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COLEÇÃO HUMANIDADES
Coleção coordenada pelo Núcleo de Humanidades
do Centro de Ciências Humanas da
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Entre dois Mundos
escravidão e a diáspora africana
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora da Universidade Federal do Maranhão – EDUFMA
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Benedito Souza Filho
(organizador)
Entre dois Mundos
escravidão e a diáspora africana
São Luís
2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
Prof. Dr. Natalino Salgado Filho - Reitor
Prof. Dr. Antonio José Silva Oliveira - Vice-Reitor
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
Prof. Dr. Francisco de Jesus Silva de Sousa - Diretor de Centro
NÚCLEO DE HUMANIDADES
Prof. Dr. Ricieri Carline Zorzal – Coordenador
Luciana Bernardi Nunes – Secretária
EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
Prof. Dr. Sanatiel de Jesus Pereira - Diretor
COMISSÃO EDITORIAL:
Prof. Ms Ricieri Carline Zorzal (DEART); Profa Dra. Helen Nebias
Barreto (DEGEO); Prof. Dr. Jadir Machado Lessa (DEPSI); Prof. Dr.
Juarez Lopes de Carvalho Filho (DESOC); Prof. Dr. Sidnei Francisco
do Nascimento (DEFIL); Profa Dra. Veraluce da Silva Lima (DELER)
PROJETO GRÁFICO:
Benedito Souza Filho
Imagens da capa: Johann Moritz Rugendas (1802-1858)
Entre dois Mundos : escravidão e a diáspora africana / Benedito
Souza Filho (Organizador). - São Luis: EDUFMA, 2013.
228 p.
Coleção Humanidades.
ISBN 978-85-7862-302-9
1.Escravidão - Brasil 2. Tráfico negreiro. 3. Diáspora africana.
I. Título
CDD: 306.362981
CDU: 326 (81)
“Se Dante Alighieri tivesse vivido no século XVIII,
colocaria o vértice dos sofrimentos inexprimíveis, o
círculo de seu inferno, no porão de uma embarcação
negreira, num desses núcleos de suplícios infindos que
apenas poderia descrever a poesia sinistra da loucura”
Rui Barbosa
Sumário
11 Apresentação
19
Escravidão e a resignificação de corpos dos africanos
Benedito Souza Filho
49
Africanidades nos subterrâneos da formação do
Novo Mundo
Josenildo de Jesus Pereira
83
No turbilhão da diáspora africana: o estado do Maranhão e Piauí e as etnias africanas (1770-1800)
Reinaldo dos Santos Barroso Junior
115
“Uma Nova Guiné”: africanos em inventários e
registros de batismo na cidade da Bahia da primeira
metade do século XVIII
Carlos Francisco da Silva Junior
Carlos Eugênio Líbano Soares
162
Família escrava no Maranhão: um estudo
demográfico (1780/1820)
Antonia da Silva Mota
179
Uma mão para bater, outra para educar: o Colégio Agrícola
de São Pedro de Alcântara e as discussões em torno da
mão-de-obra escrava no Piauí
Mairton Celestino da Silva
195
Intercâmbio literário: influências e similitudes entre
Brasil e Cabo Verde
Tatiana Raquel Reis Silva
Apresentação
A presente coletânea, intitulada “Entre dois Mundos: escravi-
dão e a diáspora africana”, reúne trabalhos desenvolvidos por pesqui-
sadores de três universidades do Nordeste, mais precisamente do
Maranhão, do Piauí e da Bahia.
Além de reunir pesquisadores vinculados a universidades
públicas estaduais e federais da mesma região, os trabalhos apresentam uma outra característica comum: a afinidade temática. Ade-
mais de entender as implicações da presença colonial na própria
África, as análises dos autores procuram dar conta dos múltiplos
desdobramentos da escravização de africanos e a sua transferência
compulsória para diferentes lugares no Brasil.
O tráfico negreiro fez com que a África e o Brasil se consti-
tuíssem em dois mundos interligados pela escravidão e a diáspora
forçada. As preocupações dos autores voltam-se justamente para
isso: entender os desdobramentos dessa dinâmica imposta pelo comércio de escravos.
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Entre dois Mundos: escravidão e a diáspora africana
Em seus trabalhos, além de discutir as implicações da con-
versão de homens e mulheres em escravos, os autores buscam refle-
tir sobre algumas peculiaridades dessa diáspora forçada de africanos, principalmente para a região Nordeste do país.
Em “Escravidão e a resignificação de corpos dos africanos” o
trabalho do professor Benedito Souza Filho procura refletir sobre
alguns aspectos relacionados com o tráfico negreiro e a escravidão
como processos que concorreram para a despersonalização de afri-
canos e sua conseqüente conversão em escravos a partir de reinscrições físicas, culturais e simbólicas mediadas pelo exercício do
poder e pelas mais variadas formas de violência.
Empenhado em refletir sobre a complexidade do proces-
so de formação da América, o professor Josenildo de Jesus Pereira,
no seu trabalho “Africanidades nos subterrâneos da formação do Novo
Mundo”, ressalta que na historiografia que trata da formação histórica da América prevalece uma perspectiva - marcada pelo discur-
so colonial europeu do século XIX - que coloca a Europa Ocidental
como centro irradiador da História universal, apesar das vozes dissonantes a este respeito.
O autor procura destacar que, diferentemente dessa pers-
pectiva conservadora, a história da América foi tecida a partir de
um denso, complexo e tenso processo decorrente do encontro entre
povos e culturas da Europa, da África e dos grupos autóctones aqui
existentes. No desenvolvimento de suas análises, procura enfatizar
o lugar e a importância que a presença africana teve na formação do
Novo Mundo.
Em “No turbilhão da diáspora africana: o estado do Maranhão e
Piauí e as etnias africanas (1770-1800)”, o professor Reinaldo dos San-
Apresentação
13
tos Barroso Júnior argumenta que independentemente dos signifi-
cados políticos, econômicos e ideológicos, a presença de escravos de
distintas procedências e denominações contribuiram para a consti-
tuição de uma cultura afro-americana. Para o caso do Maranhão, a
Casa das Minas, Casa de Nagô e Casa Fanti-Ashanti, como espaços
religiosos, são exemplos dessa marca cultural destacada pelo autor.
Para além dos elementos culturais que os escravos deixa-
ram como legado, o artigo do professor Reinaldo volta-se à discus-
são das origens dos africanos que foram utilizados como força de
trabalho em São Luís entre 1770 e 1800. Para tanto o autor debruçase sobre as implicações de categorias como “nação” e “guiné”, por
exemplo, para entender as lógicas classificatórias operadas por escravistas, traficantes e governadores no âmbito da escravidão.
A apreensão dessas categorias classificatórias operadas
no século XVIII é importante porque, segundo o autor, na América
portuguesa essas tipificações enquadravam rigidamente diferentes
culturas em áreas geográficas ou portos de procedência. Em razão
disso, os que operavam com essa tipologia acabavam estabelecendo
relações entre tais critérios e as características morais e personalidades dos africanos.
Segundo as análises, essa constante repetição do termo
Guiné nos documentos históricos sinaliza para um contato mais especifico entre a Alta-Guiné e os estados do Maranhão e Piauí atra-
vés do tráfico de escravos, assim como os portos da costa da AltaGuiné e as correspondentes etnias dessa região africana.
A partir de inventários e registros de batismo, o trabalho
“Uma Nova Guiné”: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII”, dos professores
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Entre dois Mundos: escravidão e a diáspora africana
Carlos Francisco da Silva Junior e Carlos Eugênio Líbano Soares,
analisa como os africanos arrancados da África foram reagrupados
a partir de novas categorias classificatórias.
Com esmerado diálogo com as fontes, os autores destacam
que os africanos desembarcados na Cidade da Bahia setecentista
enfrentariam, além do duro trabalho nas ruas da cidade, uma experiência pessoal e coletiva ainda mais específica. Arrancados de seus
lugares de origem, seriam reagrupados em nações, categorias identitárias construídas pelo tráfico transatlântico para nomear e identificar a escravaria vinda da África. Segundo os autores, pelo rótulo
da nação, portanto, denominavam-se os diferentes grupos étnicos
da África que foram escravizados e transferidos para a América.
Com a preocupação de refletir sobre os aspectos demográ-
ficos da presença Africana no Maranhão a partir dos testamentos e
inventários post mortem do período colonial, o trabalho da professo-
ra Antonia da Silva Mota, intitulado “Família escrava no Maranhão:
um estudo demográfico (1780/1820)”, segue a trilha dessa temática já
desenvolvida por Stuart Schwartz, Robert Slenes, Russel-Wood, en-
tre outros, que teve como condicionante econômica a agroindústria
açucareira.
Nesse trabalho a autora discorre sobre a família escrava
formada a partir das unidades produtivas voltadas para o cultivo
do algodão e do arroz, focalizando a origem étnica dos cônjuges,
a estrutura dos núcleos familiares, os níveis de fecundidade, entre
outros aspectos.
Tendo como título “Uma mão para bater, outra para educar: o
Colégio Agrícola de São Pedro de Alcântara e as discussões em torno da
mão-de-obra escrava no Piauí”, o trabalho do professor Mairton Celes-
Apresentação
15
tino da Silva procura refletir sobre a criação do Colégio Agrícola de
São Pedro de Alcântara na Província do Piauí durante a década de
1870. Busca estabelecer uma relação entre a criação dessa instituição
e as discussões em torno da desagregação da instituição escrava na
Província. A hipótese levantada pelo autor é a de que enquanto no
resto do império buscava-se criar condições para a substituição da
mão-de-obra escrava pela assalariada e estrangeira, nessa parte
do Brasil o objetivo era o de forjar, entre aqueles recém-saídos do
mundo da escravidão, inclinações para o trabalho cuja sustentação
residiria numa suposta “educação moral e religiosa e na instrução
primária e agrícola dos menores”.
Tomando como referência os aspectos literários como ele-
mento de enfrentamento, o trabalho de Tatiana Raquel Reis Silva,
“Intercâmbio literário: influências e similitudes entre Brasil e Cabo Verde”
nos revela que foi no campo literário que os movimentos de resistência assumiram contornos de protesto contra o regime colonial
em Cabo Verde.
Nas revistas e jornais publicados nos fins do século XIX,
os cabo-verdianos operaram verdadeiras campanhas de denúncias
contra as manobras diplomáticas do governo metropolitano. Inspirando-se na produção literária de escritores como José Lins do Rego,
Jorge Amado e Graciliano Ramos, a Revista Claridade, fundada por
Baltasar Lopes, Manuel Lopes e Jorge Barbosa, centrou toda sua força na construção e propagação de uma identidade caboverdiana.
Essa influência repercutiu fortemente na produção literária
dos claridosos, devido a crença em uma certa similaridade entre o
ambiente social, cultural e físico do arquipélago com aquele do Nor-
deste brasileiro. Nesse trabalho a autora estabelece paralelos entre
16
as produções literárias dos dois países, procurando perceber como
se consolidou uma relação de trocas e intercâmbios vivenciada até
os dias atuais.
Escravidão e a resignificação de
corpos dos africanos
Benedito Souza Filho
Moçambique
18
Escravidão e a resignificação de corpos
dos africanos
Benedito Souza Filho1
“Aqueles cujo trabalho consiste no uso de seu corpo, e isto é o
melhor deles, estes são, por natureza, escravos, para os quais
é melhor estar submetidos ao poder de outro.” (Aristóteles,
1999, p.53).
“Agradecei à providencia divina que os chamou a uma vida
de servidão, não vos queixeis nem do trabalho nem da baixeza de vossa condição, reconhecei a graça que lhes foi outorgada e estejais cheios de gratidão” (Richard Baxter, protestante
inglês enviado a Barbados citado por Brion Davis: 1966, p.
204).
As duas citações acima, uma evocando a natureza e a ou-
tra uma determinação religiosa, expressam de forma emblemática,
princípios desqualificadores referidos a determinados tipos sociais
caracterizados como escravos.
Inspirado nessa perspectiva, o presente artigo procurará
refletir sobre alguns aspectos relacionados com o tráfico negreiro
e a escravidão como processos que concorreram para a despersonalização de africanos e sua conseqüente conversão em escravos a
partir de reinscrições físicas, culturais e simbólicas a seus corpos.
Na África, africanos, no Brasil, escravos. Essa foi a meta-
morfose imposta pelo tráfico negreiro ao transformar os corpos de
1 Professor Adjunto do Departamento de Sociologia e Antropologia e do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UFMA. Líder do Grupo de Estudos
Rurais e Urbanos (GERUR).
20
Escravidão e a resignificação de corpos dos africanos
homens e mulheres africanos em objeto de muitas inscrições. Livres
na África, seus corpos eram objeto de rituais que definiam perten-
cimentos étnicos e tribais. Escravizados, receberam marcas físicas
e sociais que os converteram em instrumento de trabalho, em propriedade de alguém.
Às escarificações e outras formas de estabelecer identida-
des foram superpostas marcas que, por sua violência física e simbólica, contribuíram para que sinais distintivos perdessem sua im-
portância, convertendo os arrancados da África em um tipo social
estandartizado, identificado pela designação genérica de escravo.
Oliveira Mendes, advogado do século XVIII, ressaltava tal
distintividade ao dizer que
esses ditos lanhos não têm por fim o enfeite que eles presumem; mas também são indicativos da família, do Reino, do
Presídio, e do lugar, onde nasceram, e são moradores; como
por exemplo, de Ambaque, Ginga, Caçamba, Golo, Dalandula, Chicamba, Mixicongo, Congo – quando escravizados,
complementa o advogado – tornam a ser marcados no peito direito com as Armas do Rei, e da Nação, de quem ficam
sendo vassalos, e vão viver sujeitos na escravidão; cujo sinal
a fogo lhes é posto com um instrumento de prata no ato de
pagar Direitos: a esta marca lhe chamam Carimbo. Sofrem
de mais outra marca, ou carimbo, que a fogo também lhes
manda pôr o privativo senhor deles, debaixo de cujo nome
e negociação eles são transportados ao Brasil; a qual lhes é
posta, ou no peito esquerdo, ou no braço, para também serem
conhecidos no caso de fuga (MENDE, 1977, p. 28).
Como deixa antever o excerto, as marcas já existentes e
aquelas impressas no corpo dos africanos revelam uma antítese
simbólica: servir como definidoras de pertencimento cultural e étnico por um lado e, por outro, dar visibilidade à conversão de um ser
Benedito Souza Filho
21
humano em propriedade, definida pela inferioridade que tal condição social albergava.
As marcas impressas no corpo dos cativos, ademais de darem visibilidade à conversão de um ser humano em propriedade,
expressava também a inferioridade de sua condição social. “Ao serem impressos de modo exemplar, estes signos atingiam também
algo mais profundo que a pele e o corpo: a marca exemplar imprimia no escravo o medo da rebelião, a inexorabilidade da dominação
senhorial a que estava submetido” (LARA, 1988, p. 88). Não é sem
razão que Pierre Clastres, ao analisar a função da tortura nas sociedades ditas primitivas, destaca que “a lei escrita sobre o corpo é
uma lembrança inesquecível” (CLASTRES, 1978, p. 123).
Como categoria social, o corpo pode assumir diferentes
acepções e ser apreendido de variadas perspectivas, como a estética
ou a simbólica (BRAIN, 1979; TURNER, 1973). Pode ser pensado a
partir de suas partes constitutivas, marcado pela dor ou a mutilação
(SHARP, 2000; HONKASALO, 1998; PRICE, 1992) ou, inclusive,
submetido a inscrições e controle (CROSSLEY, 1996; EVANS-PRITCHARD, 1993; FOUCAULT, 1998).
Ainda que se possa dizer que o corpo pertença a um indi-
víduo específico, sua singularidade física é determinada também
social e culturalmente. O corpo, portanto, não pertence plenamente
a uma pessoa já que sua existência depende ou é definida pela di-
mensão coletiva ou por fatores externos a ele. Em relação à multiplicidade de significados que gravitam ao redor da noção de corpo, a
complexidade aumenta se a localizamos no contexto do escravismo
colonial europeu.
Mesmo tendo em conta essa gama de possibilidades de
percepção ou tratamento se nos colocássemos a tarefa de dar conta
22
Escravidão e a resignificação de corpos dos africanos
do sentido de propriedade e pertencimento do corpo (KOSOVSKI,
1999), seguramente a tarefa não seria tão fácil já que essa dupla dimensão abriga enorme complexidade.
Se a construção do significado de corpo em um contexto
sócio- cultural específico é complexa, a idéia de resignificação o é
ainda mais. As páginas seguintes serão dedicadas à tarefa de refletir
sobre essas duas dimensões referidas aos seres humanos arrancados
da África, cujo valor comercial dependia de sua integridade física.
Para falar de reinscrição de significados ao corpo se faz
necessário o entendimento de como eles podem ser caracterizados
em contextos sociais e culturais africanos. Antes de proceder a essa
tarefa explicativa, tratarei de alguns aspectos para poder estabelecer
a distinção das interpretações de europeus e africanos não só em
relação à noção de corpo, mas também à de escravo, pois é a partir
dessa polarização de concepções que se estabelece a ação ou movimento de imposição de outros sentidos, valores e significados que
caracterizariam o que estou designando de resignificação de corpos.
O escravo e suas dimensões
Em relação ao entendimento de escravo não é minha in-
tenção realizar uma história social dessa categoria, senão enquadrá-
la em um contexto específico, aquele do escravismo colonial europeu. Em relação a tal categoria, um primeiro aspecto a considerar
concerne a seu entendimento para africanos e europeus respecti-
vamente. A perspectiva explicativa guarda algumas diferenças que
merecem ser assinaladas.
Benedito Souza Filho
23
A caracterização e a utilização do corpo para referir-se a
um modelo de relação entre africanos e no próprio contexto africano não podem ser pensadas como da mesma ordem daquele do
mundo colonial europeu. Um segundo aspecto a ter em conta se
refere à percepção e relação com o denominado escravo em um contexto e em outro.
Na perspectiva dos europeus, o modelo de relação com um
ator social caracterizado como escravo era definido pela submissão
e exploração de sua força de trabalho. Ademais de ser percebido
como um bem, uma propriedade que, por meio do seu valor de uso
proporciona benefícios, o escravo se via envolvido em uma trama
social na qual lhe era negada a dignidade como ser humano.
Ao mencionar o cuidado na utilização da categoria escravo
no contexto africano, queria chamar a atenção para os elementos
que a caracterizam fora da África, pois guardam características distintas, não podendo ser transpostas ao contexto africano e conservar o mesmo sentido. O que quero dizer com isso é que certos fato-
res como valor de uso, modalidade de aquisição (captura ou troca),
valor instrumental, percepção como propriedade, entre outros, não
podem ser entendidos como equivalentes aos utilizados pelos africanos para estabelecer uma relação de dominação e sujeição com
membros de determinados grupos na África.
No contexto dos povos africanos, as razões que movem
certos grupos a converterem em cativos a seus inimigos, são de ou-
tra ordem. Isso equivale dizer que se os fatores que caracterizariam
a categoria fora da África são distintos, aqueles africanos capturados por meio das razias, guerras ou saques, movidos pelo sistema
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Escravidão e a resignificação de corpos dos africanos
de referência africano, não podem ser semelhantes à caracterização
tal como concebida no mundo colonial europeu.
O sistema de valores dos africanos era distinto e isso mar-
cou um forma específica de caracterização no que concerne às for-
mas de aprisionamento ou submissão de atores sociais referidos a
esse mesmo sistema. Tal questão se tornará mais clara quando tratar
mais adiante da concepção de corpo e pessoa em diferentes contextos africanos.
O sentido de escravo na África era diferente e não se apre-
sentava da mesma forma daquele imposto pelos europeus no Novo
Mundo. Dependendo do tipo de organização social africana, - e
aqui não se pode pensar a África como uma homogeneidade – o
grau de importância do escravo variava consideravelmente. Nas
sociedades tribais, podiam ser incorporados às famílias extensas.
Naquelas sociedades com outro tipo de organização, eram usados
como trabalhadores domésticos pelas elites com uma carga maior
de trabalho. Em alguns casos, ao longo de duas gerações essa condição se atenuava até extinguir-se (GORENDER, 1978, p. 134).
Um dos elementos essenciais do ser escravo é sua condição
de pertencer a outro ser humano, ser sua propriedade. A condição
de propriedade se dá pelos usos que se lhe atribuem, ou seja, ser
um instrumento prático de trabalho para aquele que exerce sobre o
escravo formas específicas de controle.
Aristóteles já expressava esse princípio ao dizer que:
el esclavo es un subordinado para las cosas prácticas. Se habla de la posesión como de una parte. Pues la parte no es sólo
parte de otra cosa, sino que depende enteramente a otra cosa.
De igual manera también el objeto poseído. Por eso el señor
Benedito Souza Filho
25
es señor del esclavo, pero no depende de aquél. En cambio, el
esclavo no sólo es esclavo de su señor, sino que enteramente
depende de él. Cuál es la naturaleza y cuál la función del esclavo resulta claro de lo expuesto. El que siendo hombre no se
pertenece por naturaleza a sí mismo, sino que es un hombre
de otro, ése es, por naturaleza, esclavo. Y es hombre de otro
el que, siendo hombre, es una posesión, y una posesión como
instrumento activo y distinto (ARISTÓTELES, 1999, p. 51).
De acordo com essa perspectiva aristotélica, o vínculo es-
trutural entre senhor e escravo está marcado por uma relação de
dependência e submissão considerada pelo filósofo como naturais,
que faz com que a sujeição se converta no elemento essencial da es-
cravidão. Esse grau de dependência e de poder absoluto do senhor
sobre seu escravo foi também sublinhado por Montesquieu quando
sustentou que “a escravidão propriamente dita é o estabelecimento
de um direito que torna um homem completamente dependente de
outro, que é o senhor absoluto de sua vida” (MONTESQUIEU, 1973,
p.221).
Como instrumento prático e movente, o escravo, absoluta-
mente submetido por formas diferenciadas de controle, é destituído
de liberdade, de livre arbítrio, o que faz com que reúna três caracte-
rísticas de sua condição: não ter autonomia, não ter vontade, viver
submetido. Dito de outro modo, o escravo é propriedade de outro,
seus desejos e necessidades dependem de seu dono e a utilização
de sua força de trabalho é conseguida mediante coerção (DAVIS,
1970, p. 46).
Este cativeiro do escravo pode a desoberto o que Gorender
denominou de atributos primários e derivados. Ser propriedade de
outro constituiria o atributo primário, ao passo que a perpetuação
e o caráter hereditário de sua condição social, configurariam o atri-
26
Escravidão e a resignificação de corpos dos africanos
buto derivado. “A escravidão assume sua forma completa quando
o atributo primário vem acompanhado dos atributos derivados”
(GORENDER, 1978, p. 62).
No funcionamento do sistema escravista prevalece uma
separação de mundos, como se o escravo devesse pertencer a uma
humanidade de segunda categoria. Desde uma perspectiva de re-
inscrição de valores, a conversão de africanos em escravos implicou
uma valorização de sua dimensão biológica, de sua força física em
detrimento da antropológica, que abrigaria identidade, referências
culturais, dignidade humana, liberdade, discernimento. Isso equi-
vale dizer que o escravo se converte em uma espécie tábula rasa na
qual sua dimensão antropológica cede lugar à inscrição de outros
significados. É como se nascesse outra vez de um triste parto que
lhe traz ao Novo Mundo, cujo destino fica marcado por sua nova
condição social que a captura e a instrumentalização ajudaram a
criar.
Corpo e pessoa: entre o holismo e o individualismo
Ao tratar da categoria corpo, como problema de nature-
za antropológica ou sociológica, torna-se necessário compreender
como este se converte no principal atributo de uma pessoa. Nesse
sentido, o que vai estabelecer sua caracterização é o contexto específico de produção social de significado.
Ao tratar da noção de pessoa, Mauss (1979) argumenta
que todas as sociedades apresentam seu modo particular de carac-
terizá-lo e defini-lo. Quando tratou das técnicas corporais, Marcel
Mauss (1979b) afirmou que o corpo, moldado pelos hábitos cultu-
rais, é o primeiro e o mais natural instrumento do ser humano. Essa
Benedito Souza Filho
27
perspectiva de que o corpo é uma categoria social e culturalmen-
te determinada é ratificada por Mauss em outros trabalhos, como
por exemplo, “Le effet phisique de l’idée de mort” (1950 [1926]) e
“L’expression obligatoire des sentiments” (1968 [1921]).
Nessa mesma perspectiva David Le Breton, argumenta
que “o corpo é socialmente construído, tanto em suas atualizações
na vida coletiva quanto nas teorias que explicam o funcionamento
dessas atualizações ou as relações que [o corpo] mantém com o homem que o encarna2”. (LE BRETON, 1992, p.29).
O corpo é o que garante visibilidade a um ser humano. É
através dele que se cristalizam e se reproduzem as manifestações
simbólicas que a noção de pessoa encarna. Cada sociedade, a partir
de seu sistema cultural de referência apresenta sua forma particular
de determinar o corpo de seus membros e de fazer com que sua
existência esteja recoberta de sentido. Como sublinha David Le Breton, “cada sociedade, no interior de sua visão de mundo, desenha
um saber singular sobre o corpo: seus elementos constituintes, suas
performances, suas correspondências3” (Le Breton, 2001, p. 8).
Em cada sociedade, a partir de seu sistema cultural e sim-
bólico, as distintas representações sociais conferem ao corpo um
lugar de destaque. Tais representações, referidas a suas partes ou
a sua totalidade, penetram no corpo e o marcam com atributos sociais, fazendo com que cada indivíduo se conecte ou esteja atado
2 Tradução livre do texto: “le corps es socialement construit, tant dans ses mises en
jeu sur la scène collective que dans les théories qui en expliquent le fonctionnement
ou les relations qu’il entretient avec l’homme qu’il incarne”.
3 Tradução livre do texto: “chaque société, à l’intérieur de sa vision du monde,
dessine un savoir singulier sur les corps: ses constituants, ses performances, ses
correspondances”.
28
Escravidão e a resignificação de corpos dos africanos
a uma rede na qual sua corporeidade não tenha sentido sem essas
marcas que o coletivo imprime.
Os sentidos delas tributários fazem com que os indivíduos
se reconheçam como parte de uma coletividade e conheçam sua
posição com relação aos demais, localizando-se no interior de um
sistema de valores. As representações sobre o corpo, portanto, são
fruto de uma dimensão social que define uma pessoa. Ele é resul-
tado de uma construção cultural e simbólica e não fruto de uma
realidade em si mesma.
Nas sociedades ocidentais prevalece uma concepção de
corpo balizada por um princípio de individualidade, uma percepção particular de pessoa na qual os atores sociais reproduzem um
modelo de possessão cuja ênfase pode ser traduzida na máxima:
meu corpo. Esse princípio provoca a emergência da individualidade como uma das marcas das sociedades ocidentais modernas.
Émile Durkheim (1993) ressalta tal perspectiva ao afirmar
que isto faz com que um sujeito se diferencie de outro, reforçando a
individuação. Apesar disso, este ator singularizado é também mar-
cado socialmente e seu grau de autonomia, de livre arbítrio, como
este autor ressaltou em O Suicídio, é determinado pelo meio social
no qual está inserido.
Em sociedades distintas essa concepção de individualida-
de não se aplica, já que as noções de corpo e pessoa se caracterizam
de modo diverso. A esse respeito David Le Breton argumenta que
nas sociedades ocidentais de tipo individualista, o corpo funciona como interruptor de energia social. Nas socieddes tradicionais ele é, ao contrário, o transmissor de energia comunitária. Pelo seu corpo, o ser humano está em comunicação com
Benedito Souza Filho
29
os diferentes campos simbólicos que dão sentido à existência
coletiva4 (Le Breton, 2001:26).
Nas sociedades chamadas tradicionais, não existe uma se-
paração entre a idéia de corpo e pessoa. Sua caracterização estabe-
lece uma relação estreita com o cosmo, com a natureza, marcando
os indivíduos, orientando sua existência e determinando sua participação na vida social.
Em algumas sociedades africanas não podemos pensar
que a noção de corpo e pessoa se processa de modo homogêneo.
Pelo contrário, ali tais noções variam consideravelmente, são po-
lissêmicas. Entretanto, um traço comum com relação a tais noções
é que prevalece uma perspectiva mais holística que individualista.
Os corpos não são caracterizados por uma cisão, senão por uma
integração com o cosmo, com a natureza, com o mundo espiritual,
com os antepassados.
Em relação a esse aspecto, Wande Abimbola, em seu tra-
balho “The Yoruba concept of human personality” argumenta que
“para entender o conceito Yoruba de personalidade humana é necessário primeiro discutir a visão de mundo Yorubá e a estrutura
do cosmo Yorubá. O Yorubá concebe o mundo como composto de
elementos físicos, humanos e espirituais”5 (Abimbola, 1993, p. 74).
4 Tradução livre do texto: “dans les sociétés occidentales de type individualiste, le
corps fonctionne comme interrupteur de l’énergie sociale; dans les sociétés traditionelles il est au contraire le relieur de l’énergie communautaire. Par son corps,
l’être humain est en communication avec les différents champs symboliques qui
donnent sens à l’existence collective”.
5 Tradução livre do texto: “In order to have a thorough understanding of the Yoruba concept of human personality, it is necessary first to discuss the Yoruba worldview and the structure of the Yoruba cosmos. The Yoruba conceive of the world as
comprising of physical, human and spiritual elements”.
30
Escravidão e a resignificação de corpos dos africanos
A expressão em língua Bambara «maa ka maaya ka ca a yere kono»
cujo significado é «les personnes de la personne sont multiples dans
la personne» [as pessoas da pessoa são múltiplas na pessoa] (Hampté Ba, 1993, p. 182), é um outro bom exemplo do grau de complexidade da noção de pessoa no contexto sociocultural africano.
Em muitas sociedades africanas as representações sobre o
corpo coincidem com as representações sobre a pessoa. A imagem
construída de determinado indivíduo, reflete uma perspectiva plu-
ral, estabelecendo níveis e vínculos os mais variados. A escolha de
um nome, por exemplo, se reveste de especial importância para os
Sabé do Daomé. “Os Sabé, que dispõem de diversos tipos de no-
mes, não os atribuem jamais às crianças ao acaso, existindo regras
e signos bem precisos aos quais é indispensável se conformar. Os
nomes revelam e afirmam a condição, situação, etc, do indivíduo
com relação a si mesmo, em relação com os outros e sua sociedade.
A noção de nome junto aos Sabé parece coincidir muito bem com
a noção de pessoa propriamente dita”6 (Palau Marti, 1993, p. 326).
Pierre Verger também destaca a importância que os nomes
adquirem para determinados grupos africanos. Para os Yorubá, por
exemplo, a escolha de um nome é um aspecto central já que, para
eles pode dar força a uma pessoa, conferindo-lhe poderes capazes,
inclusive, de interferir no futuro.
6 Tradução livre do texto: “Les Sabé, qui disposent de divers types de noms, ne
les attribuent jamais aux enfants au hasard, il existe des régles et des signes bien
précis auxquels il est indispensable de se conformer. Les noms révèlent et affirment
la condition, situation, etc de l’individu par rapport à lui-même et en relation avec
les autres et sa société. La notion de nom chez les Sabé semble coïncider assez bien
avec la notion de persone propement dite”.
Benedito Souza Filho
31
Os Yorubá podem possuir três ou quatro nomes, porém três
deles são indispensáveis. Segundo Pierre Verger (1993:68) “Orúkq
amúntqrunwá é o nome atribuído à criança quando as circunstâncias particulares do nascimento podem ser expressas por um nome
aplicável a todas as crianças nascidas sob as mesmas circunstâncias.
(...) Orúkq àbísq é um nome baseado nas considerações relativas à
criança e à situação da família no momento do nascimento. Oríkì
é um nome qualificativo indicando as características da criança e
aquelas que lhe são desejadas no futuro”7 .
Diferentemente das ocidentais, em muitas sociedades africanas a noção de pessoa não está presa ao próprio corpo, não se limita a seus contornos. Como sustenta David Le Breton (2001, p. 25),
“o que nos entendemos por pessoa é concebido nas sociedades africanas sob uma forma complexa, plural. A oposição essencial reside
na estrutura holística dessas sociedades nas quais o homem não é
um indivíduo (isto é, indivisível e distinto), mas um entramado de
relações”8 .
A noção de corpo e pessoa nas sociedades africanas é mar-
cada, portanto, por uma perspectiva distinta. Para podermos nos
aproximar do sentido dos ritos de muitos povos africanos que fa-
7 Tradução livre do texto: “Orúkq amúntqrunwá est le nom apporté par le enfant
avec lui de l’au-delà, lorsque les circonstances particulieères de la naissance peuvent être exprimées par un nom applicable à tous les enfants nés dans les mêmes
circonstances (...) Orúkq àbísq est un nom basé sur des considérations relatives à
l’enfant lui-même et en rapport avec la situation de la famille au moment de la
naissance (...) Oríkì est un nom qualificatif indiquant les caractéristiques de l’enfant
ou celles que lui sont souhaitées dans l’avenir”.
8 Tradução livre do texto: “ce que nous entendons par personne est conçu dans
les sociétés africaines sous une forme complexe, plurale. L’opposition essentielle
réside dans la structure holiste de ces sociétés où l’homme n’est pas un individu
(c’est-à-dire indivisible et distinct), mais nœud de relations”.
32
Escravidão e a resignificação de corpos dos africanos
zem referência, por exemplo, ao leite materno, à utilização de ex-
crementos de animais ou elementos da natureza, é necessário ter
o corpo como elemento de referência essencial, já que é através do
mesmo que se refletem os atributos da estrutura social de tais sociedades (Evans-Pritchard, 1993; Turner, 1973).
Roger Bastide argumenta que a pessoa é definida pelos di-
ferentes status que pode assumir e não pela soma de características
de temperamento que possua. Destaca que:
É evidente que o Africano se define primeiramente por sua
posição – ele é filho caçula ou filho mais velho, ele é marido,
ele é pai, ele é chefe. Quando se lhe pergunta o que ele é, ele
se situa em sua linhagem, ele marca seu lugar numa árvore
genealógica. Mas é bom ressaltar que esses status definem o
individuo em suas relações com qualquer coisa que lhe é exterior, a ordem social na qual ele se insere9 (BASTIDE, 1993,
p.7).
Em relação à noção de corpo e pessoa e à complexidade
relativa a sua concepção, existem variados exemplos no continente
africano que reforçam a diferença daquela das sociedades ocidentais. A concepção de corpo para os Canaques, estudados por Maurice
Leenhardt, é um desses exemplos reveladores. Para los Canaques, a
noção de corpo tem relação com o reino vegetal. Simboilicamente as
pulsações do corpo se confundem com a das árvores, frutos, plantas. O corpo não é concebido como algo isolado do mundo. É algo
9 Tradução livre do texto: “Il est évident que l’Africain se définit d’abord par sa
position, il est fils cadet ou fils aîné, il est mari, il est père, il est chef. Quand on lui
demande ce qu’il est, il se situe dans un lignage, il marque sa place dans un arbre
généalogique. Mais il faut bien noter que ces status définissent l’individu dans
ses relations avec quelque chose qui lui est extérieur, l’ordre social dans lequel il
s’insère”
Benedito Souza Filho
33
que se conecta diretamente a ele. Essa relação próxima à natureza
não deve ser pensada como uma espécie de metáfora, senão como
algo essencial que confere ao corpo substância (LEENHARD, 1997).
No contexto africano se verificam concepções semelhantes
à dos Canaques da Melanésia. Vínculos com a natureza ou com o
cosmo formam parte desse repertório de práticas que conferem sin-
gularidade a distintos grupos africanos e que marcam de maneira
radical o sentido de corpo e pessoa. Como sugere Pierre Bourdieu,
como “produtos sociais, as propriedades corporais são apreensíveis
através de categorias de percepção e de sistemas de classificação
sociais” (BOURDIEU, 1977, p. 51).
No seio muitas sociedades africanas, variadas são as ca-
tegorias de percepção do corpo. Na maioria delas prevalece uma
perspectiva mais integral dos indivíduos, sendo esses determina-
dos por uma conjunção de elementos referidos ao mundo natural
ou mesmo espiritual. Amadou Hampté Ba, ao tratar da noção de
pessoa, tomando como referência as etnias Peul e Bambara, argu-
menta que ela comporta elementos da natureza psíquica, física e
espiritual. Nessa visão integral da pessoa, como sublinha Hampaté
Ba (1993:183) “a existência física que se inicia com a concepção é
precedida de uma pré-existência cósmica. Neste estado, o homem
é considerado como residindo no reino do amor e da harmonia” 10.
Os Dogon possuem uma noção de pessoa igualmente ho-
lística, determinada por diferentes planos que podem ser sintetiza-
dos pelo termo kikinu. Para estes, uma pessoa é composta por 1) um
10 Tradução livre do texto: “l’existence physique qui débute avec la conception
est précédé d’une préexistence cosmique. Dans cet état, l’homme est censé résider
dans le royuane de l’amour et de l’armonie”.
34
Escravidão e a resignificação de corpos dos africanos
corpo material que abriga os princípios espirituais, cuja substância
simbólica agrega quatro elementos essenciais: a água (o sangue e
líquidos dos corpos), a terra (esqueleto), o ar (sopro vital) e o fogo
(o calor animal); 2) oito grãos simbólicos localizados nas clavículas
que, além de representar os cereais que utilizam, expressam a bissexualidade inerente aos seres humanos; 3) o náma, que representa
a força vital; 4) oito kikinu, que são os princípios espirituais referidos à personalidade e humor da pessoa. (Dieterlen, 1993: 206; Le
Breton, 2001:26).
Além dos Dogon, dos Yorubá, dos Bambara, outros exem-
plos de concepção de pessoa como verificado no caso dos Bobo, dos
Tallensi, dos Zarma, dos Lugbara, poderiam ser acrescentados, for-
mando uma longa lista. O que vale reter é que apesar dessas distintas representações acerca da noção de corpo e pessoa, em todas
elas está presente uma perspectiva holística do indivíduo, no qual
o mesmo não é concebido em sua dimensão estritamente física e
individual.
As distintas concepções de corpo e pessoa existentes na
África são reveladoras de complexidades simbólicas. Foi justamente
nestes elementos essenciais que os africanos foram afetados quan-
do capturados, convertidos em escravos e transportados ao Brasil.
O holismo e a polissemia que a noção de corpo e pessoa abrigava,
foram brutalmente violentados nesse movimento de reinscrição de
significados. Além de ter que suportar as agressões físicas a que
estiveram permanentemente submetidos, os africanos e afriocanas
trazidos para o Brasil tiveram que suportar também a violência simbólica que a condição de escravo impôs.
Benedito Souza Filho
35
A resignificação de corpos
A resignificação de corpos representa uma mudança radical
no que concerne à singularidade que caracterizaria um ser humano,
definido por seu sistema social, cultural e simbólico de referência.
Leva também à impossibilidade de reproduzir, em outro contexto,
um padrão de vida semelhante ao observado em um espaço social
originário. Reincorporar significados representaria uma Ação vio-
lenta de despojar o africano de sua roupagem cultural. Essa pro-
priedade viva na qual ele é convertido, representa, por assim dizer,
a coisificação de seres humanos, suprimindo sua condição de seres
viventes destituídos de valor e dignidade.
A transformação do africano em escravo provocou um pro-
cesso de imersão compulsória em um novo padrão de vida, no qual
o corpo, como unidade afetada por essa resignificação, foi forçosa-
mente obrigado a adaptar-se. Este novo modelo de sistema social,
por sua natureza coercitiva, recobre com outra roupagem este ator
social transformado, que passa a vivenciar uma nova condição social.
No contexto de algumas sociedades africanas, o corpo, que
não se separa ou distingue da noção de pessoa, funciona como elemento que orienta e marca ciclos na organização social de muitos
grupos. Os ritos de passagem ou de mudança de status, por exem-
plo, são definidos em muitos casos pelo ciclo de desenvolvimento
biológico. É também no corpo de seus membros que os grupos étni-
cos ou tribais estabelecem suas marcas corporais distintivas, como
demonstraram Evans-Pritchard (1993) e Victor Turner (1973) em
seus trabalhos sobre os Nuer e os Ndembu respectivamente.
36
Escravidão e a resignificação de corpos dos africanos
Os sinais corporais no contexto africano apresentam sig-
nificados específicos, definindo pertencimentos a determinados
grupos ou etnias e estabelecendo vínculos de caráter coletivo, sem
os quais os indivíduos não se sentem plenamente integrados. É
também no corpo de seus membros que muitos grupos étnicos ou
tribais estabelecem suas marcas distintivas. As fotos de Christiano
Junior e uma das muitas litografias feitas por Johann Moritz Rugen-
das11 quando esteve no Brasil, mostram essas marcas corporais dos
africanos.
Escravos com marcas étnicas (Azevedo e Lissovsky, 1988)
11 . Slenes (2002), faz uma importante análise acerca da escravidão no Brasil e também sobre a representação do corpo do escravo a partir das litografias de Rugendas.
Benedito Souza Filho
37
Negros Moçambique, (Rugendas, 2002)
Quando os africanos foram forçosamente trazidos ao
Brasil, outras marcas foram impressas nos seus corpos: as de seus
donos. É por essa razão que Jacob Gorender destaca: “daí ter sido
usual a prática de marcar o escravo com ferro em brasa como se fe-
rra gado. Os negros eram marcados já na África, antes do embarque,
e o mesmo se fazia no Brasil, até no final da escravidão. No século
38
Escravidão e a resignificação de corpos dos africanos
XIX, anúncios de jornal12 comunicavam ao público a marca gravada
na carne do escravo fugitivo, em regra com as iniciais do nome e
sobrenome do proprietário” (1978:64).
O uso da marca impressa com ferro em brasa não estava
restrito aos escravos adultos, “o ferro em brasa não respeitava sexo
nem idade. Indivíduos ainda púberes [crianças entre 10 e 12 anos de
idade] eram selados, tal como adultos” (Goulart, 1971, p. 68) (colchetes do autor).
A escravização dos africanos, além de representar a ruptu-
ra com seu meio social de referência, introduziu mudanças relativas
a vivencia de seus corpos e de suas identidades. Suas singularidades étnicas ou tribais foram violentadas e impuseram-lhes novas
formas de identificação social. O tráfico de seres humanos propor-
cionou uma mudança que tentou suplantar as diferenças através de
uma homogeneização como instrumentos de trabalho.
A resignificação de corpos dos africanos foi a violência pri-
meira, a violência simbólica (Bourdieu, 1994, p. 145) que permitiu
a introdução da caracterização de ser social inferior, de alguém que
já não tinha poder ou autonomia para tomar decisões. Seus corpos,
de certo modo, já não lhes pertenciam integralmente. O sentido do
“eu”, de que fala Mauss (1979), sofreu um processo de transfor-
mação radical. A ação violenta de resignificação encarregou-se de
proceder à ruptura.
A condição de escravo introduziu um sentido de proprie-
dade, já que ele era percebido como uma mercadoria disponível
12 Gilberto Freyre (1979) foi um dos que dedicou atenção ao estudo da escravidão
no Brasil a partir de anúncios sobre escravos publicados em jornais brasileiros do
século XIX.
Benedito Souza Filho
39
para a venda em um mercado. Por outro lado, a idéia de proprie-
dade converteu o escravo em coisa, mas apesar de não ser levado
em consideração, esse mesmo escravo, ademais de ter um corpo,
possuía capacidades intelectuais e uma subjetividade como qualquer outro ser humano (Gorender, 1978, p. 63). A violência da coisi-
ficação de homens e mulheres africanos significou, desse modo, um
processo de desumanização.
O duplo significado de ser coisa e pessoa ao mesmo tempo,
definiu uma contradição própria da condição de escravo. É por essa
razão que Gorender afirma
que a contradição inerente ao escravo, entre ser coisa e ser
homem, não se manifestou e desenvolveu primordialmente
na cultura, nas ideologias. Primordialmente, a contradição
foi manifestada e desenvolvida pelos próprios escravos, enquanto indivíduos concretos, porque, se a sociedade os coisificou, nunca pôde suprimir neles ao menos o resíduo último
de pessoa humana. Antes que os costumes, a moral, o direito
e a filosofia reconhecessem a contradição e se preocupassem
com resolvê-la de modo positivo, em favor da legitimação da
instituição servil, conciliando os termos coisa e pessoa, antes
disso os próprios escravos exteriorizaram sua condição antagônica, na medida em que reagiram ao tratamento de coisas
(1978, p. 63).
A partir do momento que os escravos foram submetidos
a um processo de deculturação13 (RIBEIRO, 1975, p. 144), ou seja,
quando são arrancados contra sua vontade de seu contexto cultu-
ral e inseridos em outro completamente distinto, novas formas de
13 - “O processo de deculturação, exemplificável pelo caso dos escravos desgarrados de suas matrizes para servirem a amos estrangeiros e submetidos a uma série
de compulsões destinadas a desenraizá-los de suas tradições originais” (RIBEIRO,
1975, p. 144)
40
Escravidão e a resignificação de corpos dos africanos
pensar e utilizar seus corpos são impostas por outros atores sociais
externos a eles e que mantêm com eles uma relação de dominação.
Como instrumento prático e movente, o africano foi desti-
tuído de liberdade, de livre arbítrio, o que o fez reunir as três características definidoras do ser escravo conforme destaca David Brion
Davis (1970, p. 46) em seu trabalho The Problem of Slavery in Western Culture: não ter autonomia, não ter vontade, viver submetido.
Dito de outro modo, ser propriedade de outro, ter seus desejos e
necessidades controlados por seu dono e sua força de trabalho ser
conseguida por meio da coerção.
A resignificação de corpos representou uma superposição
violenta de novos significados simbólicos, todos eles resultantes das
alterações sofridas com relação ao uso e grau de autonomia. Sig-
nificou um duplo processo de despersonificação e desumanização.
Marcados por relações de poder, estes dois momentos representaram um modo de estabelecer diferenças com o intuito de ratificar
a inferioridade do escravo como tipo social, amputando-lhe características que pudessem caracterizá-lo como pessoa ou como ser
humano. Tal despersonificação representou um ato consciente de
inferiorizar e violentar o escravo num traço fundamental: sua condição humana. Ser despojado dessa condição significou localizar o
escravo em um mundo à parte.
Em relação a essa condição humana que a lógica escravista
nega ao africano convertido em escravo, vale à pena ressaltar os
elementos essenciais. Hanna Arendt trata da condição humana utilizando a noção de vita activa. Segundo essa autora, o labor, o tra-
balho e a ação constituiriam as três atividades fundamentais para a
caracterização da condição humana. Como sustenta Hanna Arendt:
Benedito Souza Filho
41
Labor es la actividad correspondiente al proceso biológico del
cuerpo humano, cuyo espontáneo crecimiento, metabolismo
y decadencia final están ligadas a las necesidades vitales producidas y alimentadas por la labor en el proceso de la vida.
La condición humana de la labor es la vida misma. Trabajo es
la actividad que corresponde a lo natural de la exigencia del
hombre, que no está inmerso en el constantemente repetido
ciclo vital de la especie (...) El trabajo proporciona un “artificial” mundo de cosas, claramente distintas de todas las circunstancias naturales (...) La condición humana del trabajo
es la mundanidad. La acción, única actividad que se da entre
los hombres sin la mediación de cosas o materia, corresponde
a la condición humana de la pluralidad, al hecho de que los
hombres, no el Hombre, vivan en la Tierra y habiten en el
mundo” (Arendt, 1993, p. 21).
Hanna Arendt argumenta que todos somos suscetíveis
de condicionamentos, pois todas as coisas com as quais mantemos
contato se transformam em elementos essenciais para a condição
de nossa existência. A autora chama a atenção para que não se faça
confusão entre condição humana e natureza humana.
La condición humana no es lo mismo que la naturaleza humana, y la suma total de actividades y capacidades que corresponden a la condición humana no constituye nada semejante a la naturaleza humana (...) ni siquiera la más minuciosa
enumeración de todas ellas, constituyen las características
esenciales de la existencia humana, en el sentido de que sin
ellas dejaría de ser humana dicha existencia (Arendt, 1993,
p. 23).
É justamente essa dimensão essencial da existência huma-
na que se vê mutilada quando os arrancados da África são convertidos em escravos.
A despersonificação é uma dimensão própria da escravi-
dão. Nesse processo, o corpo dos escravos além de ser transforma-
42
Escravidão e a resignificação de corpos dos africanos
do em máquina de trabalho, foi alvo também de abusos sexuais.
Neste campopôs um principio humanizador senão um determinante de coisificação, de um ritual que marca a propriedade. Batizar e
nomear, além de representar um ato de violência religiosa, signifi-
cou também uma forma de identificar um ser humano como per-
tencente a outro. O caráter religioso do batismo e da atribuição de
um novo nome ao escravo serviu para afastá-los ainda mais de suas
origens. Tais atos confirmavam sua condição de coisa que pertence
a outro e, portanto, deve levar sua marca correspondente.
Como já mencionado, as marcas sociais e os referentes cul-
turais dos africanos eram inscritos diretamente nos seus corpos.
Essas marcas sociais têm também significado simbólico. A retira-
da de prepúcios, de clitóris, de dentes, de dedos; as escarificações,
incisões, moldeio de dentes, tatuagens; modificação de orelhas e
pescoços, por exemplo, formam parte do longo repertório de sinais
identitários que se inscreviam nos corpos dos africanos e interrompidos em muitos casos pela escravidão.
A resignificação de seus corpos representou uma ação que
violentou de forma radical os seus referentes culturais, sociais e
simbólicos. Encobriu os sinais distintivos de um contexto do qual
vieram e que física e socialmente deixaram de vivenciar. As novas
marcas físicas e simbólicas que seus corpos adquiriram na diáspora
forçada, marcaram para sempre suas vidas.
Certas manifestações que escapavam ao âmbito do trabal-
ho, como danças ou festas, que faziam com que esquecessem por
uns breves momentos o mundo de sofrimento, também refletiam
a relação assimétrica entre senhores e escravos, já que segundo o
Benedito Souza Filho
43
contexto podiam ser permitidas, toleradas ou mesmo proibidas14 .
Quando essas situações de descontração eram permitidas tampou-
co deixavam de ser enquadradas nas estratégias de dominação dos
senhores, já que eram toleradas como forma de apaziguar os ânimos dos subordinados.
Essas poucas oportunidades que os escravos tiveram de es-
tabelecer contato com suas raízes culturais por meio das danças ou
atos festivos podem ser lidas como concessões feitas que serviam
para demonstrar que eram apenas momentos de lembrança de um
mundo ao qual pertenciam e para o qual não podiam regressar.
14 Acerca das festas e danças de escravos, leia-se Ramos (1935; 1938); Cascudo
(1954) e Scarano (1975).
44
Escravidão e a resignificação de corpos dos africanos
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46
47
Africanidadedes nos subterrâneos da
formação do Novo Mundo
Josenildo de Jesus Pereira
Angola
48
Africanidades nos subterrâneos da formação
do Novo Mundo
Josenildo de Jesus Pereira 1
Introdução
A expansão européia pelo Oceano Atlântico a partir do sé-
culo XV transformou-o num cenário de migrações intercontinentais
ao gerir o contato entre diferentes culturas e povos, dentre as quais
se destacam os europeus, os africanos e os nativos deste imenso território nomeado, a princípio de “Novo Mundo” e, por fim, “Amé-
rica”. Trata-se de um fenômeno histórico de matiz polissêmico uma
vez que a sua tessitura, bem como os seus desdobramentos, contêm
dimensões políticas, econômicas e sócio-culturais complexas, ain-
da passíveis de uma investigação arqueológica criteriosa que possa
trazer a lume nuances de sua historicidade. Afinal, para além dos
múltiplos negócios que lhe forjaram um sentido econômico, importa não esquecer que os envolvidos nesse processo vivenciaram
trocas culturais, conflitos, esperanças e angústias a partir do modo
como foi dada a sua inserção no mesmo.
Desse modo, vale sublinhar que as problemáticas que
emergem desses contatos entre povos e culturas têm inquietado historiadores, antropólogos, sociólogos e outros cientistas dos mais di-
versos referenciais teóricos e metodológicos. Até a década de 1970,
1. Professor Adjunto do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Maranhão.
50
Africanidades nos subterrâneos da formação do Novo Mundo
uma parte significativa dos estudos pautada pelo discurso colonial
europeu, por uma perspectiva sistêmica e teleológica da história
atribuía ao ocidente europeu a proeminência e a vanguarda da história constituída a partir desses contatos.
Sob essa perspectiva, Chaunu (apud. THORNTON, 1992)
considerava que se a história fosse a história do movimento e da
iniciativa, a história européia era o único movimento histórico
realmente importante. Nesse sentido, os títulos de livros: história
moderna, a transição do feudalismo para o capitalismo; a evolução
do capitalismo; o mercantilismo e a colonização, a acumulação pri-
mitiva de capital, entre outros são indicativos do perfil ideológico
dessa historiografia que discute a experiência histórica verificada
nos marcos dos séculos XV e XVIII. Desse modo, outras sociedades
atlânticas e não ocidentais foram “jogadas” no limbo desse processo
histórico por entenderem que o mundo não ocidental, incluindo a
África, foi passivo na configuração dessa historicidade.
Em 1949, o historiador francês, Fernand Braudel, ao pu-
blicar O Mediterrâneo e o Mundo do Mediterrâneo nos tempos de
Felipe II, inovou a historiografia francesa e a maneira de definir as
regiões introduzindo o conceito de “história integrada pelo mar”. O
autor, na densa e profunda análise que desenvolve nessa obra ma-
gistral realçou as diferentes contribuições sociais e econômicas das
sociedades integradas pelo Mar Mediterrâneo. Nos primeiros estu-
dos realizados por Pierre e Hugette Chaunu (1955), Frederic Mauro
(1960) e Vitorio Magalhães Godinho (1962) a respeito do Oceano
Atlântico não se verifica tal preocupação, pois os mesmos estavam
concentrados na Europa Ocidental em detrimento de outras so-
ciedades atlânticas embora, não desconhecessem que os povos da
Josenildo de Jesus Pereira
51
América e da África também participaram na economia atlântica
nesse período. Assim, a formação do “Mundo Atlântico” parece, ao
contrário do Mediterrâneo, como sendo dominado pelo europeu;
ou seja, que a “civilização do Renascimento” subtraiu as outras so-
ciedades atlânticas e não ocidentais à sua dinâmica e força histórica.
De acordo com Thornton (1992) esse eurocentrismo não era
simplesmente chauvinista, mas um ponto crucial da análise, pois a
maioria dos historiadores parecia acreditar que as civilizações do
continente africano e americano estavam num nível significativa-
mente mais baixo de desenvolvimento em relação as da Europa. Importa sublinhar que a formação histórica do Brasil é parte integrante
desse processo mais amplo de constituição do “Mundo Atlântico”.
Desse modo, aqui, também, pretenderam explicar o Brasil. Com
esse propósito, em 1942, Caio Prado Jr intelectual marxista, publicou a obra A Formação do Brasil Contemporâneo, na qual, destaca
a colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais completa que a antiga feitoria, mas
sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar
os recursos naturais de um território virgem em proveito do
comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização
tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no econômico como no
social, da formação e evolução histórica dos trópicos americanos. (PRADO Jr., 1980:310)
A respeito da participação de povos africanos nesse proces-
so, o autor caudatário da perspectiva eurocêntrica da história e da
hierarquia cultural entre as civilizações argumentou que estes não
poderiam ter contribuído positivamente para o desenvolvimento
econômico e social do Brasil. Por um lado, devido a sua condição
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Africanidades nos subterrâneos da formação do Novo Mundo
de escravos e por outro pelo estágio de barbárie em que se encontravam.
Nos anos de 1970, Novaes (1979), ao desenvolver uma aná-
lise densa acerca do Brasil e Portugal nos quadros da crise do An-
tigo Sistema Colonial, no contexto das relações de troca em escala
internacional, à época, também “deixou” de lado as contribuições
sócio-culturais africanas reafirmando a perspectiva econômica e
estrutural da formação brasileira com a rica tese de “Sistema Colo-
nial” alicerçado no tripé: monocultura, latifúndio e escravidão. Na
dinâmica desse sistema, a função histórica da colônia era produzir
riquezas para a metrópole, a qual, por sua vez realizava a acumu-
lação de capital por meio do monopólio comercial. No contexto dessa divisão internacional do trabalho cabia à Europa a produção das
manufaturas, à África a geração de escravos para o trabalho nas
plantations e a América, a produção de minerais e de artigos primários para a exportação.
Considerando que a formação do “Novo Mundo”, no con-
texto do “Mundo Atlântico”, não pode ser reduzida a um empreendimento econômico, concorda-se com Grunzinski (2001) ao salien-
tar que o hábito e o automatismo de intelectuais ao considerarem a
estrutura em detrimento do movimento da ação dos sujeitos sociais
na tessitura de suas experiências de vida mediadas por tensões,
continuidades e descontinuidades, relegam à margem da investi-
gação processos densos e complexos de configuração de novas sociabilidades a partir de contatos culturais.
Nesse sentido, vale sublinhar que a historicidade do “Novo
Mundo” no contexto do “Mundo Atlântico” é um dos resultados
desse processo de contatos culturais, ou seja, que se trata de uma
Josenildo de Jesus Pereira
53
formação histórico-social tecida sob a égide de um processo complexo de aculturação envolvendo europeus, africanos e nativos da
terra. A sua negação gerou, entre outros problemas, a invisibilização
da presença de povos e culturas não européias, nesse processo. O
fato é que elementos culturais indígenas e africanos constituintes,
também, das culturas americanas têm sofrido uma contínua desqua-
lificação quanto à sua lógica de sentido, bem como, a sua presença
nesse processo. No Brasil, em 2003, a partir de pressões políticas do
Movimento Negro organizado, o parlamento brasileiro promulgou
a Lei 10.639/03 com propósito de criar as condições para uma prática pedagógica anti-racista.
Lei Nº10. 639, de 9 de JANEIRO de 2003
Art .1º A Lei nº9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:
Art.26ª- Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre
História e Cultura Afro-Brasileira.
1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a
luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira…
§ 2º Os conteúdos referentes à história e cultura Afro-Brasileira, serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e Literatura e
História Brasileiras.
Art. 79-B O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro
como “Dia Nacional da Consciência Negra”.
Art . 2º Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação.
Brasília, 9 de janeiro de 2003.
Por meio deste documento os seus promulgadores recon-
hecem que o racismo é uma variável da cultura brasileira e, portan-
to, um mal que deve ser combatido. Nesse sentido ele é, também, o
54
Africanidades nos subterrâneos da formação do Novo Mundo
resultado de uma longa luta que se iniciou logo após a abolição do
trabalho escravo no Brasil, uma vez que o modo como foi encaminhado o processo gerou a marginalização econômica, social e cul-
tural daqueles que deveriam ser os seus beneficiados. Naquele con-
texto, conforme Abdias do Nascimento (apud. SANTOS, 2005:23) o
Sistema Educacional e a Escola da República recém instaurada, no
Brasil, em fins do século XIX, desempenharam uma função muito
eficaz, pois
O sistema educacional [brasileiro] é usado como aparelhamento de controle nesta estrutura de discriminação cultural.
Em todos os níveis de ensino brasileiro – elementar, secundário, universitário – o elenco das materiais, como se se executasse o que havia predito a frase de Silvio Romero, – “Nós
temos a África em nossa cozinhas, América em nossas selvas,
e Europa em nossas salas de visitas” – constitui um ritual da
formalidade e ostentação da Europa, e, mais recentemente dos Estados Unidos. Se consciência é memória e futuro,
quando e onde seta a memória africana, parte inalienável da
consciência brasileira? Onde e quando a história da África,
o desenvolvimento de suas culturas e civilizações, as características, do seu povo, foram ou são ensinadas nas escolas
brasileiras? Quando há alguma referência ao africano ou negro, é no sentido do afastamento e da alienação da identidade
negra. Tampouco na universidade brasileira o mundo negroafricano tem acesso. O modelo europeu ou norte-americano
se repete, e as populações afro-brasileiras são tangidas para
longe do chão universitário como gado leproso. Falar em
identidade negra numa universidade do país é o mesmo que
provocar todas as iras do inferno, e constitui um difícil desafio aos raros universitários afro-brasileiros.
Compreende-se que esta lei, por si mesma, não assegura
a execução de seus objetivos ao se considerar que o tempo da mu-
dança de mentalidade não é automático ao da promulgação da lei.
Afinal, se está lindando com uma variável cultural cujo fundamento
Josenildo de Jesus Pereira
55
ideológico é que a identidade dos grupos humanos é definida por
seus caracteres fenótipos os quais, por conseguinte, demarcam os
respectivos lugares sociais de cada grupo; daí, portanto, as noções
de que índios, brancos e negros tenham suas habilidades e vocações
naturais.
Em vista disso, para além da lei devemos discutir, também,
os pressupostos orientadores do processo de conhecimento e de for-
mação de atitudes em face do mundo no qual se está inserido. Com
este propósito faz-se, aqui, um esboço sumário do debate em torno
da teoria e da metodologia de investigação que trata dos processos
de contatos culturais com a perspectiva de abrir uma janela para
estudos que tratem da presença africana na historicidade da “América” no contexto do “Mundo Atlântico”.
Esclarece-se que o sentido da palavra “africanidades”
utilizada neste trabalho quer significar, a princípio, a presença de
africanos nesse processo de formação do “Novo Mundo e de novas
comunidades”.
Contatos culturais: um esboço teórico e
metodológico.
No que se refere à formação histórica do Novo Mundo (“A
América”), no contexto do “Mundo Atlântico”, a partir do século
XV, uma questão que se impõe é o reconhecimento e a importância
da presença de povos e culturas africanas nesse processo, sob as
condições criadas pela diáspora e a escravidão moderna. Conforme
Souza, os diversos povos africanos,
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Africanidades nos subterrâneos da formação do Novo Mundo
Ao serem arrancados de seus lugares de origem, transportados do interior da África pelos rios e rotas terrestres, agrupados nos portos de embarque, e depois da travessia do Atlântico, reagrupados nos plantéis, nos sítio, nas casas em que
trabalhariam, viviam processos traumáticos de quebra das
estruturas sociais que davam base de sua inserção no mundo,
tendo que encontrar novos termos de convivência e de apreensão da realidade ao seu redor. Eles, envoltos pela incerteza
quanto ao seu destino e imersos precariamente nos porões
dos navios negreiros, embora de diferentes etnias e falando
línguas distintas, tornaram-se malungos. (SOUZA, 2003:147148)
Slenes (2000:213-214), em sua análise da etimologia da pa-
lavra malungo nas línguas banto Kikongo, Kimbundu e Umbundo
compreende que ela significava não apenas “barco”, ou “camarada de embarcação”, mas “companheiro de travessia da vida para
morte (branca), e “possível companheiro da viagem de volta para
o mundo (preto) dos vivos”. Nesse sentido, para ele, a história de
“malungo” encapsula o processo pelo qual os escravos, falantes de
línguas bantu diferentes e provindos de diversos grupos de origem,
começaram a descobrir-se como “irmãos”.
Sob essa perspectiva, no próprio contexto da diáspora afri-
cana já se verificava um processo de aculturação entre povos africanos. Na América, sob as condições que as relações escravistas lhes
impunham, os diversos povos africanos tiveram que articular a sua
inserção nesse mundo uma vez que estavam (des)territorializados,
tanto social quanto culturalmente. E, assim, o fizeram! Esta questão
continua instigando o debate em torno da compreensão do processo
de reconfiguração de suas vidas em meio à escravidão e ao processo
de formação sócio-histórica da América. Em 1888 o crítico literário
Josenildo de Jesus Pereira
57
brasileiro Silvio Romero, apesar de seus estereótipos racistas, cobrava da ciência no Brasil estudos relativos aos africanos sublinhando...
É uma vergonha para a ciência no Brasil que nada tenhamos
consagrado de nossos trabalhos ao estudo das línguas e das
religiões africanas (...) nós que temos a África em nossas cozinhas, como a América em nossas selvas, e a Europa em nossos salões, nada havemos produzido nesse sentido! Vamos
levianamente deixando morrer os nossos negros da Costa
como inúteis (...) O negro não é só uma máquina econômica;
ele é antes de tudo, e malgrado sua ignorância, um objeto de
ciência. (apud RODRIGUES, 1976: XV).
Os africanos escravizados reproduziram strictu sensu as
suas tradições ou reinventaram-nas a partir dos contatos com outras culturas gerando, assim, novos referentes culturais? De acordo
com Thornton,
Atuação dos escravos africanos teve um duplo impacto. Por
um lado, eles foram trazidos para trabalhar e servir, e, em
razão do esforço pessoal e de seu grande número, contribuíram significativamente para a economia. Por outro lado, eles
trouxeram uma herança cultural de linguagem, estética e filosófica que ajudou a formar a nova cultura do mundo atlântico. Esses elementos da dupla contribuição dos africanos estão
inter-relacionados. (THORNTON, 2004:189/190).
Até a primeira metade do século XX, as teorias científicas
como o positivismo, o evolucionismo e o darwinismo social impor-
tadas da Europa e em voga na América, em grande medida, contribuíram para a construção do racismo científico. Assim, parte dos
intelectuais tinha uma visão pautada por preconceitos racistas em
relação aos africanos. Em 1830, o filosofo alemão Hegel em seu Curso sobre a Filosofia da História, sublinhou
58
Africanidades nos subterrâneos da formação do Novo Mundo
A África não é uma parte histórica do mundo. Não tem movimentos, progressos a mostrar, movimentos históricos próprios dela. Quer isto dizer que a sua parte setentrional pertence ao mundo europeu ou asiático. Aquilo que entendemos
precisamente pela África é o espírito a-histórico, o espírito
não desenvolvido, ainda envolto em condições de natural e
que deve ser aqui apresentado apenas como no limiar da história do mundo. (apud. KI-ZERBO, Joseph. 1999: 10).
Caudatário desta perspectiva, em 1928, o francês Cou-
pland, na obra L´Historie de l´Áfrique Orientale disse que “até D.
Livingstone (...) a maior parte dos seus habitantes tinha permaneci-
do, durante tempos imemoriais, mergulhados na barbárie. Tal fora,
ao que parece, o desígnio da natureza. Eles permaneciam no es-
tagnamento, sem avançar nem recuar” (apud KI-ZERBO, 1999:10).
Do mesmo modo, em 1953, Eugène Pittard, no livro Lês Races et
L´Historie destacou,
As raças africanas propriamente ditas – a exceção do Egito e
de uma parte da África Menor – não participaram da história,
tal como a entendem os historiadores...Não me recuso aceitar
que tenhamos nas veias algumas gotas de um sangue africano (de africano de pele amarela), mas devemos confessar que
aquilo que dela pode subsistir é muito difícil de encontrar.
Portanto, apenas duas raças humanas que habitam a África
desempenharam um papel digno de nota na história universal: em primeiro lugar e de maneira considerável, os Egípcios; depois, os povos do Norte de África”. (apud KI-ZERBO.
1999:10/11)
Foram estas noções orientadas pelo discurso racial forja-
do no âmbito do colonialismo europeu, sobretudo, no século XIX,
que fundamentaram as representações desqualificantes da África
no imaginário ocidental. O resultado foi a produção de uma histo-
riográfica racista vigente, no Brasil, até o início da década de 1980.
Josenildo de Jesus Pereira
59
Entre as suas conseqüências vale destacar a redução dos povos e
culturas africanas a uma identidade baseada, apenas, no fenótipo,
com destaque para a cor “negra” e a sua condição de escravos. E,
por conseguinte, o ocultamento parcial de sua presença no processo de tessitura da “América”. Desse modo, os africanos, em geral,
ainda são apresentados apenas como escravos, isto é, como bens
tangíveis no mercado: alugado, vendido, comprado; ou, em sua re-
beldia e, por isso, castigados sob diferentes modos. Quando muito,
se destacavam as suas festas e práticas religiosas, mas, ainda assim,
como cultura de segunda classe sob o epíteto de cultura popular ou
folclore.
No contexto da América, essas noções racistas cerca dos
africanos e das gerações subseqüentes começou a ser criticada pelo
antropólogo norte-americano M. Herskovits ao publicar, nos EUA,
o livro The myth of negro past, em 1941. Para este autor, à época, as
pesquisas relativas às culturas de origem africana, nos EUA, eram
uma tentativa de “melhorar a situação inter-racial” nesse país, por
meio de uma compreensão da história do negro, até então ignorada. Sob essa perspectiva, o livro foi construído para derrubar cinco
mitos vigentes até então:
O primeiro deles era que os negros, como crianças, reagem
pacificamente a “situações sociais não satisfatórias”. O segundo, que apenas os africanos mais fracos foram capturados; os mais inteligentes fugiram com êxito. O terceiro, como
os escravos provinham de todas as partes da África, falavam
diversas línguas, vinham de culturas bastante variadas e foram dispersos por todo o país, não conseguiram encontrar
um “denominador cultural” comum. O quarto, que, embora
negros da mesma origem tribal conseguissem, às vezes, manter-se juntos nos EUA, não conseguiam manter a sua cultura
porque esta era patentemente inferior à dos seus senhores e
60
Africanidades nos subterrâneos da formação do Novo Mundo
o quinto, “o negro era um homem sem um passado”. (apud.
FRY, Peter e VOGT, Carlos. 1996: 24)
A este respeito, Sousa, destaca acerca deste autor que ele
Opondo-se ao que considerou o mito da inexistência de um
passado negro, argumentou que os africanos trazidos para as
Américas eram povos com complexos sistemas sociais, políticos e religiosos, e que se a escravidão e a opressão não permitiram o transporte integral destes sistemas, também não
destruíram os hábitos, maneiras de pensar e sentir de suas
vítimas. (SOUSA, 2002:151).
A partir de seus estudos, Herskovits abriu uma vereda
para as análises da formação histórica, sócio-cultural da América
sob a perspectiva da aculturação, ou em outras palavras, como um
processo urdido pela tessitura dos contatos culturais. Mas, como
abordá-lo?
Segundo Gruzinski (2001: 26), “primeiro, talvez, aceitan-
do-os tais como nos aparecem, em vez de nos apressarmos em desarrumá-los e submetê-los a triagens que supostamente localizariam,
e depois isolariam, os elementos que formam o conjunto”.
A este respeito, Wachtel (1988) sem desconsiderar as re-
lações de dominação que perpassam esse processo, distingue dois
tipos de contato: o de aculturação imposta e aculturação espontânea. O primeiro tipo ocorre quando o processo de aculturação é
dirigido pelo grupo dominante e é pautado pela violência ou por
sanções difusas. O segundo ocorre quando não há o controle direto
sobre a sociedade dominada. Assim, esse processo se realiza por um
movimento de integração e ou assimilação. O primeiro ocorre quan-
do os elementos estranhos submetidos aos esquemas e categorias
da cultura original e, mesmo provocando mudanças no conjunto
Josenildo de Jesus Pereira
61
da sociedade, adquirem sentido a partir dos valores autóctones. Por
sua vez, a assimilação dá-se quando a adoção dos elementos estrangeiros provoca a eliminação das tradições originais.
Para Ramos (1979: 245), o processo de aculturação dá-se
sob três modos: aceitação, adaptação e reação.
1. Dá-se a aceitação, quando a nova cultura é aceita, com
perda ou esquecimento da herança cultural mais velha; há
então aquiescência de todos os membros do grupo, e, como
resultado, a assimilação, por eles, dos padrões culturais e dos
valores interiores da nova cultura, com os quais entraram em
contato.
2. Na adaptação, ambas as culturas, a original e a estranha,
combinam-se intimamente, num mosaico cultural, num todo
harmônico, com reconciliação de atitudes em conflito.
3. Há reação, quando surgem movimentos contra-acuturativos, ou por causa da opressão, ou devido aos resultados
desconhecidos da aceitação dos traços culturais estranhos.
As culturas originais mantêm então sua força psicológica, ou
como compensações a sentimentos de inferioridade, ou pelo
prestígio dados aos indivíduos com o retorno a suas velhas
condições pré-aculturativas.
Do ponto de vista de Vogt & Fry (1996), elaborado a partir
da pesquisa realizada na década de 1980, sobre o bairro do Cafundó, uma comunidade negra rural, situado no município de Salto de
Pirapora, localizada a doze quilômetros da sede, trinta de Sorocaba
e a 150 Km da cidade de São Paulo/Brasil, há duas maneiras de se
abordar o tema – uma filológica ou historicizante e uma históricoestrutural.
No primeiro caso, a preocupação é com o estabelecimento
de que certos traços culturais encontrados no Brasil contemporâneo
de fato existem ou existiram na África. O cientista social, por meio
62
Africanidades nos subterrâneos da formação do Novo Mundo
deste exercício descobre os “africanismos” dos quais os brasileiros
não tinham conhecimento (é o caso de certos ritmos e palavras), ou
legitimam com o carimbo cartorial da ciência as afirmações locais.
Os autores, porém, criticam este método porque o mesmo tende,
“a diminuir a importância das condições históricas e sociais
que fizeram e fazem com que tais traços culturais acabem sobrevivendo à travessia atlântica e se reproduzindo ao longo
das gerações aqui no Brasil. Além disso, tende a minimizar o
processo histórico ao longo do qual esses traços mudam de
sentido e significação. (VOGT & FRY. 1996:24)
Eles destacam que “essa concepção de cultura leva a ver os
“africanismos” no Brasil como sintoma de uma certa pujança meta-
física das culturas africanas” . (VOGT & FRY. 1996:24). Por isso re-
alçam a importância da abordagem histórico-cultural porque trata
do
problema da reprodução e transformação da cultura e procura resolvê-lo por meio do estudo das relações sociais concretas nas quais os traços culturais se articulam” privilegiando
a “natureza política e econômica das relações entre os articuladores dos “africanismos” e a sociedade envolvente (VOGT
& FRY. 1996:25/26).
Na aplicação deste método ao estudo da “língua africana”
(Cucópia) da comunidade Cafundó, os autores concluíram, “ao que
tudo indica, o seu papel social está relacionado com o que se pode
chamar “uso ritual”’ possibilitando, a um só tempo
uma forma de interação de social, quer no interior do grupo,
quer entre este e a sociedade envolvente, que difere daquelas
que normalmente caracterizam as relações de trabalho num
sistema produtivo. Tudo se passa como se, por uma espécie
de mecanismo compensatório, fosse criado um espaço mítico no interior da situação de degradação econômica e social,
Josenildo de Jesus Pereira
63
característica da história das populações negras do Brasil, espaço no qual seria possível uma como renovação ritual de
certa identidade perdida. (VOGT & FRY. 1996:26)
Ao considerar-se o Oceano Atlântico como um cenário de
encontros de povos e culturas distintas a partir dos séculos XV é
impossível não reconhecer que dos encontros entre os habitantes
nativos da “América” com os europeus e os africanos uma nova historicidade foi tecida pela mistura dialógica entre o estranhamento,
o medo, a violência e a troca; cujo efeito foi, em longo prazo, a con-
figuração de complexas práticas sócio-culturais típicas de mundo
mestiço. Desse modo, concorda-se Gruzinski em sua critica a antropólogos estruturalistas que
De tanto contraporem “sociedades frias” que supostamente
deviam resistir às transformações históricas, a “sociedades
quentes”, que viveriam da mudança, criaram um mito que
confortou os clichês que acabamos de evocar, assim como
desencorajou o estudo de uma pré-história que, agora se
sabe, estende-se por mais de dez milênios. Foi também por
essa razão que outras Amazônias, mais misturadas, mais expostas às influências ocidentais, ficaram à sombra; Amazônias “contaminadas”, onde, hoje, os arquivos nos permitem
recuar até o século XVII, e mesmo ao finalzinho do século
XVI. (GRUZINSKI, 2001: 34)
Em seus estudos relativos à Amazônia, Gruzinski (2001:34)
sublinhou que, “como em tantos outros lugares do continente ame-
ricano, essa primeira colonização se passou sob o signo do caos e
da mestiçagem”. Nesse sentido, o antropólogo mexicano Gonzalo
Aguirre Beltrán que estuda o processo de aculturação no México
colonial e contemporâneo já havia salientado que as mestiçagens
são resultados da
64
Africanidades nos subterrâneos da formação do Novo Mundo
luta entre a cultura européia colonial e a cultura indígena.
[...] Os elementos opostos das culturas em contato tendem a
se excluir mutuamente, eles se enfrentam e se opõem uns aos
outros; mas, ao mesmo tempo, tendem a se interpenetrar, a
se conjugar e se identificar. (BELTRÁN, apud. GRUZINSKI
2001: 45)
Parece-nos promissor a proposta de pensamento mestiço
de Serge Gruzinski, pois com ele quebram-se fronteiras rígidas
abrindo veredas muito positivas à pesquisa no campo da história
social e cultural uma vez que suas proposições para a interpretação
de experiências sociais levam em consideração as temporalidades,
as continuidades e descontinuidades, as permanências e rupturas
que permeiam as relações sociais expressando a subjetividade dos
sujeitos sociais na construção e desconstrução de suas experiências
de vida. Mas, sobretudo, por chamar atenção para o fato de que as
categorias de análises são mediações para se tentar compreender
os processos históricos, pois, as experiências de vida não estão sub-
metidas a um “sistema cartesiano” e, por conseguinte, os sujeitos
sociais com os seus lugares definidos a priori e, por isso, capazes
de serem decodificados por categorias “frias”. Portanto, para que
se compreendam os mundos mesclados, compartilha-se da proposição de que é preciso
Aceitar em sua globalidade a realidade mesclada que temos
diante dos olhos é um primeiro passo (...) A mistura estaria,
invariavelmente, sob o signo da ambigüidade e da ambivalência. A dissecação – que chamamos análise- não tem apenas
o inconveniente de fazer a realidade explodir; no mais das
vezes, ela projeta filtros, critérios e obsessões que só existem
em nossas visões de ocidentais (GRUZINSKI, 2001: 26).
Josenildo de Jesus Pereira
65
Em termos metodológicos trata-se de uma crítica à noção
de tempo teleológico e a história estrutural com as suas binaridades
peculiares: classe dominante x classe dominada; cultura erudita x
cultura popular; colonizadores x colonizados e a outros pares dicotômicos, pois,
Esse modo de ver as coisas imobiliza e empobrece a realidade, eliminando todo tipo de elementos que desempenham
papéis determinantes: as trocas entre um mundo e outro, os
cruzamentos, mas igualmente os indivíduos e grupos que fazem as vezes de intermediários, de passadores, e que transitam entre os grandes blocos que nós contentamos e, localizar
(GRUZINSKI, 2001: 48)
Por isso, Gruzinski, (2001: 48) destaca, “assim como o diagnóstico das origens costuma resultar em atribuições contestáveis,
as constatações de incompatibilidade projetam, em amálgamas de
aparência desconcertantes, interpretações que procedem mais de
nossas maneiras de ver do que da própria realidade”.
A partir destas considerações, este autor nos obriga a reconhecer o quanto é complexa, por um lado, a experiência sóciohistórica humana, mas, sobretudo aquelas que decorrem de encontros culturais e, por outro, o quanto é discursivo e ideológico o falar,
seja ele por escrito, iconográfico ou oral; e, por isso mesmo, a sua
compreensão é um processo em objetivação indeterminada. Pois,
como adverte,
Precisaríamos submeter nossas ferramentas de historiador a
uma crítica severa e reexaminar as categorias canônicas que
organizam, condicionam e, com freqüência, compartimentam
nossas pesquisas: economia, sociedade, civilização, arte, cultura etc (...) Se estas resistem tão fortemente à analise, é porque nossas rubricas habituais – sociedade, religião, política,
economia, arte, cultura – levam-nos a separar o que não pode
66
Africanidades nos subterrâneos da formação do Novo Mundo
sê-lo e a passar ao largo de fenômenos que transpõem as divisões clássicas. (GRUZINSKI, 2001: 55)
Africanidades no Novo Mundo: um esboço das idéias
Em linhas gerais, o conjunto de estudos elaborados a respeito da presença de africanidades nos subterrâneos da formação
histórica do Novo Mundo (A América), grosso modo, divide-se em
duas correntes – a que nega a presença destes dada a inferioridade
das culturas africanas, as quais foram, por isso, suprimidas no contato com as culturas européias. No Brasil, esses argumentos estão
presentes em estudos de Varnhagem, Sérgio B. de Holanda (1936),
Caio Prado Jr (1942). A outra, ao contrário, admite a presença. Contudo, não se encontra nenhum consenso, pois, para alguns o que
se verificou foi a permanência de tradições africanas enquanto que
para outros, ao contrário, o que se verificou foi um processo de aculturação decorrente de encontros culturais.
Considerando-se que o Novo Mundo não foi, apenas, um
empreendimento econômico urdido segundo a lógica do colonialismo europeu daquela época, compartilha-se da proposição de
MINTZ & PRICE (2001), segundo a qual,
Nenhum grupo, por mais bem equipado que esteja, ou por
maior que seja sua liberdade de escolha, é capaz de transferir de um local para outro, intactos, o seu estilo de vida e
as crenças e valores que lhe são concomitantes. As condições
dessa transposição, bem como as características do meio humano e material que a acolhe, restringem, inevitavelmente, a
variedade e a força das transposições eficazes. No processo
de povoamento do novo mundo é quase desnecessário dizer
que europeus e africanos tiveram uma participação altamente diferenciada. Embora, à primeira vista, talvez pareça que
Josenildo de Jesus Pereira
67
a continuidade e o vigor dos materiais culturais transpostos
tiveram um peso maior a favor dos europeus do que dos africanos, afirmamos que uma abordagem mais sofisticada do
teor desses materiais de transposição não respaldaria essa
conclusão simplista. (MINTZ & PRICE, 2003:19)
No Brasil, no que se refere à segunda corrente de pensa-
mento, em sua primeira variável, encontram-se os estudos que dão
ênfase, sobretudo, às religiões. Nina Rodrigues, com seus estudos,
embora permeados por um olhar racista criou as bases para o que
Vogt & Fry (1996:30) chamam de fase heróica dos estudos do negro
no Brasil, uma vez que ele se utilizou de “princípios de pureza ra-
cial” para fazer “pela sua aplicação extrema e contrária: o elogio da
pureza negra”. Assim, ele contribuiu para a idealização do “negro
como estrangeiro”, tal como sugerem os estudos das religiões afrobrasileiras.
Por volta dos anos de 1950, na conjuntura do pós-guerra,
se verifica o início da mudança do enfoque e da análise a respei-
to do negro e da África no Brasil. Nesse contexto, sobressaíram-se
os trabalhos escritos por Florestan Fernandes, Fernando Henrique
Cardoso e Otavio Ianni, constituindo a chamada Escola Sociológica
de São Paulo. Conforme Vogt & Fry (1996:35), “ao romantismo da
fase precedente substitui-se, então, um realismo de inspiração sociológica, de fundo social e de inspiração socialista”.
O médico maranhense Nina Rodrigues atendendo aos ape-
los de Silvio Romero, em fins do século XIX, deu início a uma pes-
quisa a respeito de remanescentes de africanos ainda existentes na
Bahia. Em seu estudo publicado só em 1906 escreveu,
Os destinos de um povo não podem estar à mercê das simpatias ou dos ódios de uma geração. A ciência, que não con-
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Africanidades nos subterrâneos da formação do Novo Mundo
hece estes sentimentos, está no seu pleno direito exercendo
livremente a crítica e a estendendo com a mesma imparcialidade a todos os elementos étnicos de um povo. Não o pode
deter a confusão pueril entre o valor cultural de uma raça e
as virtudes privadas de certas e determinadas pessoas. Por
conta dos condicionamentos intelectuais de seu tempo dizia
que “se conhecemos homens negros ou de cor de indubitável
merecimento e credores de estima e respeito, não há de obstar
esse fato o reconhecimento dessa verdade – que até hoje não
se puderam os negros constituir em povos civilizados. (RODRIGUES, 1976:04)
Para ele a condição da raça negra na América Latina era
completamente diversa da situação em que ela se encontra nos Es-
tados Unidos, onde estava envolvida por uma rígida política de
segregação racial. Na América Latina, mas, sobretudo, no Brasil, a
raça negra, predominando muitas vezes pela superioridade numérica, incorporou-se à população local no mais amplo mestiçamen-
to. Por isso, “em torno deste fulcro gravitou o desenvolvimento de
nossa capacidade cultural e no sangue negro havemos de buscar,
como em fonte matriz, com algumas das nossas virtudes, muitos
dos nossos defeitos. (Rodrigues, 1976: 13/14).
menta:
Arthur Ramos (1979), caudatário desta perspectiva arguO regime da escravidão – já escrevi – alterou por completo o
behavior social do negro. A escravidão triturou-os na mesma
grande pedra mó da opressão branca. No Novo Mundo, não
se podia falar em negros da cultura ocidental, ou negros pastores, ou negros de civilização maometana, ou súditos de
grandes reinados, ou ainda em descendentes de linhagens
aristocráticas. Aqui houve apenas negros escravos. As suas
culturas, eles as disfarçavam em formas caricaturais, para só
assim vencerem a censura dos brancos seus senhores. Talvez,
se salvaram, neste trabalho de distorção, as suas crenças, tal
o poder dinamogênico que as acompanhou. Porque o mais
Josenildo de Jesus Pereira
69
se tornou sobrevivência no folclore: língua, música, dança e
outras instituições sociais. (RAMOS, 1979: 240-241)
Como se pode notar, este autor, supõe-se, dado a força da
tradição racionalista, colonial e racista não conseguia pensar a historicidade da formação do Novo Mundo enquanto, de fato, uma
nova territorialidade urdida a partir de contatos culturais permeados por profundas contradições de toda ordem.
Nas últimas décadas do século XX, os estudos acerca de
contatos culturais e, em particular, da presença africana na América
têm sustentado a tese de que, aqui, ocorreu um processo de configuração de novas formas de sociabilidades a partir interelação entre
elementos da cultura européia, africana e a “ameríndia”. Segundo
Jan Vansina (apud. SOUZA, 2002:146), o tipo de sociedade surgida
a partir do tráfico de escravos, que combinava alto nível de auto-
nomia e descentralização com articulação a grandes circuitos integrados pelo comércio e pelas relações dele decorrentes, seria uma
contribuição da África Centro-Ocidental à história mundial. Assim,
o contato entre as sociedades africanas e européias produziu novas
e originais, diferentes das que as constituíram, não só na esfera da
cultura, mas também na organização social e política.
Nos EUA, o início da década de 1970, foi marcado pela afir-
mação dos direitos civis de negros e o estabelecimento de Programas de Estudos sobre Negros e Afro-americanos em Universidades
norte-americanas. Nesse contexto, Mintz & Price, pesquisando so-
bre este tema no Suriname, desenvolveram significativas reflexões
sobre as origens da cultura afro-americana. Nesse sentido argumentam que
70
Africanidades nos subterrâneos da formação do Novo Mundo
a heterogeneidade cultural dos africanos escravizados teve o
efeito de forçá-los, em princípio, a deslocarem-se de sua base
sócio-cultural original para o novo mundo. Esse processo de
reorientação cultural foi radical e mais extremo em relação
aos colonizadores europeus no Novo mundo; pois, uma cultura, torna-se ligada intimamente aos contextos sociais no
qual os laços afetivos são experienciados e percebidos. Com
a destruição desses laços os grupos culturais são destruídos
inevitavelmente até que sejam criadas novas estruturas institucionais que permitam a recriação de novos prazeres, baseados sobre o passado. (MINTZ & PRICE 1972:46-47)
Slenes (2000, p. 214-216) intervém no debate pensan-
do-o a partir da influencia de marcos referencias próprios de africa-
nos, tal como a singularidade da tradição nas culturas africanas. A
este respeito, Hampaté Bâ nos diz que,
Quando falamos de tradição em relação à história africana,
referimo-nos à tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos africanos terá validade a
menos que se apóie nessa herança de conhecimento de toda
espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de
mestre a discípulo, ao longo dos séculos. Essa herança ainda
não se perdeu e reside na memória da última geração dos
grandes depositários, de quem se pode dizer são a memória
viva da África. (HAMPATÉ BÂ, 1982:181)
Nesse sentido, considerando que a tradição oral é um das
marcas estruturantes do modo de ser africanos, infere-se que as
relações escravistas de produção embora tenham pretendido disciplinar o corpo não conseguiram fazer, em igual medida, com a
memória dos africanos escravizados. Isto posto, os argumentos
de Slenes adquirem relevância no âmbito dos estudos acerca das
africanidades nos subterrâneos da formação histórica da América.
Slenes (2000:214-216) destaca que na região Centro-Sul do Brasil a
escravidão era “africana” e “bantu” e as ligações dos africanos com
Josenildo de Jesus Pereira
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o continente de origem eram constantemente renovadas pelo tráfi-
co. Desse modo, não se deve subestimar a capacidade dos africanos
de manterem vivas parte de suas identidade originais; contudo, na
labuta diária, na luta contra os (des)mandos do senhor, na procura
de parceiros para a vida afetiva, necessariamente eles haveriam de
formar laços com pessoas de outras origens, redesenhando as fron-
teiras étnicas. Para ele, a partir destas considerações sobre contexto
e cultura pode-se retomar a discussão de como os escravos teciam
novas solidariedades através da palavra. Ao mesmo tempo, e em
parte por causa disso, eles teriam percebido suas possibilidades de
construir, a partir de uma herança cultural em comum, uma nova
sociabilidade na própria soleira da porta que não se lhes abria, e
contra aqueles que a mantinham fechada.
Estudos recentes, recuperando a historicidade das
sociedades africanas, têm mostrado grandes afinidades entre as cul-
turas de uma região extensa da África Central, no que diz respeito
às suas pressuposições básicas sobre parentesco e visões cosmoló-
gicas. Wyatt MacGaffey (apud SLENES, 2000), por exemplo, argu-
menta que as variações nos sistemas de parentesco na vasta área da
bacia do rio Congo/Zaire derivam de um mesmo sistema social essencialmente bilateral, que tem tomado formas diferentes (matrilineares ou patrilineares) de acordo com as circunstâncias históricas.
Da mesma forma, a Anne Hilton (apud, SLENES, 2000)
mostra que, dentro do sistema matrilinear dos bakongo, as relações
do “ego”(como dizem os antropólogos) com pessoas de linhagem
de seu pai foram sempre significativas ao longo da história conhecida desse povo, o que permitiu o surgimento, dentro do contexto
de tráfico de escravos, de grupos interessados em impor um sistema
72
Africanidades nos subterrâneos da formação do Novo Mundo
patrilinear. Enfim, escravos de diversas origens da região Angola-
Congo-Norte, ao se encontrarem no Brasil, teriam reconhecido uma
gramática de parentesco em comum, centrada no conceito da linha-
gem, muito embora viessem alguns povos matrilineares e outros de
grupos patrilineares ou bilaterais.
Nessa perspectiva, as abordagens que discutem a tipolo-
gia da formação de famílias escravas na América e a explicam pela
promiscuidade determinada pelas condições econômicas impostas
pela escravidão, e que se estenderam após-abolição, não levam em
conta algumas permanências africanas que permeiam a historicidade do processo de constituição de novas sociedades na América e,
no particular, quanto à configuração de relações familiares entre os
escravos ao tempo da escravidão e depois.
Souza (2002) sustenta que a integração dos africanos escra-
vos no Novo Mundo exigia o desenvolvimento de relações com os
companheiros na mesma condição, africanos ou crioulos, e com os
senhores que exploravam seu trabalho e aos quais deviam submis-
são. Desse modo, imersos em múltiplos conflitos, eles elaboraram
formas de organização social que incorporavam contribuições africanas e influências dos senhores de origem européia.
Ao lado da diversidade dessas contribuições, as determi-
nações do sistema escravista foram fundamentais na elaboração das
novas formações sociais. Nesse sentido, argumenta que o processo
que se verifica na América foi do tipo aculturação espontânea, pois
o controle das sociedades autóctones, quando houve, foi indireto, e
a forma de absorção dos padrões estrangeiros foi a integração, pois
a incorporação de novos comportamentos e valores se deu a partir
de uma reinterpretação pautada pelos valores tradicionais das so-
Josenildo de Jesus Pereira
73
ciedades africanas. Isto é verificável na situação de conversão ao
cristianismo, a qual implicou na reinterpretação a partir de valores
religiosos africanos e serviu a uma dada configuração sócio-política
na qual o controle sobre os ritos conferia poder. Por isso, esteve presente na adoção de certas insígnias e vestimentas, utilizadas conforme os padrões autóctones.
A coroação de reis negros no Brasil incorpora inúmeros
significados, tanto para os senhores como para os escravos. Se para
os senhores, “permitir” e, ou até participar constituía numa estratégia política de controle dos escravos, parece-me não menos diferente para os escravos uma vez que, assim, estavam eles demarcando
o seu território de visibilidade d expressão em meio às contradições
próprias da escravidão. Desse modo, concluiu,
As eleições de reis negros e as festas que celebravam estas
eleições, criadas a partir do encontro entre culturas africanas
e a cultura ibérica, e aceitas pelos senhores e agentes administrativos, foram um dos meios encontrados pelos grupos de
escravos, forros e negros livres de se organizarem em comunidades, de alguma forma integradas à sociedade escravista.
Nelas estavam presentes tradições comuns a todo o mundo
banto, eventos da história de alguns povos específicos que
foram incorporados como símbolos de africanidade, e elementos da sociedade portuguesa, reinterpretados a moda dos
africanos e seus descendentes. (SOUZA, 2002: 155)
No Maranhão, as pesquisas de Ferretti (2009) a respeito
de religiões afro-maranhenses tendo por objeto de estudo a Casa
das Minas, um dos mais antigos centros de culto afro-brasileiro, lo-
calizado na cidade de São Luís, a capital do estado, trazem à tona
dimensões muito significativas desta historicidade constituída a
partir de encontros culturais. Na etnografia que faz desta casa por
meio, sobretudo, da análise de relatos orais feitos acerca de histórias
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Africanidades nos subterrâneos da formação do Novo Mundo
de vida de suas líderes e ou de suas moradoras, o autor compõe a
rede das relações desta com a comunidade circundante, os elementos da teogonia, o ciclo das festas, os elementos do ritual, a vida cotidiana na casa e, como bem diz, a guisa de conclusão, uma reflexão
em torno do futuro da Casa das Minas.
Conforme Ferretti (2009: 131) “na Casa das Minas, a maio-
ria das cerimônias consiste em festa de homenagem aos voduns,
realizadas nos dias de santos católicos importantes”. Nesse sentido,
ele sublinha,
Na Casa das Minas, as festas constituem rituais cíclicos que
interrompem a rotina diária com a realização de numerosos
atos e gestos simbólicos que dramatizam situações, proporcionando a oportunidade de representação de papéis valorizados pelo grupo, com as dançantes recebendo as divindades
através do transe.
No entanto, vale destacar, no ciclo de festas, a presença de
comemorações “cristãs” como a Festa do Divino e o Presépio com a
queimação de palhinhas; o batismo cristão de crianças por voduns.
Segundo FERRETTI, “muitas dançantes ou pessoas amigas ofereciam seus filhos aos voduns”. A este respeito lhe contaram que,
Andressa, carregando Poliboji, chegou mesmo a batizar na
igreja católica algumas crianças, como Maria, filha de Dona
Flora, que depois virou crente. Combinavam com o senhor,
marcando o dia e a hora do batismo e ele vinha, como combinado. Chegava em casa, ia à igreja com a criança e ninguém
percebia (FERRETTI, 2009, p. 68).
Estes eventos expressam-se, portanto, como concepções e
práticas sócio-simbólicas nascidas sob a égide de uma historicidade
que resultou de um processo de aculturação. Nesse sentido, são relevantes para a construção da crítica à idéia do “negro como estrangeiro” detentor de uma identidade específica, tal como, foi compos-
Josenildo de Jesus Pereira
75
to no imaginário ocidental pelo discurso racial e, paradoxalmente,
absorvido por suas vítimas.
No início do século XX, curiosamente, foi o psicanalista
suíço, C. G. Jung que melhor compreendeu a abrangência da presença africana na formação histórico-social da “América”. Em sua
conferência pronunciada em 1927, na Escola de Sabedoria do Conde
de Keyserling, a partir de suas impressões de viagem que fez aos
EUA, assim se expressou acerca desta questão
O que logo me feriu a atenção foi a grande influência dos
negros, influência psicológica sem mistura de sangue, naturalmente. É nos suplementos cômicos das folhas americanas
que se pode estudar melhor a exteriorização emocional do
Americano, em primeiro lugar seu riso; encontra-se a forma
primitiva do riso inimitável de Roosevelt no negro de América. Este andar particular, de articulações relativamente frouxas, quadris ondulantes, que se observa freqüentemente nas
americanas, vem dos negros. A música americana tirou sua
inspiração principal do negro; a dança é uma dança negra.
As manifestações do sentimento religioso, os “revival meetins” , os “holly rollers” e outras estranhezas são fortemente
influenciadas pelos negros e pode-se facilmente comparar a
famosa ingenuidade americana, em suas formas encantadoras tanto quanto em suas manifestações menos agradáveis, à
puerilidade do negro. O temperamento em geral muito vivo
que se manifesta não somente no jogo de bola, mas sobretudo
no prazer extraordinário que se toma à expressão verbal e
cujo exemplo mais frisante é a onda de incessante palavrório
dos jornais americanos, pode dificilmente provir dos antepassados germânicos e assemelha-se antes ao “bavardage” da aldeia negra. A falta quase de absoluta intimidade, a enorme
sociabilidade que absorve tudo, lembram a vida primitiva
em suas choças abertas, na identidade completa de todos os
companheiros do “clã”. Pareceu-me que as portas de todas as
casas americanas estavam continuamente abertas, da mesma
forma que nas cidade do campo não há separação entre os jardins. Parece que se está em toda parte, na rua. É naturalmente
difícil determinar no detalhe o que é preciso pôr à conta da
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Africanidades nos subterrâneos da formação do Novo Mundo
simbiose com o negro e o que deva ser atribuído à circunstância de ser a América uma nação de pioneiros num solo ainda
virgem. Mas, no conjunto, a influência do negro sobre o caráter geral do povo é inegável. (apud RAMOS, 2001: 20/21).
Considerações finais
No Brasil, ainda hoje, a presença africana no processo de
formação histórico-social da “América”, continua sendo pensada
pelo viés criado pelo discurso colonial europeu urdido, em parte,
pelo racismo, e ou pela idéia da pureza africana. Contudo, a partir
das últimas décadas do século XX, no contexto dos estudos dos contatos culturais é que antigas perspectivas de análise foram retoma-
das reaquecendo a pesquisa deste tema. Trata-se de uma perspectiva
de abordagem que nos parece bastante promissora ao se considerar
a complexidade desse processo, bem como o que está estabelecido
na Lei 10.639/03 com vista a inserção de estudos relativos à Áfri-
ca e a cultura afro-brasileira no sistema formal de ensino com o
propósito de desenvolver uma pedagogia anti-racista. Para tanto,
compreende-se que é necessário e urgente exercitar o que Appiah
(1997) chama de descolonização cultural, isto é, superar os marcos
referenciais de conhecimento legados pelo colonialismo europeu ou
o eurocentrismo reconhecendo-lhes a sua aura ideológica uma vez
que foram forjados para escamotearem os interesses de seus articulistas no processo de roedura do continente africano conforme
Ki-Serbo (1999), consolidado no século XIX por meio da rapina de
seus recursos humanos e minerais. A herança deixada pelos coloni-
zadores europeus foi, em linhas gerais, a desqualificação simbólica
dos africanos por meio do discurso racial, bem como a precarização
material uma vez que a maioria deles está envolvida por problemas
Josenildo de Jesus Pereira
77
estruturais, dentre os quais a pobreza. E, por conseguinte, uma representação pejorativa daqueles que têm liames históricos com os
povos e culturas africanos – os negros, inclusive os das Américas.
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Africanidades nos subterrâneos da formação do Novo Mundo
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No turbilhão da diáspora atlântica:
o estado do Maranhão e Piauí e as
etnias africanas (1770-1800)
Reinaldo dos Santos Barroso Junior
Benguela
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No turbilhão da diáspora atlântica: o estado do
Maranhão e Piauí e as etnias africanas (1770-1800)
Reinaldo dos Santos Barroso Junior 1
Introdução
A diáspora africana, independente dos pesados sentidos
políticos e ideológicos que abarca, construiu uma cultura afro-ame-
ricana (ou africano-americana) e o Atlântico foi seu vetor. A primeira e mais forte imagética de propagação da diáspora pelo Atlântico
foi o tráfico de escravos2 , através do oceano cruzaram embarcações,
intituladas durante o século XIX de tumbeiros, que carregavam
uma quantidade variada de escravos africanos para o chamado
“Novo Mundo” onde iriam sustentar o sistema de exploração colonial instituído pelas metrópoles européias. Nestes carregamentos
ocorriam, ocasionalmente, perdas de cativos aprisionados no continente africano em virtude de doenças, de maus tratos, ou ainda,
pelo mau acondicionamento nas embarcações e excessivo volume
1. Doutorando em História Social pela Universidade Federal do Pará e professor
da Universidade Estadual do Piauí.
2. A diáspora africana é fortemente utilizada conforme as palavras de Paul Gilroy
num “empreendimento político, histórico e filosófico” valorizando parentescos,
contextualizado histórias, reescrevendo ídolos. Além disso, a diáspora africana
não se limitou ao acontecimento imediato do tráfico de escravos, houve movimentações sucessivas de indivíduos durante o século XIX e XX, neste último, sobretudo
nas décadas de 50 e 60 com o ingresso de africano em universidades dos Estados
Unidos, Inglaterra e até mesmo Brasil. Sobre os diversos sentidos da diáspora africana ou da diáspora negra consultar (GILROY, 2001. pp. 17-25).
84
No turbilhão da diáspora atlântica: o estado do
Maranhão e Piauí e as etnias africanas (1770-1800)
que excedia o limite previsto pela arqueação respectiva das naves e
pelo estabelecido nas normas dos Estados-Nações3.
A diáspora, predisposta pelo próprio africano e comer-
cializado pelo europeu nas Américas, consumiu cerca de quinze
milhões de africanos e africanas. “O tráfico de escravos através do
Atlântico foi um dos grandes empreendimentos comerciais e cultu-
rais que marcaram a formação do mundo moderno e a criação de
um sistema econômico mundial”. Os cativos africanos adentraram
em cada um dos aspectos culturais, sociais, econômicos e políticos
da vida no Brasil – destaque no consumo de escravos dentre as co-
lônias americanas – anteriormente dividido em Estado do Brasil,
Estado do Grão-Pará e Rio Negro e Estado do Maranhão e Piauí
(aqui identificado como meio-norte da América Portuguesa). Estes
escravos mantiveram em seu interior uma economia movimenta-
da pelos cativos negros, eram “engenhos, fazendas, minas, cidades,
plantações, fábricas, cozinhas e salões, os escravos da África e seus
descendentes imprimiram marcas próprias sobre vários outros aspectos da cultura material e espiritual deste país, sua agricultura,
culinária, religião, língua, música, artes, arquitetura...” (REIS; GOMES, 1996, p.1)
Ordinariamente recuperamos essas raízes, evidenciamos
essas origens por questões ritualísticas ou interesses ideológicos:
primeiramente, os discursos baseavam-se em ideais de unidade
cultural dos africanos e na homogênea dos povos que chegavam ao
novo mundo; e, posteriormente, em estudos mais atuais, sobressal3. Exemplo disso foi tomado pelo governo português através de medidas publicadas por D. João II, D. Manuel e D. João III. Sobre isso consultar (SALVADOR, 1981,
pp 93-117).
Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
85
taram-se peculiaridades regionais, influências específicas, relações
de proximidades entre o continente África e o país Brasil4. A Bahia
foi então influenciada por um agrupamento “jejé”, raramente men-
cionado em outros territórios; os cariocas pelos bantos, pois o Rio de
Janeiro nutria relações especiais com o espaço territorial angolano
e moçambicano; e, o Maranhão alimenta uma célebre herança Mina
ou “Fanti-Ashanti” graças a escravos saídos dos portos da Costa
da Mina, de reinos próximos ao litoral do Castelo de São Jorge da
Mina. O Maranhão, neste cenário, um dos principais consumidores
da mão-de-obra cativa africana, sobretudo, a partir da construção
da famigerada Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão em 1755, estendeu relações de proximidade na economia do
trafico com os impérios e régulos da costa do Ouro, do Marfim e da
Costa dos Escravos fundamentando a herança Mina entre os maranhenses.
Esta herança é inegavelmente presente, sobretudo, a par-
tir da existência física das famosas Casas das Minas: Casa de Nago
e Casa Fanti-Ashanti e suas periódicas expressões dos ritos afros
na cultura maranhense. Entretanto, ocasionalmente, manifestações
dispersas de uma herança pouco conhecida, uma herança ioruba-
na de regiões africanas como Senegâmbia e Guiné-Bissau aparecem
entre aqueles pertencentes a casas de ritos afros e religiosidades tra-
dicionais. Se muitos dos escravos oriundos da costa da Mina deram
base para uma expressiva herança jejé e nagô, os escravos de uma
4. No primeiro capítulo da reedição de “o Nascimento da Cultura Afro-Americana” de Mintz e Price pela Editora Pallas é evidenciado as correntes interpretativas
da influência africana na cultura americana. O mesmo é feito rapidamente enfocando a religião afro no prefácio do livro de Nicolau Parés, “A formação do Candomblé: história e ritual da nação Jejé na Bahia”.
86
No turbilhão da diáspora atlântica: o estado do
Maranhão e Piauí e as etnias africanas (1770-1800)
região mais a noroeste desta, Alta-Guiné, (pois a Costa da Mina era
o Baixo-Guiné) participaram, tal como os negros minas, da herança
cultural afro no Maranhão. Vitoriana Tobias Santos, a famosa mãe
Dudu, matriarca da casa de Nagô, “conhecia a origem africana de
seus avós maternos, que diziam serem balanta, bijagó, nalu e manjaro”. (FERRETTI, 2002, p. 30) Em conversa com os antropólogos
Mundicarmo e Sérgio Ferreti mencionaram que num vídeo de Glória Moura sobre quilombos de Santa Rosa e Itapecuru, interior do
Maranhão, aparece uma mãe-de-santo falando de um tempo passado “dos cambindas e bijagos”. Todas estas designações remetem ao
espaço territorial da África Ocidental, especificamente à Alta-Guiné,
com o qual o Maranhão mantinha contato através do tráfico de es-
cravos durante a segunda metade do século XVIII. Entretanto, não
é o objetivo deste trabalho aprofundar qualquer discussão sobre as
influências dos negros da Alta-Guiné no estado do Maranhão, mas
evidenciar sua presença no passado do estado, até então, particularmente esquecido, para tanto pretendo evidenciar as origens dos
africanos que chegavam ao porto e moravam na cidade de São Luís
entre 1770 e 1800.
No momento dos setecentos, o contato foi primeiramente
mantido pela companhia de comércio monopolista que dominava
as capitanias do Maranhão e Grão-Pará (território norte da América Portuguesa até 1772) e parte da África Ocidental, sobretudo, os
portos de Cacheu e Bissau onde eram embarcados escravos dessas
denominações. Posterior a falência da Companhia de Comércio,
surgiu um contrato particular denominado de Contrato de Cacheu,
novamente, sacramentando a relação entre a costa da Alta-Guiné e a
capitania do Maranhão. O acordo era legítimo e a entrada de escra-
Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
87
vos da região africana era real. Além disso, destaco os anseios dos
administradores do Estado do Maranhão e Piauí, o meio-norte da
América Portuguesa, pelo escravo de Cacheu, porto da Alta-Guiné.
E, por último, discuto o termo Guiné, entre tantos outros termos
africanos, e demonstro como no caso do Maranhão ele não correspondia a uma identificação genérica, mas especificamente relacio-
nada ao espaço da África Ocidental formando uma região atlântica
específica de tráfico de escravos, um Atlântico Equatorial, conforme
Rafael Chambouleyron (2006).
Entre portos e nações: o desejo dos governadores
O governador Joaquim de Melo e Povoas na década de 70-
80 do século XVIII enviou, dentre outras tantas, uma carta a rainha
de Portugal, D. Maria I através da qual ele pedia o controle dos
preços fixados sobre os escravos fornecidos pela administração de
Cacheu, no litoral da África Ocidental, e a melhoria na qualidade
dos escravos fornecido pela mesma administração. Esta administração havia estabelecido um contrato após a falência da Compan-
hia Geral de Comércio do Estado do Grão-Pará e Maranhão em 1775
tornado-se o responsável pelo fornecimento de escravos para as capitanias do norte da América Portuguesa, sobretudo, o estado do
Maranhão e Piauí, edificado em 1772.
O dito governador enviou em 26 de abril de 1774 a carta
ao poder real clamando pela “paternal clemência” ou “piedade de
Sua Magestade” que “procura favorecer aos seus venturozos vas-
sallos” do Estado do Maranhão e Piauí na qual relatava os abusos
88
No turbilhão da diáspora atlântica: o estado do
Maranhão e Piauí e as etnias africanas (1770-1800)
da administração portuguesa em Cacheu sobre o preço cobrado no
fornecimento de escravos:
[...] vierão a sair aqui os escravos muito mais caros do que the
agora se venderão; porque os da 1ª sorte sahirão a 136$112
reis, quando nunca aqui se venderão escravos por melhores
que fossem por mayor preço que o de 120$ reis e a proporção
em todas as mais sortes crescião os preços: e vendo eu pelo
soberdito edital que a mente de Sua Magestade era favorecer a estes povos introduzindolhe escravos mais baratos não
concenta que se vendessem pelos preços porque sahião mas
antes sim concordey com estes administradores que se vendessem como thé agora se vendião conformandonos assim
com a ordem da Junta em que dias a estes administradoes
que se por algum incidente sahissem os escravos mais caros
os vendessem como podessem. [...] o que me consta procede
da mà administraçam de Cacheo que o que quer he remeter
muitos [escravos] para tirarem mayor comissão não lhe importando que sejão bons ou maos, o que ponho na prezença
de V. Ex.ª para que Sua Magestade haja de dar as providencias que for servido5 .
A carta clamava, portanto, pelo poder dinástico do rei no
sentido de limitar o preponderante poder da administração de Cacheu sobre o patamar do preço da escravatura, mas de forma alguma clamava pelo fim da administração, ou o fim do fornecimento
de escravos por aquela praça. Seu clamor era, na realidade, por uma
qualidade maior e preço menor no fornecimento de mão-de-obra
com o intuito de dinamizar a produção da lavoura, pois a adminis-
tração real “usando da sua paternal clemência quer favorecer estes
5. Carta de 26 de abril de 1774. Livro de registro de correspondências Nº 11. Acervo
da Secretaria de Governo do Maranhão. APEM. Fls 68v e 69.
Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
89
povos mandando introduzir escravos mais baratos para que as culturas se adiantem nestas Capitanias”6 do Maranhão e Piauí.
As décadas de 1770 e 1780 constataram certa legitimidade
neste acordo entre Maranhão e Cacheu, pois não houve pedido al-
gum dos governadores como Joaquim de Melo e Povoas, Antonio
Noronha e José Telles da Silva na extinção do fornecimento de escravos advindos da Alta-Guiné, pelo contrário, havia na realidade
alto comprometimento por parte dos governadores em alimentar,
insistir e persistir no fornecimento de escravos desta região africana
e em alguns momentos condenar o fornecimento de outros lugares.
A tentativa de Joaquim de Melo e Povoas era diminuir o
preço dos escravos, (pois os achava extremamente caros) em virtude da baixa qualidade dos africanos importados – apesar de não
controlarem o fornecimento africano, contudo ele revelou indícios
significativos sobre uma classificação eurocêntrica sobre os africanos. Comentou, em outra carta, dias seguintes, uma pesquisa pessoal através da qual informou ao poder real “dos preços porque se
vendião os escravos nos [...] portos do Brazil” e evidenciou como “o
melhor escravo” aquele de origem “Mina que he nação de mayor
valor se vendia por 100$ reis, e os angolas e outras Nações muito
mais baratos”7. Joaquim partilhava da concepção na qual os portu-
gueses do meio-norte percebiam os africanos a partir de caracterís-
ticas de nação (além de seu arquétipo bárbaro, selvagem e gentílico)
com requintes de maniqueísmo cristão e, portanto, divididas entre
6. Carta de 26 de abril de 1774. Livro de registro de correspondências Nº 11. Acervo
da Secretaria de Governo do Maranhão. APEM. Fl 74v.
7. Carta de 26 de abril de 1774. Livro de registro de correspondências Nº 11. Acervo
da Secretaria de Governo do Maranhão. APEM. Fl 74v.
90
No turbilhão da diáspora atlântica: o estado do
Maranhão e Piauí e as etnias africanas (1770-1800)
premissas de bom e mal, tanto quanto a sua índole quanto suas qualificações para ofícios em geral.
Nesse último sentido, as qualificações para o trabalho, “o
melhor escravo” era de origem Mina (no que diz respeito a produção
de algodão, de toras de madeira, vaquetas e outros representantes)
portanto, representante da força física, do trabalho árduo e assim
por diante, isto justificava sua venda para a região de Minas-Gerais
no auge da produção aurífera. Os outros, o restante (aqui incluam
os escravos de Cacheu, produtores de arroz) deveriam ser vendidos a preços, “muito mais baratos”, mais módicos para a aquisição
dos lavradores de todas as classes das capitanias do meio-norte. As
nações de africanos dividiam-se, desta forma, na lógica administrativa de Joaquim de Mello, segundo suas nações com especificidades
diferenciadas para o trabalho no “Novo Mundo” justificando seus
preços em diversos territórios.
Tanto os governadores, quanto a sociedade colonial como
um todo separavam e identificavam os africanos a partir de suas
“nações”. A existência de diversas “nações” com qualidades e especificidades eram mantidas e divulgadas pelos administradores
locais, pelos agentes do tráfico com grande recorrência e retoma-
do pelos moradores da América portuguesa, incluindo aqueles do
meio-norte.
A palavra “nação” é citada nas mais diversas fontes du-
rante o período colonial. Os administradores do estado a utilizavam tanto nas correspondências trocadas com o régio poder, quanto
na documentação do trafico mais especifica que indica portos de
procedência, (ao exemplo dos Termos de Visita de Saúde). Aparece,
ainda, ocasionalmente, nos registros de passaportes quando o es-
Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
91
cravo africano acompanhava seu senhor ou quando sob ordens do
mesmo era mandado a outras capitanias ou estados, ou, ainda, nos
registros paroquiais como batismos, casamentos e óbitos.
Na maioria das fontes nas quais há registro de procedência
dos escravos traficados para o Brasil, sejam elas documentos
administrativos, religiosos ou provenientes da observação de
viajantes e estudiosos, geralmente o que se encontra como
identificação de nação ou etnia, como já foi apontado por diversos autores, são os principais mercados onde eram comercializados, ou os portos de embarque, pontos finais de uma
longa e penosa jornada em território africano. A multiplicidade de nomes designativos de povos diferentes, em línguas
desconhecidas e fonéticas com as quais os europeus não estavam acostumados, foi traduzida para nomes mais familiares,
de mercados e reinos conhecidos, como benguela, cassanje,
quissama, congo, angola, cabinda e muitos outros locais nos
quais se deu o comércio de escravos. (SOUZA, 2002, p. 138)
A utilização do termo nação encontrado nas documen-
tações escritas foram recorrentes signos de identificação dos escra-
vos na sociedade escravista a partir de um intrincado sistema de
classificação através do qual nem sempre conseguimos os indícios
necessários para sua efetiva etnia de origem, pois os nomes ditos
“de nação” referiam-se, em geral, aos portos de procedência na cos-
ta ocidental. Por sua vez, estes portos de procedência eram pontos
de comercialização de um comércio grande chamado de comércio
transaariano de mercadorias como tecidos, potes, tigelas, pentes,
marfim, ouro, manilhas, armas brancas, condimentos, âmbar, cera,
almíscar, couros, goma-arábica, cobre e escravos, dentre outros. As
rotas existiam muito antes da chegada dos portugueses ao litoral da
92
No turbilhão da diáspora atlântica: o estado do
Maranhão e Piauí e as etnias africanas (1770-1800)
conhecida Guiné8 e no século XVI este tráfico representava o auge
na exportação de mão-de-obra escrava enquanto o tráfico atlântico
ainda conotava a exportação de cativos, “cerca de 5500 indivíduos
estavam sendo anualmente deportados da África Ocidental através
do Saara, enquanto 1340 dali saíam por ano mediante o trato marítimo europeu.” (ALENCASTRO, 2000, p. 47)
Portanto, a categoria “portos de procedência”9 delimita
o território de embarque dos africanos nas embarcações, mas não
percebe a fluidez das relações do comércio transaariano, a extensa
movimentação interna dos produtos africanos. O sal, por exemplo,
era “trazido do Saara para as remotas terras do sul. O peixe seco do
Logone, do Chari e do Chade chegava ao centro do Mali, a noz-de-
cola, do rio Volta a Hauçalândia” e o escravo de Cacheu, no território atual da Guiné Bissau, poderia originar-se de distantes paragens
ou do próximo reino do Mali. Era uma infinita possibilidade de
trocas. Esta movimentação daquilo que era comercializado torna difícil (na maior parte das vezes impossível) localizar a origem étnica
e espacial do individuo cativo comercializado nos portos de procedência. (COSTA E SILVA, 2006, p. 32)
Entretanto, isso não importava para a lógica cunhada pelo
sistema escravista europeu que reconhecia somente as macro dife-
renças postuladas a partir dos territórios de oferta, ou seja, a par-
tir dos portos de embarque. Joaquim de Melo Povoas classifica os
8. O termo faz referência no começo dos séculos XV e XVI às terras a partir do Senegal constituindo às chamadas “terras dos negros”, em tese, diferente, da “terra dos
mouros” para os navegantes da costa africana. (SOARES, 2000, p. 43).
9. A categoria portos de procedência é recorrentemente utilizada pela historiadora
Mariza Soares em seus trabalhos para a localização dos territórios onde foram embarcados os africanos. Contudo, ainda são reveladores da origem dos escravos e,
portanto, dos territórios e das rotas de tráfico para a América Portuguesa.
Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
93
Minas – dentro do Estado do Brasil – como os melhores escravos
para os trabalhos que exigiam robustez e vigor. Os Minas adviam
do porto de Elmina, que em Ioruba significa porto de embarque, sob
a organização da feitoria de São João Baptista de Ajudá por onde
esvaziavam-se escravos comercializados pelos reinos de Uidá, Dao-
mé e Oyó, portanto, Mina é aquilo que o pesquisador cubano Jusús
Guanche Pérez, chama de Metaetnia que “seria a denominação externa utilizada para assinalar um conjunto de grupos étnicos rela-
tivamente vizinhos, com uma comunidade de traços lingüísticos e
culturais, com certa estabilidade territorial e, no contexto do escravismo, embarcados nos mesmos portos” (PARÉS, 2007, p. 26)
José Telles da Silva, por sua vez, aponta a necessidade do
escravo de Cacheu para a lavoura do Maranhão. Cacheu (enquanto
identificação de nação) era, na realidade, um porto na saída do rio
Cacheu com uma feitoria de mesmo nome por onde escoava uma
escravatura de exportação advinda tanto de localidades próximas
quanto de espaços mais distantes, em virtude do tráfico transaa-
riano. A variabilidade de etnias era imensa só os termos da África
Ocidental eram inúmeros como Kaabunkés, Malinkés, Balantas, Ba-
yuno, Fula, Bijagos, Nalus, Suruas, Papeis e muitos outros, a lista
perde-se na infinidade. Cacheu, em meio a tantos portos, como Elmina, aparece como o porto da exportação de escravos produtores
de arroz (“A costa do arroz,” conforme alguns anúncios no Atlânti-
co). Portanto, enquanto os escravos classificados como procedentes
de Elmina, os Minas, possuíam as características da robustez e do
vigor os escravos de nação Cacheu eram identificados como o porto
de escravos com um exímio conhecimento sobre a cultura do arroz.
94
No turbilhão da diáspora atlântica: o estado do
Maranhão e Piauí e as etnias africanas (1770-1800)
O Gentio da Guiné: o guiné genérico e o guiné para o
Maranhão
Apesar das cartas trocadas entre os governadores do Es-
tado do Maranhão e Piauí e a corte portuguesa manifestarem a
importância dos escravos de Cacheu para a produção dos itens de
exportação do estado o mesmo não ocorre entre os registros paro-
quiais. Dentre os registros, o principal termo que constantemente se
repete, identificando africanos é o termo Guiné. A historiadora Mariza Soares constatou para o Rio de Janeiro que até o século XVII o
termo Guiné, quando aparecia nestas documentações, era um termo
genérico referente a quase toda a costa ocidental africana, portanto
não simbolizava um porto de origem específico, mas todo o territó-
rio costeiro de Marrocos até Angola. O termo guiné sintetizava os
arquétipos de justificação do comércio de tráfico de escravos: bárbaros, inumanos e, sobretudo, o gentílico. Na realidade, nos livros
de registro paroquial da freguesia de Vitória na capital do Estado
do Maranhão e Piauí, todos os termos Guiné não são acompanha-
dos pela designação nação, mas sim pela presença do paganismo
– “gentyo da Guiné” – como se fossem escravos desprovidos de território, leis ou soberanos.
A palavras gentio está associada às gentes, indicando povos
que, à diferença dos cristãos e judeus, seguem a chamada lei
natural. Já a palavra nação diz respeito “à gente de um paiz
ou região, que tem língua, leis e governo a parte”. O termo é
aplicado ainda a raça, casta e espécie. Nesse sentido diz respeito a povos que podem ser gentios, ou não, mas cujo reconhecimento se dá pelo uso partilhado de um território, uma
tradição ou uma língua comum. O termo gentio é usado para
designar os povos almejados pela catequese missionária. Já
o termo nação se aplica a qualquer povo, infiel ou cristão,
Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
95
com o qual o Estado português se relaciona. Por fim, uma
observação sobre o período de utilização dos dois termos.
Enquanto “nação” tem uma utilização constante ao longo do
tempo desde o século XV até o XIX, “gentio” é aplicado a
universos de amplitude variável, caindo em desuso ainda no
século XVIII. A documentação permite ainda observar que, à
diferença de angola e mina, que podem ser gentios ou nações,
guiné é sempre um gentio. (SOARES, 1998, p.4)
Portanto, o termo guiné foi utilizado recorrentemente para
reforçar estereótipos estigmatizantes e justificar a existência ideoló-
gica da escravidão moderna. Entretanto, a partir do século XVIII, o
termo cai em desuso como resposta as necessidades imediatas do
comércio atlântico de escravos para localizar os portos de embarque
de cativos e para regularizar o fisco sobre as praças e feitorias dos
diferentes impérios estabelecidos no continente. Guiné, conforme
Mariza Soares, no caso do Rio de Janeiro setecentista, na documen-
tação escrita, foi substituído pelas diferentes nações para pontuar a
existência dos portos de embarque de cativos, desta forma, “o contingente de escravos antes designados como gentio de Guiné vai,
aos poucos, sendo redistribuído entre as nações”, pois, neste instan-
te, a “categoria ‘nação’, não menos genérica, mas que melhor atende
às novas exigências do tráfico” aparece em abundância nos livros de
registros coloniais. (SOARES, 1998, p. 6)
Na Bahia, conforme Maria Inês, inicialmente “o gentio da
Guiné”, dentro da lógica do tráfico de escravos, identificava os cativos africanos oriundos do extenso território costeiro africano da Se-
negâmbia à Angola em virtude daquilo identificado por Luís Viana
Filho e Pierre Verger (franceses estudiosos das questões afro) como
o “Ciclo da Guiné”, primeiro ciclo do tráfico de escravos da África
para a Bahia. Posteriormente, com a formação de diferentes ciclos
96
No turbilhão da diáspora atlântica: o estado do
Maranhão e Piauí e as etnias africanas (1770-1800)
do tráfico (Ciclo de Angola, Ciclo da Mina), ascendendo, especificando e restringindo os portos da costa africana na fiscalização e
embarque para as cidades da América Portuguesa cada qual destes
territórios “utilizados para nominar as nações africanas” passaram
“a ser, ao menos aparentemente, mais precisos, por se referirem a
reinos e áreas geográficas melhor delimitados”. (OLIVEIRA, 1998,
p. 40)
Entretanto, quando avaliamos inicialmente o livro de regis-
tros de casamentos da freguesia de Vitória entre os anos de 1772 e
1791, Guiné, aparentemente (e percebam a ênfase na idéia de aparência), continuou sendo um termo impreciso, sem que seja possível
fazer uma relação efetiva entre o termo Guiné e um território mais
restrito na costa africana.
As freguesias de Nossa Senhora da Vitória da Luz e Fre-
guesia de Nossa Senhora da Conceição eram as duas principais na
constituição da cidade de São Luís. Na freguesia de Vitória, as denominações “gentio de Guiné” são bastante recorrentes dentre os
registros de casamento e a utilização de gentio acompanha as 271
ocorrências do termo Guiné que aparecem entre os anos de 1770
e 1790 – é uma relação direta. O termo gentio também acompanha
outros vinte registros de africanos dentre os 490 que aparecem neste
livro são eles doze dos dezoito cacheus e oito dos 49 mandingas, saí-
dos dos portos de Cacheu e Bissau na Alta-Guiné. Desta forma, à di-
ferença de Cacheu e Mandinga “que podem ser gentios ou nações,
guiné é sempre um gentio”. (SOARES, 1998, p. 40)
O termo Guiné, aparece nos registros de casamento, em
parte, influenciado pela ideologia do gentilismo e pela legitimida-
de da guerra justa a favor da escravidão prosseguindo conforme as
Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
97
análises de Mariza Soares para o Rio de Janeiro. Este termo equivale
a 55,3% de todas as aparições de africanos existente no meio-norte.
Todos os outros quatorze termos são com incidências menores enfocando etnias de origem, portos de procedência e territórios gené-
ricos os quais representam espaços menores na imagética do tráfico.
Após o termo Guiné, aparentemente correspondendo a toda costa
africana, estão em destaque Angola e Benguela, referentes à África
Central, juntos correspondem à segunda maior incidência de africanos no livro de casamentos, com 105 africanos referentes a 20%
do total de conjugues. A terceira maior incidência de africanos nos
registros paroquiais de casamento engloba ao todo dez outras designações correspondentes à Alta-guiné (Balandra, Bayuno, Beofá,
Bijago, Bissau, Cacheu, Fula, Mandinga, Papel e Surua) representando um total de 13,63%, 82 africanos saídos dos portos de Cacheu
e Bissau. Os africanos conforme suas designações no livro de casamentos aparecem da seguinte forma:
98
No turbilhão da diáspora atlântica: o estado do
Maranhão e Piauí e as etnias africanas (1770-1800)
Tabela: Designações e territórios registrados no
livro de registros de casamentos 87 (1774-1790)
Território
Angola
Designações
Angola
Benguela
Balandra
Bayuno
Alta-Guiné
Beofá
Bijago
Bissau
20,00
2
0,004
7
1
2
3
1
18
Mandinga
49
Surua
1
Papel
2
3
Guiné
271
TOTAL
490
Costa da Mina Mina
%
98
Cacheu
Fula
África
Quantidade
32
0,010
0,002
0,004
0,006
0,002
3,600
0,004
10,00
0,006
0,002
55,30
6,500
100,0
Fonte: Livro de Casamentos 87 do acervo da AEM no APEM
A presença de dez termos mais detalhados, específicos da
realidade da Guiné da África Ocidental demonstra um conheci-
mento maior da região por parte das autoridades que registraram o
termo, os padres, senhores de escravos, e com certeza uma relação
mais próxima e clara com o local da África. O aparecimento destas
designações menos genéricas que não se limitam ao esclarecimento
de local de embarque (mesmo maior que em poucas quantidades
como o caso de Surua, Bijago, Papel, etc.) se deve a um contato com
Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
99
estes africanos, contato este através do qual eles se auto-identificam
e acabam pontuando aldeias, grupos, reis, pequenas cidades e vila-
rejos. “Muitos africanos se identificam com impérios antigos e mais
recentes, reinos e outras organizações políticas de menor porte. Algumas etnias eram nomeadas de tal ou qual modo por outros gru-
pos”. Os comerciantes de escravos tanto africanos quanto os lusoafricanos da costa ou, ainda, os traficantes atlânticos se referiam
“aos grupos a partir da toponímia, incluindo nomes de regiões, de
portos, do litoral ou de lugares ainda mais específicos”. (HALL,
2005, p. 32) Os três Bijagós, por exemplo, que aparecem no livro
de registros de casamentos, Francisco, Joanna e Caetano, identifica-
ram-se a partir do pequeno grupo de indivíduos que habitavam as
ilhas da costa da Alta-Guiné do qual se originaram e a partir do qual
os portugueses nomearam as ditas ilhas de Bijagós.
Neste caso, do livro de registro paroquial em questão oco-
rre, houve, portanto, uma auto-identificação do escravo, forro ou
livre dos cônjuges em casamento. E “quando se solicitava a alguns
escravos que identificassem sua “nação”, estes frequentemente faziam referência a um lugar, a uma aldeia. Tal atitude não signifi-
cava, porém, que estes indivíduos não possuíssem laços e identidades mais amplas”, ao contrário, “na África ocidental existe um
sistema geral de nomeação pelo qual as cidades compartilham o
mesmo nome com seus habitantes. Finalmente, alianças políticas e
dependências tributárias de certas monarquias também configuram
novas e mais abrangentes identidades nacionais” é o caso dos 49
conjugues de “nação” Mandinga que apareceram no livro. (HALL,
2005, p. 34).
100
No turbilhão da diáspora atlântica: o estado do
Maranhão e Piauí e as etnias africanas (1770-1800)
Estes 49 africanos se auto declararam como escravos de
nação (ou gentio no caso dos oito africanos descritos como “Gentio
de Mandinga”) Mandinga que era uma corruptela, um etnônimo,
construído, provavelmente, a partir de um aportuguesamento dos
termos Mandenkê ou Malinkê referentes ao reino do Mali. O grande
reino foi respeitado durante séculos em virtude de suas conquistas
e de sua participação no tráfico transaariano. Este reino era, ainda,
conhecido pelo misticismo e pela religiosidade de culto aos ancestrais, pela impetuosidade e fervor existente no islamismo graças aos
Sundjatas do clã do leão e ao modelo de organização política que foi
utilizado e mantido, mesmo após seu fim em suas antigas posses-
sões, conhecido como Mansaya. O imperialismo do Mali iniciou um
movimento cultural denominado como Malinkinzação processo que
exigia a participação econômica, social e cultural das novas posses-
sões conquistadas pelo Mali, desta forma, os pequenos reinos partipavam com o pagamento de tributos, fornecimento de escravos de
exportação e apreendiam o mande, língua oficial do Mali, e seguiam
alguns dos seus outros hábitos de convívio e comportamento. Desta
forma, Joanna, Francisco e Caetano eram do reino em questão e sua
identidade correspondia a uma amplitude maior de identificação,
não foram prescritos como Nalus, Kaabus ou Balandras, possessões
do Mali, mas sim, mandingas.
O termo Cacheu corresponde, primeiramente, ao rio de
mesmo nome que originava-se próxima à cidade de Farim e des-
aguava próximo ao porto, feitoria e praça de Cacheu, na qual lusoafricanos e africanos costumeiramente também negociavam, portanto refere-se a espaços geográficos e não a algum agrupamento
étnico especifico. Os dezoito escravos de Cacheu representam um
Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
101
número até relativamente pequeno frente à média de 183 escravos
que entravam por ano no porto de São Luís durante as décadas de
1770 e 178010.
Quanto ao termo Bissau, é interessante constatar que foi o
maior índice de entrada de escravos por ano em São Luís conforme
registrado no porto pelos Termos de Visita de Saúde – 209 escravos
foi a média anual entre 1770 e 1800 referentes a esse porto. Entretanto, aparece uma única vez dentre os registros de casamento assim
como os termos Bayuno e Surua. Bissau, no caso, identificou apenas
a origem de Maria Magdalena, escrava do Hospício do Carmo, em
seu casamento com o escravo José do Carmo, trabalhador do mesmo hospício, no dia 21 de abril de 1776. Neste mesmo hospício se
conheceram, ele mais velho vivendo no prédio desde moleque e ela
com poucos anos de morada. Foi o casamento destes dois africanos
que agitou satisfatoriamente a pacata comunidade do asilo.
Voltando ao termo Bissau, provavelmente, essa baixa inci-
dência do termo se deve à auto-identificação escrava possibilitada
pelo registro paroquial de casamento, desta forma, um termo que
significa única e exclusivamente porto, é substituído por algumas
das inúmeras outras designações da Alta-Guiné. A participação no
rito indica a relevância e o respeito para com o casamento e, talvez,
a evocação de sua ancestralidade africana tornava-se importante –
Balandra, Bayuno, Beofá, Bijago, Bissau, Cacheu, Fula, Mandinga,
Papel, Surua – a memorialidade ancestral.
10. Esta média anual foi feita a partir do livro de Termos de Visita de Saúde utilizado durante o trabalho onde são registrados a entrada das embarcações de 1775
até 1800.
102
No turbilhão da diáspora atlântica: o estado do
Maranhão e Piauí e as etnias africanas (1770-1800)
O quarto território com maior quantidade de conjugues
africanos no livro de registro paroquial foi a costa da Mina (adjas,
ewes, Oyós, Fanti, Ashanti, etc.), território da Baixa-Guiné, em geral
o termo pode designar os escravos embarcados no Castelo de São
Jorge da Mina, porto de Elmina, que “constituía um centro para o
qual escravos de várias partes da costa ocidental africana eram leva-
dos” e regiões próximas englobando o território da Costa do Ouro,
Costa do Marfim e Costa dos Escravos. Mina, assim como Angola e
Benguela, é generalizante. (PARÉS, 2007, p. 27)
Logo, Guiné é efetivamente o termo com maior repetição
entre os conjugues africanos, provavelmente uma parte destes afri-
canos eram de outro território que não a Alta-Guiné, contudo, isso
não é uma certeza. O termo é genérico, mas não impede de englobar
uma maioria de nações guineenses como Papel, Mandinga, Bijago
e até Cacheu (porto não etnia). E se relacionarmos estes números
ao anseio dos governadores do estado em manter e dinamizar a
entrada de escravos oriundos de Cacheu, território da Alta-Guiné
perceberemos a probabilidade do termo Guiné referir-se facilmente
ao território da Alta-Guiné.
Além disso, podemos ainda considerar a relação entre em-
barcações com escravos e os termos no livro de casamentos deste
período. A constatação da origem dos africanos a partir dos por-
tos das embarcações apontam para a quase ausência de escravos da
área da África Central e da Costa da Mina, somente 5 curvetas (embarcação de médio porte), uma sumaca (embarcação de pequeno
porte) e um navio frente a realidade de 56 embarcações de médio e
grande porte da Alta-Guiné. Existe, então, uma baixa incidência de
africanos da região central da África conforme o registro do Termos
Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
103
de Visita de Saúde que registrava o laudo das vistorias feitas por
médicos as embarcações para precaver possíveis doenças que pu-
dessem se espalhar pelo território como a infestação de bexigas que
ocorrera em São Luís em 1621, durante a administração do Capitão-
General Diogo Machado da Costa que ceifou metade das vidas na
freguesia de Vitória. Todo cuidado era pouco frente ao fantasma das
varíolas, varicelas (variante da coqueluche) e sarampos – as bexigas. (PACHECO, 1969, p. 11 e 15) Logo, se a entrada de africanos da
região central é tão baixa, então, de onde procediam estes escravos
presentes no livro de casamento?
Os Minas e Angolas presentes no livro de casamentos na
realidade provinham do Estado do Brasil. Eram, em geral, não co-
mercializados nas diversas capitanias do sul para serem vendidos
no meio-norte da América Portuguesa conforme carta de José Telles
da Silva de 31 de dezembro de 1785 onde evidencia a “Escravatura
que he o peor, que vem a esta Colonia, já Refugo”. As embarcações
provenientes deste estado aproximavam-se facilmente em quanti-
dade de aportações as naves da Alta-Guiné, eram 52 provenientes
do Estado do Brasil e 56 provenientes da Alta-Guiné neste período
de 1770 a 1800. Entretanto, apesar da quantidade aproximada de
desembarques o número de escravos era diferente, sim, pois, as em-
barcações provenientes da África Ocidental eram Galeras, Brigues,
Bergantins e Curvetas todas com maior capacidade que as pequenas sumacas.
A média anual de escravos provenientes do Estado do Bra-
sil era menor que a média proveniente da Alta-Guiné, somente 161
escravos, mas que, em parte, justifica a presença de número tão sig-
nificante de africanos com procedencia da África Central e da Costa
104
No turbilhão da diáspora atlântica: o estado do
Maranhão e Piauí e as etnias africanas (1770-1800)
da Mina no livro de registro de casamentos quando justaposto aos
números de embarcações nos Termos de Visita de Saúde. Contudo,
esta entrada maciça de outras embarcações que não aquelas originárias da Administração de Cacheu foi vetada e menosprezada pelos
governadores, sobretudo José Telles da Silva. Eram os escravos originários de Cacheu e Bissau os melhores, mais sadios e com melhor
preparo para o cultivo da lavoura maranhense.
A média de entrada anual de escravos procedentes da Al-
ta-Guiné, conforme o registro das embarcações evidenciadas nos
termos de visita de saúde é 392, isto supera quase duas vezes mais
a entrada total de escravos de outras paragens (aproximadamente
200 “peças” por ano”, em decorrência dos navios oriundos da costa
do arroz comportarem um número maior de cativos. Este número
anual justifica por sua vez a presença de 271 escravos com designação Guiné e os outros 82 com termos referentes a costa guineense.
Logo, se levarmos em consideração a predisposição dos administradores pelos africanos da Alta-Guiné, o significativo volume das importações de africanos nas grandes embarcações da África Ocidental
podemos facilmente inferir que a elevada repetição do termo Guiné
para identificar a procedência de africanos em São Luís, capital do
Estado do Maranhão e Piaui, na realidade, parece englobar mais
os escravos oriundos da Alta-Guiné que as outras etnias africanas.
Provavelmente, “gentio de Guiné”, dentro da composição étnica da
capitania Maranhense nas décadas de 1770 e 1780 é uma forma de
identificar genericamente os escravos procedentes da Alta-Guiné.
Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
105
Considerações finais
Dessa forma, podemos destacar aquí um espaço relacional
único no qual o Maranhão dialogava com um território africano
especifíco, a costa da África Ocidental, a Alta-Guiné. A partir dos
portos de Cacheu e Bissau saíram uma boa parte dos trabalhadores
escravos que comporiam o platel e a lógica trabalhista urbana do
Maranhão no final do século XVIII.
Por um lado, podemos perceber isso a partir dos próprios
interesses comerciais e políticos demonstrados pelos governadores do, então, Estado do Maranhão e Piauí que ansiavam por uma
mão de obra específica. Isso significa dizer que havia na na América
Portuguesa um conjunto de tipificações sobre o africano definidas
a partir de uma lógica eurocêntrica através da qual o africano é ti-
pificado pela sua origem espacial, os portos de procedência, isso
identifica, inclusive, pretensas características morais desses africa-
nos. As comumente conhecidas nações africanas, entendidas a partir
da própria experiência do termo nação europeu, constrói um topos
cultural que qualifica o africano frente as necessidades do colonialismo, expressas no discurso do traficante, no discurso do fazendeiro, na lógica Atlântica de entender o outro.
Por outro lado, essa relação entre Maranhão e Alta-Guiné
é perceptível pela peculiaridade de sentido existente na região do
Maranhão. Enquanto no Atlântico Sul, o Rio de janeiro, mais especificamente, considerava a Guiné como um termo que significava
os africanos da costa ocidental sem denotar qualquer diferenciação
mais espacial, no Maranhão ele significava um território menos ge-
106
No turbilhão da diáspora atlântica: o estado do
Maranhão e Piauí e as etnias africanas (1770-1800)
nérico e com implicações mais locais para a produtividade regional.
Entretanto, apesar dessa pretensa demonstração de relação com um
espaço mais delimitado na África, o termo Guiné contiunua sendo
uma tipificação eurocêntrica proposta pela Diáspora. Isso significa
dizer que, na maior parte daz vezes, as implicações da escravidão
atlântica agem sobre o escravo, transformando suas especificidades
locais em tipos regionais. É nesse momento que podemos perceber
os outros termos com menor incidência que afirmam que os africanos falam e revelam procedências e identidades que escapam a
lógica eurocêntrica. É no momento do seu casamento que podemos
perceber que o escravo se identifica e expressa uma pretensa identidade étnica em meio ao turbilhão da diáspora atlântica.
Reinaldo dos Santos Barroso Júnior
107
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“Uma Nova Guiné”: africanos em
inventários e registros de batismo na cidade
da Bahia da primeira metade do século XVIII
Carlos Francisco da Silva Junior
Carlos Eugênio Líbano Soares
Congo
114
“Uma Nova Guiné”: africanos em inventários e registros de batismo na cidade da Bahia da primeira
metade do século XVIII
Carlos Francisco da Silva Junior1
Carlos Eugênio Líbano Soares2
A vista da Cidade da Bahia nos primórdios do século XVIII
impressionava e encantava a maioria dos estrangeiros que por lá
passavam. “A Bahia de Todos os Santos pode passar por uma das
maiores, belas e cômodas do mundo, pode abrigar mais de dois mil
navios”, disse o viajante francês Froger (1699, p. 140). Poucos anos
depois, o capitão inglês William Dampier teve impressão semelhan-
te a respeito da cidade, embora prestasse mais atenção aos aspec-
tos arquitetônicos e econômicos da capital da América portuguesa:
“[Salvador] é a mais considerável cidade no Brasil, seja em respeito
à beleza dos seus edifícios, seu volume, ou seu comércio e receita”
(DAMPIER, 1703, p.49)3 Mas se para tais viajantes a cidade pare-
cia excelente, para os africanos escravizados que chegavam a bordo
dos navios negreiros, a sensação era bem diferente.
O tráfico transatlântico de escravos trouxe pelo menos
dois milhões de africanos somente para a América Portuguesa
(M’BOKOLO, 1996, p. 211). Durante o século XVIII a cidade da
1 Mestre em História pela UFBA.
2 Professor Adjunto da Universidade Federal da Bahia.
3 Sempre que falarmos Bahia estaremos nos referindo a cidade. A capitania será
especificada.
116
Uma Nova Guiné: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII
Bahia (hoje Salvador) foi um dos principais portos de desembarque
de escravos. E nesse sentido, Salvador exerceu um papel de destaque na diáspora africana em terras brasileiras, recebendo um gran-
de número de representantes grupos étnicos de diferentes partes
daquele continente.
A escravidão na Bahia setecentista era vorazmente alimen-
tada pelo tráfico atlântico. Anualmente, milhares de africanos eram
transportados de suas terras de origem, “Angola e outras partes da
guiné”, e desembarcados na Bahia, para trabalharem nas fazendas
e engenhos de cana do Recôncavo ou nas atividades urbanas, como
o serviço de ganho, ou no trabalho doméstico. “Para cada branco
havia ali mais de 20 negros”, afirmava com exagero o engenheiro
francês Freziér, em 1714. Mas suas impressões iam além; para ele,
os escravos que viviam em Salvador - em sua maioria africanos - faziam da cidade uma “nova guiné” (FREZIER, 1715, p. 275) .
O engenheiro francês não teve uma impressão isolada. De
fato, vários viajantes da época escreveram que era possível vê-los
em toda parte: trabalhando nas ruas, no porto, vendendo alimentos,
nas casas dos senhores, carregando pessoas e/ou mercadorias. No
final do século XVII e início do XVIII, com o incremento do tráfico
de escravos graças à descoberta das minas, Salvador tornara-se uma
Babel africana.
Os africanos desembarcados na Cidade da Bahia setecen-
tista enfrentariam, além da faina diária nas ruas da cidade, uma
experiência pessoal e coletiva ainda mais específica. Arrancados
de suas aldeias e comunidades de origem, seriam reagrupadas em
nações, categorias identitárias construídas pelo tráfico atlântico para
nomear e identificar a escravaria vinda da África. Pelo rótulo da
Carlos Francisco da Silva Júnior & Carlos Eugênio Líbano Soares
117
nação, portanto, denominavam-se os diferentes grupos étnicos da
África escravizados na América4.
Os nomes de nação não eram homogêneos, podendo referir-se
a portos de embarque, reinos, povos, ilhas ou mesmo formas nativas de
auto-adscrição (se bem que raramente incluísse somente o grupo original).
Nesse processo de re-nomeação, o tráfico de escravos desempenhou um
importante papel na configuração das nações africanas na América e
na Bahia. Maria Inês Oliveira sugere o trafico negreiro como a “matriz
primeira das designações de origem”(OLIVEIRA, 1992, p. 75) Nesse
sentido, as nações africanas na Bahia “não guardravam, nem nome nem em
sua composição social, uma correlação com as formas de auto-adscrição
correntes na África” (OLIVEIRA, 1996, p, 175).
Ao contrário do que supôs Inês Oliveira, entretanto, é pos-
sível encontrar na documentação coeva formas nativas de nomeação
como anagô, izó, codavi, mas sua abrangência ainda é desconhecida.
Alguns destes etnônimos de fato constituíram nações, isto é, comunidades de escravos que se reconheciam e eram reconhecidos por
outros – africanos e a sociedade escravista – como parte do mesmo
grupo (BARTH, 1997). Outras permaneceriam com seu uso restrito
ao interior da comunidade africana, surgindo raramente na documentação.
Outros autores perceberam que a imposição de identida-
des tinha limites. Para Gwendolyn Hall, a maioria das designações
4 Nos últimos anos, historiadores e antropólogos no Brasil e no exterior têm se
dedicado a estudar os significados das identidades de nação para os senhores,
mas principalmente para os próprios africanos. Entre esses trabalhos, ver Cortes
de Oliveira (1992); Reis (2003); Soares (2000); Soares, Gomes e Farias (2005); Parés
(2006); Silva Jr.(S/D); Gomez (1998); Lovejoy(2000); Lovejoy and Trotman (2003);
Hall (2005).
118
Uma Nova Guiné: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII
dos africanos eram formas de auto-identificação dos africanos nas
Américas, e não identificações criadas por traficantes de escravos
nas duas margens do Atlântico. Formas de auto-adscrição africanas
estariam, para ela, mais presentes nos documentos coloniais do que
os pesquisadores têm percebido até agora (HALL, 2005, p. 22). Ni-
colau Parés apresentou uma posição mais matizada nesse sentido.
Existiam casos em que as denominações utilizadas pelos traficantes
correspondiam às denominações étnicas vigentes na África e que
posteriormente tiveram seu significado ampliado, abarcando outros grupos outrora diferenciados (PARÉS, 2006, p.25). Entretanto,
os autores parecem concordar que essas denominações atribuídas
no circuito do comércio negreiro - baseadas em etnônimos africanos
ou em designações dos traficantes de escravos - foram assumidas
pela grande maioria dos africanos como verdadeiros etnônimos no
processo de organização de suas comunidades na diáspora (1996,
p. 175). E a Bahia assistiu à importante capítulo da etnogênese das
nações angola, jeje e mina no Brasil, entre outras, nos séculos XVII
e XVIII.
Para entender melhor a distribuição dos africanos na Cida-
de da Bahia, é necessário discutir as nações africanas em Salvador
a partir dos inventários post mortem da primeira metade do século
XVIII. Como aparece em outros acervos, boa parte dos africanos en-
contrados nos inventários do período pertencia à nação mina, como
se vê na tabela I. Dado as relações comerciais estabelecidas entre
as duas regiões (Bahia e Costa da Mina), como já apontou Pierre
Verger (2002), é natural que os africanos importados dessa região
sejam bem representados na documentação, com 27,3% do total de
africanos em inventários. Em seguida estão os também numerosos
Carlos Francisco da Silva Júnior & Carlos Eugênio Líbano Soares
119
angolas, com uma parcela significativa dos registros entre os africanos escravizados (16,6%). O terceiro grupo são os Calabar, que
respondem por quase 11% do total de africanos, apesar de quase
todos serem de um único senhor João Lopes Fiúza. Outras nações
importantes no período são os ardras (ou ardras), com 5,6%, e de-
pois formas de identificação mais genéricas, como gentio da guiné
ou gentio da costa (4,8% e 7,4%, respectivamente). Essas categorias
devem ser relativizadas, pois suas denominações relacionam-se a
diferentes critérios de nomeação, que variavam segundo o período
e as dinâmicas do tráfico de escravos.
Tabela 1
Nações africanas nos inventários post mortem da cidade da
Bahia Salvador , 1700 – 1750
Nação
África Ocidental
Mina
Calabar
Gentio da Costa
Ardra
Jeje
Benin
Cabo Verde
Outros*
África Centro Ocidental
Angola
Benguela
Congo
São Tomé
Monjolo
Outros**
Nos Absolutos
397
176
69
48
38
30
8
9
19
204
107
16
9
19
8
45
% de Africanos
61,5
27,3
10,7
7,4
5,6
4,6
1,2
1,4
2,9
31,7
16,6
2,5
1,4
2,9
1,2
7,0
120
Uma Nova Guiné: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII
África Oriental
Moçambique
Mocorongo
Origem Incerta
Gentio da Guiné
Outros***
TOTAL
11
10
1
33
31
2
645
1,7
1,5
0,1
5,1
4,8
0,3
100
* Benin/Nagô, Cachéu, Calabar ou Benin, Coira, Codavi, Courana, Gentio da Costa Crabary, Guiné Calumbê, Gentio de Irda (Ardra), Nagô, Ozobenin/Izó, Ardra e
Jeje.
** Angola ou Congo, Anjico, Bamba, Banguela, Cassanje, Congogola, Dongo, Ganguela, Loanda, Loango, Massangano, Matamba, Moango, Motemo, Quibundo,
Quissamã, Ribolo, Zenza.
*** Mina/Angola, Ardra/Congo.
Obs: Só inclui os africanos cuja nação foi registrada no inventário.
Fonte: APEB, Seção Judiciário, Inventários post-mortem e Testamentos, 1700-1750.
Um dos critérios principais na organização das nações afri-
canas na Bahia parece ter sido a língua. Na era do tráfico de escra-
vos, a linguagem mostrou-se um elemento importante no sistema
classificatório imposto por traficantes e senhores de escravos. Por
exemplo, a nação mina abarcava todos aqueles que tinham sido ex-
portados através da Costa da Mina, que guardravam similaridades
culturais, mas principalmente que se comunicavam na América em
uma língua comum.
Esse argumento se fortalece quando observamos o caso
dos nagôs, que estavam começando timidamente a aportar na Bahia
neste período. Esse era o nome que os africanos falantes da língua
Yorubá vão receber na Bahia. Temos apenas quatro registros dessa
nação nos inventários do período, e todos no inventário de João Lo-
Carlos Francisco da Silva Júnior & Carlos Eugênio Líbano Soares
121
pes Fiúza5. Se, como disse acima, os critérios para a construção das
nações africanas eram culturais e lingüísticos, então faz sentido que
os nagôs encontrados nesse inventário tenham sido organizados
com uma nação em separado dos minas.
Nagôs e minas falavam idiomas diferentes - os nagôs fa-
lavam iorubá, enquanto os minas falavam algumas das línguas da
área Gbe6. Isso, no entanto, não criava uma barreira de comunicação
entre esses dois grupos. Se, como argumenta Parés, no século XVIII
a “língua geral de mina” tornou-se uma espécie de língua franca
no século XVIII, pelo tamanho da nação mina na Bahia setecentista,
então é possível que muitos africanos de origem iorubá falassem
algo desse léxico7.
Minas e nagôs, no entanto, eram grupos que vieram em
épocas diferentes para a Bahia8. O mesmo não parece ter ocorrido
com outras nações, como os ardras e jejes. Os ardras (ardras, aladas)
denominavam todos aqueles escravos exportados através do reino
de Allada, e em seu principal porto, Jakin/Offra. Seu nome é men5 APEB, Seção Judiciário, 04/1571/2040/05, Inventário post-mortem de João Lopes Fiúza (1741).
6 João Reis argumenta que o “guardra chuva” mina abrangia os africanos procedentes do golfo do Benin, o que incluía os nagôs – no século XIX, ao menos.
Entretanto, se um dos critérios essenciais da organização das nações era lingüístico, então acredito que apenas os povos gbe falantes estavam encobertos sob essa
identidade mina mais ampla.
7 De acordo com Inês Oliveira (1996), no século XIX o nagô tornou-se uma espécie
de língua franca entre escravos e libertos, mesmo os que não se identificavam como
nagôs.
8 Vale mencionar, no entanto, que essas denominações variavam de capitania para
capitania, e mesmo de período para período. Se no século XVIII, a população mina
no Rio de Janeiro compunha-se de povos gbe falantes, no Rio oitocentista os minas
foram identificados como falantes de iorubá que migraram para a corte após o movimento dos malês, em 1835. A esse respeito ver também Soares (2004).
122
Uma Nova Guiné: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII
cionado ainda no século XVII, na narrativa de Alonso de Sandoval
com “Araras” (SANDOVAL, 1627).
No século XVII Henrique Dias, heróis da guerra holandesa,
citou os “Ardras” como uma das nações do seu batalhão, como vi-
mos acima. No século XVII, o reino de Allada tornou-se o principal
fornecedor de escravos para o tráfico atlântico na Costa da Mina,
tornando-se assim uma nação de peso para os africanos exportados
através da região da Costa da Mina. Mesmo quando Whydah ultra-
passou Jakin nas exportações de escravos no início do século XVIII,
Allada continuava a fornecer cativos para o mercado atlântico até
sua queda para o Daomé em 17249.
Jeje tornou-se mais uma importante nação no complexo sis-
tema classificatório dos africanos na Bahia, principalmente no final
do XVIII. Ardra e jeje eram categorias que se aproximavam e que
por vezes eram intercambiáveis.
O africano Bento, por exemplo, foi designado como “ardra
e jeje” no inventário de João Lopes Fiúza. Jeje podia ainda ser con-
fundido com mina. A ganhadora Joanna resume caso semelhante:
foi chamada de mina na avaliação, e mais tarde designada como
“Joanna gege” na partilha dos bens de Roza Maria do Sacramento,
em 174310. Sem dúvida, a ambivalência de identidades vista acima
decorria da similaridade lingüística entre as nações.
O mesmo fenômeno ocorria com os africanos angolas, cujo
idioma Kimbundu permitiu a comunicação e, conseqüentemente, a
9 Para uma revisão do papel de Allada como fornecedor de escravos no século
XVII, ver Law (1994 e 1997).
10 APEB, Seção Judiciário, 04/1571/2040/05, Inventário post-mortem de João Lopes Fiúza (1741); APEB, Seção Judiciário, 03/1187/1656/08, Inventário post mortem de Roza Maria do Sacramento (1743).
Carlos Francisco da Silva Júnior & Carlos Eugênio Líbano Soares
123
configuração desta nação na diáspora desde o século XVIII11. Ango-
la é o nome dado à maioria dos escravos embarcados do porto de
Luanda.
O termo deriva de ngola a kiluanje, título atribuído ao soberano
do antigo reino do Dongo (ou Ndongo) submetido pelos portugueses ao
final do século XVI. Se neste século o reino de Angola correspondia aos
domínios do ngola a kiluanje, após o estabelecimento dos portugueses
em Luanda, as regiões sob seu militar controle foram denominadas
como “reino de conquista d’Angola”.
Apropriando-se ainda desse título local, a administração
portuguesa e os traficantes de escravos classificaram como angolas
os escravos enviados para a América portuguesa através do porto
de Luanda (MILLER, 2002, p. 29).
Algumas vezes, a denominação na diáspora tinha variações
do termo original, como no caso de Domingos, gentio de Angola,
chamado de “Negro Engola” na partilha dos bens de Maria da Silva12 Ainda que se possa argumentar que se trata apenas de uma
corruptela, não deixa de ser interessante o estudo destas variações.
Congo é outra tipologia de formas de identificação dos afri-
canos centro-ocidentais na Bahia. Esse termo inclui os africanos de-
portados através de algum dos portos na região do antigo reino do
Kongo, ou aos povos que estavam sob a autoridade do mani Kongo,
o rei do Kongo, muito embora nem todos os povos escravizados se
imaginassem como “congos”13. Na verdade, o reino do Kongo ja-
11 Para uma análise abrangente da nação Angola ver Miller (2008).
12 APEB, Seção Judiciário, 04/1585/2054/05, Inventário post mortem de Maria da
Silva (1714).
13 Mani é um termo que significa senhor ou proprietário em várias formas lingüísticas por toda a área do Kongo.
124
Uma Nova Guiné: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII
mais governou todos os africanos denominados Congo, ou mesmo
os grupos étnicos falantes de Kikongo. Nas fronteiras setentrionais
do reino, ao norte do rio Zaire, existiam outros estados, como Ngoyo, Kakondo, Vungu e, particularmente, o reino de Loango, algumas vezes em guerra aberta com o Congo (THORNTON, 2000, p.
245)14. O reino do Kongo freqüentemente buscava exercer hegemonia sobre esses estados, graças à sua força política naquela região.
Na Bahia, os congos representam apenas 1,4% do total de
africanos encontrados nos inventários, o que sugere que os trafican-
tes luso-baianos não mantinham contatos tão intensos com essa região na época. Alternativamente, entretanto, muitos congos podiam
estar sob o “guardra-chuva” angola, de longe a denominação afro-
ocidental hegemônica na Bahia. A africana Maria foi denominada
como “angola ou congo” em 174115. Tão indefinida quanto à nação
de Maria era a origem de Pedro, classificado como angola na avaliação e
congo na partilha dos bens de Felício Rodrigues16. Embora falantes de
línguas algo diferentes – os angolas falavam Kimbundu, enquanto os congos eram falantes de Kikongo – as duas nações estavam
próximas como falantes de línguas de raiz banto17.
14 Dois trabalhos são fundamentais para o entendimento das relações políticas
nessa região: Thornton (1983 e 1998).
15 APEB, Seção Judiciário, 04/1571/2040/05, Inventário post-mortem de João Lopes Fiúza (1741).
16 APEB, Seção Judiciário, 04/1620/2089/05, Inventário post mortem de Felício de
Castro (1735).
17 Esse termo foi proposto por um etnolinguista da segunda metade do século
XIX para designar a família lingüística que se estende desde a África Central, na
altura da atual República Centro-Africana, até a costa Oriental africana. Bantu é o
vocábulo comum nessas línguas “homens”. Para uma explicação mais detalhada,
ver Castro (2001).
Carlos Francisco da Silva Júnior & Carlos Eugênio Líbano Soares
125
Como o historiador Robert Slenes ressalta, havia um substrato cultural comum na África centro ocidental de fala banto, percebida pelos escravos, que sabiam que a comunicação entre eles era
fácil para que “tecessem novas solidariedades através da palavra”18.
Senhores e avaliadores podem ter tido essa mesma impressão, entre cativos congos e angolas, criando as similitudes de
identificações. Essa ambivalência categorial podia resultar, ainda,
em identidades sobrepostas, como no caso de Antônio, marinheiro,
denominado como “congogola”19. Essa mescla somente era possível
entre indivíduos que possuíam uma semelhança lingüística e cultural suficiente para gerar uma fusão identitária.
Coda/Codavi e Courana são outros exemplos de pequenos
grupos étnicos da África incorporados às maiores nações. Ambos repre-
sentam menos de 1% dos africanos encontrados nos inventários do
período. E mesmo no restante da documentação, deviam ser arrolados como minas. Antônio, denominado codavi no testamento de
João Domingues Nogueira, foi avaliado apenas como do “gentio
da Costa da Mina”. E Francisca, courana, também foi chamada de
mina no inventário de Felício Rodrigues20.
Em resumo, todos os dados levam à conclusão que grupos
étnicos trazidos em pequena quantidade tendiam a ser incorporados pelas grandes nações, como mina, angola e jeje. Estes “GuardraChuvas” étnicos, como afirmou João Reis, podem ser chamados de
18 Sobre a formação de uma “proto-nação” banto, a partir de elementos culturais
comuns entre os habitantes dessa área lingüística no Sudeste brasileiro, ver Slenes
(1992).
19 APEB, Seção Judiciário, 04/1571/2040/05, Inventário post-mortem de João Lopes Fiúza (1741).
20 APEB, Seção Judiciário, 04/1776/2045/04, Inventário post mortem e Testamento de João Domingues Nogueira (1743); APEB, Seção Judiciário, 04/1620/2089/05,
Inventário post mortem de Felício de Castro (1735).
126
Uma Nova Guiné: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII
meta-nações, como mina e angola, por exemplo. Dessa maneira,
os africanos escravizados eram classificados inicialmente de uma
forma, mas freqüentemente re-denominavam suas identidades na
América portuguesa setecentista.
De “Gentio da Guiné” a “Gentio da Costa”, de Ardras a
Jejes: a evolução da terminologia
Muitas formas de designação foram transformadas nos
inventários da primeira metade do século XVIII. Categorias mais
genéricas podiam ser substituídas por expressões que definiam me-
lhor o local de origem dos africanos. Entretanto, muitas vezes mu-
danças na política do tráfico podiam se refletir nos inventários. A
tabela 2, apresentada a seguir, visa apresentar como os termos de
nação evoluíram em Salvador no início dos setecentos.
Carlos Francisco da Silva Júnior & Carlos Eugênio Líbano Soares
127
Tabela 2
Evolução dos termos de nação por década por década
Salvador - 1700-1750
Origem
Angola
Ardra
Benguela
Calabar
Congo
Gentio da Costa
Gentio da Guiné
Jeje
Mina
Moçambique
Nagô
Outras Nações
TOTAL
1700
1710
10=9,3%
21=55,3%
11=68,8%
0=0%
8=88,9%
0=0%
9=29,0%
0=0%
7=4,0%
0=0%
0=0%
51=47,7%
117
18,2%
1711
1720
5=4,7%
3=7,9%
1=6,3%
0=0%
0=0%
3=6,3%
3=9,7%
0=0%
21=11,9%
1=10%
0=0%
2=1,9%
39
6,0%
Décadas
1721
1730
2=1,9%
6=15,8%
1=6,3%
0=0%
0=0%
1=2,1%
8=25,8%
0=0%
22=12,5%
0=0%
0=0%
2=1,9%
42
6,5%
1731
1740
8=7,5%
1=2,6%
2=12,55
3=4,3%
0=0%
27=56,3%
10=32,3%
3=10,0%
38=21,6%
2=20%
0=0%
10=9,3%
104
16,1%
1741
1750
82=76,6%
7=18,4%
1=6,3%
66=95,7%
1=11,1%
17=35,4%
1=3,2%
27=90%
88=50%
7=70%
4=100%
42=39,2%
343
53,2%
Obs: Só incluí os africanos das maiores nações.
Fonte: APEB, Seção Judiciário, Inventários post-mortem e Testamentos, 17001750.
Duas outras formas de classificação freqüentes na docu-
mentação são os termos genéricos “gentios da guiné” e “gentios da
costa”. Como demonstrou Maria Inês Oliveira, no início do tráfico
de escravos para o Brasil, negro da Guiné e gentio da Guiné foram
usados para determinar a origem genérica dos africanos escravizados no Brasil do século XVI. Eles marcavam a condição mesma de
escravo na linguagem da época. No século XVI, a Guiné parece ter
se aplicado ao conjunto do litoral da costa atlântica africana. Assim
128
Uma Nova Guiné: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII
o termo foi algumas vezes aplicado às populações banto, como de-
monstraram Luís Viana Filho e Maurício Goulart através de registros inquisitoriais Sob essa denominação, portanto, introduziram-se
no Brasil africanos procedentes desde a Senegâmbia até o Congo
(OLIVEIRA, 1997, p. 37); (SOARES, 2000, p. 39).
Desta forma no século XVI gentio da guiné tornou-se sinô-
nimo de africano, como parece que iria ocorrer com gentio da costa a
partir da primeira metade do século XVIII. Na primeira metade dos
setecentos é difícil definir com precisão que etnias estavam escondidas sob essa categoria. No entanto, acredito que na segunda metade
do século XVII e início do XVIII os gentios da guiné tomaram um
perfil centro africano, seguindo a entrada no tráfico da região Congo/Angola. Alguns registros reforçam essa suspeita.
No primeiro deles, Izabel, gentio da guiné, em 1700 foi de-
nominada como congo no inventário de Francisco Pinto. No mesmo
documento, revelou-se que Afonso, também do gentio da guiné, na
verdade veio de Angola. Anos mais tarde, descobriu-se que Ventura, do gentio da guiné, assim como Afonso, ainda em 1733, deixaram a África através do porto de Luanda21. Naturalmente, pode-se
atribuir essas designações ao desconhecimento dos responsáveis
pela avaliação dos bens, como os testamenteiros e os próprios ava-
liadores. Não obstante, é quase certo que a África centro-ocidental
esteja nos inícios do XVIII ainda altamente representada por aqueles denominados como gentios da guiné.
21 APEB, Seção Judiciário, 04/1766/2236/08, Inventário post mortem de Francisco
Rodrigues Pinto (1700); APEB, Seção Judiciário, 04/1601/2070/06, Inventário post
mortem de Antônio da Silva Luz e Joana de Oliveira (1733).
Carlos Francisco da Silva Júnior & Carlos Eugênio Líbano Soares
129
Existem poucos registros de pessoas que foram trazidas
propriamente dos portos na região da Senegâmbia na Bahia do sé-
culo XVIII. Em 1721 foi avaliada Josepha, ainda “moleca”, de nação
cachéu; dez anos depois, André recebeu a mesma designação no
inventário de Manoel de Almeida Lima22.
Além desses africanos, localizei Antônio, denominado
“guiné calumbê” no ano de 170223. Seu significado é ainda mais
complexo, visto que não identifiquei nenhum porto ou localidade
com esse nome. Isso implica que Antônio pode ter vindo de qualquer comunidade desde a Senegâmbia até a África centro ocidental
– hipótese, aliás, muito provável, em virtude do forte comércio da
Bahia com Angola no século XVII.
A Bahia não desenvolveu relações comerciais firmes com
a Alta Guiné durante a primeira metade do século XVIII. Estima-se
que apenas 2 911 africanos dessa região tenham sido introduzidos
na Bahia de 1711-1747. No contexto das conquistas holandesas na
Costa da Mina, em 1637, a Coroa portuguesa propôs a criação de
uma companhia para o resgate de escravos em portos da Alta Guiné
ainda sob o controle português – entre os quais esta Cachéu.
Os homens de negócios da Bahia relutaram quanto à for-
mação dessa empresa, e em 1731 uma Carta Régia afirmava que
“de Cabo Verde a Cachéu muito poucos escravos se podem tirar
e assim já mostrou a experiência por cuja causa não vão mais ali
embarcações desta Bahia há mais de quinze anos”. Segundo este
22
APEB, Seção Judiciário, 04/1571/2050/01, Inventário post mortem de
Leonardo da Costa (1721); APEB, Seção Judiciário, 04/1601/2070/02, Inventário
post mortem de Manoel de Almeida Lima (1731).
23 APEB, Seção Judiciário, 01/199/351/01, Inventário post mortem de Francisca
de Sande (1702).
130
Uma Nova Guiné: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII
documento se conseguiria tirar desses portos o muito menos de es-
cravos do que se “resgatava” na Costa da Mina, anualmente, “dez
ou doze mil”24.
A partir da década de 1710, o uso do termo gentio da gui-
né começa a diminuir à medida que denominações mais específicas
são utilizadas para designar a escravaria. Nas décadas de 1720 e
1730, temos o registro de apenas 18 africanos denominados dessa
forma. Nesse período, o vigário de Paripe, área rural, registrou no
ano de 1730 em testamento possuir “dez escravos do gentio da guiné”, cinco homens e cinco mulheres25. Assim, mesmo avançado o sé-
culo XVIII, essa categoria não deixou de ser utilizada em Salvador.
Uma possível explicação é que estes guiné sejam africanos
já idosos, que chegaram à Bahia no século XVII quando o termo
ainda estava em voga. Infelizmente, os inventários só fornecem informação sobre as idades de seis deles. Nesses registros, três são
chamados “moleques”, enquanto os outros foram avaliados como
“de maior”, “meia idade” e “velho”. De qualquer maneira vemos
que essa categoria ainda era operativa na Cidade da Bahia, talvez
como um genérico do africano. A partir da década de 1740, no entanto, essa designação aparece apenas uma vez, confirmando a sua
substituição por categorias mais específicas de nomeação da escravaria africana.
Quase ao mesmo tempo, a categoria de “gentio da costa”
começa a ganhar força, substituindo a não menos ampla identifi24 APEB, Seção Colonial, Ordens Régias, vol. 26, doc. 78 (Carta do vice-rei do Estado do Brasil ao rei de Portugal, de 3 de março de 1731). Ver Verger, Fluxo e Refluxo,
pp. 92-99.
25 APEB, Seção Judiciário, 03/972/1441/04, Inventário post mortem e Testamento
de Belchior Pereira (1730).
Carlos Francisco da Silva Júnior & Carlos Eugênio Líbano Soares
131
cação de gentio da guiné. Gentio da costa é um termo amplo, embora
aparentemente designe os africanos trazidos da Costa da Mina. O
uso da expressão “do gentio” mantém a idéia de não cristão, enquanto “Costa” serve para indicar a África (OLIVEIRA, 1992, p. 80).
A incidência do termo começa a partir das décadas de 1730
e 1740 em Salvador. Não obstante, é provável que essa categoria já
estivesse sendo utilizada desde pelo menos a década de 1710, quan-
do gentio da guiné começa a deixar de ser usada para identificar os
africanos escravizados. Segundo Nicolau Parés a categoria gentio
da costa foi muito mais utilizada em Salvador, sendo praticamente
desconhecida no Recôncavo (PARÉS, 2006, p. 67). De fato, encontrei apenas dois registros dessa expressão no inventário de Fiúza,
grande fazendeiro de Cachoeira, confirmando assim que o uso dessa denominação estava mais vinculado à cidade do que às zonas
açucareiras e fumageiras da Bahia.
Até o início dos setecentos, ardra era a principal denomi-
nação que englobava os escravos da Costa da Mina, na medida em
que o tráfico ainda se concentrava nos portos tributários de Alada.
Os dados dos inventários mostram que entre 1700 e 1710, a denominação ardra supera os minas. Entre os 119 africanos, apenas sete
indivíduos foram identificados como minas; por outro lado, temos
21 ardras que representavam 70% do total de africanos ocidentais
no período26.
A partir da década de 1710, a designação ardra começa a
perder força, enquanto mina consolida-se como a principal forma
26 APEB, Seção Judiciário, 04/1766/2236/08, Inventário post mortem de Francisco
Rodrigues Pinto (1700); APEB, Seção Judiciário, 01/199/351/01, Inventário post
mortem de Francisca de Sande (1702).
132
Uma Nova Guiné: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII
de identificação dos africanos trazidos da Costa da Mina. Nas décadas de 1720 e 1740, essa denominação sofre um ligeiro aumento,
com seis e sete registros, respectivamente. Entretanto, esse leve cres-
cimento pode ser atribuído, sem dúvida, aos africanos do período
em que o tráfico com Allada ainda era ativo. Para ilustrar, entre os
sete escravos dessa nação encontrados entre 1741 e 1750, quatro fo-
ram designados como “velho” ou “muito velho”, enquanto três foram considerados “em boa idade”, “de maior” ou “rapaz”.
Acreditamos que a superação dos ardra pelos mina se deu
no contexto da emergência militar do Daomé como grande potencia
militar e traficante da região, o que vai culminar com a queda de
Alada para o Daomé em 1724. A partir dão o termo mina se torna
hegemônico na cidade da Bahia.
Luís Nicolau Parés percebeu essa mudança do termo ardra
para o Recôncavo no mesmo período; entretanto, nessa região a designação foi suplantada pelo termo “jeje”, e que também denominava povos de língua gbé.
No caso dos jejes, o termo não é encontrado nos inventá-
rios até a década de 1730. O que corrobora a informação dos batis-
mos, quando os jejes chegam em grande número na área central de
Salvador, a Sé.
A partir dos anos de 1740 seu uso torna-se mais freqüente,
principalmente nos inventários do Recôncavo, cujo maior proprie-
tário nos inventários de Salvador era João Lopes Fiúza. Com efeito,
90% dos jejes podem ser encontrados nessa década. Se por um lado
isso sugere que esse etnônimo começou a ser usada em larga escala
a partir da década de 1740, por outro confirma o argumento de Pa-
Carlos Francisco da Silva Júnior & Carlos Eugênio Líbano Soares
133
rés, segundo o qual jeje era uma categoria característica no Recôncavo neste período27.
Dentre todas as nações africanas na Bahia, aquela cuja evo-
lução do termo pode ser acompanhada com maior segurança é sem
dúvida a nação mina. Nos primeiros anos do século XVIII, foram
encontrados apenas sete registros dessa designação. Na década se-
guinte, seu número triplicou, mantendo-se praticamente o mesmo
entre 1721 e 1730. Entre 1731 e 1740, 38 escravos foram registrados
com essa denominação. Por fim, na década de 1741 a 1750 concentram-se 50% dos registros, alcançando 88 escravos.
A evolução dos termos precisa ser compreendida a partir
das lógicas do tráfico de escravos e da situação política na África
ocidental. A década de 1720 foi o momento em que o reino do Daomé conquistou dois importantes mercados fornecedores de escravos
para a Bahia: Allada e Whydah. Desde então, o Daomé tornou-se o
principal responsável pelo abastecimento de africanos escravizados
para os navios baianos. Se as fontes estiverem corretas, então pelo
menos seis mil pessoas foram escravizadas na conquista de Alla-
da, e de cinco a onze mil foram feitas prisioneiras em Whydah na
mesma época28. Um número expressivo desses cativos terminou no
porão dos navios baianos que aguardravam no porto de Whydah.
O aumento da expressão mina nas décadas de 1730 e 1740, portan-
27 Sobre a nação jeje, é indispensável ler Parés(2006). Na segunda metade do século
XVIII o termo jeje se torna hegemônico na cidade da Bahia, superando os minas.
28 APEB, Seção Colonial, Ordens Régias, vol. 18, doc. 56 (Carta do diretor da Fortaleza de Ajudá ao rei de Portugal, de 14 de julho de 1724); APEB, Seção Colonial,
Ordens Régias, vol. 21, doc. 58 (Carta do diretor da Fortaleza de Ajudá ao rei de
Portugal, de 18 de junho de 1727).
134
Uma Nova Guiné: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII
to, segue a tendência da escalada de domínio militar do Daomé do
tráfico para a Bahia29.
Não obstante, mesmo em documentos da mesma natureza,
como os inventários, escravos de uma mesma nação podiam receber diferentes denominações. Avaliadores e escrivães interferiam
diretamente na maneira pela qual os escravos seriam designados.
Seus olhares, baseados em percepções e na sensibilidade em identificar os grupos étnicos africanos, eram produto de uma matriz ampla da qual compartilhavam senhores de escravos e escrivães, como
salientou Inês Oliveira( 1992, p. 69). Mas em última instância, eram
esses agentes do poder que definiam – ao menos nas esferas jurídi-
cas – como os africanos escravizados seriam conhecidos na capital
da América portuguesa.
Alguns exemplos podem ajudar-nos a compreender mel-
hor essas diferentes denominações. Termos como gentio da costa
e gentio da mina eram fortemente intercambiáveis. Em alguns inventários, foram usados para identificar os mesmos africanos. Na
igreja matriz da freguesia de Santo Antônio Além do Carmo, em
agosto de 1727, foi batizada a africana Josefa, do “gentio da mina”.
No entanto, a mesma Josefa foi chamada de “gentio da costa” em
sua avaliação, voltando a ser do “gentio da mina” na partilha dos
bens de sua senhora, Joana Pereira de Jesus30.
29 Vale lembrar, porém, que os inventários não são as melhores fontes para acompanhar essa evolução, sobretudo porque muitos africanos podiam ser já idosos,
portanto de um período anterior às guerras mencionadas na Costa da Mina.
30 Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador (doravante ACMS), Livro de
Registros de Batismos/Santo Antônio Além do Carmo, 1713-1734, assento 2139,
guardrado no Laboratório Eugênio Veiga da Universidade Católica de Salvador,
doravante UCSAL-LEV; APEB, Seção Judiciário, 04/1601/2070/05, Inventário post
Carlos Francisco da Silva Júnior & Carlos Eugênio Líbano Soares
135
A partir disso, pode-se concluir que gentio da costa faz
alusão aos escravos embarcados através da Costa da Mina. Mas tal-
vez seu significado seja ainda mais amplo, podendo referir-se á toda
costa ocidental da África. Antônio Ferreira Lopes, morador no cen-
tro de Salvador, possuía entre seus escravos José, do gentio da costa.
Mas na partilha dos bens, o mesmo José foi denominado como “moleque carabaris” ou Calabar31.
Outras mudanças são mais sutis. Termos como mina, gentio
da mina e gentio da costa da mina eram sinônimos. Provavelmente por
essa razão, os avaliadores não se preocuparam com a denominação
imposta a Francisco, Inácio, Maria Tereza e Gertrudes, designados
respectivamente como “gentio da mina”, “mina”, “gentio da Costa
da mina” e, mais uma vez “gentio da Costa da mina” no inventário
de Maria Pereira do Lago, em 174432.
A diferença era maior entre termos como mina e jeje. As
duas expressões designam escravos da Costa da Mina, mas o con-
teúdo étnico entre ambas é diferente. Jeje era um etnônimo de significado mais restrito, que inicialmente designava um grupo particu-
lar de escravos trazidos da língua gbé. No decorrer do século XVIII,
ele teve sua significação ampliada, abarcando outros grupos étnicos
dessa região. Na invasão ao calundu do Pasto, em Cachoeira, em
1785, todos os africanos foram denominados jejes. Algum tempo
depois, as origens dos presos foram especificadas: eram dois marris
mortem de Joana Pereira de Jesus (1732). Agradeço a Cândido Domingues pela
informação.
31 APEB, Seção Judiciário, 04/1570/2039/01, Inventário post mortem de Antônio
Ferreira Lopes (1741).
32 APEB, Seção Judiciário, 04/1576/2045/01, Inventário post mortem de Maria
Pereira do Lago (1744).
136
Uma Nova Guiné: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII
(Mahi), um Tapa (Nupe), e duas mulheres propriamente jejes (REIS,
1988, pp. 57).
Mina, por sua vez, é um termo mais amplo, que englobava
todos os grupos étnicos da também chamada Costa dos Escravos,
o que incluía os jejes. Por essa razão, não é incomum que minas
fossem denominados como jejes em Salvador, e vice versa. Isso ex-
plicaria, por exemplo, porque o etnônimo jeje aparece com maior
freqüência no Recôncavo do que em Salvador, já que os minas são
maioria na cidade (com exceção da freguesia da Sé. Ainda outros
estariam escondidos sob a denominação de gentio da costa, como
expliquei anteriormente.
Vejamos como essas mudanças identitárias ocorriam no co-
tidiano de Salvador.
O português Manoel de Almeida Lima, em 1731, deixou
para sua esposa e testamenteira Ana do Espírito Santo 16 escravos,
dos quais treze eram africanos. A avaliação dos cativos foi realiza-
da, na qual foi informada a nação de cada um deles, estado físico
e valor. Entretanto, na partilha dos bens do falecido, a nação dos
escravos foi modificada. O quadro a seguir informa as principais
mudanças nos nomes de nação:
Carlos Francisco da Silva Júnior & Carlos Eugênio Líbano Soares
137
Quadro 1
Nações dos escravos de Manoel de Almeida Lima, , 1731
Nome dos
escravos
Agostinho
Designações na
Avaliação
Jeje
Designações na
partilha
Gentio da Mina
Bernardo
Gentio da Costa
Gentio da Mina
Luís
Gentio de Jeje
Gentio da Mina
Gentio da Costa
Gentio da Costa
Crioulo
Crioulo
Francisco
Jeje
André
Gentio de Caxeo
Ignes
Gentio da Costa
Ignácio
Crioulo
Bento
Feles
Rosa
Jeje
Gentio caxeo
Gentio da Mina
Crioulo
Gentio da Costa
Gentio da Mina
Crioulo
Crioulo
Thereza
Gentio da Ciosta
Maria
Gentio da Costa
Gentio da Mina
Francisca/Ignasia
Gentio da Costa
Gentio da Mina
Manoel
Lizia
Micaella
Gentio da Mina
Gentio da Mina
Gentio da Mina
Gentio da Mina
Gentio da Mina
Fonte: APEB, Seção Judiciário, 04/1601/2070/02, Inventário post mortem de
Manoel de Almeida Lima (1731).
Como discutido acima, gentio da costa e gentio da mina
podiam ser utilizadas sem prejuízo de significado. Os dois termos
referiam-se à mesma costa – da Mina – algo diferente do que aconteceria a partir da segunda metade do século XVIII, sobretudo no
período entre 1775-1815, quando a expressão perde sua força ge-
138
Uma Nova Guiné: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII
nérica33. Entre os sete escravos designados como gentios da costa
na avaliação, apenas um permaneceu com essa denominação na
divisão dos bens. Talvez seja importante questionar se foi apenas
um desejo dos avaliadores, ou se esse único escravo possuía alguma característica diferente, talvez sendo de outra “costa”, algo raro,
mas possível, como vimos no caso de José carabaris, corruptela de
Calabar, ao leste da Costa da Mina.
Algumas categorias permaneceram intactas, porque não
existiam outras que pudessem substituí-las, como o caso de André,
do gentio de Cachéu. Os jejes, por outro lado, podiam passar por
algumas mudanças étnicas, sendo denominados como minas. Não
todos, porque ao contrário de Agostinho e Luís, Francisco permaneceu jeje na partilha. Mais uma vez, a questão é: seria Francisco de
outro tipo de “jeje”? Isto é, teria características tão particulares que
o impedisse de ser abraçado pela identidade mina? Ou foi apenas
uma escolha dos avaliadores?
Esse tipo de modificação aconteceu outras vezes durante
a primeira metade do século XVIII. O casal Antônio da Silva Luz
e Joanna de Oliveira deixou órfã a jovem Joana Francisca. Entre os
cativos que ela herdou um deles recebeu novas identidades em pelo
menos três ocasiões. Na primeira, era “do gentio da mina”; na segunda, “do gentio da costa”. Terminou recebendo a designação de
“gentio da Costa da Mina”34.
33 De acordo com Oliveira (1997, p. 80), “‘a Costa’, que já fora da Guiné, da Mina e
do Leste, passa agora a poder ser cada uma delas em particular, ou apenas a Costa
da África em geral, expressão que viria a se generalizar mais tarde”.
34 APEB, Seção Judiciário, 04/1601/2070/06, Inventário post mortem de Antônio
da Silva Luz e Joana de Oliveira (1733).
Carlos Francisco da Silva Júnior & Carlos Eugênio Líbano Soares
139
Ainda nesse contexto, expressões como gentio da Costa da
Mina e gentio da Mina assumiram significados geográficos ainda
mais genéricos, quase como sinônimos de todos os escravos vindos
da África Ocidental. Em 1735, foi registrado “um negro buçal do
gentio da Mina anagô”, avaliado em 130 mil-réis. E em seu testa-
mento, João Domingues Nogueira declarou ser dono de “Antônio
de nação codavi do gentio da Costa da Mina”35.
As origens das atribuições das identidades de nações nos
inventários post mortem refletem várias matrizes. Entre elas, as lógi-
cas hierárquicas do Antigo Regime português e as novas dinâmicas
políticas do tráfico na África, em especial após a descoberta das mi-
nas no Brasil e o incremento do tráfico negreiro. Entretanto, essas
categorias não eram estáticas, para os africanos bem como para a
classe senhorial. Os rótulos étnicos podiam mudar, dependendo do
local (Se Salvador ou o Recôncavo), do período (primeira e segunda
metade do século XVIII) e mesmo de quem os atribuía (senhores,
escrivães, avaliadores etc).
Nações de Batismo
Mas outros momentos de rótulos ou estereótipos recaíram
sobre os africanos escravizados na Bahia. Os termos de batismo são
outra janela para entender esta dimensão. E assim como as categorias étnicas reproduzidas nos inventários, as categorias dos termos
de batismo são fonte indispensável para o estudo das nações afri-
canas na Bahia. Os assentos de batismos sobremodo podem ajudar
35 APEB, Seção Judiciário, 04/1614/2083/08, Inventário post-mortem de Francisco Gonçalves Dantas (1738); APEB, Seção Judiciário, 04/1776/2045/04, Inventário
post mortem e Testamento de João Domingues Nogueira (1748).
140
Uma Nova Guiné: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII
a entender a nomeação das nações africanas a partir de uma ótica
religiosa36.
Os batismos são fontes bastante utilizadas no estudo da
população escrava na época colonial37. No nosso caso a preocupação
central com a condição africana extrapola os limites da escravidão,
mas é óbvio que esmagadora parte da gente africana da Bahia no sé-
culo XVIII é enquadrada na condição escrava. Para a primeira metade do século XVIII na cidade da Bahia sobreviveram ao tempo e a
incúria somente oito livros de batismo da cidade de Salvador38. De
qualquer maneira estes livros trazem uma imagem impressionante
não somente da população africana, mas de amplos espectros de
toda gente que circulava pela então capital do Estado do Brasil.
O batismo era a primeira cerimônia cristã que o africano
assistia na América católica39. Enquanto o inventário geralmente
se dava em fase avançada da vida do escravo, quando seu senhor
falecia, o batismo era como o portal de entrada na vida católica,
enquanto ele era ainda um africano novo, como eram chamados os
36 Os livros da Cúria Metropolitana de Salvador (CMS) estão em fase de restauro no Laboratório Eugênio Veiga da Universidade Católica do Salvador (UCSALLEV).
37 Para um levantamento bibliográfico recente da produção com termos de batismo no Brasil colonial ver Libby (2009).
38 Para a 1ª metade do XVIII a freguesia da Conceição da Praia estava dividida
em cinco livros, a saber:Cinco na Conceição da Praia (Livros de Batismos da Freguesia da Conceição da Praia: 1696-1706, 1703-1714, 1730-1736, 1736-1739, 17391743, 1743-1751) a freguesia de Nossa Senhora da Vitória tem um livro (Livro de
Batismos da Freguesia da Vitória, 1630-1713) Santo Antônio Além do Carmo tem
um livro (Livro de Batismos da Freguesia de Santo Antônio Além do Carmo 17281734) e no Santíssimo Sacramento da Sé temos dois livros, um de batismo (Livro
de Batismos da Freguesia da Sé 1713-1734-1742) e um de óbito (Livro de Óbitos da
Freguesia da Sé, 1735-1761).
39 Para a definição do batismo para a época ver Vide (2007).
Carlos Francisco da Silva Júnior & Carlos Eugênio Líbano Soares
141
africanos recém-chegados, após a brutal experiência do tráfico. Assim, seu poder de interferência em seu próprio destino naquela fase
inicial era muito limitado, diferente dos termos de casamento, inventários, e mesmo de óbito, onde o africano supostamente já acumulou bastante intimidade com aquele mundo escravista, e poderia
acumular maior poder interferência na sua denominação.
No batismo esta capacidade é nula. E este fator pode se
refletir na enorme força das identidades genéricas, ou no “GuardraChuva” mina na cidade da Bahia dos inícios do XVIII. Pela Tabela
3, onde vemos as nações de africanos batizados nas freguesias prin-
cipais da cidade de Salvador vemos a predominância esmagadora
do termo mina, em suas variações como gentio da mina, gentio da
costa da Mina, ou simplesmente mina.
Tabela 3
Africanos batizados na cidade da Bahia por nação - 1700 – 1750
Mina
Nação
Jeje
Gentio da Costa
Angola
Nagô
Sabaram
São Tomé
Afom
Quantidade
3698
521
81
11,4
192
3,28
1
0,02
1
0,02
7
1
3
Ardra
79
Goudá
2
Coda
%
1
0,1
0,02
0,06
1,7
0,02
0,04
142
Uma Nova Guiné: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII
Moçambique
15
Crabaré
1
Craban
Gentio
Benguela
Cabo Verde
Cacheo
Calabar
Cabo Sahú
1
0,02
6
0,13
2
7
3
1
2
Guiné
10
TOTAL
4555
Loango
0,3
1
0,02
0,04
0,15
0,06
0,02
0,04
1,18
0,02
100
Fonte: Livros de batismos das Freguesias da Sé, Conceição da Praia,
Santo Antonio Além do Carmo, Vitória e Paripe, UCSAL - LEV
A única nação que retém algum poder frente à avas-
saladora predominância numérica dos minas são os jejes, mas este
grupo está totalmente concentrado na freguesia da Sé, restando
apenas um único jeje solitário batizado em Conceição da Praia40. Na
Praia a hegemonia mina chega a 96% de um total de 2.035 africanos
e em Santo Antonio Além do Carmo é menor: de 1.415 africanos
88% eram minas.
Mas a pouca representação numérica nos batismos
das outras nações não implica em pouca importância destas como
uma janela para o entendimento da diversidade africana da Bahia.
Um exemplo já falado são os ardras – também denominados ardra
ou alada – muito numerosos em Santo Antonio até o ano fatídico
de 1724, quando a cidade de Alada cai sob o jugo do Daomé. Seu
40 Para os detalhes do predomínio jeje na freguesia da Sé ver Soares (2010).
Carlos Francisco da Silva Júnior & Carlos Eugênio Líbano Soares
143
montante se concentra nas primeiras duas décadas do século e
principalmente na área ainda semi-rural de Santo Antonio. Os
minas aparentemente são mais fortes em áreas mais urbanizadas,
como Sé e Praia, que tem um crescimento espetacular neste meio
século.
Uma informação dos batismos que entra em contra-
dição com os dados dos inventários é a divisão dos sexos entre os
africanos. A historiografia sempre primou em mostrar a grande su-
premacia dos homens sobre as mulheres dentro da gente africana,
o que certamente reflete os padrões do tráfico atlântico. Mas nos re-
gistros de batismos da Bahia vemos claramente, em todas as fregue-
sias, a predominância feminina. No computo geral dos 4555 africanos batizados nos registros sobreviventes da Cúria mais da metade
(54%) ou 2.475 eram mulheres, e 45% ou 2.049 eram homens41.
Acreditamos que a escalada do trabalho urbano –
vendas de rua, trabalho doméstico, artesanato, etc. – favorecia a
presença das mulheres na então maior cidade da América portu-
guesa, enquanto os homens em maioria eram enviados ou para as
plantações do Recôncavo ou para as mais distantes minas de ouro
e diamantes. E as africanas também são mais numerosas como ma-
drinhas que os africanos como padrinhos de seus iguais recém desembarcados. As africanas superam os africanos homens em todos
os níveis em que aparecem nos termos de batismo. Nesta época a
Bahia já era realmente uma cidade africana das mulheres.
Na Tabela 4 partimos para outro plano dos mundos do tra-
balho escravo na Bahia: O universo ocupacional dos senhores que
41 Menos de 1% ou 31 não foi possível recuperar o sexo pela precariedade do registro.
144
Uma Nova Guiné: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII
levaram estes africanos ao batismo. Logicamente a freqüência de
determinadas ocupações é aqui é o que nos interessa e não proprietários isolados, pois alguns senhores batizaram número expressi-
vo de cativos, como Manuel Álvares de Carvalho, que num único
dia, 28 de abril de 1751, batizou nada menos de 35 africanos, todos
minas. Como capitão e “senhorio” de embarcação ele certamente
irá revender estes negros novos no fervilhante mercado da Bahia de
então42. De qualquer maneira, a ampla maioria dos senhores que
batizaram escravos na cidade da Bahia no período não registraram
suas ocupações.
A igreja participava ativamente do mundo da escravidão, e
o número de padres aparecendo como senhor reflete isso. Um dado
interessante é que ocupações privadas raramente são registradas,
e isto se reflete no peso desproporcional das ocupações públicas, e
principalmente aquelas de maior prestígio. Em outras palavras, a
maioria dos senhores que batizavam africanos não tinha registrada
sua ocupação.
Uma exceção importante poder ser a patente de capitão,
com 189 entradas. Além de se referir a patentes militares do exército
colonial, podia também se referir a capitães da marinha mercante,
possivelmente de vasos envolvidos no comércio de negros da Costa,
como se dizia na época.
42 Livros de Batismos da Freguesia da Conceição da Praia:1743-1751.Manoel Carvalho foi proprietário de navios negreiros pelo menos entre 1737 e 1760, quando
financiou 21 viagens, sendo 19 sozinho e 2 com sócio. Agradeço a Candido Eugênio
pela informação oriunda da base de dados Transatlantic Slave Trade Data Base,
organizada por David Eltis.
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Tabela 4
Proprietários de escravos africanos por ocupação : cidade da Bahia
1700-1750
Padre
89
19,2 %
Cônego
3
0,6 %
Sacerdote de São Pedro
4
0,8 %
Frei
1
0,2 %
Juiz
2
0,4 %
Doutor
23
4,9 %
Doutor reverendo
3
0,6 %
Licenciado
15
3,2 %
Desembargador
14
3,0 %
Coronel
30
6,4 %
Capitão
189
40,9 %
Capitão-mor
8
1,7 %
Sargento-mor
19
4,1 %
Ajudante
19
4,1 %
Almotacé de limpeza
1
0,2 %
Alferes
22
4,7 %
Sargento
10
Alcaide-Mor
2
Capitão de Mar e Guerra
2
Madre do Desterro
1
0,2 %
Religiosa de Santa Clara
1
0,2 %
Guardra-Mor
1
0,2 %
Comissário-geral
1
0,2 %
Navegante
1
0,2 %
Patrão-Mor
1
0,2 %
Total
462
Fonte: Livros de batismos das Freguesias da Sé, Conceição da Praia,
Santo Antonio Além do Carmo, Vitória e Paripe, CMS, UCSAL – LEV *
Clérigos de ordens menores. Alguns são chamados minoristas.
145
146
Uma Nova Guiné: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII
Na 1ª metade do século XVIII Salvador é o grande entre-
posto do comércio negreiro no Brasil, e os africanos aqui desembarcados eram levados para todos os cantos da América portuguesa,
desde o Maranhão até a colônia de Sacramento, no extremo sul. O
único “navegante” registrado como donos de escravos era um preto
livre, o que pode indicar alguém com saveiro que percorria as vilas
do Recôncavo mercando produtos para serem vendidos na capital.
Também recebem destaque nesta lista os altos funcionários
da burocracia judiciária, como desembargadores, e mesmo doutores reverendos, que são eclesiásticos especializados na legislação
canônica. Nesta lista nós apresentamos somente aquelas ocupações
mais registradas, omitindo algumas raras, mas de tremenda importância, como quando o próprio Vice-Rei Vasco Fernandes Cezar de
Menezes mandou batizar seu escravo Miguel Mina na matriz de
Santo Antonio Além do Carmo43.
Tabela 5
Africanos batizados na cidade da Bahia por faixa etária - 1700-1750
Adulto
3462
97 %
Moleque adulto
1
0,02 %
Párvulo
Moleca
Inocente
De peito
Rapaz /rapariga
Total
81
1
1
1
10
3557
2,2 %
0,02 %
0,02 %
0,02 %
0,2 %
100,0 %
Fonte: Livros de batismos das Freguesias da Sé, Conceição da Praia, Santo Antonio Além do Carmo, Vitória e Paripe, CMS, UCSAL - LEV
43 Livro de Batismos da Freguesia de Santo Antônio Além do Carmo 1728-1734,
15/07/1731. CMS, UCSAL-LEV.
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147
Os dados indivíduos de batismo são escassos, e quase sem-
pre se limitam ao nome, idade aproximada e nação dos africanos,
mas este arremedo de faixa etária sempre tem de ser vista como re-
servas. Na Tabela 5 vemos que 78% dos africanos batizados tiveram
algum registro de idade, e que na esmagadora maioria dos casos o
africano foi denominado “adulto”. O que era ser adulto no princípio do século XVIII? Para a terminologia da época, escravo adulto
era aquele que alcançava mais de sete anos, isto é, podia ser plenamente aproveitado em seu trabalho44. E realmente 97% dos africa-
nos recebiam esta denominação, se bem que haja casos raros em que
crianças de peito são embarcadas. O termo párvulo indicava aquela
criança menor de sete anos, e que assistia parvo ao espetáculo de
crueldade que era um navio negreiro.
Na tabela 6 entramos na variante importante dos padrin-
hos. Stuart Schwartz e Stephen Gudeman em artigo antológico
(1988) já enfatizavam a importância dos padrinhos na vida de escravos, principalmente africanos, que quase sempre perdiam sua
família original ao entrar no circuito do tráfico atlântico. Mesmo
trabalhando para uma região rural (freguesias de Monte e Rio Fundo) e para o final do século, ele focaliza o papel fundamental do
padrinho e madrinha em intermediar assuntos de relevância para
o cativo novo com pessoas de status superior, mas também como
elemento de integração daqueles jovens africanos com o estranho e
hostil mundo de escravidão da Bahia de antanho.
Para nós estas características se apresentam como fatores
prévios no estudo do compadrio de africanos na Bahia da época.
44 Para os padrões etários do tráfico ver Salvador (1981).
148
Uma Nova Guiné: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII
Devemos agora atentar apenas para aqueles padrinhos de africanos
que chamamos de iguais, isto é, escravos e libertos, em primeiro
lugar pelo quesito cor.
Tabela 6
Padrinhos de africanos na cidade da Bahia por cor
1700 – 1750
Pardo
180
36,6 %
Crioulo
68
13,8 %
491
100,0 %
Mestiço
Preto
Total
6
237
1,3 %
48,3 %
Fonte: Livros de batismos das Freguesias da Sé, Conceição
da Praia, Santo Antonio Além do Carmo, Vitória e Paripe,
UCSAL - LEV
Como era muito raro que fosse mencionada a nação africana do padrinho/madrinha – com exceção da freguesia da Sé, onde
estes termos eram amplamente levantados e os jejes eram ampla
maioria dos africanos padrinhos/madrinhas45 – levantamos aque-
les por suas categorias de categorias de cor que pudessem indicar
proximidade com os africanos. Pardo era o chamado filho da negra
com o Branco. Gozavam supostamente de maior prestígio. Mestiço
é um termo confuso que guardra semelhança com pardos, mas acreditamos que podia envolver inclusive ascendência indígena. Crioulo já é mais exato no contexto da época: o preto nascido no Brasil.
45 De 84 padrinhos africanos na Sé, 90,5 eram jejes. De 146 madrinhas africanas na
Sé, 87,9% eram jejes.
Carlos Francisco da Silva Júnior & Carlos Eugênio Líbano Soares
149
O termo preto neste sentido podia envolver tanto nascidos
no Brasil como africanos, mas a nação geralmente era omitida. Mas
entre os padrinhos “de cor” os pretos eram quase metade46. Esta
maioria de “pretos” pode esconder uma forte presença africana,
omitida por senhores, padres ou escrivães.
Na tabela 7 vemos o mesmo foco agora dirigido para as
madrinhas. Em primeiro lugar realça a quantidade mais expressiva
de madrinhas “de cor” do que de padrinhos, o que pode refletir o
peso maior das cativas na cidade, como vimos. E o peso despropor-
cional das “pretas”, talvez muitas africanas cuja nação era silencia-
da, seguida das pardras, e somente depois as crioulas, repetindo a
seqüência dos padrinhos
Tabela 7
Madrinhas de africanos na cidade da Bahia por cor
1700 – 1750
Cor
Pardra
Mestiça
Crioula
Preta
Total
Quantidade
%
108
15,4
90
12,8
701
100
12
491
1,8
70
Fonte: Livros de batismos das Freguesias da Sé,
Conceição da Praia, Santo Antonio Além do Carmo, Vitória e Paripe, CMS, UCSAL - LEV
46 Para uma análise da escravidão do ponto de vista exclusivo dos pardos e crioulos ver Lara (2007).
150
Uma Nova Guiné: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII
Vemos na Tabela 7 que 15% das madrinhas eram “negras”
se podemos usar este termo para a época, e apenas 10,7% dos padrinhos eram da mesma origem. Uma percentagem baixa para nossas expectativas, já que não podemos inferior que aqueles que não
eram identificados pela cor, e que eram maioria nos apadrinhamen-
tos eram brancos. Podemos ainda avançar nesta hipótese se buscarmos os dados de padrinhos/madrinhas de africanos que eram
escravos ou forros. Pretos, Pardos e mestiços representam assim,
tanto no papel de padrinhos como de madrinhas, menos de 10%
do total destes para os escravos africanos. Aparentemente uma per-
centagem baixa para o esperado de africanos. Mas, é possível que a
cor fosse articulada somente quando o indivíduo fosse livre ou forro? Um olhar para os padrinhos/madrinhas pela condição escrava
pode abrir novas janelas.
Na Tabela 8 separamos os padrinhos escravos e libertos e
vemos claramente o quanto a informação da cor era relativa. Nada
menos de 40% do total de padrinhos de africanos batizados na Bahia
eram escravos. O que confirma o papel central de escravos com
mais tempo de vida na Bahia como aqueles ideais para intermediar
ou “apadrinhar” a conversão de africanos à religião dos seus donos.
Infelizmente somente na freguesia da Sé temos dados suficientes
sobre a nação deste escravo padrinho, africano ou crioulo, e mesmo
assim os dados são falhos, pois muitos escravos da Sé também não
tiveram sua nação registrada47.
47 Na Sé de 938 registros somente em 84 temos a nação africana do padrinho e em
166 a da madrinha, e crioulas respectivamente são 89 e 95.
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151
Tabela 8
Padrinhos escravos e libertos de africanos na
cidade da Bahia 1700 – 1750
Escravos
1849
83%
Total
2209
100
Forros
360
17%
Fonte: Livros de batismos das Freguesias da Sé, Conceição
da Praia, Santo Antonio Além do Carmo, Vitória e Paripe,
CMS, UCSAL - LEV
Para as madrinhas de condição cativa vemos números ain-
da mais dilatados. Não podemos deixar de apontar a presença maior
de mulheres forras como madrinhas, o que indica um maior envolvimento feminino com as questões da conversão e da “catequese”
do africano, sempre deixando claro que o batismo podia significar
tanto integração no mundo católico como abertura de participação
na comunidade escrava para o negro novo a pouco desembarcado.
Tabela 9
Madrinhas escravas e libertas de africanos na
cidade da Bahia 1700 – 1750
Escravas
2445
77,7 %
Total
3144
100 %
Forras
699
22,3 %
Fonte: Livros de batismos das Freguesias da Sé, Conceição
da Praia, Santo Antonio Além do Carmo, Vitória e Paripe,
CMS, UCSAL - LEV
152
Uma Nova Guiné: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII
Outra dimensão importante para os padrinhos é a ocu-
pacional, como foi em outro momento dos senhores. Novamente
as ocupações públicas mais renomadas ou de maior prestígio são
efetivamente registradas, para um universo que cobre somente 6%
do total de padrinhos. Novamente os padres são a ocupação mais
presente, seguidos pelos capitães, que como informamos, podiam
se referir tanto à militares como à capitães de embarcações. Tudo
indica que muitos senhores convocavam companheiros de mesmo
ofício e até de negócios para servirem de padrinhos de seus escravos, o que implicava que poderiam ser convocados também em algum momento.
Tabela 10
Padrinhos de africanos por ocupação
na cidade da Bahia 1700-1750
Ajudante
23
8,3 %
Assistente
2
0,7 %
Alferes
Bacharel
Cabo de esquadra
10
1
1
3,6 %
0,3 %
0,3 %
Capitão
36
12,9 %
Capitão-mor
3
1,08 %
Clérigo in minoribus*
10
3,6 %
Corregedor
1
Capitão de artilharia
Clérigo
Cônego
Desembargadores
Doutor
1
2
6
7
11
0,3 %
0,7 %
2,1 %
0,3 %
2,5 %
3,9 %
Carlos Francisco da Silva Júnior & Carlos Eugênio Líbano Soares
Estudante
11
3,9 %
Licenciado
6
2,1 %
Filho família
Marítimo
Monsenhor
Navegante**
Padre
Padre do hábito de São Pedro
Reverendo
1
1
1
1
0,3 %
0,3 %
0,3
37,5 %
3
1,08 %
2
0,7 %
Sacristão
25
Total
277
Sargento
0,3 %
104
8
153
2,8 %
9,0 %
100,0 %
Fonte: Livros de batismos das Freguesias da Sé, Conceição da Praia, Santo Antonio Além do Carmo, Vitória e Paripe, ACM, UCSAL – LEV. * Clérigos de ordens menores. Alguns são chamados minoristas.
Fonte: Livros de batismos da Freguesia da Sé 1734-1742. Cúria Metropolitana
de Salvador. ** Preto livre.
Por último vemos na Tabela 11 a presença de escravos e
forros que levaram seus cativos para o Batismo, como era obrigação
religiosa de todos os senhores. A extensão da escravidão africana
na Bahia do século XVIII foi tamanha que até escravos passaram
a comprar escravos. Podemos observar que 61 escravos batizaram
africanos recém chegados à América, a maioria na freguesia da
Conceição da Praia, onde se localizava o mercado de escravos da cidade, próximo do porto onde desembarcavam os africanos48. Destes
a maioria eram do sexo feminino, o que reforça dados já apontados
48 Não há uma pesquisa sobre o local de desembarque de escravos no porto da
Bahia, mas o cais da Preguiça se aproxima das características portuárias típicas
do século XVIII: próximo da Alfândega mas suficientemente longe do azáfama de
chegada/saída das outras mercadorias.
154
Uma Nova Guiné: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII
neste texto. No entanto quando separamos as senhoras libertas de
seus iguais vemos uma ampla superioridade feminina, o que corrobora elementos reafirmados diversas vezes nesta pesquisa.
Tabela 11
Senhores escravos ou forros que batizaram africanos
na cidade da Bahia 1700 – 1750
Condição
Alforriados
Escravos
Total
Homens
48
29
77
%
Mulheres
47,5
32
36,6
83
115
%
Total
52,4
61
63,4
131
192
Fonte: Livros de batismos das Freguesias da Sé, Conceição da Praia, Santo
Antonio Além do Carmo, Vitória e Paripe, UCSAL - LEV
As mulheres pretas e pardras, escravas e libertas, africanas
e crioulas, retinham um peso nos mundos da escravidão africana
da cidade da Bahia muito superior as mulheres presumidamente
“brancas”, mesmo que esta categoria de cor sequer apareça no registro batismal aqui usado49.
Em uma sociedade em que 73% dos senhores de escravos
que entravam nas igrejas da Bahia para batizar seus africanos eram
do sexo masculino, a presença feminina dentro da população afri-
cana como um todo, e mesmo da rala população escrava que conseguia comprar escravos, era surpreendente, um dado que deve iniciar novas indagações no estudo da escravidão urbana no período
colonial no Brasil.
49 Para o final do século XVIII o termo “branco” surgirá com um peso crescente.
Carlos Francisco da Silva Júnior & Carlos Eugênio Líbano Soares
155
Conclusão
A sociedade urbana do Brasil colonial ainda carece de pes-
quisas mais profundas. E quando falamos do século XVIII o quadro
é ainda mais incisivo. As pesquisas sobre escravidão africana neste
período ainda se concentram nas áreas rurais, e quando vamos para
a ampla bibliografia do século XVIII mineiro vemos que a distinção
entre rural e urbana costuma ser diluída até pela dimensão reduzida das vilas na região do ouro e do diamante50.
Salvador é uma cidade pujante no século XVIII51. Seu cres-
cimento em todos os sentidos no período analisado por nós foi es-
petacular. Novos olhares devem se voltar para a rica documentação
guardrada sobre a cidade, em Salvador, ou fora dela como Rio de
janeiro e Lisboa. A segunda cidade do Império Português teve em
sua população africana um peso decisivo na sua definição cultural
e política, e este artigo busca apresentar estas fontes que devem ser
aprofundadas.
O que era ser africano escravo na Bahia deste período? Os
dados de inventários e batismo confirmam a presença majoritária
dos africanos ocidentais na cidade, um dado novo já que no século
XVII a Bahia era marcadamente Angola, uma forte presença feminina, contrastando com os dados da área rural; uma densa concentração nas áreas mais urbanizadas, refletindo o fortalecimento do
tráfico com a África; uma população jovem, reflexo também daque-
50 Para um levantamento atualizado da produção do século XVIII mineiro ver Resende e Vilalta (2007), 2 volumes.
51 Para uma panorâmica das transformações urbana operadas no XVIII na Bahia
ver Pedro de Almeida Vasconcelos. Salvador: transformações e permanências
(1549-1999) Ilhéus, Editus, 2002, principalmente os capítulos 2 e 3.
156
Uma Nova Guiné: africanos em inventários e registros de batismo na
cidade da Bahia da primeira metade do século XVIII
le trato, e que marcará profundamente o caráter da gente baiana até
os dias de hoje.
Carlos Francisco da Silva Júnior & Carlos Eugênio Líbano Soares
157
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Família escrava no Maranhão:
um estudo demográfico (1780/1820)
Antonia da Silva Mota
Mina
162
Família escrava no Maranhão: um estudo
demográfico (1780/1820)
Antonia da Silva Mota1
A condição escrava não impediu a formação de núcleos fa-
miliares, é o que constatamos nos registros escritos do Maranhão
colonial. Por todo este período, nos poucos agrupamentos urbanos
e nas inúmeras unidades produtivas rurais, os registros feitos pelos
senhores de escravos dão conta de famílias moldadas pelo cativeiro.
Compostos por poucos indivíduos, estes grupos unidos por laços
de convivência e consangüinidade se multiplicavam nas fazendas a
partir de um padrão social, como vemos no registro abaixo:
[...] Escravos
Bartholomeu mandinga de vinte e oito anos avaliado em cento e vinte e seis mil réis 126$000
Vicente, fula, de idade de trinta anos, pouco mais ou menos,
avaliado em cento e cinqüenta mil réis 150$000
Manoel benguela de idade de quarenta anos, cento e vinte
mil réis 120$00
Rita mina, sua mulher, de idade de vinte e cinco anos, avaliada em cento e quarenta mil réis 140$000
(TJMA, Inventário post mortem de Bento da Cunha, 1788)
O proprietário acima era fazendeiro, estabelecido na Ribei-
ra do Itapecuru – Maranhão: plantava algodão e arroz com o trabal-
ho de setenta e seis escravos, a maioria africanos de diversas etnias.
Em meio ao rol dos escravos de sua propriedade foram arroladas
1 Professora Adjunta do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Maranhão.
164
Família escrava no Maranhão: um estudo demográfico (1780-1820)
quinze famílias, donde vimos que seis delas eram formadas apenas
pelo casal, em cinco outras foi registrada a presença de um filho e
três um pouco maiores, apresentando pai, mãe e dois filhos.
Existem inúmeros trabalhos que focalizam as famílias de
cativos. O brasilianista Stuart Schwartz em seu clássico Segredos
Internos realizou um estudo demográfico das famílias escravas nas
unidades açucareiras do Recôncavo baiano. Constatando a proliferação dos núcleos familiares nas unidades produtivas, este autor
conclui que a família e os parentes eram fundamentais na vida dos
escravos, pois lhes proporcionavam apoio na vida cotidiana, por
exemplo, no caso de doenças, e consolo para suportar o cativeiro.
(1988, p. 330)
O historiador Rafael de Bivar Marquese, em sua pesquisa
sobre as estratégias usadas pelos senhores no sentido de controlar
seus escravos, apresenta uma outra visão sobre a proliferação dos
núcleos familiares sob condição escrava. Segundo este autor, a for-
mação das famílias era recomendada aos senhores, com um claro
objetivo:
Os senhores deveriam adotar uma disposição moderada,
mas ativa, em relação à mão-de-obra. O fomento ao estabelecimento de relações conjugais entre os cativos atuaria nesse
sentido, pois seria um excelente meio de lhes suavizar o jugo
e os ter com resignação sujeitos ao domínio em razão da mulher e filhos, seus caros penhores, que os retêm e consolam.
(MARQUESE, 2004, p. 179)
Portanto, para além da visão inicial, de considerar a exis-
tência destes núcleos como uma manifestação de humanidade, ape-
sar de serem arrolados como “coisas”, é evidente que os senhores se
não estimulavam, pelo menos não coibiam os ajuntamentos conju-
Antonia da Silva Mota
165
gais entre os escravos. Pelo contrário, aproveitavam-se dos “frutos”
destes cruzamentos. Era uma prática naquela sociedade, presentear
filhos, netos e afilhados com escravos de pouca idade, como vemos
em inúmeros registros privados:
A minha neta Raimunda Isabel deixo-lhe uma rapariga crioula por nome Maria Cota (...) Tenho uma mulata chamada Rita
a deixo a minha irmã Margarida Mendes, e a dita mulata está
em seu poder para servi-la durante a sua vida, e depois de
morta a deixo [a mulata] a minha afilhada e neta Ana Francisca, filha de meu genro Francisco das Chagas, com todos
os produtos que poderá ter a dita mulata (...) Deixo a um
menino que criou minha irmã Margarida Mendes, chamado
Antonio David, um rapaz por nome Raimundo, nação Bijagó,
como tão bem cinqüenta mil réis para o seu vestuário, e tudo
o faço pelo amor de Deus. (APEM, Testamento de Felipe Carvalho Matos, 1784).
Registros desta natureza eram muito comuns nos testa-
mentos do período, sendo quase certo que os “produtos” da mulata
Rita, os filhos que ela tivesse, também foram distribuídos pela nova
proprietária Ana Francisca, separando outra família de escravos.
Embora vivessem em uma sociedade com forte tradição
cristã, separar mães escravas de seus filhos não parecia chocar aque-
las pessoas. Todos os estudiosos do período colonial se reportam às
admoestações da Igreja quanto à doutrinação cristã dos escravos,
sendo esta a justificação maior do escravismo, tirá-los do paganismo: salvar a alma dos infiéis.
Religiosos exortavam os senhores a que permitissem que
seus escravos freqüentassem a missa aos domingos, que lhes fossem
administrados os sacramentos, entre eles o batismo e o casamento
cristão. Neste ponto, da sacramentalização dos laços conjugais, sur-
giram conflitos inevitáveis entre Igreja e senhores de escravos, uma
166
Família escrava no Maranhão: um estudo demográfico (1780-1820)
vez que do ponto de vista moral separar famílias unidas pela igreja
ocasionava inúmeros problemas.
A leitura dos documentos mostra que os senhores faziam
vista grossa para a formação das famílias entre seus cativos, evitando formalizar os casamentos. São raríssimos os casos de uniões
ungidas pelos ritos católicos. Quando isto se dava quase sempre se
tratava do feitor, pois era considerado um privilégio. Por outro lado,
não concordamos com Schwartz quando diz que “os filhos nascidos
no cativeiro eram “ilegítimos”(p. 318). Assim seriam se fosse dada
aos casais a opção de formalizar ou não seus laços de convivência;
como isto era obstaculizado ao máximo por seus senhores, então
não vemos sentido em impingir mais esta conotação negativa a estes núcleos familiares.
Aos senhores interessava a reprodução dos escravos e não
era conveniente que estas uniões fossem reconhecidas, por que lhes
traria problemas no trato dos escravos: por exemplo, os cuidados
com as mães parturientes e recém-nascidos, e problemas ainda
maiores caso precisassem separar estas famílias. Alguns senhores
demonstravam sentimentos de compaixão à beira morte para com
seus cativos, em vista de ter seus pecados perdoados ou pelo menos
suas culpas amenizadas. No caso de João Belfort, que ao se aproximar a morte, deixou escrito:
Declaro que é da minha vontade que quando hajam de se repartir os meus escravos, não se separem as mães de seus filhos, procurando-se para os legados maiores famílias inteiras,
e para os menores aqueles que não tiverem filhos, ou dos que
forem solteiros, afim de não se separarem as ditas famílias.
(TJMA, Test. João Belfort, 1814).
Antonia da Silva Mota
167
Estas preocupações eram raríssimas entre os senhores, mas
há que se notar que os comissários avaliadores procuravam arrolar
primeiro os escravos que tivessem companheiras, depois os soltei-
ros, o que pode representar um reconhecimento destas uniões e a
intenção de mantê-las unidas. Seria necessário fazer um estudo da
partilha dos bens para confirmar ou não este reconhecimento. O co-
ronel João Belfort possuía várias unidades produtivas na Ribeira
do Itapecuru, umas com plantações de algodão e arroz, engenhos e
fazendas de criação de gado, e até mesmo um curtume nos arredores da cidade de são Luís. Em seu rol de bens foram avaliados 129
escravos, e impressiona que nenhum deles tenha sido alforriado, o
que era de praxe entre os senhores, alforriar um ou dois escravos,
aqueles que o serviram em vida mais proximamente.
Neste ponto poderíamos avançar numa definição do que
entendemos por “família escrava”. Com certeza são agrupamentos
humanos forjados sob condições as mais adversas, no entanto, eram
representadas como unidas por laços de afetividade, no caso dos casais, e de sangue, as que possuíam filhos. Sempre respeitando uma
ordem hierárquica: primeiro era nomeado o homem, depois a mul-
her, a seguir, os filhos, do mais velho ao mais novo, com suas respectivas idades e valor. Dificilmente temos mais do que isto, menção a
avós são uma raridade, e nunca tios ou primos. Uma vez que eram
pessoas referidas juntas nos documentos, deduzimos que elas se reconheciam como família e eram aceitas como tal, pelos comissários
avaliadores e por seus proprietários.
168
Família escrava no Maranhão: um estudo demográfico (1780-1820)
A formação das famílias no cativeiro - limitações
A formação de casais sofria restrições dentro do sistema es-
cravista, sendo a principal delas era a desproporção entre os sexos.
Quantificando a população das fazendas escravistas pela idade, ve-
mos que estas eram comunidades atípicas, com predominância numérica do sexo masculino, baixa porcentagem de crianças e velhos,
número anormal de adultos jovens.
A faixa etária mais produtiva economicamente, de quinze
a quarenta e cinco anos, predominava. Este segmento representava
64,63% do total, em que o elemento masculino (36,45%) se sobrepunha sobre o feminino (28,45%), o que confirma a tendência do-
minante nas unidades de produção voltadas para o lucro: no ato da
compra do escravo a preferência pelos indivíduos do sexo masculi-
no, mais resistente ao trabalho pesado das lavouras (MOTA, 2007,
p. 58). Esta desproporção dificultava sobremaneira a busca por um
parceiro sexual.
Outra forte restrição à formação de casais vinha da cir-
cunscrição dos escravos as fazendas. Todos os casais mencionados
pertenciam ao mesmo senhor e à mesma fazenda. Na tentativa de
evitar fugas e litígios com outros senhores, os proprietários cuida-
vam de limitar a circulação de seus escravos por outras fazendas da
região, o que acabava por restringir as possibilidades de encontrar
parceiros sexuais diferentes do convívio cotidiano.
Encontramos apenas um caso em que foi arrolado um es-
cravo como “casado” e sua parceira não foi citada no rol de bens,
donde se deduz que esta não pertencia àquele senhor. Importante
observar que este escravo na morava na fazenda da família, mas
Antonia da Silva Mota
169
a servia em sua vivenda na cidade (TJMA, Inv. Bento da Cunha,
1788). É sabido que nas cidades os escravos, mesmo os domésticos,
gozavam de maior liberdade de se relacionar com outras pessoas, o
que pode ter ocasionado, neste caso, a ausência da mulher do escra-
vo casado na lista de escravatura daquele senhor. Existe a possibilidade que ela fosse livre ou liberta, ou pertencesse a outro senhor.
Origem étnica dos cônjuges
No que se refere às etnias dos cativos que foram trazidos
para esta capitania o historiador Matthias Röhring Assunção afirma
que:
A grande maioria dos escravos levados para o Maranhão
provinha dos rios da Guiné, embarcados em Cacheu (44%),
Bissau (43%) e Angola (12%). Ao lado dos escravos Mina,
Angola, Benguela, Congo e Cabinda, aparecem especificamente, sete etnias da Guiné: Mandinga, Papel, Bijagó, Fula,
Balanta, Cassange e Nalu. Os Mandinga são, de longe os mais
freqüentemente mencionados, junto com os escravos denominados Angola. Os Mandinga refere-se a uma língua, uma
região e um legado cultural, Hoje, vários dialetos Mandinga
são falados por quase um milhão de pessoas na Guiné-Bissau, no Senegal e na Gâmbia. A herança cultural remonta
ao Império do Mali, um dos mais antigos grandes Estados no
Ocidente africano, que existiu entre aproximadamente 1200 e
1465. O Império do Mali controlava as rotas comerciais que
atravessavam o Saara ocidental, negociando com ouro, cobre,
escravos, sal e tecidos de algodão. Os seus soberanos, chamados “mansas”, eram reputados por sua opulência e acabaram
adotando o islã. Os Mandinga são reputados por sua rica tradição musical e sobretudo por seus contadores de história e
guardiões das tradições, os “griots”. (ASSUNÇÃO, 2001, p.7)
Consta no Dicionário do Brasil colonial, organizado por
Ronaldo Vainfas que, “os Mandingas costumavam trazer ao pes-
170
Família escrava no Maranhão: um estudo demográfico (1780-1820)
coço amuletos na forma de pacotinhos contendo papéis com versículos do alcorão e signos de Salomão” (VAINFAS, 2000), um sinal
claro das permanências culturais de seus ancestrais. Nos inventá-
rios da capitania do Maranhão aparecem também inúmeros outros
grupos étnicos, mas em quantidades menores, como: fula, fulupo,
balandra, bijago, papel, mina, benguela, cabinda, baiuno, camundá,
cassange, congo, biafara, moçambique, bambará etc.
Como era muito comum na formação dos casais angola se
ajuntar com angola, fula com fula, bayuno com bayuna, comportamento que percebemos apontar uma tendência na formação dos
casais por indivíduos da mesma região no continente africano, o
que pode indicar uma preferência por parceiros da mesma cultura.
Esta particularidade era mais evidente no auge da importação de
escravos para o Maranhão, entre 1760 a 1800.
Depois, multiplicou-se a entrada de escravos com indi-
cação de outras etnias, os inventários passaram então a indicar
maior diversidade étnica, e a formação dos casais também se diversifica etnicamente.
Estrutura familiar
Quantitativamente, as famílias nucleares predominavam,
representando aquelas onde aparecia o casal e um ou dois filhos.
Logo a seguir vinham aquelas formadas apenas pelo casal. Sendo
que as famílias matrifocais, apenas a mãe e seus filhos também são
muito comuns. Abaixo citamos uma família típica entre os escravos:
Deu mais a inventário o escravo Francisco, Fula, de idade de
vinte e oito anos, avaliado em duzentos mil réis 200$000
Antonia da Silva Mota
171
Deu mais a escrava Juliana, Papel, sua mulher, de idade de
trinta anos, doente de uma perna, que foi avaliada por cento
e sessenta mil réis...160$000
Deu mais o escravo Januário, Crioulo, filho dos ditos, de idade de nove anos, avaliado por cento e quarenta mil réis....
140$000
(Inv. José Joaquim da Silva Rosa, 1805).
O Coronel José Joaquim da Silva Rosa era possuidor de oi-
tenta e três escravos em propriedades localizadas no rio das Bicas,
na ilha de São Luís, e na ribeira do rio Preto, já no continente. Dezessete famílias de escravos foram arroladas no seu plantel, onde
citamos acima uma delas, de formação típica.
Verificamos que a média de filhos por casal era muito
baixa, não passando de 1,3 por família. Devido às limitações do re-
gistro escrito, não sabemos se os poucos filhos por casal se deviam à
alta mortalidade infantil, devidos às condições do cativeiro, trabalho pesado, contínuo, ou estes evitavam filhos usando métodos anti-
concepcionais. Outra possibilidade seria dos filhos maiores não se-
rem arrolados junto com seus pais, pois existem inúmeras crianças,
entre dez e quatorze anos que aparecem nos plantéis sem qualquer
menção a genitores.
Talvez se mencionarmos famílias de “privilegiados” den-
tro da escravaria ajude a visualizar a estrutura das famílias surgidas
em condições tão adversas. Em 1824, foram arrolados os bens de
Bernardino Pereira de Castro, em que aparecem trinta e sete escra-
vos, a maioria deles trabalhadores de sua fazenda de cultivo de algodão e arroz na ribeira do Itapecuru:
Declarou o tenedor e administrador Fernando Pereira de Castro a este inventário um escravo casado por nome Benedito,
feitor, de nação mina, de idade que mostrou ter sessenta anos,
172
Família escrava no Maranhão: um estudo demográfico (1780-1820)
pouco mais ou menos (...) avaliado em duzentos mil réis ...
200$000
(...) Uma escrava por nome Micaela, mulher do dito, de idade
que mostrou ter quarenta anos, de nação bijagó, avaliada pelo
preço de cento e sessenta mil réis ... 160$000
(...) Um escravo crioulo, por nome Paulino, casado, de idade
que mostrou ter trinta anos (...) avaliado em trezentos e cinqüenta mil réis ... 350$000
(...) Uma escrava crioula por nome Ana, mulher do dito, de
idade que mostrou ter trinta e cinco anos (....) avaliada em
duzentos e oitenta mil réis ... 280$000
(...) Um escravo por nome Lourenço, crioulo, filho dos ditos,
de idade de cinco anos, avaliado em cinqüenta mil réis ...
50$000
(TJMA, Inv. de Bernadino Pereira de Castro, 1824)
Embora os chefes de família acima mencionados se distin-
guissem do resto da escravaria por suas funções, tanto que conseguiram legitimar seus laços conjugais, a estrutura destes núcleos
familiares não fugiu aos padrões: verificamos que quase sempre o
elemento masculino era mais velho; sendo a diferença de idade entre os casais de dez anos ou menos, o que no conjunto indica que a
escolha pelo parceiro era natural e não induzida por seus senhores.
A maioria dos casais mencionados era jovem, em média
com 30 anos, e os filhos apresentados menores de dez anos, sendo a
média de idade das mães para o primeiro filho por volta dos vinte
anos, ocorrendo quase sempre no final da adolescência e início da
idade adulta.
O Intervalo médio entre os filhos era de 1,25 anos, com al-
gumas variações que fugiam aos padrões de normalidade. Os da-
dos apontam para uma atividade sexual baixa, explicável pelo rit-
mo extenuante do regime escravista, em nada favorável a uma prole
numerosa. Mesmo assim, verificam-se filhos nascendo em uniões
Antonia da Silva Mota
173
estáveis, com casais vivendo juntos por muito tempo, alguns deles
por décadas.
Eram dados nomes cristãos aos escravos e tudo indica que
seriam os senhores a escolher os nomes das crianças nascidas em
cativeiro, pois as preferências quanto aos nomes eram as mesmas.
Certo é que não localizamos nenhum filho de escravo com o nome
do pai, o que pode indicar que os genitores não escolhiam seus nomes, ou não ser costume entre os africanos dar seus nomes aos filhos.
Vemos abaixo a terceira formação familiar mais recorrente
nos inventários, as matrifocais:
[...] Uma escrava por nome Andreza, nação fulupa, com cria
de peito de seis meses, e ela dita com vinte e três anos [...]
avaliada em 220$000 réis. [...] Uma escrava por nome Geralda, crioula, filha da dita Andreza, com idade de dois anos,
avaliada em 35$000 réis. (TJMA, Inv. de João Belfort, 1814).
A média das mulheres em famílias sem a presença do com-
panheiro permanecia a mesma, donde concluímos que a promiscui-
dade entre os escravos é um mito, não foram encontradas mães adolescentes nos plantéis. Por outro lado, aqui e ali surgiam famílias
que fugiam aos padrões, como a encabeçada pela crioula Felícia:
Foi dado mais a descrever uma escrava de nome Felícia,
crioula, com quarenta e cinco anos [...] avaliada em cento e
vinte mil réis.... 120$000
Foi dado mais a descrever um crioulo de nome Inácio, filho
da dita, de vinte e dois anos, oficial de carpinteiro, avaliado
em trezentos mil réis ... 300$000
Outro crioulo, filho de Felícia, de nome João, com dezessete
anos, avaliado em duzentos e cinqüenta mil réis 250$000
Foi dado outra crioula de nome Felicidade, filha de Felícia,
por ter vinte anos, avaliada em duzentos mil réis 200$000
(Inv. de Pedro Miguel Lamagnère, 1816, p. 94)
174
Família escrava no Maranhão: um estudo demográfico (1780-1820)
Na fazenda “Vamos ver”, onde labutavam trinta e nove es-
cravos, encontramos a família acima mencionada, que está fora dos
padrões por vários motivos. Era formada por “crioulos”, o que era
surpreendente para a época em que a maioria dos escravos adultos
era nascida no continente africano. A chefe de família manteve junto a si três escravos adultos, o que fugia a todos os padrões, pois a
maioria das famílias em cativeiro apresentava filhos em tenra idade.
Outra observação que fazemos ao analisar a relação dos
escravos constantes dos inventários post mortem do período é a alta
porcentagem de solteiros. Pessoas que estão em idade de casar, na
faixa etária entre vinte e quarenta e cinco anos, e que não são repre-
sentados como fazendo parte de uma família. Por que uns se ajuntam e outros não, se existem parceiros em idade compatível dentro
do plantel de escravos?
Os demógrafos apontam que mesmo entre comunidades
que se reproduzem naturalmente, composta de pessoas de status
social livre, sempre existe uma porcentagem de pessoas que pre-
ferem manter-se solteira, mas observamos que entre os plantéis de
escravos esta porcentagem é significativa, maior que a considerada
natural.
O objetivo deste estudo preliminar é expor as possibilida-
des de pesquisa a partir das informações registradas nos testamentos e inventários post mortem. Moldadas pelo escravismo, as famílias
ali representadas foram o início da maioria dos núcleos familiares
maranhenses hodiernos, daí a importância de conhecê-las em sua
gestação inicial.
Antonia da Silva Mota
175
Referências bibliográficas
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO MARANHÃO. Arquivo histórico.
Processos avulsos de Inventários post mortem do período 1767
a1824.
176
Uma mão para bater, outra para educar:
o colégio agrícola de São Pedro de
Alcântara e as discussões em torno da
mão-de-obra escrava no Piauí
Mairton Celestino da Silva
Quiloa
178
Uma mão para bater, outra para educar: o Colégio
Agrícola de São Pedro de Alcântara e as discussões
em torno da mão-de-obra escrava no Piauí
Mairton Celestino da Silva1
Em busca dos “melhoramentos” da província do Piauí, en-
tre os anos de 1870 e 1871, circularia nos salões da Câmara Munici-
pal de Teresina um projeto de lei propondo a inserção do potencial
escravo no desenvolvimento material da província. Os mais varia-
dos relatórios sobre as condições de produção e desenvolvimento
da província foram elencados nesse período. O objetivo desse es-
tudo era evidente: traçar um panorama econômico e industrial da
província naquilo que mais se adequava às condições sociais e ma-
teriais, principalmente os potenciais de sua capital, Teresina. Dessa
forma, setores como os da indústria, comércio e agricultura mereceriam especial destaque2.
Como nosso propósito, aqui, limitará unicamente a en-
tender as manobras políticas da província associada ao projeto de
manutenção da mão-de-obra escrava, assim nos concentraremos
apenas nas questões de cunho agrícola, área da qual estavam assentadas as discussões em torno dos destinos do “elemento servil” na
Corte.
As vicissitudes pelas quais atravessava a sociedade teresi-
nense durante a segunda metade do século XIX - no esplender do
1 Mestre em História Social pela UFBA, membro do IFARADÁ (Núcleo de estudos
sobre Africanidades e Afrodescendência-UFPI) e professor da Universidade Federal do Piauí-UFPI.
2 APEPI – Conselho Municipal de Teresina, 1866-1872. Caixa 47.
180
Uma mão para bater, outra para educar: o colégio agrícola de São Pedro
de Alcântara e as discussões em torno da mão-de-obra escrava no Piauí
exibicionismo burguês, da ciência e do mecanicismo industrial – se
agravavam ainda mais por sua localização geográfica. Para alguns
políticos e críticos da situação, o que obstruía a entrada do “pro-
gresso” no Piauí era exatamente a localização da sua capital, nos
sertões do Norte do Império.
Em dezembro de 1871, o jornal da capital, A Pátria, tornava
público uma série de artigos acerca dos melhoramentos materiais
da província, escrita pelo cronista Paraguaçu (pseudômino), cuja
principal reivindicação aludia à transferência da capital de Teresi-
na para a “bem localizada cidade da Parnaíba”, situada na estreita
faixa litorânea da província3.
Favoráveis ou não à transferência da capital, todos tinham
consciência dos obstáculos econômicos da capital do Piauí, pelo menos essa era a estratégia usada pelos políticos de Teresina ao redi-
girem seus relatórios. De certa forma, estamos diante de uma seara
marcada pela dubiedade dos interesses e das barganhas por recursos vindos da Corte imperial.
As crises do setor agrícola e pastoril durante a década de
1870, bem como a seca de 1878-79 inaugurou os limites e confrontos
dessas estratégias de retórica denunciadoras da fome e das calami-
dades. Mesmo que ressentidos com a política de D. Pedro II para
com Norte imperial, o certo era que tanto os presidentes de pro-
víncia, recém nomeados ao cargo, quanto a Corte imperial tinham
interesses em saber o real estado financeiro e da produção de cada
província do império.
3 A Pátria, 22 de Dezembro de 1871. No ano de 1872 os artigos foram publicados
entre os meses de janeiro, abril e maio. Logo no mês de fevereiro, quando os artigos
ganhavam repercussão na sociedade, os políticos da capital lançaram uma nota
repudiando as idéias do até então desconhecido Paraguaçu.
Mairton Celestino da Silva
181
Conforme Lilia Moritz Schwarcz (SCHWARCZ, 1998,
p.138), o imperador D. Pedro II se mostrava um amante da ciência
e do progresso, e tal sentimento o estimulava a encaminhar circulares por todo o império visando, sobretudo conhecer o estado de
produção e desenvolvido material de cada província; sua meta era
catalogar aquilo que havia de mais exótico ou peculiar, com o fim
último de serem apreciadas nos nobres salões europeus.
Foi durante a Exposição universal de 1873, realizada em
Viena, que D. Pedro II recomendou a todos os presidentes de província que enviassem um relatório à cerca das condições do desenvolvimento da agricultura e da ciência dessas províncias para serem
expostas e apreciadas no estande reservado ao Brasil. Em posse da
circular imperial, as autoridades públicas de Teresina esboçaram,
em maio de 1871, o seguinte quadro do estado agrícola da capital:
A agricultura, um dos principais elementos que devia constituir a opulência do município, não obstante prestar-se o
solo de preferência a esse fim, não tem tido desenvolvimento
qualquer, pelo contrário ela se conserva estacionária apesar
de ser a ocupação principal da população: além da falta de
braços, muitos ramos que a constituem são desconhecidos, e
o trabalho é todo material. Limita-se, portanto a lavoura do
município ao algodão, fumo de corda, farinha de mandioca,
arroz, milho, feijão e alguns outros grãos, que no começo da
estação invernosa tornam-se escassos e sobem a preços excessivos.
Não tenho V.EX. limitado a esta câmara as informações que
devera indicar sobre a lavoura, indústria e comércio, antes
facultou-lhe dar outros esclarecimentos que lhe ocorressem
relativamente o estado deste Município sobre qualquer ponto
de vista, entender ela que não deve deixar de levar ao alto
conhecimento de V, Ex. outras circunstancias que poderosamente concorrem para o atrair deste município4.
4 APEPI – Conselho Municipal de Teresina, 1866-1872. Caixa 47. Sobre as conseqüências da especulação da venda de produtos no mercado da cidade e a malogra-
182
Uma mão para bater, outra para educar: o colégio agrícola de São Pedro
de Alcântara e as discussões em torno da mão-de-obra escrava no Piauí
O interesse da Corte na produção agrícola da nação se explica, sobretudo, pela curiosidade dos demais países em conhecer
as qualidades naturais da nação: visto frequentemente como um
país rico em matéria-prima de sabor, aspecto e caráter peculiar. Tais
fatores colocavam o Brasil como um celeiro da matéria-prima, o distinguindo das demais nações, porém, como num efeito inverso ao
esperado por D. Pedro II, reforçava a imagem da nação de um “reino tropical, paraíso das frutas e dos gêneros exóticos” (SCHWARCZ
1998:398).
Não temos informações sobre a remessa de algum produ-
to do Piauí para a Exposição de Viena, entretanto na exposição do
ano seguinte, em Filadélfia, o governo provincial não só recebeu
o convite do imperador para participar da Exposição nacional uma espécie de pré-seleção para a universal - como uma ajuda de
1:600$000 (um conto e seiscentos mil réis), “para satisfação das des-
pesas e transporte dos produtos que houverem de ser destinados à
Exposição nacional”5.
Ao perceberem nas Exposições uma oportunidade para
o desenvolvimento e progresso material, províncias como Bahia e
Ceará viam na organização de Exposições locais, a exemplo do que
vinha sendo planejada por D. Pedro II em âmbito nacional, uma
forma de incentivo ao crescimento da indústria e do comércio, além
de ajudar a disseminar o gosto pelo trabalho entre os indivíduos
dessas províncias.
da tentativa de controle da polícia urbana diante dessa prática.
5 APEPI – Poder Executivo, Falas, Mensagens e Relatórios, Presidentes de Província, 1867-1872, Envelopes 43 a 52, Caixa 04. Relatório apresentado à Assembléia
Legislativa do Piauí, no dia 01 de junho de 1874 pelo Presidente, Dr.Adolfo Lamenha Lins.
Mairton Celestino da Silva
183
Numa época de desagregação da instituição escravista e
de passagem da mão-de-obra escrava para a assalariada forjar entre aqueles recém saídos do mundo da escravidão inclinações de
amor ao trabalho, certamente resignificaria as violentas experiên-
cias do cativeiro e daria, portanto, outros sentidos à idéia de trabalho. Províncias como Bahia, Recife e São Luís se colocavam como
porta-vozes, no dizer de Hardman (1998: 71-72) desse “iluminismo
de escravocratas, cujo antigo brilho resplandecia tensamente ante
corpos cativos”.
Começava a se construir nas províncias do Norte uma for-
ma de inserção do capital, da ciência e das luzes que harmonizava
“violência extrema das formas de trabalho com plasticidade tradicional das práticas culturais”.
É nesse contexto de vislumbramento da ciência e do pro-
gresso material da nação que políticos, engenheiros e agrônomos
proporiam medidas de revitalização da indústria agrícola no Piauí.
O agrônomo Francisco Parentes foi o primeiro a apresentar um pro-
jeto agrícola de aproveitamento das terras e da estrutura física das
antigas Fazendas da Nação6.
Sua proposta não excluía os egres-
sos da escravidão daquelas fazendas, ao contrário era a partir dessa
mão-de-obra recém liberta que Parentes apostava no sucesso da Co-
lônia Agrícola de São Pedro de Alcântara, nome em “homenagem a
S. M. o Imperador, o desvelado protetor da indústria”.
6 Logo após a Lei do Ventre Livre de 1871, o presidente provincial, Manoel do
Rego Barros de Sousa Leão publicara um regulamento sobre as normas de funcionamento das fazendas. Em um dos artigos referente às crianças recém libertas, velhos e molestados o governo concedia a permanência, com “direito a alimentação,
vestuário e tratamento em suas enfermidades, devendo, entretanto, ocupar-se nos
serviços compatíveis com o seu estado”.
184
Uma mão para bater, outra para educar: o colégio agrícola de São Pedro
de Alcântara e as discussões em torno da mão-de-obra escrava no Piauí
Favorável ao projeto de Francisco Parentes, o presidente
da província, em 1874, Adolfo Lamenha Lins, assim se pronunciou
acerca dos desejos do agrônomo Parentes:
O Estado possui nesta província 24 fazendas de excelentes
terras próprias para cultura, com abundância de gado, tendo
nelas perto de 800 libertos inclusive 300 menores e cerca de
100 inválidos.
Em virtudes das ordens do governo, estas fazendas deviam
ser vendidas ou arrendadas, em qualquer dos casos os libertos entregues a seus próprios recursos, abonados a seus instintos e ignorância. Expostos assim à privação e à miséria,
tornar-se-ão um bando de criminosos, e a depravação assentaria sua tenda no meio daqueles infelizes.
Para prevenir os males e perigos que tal situação acarretaria,
e levado pelo desejo de promover o desenvolvimento da agricultura e indústria de sua província, o agrônomo Francisco
Parentes apresentou ao governo imperial a idéia da criação
de uma colônia agrícola nessas fazendas do Estado, servindo
de núcleo aos libertos.
As bases da empresa consistem principalmente da educação moral e religiosa, e na instrução primaria e agrícola
dos menores, nos trabalhos da agricultura substituindo-se
o sistema rotineiro pelos instrumentos agrários mais aperfeiçoados e processos mais modernos, no estabelecimento
das charqueadas, fábrica de queijo e sabão e outras necessárias ao desenvolvimento da indústria, rural e no melhoramento da indústria da criação de gado, empregando-se os
meios de melhorar as raças7.
Para alcançar os “melhoramentos materiais” - termo am-
plamente utilizado na época – havia, em contrapartida, a necessida-
7 APEPI – Poder Executivo, Falas, Mensagens e Relatórios, Presidentes de Província, 1867-1872, Envelopes 43 a 52, Caixa 04. Relatório apresentado à Assembléia
Legislativa do Piauí, no dia 01 de junho de 1874 pelo Presidente, Dr.Adolfo lamenha Lins. As fazendas ocupadas para a criação da colônia Agrícola foram Serrinha,
Matões, Guaribas, Olho D’água e Algodões.
Mairton Celestino da Silva
185
de de se rediscutir o papel que a população recém saída da escravidão desenvolveria nessa jornada. Embora as vendas de escravos
para o Sul cafeeiro se mostrassem bastante sedutoras a maioria dos
escravocratas, o dilema encontrado por estes durante a década de
1870, no Piauí, se assemelhavam em muitos pontos aos que vinham
acontecendo em todo o restante do império, notadamente àquelas
discussões referentes à passagem do trabalho escravo para o assalariado e imigrante.
Conforme Chalhoub (2003:141), a crise do sistema escra-
vista, que resultou na lei de 1871, apresentou “ao mundo o curioso espetáculo de um país no qual todos condenavam a escravidão,
mas ninguém queria dar um passo sem ela”. As palavras acima de
Lamenha Lins traduzem sensivelmente a própria percepção dos es-
cravocratas do império sobre os destinos da emancipação escrava
da década de 1870 no Piauí.
Ao serem classificados como “ingênuos”, os futuros liber-
tos teriam de ser amparados ou pelo governo ou pelos seus antigos
senhores. A experiência de viverem longe do cativeiro e do paternalismo senhorial os propiciaria uma volta aos seus “instintos natu-
rais”, algo próximo à “ignorância”, um alvo fácil, consoante Lamenha, para a “degradação moral”, ao “crime” e aos “vícios”.
Em resolução provincial, de 27 de agosto de 1871, o presi-
dente da província, Dr. Manoel do Rego Barros de Sousa Leão autorizava o envio da quantia de 15 contos de réis para a criação da
Colônia Agrícola. De acordo com o engenheiro Gustavo Dodt, as
condições do terreno, próximo ao Riachão, não eram de “grande
fertilidade” para a instalação da Colônia, entretanto “visto serem do
186
Uma mão para bater, outra para educar: o colégio agrícola de São Pedro
de Alcântara e as discussões em torno da mão-de-obra escrava no Piauí
domínio do governo, e distarem 4 a 5 léguas da margem do Parnaíba, sendo fácil o transporte dos seus produtos por meio deste rio”.
Em setembro de 1873, autoridades políticas da província
celebrariam o contrato de funcionamento da Colônia, “no qual foram estabelecidas as condições mais necessárias à realização e progresso da empresa, e garantias ao bem estar e futuro dos colonos”8.
Descontentes com o acordo estavam os abolicionistas da
província, que anteviam na proposta de criação da Colônia Agrícola
de São Pedro de Alcântara o retorno da escravidão entre aqueles que
haviam conquistado a condição de homens livres. Contudo, diante
dos supostos “boatos absurdos, espalhados entre os libertos de que
se tentava reduzi-los à escravidão”, Parentes consegue apaziguar os
ânimos dos abolicionistas - favoráveis à extinção do “elemento ser-
vil” na província a partir da fundação de sociedades manumissoras
– ao reforçar a idéia de manutenção de um projeto de colonização
agrícola com mão-de-obra essencialmente local.
Concomitante ao decreto de instalação, em 1873, entrou em
funcionamento a escola da colônia, “sob a direção de uma professo-
ra habilitada e dedicada ao ensino” dos libertos. Uma das primeiras
lições dadas aos libertos foi aquela ministrada pelo capuchinho Frei
Serafim da Catanea, que com sua palavra de fé pretendia “plantar
no espírito dos novos colonos o amor ao trabalho e a ordem, e os
preceitos da moral social e religiosa”.
Francisco Parentes não veria o “germinar dessa planta do
amor ao trabalho e da ordem” nos corpos e mentes dos libertos da
8 APEPI – Poder Executivo, Falas, Mensagens e Relatórios, Presidentes de Província, 1867-1872, Envelopes 43 a 52, Caixa 04. Relatório apresentado à Assembléia
Legislativa do Piauí, no dia 01 de junho de 1874 pelo Presidente, Dr.Adolfo lamenha Lins.
Mairton Celestino da Silva
187
Colônia Agrícola, pois em 1876 veio a falecer, sendo substituído do
cargo de diretor da Colônia pelo até então agrônomo Antonio Rodrigues da Silveira9.
Arautos de D. Pedro II nas províncias, os governadores
provinciais adotariam durante a década de 1880 uma retórica no-
tadamente favorável à abolição. Emídio Adolfo Vitório da Costa -
crítico dos costumes e feitio político dos piauienses - foi um dos
primeiros a entrar no debate sobre o desenvolvimento da província
a partir da manutenção de ex-escravos em atividades de produção
agrícola.
Acreditava Emídio Adolfo, que a agricultura fora a única
criação humana capaz de “extinguir a barbárie dos tempos primitivos e que trouxe à civilização a sua estabilidade”. Profetizava o
administrador provincial, portanto, que era somente por meio do
trabalho livre, “mais proveitoso que o braço escravo. Por esse lado,
tudo tem a lucrar a vossa província, porque são poucos os escravos
nela existentes e muitos os braços livres”. Sobre as discussões em
torno dos destinos do “elemento servil” no império e sua relação
com a agricultura, ele assim se posicionava:
A escravidão, esse cancro roedor das entranhas do Brasil, e
que tão má hora lhe fora legado pelos nossos maiores, tende,
felizmente a desaparecer. Compenetrados, como deveis estar,
dos males, que tem causado à nossa pátria semelhante estigma, procurareis, sem dúvida, meios que conduzam a bons
resultados, sem que seja necessário, entretanto, mal entendida sofreguidão. A transformação brusca dos hábitos de uma
sociedade constituída é sempre questão importante, por isso
9 APEPI – Poder Executivo, Falas, Mensagens e Relatórios, Presidentes de Província, 1867-1872, Envelopes 43 a 52, Caixa 06. Relatório com que o Desembargador
Delfino Augusto Cavalcante d’Albuquerque passou a administração da província
do Piauí, em 4 de agosto de 1876, ao Dr. Luiz Eugênio Horta Barbosa.
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Uma mão para bater, outra para educar: o colégio agrícola de São Pedro
de Alcântara e as discussões em torno da mão-de-obra escrava no Piauí
que traz necessariamente certo abalo que varia de intensidade e natureza das ocorrências10.
Os “abalos” ocasionados pela supressão da escravidão na
sociedade piauiense viriam na administração do Bacharel Francisco
José Viveiros de Castro, durante o ano de 1888. Estudioso do direito,
com um forte interesse sobre o comportamento dos criminosos, das
aberrações do instinto sexual e das psicopatias do mal, como assim
as definia, Viveiros de Castro assumiu a administração provincial
em meio a uma das maiores crises financeira do Piauí11. Disposto a
reduzir os gastos da província resolveu, sem mais delongas, por fim
ao “Estabelecimento Agrícola”.
Já tive ocasião de visitar esse estabelecimento e desagradável
foi a impressão que recebi pelo estado de abandono e desleixo em que o encontrei. Instituindo o estabelecimento rural de S. Pedro de Alcântara, teve o Governo imperial, com
intuitos, fazer d’ele não só uma colônia para a educação de
ingênuos e menores libertos como também escola zootécnica
para aperfeiçoamento da raça pelo cruzamento e seleção.
Entretanto é de rigorosa justiça declarar que pela má direção
havida no estabelecimento não preencheu ele os fins para que
fora destinado.
Como Colônia encontrei apenas dois menores inválidos que
havia sido rejeitados como incapazes na escola de aprendizes
marinheiros.
Como estabelecimento, zootécnico, não vi um só animal de
raça para cruzamento e seleção. Enfim, no estabelecimento
só encontrei digno de nota o edifício principal que serve de
10 APEPI – Poder Executivo, Falas, Mensagens e Relatórios do executivo Provincial
e Estadual, 1883-1886, Envelopes 66 a 76, Caixa 06. Relatório apresentado em 07 de
junho de 1884 pelo Exm. Sr. Presidente da Província do Piauí Dr. Emígdio Adolfo
Victorio da Costa.
11 A Época, 17 de Março de 1888. Sobre a vida política e intelectual de Viveiros de
Castro ver BLAKE, Augusto Vitório Alves Sacramento. Dicionário Biobibliográfico
Brasileiro. Vol. 3. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1895. p. 494.
Mairton Celestino da Silva
189
internato para os alunos e este mesmo, além de precisar de
grandes concertos carece ser completamente mobiliado.
N’estas condições parecendo-me improfícuo a despesa que o
Estado faz para a manutenção do Estabelecimento, tive a honra de propor a S. Ex. o Sr. Ministro da Agricultura, Comércio
e Obras Públicas a extinção do Estabelecimento, vendendo-se
em hasta pública, os edifícios e Fazendas que o Estado possui
ou que fosse ele adjudicado à alguma empresa que montasse
uma Fábrica de Fiação e Tecidos, tendo também a obrigação
de preparar curtume e charque por ser esta província essencialmente criadora e de educar convenientemente cinqüenta
órfãos, sujeita à fiscalização do Estado.
Semelhante medida não só contribui para o desenvolvimento
da colônia como também para o aumento das rendas publicas
pela melhor fiscalização dos impostos12.
Os males da escravidão e de tudo que a ela se associava
estava próximo do desfecho final, mesmo que o resultado - a reve-
lia das palavras de Emídio Adolfo – ocasionasse “mal entendida
sofreguidão”. O que Adolfo não imaginava era que a escravidão
“esse cancro roedor das entranhas do Brasil” ao encontrar o seu fim,
levaria consigo a própria noção de governo imperial.
A associação da escravidão com a idéia de um câncer, mar-
tirizador de uma nação que para sobreviver precisava justamente
daquilo que lhe causava o óbito, é sintomático para o período e nos
conduz, de fato, às diferentes percepções através das quais homens
e mulheres do império, e de diferentes grupos sociais, ordenavam
e interpretavam suas vidas diante das transformações políticas da
época.
12 APEPI – Poder Executivo, Falas, Mensagens e Relatórios, Presidentes de Província, 1887-1890, Envelopes 77 a 86, Caixa 07. Fala com que o Exm. Sr. Presidente
Francisco Viveiros de castro abriu a 1 sessão da 27 Legislatura da Assembléia Provincial do Piauí,em 2 de junho de 1888.
190
Uma mão para bater, outra para educar: o colégio agrícola de São Pedro
de Alcântara e as discussões em torno da mão-de-obra escrava no Piauí
Desta forma, os significados da criação da Colônia Agríco-
la de São Pedro de Alcântara quando contextualizados com a desa-
gregação do sistema escravista, fato este que na visão de Chalhoub
(2003:192) era o “nexo fundamental da sociedade brasileira do sé-
culo XIX, o liame que permitia costurar temas e problemas [...]”nos
permite conclusões outras a respeito da escravidão e da vida cotidiana em Teresina.
À medida que se aproximava a abolição da escravidão, os
favoráveis à manutenção da Colônia Agrícola de São Pedro de Al-
cântara no Piauí iam perdendo espaço num cenário político cada
vez mais republicano e abolicionista. Mais do que um projeto de
crescimento material da província, a Colônia Agrícola se ajustava à
política de manutenção dos dependentes - política essa defendida
por políticos escravocratas nas discussões parlamentares que daria
origem à lei de Ventre Livre de 1871.
No Piauí, a sujeição não ficaria a cargo dos escravocratas
ou políticos românticos ligados aos sertões, às fazendas e à deferên-
cia senhorial de outrora, mas a “homens de letras” e de “ciência”,
no caso literatos, agrônomos, engenheiros e políticos.
Seduzidos pelo progresso e pelo cientificismo racial do sé-
culo XIX, tais homens buscariam a partir da idéia de unidade nacio-
nal forjar estratégias de dominação e controle sobre os diferentes setores da sociedade, notadamente daqueles oriundos da escravidão.
Mairton Celestino da Silva
191
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192
Uma mão para bater, outra para educar: o colégio agrícola de São Pedro
de Alcântara e as discussões em torno da mão-de-obra escrava no Piauí
SCHWARCZ. Lilia Moritz. As Barbas do Imperador: D. Pedro II,
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Intercâmbio literário: influências e
similitudes entre Brasil e Cabo Verde
Tatiana Raquel Reis Silva
Monjolo
194
Intercâmbio literário: influências e similitudes
entre Brasil e Cabo Verde
Tatiana Raquel Reis Silva1
Eu gosto de você Brasil,
porque você é parecido com a minha terra.
Eu bem sei que Você é um mundão
e que a minha terra são
dez ilhas perdidas no Atlântico,
sem nenhuma importância no mapa (...)
É o seu povo que se parece com o meu
É o seu falar português,
que se parece com o nosso
É a alma de nossa gente humilde que reflete
a alma de sua gente simples(...)
Você, Brasil, é parecido com a minha terra,
as secas do Ceará são as nossas estiagens,
com a mesma intensidade de dramas e renúncias (...)
Eu gostava enfim de o conhecer mais de perto
e Você veria como sou um bom camarada (..)
Mas tudo isso são cousas impossíveis. Você sabe?
Impossíveis.
(Você, Brasil, de Jorge Barbosa)
Ao apropriar-se da literatura brasileira como patrimônio
simbólico, caboverdianos impulsionaram os movimentos de resistência contra a dominação colonial em seu país. Nas revistas e jor-
nais, publicados nos fins do século XIX, eles operaram verdadeiras
campanhas de denúncias contra manobras diplomáticas do gover-
1 Historiadora, doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos – POSAFRO/UFBA.
196
Intercâmbio literário: influências e similitudes entre Brasil e Cabo Verde
no português. O movimento intitulado claridoso, impulsionado por
escritores como Baltasar Lopes, Manuel Lopes e Jorge Barbosa, cen-
trou toda sua discussão nas questões políticas e sociais, vivenciada
em seu país.
Inspirando-se no modernismo brasileiro – através do con-
tato com a produção literária de escritores como Lins dos Regos,
Jorge Amado, Graciliano Ramos – a Revista Claridade, centrou toda
sua discussão na questão de uma identidade caboverdiana. Essa influência ganhou grande dimensão sobre a produção literária dos
claridosos, devido à crença numa certa similaridade entre ambiente
social, cultural e físico do arquipélago com o nordeste brasileiro.
Neste sentido, busca-se analisar as influências dos escri-
tores brasileiros neste processo de construção de uma identidade
cabo-verdiana. Pensando os processos de colonização vivenciado
aqui e do outro lado do Atlântico, tentando perceber quais as possí-
veis similitudes e diferenças, no que se refere aos ambientes político
e culturais que estabeleceram e impulsionaram essa intensa troca
literária entre os dois países.
Contextualização histórica: o processo de colonização
e a independência de Cabo Verde
Cabo Verde foi descoberto pelos portugueses em 1460. De
acordo com Andrade (1995), era intenção dos colonizadores possi-
bilitar o povoamento branco, como nos Açores e na Ilha da Madei-
ra, mas foram as diversas etnias existentes na Costa da Guiné que
contribuíram para o povoamento do país. A mestiçagem originou a
população crioula que caracteriza a sociedade atual.
Tatiana Raquel Reis Silva
197
O povoamento das ilhas ocorreu de forma lenta e foi reali-
zado, através do processo de doação de terras a europeus que pro-
cediam ao seu cultivo e à criação de animais, utilizando a mão-deobra escrava.
Foram vários os fatores que contribuíram para a escassez
de recursos desde o período de colonização. A política administrativa não fixou como objetivo o desenvolvimento da agricultura e das
condições de estocagem do solo.
A desastrosa gestão do meio natural com a criação de ca-
bras nas encostas (um dos animais domésticos introduzidos) constituiu um fator de progressiva erosão do solo e, também, a subutili-
zação das terras irrigáveis, para além das necessidades dos colonos.
Cardoso (2007) assinala que o governo português, nunca demonstrou muito interesse em desenvolver o povoamento efetivo no ar-
198
Intercâmbio literário: influências e similitudes entre Brasil e Cabo Verde
quipélago, por dificuldades de se empenhar na valorização de um
espaço insular com riquezas limitadas.
O arquipélago é formado por dez ilhas2, de origem vulcâni-
ca, que possuem características naturais, sócio-culturais e econômicas diferentes. Todas sofrem influência do Sahel, o que lhes confere
um clima árido ou semi-árido, os ventos secos vindo do continente
africano contribuem para a salinização do solo.
A conseqüente erosão dos solos e o escoamento das chuvas
para o mar não tem possibilitado a reconstituição dos lençóis freáticos, apenas 13% da água superficial se infiltra no solo permitindo
a sua alimentação. No período de colonização, a ilha de Santiago se
destacou por possuir o clima mais propício para o estabelecimento
dos colonos e atualmente concentrar metade da população do país.
No entanto, devido a sua posição geográfica, situada entre
os três continentes (Europa, África e América) Cabo Verde consti-
tuiu uma plataforma comercial de apoio à expansão portuguesa,
funcionando como entreposto de escravos e como local de abastecimento de água, o que lhe fez cumprir uma função histórica de agen-
ciadora no trafico atlântico desde a sua descoberta até o final do
século XIX. Os mercadores que iam a procura de escravos, também,
compravam algodão, peles e sebo; e abasteciam a ilha de produtos
de primeiras necessidades como milho e arroz (trazidos da guiné) e
azeite, vinho, farinha de trigo (advindos da Europa).
A situação de pobreza que caracterizava a maioria dos ha-
bitantes e o enriquecimento de uma minoria conduziu a uma sociedade hierarquizada em categorias sociais bastante fechadas. Na
2 São elas: Santo Antão, São Vicente, São Nicolau, Santa Luzia (única ilha não habitada), Sal, Boavista, Santiago, Maio, Fogo e Brava.
Tatiana Raquel Reis Silva
199
primeira metade do século XVII floresceu uma classe de “senhores
brancos” que embora, constituíssem um grupo restrito, detentor do
poder político, se dedicava à exploração e comercialização de algo-
dão, tecidos e outros produtos. Mas, com a perda da exclusividade
do tráfico de escravos na região, as constantes investidas dos fran-
ceses, ingleses e holandeses (portos com localização estratégica), e
a seca, foram fatores que determinaram um declínio neste tipo de
economia ao longo dos séculos XVII e XVIII.
Nos anos de 1832, altura em que a luta por territórios afri-
canos tronou-se mais contundente, com a emergência de interesses
por parte da Alemanha e da Bélgica, os portugueses sentiram-se
compelidos a redimensionarem a sua política colonial. Isso possibilitou uma série de reajustes renovando as relações sociais dominantes e o país adentra um novo ciclo de decadência. Neste período,
começou a intensificar a concorrência estrangeira na costa da Guiné
com a emergência de novas potências, como a Inglaterra. O império
português, abalado profundamente pela nova formatação do co-
mércio internacional, tentou imprimir outras dinâmicas às relações
com suas colônias na África. Cabo Verde, como parte deste império,
sofreu os reveses dessa reconfiguração da economia colonial, perdendo sua importância enquanto base de sustentação comercial.
Em 1892, pouco tempo depois da Conferência Internacio-
nal de Berlim – 1884/85 – ficou estabelecido o princípio do direito
de ocupação efetiva3 contra o direito histórico baseado na proprie-
dade da “descoberta”. Começou a desenhar-se a corrida imperial no
3 A partir deste momento os territórios conquistados só pertenceriam às respectivas potencias em caso de ocupação efetiva. Isto implicaria na organização de
um governo efetivo na colônia, com a instalação de um exército, de uma administração, etc.
200
Intercâmbio literário: influências e similitudes entre Brasil e Cabo Verde
continente africano, impondo ao governo colonial português – para
a sua manutenção no restrito grupo de países como a Inglaterra,
França, Alemanha, Holanda, Bélgica – uma série de reformulações
que exigiam uma reestruturação e reforço das estruturas administrativas, instaladas ao ritmo do desenvolvimento da sua (re) valorização colonial.
No final do século XIX, Cabo Verde começou um novo e
longo ciclo de crises (processo de abolição da escravatura). A agri-
cultura de subsistência não respondia às necessidades, ocasionando
fomes que dizimavam a população, enquanto que a agricultura de
exportação continuava em queda. Desencadeou-se uma emigração
em massa, de cabo-verdianos para os EUA, Guiné, Senegal, Holanda e Portugal e, uma emigração forçada para S. Tomé e Príncipe,
como saída para melhorar a situação calamitosa em que o país se
encontrava fruto da administração colonial desastrosa. As remessas
dos emigrantes passaram a ser uma saída válida para a manutenção
das famílias e se transformaram em uma importante fonte de sobrevivência.
Não obstante, com o apoio da igreja e a conseqüente re-
novação do interesse pelo arquipélago, já no início do século XX,
foram-se criando estruturas sociais que se mantiveram até a inde-
pendência. Surgiram três classes sociais distintas, com cultura e
interesses econômicos diferenciados: uma pequena aristocracia e
grande burguesia, pequena burguesia mestiça e, a população caboverdiana que constituía 90% do total. A pequena aristocracia e a
grande burguesia eram compostas pelas classes sociais que viviam
de acordo com o estilo de vida europeu em grandes mansões, gerin-
Tatiana Raquel Reis Silva
201
do os seus interesses econômicos. Esses eram os descendentes dos
grandes senhores traficantes de escravos.
A pequena burguesia mestiça, cujos recursos provinham
da atividade comercial, do cultivo de pequenas parcelas da terra e
da atividade artesanal, constituíam a classe média. Os filhos dessa
pequena burguesia conseguiram, progressivamente, ter acesso ao
ensino e ocupar pequenos cargos da administração pública.
A grande ambição desse grupo, de acordo com Manuela
Cardoso (2007), era tornar-se também proprietária de terras, assu-
mindo privilégios sociais semelhantes à primeira classe, rejeitando
os valores culturais africanos.
Por fim, a classe que representava a maioria da população,
o verdadeiro povo: trabalhadores não qualificados, pescadores, ren-
deiros, agricultores sem terra, micro-proprietários e muitas mães
chefes de família, estas últimas como resultado direto do grande
fluxo de emigração masculina.
Apesar da independência em 1975, os cincos séculos de
ocupação portuguesa moldaram a sociedade cabo-verdiana. Nesse
processo, a língua e a religião cristã foram introduzidas e os aspectos culturais africanos subalternizados em função dos interesses da
metrópole4.
A partir dos anos de 1940, observa-se uma proliferação de
movimentos emancipatórios na Ásia e na África, reforçados, dentre outros acontecimento, pelo desmembramento das potências eu-
ropéias; fundação, em 1945, da Organização das Nações Unidas –
4 Enésio Silveira (2005) assinala que Cabo Verde é um caso de regionalismo africano que feliz ou infelizmente, tende a sê-lo cada vez menos, na medida em que a sua
dinâmica política e sociocultural se torna cada vez mais dependente e tributária
dos valores da civilização ocidental.
202
Intercâmbio literário: influências e similitudes entre Brasil e Cabo Verde
ONU; e pela consagração dos “Direitos dos Povos”, em 1946. Neste
contexto, as relações internacionais ganharam nova configuração,
impondo a Portugal mudanças de estratégias para manutenção de
suas possessões em África.
De fato, desde as primeiras décadas do século XX, o mundo
português presenciava uma propagação de associações recreativas
e culturais e, sindicatos com tons de protestos, como: Associação
dos Estudantes, Partido Nacional Africano, Casa de África, Casa
dos Estudantes Africanos. Esses movimentos foram impulsionados
por jovens oriundos das diferentes colônias, que deram continuidade aos seus estudos na metrópole (Amilcar Cabral – guineense,
Mario Pinto de Andrade e Agostinho Neto – angolanos, Alda do
Espírito Santo – santomeense, dentre outros).
Nos anos de 1950, várias outras organizações emergiram,
dentre eles: Movimento de libertação Nacional das Colônias Portuguesas (MLNCP) e Partido Africano da Independência (PAI) que
deu origem, em 1956, ao Partido Africano da Independência da
Guiné e Cabo Verde (PAIGC). É a partir dos movimentos contesta-
tórios e, consequentemente, o fortalecimento destes partidos, que
terá início um longo período de críticas e denúncias referentes ao
descaso e estado de miséria que o governo português relegou as
suas, então, colônias.
O PAIGC, um dos principais impulsionadores deste pro-
cesso de contestação, objetivava a unidade estatal entre os dois
países, desenvolvendo um trabalho efetivo tanto na Guiné Bissau
quanto em Cabo Verde. Esse movimento possibilitou a independência destes em 1974 e 1975, respectivamente. No entanto, desde 1970
se inicia um processo de fragmentação dentro do partido, devido
Tatiana Raquel Reis Silva
203
aos desencontros de perspectivas desde o tempo da guerrilha, ques-
tões ideológicas e, sobretudo, o golpe de Estado ocorrido na Guiné
Bissau, em 1980, abortando definitivamente o projeto de unificação
dos dois países.
No período pós-independência, Cabo Verde encontrava-se
numa situação de extrema pobreza, os dirigentes procuraram in-
serir o país numa organização econômica centralizada e socialista.
O sistema política baseava-se numa democracia monopartidarista,
em que só o partido que tinha desencadeado a luta de libertação
(PAIGC) podia concorrer. Este sistema político manteve-se até as
eleições de 1991, com a vitória de um presidente do MPD (Movimento para a Democracia), isso foi possível graças a instauração
da democracia pluralista e conseqüente liberalização da economia
ocorrida em 1988.
O multipartidarismo, a liberalização da economia e a aber-
tura ao investimento exterior, constituíram alterações significativas
para a realidade caboverdiana, sobretudo, a partir da adoção ao
comércio internacional e a globalização, como fenômeno integran-
te da economia mundial. A estrutura social do período pós-independência possibilitou o surgimento de duas novas classes sociais,
para além daquelas já existentes desde a colonização: uma classe
de comerciantes e outra de empresários ligados ao setor industrial
e turístico.
204
Intercâmbio literário: influências e similitudes entre Brasil e Cabo Verde
As questões políticas e os primeiros passos de uma caboverdianidade
Como podemos perceber desde os finais do século XIX, o
arquipélago de Cabo Verde, foi marcado por mudanças de natureza
socioeconômicas, como o fim dos morgadios5, abolição da escrava-
tura; e culturais, como a criação do seminário de S. Nicolau, mais
tarde seminário-liceu, de onde saiu um número considerável de
cabo-verdianos que doravante participaram do processo de emancipação do país. Ainda nesse período, nasceu a imprensa crioula e
intensificaram-se os estudos etnográficos, historiográficos e lingüísticos, colocando Cabo Verde como foco de discussão.
Um outro fator, também, destacado ao longo do tópico an-
terior, foi a emergência dos movimentos de contestação que reivin-
dicaram mais escolas, medidas protetoras para a agricultura, denunciando o abandono e a desorganização a que as ilhas estavam
entregues. Houveram reclamações contra as leis de exceção, que
legitimaram as desigualdades sociais reinantes na época e lesavam
os interesses dos cabo-verdianos em benefício dos portugueses. A
partir deste contexto, alguns grupos começaram a pleitear o estatuto de “ilhas adjacentes” à moda das ilhas da Madeira e dos Açores.
Neste último caso, foi criado o Código Administrativa de
1843, seguido da organização administrativa de 1892, que elevou
as ilhas de Cabo Verde ao estatuto de “ilhas adjacentes”, tal como
Açores e Madeira. No entanto, isto nunca chegou a se efetivar. Uma
das principais justificativa utilizada, seria a provável distância em
5 Bens de morgado, caracterizados como um conjunto de bens vinculados que não
podiam alienar-se, geralmente, por morte do possuidor, passavam para o filho
mais velho.
Tatiana Raquel Reis Silva
205
relação à “metrópole” e as características africanas do arquipélago
teria determinado essa resistência, na medida em que as ilhas não
eram, pela sua posição geográfica, adjacentes à metrópole, mas sim
ao continente africano.
De acordo com Moniz (2009), dentre os assuntos que esta-
va em pauta naquele período, concernentes à natureza e forma de
organização da nova política colonial, dois temas ganharam espe-
cial enfoque: por um lado, pairava a dúvida em adotar ou não as
possessões africanas de instituições representativas das populações;
por outro, cogitaram a possibilidade de lhes ser atribuídas um estatuto civil e jurídico idêntico ao da metrópole.
Essas questões suscitaram debates acalorados entre polí-
ticos, ideólogos e cientistas envolvidos no projeto imperialista por-
tuguês, que propagaram idéias segundo as quais os negros deviam
ser tratados como seres que se encontravam, numa escala evolucio-
nal, inferior à dos europeus, desprovidos de cultura. Para legitimar
a escravatura foi freqüente, nos discursos da época, a tentativa de
desumanização do africano, remetendo-o à categoria de sub-ho-
mem. Desses debates surgiram as mais varias reações, sobretudo,
dentre aqueles que se debruçaram sobre a questão da dominação
dos povos africanos.
Ao tentar impor a sua cultura como modelo, o colonizador
pretendeu inculcar na mente dos povos dominados – em alguns casos com sucesso – que o ideal seria que todos lutassem para ascen-
derem ao grupo dos “civilizados”. Para muitos não se devia introduzir o sistema das instituições representativas nas colônias, pois as
populações africanas não estavam preparadas para isso. Todo esse
discurso, de incapacidade e poder de governo por parte dos africa-
206
Intercâmbio literário: influências e similitudes entre Brasil e Cabo Verde
nos, estava diretamente atrelado a motivos econômicos. Em outras
palavras, o que teria impedido a elevação de Cabo Verde ao estatuto
de ilhas adjacentes foi, essencialmente, a questões econômicas.
Como elevar os cabo-verdianos à categoria de “cidadãos”,
sabendo que constituíam importante mão-de-obra para trabalhar
nas roças dos colonos portugueses de São Tomé, uma vez que, considerados cidadãos, estariam fora da alçada das leis que regulamen-
tavam o trabalho dos “indígenas” das “províncias ultramarinas”?
Não obstante, Cabo Verde manteve-se, assim, num quadro de ambi-
güidades permanentes até os anos 40 do século passado, altura em
que, no plano internacional, tornou-se insustentável a manutenção
de colônias, com o eclodir de movimentos independentistas e, internamente, tensões sociais cristalizaram-se, fruto do desagrado de
uma parte da intelligentsia metropolitana com a situação da colônia. (MONIZ 2009, p. 101)
O império colonial português sofreu sucessivos abalos,
com desdobramentos nas suas possessões. Um desses foi o advento
da independência do Brasil, já nos finais do século XIX, que impôs
a Portugal uma redefinição de sua política colonial nos territórios
africanos. Percebe-se a necessidade de ser encontrado, em Áfri-
ca, um substituto, de modo a garantir a edificação de um sistema
econômico que continuasse a estabelecer os laços entre as colônias e
a metrópole, com base no “pacto colonial”, de forma que diminuísse os danosos efeitos dessa perda.
Já no início do século XX, elevaram-se as vozes contra o
colonialismo, denunciando a precária situação de sobrevivência dos
africanos e a estagnação econômica das colônias. Neste contexto, o
Estado português pôs em prática ações de salvaguarda, visando sua
Tatiana Raquel Reis Silva
207
adaptação à nova conjuntura, para não abdicar de suas possessões.
O governo metropolitano tentou redimensionar sua política para
as colônias, com a introdução de significativas alterações na carta
jurídica colonial, começando por enxertar, em 1951, alguns artigos
ao Ato Colonial.
Assim, as “Colônias” passaram a denominarem-se “Pro-
víncias Ultramarinas”, recuperando antiga designação de “Ultra-
mar” – anulada em 1933 – com o intuito de provar que faziam parte
integrante de Portugal, difundindo a idéia de unicidade entre regiões distantes, englobadas num “todo” político e espiritual, para
que Portugal aparecesse, a despeito da descontinuidade territorial,
uno – indivisível e solidário – “do Minho a Timor”.
Em meio a corrida colonial, um dos mitos que sustentava
a ideologia portuguesa era o de “Gesta Missão”, em que caberia a
Portugal a função de catequizar e civilizar os gentis da África. Para
difusão dessa missão civilizatória, o governo português contou,
desde os primórdios da colonização, com os serviços das agências
de propaganda colonial, que continham, revistas e periódicos, com
temáticas centradas na questão do Ultramar, o grande veículo de di-
vulgação da ideologia colonial. O “zelo civilizacional” para com os
indígenas, termo também utilizado por outras potências européias,
foi, em Portugal, ressignificado, ganhando contornos de moralida-
de, para diferenciar-se. Pelo menos era essa a intenção do regime de
Salazar6 e dos demais imperialistas da Europa de então.
A “mística imperial” – outro elemento sobre o qual incidiu
a propaganda colonial –, foi difundida de diversas maneiras. Foram
publicados ensaios de cariz histórico-geográficos, que retrataram de
6 Chefe do Governo do Estado Novo, em Portugal, de 1932 a 1968.
208
Intercâmbio literário: influências e similitudes entre Brasil e Cabo Verde
forma idílica a questão imperial, traçando sua evolução e enuncian-
do, ostensivamente, suas potencialidades econômicas, incentivando
o estabelecimento dos colonos. O regime de Salazar utilizou diversos artifícios para perpetuar seus domínios como O Boletim Geral
do Ultramar – criado nos anos 50 do século passado –, visando a
mobilização de populações para o projeto colonial. Eram exibidos
documentários e exposições sobre o périplo português pelo mundo,
enfatizando a importância das possessões africanas, foram outras
estratégias de persuasão utilizadas pelos órgãos da propaganda colonial.
Na esteira dos discursos oficiais, é veiculado a imagem de
que a “expansão portuguesa ultramarina” tinha um significado
positivo para a humanidade. Defendendo a dominação portuguesa
em África, argumentos que a ação dos portugueses não deveria ser
comparada aos movimentos colonizadores das nações capitalistas
que se pautaram por um gênero de relações humanas cavada na
segregação racial, onde a “raça superior dominante”, opunha-se à
“raça inferior dominada”. Assim, para afastar-se dos fortes indícios
racistas da sua política colonial e para dar credibilidade ao “multiculturalismo”, as autoridades portuguesas enfatizaram o acentuado
grau de mestiçagem que perpetuaram as suas colônias. Cabo verde,
onde os mestiços constituem a maior parcela da população – cerca
de 90% –, era o caso mais emblemático, segundo raciocínios portugueses. (MONIZ 2009, p. 114)
O discurso da mestiçagem, que vai de encontro aos postu-
lados de uma certa relação “harmônica” entre colonos e colonizados, a partir dos anos 50 do século XX ganham legitimidade com
Tatiana Raquel Reis Silva
209
as teses de Gilberto Freyre. Formuladas quando, nos meios cientí-
ficos e políticos, as atenções voltaram-se para soluções eugênicas
– enfatizando as bases da mestiçagem nos espaços tropicais e pro-
clamando o nascimento de um novo tipo humano, o “homem luso
tropical”, que combinava, de modo sincrético, a cultura portuguesa
e a dos povos colonizados – as teses de Freyre não tiveram impacto
imediato. Passaram despercebidas nos meios oficiais portugueses
dos anos trinta e quarenta do século XX que, na altura, baseavam-se
no “darwinismo social” e na “mística imperial”.
As esferas oficiais metropolitanas só abraçaram as teses de
Freyre, quando os movimentos emancipatórios da Ásia e da África
recrudesceram e a pressão interna e internacional sobre o regime co-
lonial começou a atingir níveis insustentáveis. Em 1951, patrocina-
do pelo governo português, Freyre empreendeu uma viagem – que,
particularmente em Cabo Verde, suscitaram muitas discussões – fo-
ram publicados em “Aventura e Rotina” e “Um brasileiro em terras
portuguesas”, onde o autor analisa uma possível similitude entre
o Brasil e Cabo Verde. As teses de Freyre tiveram grande impacto
sobre as produções literárias do período. Vejamos como se deu este
processo.
Intercâmbios literários: nos meandros da caboverdianidade, africanidade e do luso-tropicalismo
De acordo com Moniz (2009), desde os primórdios do sé-
culo XIX, um número significativo de revoltas e levantes populares
marcaram o cenário sociopolítico das ilhas. Onde podemos destacar, os casos de revoltas da população da Ribeira Grande, em 1811,
frente a um novo imposto; rebelião dos camponeses da Ribeira de
210
Intercâmbio literário: influências e similitudes entre Brasil e Cabo Verde
Engenho, entre 1822-23 e da Achada Falcão, em 1841, reagindo aos
abusos dos feitores e à cobrança de rendas; revoltas de escravos,
como a de 1835, em Santiago, contra os maus tratos, opressão e exploração; a revolta de Fonte Ana, em 1835, todas no interior da ilha
de Santiago, foram secundadas por levantes escravos em Santo Antão e outras ilhas.
Como foi possível observar, essas reações, apesar de indi-
cadores de rebelião face à situação colonial, enquanto resistências
locais, em condições insulares, não assumiram formas de movimentos de lutas mais amplas. Foram casos isolados – mas não deixaram
de ser ameaçadores – quase sempre violentamente censurados, reprimidos pela metrópole.
Com a chegada da imprensa em Cabo Verde, em 1842, pos-
sibilitando a publicação de jornais, boletins, folhetos, etc, começou
a imprimir novas dimensões aos desdobramentos dos movimentos
de contestação. Nas revistas e jornais, publicados nos fins do século
XIX, os cabo-verdianos operaram verdadeiras campanhas de denúncias contra manobras diplomáticas do governo metropolitano.
Não apenas reivindicavam melhorias das condições so-
ciais, exigiram a construção de escolas, sugeriram medidas que
visavam a recuperação da agricultura e do comércio das ilhas nos
anos de crise – secas, fomes e epidemias. Mas, também, desenca-
dearam campanhas de valorização do crioulo, língua proibida no
período colonial, com a publicação de poemas nesse idioma.
A fundação do Seminário de São Nicolau, em 1866, e do
liceu de S. Vicente, em 1917; e as associações recreativas e culturais
na segunda metade do século XIX, em especial na Praia, concorre-
Tatiana Raquel Reis Silva
211
ram também para animar a vida cultural ao arquipélago antes da
década de trinta.
Uma outra demanda levada a cabo por essas revistas fo-
ram as vagas para candidatos nativos, eleitos pelos cabo-verdianos,
para os cargos de deputado, senador e autarquia em eleições legislativas e municipais. Criaram-se redes de instituições (filantrópicas)
envolvidas com questões culturais, contribuindo para que esses
desdobramentos começassem a ganhar contornos de movimentos
de resistência mais amplos e articulados. O movimento nativista,
por exemplo, centrado em discussões políticas e culturais, dos fins
do século XIX, ganhou dimensão de debate público nos jornais do
início do século XX.
Assim, foi na literatura que, com sutileza e resistências,
conduzidas por mestiços, as questões sociais assumiram contornos
de verdadeiros movimentos de protesto contra o regime colonial.
Para muitos autores, isso contribuiu para o fato de, na sociedade
cabo-verdiana, o mestiço, e não o branco, ter assumido especial protagonismo como sujeito da historia das ilhas.
Cavado em intensas miscigenações étnicas e cultural, o
cabo-verdiano transformou-se, a partir do século XVII, no principal
agente das metamorfoses culturais a operarem-se na sociedade. É a
partir deste contexto, que emergem fortes movimentos de resistências, urdidas nos campos literários, estéticos e musicais, recuperando dimensões de ancestralidades africanas.
A insignificância da presença européia e uma certa homo-
geneidade cultural ajudam a entender como, em contexto de extrema dificuldade, homens das artes e letras conseguiram contestar o
regime vigente. Quando a conjuntura internacional tornou-se pro-
212
Intercâmbio literário: influências e similitudes entre Brasil e Cabo Verde
pícia – particularmente a partir dos anos 50 do século XX, altura em
que recrudesceram os movimentos anticolonialistas na África –, a
resistência ao colonialismo em Cabo Verde saiu dos meandros artísticos e literários, assumindo discursos de ruptura, para se manifes-
tar direta e explicitamente, sem utilizar subterfúgios ou máscaras
protetoras anticensura7. (MONIZ 2009, p. 125).
A tomada de consciência de um perfil cultural cabo-ver-
diano foi de vital importância para a mobilização. A assunção da
caboverdianidade cedo encontrou ressonância em jornais, revistas
suplementos de jornais publicados tanto em Cabo Verde quanto em
Portugal, por vezes isoladas, que já no dealbar do século XX insur-
giram-se contra a situação de subjugação em que o país se encon-
trava. O advento da República em Portugal, em 1910, reascendeu
na intelectualidade cabo-verdiana, devido à política de descentralização administrativa levada a cabo a partir de então, o sonho de
uma transição do estatuto de colônia para o de arquipélago adjacente, alimentando pretensões libertárias que só podiam ficar nas
entrelinhas.
É a partir deste contexto que a Revista Claridade, especifi-
camente nos anos 30 do século passado, começa circular pela sociedade cabo-verdiana. As questões sociais ganharam expressões em
linguagens estéticas, adensando, com expressões de outra natureza,
7 Vale ressaltar que de acordo com Alfredo Mariano (1991), o movimento panafricanista dirigido pelos intelectuais cabo-verdianos do começo do século XX foi
substancialmente diferente do pan-africanismo da negritude, que viria a aproximar alguns intelectuais dos anos de 1950 em diante. Ao contrário deste último,
celebrava a hegemonia civilizacional européia, não vislumbrava um relativismo
cultural e, substancialmente, anti-racista. Em outras palavras, nas mãos dos intelectuais cabo-verdianos, o pan-africanismo não servira para reforçar os laços com
África.
Tatiana Raquel Reis Silva
213
o despertar frente a opressões colonizadoras de línguas, culturas,
mentes e saberes. Inspirando-se no modernismo brasileiro – através
do contacto com a produção literária de escritores como Lins dos
Regos, Jorge Amado, Graciliano Ramos – e com influências de in-
telectuais franceses como Henri Barbusse, a claridade fundada por
Baltasar Lopes, Manuel Lopes e Jorge Barbosa, centrou toda sua discussão na questão da caboverdianidade.
De fato, o contato com a revista coimbrã, Presença possi-
bilitou a captação e a incorporação da sua proposta de renovação
no panorama literário e, possivelmente ainda mais significativa em
termos de circuitos identitários, o acesso à produção literária dos
modernistas. Essa influência ganhou grande dimensão sobre a pro-
dução literária dos claridosos, devido à crença numa certa similari-
dade entre ambiente social, cultural e físico do arquipélago com o
Nordeste do Brasil, crença reforçada quando Gilberto Freyre em sua
obra Um brasileiro em terras portuguesas de 1954, desenhou uma
comparação entre as ilhas e o nordeste brasileiro.
De acordo com Gomes (2008), ao assumir a afinidade com
o Brasil e sua cultura mestiça e autônoma, os escritores claridosos – em processo de emergência da consciência cultural e nacio-
nal, como os irmãos africanos de Angola, Moçambique, São Tomé
e Guiné Bissau – evidenciaram a sua determinação em refletir-se
em (e por meio de) outros espelhos, mais próximos e detentores de
um itinerário histórico igualmente colonizado. Apesar das signifi-
cativas diferenças que caracterizavam os territórios colonizados por
Portugal. O Brasil, como afirma Chaves (2000), no período posterior
à Segunda Grande Guerra, foi o exemplo de um projeto de transfor-
214
Intercâmbio literário: influências e similitudes entre Brasil e Cabo Verde
mação pelo qual passavam aquelas sociedades, centrado na questão
da identidade nacional que emergia.
Precedendo outras formas de luta, o discurso literário pos-
sibilitou, nesse momento, a assunção de um sentimento nativista
fundamentado na recuperação das raízes, na tentativa de estabele-
cer denominadores comuns que identificassem as culturas africanas
de língua portuguesa. A apropriação da literatura brasileira foi uma
estratégia criativa que permitiu forjar uma idéia de futuro com uma
distância necessária dos valores metropolitanos. Desde 1949, em
Cabo Verde, já se exaltava em versos os expoentes brasileiros como
Jorge Amado, Castro Alves e Luis Prestes e enfatizava a irmandade
entre povos africanos e a gente revoltada e sofredora do nordeste
brasileiro, representados por Lampião e Lucas Arvoredo.
“Pasárgada”, “Estrela da manhã” e “Evocação do Recife”,
de Manuel Bandeira, são constantemente referidos por autores ca-
bo-verdianos, angolanos e moçambicanos a partir dos anos de 1930,
documentando os elos fortes entre as culturas africanas de língua
portuguesa e o irmão atlântico. Também, os romances regionalis-
ta de cunho social (Graciliano Ramos, José Lins dos Regos, Jorge
Amado), as poesias telúricas e de comprometimento social de Jor-
ge Lima, as prosas poéticas e de invenção lingüística de Guimarães
Rosa ecoaram no além mar.
Cabo Verde logo cedo despertou para este amor dos africa-
nos pelo Brasil e a geração da Revista Claridade, marco da moder-
nidade crioula, furtou o cerco salazarista que não permitia o acesso
a textos brasileiros com posturas políticas definidas. Esses discur-
sos se fizeram necessário, sobretudo, num momento em que urge a
necessidade de se pensar uma identidade cabo-verdiana, que para
Tatiana Raquel Reis Silva
215
muitos estava diretamente relacionada e influenciada pelo continente africano. No entanto, a elite local, sobretudo, aquele grupo
influenciado pelos discursos coloniais, buscava de toda e qualquer
forma negar a assunção de uma identidade africana.
A visita de Gilberto Freyre ao território Ultramarino Portu-
guês, em 1951 – a convite de Salazar –, gerou enormes expectativas
em Cabo Verde, especialmente para s que buscavam de uma vez por
toda vincular a identidade cabo-verdiana a Portugal. O luso-tropicalismo, ao responder aos anseios destes, tornava a miscigenação
como uma “beneficie” própria da colonização portuguesa e, assim
justificava a forte ligação entre cabo-verdianos e portugueses. Em
sua obra “Um brasileiro em terras portuguesas”, 1954 (a), antologia
de conferência e artigos pronunciados e escritos no decorrer da via-
gem ao Ultramar, Freyre, em curta análise, referiu que, “em Cabo
Verde um brasileiro está ainda no Brasil, estando já em Portugal’,
realçando similitudes entre as ilhas de Cabo Verde e a região do
Ceará.
No entanto, em “Aventura e Rotina”, também de 1954 (b),
outra obra publicada no âmbito da viagem ao Ultramar Português,
Freyre desenvolveu uma análise mais aprofundada sobre Cabo
Verde. Do ponto de vista histórico, fez ver que a miscigenação não
constituiu um argumento substancial para afastar Cabo Verde da
África, como pretendiam alguns especialistas cabo-verdianos. Pelo
contrário, de acordo com o autor, o arquipélago era “mais África do
que Europa”. Freyre provocou enorme ira nos intelectuais clarido-
sos, sobretudo, para aqueles que Cabo Verde seria um exemplo de
cultura mestiça, de sociedade multirracial.
216
Intercâmbio literário: influências e similitudes entre Brasil e Cabo Verde
Referiu-se, ainda, à influência da literatura brasileira, mais
notória do que a da Metrópole, negando, contudo, encontrar-se na
presença de uma cultura específica pois, não teria havido uma harmonização entre elementos europeu e africano capaz de engendrar
uma terceira cultura, a “luso-tropical” (MONIZ 2009, p.142). Os
comentários Freyre causaram profundos abalos no meio literário
cabo-verdiano. Desmontaram toda a estrutura sobre a qual as elites
tinham erigido as suas teorias. As considerações de Freyre contrapunham e contrariavam as bases argumentativas e as conclusões a
que haviam chegado os intelectuais cabo-verdianos.
Na realidade, esta polêmica acerca de uma identidade ca-
bo-verdiana, não se encerra na Obra de Freyre, mas ganhou desta-
que no próprio movimento claridoso, que embora buscasse pensar
numa caboverdianidade, valorizando as características próprias do
arquipélago, estava atrelado a muitos dos ideais da metrópole. De
fato, a assunção da “africanidade” em Cabo Verde tem gerado, ao
longo dos tempos, muita polêmica. E durante este período, suscitou
tensas discussões no seio das elites cabo-verdianas – uma parte que
procurava reproduzir a ideologia colonial e a outra que a combatia.
De acordo com alguns autores8, os intelectuais do movi-
mento claridoso, esforçaram-se em realçar a presença de aspectos
essenciais da cultura portuguesa que, segundo eles, teriam enfor-
mado a cultura de Cabo Verde. Ao ignorar ou negar os traços afri-
canos, os claridosos contraíram uma dívida histórica para com os
ancestrais e as gerações subseqüentes de literatos que jamais acei-
taram tamanha indiferença em relação à África. As manifestações
de origem africana, na perspectiva destes autores, não passaram de
8 Além de Moniz 2009, ver também Cabral (1952) e Silveira (1963).
Tatiana Raquel Reis Silva
217
sobrevivências ou reminiscências , existentes, sobretudo em Santiago; nas outras ilhas, o que aconteceu, na realidade, foram simbioses
com predominância do elemento português (MONIZ 2009).
Amilcar Cabral (1952) e Onésimo Silveira (1963), num con-
texto de intensas discussões em torno da descolonização da África e
na contramão desses intelectuais, foram os que mais destacaram-se
no ataque à produção do grupo Claridoso. As críticas de Amilcar
Cabral estavam endereçadas àqueles que se resignaram diante das
adversidades. Cabral insurgiu-se contra a poesia resignada, limitada às questões da insularidade e da seca, incentivando a emigração.
Para o autor, melhor do que evadir-se, seria buscar um “ou-
tra terra dentro da nossa terra”. Assim, se explica, de acordo com
Silveira, porque de um trabalho tão marginal às populações das il-
has de Sotavento – onde as raízes africanas são mais perceptíveis
–, dispensando por essa geração. Esses autores dedicaram especial
atenção aos aspectos da realidade cabo-verdiana que, tendo recebido uma maior influência lusitana, permitiram uma consciência
imediata entre a mentalidade demasiada européia dos claridosos.
Escritores cabo-verdianos como Eugênio Tavares, Pedro
Cardoso e José Lopes, em verso ou prosa, produziram textos onde
se declaravam tão portugueses quanto os da Metrópole, sem negarem as suas raízes cabo-verdianas, trazendo à baila questões de
diferentes identidades. No entanto, o próprio Pedro Cardoso, não
raramente posicionava-se contra a proibição do uso da língua criou-
la, enfrentando aqueles que a discriminaram. Eugênio Tavares, por
sua vez, para além de criticar o descaso a que as ilhas foram deixa-
das pelas autoridades metropolitanas, enfatizava a lírica feita em
218
Intercâmbio literário: influências e similitudes entre Brasil e Cabo Verde
crioulo, sendo compositor de inúmeras mornas9, a maioria escrita
e cantada na língua cabo-verdiana. Paradoxalmente, a produção li-
terária destes autores, na sua vertente patriótica, anterior ao fascismo, foi um dos veículos usados pela propaganda salazarista para
promover o Império. Esse “discurso da ambigüidade”, como muito
bem colocou Manuel Ferreira (1959), foi expresso e enfatizado na
obra destes autores.
Moniz (2009) assinala que essa é uma perspectiva de inte-
lectuais que, ávidos por encontrar argumentos explicativos e justi-
ficadores da suposta pertença de Cabo Verde à Europa, abafam ou
tentam abafar quaisquer indícios que pudessem ligá-los à África.
Por não ter vivenciado as dificuldades que a maioria da população
cabo-verdiana vivenciou, esses grupos não puderam romper com
um sistema superiormente dotado de mecanismos de repressão a
qualquer tentativa de transgressão à manutenção da ordem, res-
guardando suas culturas e tradições em mínimos detalhes, sons,
gestos e expressões.
Todavia, a despeito das críticas que possam ser apontadas
às elites crioulas – dos finais do século XIX e inícios do século XX –,
particularmente as que integram o nativismo e o movimento claridoso, cabe realçar o contributo de seus intelectuais para a consoli-
dação de uma idéia de nação. Não podemos deixar de atribuir-lhes
o pioneirismo na idealização de um projeto da nacionalidade caboverdiana, tal a preocupação demonstrada na recuperação e valori-
zação de aspectos da cultura cabo-verdiana até então marginaliza9 Gênero musical e de dança próprio do país. Tradicionalmente, tocada com instrumentos acústicos, a morna reflete a realidade insular do povo de Cabo Verde, com
romantismo e o amor à terra (ter de partir e querer ficar).
219
dos, como a recolha de materiais que poderiam construir o folclore
cabo-verdiano; a produção literária na língua materna, como forma
de valorizá-la, o que, para a época, era muito significativo e constituía-se em afronta ao regime, posto que era vedado o uso do crioulo
em situações de formalidade.
Considerações Finais
Ao longo dos últimos parágrafos ocupamo-nos de ques-
tões que deram corpo a um movimento de contestação contra a or-
dem colonial que, no caso específico de Cabo Verde, concentrouse, essencialmente, através da literatura. Dos finais do século XIX a
meados do século passado, toda a movimentação de denúncias contra o regime colonial, contra os maus tratos a que parte significativa
da população cabo-verdiana era vítima, deveu-se à ação de poetas
crioulos que, de diversas formas, revoltaram-se contra as injustiças
sociais.
Não obstante, as diferenças de perspectivas e de direciona-
mento no tangente à reivindicações dos vários grupos literários que
fervilhavam na sociedade cabo-verdiana, ao longo desse período,
a assunção da identidade cabo-verdiana foi o ponto de confluência
desses autores.
Entretanto, se a assunção da caboverdianidade jamais sus-
citou algum questionamento dos cabo-verdianos provenientes dos
vários quadrantes sociais, a aceitação das nossas raízes africanas
motivou acaloradas discussões ao longo de, pelo menos três a quatro décadas. Ainda hoje são visíveis os requisitos dessa problemática na sociedade cabo-verdiana. (MONIZ 2009, p. 135)
220
Intercâmbio literário: influências e similitudes entre Brasil e Cabo Verde
No entanto, é de fato preciso ressaltar como que muitas
dessas questões tomaram forma e permearam os debates políticos
sociais no campo literário. Foi na literatura, ou melhor nos intercâmbios literário, estabelecidos no além mar, que podemos localizar
todo este debate.
No caso, específico da influencia brasileira pudemos per-
ceber como que muitas das nossas produções, sobretudo, no que
tange a assunção de uma identidade local, muito influenciaram os
intelectuais cabo-verdianos. Não apenas no contexto político, vi-
venciado aqui e do outro lado do Atlântico mas, também, devido
a uma certa similitude entre os dois países. E nada melhor do que
concluir este texto, assim como foi iniciado, com um poema intitula-
do Você, Cabo Verde, de Simone Gomes, em resposta a Você, Brasil
de Jorge Barbosa.
Você, Cabo Verde
Eu gosto de Você, Cabo Verde,
porque Você é parecido com a minha terra
Eu bem sei que meu Brasil é um mundão
e que em Você cabem dez pérolas do Atlântico.
Eu já ouvi falar delas,
de café bom, sal e vulcão.
E o seu povo que se parece com o meu
na raça e no sofrimento, às vezes no desalento.
E gosto de suas coladeiras e mornas,
como do nosso samba e do nosso choro.
Você, Cabo Verde,
Tatiana Raquel Reis Silva
é parecido com meu chão;
com o Ceará das estiagens,
com o cheiro da minha terra
-beira os limites do sagrado.
Eu queria ver de perto as coisas
espantosas que todos me contam
de Você: de sentir morabeza, de
comer cachupa e cantar uma morna...
Havia então de botar uma fala
ao poeta Jorge Barbosa
de fazer uma consulta ao Dr. João
para ver como é que a poesia receitava
este meu coração carioca tão maltratado.
E agora que estou aqui, tudo isto
é possível. Você sabe?
É possível!
221
222
Entre dois Mundos: escravidão e a diáspora africana
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
COLEÇÃO HUMANIDADES
Núcleo de Humanidades – Av. dos Portugueses, s/n
Cep: 65.085-580 – São Luís – MA – Brasil
Fone: (98) 3301-8337 - E-mail: [email protected]
Home Page: www.nucleohumanidades.ufma.br
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Este livro foi composto nas fontes Palatino e
Century Gothic e publicado pela EDUFMA

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