profundidade e riqueza de sua música e fazem dele um “mestre” na arte dos prelúdios. É importante levar em conta que o número de prelúdios que deixou é muito superior ao dos outros compositores e provavelmente por isso seja considerado o compositor mais representativo nesta área. Já D’Anglebert deixou poucos prelúdios, e todos são verdadeiras obras primas. Notados com riqueza de 110 detalhes, exploram tanto a melodia quanto harmonia e ornamentação em alto nível de elaboração. Outra característica importante em seus prelúdios é a maneira clara com que expressa suas idéias musicais, aliada a uma grande inspiração nos motivos, na harmonia e na expressividade, aspectos que tornam sua obra de mais fácil compreensão musical do que a de Louis Couperin. A obra de Lebègue parece ser a menos criativa. Sua notação mista é exageradamente explicada, não tendo sido copiada de maneira tão detalhada por nenhum outro compositor do gênero; mas julgamos importante considerar que foi o precursor desse tipo de notação e, talvez por isso, tenha sido excessivamente didático, julgando ajudar o intérprete. Em seus prelúdios os acordes são mais simples, com pouca troca harmônica. Há menos interação entre as vozes e observamos que, enquanto um acorde se sustenta, a outra voz se apresenta muitas vezes de maneira prolongada, provocando um resultado pouco interessante nos aspectos harmônicos e melódicos. Chamamos a atenção, no entanto, para o Prelúdio V em fá maior, em que podemos observar uma maior fusão entre as vozes, assim como ornamentação e harmonia mais elaboradas. É importante lembrar, entretanto, que seus prelúdios conservam aspectos fundamentais do prelúdio non mesuré. Compositora e improvisadora, Jacquet de la Guerre, como sabemos, compôs seus prelúdios em notação non mesurée sempre iniciando uma suíte. Chamamos a atenção para o alto grau de elaboração e de inspiração encontrados em dois de seus prelúdios, o prelúdio em ré menor e o prelúdio em lá menor. Os dois prelúdios diferem bastante um do outro, pois, como explicado nesta conclusão, o prelúdio em ré menor é mais melódico, fato não muito comum neste gênero, e o prelúdio em lá menor se baseia mais em passagens e acordes, lembrando em alguns momentos as toccatas de Froberger, embora seja o único a não possuir a seção mensurada. Este tipo de seção 111 parece ser parte integrante de sua obra, pois, das quatro peças non mesurées que compôs, três possuem a parte mensurada, chamada de mouvement pela própria autora, conforme mencionado nesta pesquisa. Muito embora o prelúdio non mesuré seja um gênero voltado para o teclado, encontramos estudos que o comparam ao recitativo vocal. É fato que estes prelúdios são um tipo de recitativo instrumental e se aproximam muito da linguagem falada em forma de prosa 138 , mas observamos diferenças importantes, pois o recitativo vocal terá sempre o texto como parte fundamental e toda interpretação será em função dele. Os recitativos vocais, além de terem suas próprias características, se desenvolvem de maneira diferente, tanto na melodia quanto na harmonia. Aprendemos que o prelúdio non mesuré apresenta a melodia em sua harmonia, pois muitas vezes a forma de arpejar já é, por si só, a própria melodia, como pudemos observar na figura 21, no capítulo II desta dissertação. No recitativo a melodia não parece ser harmônica e existem menos mudanças de acordes. Observamos que a fusão do acorde e da melodia não parece ocorrer da mesma forma no prelúdio e no recitativo. Enquanto no recitativo existe uma voz superior acompanhada pelos acordes, no prelúdio non mesuré percebemos uma maior fusão entre as vozes e os acordes, que se misturam nas duas mãos, e podem se transformar também em passagens, ornamentos e momentos expressivos, os quais chamamos aqui de affetti, reportando-nos a Frescobaldi em seus avvertimenti. Um outro aspecto importante a ser abordado nesta conclusão é que o estudo dos prelúdios tripartite nesta pesquisa levou também em consideração a possibilidade de um estudo comparativo com os recitativos e árias de cantatas. Como discutido no capítulo III, o prelúdio non mesuré tripartite possui a mudança para a parte mensurada, que é chamada de mouvement ou changement de mouvement. Seria, pois, natural este estudo 138 Ver cap. I e II 112 comparativo com os recitativos e árias de cantatas. A mudança de um recitativo para uma ária transmite muitas vezes uma mudança de afeto, o que é também devido ao contraste entre a parte livre e a mensurada. Percebemos essa mudança de afeto igualmente nos prelúdios non mesurés tripartites em boa parte das passagens para o mouvement; mas, ao nos aprofundarmos em um estudo comparativo entre recitativo e ária e os prelúdios da época, veremos que é possível estabelecer uma analogia com a idéia da prosa e da poesia contrapondo-se. Conforme comentamos nos capítulos I e II (pág 14 e 37), o prelúdio se assemelha à linguagem falada, sendo então representado pela “prosa” através de sua irregularidade; enquanto que a ária, devido a sua métrica e regularidade, no ponto de vista musical, se aproxima da poesia. A obra de Jacquet de la Guerre nos induz a esse estudo, pois sua produção é significativa tanto nos prelúdios quanto nas cantatas. Mesmo assim, após observarmos sua obra vocal, não encontramos pontos de semelhança importantes para um estudo comparativo dos dois gêneros. A mudança de um recitativo para uma ária ou da seção non mesurée de um prelúdio para o mouvement provoca um contraste que deixa a marca dessa dualidade: prosa e poesia. É comum encontrarmos comparações entre os prelúdios non mesurés, toccatas e tombeaux, principalmente os de Froberger. Observamos, ao longo desta pesquisa, que essas comparações são verdadeiras, mas trata-se de gêneros diferentes e tanto a toccata quanto o tombeau possuem traços característicos. O Tombeau possui uma linha melódica, mesmo que formada por pequenos motivos, ou fragmentos de motivos, normalmente de grande intensidade dramática. Ao abordarmos uma peça neste estilo, perceberemos que existe uma seqüência de eventos com forte expressividade que se tornam mais intensos em determinados momentos e mais distante em outros (tensão- 113 relaxamento). Normalmente possuem uma atmosfera meditativa e triste, podendo se tornar dramática. Seu início é normalmente discreto, com poucas notas, mas que aos poucos envolvem o ouvinte. Ao examinarmos um prelúdio non mesuré ou uma toccata em suas seções livres, devemos saber de antemão que a abordagem será diferente da música tradicional, pois iremos trabalhar muitas vezes com a ausência de uma melodia definida. É fato que o prelúdio e a toccata se assemelham, mas ao observarmos as toccatas de Froberger, um dos compositores em questão nesta pesquisa, concluiremos que somente algumas raras toccatas se confundiriam com um prelúdio non mesuré. Nas toccatas Da sonarsi alla Levatione e também na toccata V do livro de 1656, citadas nesta dissertação, encontramos uma linguagem bem mais próxima do prelúdio non mesuré e poderíamos até concluir que, se fossem concebidas com a notação non mesurée, talvez pudessem ser confundidas com este estilo de prelúdio. Uma outra diferença importante entre os dois gêneros é a duração da parte livre, pois nos prelúdios non mesurés, com exceção dos tripartite, a parte livre só acabará no acorde final, enquanto que na toccata passamos por alguns breves momentos livres que, como sabemos, se transformam em seções de andamento rápido, com tema definido e interpretadas dentro dos moldes tradicionais. Nesta pesquisa descrevemos os prelúdios tripartite e escolhemos como estudo de caso o prelúdio 1 de Louis Couperin. Observamos que, embora este gênero de prelúdio tripartite seja muitas vezes também comparado às toccatas, principalmente as de Froberger, podemos concluir que as semelhanças entre um e outro são limitadas e a fusão de ambos não aconteceu. A Tocade de Jacquet de la Guerre é citada por alguns musicólogos como sendo a obra mais próxima das toccatas de Froberger 139 . 139 Capítulo III, p. 72 114 Concordamos, mas o que falta realmente na tocade são as breves seções livres que muitas vezes funcionam como transições e levam à seção mensurada. O fato de estudarmos o prelúdio em ré menor de Louis Couperin nos levou a um maior aprofundamento no domínio e compreensão desta notação. Aspectos antes apontados nos prelúdios de diversos compositores de maneira isolada foram aqui enfocados em uma só obra. Desta forma, os motivos foram demonstrados com coerência, dentro de uma estrutura, e o caráter improvisatório da peça, principalmente na terceira seção, pôde ser organizado em trechos com algumas transições. Pudemos também identificar os momentos em estilo recitativo, os momentos no estilo imitativo e os de maior condução harmônica. Também a interpretação foi abordada do ponto de vista da execução. Podemos concluir que a grande contribuição do intérprete está na criação rítmica, pois, se as notas estão escritas e não devem ser mudadas nem acrescidas de outras, mesmo que para ornamentar, e as harmonias estão representadas nas ligaduras, a maneira de executar os acordes, melodias, passagens e ornamentos dependerá da concepção rítmica da interpretação associada ao “tempo” e afeto determinados pelo intérprete para se expressar. Ao abordarmos um prelúdio non mesuré devemos reconhecer os aspectos inerentes ao gênero, que foram abordados ao longo dessa dissertação, tais como ornamentos, passagens, desenhos melódicos, formas de arpejar e harmonia, bem como saber que esses aspectos se fundem de tal maneira que se torna difícil detalhá-los e categorizá-los. Quanto às ligaduras, indicam o tempo que as notas envolvidas devem ser sustentadas, além de representarem a harmonia. A notação das ligaduras é muito clara, principalmente na obra de Louis Couperin e D’Anglebert. Ao visualizarmos um acorde podemos perceber, através da posição das ligaduras, quais notas devem ser ligadas (Cap II pág. 47 e 48). Quanto às notas iguais ligadas, demonstramos que, quando ocorrem, 115 devem ser repetidas, com exceção daquelas encontradas muitas vezes nos prelúdios de Lebègue, que, ao que tudo indica, não devem ser repetidas. É importante também, para um maior domínio da arte desses prelúdios, saber interpretar grande parte do repertório criado pelos compositores mais representativos do gênero. A execução de somente um ou dois prelúdios isoladamente abordará menos aspectos representativos da notação e interpretação non mesurées. É importante, ao identificar os acordes, saber encadeá-los de maneira interessante e dar-lhes sentido musical, pois, em um tipo de música como este, nada é convencional; portanto, perceber a intenção do compositor depende, e muito, do intérprete. A melodia de um prelúdio pode parecer incompreensível quando comparada à música tradicional desta época na Europa, pois tanto pode estar nos ornamentos quanto nos arpejos ou nos momentos expressivos. As passagens são normalmente rápidas, mas é importante executá-las de acordo com o caráter do momento na música. Há muitas ocasiões em que devem ser tocadas mais lentamente, mais expressivamente (cap. II pág. 41). É preciso reconhecer os ornamentos quando estão escritos por extenso e interpretá-los como ornamentos, embora em um prelúdio non mesuré a flexibilidade de tempo para realizá-lo seja muito maior do que em uma peça mesurée, que possui barras de compasso e exige, na maior parte das vezes, que o ornamento seja realizado dentro de uma pulsação. É importante também deter-se nas harmonias mais importantes, valorizando-as, e interpretar as frases expressivas sempre buscando o afeto específico de cada trecho. Momentos de caráter mais doce, meditativo, devem contrastar com os mais enérgicos, como as passagens e alguns acordes, muito embora nada seja determinado neste tipo de música. Sabemos que o prelúdio tem funções básicas, como as de introduzir peças na tonalidade a ser tocada, testar a afinação do instrumento às vezes desconhecido do intérprete, assim como “desembaraçar” os dedos. Mas é verdade que a função de um 116 prelúdio muitas vezes vai além disso, e podemos também concluir que foram compostos para permitir uma maior criatividade, fantasia e liberdade das composições. O fato de terem sido compostos para o cravo, com múltiplas explorações de seus recursos sonoros, tímbricos, expressivos, torna esses prelúdios uma importante parte atual para o resgate de uma prática musical cuja sonoridade se perdeu ao longo dos séculos. BIBLIOGRAFIA 118 BIBLIOGRAFIA BATES, Carol Henry. Prefácio à edição de Pièces de clavecin: Elisabeth Jacquet de la Guerre. Paris, France: Heugel,1982. 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