26 edição histórica - Insight Inteligência
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26 edição histórica - Insight Inteligência
26 EDIÇÃO HISTÓRICA imagientrevista inte: a d l a tr n e u O mote c ligência era o seg do te g In se un nada por avam viria a ser o cio Lula m como esti presidente Luiz Iná níveis, o o governo d os os recursos disp c e d a d fa a d , m a e v , il ic o s da S m ô n o c e e entificap o lí ti c o s problemas que id a sube sic agenda d ta jornalística clás início n u do rg e to P m ? e vam stas li ia c e p s e s aos prómetida ao agora endereçada encioo, m de g overn stas. Em razão do incorli i a prios jorn tro, Inteligência fo vistae s e tr nado seqü trabalhos e ora en etia o m s porada ao entrevistada, e ora o sem m va, ora era nto em pauta, mes anou s s , do de nariz no a ou, contu recem o ix e d o ã N convite. que escla a a seas facetas m u matéri lg a r ta elante da rp eira te n -i to sta a prim ee o estilo au d n e s i entr crita, guir trans a que um jornal fo id c e h vez con vista. o em or uma re nômico possui um p o d de trabalh esta s is o v d o o c . rí E e r to p alo md te Pin O jornal V stral vivo: Celso do duran de comunicação, co núti e o s d a dor ance os meios s as chefi de grande poderoso do projeto e cria nsforetem toda rio jurídico outr para a passagem ercantil. Enp re , r a ” o tr o d n a Idealiz ável pela alística um do azeta M proprietá er legis- taque i r espons riava seus les pela G d , isto é, o veículo, fo éias em prática jorn aúde, editorias presente como po al me- mero de róprio Valor não c ste, os id z itu es nto o p ção e aju mação de r, por motivos d m - s e não se fa tituído pelo conce lso qua ismos de socializa nte a juvene C s ta té to s b n u je a fa s a n ro meca lativo, r n a l. M até se le “o p ão obsta com um que toç ã o d o jo de contro teranos, n nal entre d a c o n d u lo do “projeto” a bele- canismo eparação operacio nsabi- atuais ve dos, “se entendiam ouxe o s bo spo esta jeto tr e de to como sím a lealdade maior, ergên- Pinto”. A e empresarial e re rpo tud . A adesão ao pro antigos coleo c o d iv a a m d d e u e v is o e olhar” propri dos d entreg um aos s natura fissional comproinguém ador com do da relimites da cendo os tividades plurais. N flitos lidade pro s o efetivo coman as exi- denomin as redações, agora vo. São ri ole objeti rnalista der con o com gas em vá cias em c o m e s m o uma só geente, esten to”. As cir- de jo exercido de acord l. m m a o c im it s g o a , le d je o eti çã ro estr e de pode, eaçar o “p o afastamen- da ias do projeto anc sionais em co- m fissionais quase qu m o-maior a e d to m o estad pro gênc rofis zes d a pon ra p li g s fe o te ia o d c u c in n o u ta e ã s o iê ç u r sp a in A integra ilitada pela expe ção, os q cunstância Pinto propiciaram jornal c viam ra a fa h i s o o fo o ls d d e o o C to d n man over to de mente ue pratica um auto-g morfizar ração de sidade de antropo o tem comum q es nã sem a nec Leviatã. “O jornal o d ra u a fig OUTUBRO NOVEMBRO DEZEMBRO 2006 27 • • I N S I G H T INTELIGÊNCIA utaneres exec dilh u m e d fa tra letiva a ação co petência uma tare to jorn ê m ri o e c xp um fa ança de e isper- do com nte masculina era a compelh e m e s a e e é ad do jornal, s, associada à baix e uma cionalm . Hoje, jornalística nte o gêta d o va c ri o le ti té ã s ç re lí re a a ir n e cri cias p ar a execução ilitaram a s c a n r uma ma fa e d , p ta a ia u is ri a c d p n tá tê o m e A s são e , lr. e a to m rópria qu aí incluído execu do os nor cultura p de todos, nfortá- nero erente, entrevistan listas sobre i a tr x e , o o téria dif res jorna competiçã m-chegados, um c trevistado o segundo govern é e c . te re n to s e n o e m dos el d ncim m a, como e ro previsív e as proo de perte vel sentid mo se destaca entr tratu- o futu Inteligência buscav inativa, a op O jornalis ente com a magis ba- no Lula, entrevista trevistado. e d a ri a m tr té ta a n n o fissões, ju mais receptivas a ico, a toda m ia do profissional e jor nal Vas c m a o n ô ra, como o. No Valor Econ impo- excelê para Inteligência, , to jornalís o é in s lho femin essa receptividade o jor- Por is ômico não é um fa s opiniões d a ,n on percepção do um depoimento oder”, lor Ec alor jornalístico são . Leia. v n is p a u e sitiva. Seg eres chegaram ao m ge- tico; d orpo de profission lh c o u c de seu nal “as m da, na entrevista, mente, ata te tr n e a c e ri r té a m Até m humor. nuíno bo Inteligência – O presidente Lula disse que não vai mais se comparar a governos anteriores, particularmente com o do Fernando Henrique Cardoso. Vai se comparar apenas com seu primeiro mandato. Diante das experiências que vocês têm com relação à análise de vários problemas concretos do país de longa data, de curta data ou contemporâneos, será este um critério suficiente para estabelecer a avaliação de desempenho de um governo? Ou é necessário deduzir considerações sobre as necessidades das áreas em que as políticas foram elaboradas pelo governo? Exemplo, a partir de agora qualquer política de saneamento com investimento considerável será espetacular porque, no primeiro mandato, quase nada foi feito nesta área. Vera Brandimarte – Ao dizer isso, o presidente Lula está querendo marcar posição, sinalizando que vai fazer um governo diferente no segundo mandato, focado no desenvolvimento. O que a gente não viu até agora são as condições concretas para uma grande mudança. Logicamente, ainda não conhecemos os ministros e os ocupantes dos cargos mais importantes, antes do que será difícil imaginar qual vai ser o peso de uma política de maior investimento. Mas, independentemente de quem o presidente nomeará para as pastas mais importantes, pode-se ter mais 1% ou menos 1% de crescimento sobre o PIB. Ao longo do período eleitoral, esforçamonos em olhar apenas para o que acontecia nos fundamentos da economia. Se comparado aos últimos dez anos, houve uma melhoria de todos os indicadores. Por outro lado, também está cada vez mais claro que começamos a testar taxas de juros que o país nunca 28 EDIÇÃO HISTÓRICA teve nos últimos dez anos. E, ainda assim, não se vê uma reação na economia real. É impressionante. Não há resposta em termos de expansão da economia, o que torna muito claro que existem componentes muito mais complexos que estão constrangendo a economia brasileira. São muito mais complexos do que simplesmente uma política monetária restritiva. Isso gera muitas dúvidas sobe como será o segundo mandato. Há uma forte expectativa, por exemplo, de que esses próximos anos serão marcados por grandes obras de infra-estrutura, o que acabaria puxando todos os investimentos em vários outros setores. Mas, concretamente, não se observam as condições objetivas para a realização destas obras. O tempo de começar a fazer investimentos pesados em energia e logística está passando. Claudia Safatle – Esta comparação entre o primeiro e o segundo mandato talvez seja uma maneira ingênua de se tratar a questão. A política é um processo. Estamos, hoje, tentando sair de uma crise que começa de fato em 1982. Vai se tentando tirar os problemas mais urgentes, as dificuldades do momento. Durante muito tempo, esse problema era a hiperinflação. Agora, quando cai a hiperinflação, o que acontece? O Lula também passou os primeiros quatro anos cuidando da superinflação, que ameaçava despontar em 2003. Desenvolvemos algumas tecnologias interessantes para lidar com este mal e temos, hoje, uma inflação praticamente semimorta. Mais recentemente, a taxa de juros, que era o monstro de 12 cabeças, também começou a cair. Estamos com a menor taxa de juros real dos últimos I N S I G H T doze anos. E, mesmo assim, o Brasil não vai crescer! Não vai crescer! Agora, começa-se a perceber que o buraco está na questão fiscal, que começou a ser levantada no Brasil na década de 80 e, desde então, pouco avançou. Fernando Henrique Cardoso aumentou a carga tributária em mais de 15% do PIB. Esgotou-se o modelo de aumento da carga tributária. E agora? Enquanto o país não desatar esse nó fiscal, os recursos para os investimentos continuarão travados e o crescimento de 5% vai ficar apenas na promessa. Vera – Acrescentaria outra questão tão complicada quanto a carga tributária e que tem aflorado mais recentemente, Em que medida a nova fase de crescimento e investimentos no país não depende das decisões de grandes oligopólios? A princípio, isto não seria um problema, se as agências estivessem funcionando e impusessem limites à atuação desses oligopólios. No entanto, toda decisão que elas tomam não tem poder de lei. A empresa atingida por uma decisão contrária aos seus interesses vai à justiça e, ali, a questão pode durar até dez anos, ou mais. Em dez anos, o mundo é outro. Concordo que, a partir do momento em que se tirou o fantasma da Claudia – Há uma maçaroca institucional. Hoje, o Ministério Público e o TCU funcionam como agência de proteção ambiental. Às vezes, o Ibama faz uma Rima e o Ministério Público se opõe à decisão. Não está definido o que o Ministério Público faz, o que cabe ao TCU, e qual o papel do Ibama. O próprio Ibama federal entra em conflito com os Ibamas estaduais. Ou seja, fazer obras no Brasil é uma odisséia. Hoje, não haveria hipótese de se construir uma Itaipu. Pedro Cafardo – Com relação à pergunta inicial, quero fazer uma observação um pouco diferente da visão fiscalista apresentada pela Claudia. Na minha visão, está correto comparar os diferentes mandatos do presidente Lula por uma razão prática e simples. Não tem jeito de saber se este país está indo para trás ou para frente à não ser olhando o passado. E no governo Lula, INTELIGÊNCIA inflação, que monopolizava toda a atenção da política econômica, começa-se a ver os outros problemas da economia brasileira. Na maioria dos casos, são mesmo fruto de decisões tomadas lá atrás. Acho que demorou muito tempo para a gente perceber os efeitos da atuação desses grupos. Inteligência – Você acha que esses grupos são novos atores, reconhecidos finalmente, no sistema político brasileiro? Eles têm objeções a esforços no sentido do grande salto de qualidade, de uma ruptura do padrão de rotina do primeiro mandato? Vera – Não diria que eles têm objeções, mas há um excesso de poder na mão deles. É como se o governo, para levar à frente suas propostas de crescimento em várias áreas, de investimentos em varias áreas, tivesse uma forte dependência das decisões tomadas por esses grupos. Não se vêem novos atores na economia surgindo para contrabalançar e dar uma nova dinâmica ao processo. Logicamente, a burocracia do Estado joga com um papel forte, não só no plano federal, mas nos estados. Existe uma atuação do Ministério Público que acaba por obstruir os investimentos. qualquer indicador, tanto continuasse a fazer sua parna área social quanto na te, os investimentos ainda área econômica, sejamos estariam em torno dos tucanos ou petistas, é me25% do PIB – aliás, a únilhor. Admita-se. Ele não ca meta numérica do PT. ganhou a eleição por acaso. Ganhou porque a poInteligência – O governo pulação enxerga esses inPT fala muito em “conserdicadores no seu dia-a-dia! tação”, mas de quê? PossiEntão, a comparação com velmente em torno do o primeiro mandato é bas- Pedro Cafardo crescimento. Não partindo tante razoável. Todos sade uma visão fiscalista, os bemos que o governo tem de fazer in- orçamentos estão engessados por uma vestimentos, senão não cresce. serie de travas, como o contingenciamento e o pacto federativo. Seria possíClaudia – Começa daí: o governo tem vel, Rosângela, tendo em vista que os de fazer esses investimentos? Esse é o investimentos deveriam premiar uma seu papel? relação maior de elasticidade e produto, tentar destravar os orçamentos? Não Pedro – Bem, o país tem feito investi- estamos falando de aumento da carga mentos mais ou menos no mesmo rit- tributária ou mesmo de corte de gastos mo que vinha fazendo antes. Quem e sim de recursos que estão travados e baixou o seu volume de investimentos têm uma distribuição que, pode não ser foi o próprio governo. Se o governo ótima, mas é a necessária. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 29 I N S I G H T Rosângela Bittar – Não acho que seja possível destravar o orçamento. Essas vinculações foram concedidas a custo de sangue, suor e lágrimas. A vinculação da educação, por exemplo, que acompanhei bem de perto, custou muito. Se houver essa desvinculação, áreas como educação e saúde vão falir. No Congresso, qualquer tipo de “consertação” com objetivo de fazer o orçamento mais maleável será muito difícil. Haverá mobilizações contrárias muito firmes. Acredito ainda que o governo poderá ser administrativamente mais forte, uma vez que já carrega a experiência dos quatro primeiros anos. Em compensação, do ponto de vista político, sentirá muita falta de algumas pessoas. Márcio Thomaz Bastos foi um esteio do primeiro governo, principalmente a partir da saída de Inteligência – Não sabemos se alguém é insubstituível. Antes do Palocci, também se achava que não havia ninguém. Aliás, havia o Celso Daniel. Depois do seu assassinato, perguntava-se quem daria esse esteio político. Apareceu o Palocci e foi aquele deslumbre. Talvez essa sensação de dificuldade se deva a uma certa falta de confiança na criatividade para o processo. Basta conversar. Os russos não falam nada? O PSDB não fala nada? O PMDB não fala nada no Congresso? Basta conversar com os empresários, ver os problemas que necessitam de legislação, de reforma legislativa. Enfim, pode-se conversar com todo mundo. Pode até se conversar nos restaurantes, escondido. Agora, em algum momento, vai ter de desaguar no Congresso, que é muito forte. E que Congresso é este? Um Congresso em que dois dos grandes partidos, PSDB e PMDB, convivem com uma divisão difícil de superar. Depois de 1945, a esquerda no Brasil passou a ser democrática. O grupo de políticos que se opunham à ditadura de Vargas criou a esquerda democrática. Lembra um pouco o PSDB hoje. Tinha uma parte mais trotskista, ou- 30 EDIÇÃO HISTÓRICA INTELIGÊNCIA José Dirceu. Muito provavelmente, não estará no segundo mandato. Fará enorme falta. O governo precisa de personagens como ele para sair do imobilismo político. Ao mesmo tempo, ainda não apareceu, nos primeiros desenhos do futuro governo, um nome com peso político suficiente para transitar pelo Congresso e junto à própria sociedade. Vera – Antes desta conversa, especulávamos entre nós qual será o papel que o ex-ministro Antonio Palocci terá nessa articulação, principalmente com o meio empresarial. Colaria aqui meu ceticismo. Não sei se, neste momento, é uma boa opção para o governo deixar esse espaço nas mãos do Palocci. tra mais comprometida com o progresso do país e ainda uma parcela extremamente conservadora. Não houve uma agenda capaz de conciliar esses interesses. Dessa esquerda democrática, saiu o Partido Socialista Brasileiro, saiu a UDN. Se o PSDB continuar do jeito que está, com suas divisões internas, as eleições municipais de 2008 serão muito complicadas. O PT tem rua. O PSDB, não. deiras eleitorais. O orçamento é outra armadilha. A desvinculação é um processo extremamente complexo. Exatamente por ser forte, o Congresso pode forçar o governo a estender esta desvinculação para os recursos destinados aos estados. José Roberto Campos – Por que é complicado para os estados e não para a União? A União pode fazer e os estados não podem? Maria Cristina Fernandes – Antes de entrarmos Maria Cristina – Você nessa questão do Congresjá viu alguma manchete so, gostaria de dar umas de jornal sobre o nãopinceladas sobre esse tema cumprimento dos gastos da comparação entre os em educação e saúde no dois governos Lula. Essa estado do Amapá, por idéia do “quero comparar exemplo? Ou no Tocancomigo mesmo” é bastantins? A visibilidade do deste compreensível, sobretucumprimento das despedo do ponto de vista elei- José Roberto Campos sas nos estados é muito toral. Ao mesmo tempo, ao pequena, até porque a lançar esta perspectiva, ele montou uma imprensa local tem um poder de presarmadilha. Vamos pegar um ponto es- são mais reduzido. Não há Tribunais pecífico: o salário-mínimo. Ele sofrerá de Contas em todas as unidades da grandes pressões para não manter a va- Federação. Ao passo que existe uma lorização do salário nos mesmos pata- fiscalização maior quanto ao cumprimares do primeiro mandato. E essa foi mento ou não das despesas orçamenjustamente uma de suas grandes ban- tárias por parte da União. I N S I G H T Campos – Voltando à questão inicial, há uma outra linha que o Lula adotou ao longo de sua campanha. Ele dizia: “Vou comparar o Brasil com o próprio Brasil”. Nos últimos cinco anos, crescemos, na média, 2,3%. Neste ano, vamos crescer algo como 2,7%. Continuamos patinando na lama. Com relação ao orçamento, a vinculação é a jabuticaba brasileira. Estamos discutindo sobre um valor que equivale a cerca de 10% de todo o orçamento. A Constituição de 1988 criou, sim, um seguro contra a gestão política. Ou seja, separando este dinheiro, ninguém mexe nele. Claudia – A vinculação foi criada para quem tem voz. Na área da saúde, quem conseguiu foi o pessoal do jaleco. Na educação, os professores, os reitores e os empresários do setor. Não é uma conquista dos pobres. Rosângela – Mas também se arrumou dinheiro para o Bolsa Família, destinado a quem não tem voz. Ninguém fez greve para ter direito ao Bolsa Família! Claudia – Mas o dinheiro do Bolsa Família não tem vinculação formal ao orçamento. É uma generosidade, digamos assim, de um determinado governo. Pedro – É só trocar o governo que o Bolsa Família acaba. Claudia – Não, não! Ninguém tira mais. Pedro – Pode até ser devagar, mas tira. Em quatro, cinco anos, elimina! Campos – Essa questão da vinculação é mesmo muito curiosa. Em percentual sobre o PIB, o que o governo gasta em educação não é menor do que a média dos países emergentes. O mesmo vale para a saúde. Há prefeitos nadando em dinheiro. Para cumprir o orçamento, acabam construindo escolas de que não precisam. A vinculação, boa parte dela constitucional, criou um seguro contra a gestão política. Mas todo mundo só olha para a União. Por que o estado e o município não podem desvincular? Por que não se cobra cumprimento do orçamento do prefeito e do governador. Tudo depende da União. Então, é ingovernável. Diz-se que o dinheiro do Bolsa Família, R$ 8 bilhões, não é muito. Mas quanto o Estado investiu em capital fixo no ano? Cerca de R$ 10 bilhões, ou seja, apenas R$ 2 bilhões a mais do que no Bolsa Família. INTELIGÊNCIA Maria Cristina – O governo gastou R$ 8 bilhões e atendeu a 55 milhões de pessoas. Nenhum outro programa teria um alcance desse tamanho. Campos – Não sou contra o Bolsa Família, mas existe um certo triunfalismo de que essa parte está resolvida. Não está! Ela só estará resolvida quando o Brasil crescer. Há duas decisões eminentes que são muito sinalizadoras da direção que o presidente Lula vai tomar. Esse pacote da contenção de gastos vai mostrar que áreas serão prioritárias. A segunda é a escolha do ministério. É um péssimo sinal dar ministério de porteira aberta para o PMDB. Tudo indica que o buraco fiscal pode escapar por aí. O PMDB, tradicionalmente, não tem responsabilidade com o dinheiro público. Está pouco se lixando para contenção. Basta ver os seus governos. Vera – Ministério não tem muito o que fazer. Cumpre as regras estabelecidas pelo Planejamento. Não é um ministério do PMDB que vai ou não desrespeitar uma regra fiscal. Além disso, se o PT fizer uma aliança para valer com o PMDB, o governo terá de ser de coalizão. Não adianta fingir como foi feito até agora. Inteligência – Vamos voltar a esta questão importante, sobre o presidencialismo de coalizão. Estamos falando sobre o problema do federalismo brasileiro, que não existe. Não somos capazes de aceitar a idéia de deixar realmente os municípios e os estados se administrarem. E se eles administrarem mal, danem-se. Os eleitores que votem e resolvam. Não temos condições de aceitar porque falta coragem para implementar o artigo não sei das quantas da Constituição que prevê intervenção federal em caso de descalabro das contas públicas. É evidente que o país, do ponto de vista do município e do estado, tem um descompasso entre administrações mais regulares e outras completamente estapafúrdias. O Brasil paga o preço de jamais ter tentando o federalismo para valer em mais de duzentos anos de organização política. O século XIX é todo de centralização imperial. Começa com um pseudo-federalismo na República, que não se consegue manter. Depois, temos Getúlio Vargas e por aí afora. Os políticos brasileiros, os técnicos, os burocratas ficam apavorados com a idéia de entregar a administração de recursos públicos a cidadãos que foram eleitos para administrar recursos públicos. A centralização de decisão política neste país é enorme, contrariamente à descentralização da competição político-partidária. Há partidecos importantes em zonas de fronteira, áreas não alcançadas pelo PMDB ou pelo PSDB. São esses partidos que organizam a vida política nessas regiões mais remotas, mas OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 31 I N S I G H T INTELIGÊNCIA ninguém quer dar a eles maior capacidade de administração financeira na fronteira da barbárie. O país vai ter de pagar esse preço do estabelecimento do efetivo federalismo. Vera – Isso não é bem assim! Há uma serie de projetos, só que estão todos parados no Ibama ou no Ministério Publico. Existem obras já em execução e outras que nem começaram. Maria Cristina – A partir dessa idéia, não parece a todos que essa eleição demonstrou o poder do governo central, por exemplo, no ataque às oligarquias no Nordeste? ACM, o PFL em Pernambuco e o PSDB no Ceará foram derrubados, talvez na carona dos programas federais. O poder central teve força. Claudia – Mas não há essa visão de planejamento! Por exemplo, há quanto anos estamos discutindo energia nuclear? É uma complementaridade importante ou não é? Precisamos definir estas mínimas questões. De vez em quando, alguém do governo fala da construção de Angra 3 e até de mais de cinco usinas. Quem sabe um dia! Não tem uma coisa focada, com visão de longo prazo, capaz de detalhar quais são as projeções para 10 ou 20 anos. Falta quem diga quanto o país precisa gerar de energia hídrica, térmica e nuclear. Essa visão estratégica de crescimento, de casar oferta com demanda no futuro desapareceu. Inteligência – Sem dúvida. Voltando ao tema do crescimento, como questão fiscal, as amarras orçamentárias e até mesmo uma maior clareza sobre o papel do Estado, estão devidamente mapeados. Sabe-se também que é absolutamente imprescindível atacar os gargalos da infra-estrutura, notadamente energia e transporte. Porém, todos estes fatores são tratados de maneira muito dispersa, como se fossem questões anérgicas. Estes ingredientes não se entrelaçam e muito menos são observados de maneira sistêmica. Fica claro que o Brasil não tem mais estrategistas que consigam integrar estas variáveis em nome de um planejamento nacional. É possível crescer sem este planejamento e sem estrategistas? Claudia – Realmente, o Brasil não tem mais estrategistas. O desmonte nessa área foi enorme. Passamos muitos anos preocupados quase que exclusivamente com a inflação. Então, o orçamento era de mentira. O Executivo fazia de conta que elaborava, o Congresso fazia de conta que aprovava e o governo fazia de conta que cumpria. Há pouco tempo, fiz uma matéria sobre projetos de estradas no Brasil. Não tem inteligência. O Departamento Nacional de InfraEstrutura em Transporte (Denit) tem apenas dois engenheiros. Dois! Não há uma gaveta de projeto para cinco anos, 10 ou 15 anos. O empresariado se ressente desta falta de planejamento estratégico. Inteligência – Curiosamente, fica se bradando que o Estado brasileiro é enorme, quando absolutamente ele é apenas disforme. Comparando a porcentagem do PIB gasta no pagamento do funcionalismo com a de outros países, o Estado brasileiro é uma bobagem. O que há é uma distribuição de força de trabalho inteiramente desequilibrada por conta dos períodos em que o Estado oligárquico servia como cabide de emprego. Há uma quantidade de motorista de caminhão, de porteiros, ascensoristas. Claudia – Mas onde está a inteligência para o planejamento? O país precisa de energia hídrica, mas onde estão os projetos? 32 EDIÇÃO HISTÓRICA Vera – Não é que não haja uma visão estratégica. Houve uma questão muito clara no primeiro governo Lula. Todos os esforços foram direcionados para se cumprir uma determinada meta fiscal. Então, todos os projetos de investimentos estavam lá. Claudia – Não sei. Quando se foi fazer os PPIs, que tinha o grande mérito de não ser contabilizado como déficit, não havia o que escolher. As equipes do Tesouro e do Planejamento tentaram selecionar alguns projetos, mas não tinha prateleira. Vera – Existe outra questão grave. Havia uma proposta, sempre lembrada pelo Tesouro, de construção de cinco ferrovias. Ora, vamos fazer uma, que já exige um esforço monumental para se construir. Pode colocar cinco, dez, o número que for, que não vai sair. Não há definição de prioridades Campos – O país ficou com uma visão de curto prazo. Não temos planejamento nem mesmo para cortar despesas. O governo reduz as verbas para a sanidade animal e dá um enorme problema de febre aftosa no país, porque não há R$ 60 milhões disponíveis para a vacinação do gado. Desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, só fazemos cortar, cortar, cortar. Desta forma se tem planejamento ou não passa a ser quase irrelevante. Vera – Tudo foi para segundo plano em nome dessa prioridade do ajuste fiscal. Não vale a pena discutirmos se o governo exagerou ou não no rigor da política monetária. O fato é que se obteve resultado ao se perseguir o controle da inflação. A um custo monumental? Não se sabe. Mas é por conta disso que se tem hoje uma situação I N S I G H T estável em contas externas. Já que haverá mais folga nos próximos anos, a despesa de juros vai cair e o governo poderá definir outras prioridades. A questão é saber se tem gente a postos capaz de elencar estas prioridades e persegui-las. Inteligência – Como dizia Paulo Francis, o Brasil tem um reduzido número de pessoas capazes de pensar em bloco. Mas talvez não precise de um grupo tão exagerado de pessoas. Roberto Campos afirmava que, com duzentas pessoas, era possível administrar o Brasil com eficiência e transformá-lo em uma potência monumental. Para executar, é necessário ter uma burocracia extremamente bem azeitada, com uma cultura profissional bastante modernizada. O problema é que o governo toma decisões, e essas deliberações não são cumpridas, ou por má-fé ou por incompetência. E não tem como dar jeito! O custo de se recuperar o fracasso de uma Rosângela – As pessoas ficam muito dependentes da agenda do governo. Algumas entidades, como Fiesp e CNI, até tentam criar uma agenda própria, mas a regra geral é aguardar pelo posicionamento do governo central, o que vale até mesmo para a oposição. O próprio governo não deverá ter grandes problemas para emplacar suas propostas no Congresso, pelo menos naquelas questões que não afetarem as corporações ou um grupo determinado. Não creio que a oposição vá ser refratária à agenda do governo. O que pode ser sim um problema para o Lula é a falta de um sucessor dentro do próprio PT. Os partidos da aliança vão se engalfinhar para ocupar esta vacância, o que pode acabar trazendo problemas para o governo. Aliás, o PT não tem nem mesmo um personagem que consiga personificar a coordenação do partido. Por enquanto, o próprio Lula tem cumprido este papel, não se sabe por quanto tempo. Maria Cristina – Salta aos olhos a dificuldade de o PT em manter um controle. Ao mesmo tempo, acho que superestimamos muito essa idéia de que INTELIGÊNCIA política é enorme. Contrariando Marx, o país está enfrentando problemas que não tem capacidade de resolver! Vera – Não é só um problema do Estado. Sem grandes obras há mais de 20 anos, o país não tem mais engenheiros. A maioria dos engenheiros formados nos últimos anos foi para o mercado financeiro. As próprias empreiteiras dizem que, se houver uma fase de obras intensivas em infra-estrutura, vai faltar profissional. Inteligência – Essa agenda de problemas cruciais que estamos passando não é a agenda que aparece na fala dos novos governantes e até mesmo dos grandes empresários. Ou estão fazendo um discurso hipócrita ou há realmente um descompasso entre o que se pode identificar e até medir e os fatores que os administradores públicos e privados reconhecem como as maiores dificuldades da nação. o PT não consegue sobreviver sem a mão pesada do Planalto ou de um Zé Dirceu. Nas eleições, mesmo sem o Zé Dirceu ali para carrear os recursos e distribuir a verba partidária, o PT elegeu governadores onde não tinha. Devese ressaltar essa capacidade do PT de se auto-prover, mesmo sem uma mão forte. Eles vão criar muitos problemas para o presidente Lula, mas todo o partido cria problemas para um governante, mesmo que seja seu filiado. Rosângela – Acho que teve a independência do voto. O PT funcionou mais ou menos como os outros partidos. Agora, olhando para o segundo mandato, o presidente Lula Rosângela tem um problema não só no PT, mas nos partidos de aliança. Mal acabou o segundo turno, o PT e o PMDB já estavam em guerra aberta pelo domínio dos principais cargos. Não vejo como o Lula vai conduzir essa articulação política por muito mais tempo. Isso vai explodir em algum momento. Maria Cristina – No primeiro mandato, esse problema explodiu na sucessão na Câmara. Era uma coalizão majoritariamente dominada pelo PT, que não arbitrou, naquele momento, que o partido só podia ter um candidato. Deixou aquela situação prosseguir em rumos distintos e deu no que deu, na eleição do Severino Cavalcanti. Agora, o governo parece mais consciente do que é uma coalizão e o PMDB terá uma participação no executivo correspondente ao seu poder no Congresso. Rosângela – As eleições aumentaram a auto-preservação do PT. O resultado foi surpreendente para eles próprios. FizeBittar ram uma banca expressiva. No caso dos governos estaduais, nem o Lula acreditava na vitória do Jacques Wagner na Bahia. O próprio Lula, dizem as pessoas mais próximas a ele, cita recorrentemente a performance de Jacques Wagner. O presidente a considera um feito extraordinário. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 33 I N S I G H T Vera – Cristina, você falou que o partido sempre traz problemas aos governantes. Acho que está sendo injusta, porque o PSDB não causou maiores problemas ao Fernando Henrique. Maria Cristina – Nossa, Vera! A natureza do conflito pode até ser diferente, mas houve muitos choques. O Serra atormentava publicamente o juízo do Malan. Houve várias dissidências quando o partido foi votar a aliança com o PFL. Vera – É verdade, mas eram disputas entre aquelas estrelas, como Mendonça de Barros, Serra, Sergio Motta. Além disso, os desencontros entre a área econômica e outros ministérios, sobretudo da área social, são comuns. Historicamente é assim em qualquer governo. A demanda é sempre muito maior do que o caixa. Mas acho que são questões diferentes dos problemas que o PT trouxe para o Lula. Inteligência – Mudando um pouco o rumo da prosa, há uma razoável concordância de que o crescimento é a mãe de todas as batalhas do segundo mandato. Será que, ao deci- dir, por exemplo, por um corte de gastar R$ 150 bilhões para pagamengastos da ordem de 2% do PIB, o to de juros. Pode perfeitamente pepresidente Lula não tragar R$ 10 bilhões e colobalha com a hipótese de car na infra-estrutura. A negociar alguma folga oreconomia pega no ato. çamentária evocando um Nós já vimos esse filme certo caráter emergenentre os anos 70 e 80. cialista? Mal comparando, Agora, precisamos analio Fer nando Henrique sar que crescimento é usou este expediente na esse. Talvez ele já tenha questão do apagão, ao começado. No governo criar uma câmara de criLula, houve uma melhoses. A intensidade dos ria dos índices de distriproblemas, uma vez reve- Maria Cristina Fernandes buição de renda. Os últilada, poderia permitir a mos índices disponíveis criação de instrumentos administra- sobre o desempenho econômico do tivos e políticos capazes de desenges- Nordeste são de 2003. Mas tenho sar os recursos públicos. certeza de que, quando os índices de 2004 e 2005 aparecerem, vamos ver Pedro – Crescer é absolutamente um avanço significativo na região, suimportante e ninguém nega. Voltan- perior ao do Sul e do Sudeste. O mesdo um pouco no tempo, na época do mo vale para o Norte. Será um cresSimonsen, houve um momento em cimento quase em ritmo chinês, e que a grande batalha brasileira era com distribuição de renda porque lá segurar o crescimento. Pois tem mui- está a população mais pobre. Então, ta gente segurando o salto econômi- o Brasil não precisa ter necessariaco no país. Não precisa de muita coi- mente um boom de crescimento. O sa para deslanchar e readquirir essa país pode crescer 4% ou 5%, com dinâmica. Não é necessário quebrar uma média maior nestas áreas. A ecoo Estado e gastar uma enormidade. nomia paraense, por exemplo, teve O governo, por exemplo, não precisa um salto de 25%. Vera – Falamos genericamente dos investimentos de que o Brasil precisa. Mas é necessário separar o que depende diretamente do setor público e outros projetos que poderiam ser tocados pela iniciativa privada. As ferrovias que estão bem são as privadas. O que tem de diferente para acontecer é uma notícia positiva: estamos às vésperas de um investment grade, o que mudará substancialmente as condições de financiamento. Ao mesmo tempo, é preciso estimular os empresários a buscar ainda mais recursos no exterior. Se não, ficamos sempre naquela história: o que vem primeiro, oferta ou demanda? A indústria não cresce porque não tem demanda. O país não consome porque não tem aumento da produção. Além da energia, dos tributos e da logística, devemos discutir mais profundamente o problema da insegurança regulatória. As agências foram criadas, mas o que elas decidem não é cumprido. 34 EDIÇÃO HISTÓRICA INTELIGÊNCIA Inteligência – Vamos voltar à questão do caráter emergencial. No primeiro mandato, o Lula esteve premido pelo terrorismo tucano. A hiperinflação, a crise cambial e o risco do direito de propriedade estavam à espreita, diziam. Depois, ele foi linchado e não teve o devido tempo para confessar o tal caráter emergencial. Ou seja, até agora foi complicado para o Lula dizer à nação o grau dos problemas que temos. Será que ele não vai ter de amplificar e purgar publicamente estes entraves para conseguir instaurar uma aceitação a este clima de emergência e aí sim começar a soltar as amarras? Claudia – O governo vai ter de ousar. E vai ousar! Vai ousar numa política fiscal, com ganhos imediatos. Só vale à pena ter certa audácia na política fiscal se o ganho for precificado a valores de hoje e não daqui a quatro anos. A minha impressão, pelo que ouço I N S I G H T INTELIGÊNCIA do pessoal da área econômica, é que tudo dependerá do Congresso. No passado, era possível se fazer muita coisa na gestão do Orçamento. Como o governo vai tirar dinheiro da Saúde, trocar a correção do PIB nominal para o IPCA? Tudo depende do Congresso. dinheiro neste governo. No fundo, é essa desconfiança de que um “PSOL do B” possa dar um golpe. Vera – Quando pensamos em termos de desenvolvimento, ainda recorremos a algumas demandas que eram muito claras na década de 70. Não sei é importante o governo investir em um porto quando o setor privado tem capacidade para isso. No fundo, o papel do Estado é dar condições para o crescimento. É reduzir imposto para gerar competitividade. Se não mexe no câmbio, tem outras formas de dar força indústria nacional. Do contrário, continuará assistindo ao êxodo de empresas que buscarão outros lugares para produzir. E como se dá a competição? Isso, sim, é papel do governo. É menos complicado tomar decisões que estimulem o setor produtivo do que o próprio governo arrumar caixa para tocar projetos. Ocorre que o capitalismo brasileiro jamais viveu a experiência de o Estado dar as regras e o empresariado ir sozinho. O Estado sempre precisou puxar a indústria. O grande boom de crescimento, na década de 1970, se deu pela ação direta do BNDES. Na área rural, por exemplo, a Embrapa foi extremamente importante. Só existe o cerrado porque houve investimento público da empresa na área de pesquisa. Pedro – Também preconceito, mas tem essa desconfiança de que o Lula continua sendo o sapo barbudo. Inteligência – Uma área de pesquisa sobre a qual não havia controvérsia política e ideológica. Este é ponto crucial para esta discussão a propósito do caráter emergencial das decisões. Estamos esquecendo que o Estado tem um partido político hegemônico, o PT, e um problema para resolver. O empresariado não investe porque, não obstante todas as declarações, não sabe se amanhã haverá uma revolução dentro do partido e o “PSOL do PT” toma o poder. Por “PSOL do PT” entenda-se aquela turma que ainda ficou. Há um problema político seríssimo em relação a quem verdadeiramente manda no partido hegemônico do governo. Isso não está claro para quem corre o risco de perder dinheiro, assim como não está claro para as pessoas que fazem análise. Aquele pessoal é capaz de reduzir a capacidade de decisão do governo como um todo porque tem um restinho de poder de veto. Eles não têm força para decidir, mas sim para vetar. Podem sim comprometer a velocidade das decisões e a capacidade de implementação. É o caso do Ibama. O PT está lá dentro, criando muitos problemas e obstáculos para as obras de infra-estrutura. Claudia – Imagina o João Pedro Stédile no Banco Central! Pedro – Existe, de fato, uma desconfiança das elites empresarias em relação ao PT. O Lula mesmo perguntou durante a campanha por que os banqueiros votavam no Alckmin se ganharam tanto Maria Cristina – Por falar em Walter Pinheiro, o financiamento que ele recebeu de grandes empresas foi estrondoso. Esses personagens, por mais que continuem incendiários, estabeleceram uma Vera – Desconfiança ou preconceito? O que pesa mais nessa balança? Claudia – Nossa história recente é muito complicada. Tivemos um Collor que fez confisco. Esse risco de descumprimento do estabelecido está no DNA de todos nós. O Estado brasileiro é arbitrário e isso está na memória de todos. Campos – O caso do Hélio Costa é típico, até pelo fato de que a área de comunicações funciona perfeitamente e está diante de um novo boom de investimentos. O órgão regulador toma uma decisão e o ministro fala que vai pedir intervenção. Ora, quem manda nisso aí? Todos pedem regulação, e, quando ela existe, vem um ministro, de péssima qualidade por sinal, e diz que não. Inteligência – Imagina se alguém deduzir que esse ministro pode ser o Olívio Dutra. Se bem que ele ainda é dos mais moderados. Rosângela – Nem precisa ser tão radical. Essa mudança de respeito em relação às agências começou com a Dilma Rousseff, que, no Ministério de Minas e Energia, passou a desconsiderar o marco regulatório. Ela instaurou o novo marco do setor elétrico por medida provisória. Inteligência – Em relação à Dilma, a versão é outra. Ela é uma ditadora confiável. Todo mundo sabe que ela vai cumprir. Durante a ditadura, os empresários investiram pesadamente. Não havia problema de confiança. Hoje em dia, a questão é que os grupos dentro do PT têm capacidade de complicar o processo decisório e dilatar tempo. Eles fazem isso em todas as instâncias, inclusive dentro do próprio partido com a postergação das investigações sobre as ilegalidades cometidas. O empresário não olha apenas para o que o Lula diz. Olha também para o que o Walter Pinheiro e tantos outros com poder burocrático dentro do partido e do Congresso dizem. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 35 I N S I G H T INTELIGÊNCIA interlocução com o setor privado importante ao longo desses quatro anos e desenvolveram uma participação decisiva na definição dos rumos do país. Maria Cristina – Mas há uma crescente força que se opõe a esse grupo em outros estados, em outros setores, em outras facções do PT, como o Marcelo Deda e o Jorge Vianna. Inteligência – A experiência permite que se criem expectativas posteriormente confirmadas pela reiteração da relação. Mas como este processo no Brasil é recente, a taxa de ansiedade é grande. Seis meses antes de chegar ao governo, quando fez a Carta de Recife, o Lula dizia que ia fazer uma revolução socialista. E, não obstante, recebeu mais financiamento em todos os setores econômicos do que o Serra, à exceção do sistema financeiro. A banca foi o único setor que deu mais financiamento à campanha do Serra do que a do Lula. É uma aposta, um investimento. Essas divisões dos dois principais partidos vão dar pano para manga no Congresso. Até para se criar este gatilho do caráter emergencial, será uma briga danada dentro do PT. Rosângela – São pessoas que já existiam antes. Como estão em postos no executivo, talvez não tenham condições de assumir a liderança do partido. Nenhum deles parece estar disposto a puxar o partido para seu pensamento, para sua maneira de se comportar. Maria Cristina – Talvez essas divisões internas do PT tenham sido acentuadas no primeiro mandato porque existia claramente alguém que mandava no partido além do Lula, que era o caso do José Dirceu. O fato de não ter alguém com um poder próximo ao do presidente da República não pode dirimir um pouco o poder de confusão? Inteligência – Quais são as pessoas eleitas que compõem a bancada federal do PT? A que tipos de corporações são ligados? É complicado passar qualquer coisa na área de Saúde porque tem Jandira demais no setor. A Jandira Feghali é um voto apenas no Congresso, mas tem uma capacidade de intervenção muito grande. Maria Cristina – As pessoas do PT envolvidas no mensalão eram todas de um único grupo, beneficiado por gente de dentro do Palácio, que tinha interesse em fortalecer esta parcela do partido. Hoje, não vejo claramente um centro de poder do PT que tenha sua representação no Palácio, com capacidade de fazer isso. Pode ser que haja e a gente ainda não tenha descoberto. Rosângela – Acho que esse grupo não foi desbaratado. Esse grupo que tinha a proteção do Palácio permanece, agora com a proteção do PT. É o mesmo grupo que recebeu dinheiro do partido nestas eleições de 2006, ainda claramente alimentado pela liderança do Zé Dirceu. Grande parte não foi eleita, mas contou com a proteção do partido. Eles apareceram no palanque do Lula de maneira discreta, caso do João Paulo Cunha, eleito com dinheiro do PT e alimentado por esse grupo antigo. 36 EDIÇÃO HISTÓRICA Campos – O fato de muitos dos mensaleiros terem sido eleitos me dá cada vez mais certeza de que o PT, com uma velocidade incrível, com a máquina burocrática de dominação do partido, decretou sua independência em relação às bases. Os parlamentares propuseram que, na estruturação do PT, houvesse mais vagas na executiva nacional aos bons de voto. Ou seja, para a própria bancada parlamentar. Esse movimento é típico. As bases têm pouco poder hoje sobre a máquina. Acho que a tendência é descolar. Maria Cristina – Precisamos ver quanto da bancada eleita contou com dinheiro do partido para saber se essa máquina burocrática teve esse peso todo na eleição deles. Não dá para saber se o João Paulo Cunha foi eleito pela máquina do partido. O que sei é que ele, como ex-presidente da Câmara, teve muito dinheiro de empresas privadas. De algumas grandes companhias, foi o deputado que mais recebeu doações. Rosângela – O partido privilegiou, sim, esses candidatos ligados à máquina, que são bons de voto. Aqueles candidatos do chamado voto de opinião não tiveram praticamente nenhum recurso do partido. O Greenhalgh, por exemplo, não deve ter recebido um tostão. Maria Cristina – É uma boa matéria levantar esses dados. Inteligência – E a Ângela Guadagnin, que não foi eleita, recebeu dinheiro? E o Genoíno? Rosângela – Devem ter recebido. Vera – Nós jornalistas somos muito críticos, faz parte desta nossa profissão. Em toda esta nossa conversa, parece até que estamos meio pessimistas com relação ao segundo mandato. Acho que é o contrário. As condições objetivas e os fundamen- I N S I G H T tos da economia estão muito melhores do que no início do primeiro mandato. O que não temos é a ilusão de um programa realmente revolucionário, que vá apresentar uma ruptura. Não acredito em uma grande mudança, mas, com certeza, tudo indica que teremos quatro anos melhores do ponto de vista do crescimento econômico. Claudia – Com relação às condições objetivas da economia, não tenho dúvida de que o momento é muito positivo. Estou cobrindo economia desde 1975 e nunca houve uma situação tão boa no país como agora. Agora, há uma armadilha fiscal grave. É preciso fazer a reforma da Previdência, que não é brincadeira. Todos acham que o governo promoveu a reforma do setor público. Houve, sim, muito barulho no Congresso, mas na hora de regulamentar ficou tudo igual ao que sempre foi. Será necessária uma capacidade muito grande de imprimir mudanças importantes. Vou parafrasear o Delfim: ou o Lula volta para governar como um grande estadista ou como mecânico fracassado. Não tem meio termo. Governar entre- Campos – O salário-mínimo é outra jabuticaba. Ele só tem importância por causa da Previdência. Só no Brasil os aposentados recebem salário. No caso do setor público, o salário da ativa. Isso não existe em nenhum lugar do mundo. Se houver a desvinculação, esta passa a ser uma questão menor. Inteligência – Vigora, portanto, a idéia de que, há tanto tempo, não existem condições macroeconômicas tão favoráveis para o desempenho econômico genérico, sem especificação de justiça social, beneficiação setorial ou regional. Existem condições excepcionais para o desempenho, mas faltam algumas que seriam cruciais para resolver os estrangulamentos do grande salto. De qualquer maneira o desempenho final estará aquém daquilo que, em tese, as condições permitiriam, pela impossibilidade de resolução satisfatória de problemas intermediários. Pode ser que os problemas dos portos e da ener- INTELIGÊNCIA gando crescimento de 2,5% será um fracasso. Ou continuamos nessa mediocridade ou damos um salto de qualidade. Maria Cristina – A questão, Claudia, é como convencer as pessoas dessas regiões que tiveram esse crescimento chinês de que o país inteiro precisa se desenvolver como um todo e que este pensamento também beneficiará diretamente as suas vidas. Como dizer a elas que suas vidas continuarão melhorando se o investimento público aumentar? Ao mesmo tempo, precisamos saber se o Estado conseguirá manter essa política de valorização do salário-mínimo e, ao mesmo tempo, ampliar os investimentos de base. Claudia – Ou ele desvincula o salário mínimo da Previdência ou vai ter de parar. É uma questão aritmética! A soma das partes não pode ser maior do que o todo! Maria Cristina – Mas é uma aritmética que tem de ser negociada politicamente. gia sejam resolvidos em 15 anos, mas ferente caso tivesse ocorrido retorestamos pensando no saldo ao final no tucano-pefelista ao governo. Esta de quatro anos. Nesse passo, há dois é uma tese genuinamente tucana. A caminhos de análise. Um tem a ver de que, mesmo com estas condições com as dificuldades reais positivas, muita coisa do estágio material da coestá e deverá continuar munidade brasileira. Há sem solução. limites físicos, de todo jeito, que impedem que se Vera – Esse negócio da vá além de um certo, diqualidade da máquina é gamos, crescimento porelativo. No governo tucatencial econômico, polítino, um governo de intelecco e social. Há outra tese tuais, o país teve um apade que este estágio ótimo gão, um sintoma claro de não será alcançável por Vera Brandimarte incapacidade. Se houvesincompetência – incomse uma máquina de mepetência é um nome forte, um pou- lhor qualidade, os alertas teriam sido co agressivo – digamos que por defi- dados de outra forma. O país se expôs ciência de capacidade operacional da muito. Na área de educação, por exemequipe eleita. Portanto, não é um pro- plo, houve um avanço no número de blema estritamente de dificuldades crianças na escola, mas a qualidade deimateriais, mas decorrente também do xou a desejar. Justamente por existir fato de que o PT e seus associados essa deficiência de gestão, é difícil imanão terão condições de dar as me- ginar, em um regime democrático, uma lhores soluções para esses problemas. mudança muito rápida e muito profunTodo mundo reconhece que seria di- da em assuntos fundamentais. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 37 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Inteligência – Será que a meiro mandato foram burocracia do segundo e teradmitidos sem concurso. ceiro escalões, aquela ativiOs salários foram readade-meio, responderia? justados porque houve Quando falamos em gestão, uma grita enorme. A Pofalamos em dois animais. Os lícia Federal não tinha diretores, substituíveis em condições de dar conta função de mudança de gode suas atribuições. No verno, e o pessoal que receBrasil, para se ter uma be a ordem. Há uma polítireforma do Estado efica de salário que não avalia Claudia Safatle ciente, é preciso aumeneficiência e competência. tar gastos. As pessoas Esta é uma variável estratégica. querem um Estado eficiente, mas sem gastar dinheiro. Não é possível! Esse Claudia – O Fernando Henrique só Estado não foi criado para atender poconcedeu reajuste para algumas carrei- líticas de uma sociedade complexa, ras do funcionalismo. O Lula deu au- como a brasileira. mento para todo mundo. Ninguém pode chorar mais. Claudia – Por outro lado, não faz o menor sentido o orçamento dar R$1 biInteligência – O Bresser Pereira ten- lhão para ONGs que não se sabem de tou criar uma política de remuneração onde saíram. Não há a menor cobrancom critérios de avaliação e desempe- ça do que foi feito com esse dinheiro, nho, mas saiu do governo antes de con- se ele foi para as criancinhas do Peloucluir o trabalho. Mas, voltando ao as- rinho ou para alguém para comprar vessunto, cabe relembrar que os policiais tidinhos. O orçamento é cheio de rafederais contratados no início do pri- bos. Some dinheiro e ninguém vê! Claudia – Uma maneira de prover o Estado sem gastar muito é partir para a terceirização. Contrata-se um especialista para fazer um trabalho com tempo determinado. O que faz a Justiça? Demite todos os terceirizados, faz concurso e bota todo mundo para dentro com todos os direitos. Pedro – Tem um dado irretorquível. O Legislativo e o Judiciário concentram o maior aumento dos gastos com pessoal. O Judiciário é um absurdo. Claudia – Agora vamos ver a campanha pela isonomia. Os demais poderes vão buscar igualdade de condições salariais com o Judiciário. Inteligência – Não é o governo central que gasta mais dinheiro. Aliás, o governo central não tem capacidade de fazer cumprir o que decide há cinqüenta quilômetros de Brasília. Não tem porque não dispõe de capacidade operacional. Para se resolver estas e outras questões, fundamentalmente o crescimento, precisa-se do Congresso. O PT e o PSDB são cruciais! E tem a questão do PMDB. Ninguém 38 EDIÇÃO HISTÓRICA Inteligência – Havia um empresário paulista, do tempo do Sarney, que montou um grupo de trabalho para pensar a reforma administrativa. Os estudos mostraram que, para cada posto de saúde, havia três guardas e um quarto de enfermeira. Logicamente, quando se tem apenas a quarta parte de uma enfermeira no posto de saúde, tem que botar três seguranças para dar porrada no pessoal que não é atendido. O grupo de trabalho chegou à conclusão de que era muito melhor pegar o excesso de ascensorista, motorista e limpadores, entre outros, e deixá-los em casa, recebendo o salário integral. A economia com energia, papel e outras coisas do gênero compensaria o procedimento. O Estado teria um pouco mais de folga para fazer contratações em áreas realmente necessitadas. Rosângela – Foi a filosofia da época do Collor. Ele pôs uma série de funcionários públicos em disponibilidade, mas, por ordem judicial, todos tiveram de ser reintegrados. governa este país se estiver por muito tempo do lado contrário ao PMDB. Paga-se um preço pela coalizão, mas é melhor do que tê-lo como inimigo do governo central. Até porque, ao contrário da idéia comum, o Congresso brasileiro trabalha bastante. Aquilo é um inferno democrático. Uma coisa é o pessoal do pinga-fogo, que só quer aparecer para a televisão. Mas a maioria faz emendas e apresenta projetos alternativos. As comissões trabalham muito. Campos – Não vejo uma atividade no Congresso tão produtiva assim. Para o país é vital uma reforma política que garanta mais eficácia. Quando se chega ao ponto de uma Lei de Diretrizes Orçamentária parar o Congresso por causa da ponte do deputado de Alagoas chegamos ao fim do poço. Tem de haver fidelidade partidária e voto distrital, não com lista fechada, para possibilitar a formação de maiorias mais facilmente. Não faz sentido discutir tudo a todo momento. Inteligência – Em certos momentos é perfeitamente defensável o direito de o representante consultar a sua consciência. É claro que, I N S I G H T INTELIGÊNCIA dito assim, pode parecer que é uma anarquia. Mas esse direito deve ser reconhecido. O exercício do direito no Brasil é pífio. Essas questões são democraticamente legítimas, mas têm de ser discutidas com um pouco mais de cuidado e com a apreciação das experiências históricas. A humanidade está aprendendo a conciliar vários fatores que não são fáceis. Não é simples harmonizar liberdade individual e interesses da coletividade. o PIB potencial brasileiro se o país não faz censo industrial e agrícola há mais de 15 anos? Campos – Minha preocupação é que houve tempo demais para se aprender e os resultados são ruins. Não há nada mais desmoralizado do que o político. Claudia – Na década 1970, o Geisel deu dinheiro para Deus e o mundo e criou o parque siderúrgico e o parque petroquímico. Pedro – Se não tem uma mínima seleção na apresentação do candidato, a taxa de renovação é essa sempre. Bota porcaria, tira, bota porcaria, tira. O problema é não botar porcaria. Inteligência – A taxa de renovação da Câmara dos Deputados nos Estados Unidos é de 2%. São dados oficiais. A cada eleição, se tem a reprodução de 98% dos representantes que lá estão. O deputado só sai morto. Campos – Mas lá tem uma deformação. Os eleitos refazem o distrito eleitoral e, aí, o cargo vira aposentadoria. Mas, mesmo com esta baixa renovação, o Congresso norte-americano funciona. A Alemanha funciona. Claudia – E no meio de toda essa discussão, ainda temos de encontrar tempo para fazer a economia crescer. Inteligência – Pois vamos voltar a essa questão do crescimento. Elencamos aqui a necessidade de reformas modernizantes, lições permanentes de melhoria da qualidade e da eficiência das políticas e da burocracia. Mas, ainda assim, a principal pergunta continua sem resposta: como entregar crescimento rapidamente? Quais são os fusíveis que precisam ser ligados? Pedro – Não existe nenhuma dificuldade em fazer um crescimento de 7%, 8%, 10%. É facílimo! Faz uma nova Brasília e despacha dinheiro para tudo que é indústria. O problema é saber se a inflação vai voltar. Será que vai quebrar o país? O Juscelino fez isso, deixou um déficit fiscal fenomenal e, ainda assim, só se fala dele. É a eterna referência. Inteligência – Falta norte para o crescimento. Como se sabe qual Claudia – Quando o Banco Central introduziu esse conceito de PIB potencial foi uma coisa para olhar. Não é fator determinante. Inteligência – O PIB potencial é complacente. Inteligência – A questão maior, neste momento, são os investimentos estruturantes, que poderão abrir um caminho para o setor privado. Mas será que o próprio governo não pode tomar mais recursos no exterior, até porque esses investimentos de base são pouco rentáveis e não interessam à iniciativa privada? Vera – Talvez não seja necessário o Estado fazer mais dívida externa. O BNDES pode tomar dinheiro aqui dentro mesmo. Ele colocou alguns produtos financeiros, usando como lastro as ações de empresas das quais participa. A capacidade de captação do BNDES, sem risco cambial, é muito grande. Inteligência – Não é preciso aumentar o investimento público na formação bruta de capital fixo? Não é essa a origem do nosso drama? Ou seja, o governo tem de fazer a reforma fiscal para aumentar o investimento público em capital fixo? Vera – Volto a perguntar: um Estado com este nível de endividamento precisa ser a alavanca? O problema é que o excesso de carga fiscal mina a competitividade do setor privado. O Brasil vem aumentando a exportação, mas sua participação no mercado internacional é muito pequena. Claudia – Não gosto muito de políticas dirigidas a setores, porém, como não há espaço fiscal para um rebaixamento de alíquotas, o país tem mesmo de criar condições especiais para diversas áreas. Mas a teoria econômica diz que, geralmente, quando se tem muitos problemas, não pode atacar só um. Tem de atacar todos eles pouco a pouco, em um ajuste gradativo. O governo não pode dizer que vai reduzir a carga tributária de 42% para 35% do PIB, senão quebra. Na semana seguinte, não paga mais salário aos servidores. Agora, pode reduzir um pouco a arrecadação de quem vai efetivamente investir. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 39 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Inteligência – Olha a sofisticação da burocracia necessária para implementar estas mudanças. Tudo depende de um aparelho de Estado decente, com gente moderna. Rosângela – O jornalismo deixou de ser uma profissão de homens nos anos 80. Dizem que tem a ver com o salário, os homens não quiseram ganhar pouco. Claudia – Quando se reduz a alíquota, cresce o número de contribuintes. Na Rússia, a alíquota do Imposto de Renda é 10% para qualquer classe e houve um aumento da base de arrecadação. Vera – Antigamente, se dizia nos jornais que as mulheres eram ótimas para operacionalizar, mas sempre com a chefia de um homem. Maria Cristina – Vão todos me chamar de dinossauro, mas por que não aumenta um pouco que seja o Imposto sobre Propriedade Territorial Rural (ITR)? Pedro – Esta é a primeira geração de mulheres que está chegando ao topo na imprensa. Pedro – É o imposto menos arrecadado do país. Quase ninguém paga. Inteligência – Bem, vamos tratar de assuntos mais amenos. O que podemos falar da presença majoritariamente feminina nesta mesa? Houve alguma conspirata para a tomada do poder no jornal? Além de estarem em número maior como editoras, as mulheres comandam a redação. Antigamente, quando uma tarefa era executada por um grupo de mulheres, havia um fato jornalístico. Hoje, não mais. Vera – Mas o jornal foi criado por um homem, o Celso Pinto. Quando ele se afastou, por questões de saúde, os acionistas decidiram manter a mesma equipe. 40 EDIÇÃO HISTÓRICA Claudia – Na economia, a forte presença de mulheres na redação é uma tradição que vem da Gazeta Mercantil. A maioria de nós trabalhou na Gazeta e isso inclui os homens. O Campos e o Pedro também passaram por lá. Vera – Buscamos muitas das pessoas com quem já havíamos trabalhado. A equipe tinha uma identidade no modo de pensar economia. Isso nos ajudou muito nos momentos de preparação, pois tivemos apenas três meses para montar todo o jornal. Seis anos depois, é fácil falar. Mas nas primeiras semanas, a sintonia foi fundamental. Nós olhamos um para o outro e já sabemos o que fazer. Inteligência – Então, só nos falta agora a pose para fotos! I N S I G H T 42 LUSCO-FUSCO INTELIGÊNCIA I N S I G H T INTELIGÊNCIA DANDO FORÇA AOS PARTIDOS BRASILEIROS JAIRO NICOLAU CIENTISTA POLÍTICO OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 43 I N S I G H T INTELIGÊNCIA O presidente Lula, logo no primeiro discurso como candidato eleito, prometeu (o candidato derrotado também prometia) que entre as prioridades do seu segundo mandato estaria a reforma política. Há mais de uma década ela é discutida – segundo o clichê preferido, ela seria a mãe das reformas – de maneira quase obsessiva no meio político brasileiro. Mas as coisas ficam mais complicadas quando surge a pergunta óbvia: para que fazer uma reforma política? O experimento é simples: escolha dois políticos e repita a pergunta acima. As chances de aparecerem uma lista de tópicos desconexos são altas; as de aparecerem pontos em comum são reduzidas. Por conta dessa dissonância, talvez não tenha tanto sentido falar em ser contra ou a favor da reforma política, mas muito mais em tentar responder a pergunta: reforma para quê? Em primeiro lugar é preciso demarcar o território. O debate sobre a reforma deve se concentrar em tópicos relativos ao método de escolha de representantes (sistema eleitoral) e a regulação dos partidos e das eleições. Portanto, devem estar de fora temas caros à tradição republicana brasileira, tais como o voto obrigatório, o presidencialismo, o federalismo e o bicameralismo. Ainda que existam discordâncias doutrinárias sobre esses temas entre políticos e estudiosos, eles são típicos para serem discutidos em uma Assembléia Constituinte ou decididos em consultas plebiscitárias. Tomando o termo reforma política no sentido mais restrito (de reforma partidária e eleitoral) e observando a experiência de outras democracias, a questão acima pode ser respondida de diversas maneiras. Algumas reformas eleitorais são feitas com o intuito de ampliar a representatividade. Um exemplo recente é o da Nova Zelândia, que utilizava o sistema majoritário-distrital, mas depois de duas eleições em que um partido com a segunda maior NA LEGISLATURA 2003-2007 DA CÂMARA DOS DEPUTADOS HOUVE MAIS DE 350 TROCAS DE LEGENDAS, 44 LUSCO-FUSCO I N S I G H T INTELIGÊNCIA votação ficou com o maior número de cadeiras, adotou um sistema misto com forte componente proporcional. Em outras democracias, o intuito é diminuir a fragmentação partidária (diminuindo assim a proporcionalidade). A Polônia, por exemplo, tinha uma Câmara dos Deputados altamente fragmentada; em 1993, uma cláusula de barreira de 5% foi introduzida e teve um efeito devastador sobre os pequenos partidos: 40% dos votos dados para esses partidos foram computados como votos nulos. Algumas democracias fazem reformas para ampliar a liberdade de escolha dos eleitores (A Suécia trocou a lista fechada pela lista flexível); outras para diminuir a autonomia dos eleitores e dar mais peso aos partidos (em 2006, a Itália trocou um sistema misto pela lista fechada). No Brasil, um dos maiores pecados da discussão sobre a reforma eleitoral tem sido o de não definir com clareza os seus objetivos. Assim, o debate sobre o tema é baseado em listas de propostas (muitas vezes contraditórias entre si). Uma versão radicalizada dessa tendência é a adesão a certos projetos pela sua aparente superioridade estética. Durante bom tempo, alguns defensores do sistema em vigor na Alemanha (que ganhou entre nós o curioso nome de sistema distrital-misto) pareciam se guiar somente pelo inegável charme desse modelo. Mas, de novo a pergunta: sistema alemão por que mesmo? Se reformas eleitorais devem ter objetivos; se defendo que se faça uma reforma para aperfeiçoar o sistema representativo brasileiro; logo, devo responder à pergunta: reforma para quê? Minha resposta é breve e clara: reforma para fortalecer os partidos e lhes dar um papel mais importante do que têm hoje na arena eleitoral e no processo decisório. Não se trata aqui de entrar no interminável debate conceitual sobre o que sejam partidos fracos e partidos fortes, sistemas partidários consolidados e não consolidados. Nem julgar que o sistema político REVELANDO O BAIXO COMPROMISSO DOS LEGISLADORES COM OS PARTIDOS QUE OS ABRIGAM brasileiro é caótico e os partidos não valem muita coisa. Cabe simplesmente assinalar dois pontos. O primeiro, percebido por todos que acompanham a vida política com mais atenção, é que os partidos brasileiros estão dando sinais evidentes de exaustão. Um indicador encontra-se no fato de que na legislatura 2003-2007 da Câmara dos Deputados houve mais de 350 trocas de legendas – os números ainda não estão completos, mas já superam o das legislaturas anteriores – revelando o baixo compromisso dos legisladores com os partidos que os abrigam. Durante a campanha eleitoral de 2006, outro indicador, as referências partidárias desapareceram, sobretudo na disputa para Câmara dos Deputados e Assembléias. O horário eleitoral virou um rol de apelos particularistas: da cidade x, do sindicato y, da corporação z, da religião w. O segundo ponto é que estou largamente familiarizado com as mudanças pelas quais os partidos têm passado em outras democracias (declínio da filiação, redução dos recursos financeiros derivados dos militantes, declínio do voto partidário). Não alimento a ilusão de que teremos partidos escandinavos (até por que eles estão desaparecendo até da Escandinávia). Mas creio que temos espaço para organizar um sistema partidário um pouco mais estruturado, que facilite as escolhas dos eleitores, seja mais fiel à vontade das urnas e possa produzir políticas públicas mais eficientes. Acredito que a adoção de três medidas poderia ter um impacto significativo sobre o sistema representativo brasileiro. São elas: proibição de coligação nas eleições proporcionais; adoção da lista flexível e inibição às trocas de legenda. Além dessas, mais dois tópicos complementares precisam ser discutidos com cuidado. O primeiro é uma nova legislação sobre financiamento de campanhas. O segundo, a introdução de novas regras para a eleição de suplentes de senador. Neste texto me concentro no que, creio, seja o núcleo de uma reforma política: as propostas para o fortalecimento dos partidos. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 45 I N S I G H T INTELIGÊNCIA 1. FIM DAS COLIGAÇÕES NAS ELEIÇÕES PROPORCIONAIS As premissas do sistema de representação proporcional de lista são conhecidas: a cada partido a representação na proporção de seus votos. Mas a possibilidade de coligações entre os partidos, em vigor no Brasil, produz graves conseqüências para a representação parlamentar das correntes de opinião. A análise dos resultados das eleições para deputado federal ou estadual de qualquer estado pode mostrar esses efeitos. Vejamos, por exemplo, os resultados da disputa para Câmara dos Deputados no estado de Minas Gerais, em 1998. A Tabela 1 apresenta o percentual de votos e cadeiras obtidos pelos principais partidos na disputa. Um partido (PSDB) e quatro coligações conseguiram ultrapassar o quociente eleitoral de 1,84% dos votos. Quando o percentual de votos de cada partido/coligação é comparado com o percentual de cadeiras, observase uma distribuição bastante equilibrada. Os problemas aparecem quando se analisa o desempenho de cada partido. O PSB e o PPS, com mais votos do que o PCdoB, não elegeram deputados, enquanto este elegeu um representante. O PL, apesar de ter tido menos votos do que o PTB, conquistou mais cadeiras do que este, enquanto o PPB, com votação um pouco superior ao mesmo PTB, ficou com um número mais de três vezes maior de cadeiras (sete contra duas). Em geral, as coligações tendem a favorecer os menores partidos, que, caso competissem sozinhos, teriam poucas chances de ultrapassar o quociente eleitoral. Mas os maiores partidos também se beneficiam da transferência de votos dos pequenos, a saber, quando estes não conseguem colocar os seus candidatos entre os primeiros nomes da lista dos eleitos. É justamente esse componente aleatório produzido pela regra de coligação que tem gerado graves distorções na relação entre os votos e cadeiras dos partidos. EM GERAL, AS COLIGAÇÕES TENDEM A FAVORECER OS MENORES PARTIDOS. MAS OS MAIORES TABELA 1 Distribuição de Votos e Cadeiras dos Partidos e Coligações, Eleições para a Câmara dos Deputados, Minas Gerais, 1998 Partidos/ Coligações PSDB PFL PPB PTB Total PMDB PST Total PT PDT PCdoB PSB PCB PV Total PL PPS PSL Total Outros Partidos Total % de Votos 24,4 14,9 8,5 6,5 29,9 16,6 1,6 18,2 11,5 4,0 0,6 0,8 0,1 0,2 17,2 5,2 0,9 0,0 6,1 4,2 100,0 * quociente eleitoral: 1,84% dos votos 46 LUSCO-FUSCO % de Cadeiras 26,4 15,1 13,2 3,8 32,1 17,0 1,9 18,9 13,2 1,9 1,9 0,0 0,0 0,0 17,0 5,7 0,0 0,0 5,7 100,0 Cadeiras 14 8 7 2 17 9 1 10 7 1 1 0 0 0 10 3 0 0 3 54 I N S I G H T INTELIGÊNCIA PARTIDOS TAMBÉM SE BENEFICIAM DA TRANSFERÊNCIA DE VOTOS DOS PEQUENOS Outro efeito negativo das coligações opera durante o mandato dos deputados. Parlamentares de um partido que deixam o Legislativo temporariamente (para assumir cargos no Executivo, ou por licença médica), ou definitivamente (por morte, cassação, ou para assumir prefeituras conquistadas no meio do mandato), são substituídos por suplentes de outras legendas. Como as substituições são freqüentes, a composição das bancadas partidárias se altera intensamente ao longo da legislatura. Para traduzir de maneira mais equânime a vontade do eleitor expressa nas urnas – seja na distribuição de cadeiras, seja nas substituições de titulares pelos suplentes ao longo do mandato – a melhor alternativa é simplesmente proibir a coligação nas eleições proporcionais. Os partidos poderiam continuar formando coalizões para a disputa de cargos majoritários, mas na disputa para os cargos proporcionais teria que contar com seus próprios esforços para ultrapassar o patamar de votos exigido para obter uma cadeira. 2. ADOÇÃO DA LISTA FLEXÍVEL O sistema de lista aberta em vigor no Brasil desde 1945 tem uma série de virtudes, entre elas, a liberdade de escolha (o eleitor pode votar na legenda ou escolher um candidato de qualquer lista), e a facilidade para renovação parlamentar. Por outro lado, esse modelo tem sido criticado por estimular campanhas centradas nos candidatos, em detrimento das campanhas de acento partidário. A personalização das campanhas (e consequentemente do mandato) derivaria, sobretudo, do sistema majoritário adotado para alocar as cadeiras em cada lista. Tendo que disputar com colegas da mesma legenda, os candidatos teriam fortes incentivos para pedir votos para si e reforçar características de sua trajetória que os diferenciem (lugar de moradia, religião, corporação, gênero, entre outras), e não que os assemelhem aos colegas (o pertencimento ao mesmo partido). OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 47 I N S I G H T INTELIGÊNCIA O sistema de lista flexível pode ser adotado como opção à lista aberta. Nessa versão de representação proporcional, os partidos ordenam a lista de candidatos antes das eleições, como no modelo de lista fechada, mas o eleitor pode votar em um determinado nome da lista. Caso um candidato, posicionado na parte inferior da lista, tenha um número expressivo de votos nominais ele pode se eleger. Creio que a lista flexível seja uma boa opção para o Brasil, pois reforça a importância dos partidos na arena eleitoral, sem tirar do eleitor a possibilidade de votar em um determinado candidato. Até onde eu saiba, até hoje nenhum projeto de adoção da lista flexível foi apreciada no Congresso Nacional. Como acredito que pode ser uma alternativa para o aperfeiçoamento da representação proporcional no Brasil, apresento uma proposta de como poderia funcionar. Em linhas gerais, a principal mudança seria na contagem dos votos de legenda que passariam a ser transferidas para os primeiros nomes da lista: 1. Os partidos apresentam aos eleitores uma lista de candidatos em ordem de preferência. Para tornar o processo de organização da lista mais democrático, a legislação pode garantir que a escolha dos nomes seja feita pelo voto secreto dos delegados nas convenções partidárias; e que a posição dos nomes na lista seja definida proporcionalmente aos votos de cada chapa que disputar a convenção partidária. 2. Os eleitores continuam votando em um nome da lista ou na legenda 3. O total de votos obtido por um partido (nominal mais legenda) é dividido pelo número de cadeiras que o partido elegeu, obtendo-se uma quota. 4. Os votos de legenda são transferidos para o primeiro nome da lista até que este atinja a quota. Os votos em excesso são transferidos para o segundo candidato, e assim sucessivamente. A PRINCIPAL VANTAGEM DA LISTA FLEXÍVEL SERIA A DE FORTALECER OS PARTIDOS SEM 48 LUSCO-FUSCO I N S I G H T INTELIGÊNCIA 5. Caso um candidato obtenha uma votação nominal superior à quota, ele tem prioridade na lista de eleitos. O exemplo hipotético abaixo ilustra como quatro cadeiras obtidas por um partido seriam alocadas para os candidatos de uma lista no modelo flexível. Os 15 candidatos do partido somados obtiveram 180.000 votos, e o partido obteve mais 20.000 votos de legenda, perfazendo um total de 200.000 votos. O total de votos (200.000) seria dividido por quatro (as cadeiras eleitas) encontrando-se a quota de 50.000 votos. Os votos de legenda seriam transferidos para o primeiro nome da lista até que ele atingisse a quota. No exemplo, o candidato 1 receberia mais 10.000 votos. Os votos de legenda remanescentes seriam transferidos para o segundo da lista, que receberia 10.000 votos. A primeira cadeira seria alocada para o candidato 8, que obteve 55.000 votos nominais. A segunda iria para o candidato 1, que obteve 50.000 votos (40.000 nominais + 10.000 de legenda transferidos). A terceira iria para o candidato 5 com 32.000 votos nominais. A última cadeira seria conquistada pelo candidato 2 com 22.000 votos (12.000 nominais + 10.000 de legenda transferidos). O exemplo é demonstrado na Tabela 2. Na prática, quanto mais eleitores votem na legenda, mais o sistema se aproxima de um sistema de lista fechada. Na situação oposta, com altos contingentes de votos nominais, o sistema se aproximaria do modelo de lista aberta vigente. A principal vantagem da lista flexível seria a de fortalecer os partidos, sem privar os eleitores da possibilidade de votar em candidatos individuais. Com a apresentação da lista ordenada, os partidos provavelmente teriam forte incentivo para paulatinamente concentrar a campanha na reputação do partido, num esforço de diferenciação com outras legendas. PRIVAR OS ELEITORES DA POSSIBILIDADE DE VOTAR EM CANDIDATOS INDIVIDUAIS TABELA 2 Distribuição de cadeiras em um sistema de lista flexível Candidato 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 12 13 14 15 Legenda Total Votos 40.000 12.000 15.000 10.000 32.000 1.000 2.000 55.000 1.500 1.000 500 18.000 500 1.000 20.000 200.000 Transferências do Voto de Legenda 10.000 10.000 Total 50.000 22.000 15.000 10.000 32.000 1.000 2.000 55.000 1.500 1.000 500 18.000 500 1.000 Situação 2° Eleito 4° Eleito 3° Eleito 1° Eleito OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 49 I N S I G H T INTELIGÊNCIA 3. INIBIÇÃO ÀS TROCAS DE LEGENDA Uma marca do atual ciclo democrático brasileiro é a intensidade com que a elite política troca de partidos. Em cada legislatura da Câmara dos Deputados cerca de um terço dos deputados abandona o partido pelo qual foi eleito. As trocas já estão absolutamente naturalizadas, e não espantam mais os analistas e nem preocupam os eleitores. A política partidária não pode ser congelada. Por isso, políticos trocam de legenda no mundo inteiro. Facções saem de um partido e formam novas legendas; partidos se fundem; dissidentes abandonam um partido por diversas razões. Os problemas das trocas partidárias no Brasil são a intensidade e a permanência do fenômeno. Chegamos a acreditar que elas cessariam após a reacomodação natural dos primeiros anos de regime democrático. Mas isso não aconteceu. No Brasil, as mudanças de legenda passaram a ser vistas como uma simples idiossincrasia da carreira política, quase um problema pessoal dos políticos: alguns trocam, outros não. O que se esquece é que elas têm produzido um profundo descolamento entre a decisão dos eleitores nas urnas e a representação parlamentar. Nos sistemas representativos modernos, eleições servem para definir a distribuição de poder em termos partidários. Votos são contados e fórmulas mobilizadas com este intuito. Ora, de que adianta todo esse cuidado se a distribuição de poder definida pelos eleitores nas eleições dura apenas horas? Partidos derrotados nas urnas são fortalecidos pelas trocas. Partidos vitoriosos podem ver suas bancadas minguarem ao longo do mandato. Obviamente, as mudanças de partido podem ser funcionais tanto para o chefe do Executivo (que pode ampliar sua bancada atraindo parlamentares individuais para a base governista), bem como para os políticos UM TERÇO DOS DEPUTADOS ABANDONA O PARTIDO PELO QUAL FOI ELEITO (que maximizam as oportunidades de carreira). Mas da perspectiva dos eleitores elas são um desrespeito. Por essa razão, alguma medida deve ser introduzida para inibir a migração partidária. Creio que a mais eficiente seria ampliar o prazo de filiação partidária. Atualmente o prazo mínimo de filiação para poder concorrer em uma eleição é de um ano. A ampliação desse prazo para dois anos, por exemplo, provavelmente já inibiria grande número de trocas. Um político que concorreu por um partido nas eleições gerais teria que concorrer pelo mesmo partido nas eleições municipais. E assim sucessivamente. Minha impressão é a de que essas três medidas (todas aprovadas por legislação ordinária) poderiam dar maior vitalidade aos partidos e maior estabilidade ao sistema partidário. O fim das coligações daria maior importância ao partido como unidade eleitoral, e conferiria mais estabilidade às bancadas no Legislativo, já que os suplentes passariam a ser do mesmo partido do titular. A lista flexível poderia fortalecer os partidos durante as eleições (incentivo para o voto partidário) e no período entre uma eleição e outra (incentivo ao trabalho partidário e convenções decisivas). O fim (ou pelo menos a redução acentuada) da migração partidária poderia ampliar os vínculos dos eleitores com os partidos. Esses três pontos podem parecer pouco ambiciosos para os que acreditam na necessidade de uma reforma política radical. Mais modesto, o propósito aqui foi tentar responder à pergunta fundamental feita logo no primeiro parágrafo: reforma para que? Reforma para fortalecer partidos. Este objetivo é factível e as medidas sugeridas são apropriadas. [email protected] 50 LUSCO-FUSCO 52 AURORA Do poder em dose d a l p u RACHEL MENEGUELLO CIENTISTA POLÍTICA OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 53 I N S I G H T H go lon a l ad o vê m , cia cra mo s de do em o çã jov ia ssa al no av de de lad o es ic go ve rn os índ AURORA os 54 cos foram fundamentais para as bases de legitimação e funcionamento dos novos regimes (LEWIS-BECK, 1988; REMMER, 1993; MENEGUELLO, 1995; ECHEGARAY, 1995; 2005). Esses processos constituíram eventos politizadores através de políticas econômicas, e criaram níveis de identificação política, definiram parâmetros de avaliação de governos e estabeleceram clivagens definidas pela ação de lideranças. O caso brasileiro traduz bem esse processo. Já no início do regime democrático, estudos identificavam nas referências de expectativa de bem-estar e busca dos patamares mínimos de sobrevivência as bases da concepção constituída e esperada de democracia. A tarefa de enfrentar os problemas econômicos se transformou numa das maiores demandas da população, definindo um dos pilares do apoio político ao regime. Na mesma direção, a percepção sobre o desempenho da sucessiva onda de im- Ao á várias questões pouco exploradas sobre a rotina política de nossa democracia. Uma delas diz respeito às determinantes do comportamento. Em geral, quando se trata das perspectivas eleitorais dos governantes, o pressuposto das análises é que, se a economia anda bem, o governo tem sucesso nas urnas. De fato, nossa experiência recente mostra que o curso das ações econômicas dos governantes tem impacto certo sobre suas possibilidades políticas, mas o que não sabemos a fundo é qual dimensão da economia tem mais relevância sobre a avaliação e aprovação das gestões: se o controle da inflação, a perspectiva de emprego, ou a percepção dos níveis de renda. O fato é que ao longo de nossa jovem democracia, os índices de avaliação dos governos vêm caminhando lado a lado dos índices de percepção econômica dos cidadãos, e as expectativas positivas sobre o controle do desemprego e inflação durante o governo Lula parecem preencher um lugar definitivo na avaliação de seu desempenho. Sabemos que a composição das preferências políticas é múltipla, e que os valores da política e da democracia contam para a avaliação do desempenho dos governantes. Mesmo assim, olhando o caso da democratização brasileira, os referenciais econômicos cotidianos e gerais dos cidadãos parecem ter proeminência nesse processo. Essa não é uma tendência nova. Parâmetros econômicos, como o controle inflacionário e as tendências de melhoria de renda e emprego, tiveram papel central no conjunto de expectativas de democratização dos países da América Latina no início dos anos 80. No período da transição, tratava-se de superar cenários marcados pela depressão generalizada, depreciação dos indicadores de crescimento e o déficit social herdado dos regimes autoritários anteriores. Com isso, o terreno predominante das preferências e escolhas políticas constituiuse na embocadura da avaliação das políticas econômicas e da perspectiva de estabilização monetária. Os estudos sobre democratização mostram que as experiências de recuperação econômica nesses novos cenários tiveram influência significativa sobre o processo de formação de preferências dos cidadãos e indicam que ao lado dos processos políticos, os processos socioeconômi- INTELIGÊNCIA ca m in do ha per s í nd cep n dic ção o eco es nôm de ica dos cid adãos I N S I G H T INTELIGÊNCIA GRÁFICO 1 Evolução do grau de confiança no presidente da República (1989-1993) Brasil (%) COLLOR SARNEY 84 74 72 ITAMAR 68 64 62 67 48 47 38 46 46 ab r/ 93 92 ja n/ 93 ou t/ ju l/ 92 12 ab r/ 92 ja n/ 92 91 91 ou t/ ju l/ ab r/ 91 ja n/ 91 90 ou t/ 90 ju l/ ab r/ 90 confia não confia ja n/ 90 89 ou t/ 89 27 31 22 18 ju l/ ab r/ 89 21 Fonte: dados do Ibope - Banco de Dados do Cesop/Unicamp Pergunta: “Vou ler o nome de alguns órgãos, instituições e pessoas e gostaria que o(a) sr.(a) me dissesse se, de uma maneira geral, confia ou não confia no presidente da república?”. plantação dos planos no governo Sarney – Cruzado (1986), Bresser (1987) e Choque Verão (1989) – e, em seguida, no governo Collor – Brasil Novo (1990) –, condicionando as oscilações nos níveis de prestígio dos governos. Os índices de confiança no presidente Sarney, no último ano de governo, e de Collor, mesmo no período anterior ao processo de impeachment iniciado em meados de 1992, sugerem o claro impacto das frustrações da população com os fracassos dos planos implementados, e foi com esse clima de recepção desconfiada que a população recebeu as primeiras ações econômicas de Itamar Franco em 1993 (Gráfico 1). De fato, em pesquisa nacional realizada em junho de 1993, 49% da população consideravam que o Plano de Ação do então ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso tinha pouca ou nenhuma chance de dar certo. Mas seria em 1994, com a implantação do Plano Real, que se fortaleceria a tendência de associação das preferências públicas pela manutenção do cenário de estabilização e possibilidades de crescimento econômico às avaliações do governo. Com a implementação do plano de estabilização de julho de 1994 ocorreram mudanças favoráveis nos níveis de atividade econômica e de renda no Brasil, marcando de forma positiva a transformação do quadro de pobreza do país. Entre 1993 e 1995, a proporção de pobres passou de 44% (62,6 milhões de pessoas) em 1993 para 33,3% (49 milhões de pessoas) em 1995. Como um fenômeno geral, afetando todos os estratos de residência e regiões do país, marcou um substancial crescimento da renda per capita nesse período. Entre 1994 e 1995 houve uma evolução significativa do produto nacional, chegando a 8,29% no segundo trimestre de 1995, e marcando muito positivamente o primeiro período do primeiro mandato do presidente Fernando Henrique. É fato que o modelo brasileiro desenvolvido trouxe um crescimento econômico acompanhado de uma das mais desiguais relações de distribuição de renda. No entanto, esse período apresenta um aumento de consumo de produtos básicos pelos estratos mais pobres, e ampliou de forma significativa o acesso ao mercado de segOUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 55 I N S I G H T INTELIGÊNCIA GRÁFICO 2 Evolução da Avaliação Positiva do governo FHC e do Plano Real (%) Brasil (Janeiro/95 a Dezembro/02) 75 69 71 64 61 Avaliação positiva do Plano Real 54 47 34 36 40 41 39 37 31 31 32 17 20 20 39 45 44 40 38 42 35 16 16 20 25 26 19 22 21 42 44 28 29 41 26 ja n/ 95 ju n/ 95 de z/ 95 ju n/ 97 de z/ 97 ju n/ 98 de z/ 98 fe v/ 99 ju l/ 99 no v/ 99 fe v/ 0 m 0 ai /0 0 ag o/ 00 de z/ 00 m ar /0 1 ju n/ 01 se t/ 01 de z/ 01 m ar /0 2 ju n/ 02 de z/ 02 Avaliação positiva de FHC 34 38 Fonte: Pesquisas Nacionais Instituto Datafolha - Banco de Dados do Cesop/Unicamp Perguntas: “Como você avalia o desempenho de FHC?”; ‘Como você avalia o desempenho do Plano Real?” (avaliação positiva é a soma das respostas ‘ótimo e bom’) mentos antes marginalizados (HOFFMAN, 2001). Este será um componente central do capital político da Presidência da República no período, estabelecendo os patamares de apoio e aprovação governamental. As possibilidades distributivas do Plano Real se esgotariam já em 1996, em uma tendência de declínio que marcou todo o período até o início de 1999, coincidindo com o término do primeiro mandato de FHC (ROCHA, 1996 e 2000). Apesar disso, os cinco anos de experiência de estabilização haviam proporcionado uma ruptura com um período sem controle da inflação e tiveram um importante impacto positivo sobre as possibilidades de consumo da população em geral, e em específico dos estratos mais pobres. Os quatro anos do primeiro governo FHC promoveram uma experiência de estabilidade monetária desconhecida de várias gerações de brasileiros e, mesmo sem estar atrelado a uma política de desenvolvimento capaz de produzir e enraizar as bases dessa estabilidade, o governo foi capaz de produzir um alto grau de popularidade presi56 AURORA dencial baseada na avaliação prospectiva da melhora global do país, do fim da inflação e do aumento relativo do poder de compra. Estes fatores foram traduzidos em expectativas de desempenho futuro que garantiram a reeleição do presidente em 1998. Dados de pesquisas de opinião ilustram a sintonia entre o aumento do apoio a Fernando Henrique e a popularidade do Plano Real, indicando um movimento claramente combinado entre as duas avaliações. As pesquisas mostraram em 1994 que, ao lado do recém-bem-sucedido plano econômico, a vitória de Fernando Henrique foi sustentada em boa medida pela expectativa econômica positiva. Da mesma maneira, a evolução das preferências para a campanha de 1998 foi conduzida em boa parte pela avaliação do Plano Real e pela manutenção da política de estabilização monetária, praticamente repetindo os parâmetros da escolha de 1994 (Gráfico 2). Essa relação simbiótica entre as tendências de avaliação do desempenho presidencial e do desempenho do pla- I N S I G H T mercado de trabalho, como as transformações da oferta e demanda de trabalho e os aumentos reais do salário mínimo, e às redes de proteção social, como os programas de transferência de renda, com destaque ao ‘Bolsa Família’ (SOARES, 2006). Além do impacto dos programas sociais na redução da miséria, atingindo 19,18% entre 2003 e 2005, e na redução da pobreza, atingindo uma proporção de 22,7% em 2005 e 21,9% em 2006, houve a partir de 2004 um importante crescimento da renda média dos brasileiros, chegando a 6,6% em 2005. Os segmentos mais pobres foram os mais beneficiados, com acréscimos de renda de 8,6%, os setores intermediários, com acréscimos de 5,7%, e para os mais ricos, 6,9% (NERI, 2006). A e r d rti pa im po rta e , 04 20 nt cr m en to da um do s nto br for as sm am ile os m ais iro ais po ben s. br efic e s iado com a s, créscim o de 8 ,6% me e uv ho ia m éd seg ci Os es re nd a no de estabilização marcou as percepções da população em geral sobre o governo no período entre 1995 e 2002. Em artigo sobre dimensões explicativas das motivações do voto em eleições presidenciais, Balbachevsky e Holzhacker (2004) apontam que a partir de 1994, com o impacto que o Plano Real teve sobre as expectativas de performance do presidente da República, delineou-se um padrão de escolha no qual a dimensão do desempenho passado do candidato e as expectativas sobre suas realizações futuras predominaram como conteúdo estratégico do voto. As autoras apontam ainda que em 2002, segundo os dados do Eseb (Estudo Eleitoral Brasileiro), a candidatura do PSDB não conseguiu ver transferida para si a mobilização da grande parcela do eleitorado associado às motivações pelo desempenho, descredenciando-se frente ao eleitorado, portanto, a receber as expectativas de realização de benefícios, formadas com base na avaliação retrospectiva de governo. O artigo indica ainda que, segundo a pesquisa, em 2002 a vitória de Lula teve na forte identidade do eleitorado com o candidato a principal motivação do voto. Este capital político será o diferencial de Lula no seu conjunto de possibilidades eleitorais em 2006. A decisão do eleitor depende de motivações variadas, mas, no caso da eleição presidencial de 2006, economia e adesão política parecem ter sido os vetores principais. A ascensão de um ex-operário à Presidência, ex-líder sindical do movimento de vanguarda do sindicalismo, líder do principal partido de esquerda do país, um cidadão com escolaridade mínima legitimado por mais de 52 milhões de votos, trouxe para grande parte da população um forte sentimento de identidade e pertencimento às mudanças preconizadas pelo novo governo. O capital político inicial de Lula traduziu-se em altos índices de aprovação de desempenho já nos primeiros meses de governo, mesmo sem que houvesse um agente de estabilidade similar ao Plano Real para compor o binômio popularidade/desempenho econômico. No âmbito econômico, o período de quatro anos de governo apresentou indicadores modestos de crescimento, mas abrigou uma importante queda na desigualdade da distribuição de renda, resultante da fatores associados ao INTELIGÊNCIA OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 57 I N S I G H T INTELIGÊNCIA GRÁFICO 3 Evolução das expectativas de aumento de inflação e desemprego e avaliação do governo Lula (2003-2006) Brasil (%) 61 54 56 49 51 43 55 47 43 41 42 40 40 52 54 43 52 53 53 47 55 48 44 45 41 34 51 38 45 39 38 45 42 42 35 36 31 29 37 35 28 41 36 28 30 27 Avaliação positiva do governo Lula set/06 jul/06 mai/06 mar/06 jan/06 nov/05 set/05 jul/05 mai/05 mar/05 jan/05 nov/04 set/04 jul/04 mai/04 mar/04 jan/04 nov/03 set/03 jul/03 mai/03 mar/03 expectativa de aumento inflação expectativa de aumento desemprego Fonte: Pesquisas Nacionais do Ibop - Banco de Dados do Cesop/Unicamp Perguntas: “Na sua avaliação, o Governo do Presidente Lula está sendo: Ótimo, Bom, Regular, Ruim ou Péssimo?” (avaliação positiva é a soma das respostas ‘ótimo’ e ‘bom’); “Levando em conta a situação do País nos últimos seis meses, na sua opinião a inflação / o desemprego vai aumentar, vai diminuir, ou não vai mudar nos próximos seis meses?”. Dados de pesquisas de opinião mostram que esses indicadores foram percebidos pela população e tal como no período anterior, acompanharam a avaliação governamental. Tanto para a evolução das expectativas de aumento da inflação quanto de desemprego, os dois momentos de destaque são o período inicial do governo Lula, quando as proporções de expectativa de aumento têm uma forte queda, traduzindo o grau de confiança no novo período, e o momento final do governo, em meados de 2006, já durante a campanha eleitoral para a Presidência, que refletiu a melhora dos indicadores econômicos e apontou as perspectivas positivas para um quadro de reeleição. O mesmo ocorre com as percepções sobre o aumento da renda geral e pessoal da população, que claramente acompanham as oscilações de avaliação de governo e chegam no segundo semestre de 2006 traduzindo o crescimento real indicado (Gráficos 3 e 4). 58 AURORA No âmbito das avaliações propriamente políticas, os dados de pesquisas do período traduzem um notável apoio popular ao presidente da república. Durante quase todo o governo, o grau de confiança no presidente manteve patamares altos de apoio, acima de 50% e, as altas proporções de confiança são estreitamente acompanhadas pela aprovação da forma de Lula governar. É um dado impressionante a manutenção de índices significativos de confiança, com proporções entre 43% e 44%, no período da crise política de 2005 que envolveu o PT, com denúncias de corrupção atingindo diretamente o governo. Em 2006, a confiança no presidente voltou a recuperar os índices anteriores, e já no período da campanha eleitoral em setembro, logo anterior ao primeiro turno, atingiu 58% da população (Gráfico 5). Além do forte apoio popular, há dados que apontam uma significativa adesão política ao presidente, observada I N S I G H T INTELIGÊNCIA GRÁFICO 4 Evolução das expectativas de aumento de renda geral e renda pessoal e avaliação do governo Lula (2003-2006) Brasil (%) Avaliação positiva do governo Lula 51 43 45 43 41 41 39 38 35 26 32 41 29 30 32 31 31 29 31 31 28 24 24 23 21 26 23 25 22 31 26 23 28 39 28 29 28 25 28 27 38 35 34 33 27 19 set/06 jul/06 mai/06 mar/06 jan/06 nov/05 set/05 jul/05 mai/05 mar/05 jan/05 nov/04 set/04 jul/04 mai/04 mar/04 jan/04 nov/03 set/03 jul/03 mai/03 mar/03 expectativa de aumento de renda geral expectativa de aumento de renda pessoal Fonte: Pesquisas Nacionais do Ibop--Banco de Dados do Cesop/Unicamp Perguntas: “Na sua avaliação, o Governo do Presidente Lula está sendo: Ótimo, Bom, Regular, Ruim ou Péssimo?” (avaliação positiva é a soma das respostas ‘ótimo’ e ‘bom’); “Levando em conta a situação do País nos últimos seis meses, na sua opinião sua renda geral / sua renda pessoal vai aumentar, vai diminuir, ou não vai mudar nos próximos seis meses?”. a partir da recuperação voto na eleição presidencial de 2002. Dados de pesquisa nacional realizada em junho de 20061 mostravam uma notável manutenção da identificação do eleitorado de Lula entre os dois pleitos presidenciais: 49,9% dos eleitores entrevistados consideravam que Lula deveria ser reeleito em 2006 e, desses, 64,7% haviam sido eleitores de Lula em 2002. A mesma pesquisa indica que o apoio à reeleição vinha associado à avaliação positiva geral do governo e avaliações positivas da condição econômica própria e do país, e sobretudo, às suas expectativas de melhora. Para os que afirmaram que Lula deveria ser reeleito: • 80,9% avaliaram o governo como ótimo e bom; 1. Pesquisa A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas, José Álvaro Moisés e Rachel Meneguello, DCP/USP e Cesop/ Unicamp . Pesquisa nacional com 2.004 eleitores, realizada em junho de 2006 no âmbito do Projeto Temático Fapesp 04/07952-8. • 62,8% avaliaram a situação econômica do país como ótima e boa, ampliando para 80,2% aqueles com expectativa de melhora no próximo ano; • 55,3% avaliaram a situação econômica própria como ótima e boa, ampliando para 84% os que têm expectativa de melhora em 2007. Os dados também indicam que esta adesão tem um componente partidário. Observou-se uma importante potencial capacidade de o Partido dos Trabalhadores manterse como referência de identificação partidária, em um cenário de profunda fragilidade da relação entre eleitores e partidos, e em uma campanha marcada pela desaparição quase completa da militância petista: dos 25% de entrevistados que afirmavam alguma proximidade com os partidos políticos, 51% se identificavam com o PT. Mais ainda, apesar da grave crise institucional do partido, e do distanciamento que o próprio Lula impôs para equacionar a criOUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 59 I N S I G H T INTELIGÊNCIA GRÁFICO 5 Evolução da Aprovação à forma de governar e do Grau de Confiança no presidente Lula (2003-2006) Brasil (%) 76 70 69 75 70 69 66 54 51 58 55 63 62 60 58 55 56 45 55 44 43 42 53 60 56 62 58 m ar /0 m 3 ai /0 3 ju l/ 03 se t/ 03 no v/ 03 ja n/ 0 m 4 ar /0 4 m ai /0 4 ju l/ 04 se t/ 04 no v/ 04 ja n/ 0 m 5 ar /0 5 m ai /0 5 ju l/ 05 se t/ 0 no 5 v/ 05 ja n/ 0 m 6 ar /0 m 6 ai /0 6 ju l/ 06 se t/ 06 confiança no Presidente aprovação do governo Fonte: Pesquisas Nacionais do Ibop - Banco de Dados do Cesop/Unicamp Perguntas: “O (A) sr(a). confia ou não no presidente Luiz Inácio Lula da Silva?”(respostas ‘sim’); “O sr.(a) aprova ou desparova a maneira como o Presidente Lula vem governando o Brasil?” (respostas ‘aprova’) se política, essa ainda é uma referência fortemente associada ao presidente: dos 49,9% dos entrevistados que apoiavam a reeleição de Lula, 72% afirmavam alguma proximidade ou identidade com o PT. Este é um dado importante e merece maior estudo. Nossos anos democráticos levaram a que as eleições presidenciais se tornassem o principal evento de mobilização e expressão política das demandas coletivas do eleitorado e as possibilidades políticas dos governantes residem nas estratégias de ocupação desse espaço. O pleito de 2006 teve a liderança do presidente Lula nas intenções de voto na totalidade da campanha, feita em dois turnos. Este dado global fornece uma medida da reação positiva às ações de governo, revela a permeabilidade do Estado à sociedade e suas demandas, e corrobora a influência exercida pela expectativa dos ganhos e benefícios advindos do desempenho governamental sobre as preferências eleitorais. Adicionem-se a isso os dados de apoio político que dão a dimensão da adesão ao presidente-candidato, e temos aqui uma idéia do conteúdo estratégico do voto em 2006. [email protected] 60 AURORA REFERÊNCIAS BALBACHEVSKY, Elisabeth & HOLZHACKER, Denilde. 2004. “Identidade, oposição e pragmatismo: O conteúdo estratégico da decisão eleitoral em 13 anos de eleições”. Opinião Pública, vol.10, nº2. ECHEGARAY, Fabián. 1995. “Voto Econômico ou Referendum político? Os determinantes das eleições presidenciais na América Latina-1982-1994”. Opinião Pública, vol.3, nº2. ___________________ 2005. Economic Crises and Electoral Responses in Latin America, Maryland, Univ.Press of America.HOFFMANN, Rodolfo. 2001.”A distribuição da renda no Brasil no período 1993-99", mimeo, Unicamp LEWIS-BECK, Michael .1988.Economics and Elections, Ann Arbor:Univ.of Michigan Press MENEGUELLO, Rachel. 1995.”Electoral Behavior in Brazil: the 1994 presidential elections”, International Social Science Journal, n.146 NERI, Marcelo (coord.) . 2006. Miseria, Desigualdade e Estabilidade. O Segundo Real. Rio de Janeiro, FGV. REMMER, Karen.1993. “The Political Economy of Elections in Latin America, 1980-1991”, American Political Science Review, vol.87, n.2, jun. ROCHA, Sonia. 1996. “Pobreza no Brasil: fatos básicos e implicações para a política nacional”, in Economia e Sociedade, Unicamp/ Campinas, nº6, jun. ——————————— . 2000. “Pobreza e Desigualdade no Brasil: O esgotamento dos efeitos distributivos do Plano Real”, mimeo, Brasília:Ipea SOARES, Sergei S. D. 2006. “Distribuição de Renda no Brasil de 1976 a 2004 com ênfase no período entre 2001 e 2004”, Textos para Discussão, nº1166, Brasilia, Ipea 62 ÀS ESCURAS AS SAS I U Q PES ELEIT ORAIS INDICAM QUE I A V L A T O NA CAIR ENTRE 20 E 30 O R B M E DE DEZ EIDA ALBERTO ALM CIENTISTA POLÍTICO OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 63 I N S I G H T T oda eleição se parece quando as pesquisas eleitorais são temas de debate. Elas erram, elas erram, é o bordão principal! Aqueles que ficam com mais votos nas urnas do que nas pesquisas denunciam uma suposta manipulação para prejudicá-los. Em particular quando “aqueles” designa um candidato que ficou em segundo lugar. Suspeitas não-provadas circulam como verdades. Há de tudo: candidato que contrata um instituto de pesquisa local para conferir um outro instituto, os que presenciaram uma negociação duvidosa, os que afirmam terem visto eleitores mudando de voto por causa das pesquisas etc. Qualquer que seja a estória, a conclusão é uma só: as pesquisas erram, e muito. No terreno da técnica, o mundo dos estatísticos, a crítica recai sobre a amostra. No Brasil não se utiliza a amostra probabilística, mas sim a amostra por cotas. Neste caso, tomam-se os dados censitários do Censo do IBGE, ou amostrais da PNAD, e se projeta para a população uma amostra que seja proporcional a sexo, idade, escolaridade, região e outras variáveis consideradas importantes para o voto. Os estatísticos estão certos, salvo por um detalhe, a amostra probabilística é muito cara e não haveria clientes para ele. Ou se faz a amostra probabilística sem fazer pesquisas, ou se faz pesquisas sem fazer amostra probabilística. E a escolha é entre o INTELIGÊNCIA mal menor. Apesar disso, cabe a pergunta: quantas pesquisas caíram fora da margem de erro? Este texto aborda a eficácia das pesquisas feitas no Brasil comparando seus resultados com os respectivos resultados eleitorais. São avaliadas as que foram publicadas antes das eleições e também as de boca-de-urna. Mais de 550 estimativas de pesquisas são confrontadas com os resultados eleitorais em 1986, 1988, 1989, 1990, 1994, 1996, 1998, 2000 e 2002. Exatas 562 pesquisas foram confrontadas com as revelações das urnas. Sem exceção, todas foram publicadas. Destas, 41% foram pesquisas feitas por um instituto (Tabela 1), 35% por um outro instituto e 24% por um terceiro instituto. O número de pesquisas é crescente com o passar dos anos. Poucas foram feitas na década de 1980 (Tabela 2), a maior parte na década de 1990, e um grande número na ainda inconclusa primeira década do século XXI. Convencionou-se, para efeito deste texto, denominar “pesquisas de prognóstico” as realizadas antes dos pleitos, e pesquisas de boca-deurna as levadas a cabo após o eleitor depositar seu voto. A rigor, só se pode esperar que caiam dentro da margem de erro as pesquisas de boca-de-urna, já que a cabeça do eleitor pode mudar antes dele entrar na cabine de votação – 24% do total de pesquisas aqui avaliadas são deste tipo. As demais foram realizadas antes das eleições. TABELA 1 Pesquisas por instituto Instituto A Instituto B Instituto C Total Numero de pesquisas 232 197 133 562 % 41 35 24 100 Numero de pesquisas 1 41 6 40 115 76 110 67 106 562 % 0,2 7 1 7 21 14 20 12 19 100 Numero de pesquisas 430 132 562 % 77 24 100 TABELA 2 Pesquisas por ano 1986 1988 1989 1990 1994 1996 1998 2000 2002 Total TABELA 3 Pesquisas por tipo Prognóstico Boca de urna Total 64 I N S I G H T A maior parte visava acompanhar a disputa para governador – 220 consultas, ou 39% do total – seguida das pesquisas para prefeito, senador e presidente (Tabela 4). Considerou-se pesquisa de primeiro turno e turno único, além daquelas feitas para este turno de uma eleição prevista para acontecer em duas rodadas, também as pesquisas para eleições de senador e de prefeitos de cidades com eleição em apenas um turno (Tabela 5); estas constituem a grande maioria, 457 pesquisas ou 81% do total. Foram 105 pesquisas de segundo turno, equivalentes a 19% do total. Sudeste e Nordeste são os campeões de pesquisa, juntos totalizando 60% do total – 35% para o Sudeste e 25% no Nordeste (Tabela 6). Sul e Centro-Oeste ficam próximos – 17% das pesquisas executadas na primeira região e 13% no Planalto Central do Brasil. O Norte, menos populoso e desenvolvido, e também em função de sua logística que encarece as pesquisas, soma apenas 7% do total de pesquisas. Enquanto, a cada quatro anos, disputam-se 27 eleições para governos estaduais e senadores e apenas uma para presidente, é compreensível que somente 4% das pesquisas analisadas sejam para a disputa do mandatário máximo da nação. Os três estados do Sul, o Distrito Federal e os três principais estados do Sudeste concentram o maior número de pesquisas (Tabela 7). Eles são seguidos dos três maiores estados nordestinos, Bahia, Pernambuco e Ceará, além de Goiás. Depois dos estados, os mais premiados com as informações das pesquisas foram os eleitores das cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Somando-se às pesquisas nacionais, temos aí praticamente 60% das 562 pesquisas avaliadas. As pesquisas de boca-de-urna, mais as feitas no dia anterior e dois dias antes da eleição, chegam a 75% de todas as que foram estudadas (Tabela 8). Quando se aumenta um pouco, para cinco dias, a distância entre a pesquisa e a eleição, tem-se quase 90% de todas as pesquisas avaliadas. INTELIGÊNCIA TABELA 4 Pesquisas por cargo Numero de pesquisas 220 137 184 21 562 Governador Senador Prefeito Presidente Total % 39 24 33 4 100 TABELA 5 Pesquisas por turno da eleição Segundo turno Primeiro turno e turno único Total Numero de pesquisas 105 457 562 percentual 19 81 100 TABELA 6 Pesquisas por região do país Sul Sudeste Nordeste Centro-Oeste Norte Brasil Total Numero de pesquisas 96 197 140 71 37 21 562 percentual 17 35 25 13 7 4 100 TABELA 7 Pesquisas por estados e cidades SP RJ MG DF SC RS PR PE BA CE GO São Paulo Rio de Janeiro Belo Horizonte Brasil Total parcial Numero de pesquisas 32 31 28 27 26 26 23 20 20 19 16 13 13 13 21 328 percentual 6 6 5 5 5 5 4 4 4 3 3 2 2 2 4 58 TABELA 8 Número de dias entre a pesquisa e a eleição 0 1 2 3 4 5 Total parcial Total geral Numero de pesquisas 133 163 127 26 26 25 500 562 percentual 24 29 22 5 5 4 89 100 OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 65 I N S I G H T INTELIGÊNCIA VIVA O PRIMEIRO COLOCADO! ELE TEM MAIS VOTOS NA PESQUISA DO QUE NA URNA Discrepância não é erro. Em cada uma das 562 pesquisas foi medida a distância entre ela e o resultado eleitoral. Em 1998, no Ceará, um dia antes da eleição, uma pesquisa indicou que Tasso Jereissati teria 13 pontos percentuais a mais do que acabou tendo nas urnas (Tabela 9). Na pesquisa, o segundo colocado ficou cinco pontos percentuais acima e o terceiro colocado quatro pontos percentuais abaixo das urnas1. Os “sem candidato” – que incluem, na pesquisa, brancos, nulos e indecisos e, nas urnas, apenas os brancos e nulos – saíram muito diferentes: foram 9% na pesquisa e 24% nas urnas. Uma diferença de 15 pontos percentuais2. Desprezando-se o sinal de positivo e negativo, e somando-se tudo, tem-se que a discrepância desta pesquisa em relação ao resultado foi de 37 pontos percentuais (Tabela 9). Tabelas idênticas às Tabelas 9, 10 e 11 foram construidas para as 562 pesquisas, e para cada uma delas foi calculada a soma das discrepâncias entre pesquisa e voto, as chamadas “discrepâncias absolutas”, isto é, sem o sinal de negativo. Deve ser notado que este método de análise objetiva apenas avaliar comparativamente o desempenho das pesquisas por ano, cargo, tipo de pesquisa etc. Isto é, o objetivo principal não é detectar quais e quantas pesquisas caíram dentro ou fora da margem de erro estatístico. As Tabelas 9 a 11 expõem uma importante descoberta: há um padrão de erro que é subestimar os brancos e nulos e superestimar o percentual do primeiro colocado, independentemente de sua coloração partidária3. Por exemplo, na eleição em que disputou e venceu em Pernambuco, o esquerdista Miguel Arraes também foi superestimado pelas pesquisas. Os votos brancos e nulos, apesar de não serem considerados pela legislação eleitoral votos válidos, têm importância do ponto de vista científico. No jargão técnico, são um parâmetro a ser estimado por uma pesquisa, assim como são parâmetros as votações dos candidatos. 1. Os candidatos que tinham percentuais menores que 5% nas pesquisas tiveram seus percentuais somados e foram renomeados como “outros”, e esta soma foi comparada com a respectiva soma no resultado eleitoral. O candidato com 5% ou mais das intenções de voto não entrou na soma “outros”. 2. Nos resultados de pesquisas a rubrica “sem candidato” representa a soma dos resultados para “indecisos”, votos “brancos” e “nulos”. Esta mesma rubrica, no resultado da eleição, é a soma de apenas votos “brancos” e “nulos”. A título de exemplo (tabela 9), no primeiro turno da eleição para governador do Ceará em 1998 um instituto estimou que os “sem candidato” seriam 9% quando foram 24%. Como o percentual de 9% contém os indecisos, que não existem em resultados eleitorais, a discrepância da estimativa dos brancos e nulos foi ainda maior do que 15 pontos percentuais. 3. Obviamente, há de tudo na comparação entre pesquisas e resultados eleitorais: erros, acertos, erros para cima no candidato primeiro colocado, erros para cima no candidato segundo colocado, o que as tabelas 9 a 11 ilustram é o erro mais comum. 66 ÀS ESCURAS Erro sistemático: o candidato primeiro colocado é superestimado pelas pesquisas: Em 65% das pesquisas, o candidato primeiro colocado terminou com um percentual mais elevado do que nas urnas, tendo sido, portanto, superestimado pelas pesquisas; Em 28% das pesquisas, o primeiro colocado foi subestimado; E em 7% das pesquisas, o percentual do primeiro cravou o percentual de votos. Outro erro sistemático: o candidato segundo colocado é subestimado pelas pesquisas: Em 50% das pesquisas, o candidato segundo colocado ficou com um percentual menor do que o obtido nas urnas. Foi, portanto, subestimado pelas pesquisas; Em 40% das pesquisas, o segundo colocado foi superestimado; E em 10% das pesquisas, o percentual do segundo cravou o percentual de votos. I N S I G H T INTELIGÊNCIA TABELA 9 Ilustração do cálculo da discrepância entre o resultado de pesquisa e o resultado eleitoral (Exemplo para a eleição do Ceará, 1998, governador, primeiro turno, pesquisa de prognóstico) Tasso – PSDB Gonzaga Mota – PMDB José Aírton – PT Outros Sem candidato Discrepância total Pesquisa de prognóstico 61% 22 7 1 9 Resultado eleitoral 48% 17 11 1 24 Diferença absoluta pesquisa – eleição 13 pontos percentuais (pp) 5 pp 4 pp 0 pp 15 pp 37 pp TABELA 10 Minas Gerais, 1994, governador, primeiro turno, pesquisa de prognóstico Hélio Costa – PP Eduardo Azeredo – PSDB Antônio Carlos –PT José Alencar Outros Sem candidato Discrepância total Pesquisa de prognóstico 47% 21 6 7 0 19 Resultado eleitoral 33% 18 7 7 3 32 Diferença absoluta pesquisa – eleição 14 pontos percentuais (pp) 3 pp 1 pp 0 pp 3 pp 13 pp 34 pp Resultado eleitoral 27% 15 20 19 4 1 15 Diferença absoluta pesquisa – eleição 5 pontos percentuais (pp) 4 pp 2 pp 5 pp 2 pp 0 pp 5 pp 23 pp TABELA 11 São Paulo, 1998, governador, primeiro turno, pesquisa de prognóstico Maluf – PPB Rossi – PDT Mário Covas - PSDB Marta – PT Quércia - PMDB Outros Sem candidato Discrepância total Pesquisa de prognóstico 32% 19 18 14 6 1 10 Mais um erro sistemático: a proporção de brancos e nulos é subestimada pelas pesquisas: Em 49% das pesquisas a proporção de votos brancos e nulos encontrada nas urnas foi subestimada pelas pesquisas; Em 46% das pesquisas esta proporção foi superestimada; E 5% das pesquisas cravaram o branco e nulo das urnas. GRÁFICO 1 Discrepâncias das pesquisas por 1 a 3 anos de estudos 20 20 18 18 Por que esse padrão de erro? Por que o candidato que fica em primeiro tem – sistematicamente – um percentual mais elevado nas pesquisas do que nas eleições? A explicação é politicamente incorreta: as pesquisas estão mais certas do que as urnas! Os erros são maiores nos estados e cidades onde a escolaridade é mais baixa. Isto indica algo muito simples: as pessoas de escolaridade mais baixa ao responderem a uma pesquisa de opinião declaram, em sua maioria, preferência pelo primeiro colocado. Porém, no momento de votar, elas erram e acabam ou anulando o voto ou votando em branco. 16 16 14 13 12 6% a 13% 14% a 18% 19% a 21% 22% ou mais OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 67 I N S I G H T GRÁFICO 2 Discrepâncias das pesquisas por PIB 24 24 22 20 19 19 18 16 14 14 1.313 a 8.317 14.592 a 29.454 32.490 a 78.604 86.758 a 810.829 GRÁFICO 3 Discrepância das pesquisas por tipo de pesquisa 18 18 16 15 14 Boca de urna Prognóstico GRÁFICO 4 Discrepância das pesquisas por cargo 20 18 18 17 16 16 14 12 11 10 Presidente 68 ÀS ESCURAS Prefeito Governador Senador INTELIGÊNCIA Qualquer que seja a eleição, prefeito, governador, senador ou presidente, a discrepância entre pesquisa e resultado é maior nos estados ou municípios onde a escolaridade é pior. Nas áreas onde há de 6% a 13% de eleitores com um a três anos de estudo, a discrepância é de 13 pontos percentuais (gráfico 1); aumenta para 16 pontos percentuais onde 14% a 18% dos eleitores têm um a três anos de estudo; e sobe ainda mais – para 20 pontos percentuais – onde mais de 22% estão neste nível de escolaridade. Estados ou municípios mais escolarizados tendem a ter um PIB mais elevado. Neles, a proporção de pessoas com um a três anos de estudo é menor e a proporção de quem tem oito a dez anos de estudo, maior. Aumenta a escolaridade e aumenta o PIB. Resultado: diminui a discrepância entre pesquisa e resultado das urnas (gráfico 2). É fato também que quanto mais elevada a escolaridade, menor a quantidade de votos brancos e nulos. Em uma linguagem estatística, a correlação entre oito a dez anos de estudo e proporção de votos brancos e nulos é -0,42 (muito significante). Isto fica patente quando se vê que as eleições nos estados e capitais I N S I G H T nordestinas têm mais brancos e nulos do que as eleições ocorridas no “sul maravilha”. Em 228 resultados de pesquisas para o cargo de governador, a correlação significativa entre o erro das pesquisas e o branco e nulo foi de 0,74. Essa mesma correlação cai para 0,3 nas 141 pesquisas para o Senado analisadas e se torna completamente irrelevante nas 430 pesquisas para prefeito. Em suma, o padrão de erro identificado se encontra, em grande medida, nas eleições para governador e senador e está correlacionado com a proporção de votos brancos e nulos. As pesquisas tendem a ser mais imprecisas quando são de prognóstico, para governador e no primeiro turno ou quando a eleição ocorre em um só turno e são feitas na Região Nordeste. É o que pode ser visto no gráfico 3. As pesquisas de boca-de-urna são mais precisas porque elas acertam com mais freqüência o percentual de votos brancos e nulos do que as pesquisas de prognóstico. Isto ocorre porque o método da pesquisa de boca-de-urna exige que o eleitor escreva o seu voto em uma cédula dada a ele pelo instituto de pesquisa e o INTELIGÊNCIA deposite em uma urna, o que não ocorre, em grande medida, nas pesquisas de prognóstico. A análise dos dados por cargo desfaz o mito de que as pesquisas municipais erram mais do que as demais pesquisas. É claro o fato de que o melhor desempenho é das pesquisas para presidente e prefeito, e o pior é das pesquisas para governador e senador. No caso dos senadores, trata-se de um cargo – para o eleitorado – menos importante e mais incompreensível do que os cargos de presidente, governador e prefeito. Nestes três, trata-se de quem executa. Naquele, de quem faz o que? Legisla? Mas não é esse o papel dos deputados estaduais e federais? É comum, todos, sabem que senadores são eleitos porque “colaram” em candidatos favoritos ao governo estadual. Assim, é possível supor que o erro das pesquisas para o senado esteja associado a fortes mudanças de voto que tendem a acontecer nos últimos dias de campanha eleitoral. Adicionalmente as pesquisas feitas no segundo turno são muito mais precisas do que as feitas no primeiro turno. Essa constatação contraria a teoria estatística: a margem de erro tende a ser TABELA 12 Proporção média de brancos e nulos nas eleições que foram comparadas com as pesquisas Estado Alagoas Bahia Pernambuco Minas Gerais Piauí Paraíba Maranhão Ceará Sergipe Paraná Mato Grosso Tocantins Rio Grande do Norte Mato Grosso do Sul Rondônia Santa Catarina Rio de Janeiro Pará Goiás Amazonas Acre São Paulo Rio Grande do Sul Espírito Santo Amapá Roraima Distrito Federal Branco e nulo 0,35 0,32 0,31 0,28 0,27 0,26 0,25 0,24 0,23 0,23 0,22 0,22 0,22 0,21 0,21 0,20 0,19 0,18 0,18 0,17 0,17 0,17 0,15 0,15 0,13 0,11 0,11 OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 69 I N S I G H T GRÁFICO 5 INTELIGÊNCIA GRÁFICO 7 Discrepâncias das pesquisas por turno Discrepância das pesquisas por Estado, os 10 mais imprecisos 34 20 33 32 19 30 18 18 31 28 27 26 16 24 22 14 24 PE PI 25 22 20 18 24 19 19 20 16 12 14 10 10 12 Segundo turno Único turno PB Primeiro turno GRÁFICO 6 Discrepância das pesquisas por região 22 22 20 18 16 16 16 14 15 14 12 10 11 Brasil Sul Centro-Oeste Norte Sudeste Nordeste maior no segundo turno do que no primeiro. Há uma razão técnica para isso e, infelizmente, é difícil evitar uma linguagem técnica. Isso acontece porque, pegando-se dois eleitores ao acaso, no segundo turno são maiores as chances de que, destes dois, um vote no candidato A e outro não vote no candidato A. No primeiro turno tais chances são menores. No segundo turno o eleitorado tende a se dividir de forma mais próxima de 50% para um lado e 50% para o outro do que no primeiro turno, e isso influencia na margem de erro. Estranho, não? Sendo maior a margem de erro no segundo turno, as pesquisas erram menos. Que acontecimento surpreendente. Há nele uma evidente indicação de que o erro amostral é menos importante do que outros tipos de erro. Por exemplo, há menos pesquisas no segundo do que no primeiro turno. O resultado disso é que os institutos, com um volume menor de trabalho, 70 ÀS ESCURAS RO CE PA TO BA MA AL I N S I G H T podem utilizar suas melhores equipes e controlar de forma mais rigorosa o trabalho de campo. Como as amostras não mudam do primeiro para o segundo turno e, repito, deveriam ser mais sujeitas a erros no segundo turno, como também o know how utilizado para a confecção dos questionários de pesquisa não muda de um turno para outro, então as suspeitas recaem sobre o trabalho de campo. Afinal, trabalho de campo também é fonte de erro. O Nordeste é a região onde os institutos de pesquisas têm mais problemas. Na média, pesquisas feitas em cidades ou estados nordestinos apresentam uma discrepância de 22 pontos percentuais. Essa diferença cai para 16 pontos percentuais no Sudeste e no Norte e 15 pontos percentuais no Centro-Oeste e no Sul. É no Nordeste que estão os mais pobres e, não coincidentemente, os menos escolarizados. É também no Nordeste onde o PIB é menor e os votos brancos e nulos são maiores. A informação acerca dos estados somente reforça esta conclusão. Dos 10 estados com maior discrepância, sete são do Nordeste e os outros são Tocantins, Pará e Rondônia. Em 2006, no primeiro turno no Maranhão, Roseana Sarney teve mais votos nas pesquisas de prognóstico do que nas eleições. Ela era, na ocasião, a candidata primeira colocada. Ou seja, a conclusão acerca do padrão de erro é – no jargão científico – robusta. Ela permite prever o futuro. Ela permite fazer inferência. O mais provável é que ocorra erro de medição. É possível que haja erros na coleta de dados, no trabalho de campo, ou mesmo nos procedimentos de aplicação dos questionários, de tal maneira que aqueles que votariam branco ou anulariam o voto (principalmente em função de erro) venham a responder o nome do primeiro INTELIGÊNCIA GRÁFICO 8 Passam os anos e as pesquisas ficam mais precisas 22 20 19 20 19 18 16 14 14 12 1990 1994 1996 2002 TABELA 13 Comparação entre o desempenho de pesquisas nos estados do Nordeste e estados de outras regiões – pesquisas selecionadas Ordenamento da maior para a menor discrepância 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 INSTITUTO A - PRIMEIRO TURNO 1990 - Governador Prognóstico Boca-de-urna Alagoas Alagoas Bahia Pernambuco Pernambuco Rio de Janeiro Minas Gerais Santa Catarina Rio de Janeiro Bahia Paraná Minas Gerais Santa Catarina Paraná São Paulo Rio Grande do Sul Ceará São Paulo Distrito Federal Distrito Federal Rio Grande do Sul Ceará 1994 - Governador Prognóstico Boca-de-urna Bahia Pernambuco Pernambuco Bahia Goiás Santa Catarina Minas Gerais Rio de Janeiro Ceará Distrito Federal Mato Grosso do Sul Rio Grande do Sul Paraná São Paulo São Paulo Goiás Distrito Federal Minas Gerais Rio de Janeiro Paraná Santa Catarina Mato Grosso do Sul Rio Grande do Sul Ceará 1998 - Governador Prognóstico Boca-de-urna Ceará Pernambuco Bahia Bahia Pernambuco Paraná Paraná Ceará Minas Gerais Minas Gerais Santa Catarina Rio Grande do Sul São Paulo São Paulo Rio de Janeiro Rio de Janeiro Rio Grande do Sul Santa Catarina Distrito Federal Distrito Federal OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 71 I N S I G H T colocado na pesquisa. Este fenômeno está associado à baixa escolaridade do eleitorado. As discrepâncias das pesquisas feitas no Nordeste em comparação com os estados da Região Sul servem para ilustrar e reforçar este ponto (Tabela 13). A análise estatística revela que as variáveis que melhor prevêem a discrepância de pesquisas são o tipo de consulta (boca-deurna ou prognóstico), o turno da eleição, e a escolaridade do eleitorado. As maiores discrepâncias ocorrem em pesquisas de prognóstico, no primeiro turno e onde o eleitorado é menos escolarizado. Por outro lado, as menores discrepâncias se dão em pesquisas de boca-de-urna, no segundo turno e em estados nos quais a escolaridade média é mais elevada. INTELIGÊNCIA GRÁFICO 9 Discrepância das pesquisas por percentual de votos informatizados 22 22 20 18 18 18 16 15 14 Quando as pesquisas são avaliadas no passar do tempo, notase que eles ficaram mais precisas. Isso vale tanto nas eleições para senador e governador quanto nas eleições municipais. Entre 1990 e 1998 a discrepância das pesquisas que tinham como área geográfica de realização os estados variou em torno de 20 pontos percentuais. Essa discrepância caiu para 14 pontos percentuais em 2002. Nas eleições municipais essa melhora foi de 17 pontos percentuais em 1996 para 14 pontos percentuais em 2000. Parabéns para os institutos que identificaram os erros e mudaram procedimentos! Parabéns? 12 0% 7% a 27% 30% a 39% 100% GRÁFICO 10 Brancos e nulos por informatização do voto e escolaridade do eleitorado 0,4 Proporção de votos brancos e nulos por comparecimento AS PESQUISAS SE TORNARAM MAIS PRECISAS: VIVA A URNA ELETRÔNICA! 0,3 0,2 0,1 0,0 0,0 0,1 0,2 0,3 0,4 Analfabeto/Sem instrução e menos de 1 ano de estudo 100% informatizado Voto parcialmente eletrônico Voto no papel 72 ÀS ESCURAS I N S I G H T As discrepâncias diminuíram em função da informatização do voto. Em que pese a indignação dos opositores da urna eletrônica, ela contribuiu para que voto na urna ficasse mais próximo do voto declarado na pesquisa. Veja-se que foi exatamente o que ocorreu. Nas eleições que antecederam a completa informatização, a discrepância das pesquisas foi de 18 ou de 22 pontos percentuais. Já sob o total uso da máquina de votar, as pesquisas passaram a apresentar uma discrepância bem menor, de 15 pontos percentuais. O grande feito da urna eletrônica foi contribuir para diminuir a proporção de votos brancos e nulos. As pessoas de pouca escolaridade que tiveram a chance de escrever seu voto no papel sabem como isso era difícil. Os fiscais de apuração de todos os partidos cansaram de ver votos anulados porque o eleitor escrevia no lugar errado o voto: o nome do deputado estadual onde deveria haver um xis para governador, um xis para presidente ou governador no lugar que deveria haver o nome ou número do deputado federal, e assim por diante. A urna eletrônica – e a “colinha” com o número dos candidatos – reduziu de maneira significativa a proporção de brancos e nulos (gráfico 10). Mais do que isso, tornou o branco e nulo mais dependente da escolaridade – isso é de suma importância para se entender a redução dos erros de pesquisas. INTELIGÊNCIA Quando o voto era no papel – em 1994 –, a escolaridade baixa explicava 19% dos brancos e nulos. Em 1998, a baixa escolarização passou a explicar 37% dos brancos e nulos e esse percentual subiu para 46% em 2002, com 100% do voto na maquininha. O que isso quer dizer? Que antes da urna eletrônica muitos votos nulos e brancos ocorriam por causa de outros erros que não somente o equívoco devido à escolaridade baixa. Podia ocorrer que pessoas mais bem instruídas, por falta de familiaridade com a complexidade da cédula eleitoral, errassem o voto. Atualmente, pelo contrário, é preciso ser muito incapaz – cognitivamente – para desperdiçar o voto. A conseqüência foi direta: caiu bastante a proporção de brancos e nulos. Como já deu para depreender de uma conclusão importante deste estudo: aumentou muito a precisão das pesquisas. Assim, apesar da enorme preocupação com o erro amostral, o grande problema das pesquisas é o erro não-amostral. É nele que recai a explicação para os principais erros de pesquisas. Ainda mais quando sabemos que isto acontece de forma sistemática em pesquisas de prognóstico, no primeiro turno, e em estados com escolaridade baixa. Assim, é necessário aumentar o controle do trabalho de campo realizado em estados de escolaridade mais baixa. Isso esbarra em custo. São justamente os locais nos quais os contratantes das pesquisas estão menos dispostos a pagar por isso. [email protected] 74 Ana suspira fundo e acende mais um cigarro, quarenta e seis redações escolares para corrigir, gritaria das crianças no pátio do edifício, um entardecer calorento, canto ensandecido de cigarras e a avó com a televisão ligada em alto volume! Mas que mais pode oferecer a pobre velha cega e quase surda? Que situação! Empurra para trás a cadeira, coloca os pés sobre a mesa para descansar as pernas, traga profundamente o cigarro, fecha os olhos e se distrai ouvindo o diálogo do seriado de televisão. Homem e mulher tramam um golpe, coisa em torno de um assassinato com rendimento de setenta mil dólares. A mulher sussura prazeres de shopping center e ilhas gregas. Irritada, levanta. Quem sabe a avó dormiu e ela pode diminuir o som da televisão? Som vagabundo, história vagabunda! Parada na porta da sala, Ana observa a avó, sentada na poltrona, rosto banhado pela luz da televisão, os olhos cegos fechados, a boca murcha entreaberta, a cabeça pendida sobre o ombro, gotas de suor sob os cabelos ralos. A mão direita da velha acaricia o seio, a mão esquerda passando sobre a púbis. 76 BO Desconfiada, a velha enrijece o corpo, se recompõe: — É você... Ana? Ana não se move, toda em silêncio. A velha ainda escuta mais um pouco, aquieta-se e, num suspiro profundo, retoma o passeio das mãos pelo corpo cheio de seus desejos. Enquanto, na tela da televisão, os assassinos golpeiam a cabeça da vítima, a mão esquerda da vó acelera o movimento, peito arfante. Lábios apertados, pernas retesadas em espasmo. O último gemido do homem assassinado na televisão em sincronia com o prazer silencioso da velha. Ana espera, até entrar na sala barulhentamente, derrubando uma cadeira. — É você Ana? Sempre derrubando as coisas... e a cega sou eu. — Vou fazer o seu lanche, ou quer deixar para mais tarde, depois do seriado? — Traz agora, minha filha. Não sei por que, hoje estou com uma fome danada! Antes que Ana entre na cozinha, é alcançada pela voz trêmula da velha. — Me diz uma coisa, Ana... A cena agora era uma cena de amor, não era? OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 77 I N S I G H T 80 ÀS CLARAS INTELIGÊNCIA I N S I G H T INTELIGÊNCIA OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 81 I N S I G H T INTELIGÊNCIA É praticamente uma mania entre as pessoas de bem deste planeta falar mal do presidente americano, George W. Bush. É extensa, mesmo, a lista de adjetivos normalmente atribuídos ao filho do pai dele, com destaque para “arrogante, prepotente, inconseqüente, megalômano, imperialista”. “Texano e republicano” também já foram alçados à categoria de xingamento nesses últimos anos, dentro e fora daquele país ao Norte – conheci um sujeito em Praga, coitado, que mal se apresentava e já ia chamando o interlocutor para briga: “Sou do Texas, sim, e daí? A culpa não é minha.” Os que preferem o bom português costumam ficar com o sempre eficaz “anta”. Os mais jovens apelam ao novíssimo “mane”, cuja menção não fica nem bem na abertura deste artigo, que, aliás, há de me fazer perder uns dois ou três amigos de esquerda que ainda me restam. Num distante 2002, um ano após a mãe de todas as provocações àquela nação, como foi interpretada, os americanos nem bem se acostumavam à idéia de acordar com aviões caindo sobre suas cabeças, e nosso republicano apresentou em público o que era, para ele, a lista de motivos para a ainda não iniciada invasão ao Iraque de Saddam Hussein, encerrada com uma declaração prosaica, referindo-se ao agora ex-ditador: “Afinal de contas, esse é um cara que tentou matar papai uma vez.” Simples assim, dito quase com muxoxo de menino que vê o vizinho “bobo, feio e cabeludo”, como diria meu afilhado, brigar com o herói da família. Foi em 26 de setembro de 2002, num discurso em Houston, Texas, durante o qual só faltou dizer “Houston, temos um problema”. Era a época em que o “filho de papai” consultava a ONU e o Congresso, só para saber, se deveria ir à guerra. Também era a época em que o ex-líder iraquiano já tinha sido devidamente colocado pelo Pentágono no posto de inimigo número um do planeta, uma vez que nem CIA nem FBI davam conta de encontrar um tal Osama Bin Laden – simplesmente porque não quiseram, diz a turma das teorias da conspiração. Era, ainda, a época em que a Casa Branca começava a botar na cabeça dos americanos a existência das armas de destruição em massa que jamais foram encontradas. Naquele discurso no Texas, Bush se referia a um plano de Saddam que os Estados Unidos provaram ser o de matar o presidente George Bush pai há anos. 82 ÀS CLARAS Assisti a esse discurso de setembro de 2002 com mais de 12 horas de atraso, na TV, de manhã cedo, num quarto de hotel no estado de Minnesota, que dividia com uma jovem de Jacarta. Nós duas éramos bolsistas de um programa para jornalistas estrangeiros promovido por uma organização americana, financiado por grandes empresas de mídia e outros setores do país. Tivemos um surto e praguejamos durante o café da manhã – minha companheira de quarto estava especialmente irritada porque uma cidadã americana comum se surpreendera ao descobrir que a Indonésia tinha dentistas. E, nos valendo do nosso quinhão de arrogância, concluímos que Bush se enterraria de vez com aquela declaração que achamos ridícula, certas de que o argumento não iria convencer nem os republicanos, certas de que a ONU iria fazer algo para evitar a guerra. Do Congresso americano já tínhamos desistido. Há quase dois meses no país, já sabíamos que, às vezes, republicanos e democratas são o que são, mesmo: o azul e o vermelho da mesma bandeira. Mas nossas convicções duraram tanto quanto o pãozinho do café da manhã. No momento em que ameaçamos zombar do presidente, já a caminho do trabalho, nossa guia naquele dia, jornalista de carreira brilhante no país, contemporânea de George, o W., nos calou a boca: “E o que tem isso? Eu também chamo meu pai de “papai”. O presidente fala como nós falamos.” Cai o pano. A verdade é que rasgo o coração de esquerda confusa aqui ao Sul para sugerir que, no mínimo, ampliemos o conceito de “anta” para abranger republicanos que, embora repitam discursos feitos por assessores muito bem pagos, tenham a capacidade quase espiritual de falar à alma do americano comum. Bush é um deles, e sabe-se lá de onde diabos ele tirou o talento de falar no tom de quem o escuta; de ficar à vontade na camisa azul clara, manga arregaçada, versão ianque do casaquinho Lacoste do Cesar Maia de outrora; de, a cada vez que vai ao Sul do país, forçar tanto o sotaque sulista que vira um arremedo muito do mal-acabado da minha querida Janis Joplin, a branca de voz mais preta que já habitou este planeta – sinto que essa metáfora e a recusa a escrever afro-americana vão me carregar mais uns dois ou três amigos. Mas insisto. I N S I G H T Pouca gente lembra, mas o W. que vem entre o George e o Bush é Walker, igual ao Johnny, bom escocês que o presidente, aliás, jura ter abandonado após uma juventude de abuso de álcool e, dizem os detratores, outros prazeres ilícitos. Foi pressão da mulher, Laura. Não sei se meu amigo de Praga sabe, mas o homem nem no Texas nasceu. O ocorrido foi em New Haven, Connecticut, Nordeste dos EUA, há 60 anos. Virou texano quando, em 1988, comprou o Texas Rangers, time de beisebol do estado em que decidiu criar suas raízes políticas. Funcionou, e, em 1994, foi eleito governador. A essa altura, os mesmos assessores bem pagos perceberam que o sotaque sulista lhe caía bem. Foi criado o buddy, o “cara legal”, em termos republicanos – é bom ressaltar –, o que fala como a gente do povo, o que comete erros gramaticais crassos como o cidadão comum, o que mata de raiva os pacifistas e os americanos de boa vontade. Dizem os especialistas que o sotaque do Sul é a voz do povo naquele país. Equivale ao sotaque nordestino de certo presidente que acaba de ser reeleito no país onde o antecessor, intelectual de berço, jurou uma vez ser pretíssimo. – Durante boa parte do século passado, a fé dos Estados Unidos na liberdade e na democracia era um rochedo no mar revolto. Agora, é uma semente ao vento, criando raízes em várias nações – disse, em janeiro de 2001, o presidente eleito após um pleito conturbado, sob suspeita de fraude, em meio a uma interminável recontagem de votos na Flórida, estado governado por seu irmão, Jeb, outro “homem do povo”, mais próximo, este sim, do nosso conceito clássico de “anta”. Na época, democracia ainda era só o que é, mesmo, coisa a ser mencionada em discurso moderado de posse. Ainda não tinha virado argumento para a guerra. Chegou a falar em armas de destruição em massa, que prometeu enfrentar, assim, genericamente. Mas elas ainda não tinham um dono. Ainda não eram o instrumento do mal. O “mal”, como argumento-coringa, só foi incorporado num certo 11 de setembro do mesmo ano ao discurso do presidente, que, até hoje, sempre dá um jeito de mencionar a palavra (evil, no original), não importa o assunto de sua preleção – faz lembrar o velho Leonel de Moura, que, não importasse o assunto de suas conversas com jornalistas, conseguia sempre responsabilizar o empresário Roberto Marinho e a TV Globo, nesta ordem, por alguma mazela social. INTELIGÊNCIA Naquela noite, às 20h30min em ponto, horário da capital Washington, Bush fez pronunciamento à nação. Voz embargada – há quem jure que tinha lágrimas nos olhos -, discursou por exatos cinco minutos, inglês limpíssimo, ensaiadíssimo, sem sotaque carregado. Naquele dia, ele mirou em todos os americanos, do Maine à Flórida. Pausas ensaiadas, não disse uma só frase sem engolir em seco ao menos uma vez. O “mal”, mencionou quatro vezes, uma delas num Salmo: “Ainda que eu ande pelo vale das trevas da morte, não temo nenhum mal porque Vós estais a meu lado”, numa tradução literal do que disse naquela noite. “Liberdade”, repetiu três vezes. “Paz”, duas. “Raiva”, disse uma única. Gaguejou duas vezes, uma delas quando mencionou, já ao final, os “inimigos” de outrora, que os EUA derrotaram. “Inimigos” também virou palavra obrigatória nos discursos que se seguiram. Foi em 11 de setembro de 2001, cerca de 12 horas após os atentados, que o presidente referiu-se, pela primeira vez, para nunca mais parar, à tal “guerra contra o terrorismo”. – Não faremos nenhuma distinção entre os terroristas que cometeram esses atos e aqueles que lhes derem abrigo – ameaçou, sem elevar o tom, com a mesma tristeza que tinha na voz quando, no início do discurso, lamentou a morte de “mamães e papais, amigos e vizinhos”. Três dias depois, quando protagonizou a célebre cena nos escombros do World Trade Center, megafone em punho, era outro. Era o próprio general à paisana, sem o terno de sempre, saudado por uma multidão de operários, policiais e bombeiros, emocionados, aos gritos “USA”, “USA”. – Eu estou ouvindo vocês. O resto do mundo está ouvindo vocês. As pessoas que derrubaram estes prédios vão ouvir falar de nós em breve – gritou. A imagem rodou mundo, mas o presidente perdeu o título de Pessoa do Ano, da Time, para o também republicano Rudolph Giuliani, prefeito de Nova York na época dos atentados. Hoje sabe-se que o voto do corpo editorial da revista era para Osama bin Laden, o homem que naquele ano causou o maior impacto no noticiário mundial, pré-requisito básico para o candidato em potencial ao título criado pela revista em 1927. A idéia chegou a ser seriamente cogitada, mas os anunciantes avisaram que sairiam todos da edição se a empresa insistisse, e os editores da publicação que já elegeu Adolf Hitler o Homem do Ano de 1938 recuaram. Iria dar trabalho demais explicar a uma nação traumatizada por que a encarnação do “mal” iria ser estampada na capa menos de seis meses depois dos ataques. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 83 I N S I G H T Daquele momento até março de 2003, mês da invasão ao Iraque, George Walker Bush fez discursos que variaram sobre o mesmo tema, uma repetição quase num mantra das palavraschave que escolheu no discurso de 11 de setembro. O tom de voz variou do firme, a cada vez que ameaçou “fazer justiça” àqueles que cometeram os “atos de terror contra os Estados Unidos da América”, ao embargado, contido, as pausas de sempre, quando precisou parecer humano. – Muito obrigado por sua hospitalidade. Nós acabamos de ter uma discussão ampla sobre... sobre o problema que temos nas mãos. – disse, em 17 de setembro de 2001, quando foi ao Centro Islâmico de Washington para tentar provar que a “raiva” do país não era direcionada à religião que os terroristas levaram ao extremo. O sotaque do Sul, naquele dia, parecia natural, espontâneo, mesmo – há quem diga que, quando o presidente se emociona sinceramente, os assessores nem precisam lembrá-lo de falar como o cidadão comum. Falou do “mal”, e deu um jeito de encontrar um trecho do Corão que incluía a palavra, como seu Salmo preferido. – A tradução para o inglês não é tão eloqüente quanto o original em árabe, mas permitam-me citar o próprio Corão: “O mal extremo será o fim daqueles que fazem o mal, pois estes rejeitaram os sinais de Alá e os ridicularizaram”, disse, pouco antes de pedir aos americanos que respeitassem os milhões de muçulmanos que escolheram o país para viver. – As mulheres que cobrem suas cabeças neste país devem se sentir à vontade para sair de suas casas. As mamães que se cobrem não devem ser intimidadas nos EUA. Que Deus nos abençoe a todos. A todos, menos os que colaboram com o “mal”, os que planejam colaborar e os que têm potencial de, um dia, talvez, pensar em colaborar. Em 26 de outubro do ano que, para os americanos e para o Iraque, não acabou ainda, o presidente assina o USA Patriot Act of 2001, uma lista interminável de medidas que liberam as autoridades federais do país para ignorar uma parte razoável das leis de respeito à privacidade dos cidadãos de bem. Nas palavras do líder, de volta à voz firme: – Estamos lidando com terroristas que usam métodos e tecnologias altamente sofisticados, que, alguns deles, nem existiam ainda quando nossa legislação atual foi criada. A lei que tenho diante de mim leva em consideração a nova realidade e os novos perigos apresentados por terroristas modernos. Vai ajudar as autoridades a identificar e a punir terroristas antes que eles ajam. 84 ÀS CLARAS INTELIGÊNCIA Em novembro, dirigindo-se ao planeta, cravou o já histórico “ou vocês estão conosco ou contra nós na luta contra o terror.” E passou o ano seguinte transformando Saddam Hussein no inimigo público número 1 do planeta. Não, ninguém perguntou ao presidente quem tinha criado o monstro há mais de uma década, o mesmo valendo para os talibãs do Afeganistão que um dia enfrentaram um “mal” aparentemente inofensivo agora, os tais comunistas. Adivinhem que potência mundial ajudou, no passado, os “inimigos” de agora? Foi em 19 de março de 2003 que, de novo formal, discurso ensaiado, Bush foi à TV anunciar oficialmente, em cadeia nacional, que “americanos e forças da coalizão” estavam “iniciando operações militares para desarmar o Iraque, libertar seu povo e defender o mundo de um grave perigo.” Jurou que obteria a vitória que até hoje não veio. Em 10 de abril do mesmo ano, falou aos iraquianos. Com a mesma calma, prometeu liberdade a cada cidadão do país outrora governado com mão-de-ferro pelo homem condenado à forca recentemente – faltou detalhar livre de quem eles seriam. Também garantiu sossego aos sunitas e xiitas daquele país, que hoje se matam numa guerra civil fora de controle, que acabou por derrubar o artífice da invasão, o agora ex-secretário de Defesa, Donald Rumsfeld. Em junho de 2003, num episódio que só foi divulgado no ano passado, a explicação que faltava àqueles já convencidos de que o presidente dividiu o mundo entre os que estão com ele e os que vivem contra ele veio do próprio, numa reunião com líderes palestinos. Às aspas, que são ouro puro: “Estou guiado por uma missão de Deus. Deus me disse: ‘George, vá lutar contras aqueles terroristas do Afeganistão’. E eu fui. Então, Deus me disse: ‘George, vá acabar com a tirania no Iraque’. E eu fui. Agora, de novo, eu sinto as palavras de Deus vindo a mim: ‘George, vá e dê aos palestinos seu Estado e aos israelenses, sua segurança. E dê paz ao Oriente Médio.’ Por Deus, eu vou fazê-lo.” I N S I G H T A intimidade com o Todo-Poderoso talvez explique a reeleição do líder em 2004, a guerra já fazendo água, americanos já desconfiados de que a invasão, talvez, não tenha sido, de todo, uma boa idéia. No discurso de agradecimento pelos votos, em novembro de 2004, a falta de ênfase do pronunciamento da primeira posse foi substituída pelos novos desafios. Falou de liberdade, de paz, de guerra ao terror. E agradeceu ao Texas, claro. Mas deve ter perdido a fé em algum momento. Em agosto do primeiro ano de seu segundo mandato, um furacão com nome de moça, Katrina, expôs em rede nacional as feridas de uma sociedade partida entre pretos e brancos, ao Sul do país – logo no Sul, seu rincão querido. O símbolo da tragédia que atropelou o governo preocupado em reconstruir o Iraque e libertar os povos oprimidos por tiranias do outro lado do mundo foi a histórica Nova Orleans, inundada porque um dique mal conservado se rompeu. A agência criada pelo próprio Bush para dar conta de eventos de tal magnitude não funcionou, a ordem de evacuar a região chegou depois do furacão, morreram milhares, e o prefeito da cidade, o democrata Ray Nagin, perdeu a paciência. – Movam o traseiro – disse o homem negro alto, bemapanhadíssimo, em uma entrevista a uma rádio no auge da crise, protegido pela falta de memória dos próprios americanos: Nagin começou a carreira como republicano e só mudou de partido por ter percebido que tinha potencial para ganhar os votos das populações negras, mais à esquerda, da região, o que, no fim das contas, deu certo. O presidente moveu o seu, e foi até a região afetada pelo Katrina, que atingiu meia dúzia de estados, incluindo os diretamente destruídos pela força dos ventos e das águas e aqueles que tiveram que dar abrigo a hordas de miseráveis, na época desabrigados. Também resolveu proibir os canais de TV do país de mostrar as imagens dos corpos boiando pela capital da boêmia americana. No dia 15 de setembro, fez discurso de 26 minutos do meio da Jackson Square, em Nova Orleans. Nunca esteve tão sulista, nunca arrastou tanto o sotaque, nunca quis parecer tão menos branco – faltou subir som com alguma gravação clássica de Old Man River. 86 INTELIGÊNCIA Como poucas vezes fez, assumiu a responsabilidade pelos incontáveis erros cometidos pelo governo federal e anunciou verbas para tentar minimizar o estrago. Há quem aposte que aprendeu um pouco – quem não aposta apela para o velho “era o único jeito, ele não tinha saída”. Mas já era tarde. Perder a guerra no distante Oriente Médio, vá lá – quem reclama, no fim das contas, são os pacifistas de sempre. Não dar conta dos próprios americanos dentro do próprio quintal pareceu um pouco demais até para os republicanos. O troco veio em novembro deste ano. Não adiantaram as mudanças de tom nos discursos num tour sem fim a bordo do Air Force One, o avião presidencial, nos últimos dias antes das eleições legislativas. Não adiantaram os apelos aos estados do Sul na reta final. – Agora, os democratas em Washington estão fazendo outras previsões. Eles estão dizendo a vocês que vão vencer as eleições. Bem, se as previsões eleitorais deles forem tão confiáveis quanto suas previsões econômicas, 7 de novembro será um bom dia para o Partido Republicano – disse, na Geórgia, em 30 de outubro. Atirou e acertou os dois pés. Perdeu o controle na Câmara de Deputados e no Senado. Fortaleceu o agora casal feliz Hillary e Bill Clinton, mais democratas que nunca. Foi obrigado a ceder o debate sobre a guerra no Iraque com a oposição. Perdeu o secretário de Defesa. Tem, nos últimos dois anos de seu mandato, que aturar a democrata Nancy Pelosi, presidente da Câmara, desafeto a quem sempre se referiu como “aquela mulher”. Mas deu show de bom humor na primeira entrevista coletiva aos repórteres que cobrem a Casa Branca. E deu resposta de líder que ainda pensa que passo dará no momento seguinte a uma derrota espetacular a uma das jornalistas, Suzanne – sim, ele tem a mania de tratar as pessoas pelo primeiro nome para forjar uma informalidade que nem sempre é de seu agrado, como Deus, que, já sabemos, o chama de George. – Senhor presidente, com todo o respeito, Nancy Pelosi já o chamou de incompetente, mentiroso, imperador nu, e, ontem, de perigoso. Como o senhor vai trabalhar com alguém que tem tão pouco respeito a sua liderança e é a terceira na hierarquia de poder do país? – Suzanne, eu estou na política há algum tempo. Eu sei quando acaba a campanha e quando começa o governo. Vou trabalhar com pessoas dos dois partidos. Também disse que não era seu primeiro “rodeio”. Oremos. [email protected] NA QUAL INFIÉIS MUÇULMANOS ATOCHARAM FIÉIS CRISTÃOS 88 ENTARDECER Nesses tempos bicudos em que vivemos, não é difícil imaginar que todo o muçulmano decentemente informado sente engulhos estomacais só em ouvir a menção do termo “Cruzada”. A comunidade judaica, aliás, poderia justificadamente irmanar-se em similar mal-estar, pois, tanto na Europa quanto na Terra Santa, as mobilizações para as Cruzadas realimentaram violentas perseguições contra judeus, contidas aqui e ali pelas autoridades eclesiásticas, ao que parece, mais preocupadas em restaurar a ordem do que verdadeiramente solidárias quanto às crueldades cometidas contra os filhos de Abraão. Logo após o episódio do 11 de Setembro, o presidente dos Estados Unidos apareceu diante das câmeras e, tal qual um São Bernardo de Clairvaux revivido – evidentemente desprovido do talento oratório do santo, que segundo dizem os cronistas era notável - pregou a “Cruzada” pela defesa da liberdade e contra o terrorismo. O presidente certamente falou de improviso. Creio que todos os assessores presidenciais do mundo apreciariam que seus ministérios de ciência e tecnologia fornecessem um aparelho que, uma vez plugado nos presidentes, produzisse um violento choque elétrico, toda a vez que suas excelências resolvessem se aventurar no improviso. Como o tal dispositivo ainda não foi inventado – ou, caso exista, encontra-se constitucionalmente indisponível – sobrou para os assessores presidenciais dizer ao presidente dos Estados Unidos para não repetir o termo “Cruzada” em seus pronunciamentos, a não ser que desejasse de imediato contar com a repulsa de boa parte dos milhões de muçulmanos do mundo, eliminando qualquer solidariedade inicial pelas vítimas inocentes produzidas pelo 11 de Setembro. A opção adotada acabou sendo “Guerra contra o terrorismo”, que passou a ser martelada na mídia insistentemente, justificou a guerra no Afeganistão, a invasão do Iraque, as prisões de Abu Graib, Guantanamo e os cárceres clandestinos da CIA especialmente na Europa e no Paquistão e um polpudo aumento do orçamento de defesa dos Estados Unidos. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 89 I N S I G H T O INTELIGÊNCIA s episódios históricos, especialmente os momentosos como é o caso das Cruzadas, têm o hábito de jamais desaparecer da memória coletiva sem deixar vestígios. Assombram as gerações futuras como uma lembrança nem um pouco vaga de ofensas, crueldades e abusos desmedidos. E nesse cenário específico, as duas culturas, por meio da menção de meras palavras – porém recheadas de robustos significados – são capazes de causar mal-estar recíproco imediato. Quando os ocidentais se deparam com o termo Jihad, imediatamente o associam a Guerra Santa, ao fanatismo religioso e a comportamentos extremados vinculados a obscurantismo. Pouco importa o denodo dos especialistas tentando explicar que, a princípio, o conceito de Jihad tem sua relevância no sentido de uma luta interior que o crente deve travar para alcançar a “fé perfeita” e assim concretizar sua mais absoluta submissão à vontade de Deus – pois Islã, como todos sabemos, significa “submissão”. Este seria, a “Jihad Maior”, um encontro eminentemente pessoal com a fé. Existe ainda, a “Jihad Menor”, esse, sim, o esforço que os muçulmanos devem empreender para levar a mensagem de Deus para aqueles que a desconhecem. Contudo, os povos do Ocidente só conseguem perceber a Menor, não dando a mínima importância para a Maior. Assim, às mentes do senso comum ocidental e muçulmano, o termos “Jihad” e “Cruzada”, causam idênticos sentimentos de sobressalto e hostilidade. Não há dúvida que auxiliam a alimentar o “choque de civilizações” mencionado faz uns 25 anos com algum estardalhaço por Samuel Hutington e, de um modo ou de outro, servem como justificativa para dar suporte aos grupos políticos radicais, ditos fundamentalistas, que tentam convencer os povos islâmicos a levantarem-se contra seus próprios governos, acusados de infiéis e de falsos muçulmanos, que contam com o apoio dos “cruzados ocidentais” – idéia inevitavelmente presente nos comunicados de Osama Bin Laden, por exemplo. Segundo essa tese, o mundo, incluindo o Islã, estaria prisioneiro de uma nova jahilyya, palavra que designa o “estado de ignorância” em que vivia a humanidade antes da difusão da mensagem de Deus sussurrada pelo anjo Gabriel junto ao ouvido do profeta Maomé. A jahillya estaria então de volta, e a razão de as coisas não irem bem para os muçulmanos nos últimos tempos é precisamente causada por este afastamento e esquecimento de Deus. 90 ENTARDECER I N S I G H T INTELIGÊNCIA O Islã está em toda a parte. A última guerra travada no Sul do Líbano, causou surpresa para muitos brasileiros ao se aperceberem a quantidade de conterrâneos que residem ou mantêm fortes laços com sua velha terra. O governo do Brasil, mesmo dispondo de parcos recursos, não fugiu à sua responsabilidade e prestou toda a ajuda possível a esses cidadãos. Muitos deles são muçulmanos. Porém, ainda que saibamos que existem comunidades islâmicas em todos os países civilizados do planeta, lembremos que a totalidade das nações majoritariamente islâmicas se localiza no Terceiro Mundo. Tarik Ali, escritor paquistanês, dotado de adequado estilo literário e com muitas de suas obras publicadas no Brasil, ressalta insistentemente a presença de um forte sentimento de humilhação disseminado entre as massas dos países muçulmanos em relação ao Ocidente. O triunfo europeu que se consolidou em fins do século XVIII e ao longo do século XIX, construiu o conjunto de situações político-econômicas que materializou a oportunidade de uma tutela ocidental sobre as velhas terras do Islã. Para os muçulmanos, de nada adiantou invocar as glórias de seu passado brilhante, a superioridade de seus poetas, a certeza da veracidade de sua religião revelada. Superados pela tecnologia, economia, máquinas e capacidade implacável de gerenciar a morte e a destruição em grande escala da parte dos dispositivos militares dos potentados ocidentais, durante boa parte da era contemporânea, viram-se relegados a mais dura insignificância política. As tentativas de reação, levadas a cabo após o fim da Segunda Guerra Mundial com os movimentos de descolonização e as lutas de libertação nacional, não obraram ainda em anular as diferenças e as vantagens materiais do Ocidente desenvolvido. Não obstante alguns países árabes e o Irã “boiarem” em um mar de petróleo e “flutuarem” em meio a densas nuvens de valioso gás natural, os processos de independência nacional e modernização desses países não libertou seus povos da pobreza e do atraso – na verdade, em alguns lugares a situação até piorou. Dessa maneira, o tal sentimento de humilhação descrito por Tarik Ali persiste impávido. O discurso que atribui aos “cruzados ocidentais” importantes fatias de culpa na eternização desse estado de coisas, continua desfrutando de imensa popularidade. É por isso que para muitos muçulmanos, a política americana, a cupidez alimentada pelo petróleo, a invasão do Iraque, Israel, a globalização, a postura “dois pesos, duas medidas” da ONU são interpretadas como “farinha do mesmo saco”. Vive-se no seio de um sistema internacional firmemente alicerçado numa “aliança cruzado-sionista” que tutela cruelmente os países do Terceiro Mundo e, entre eles, as terras muçulmanas. Obviamente que podemos considerar uma avaliação como essa como uma espécie de delírio, fruto de manipulação política ou de um entendimento exageradamente parcial dos acontecimentos. O que não se pode negar é a popularidade deste tipo de ponto de vista. Ele predomina nos bazares de todo o Oriente Médio, no bate-papo após as orações nas mesquitas e, até mesmo, nas palavras desaforadas proferidas contra as autoridades em meio a uma das espetaculares bebedeiras do ator-diretor Mel Gibson. A nossa é uma história de como as coletividades trabalham referências históricas à luz de suas questões e inquietações hodiernas. Isso evidentemente não é uma novidade, mas creio que pode nos ensejar um exercício de algum modo esclarecedor. Os muçulmanos, especialmente os árabes-muçulmanos, em face das suas agruras da modernidade, imaginando modalidades possíveis para encerrar seu longo período de humilhação, sonham com Hattin. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 91 I N S I G H T N INTELIGÊNCIA os dias 3 e 4 de julho de 1187, num lugar ao Norte da Palestina denominado “os Cornos de Hattin”, o exército do reino latino de Jerusalém, tendo à frente o rei Guy de Lusignan, foi fragorosamente derrotado pelas forças muçulmanas combinadas do Egito, Síria e Mossul lideradas pelo sultão Saladino. A vitória de Hattin foi um episódio decisivo para pôr fim a uma humilhação que durava 88 anos, quando em 1099, Godofredo, duque da Baixa-Lorena, liderara o assalto e a tomada da cidade santa de Jerusalém, consolidando a permanência dos Estados latinos – o reino de Jerusalém, o condado de Trípoli, no litoral do atual Líbano, o principado de Antioquia e o condado de Edessa – no território da então chamada Grande Síria. A Primeira Cruzada fora vitoriosa porque chegara ao Oriente num momento de grave divisão intestina do mundo islâmico. O poder do califa sunita de Bagdá tornara-se meramente formal; a força militar dos turcos de seldjuk fenecia; o califado fatímida (xiita) do Egito se encontrava em vertiginosa decadência; os emires da Síria, divididos, lutavam entre si semelhantes a escorpiões danados, visando exclusivamente a assegurar seus parcos nacos de poder. Em Hattin, 88 anos depois, foi possível graças a divisões muito parecidas que começaram a se sedimentar no campo latino e, de acordo com os cronistas, em virtude da notável engenharia política do sultão Saladino. Quando os árabes, hoje em dia, sonham com Hattin, de imediato, sonham também com um novo Saladino. Saladino pertencia a um clã guerreiro curdo, os Ayyúbidas, castelãos de Tikrit, que serviam aos poderosos chefes militares turcos, os atabegs de Mossul, especialmente ao grande Nur al-Din. No ano provável de seu nascimento, 1138 d.C, recebeu o nome de Yûsuf, que entrava na composição do nome completo, Salah al-Din Yûsuf bin Ayyub. É interessante lembrar que quando o presidente do Iraque, Saddam Hussein, tentava incorporar “contornos saladínicos” à sua pessoa, a propaganda governamental insistia em reafirmar que o presidente nascera na mesma cidade que fora o berço de Salah al-Din, Tikrit. Naturalmente, o fato de Saddam ser árabe e do antigo herói ser de procedência curda era convenientemente deixado de lado. Muito embora tenha nascido no Curdistão, logo o clã de Ayyub, seguindo as ordens de seus suseranos, transferiu-se para Damasco, carregando armas, bagagens e toda a sua prole, incluindo Saladino. Os cronistas afirmam que mais do que um curdo, Saladino sentia-se um verdadeiro damasceno, pois foi nessa cidade antiga e famosa que passou boa parte de sua infância, adolescência e recebeu sua educação. Como membro do clã Ayyub, Saladino mereceu as tintas de uma educação aristocrática. Antes de mais nada, aprender a ler e escrever para ser familiarizado com a Revelação Divina contida no Corão. O ensinamento religioso, o detalhado conhecimento sobre os conteúdos do “livro dos livros, era imprescindível. Ao que tudo indica, uma das virtudes de Saladino era sua devoção religiosa. Seus apologistas apreciam propalar que, mesmo sendo religioso e observador estrito dos rituais muçulmanos, Saladino jamais dera guarida para qualquer tipo de fanatismo. A sinceridade e seriedade com que lidava com os assuntos da religião serviam de esteio para sua liderança e, especialmente, sua popularidade. A equitação não podia se ausentar no currículo de um futuro emir. Embora não houvesse nada de errado com os pacatos e resistentes camelos, os aristocratas do Islã, em todas as épocas, amavam seus cavalos. Cobriam os animais das mais tocantes atenções, atentos à sua alimentação, ao estado dos cascos e patas e às condições das estrebarias. Na literatura islâmica medieval, é muito freqüente a menção ao modo pelo qual 92 ENTARDECER I N S I G H T INTELIGÊNCIA a aristocracia era entusiasta do jogo de pólo. Jogar pólo era uma maneira viril e divertida de treinar equitação. Como o gosto pela atividade era vivamente difundida entre a nobreza damascena, podemos imaginar o jovem Saladino entretido em animadas partidas de pólo. Mas, com todo o deleite que a equitação poderia causar, montar cavalos era acima de tudo uma atividade de preparação para a guerra. Diferentemente dos cavaleiros ocidentais, que usavam suas montarias – de preferência, os grandes garanhões de batalha – para o choque, os muçulmanos eram treinados no que era chamado de “estilo de guerra dos partas”. Os partas, que na antiguidade controlavam a velha Pérsia e parte do Iraque, adotaram para si a modalidade de combate de cavalaria dos povos das estepes, tais como os hunos, os turcos e os mongóis. Montando cavalos pequenos e velozes, usando blindagem corporal leve, enfatizavam a velocidade, e não o choque. O método de luta parta utilizava a combinação mortal do cavaleiro a disparar do alto de sua cela setas por meio de um pequeno, porém certeiro e resistente arco compósito. Evitavam o ataque no centro da linha inimiga, dando preferência a acometer pelas alas. Disparavam quando chegavam no alcance das setas, disparavam novamente no momento que estancavam o cavalo para dar a volta e, finalmente, disparavam uma vez mais quando começavam a recuar – este último, um tiro particularmente difícil, pois significava um disparo com o cavaleiro com o tronco virado para trás na cela. Após terminada a correria e rodopio, reagrupavam para acometer de novo. A intenção era dissolver a coesão do inimigo, atarantando-o com uma chuva ininterrupta de setas mortais. Uma vez disperso, os cavaleiros podiam atacar com lanças e espadas, contando com a ajuda de sua própria infantaria. O leitor há de imaginar que o espetáculo de três ou quatro linhas, cada uma delas com centenas de cavaleiros armados com arco compósito, evoluindo e disparando organizadamente, deveria ser algo admirável de se assistir – especialmente se não estivermos entre os alvos do ataque. A luta com espadas, lanças, dardos e o difícil manejo do arco compósito devia constar na lista de aprendizado de um jovem aristocrata como Saladino. A trilha que Saladino seguiu para conquistar a liderança política e destacar-se como um adversário competente do domínio latino na Grande Síria não foi aberta exclusivamente por ele. Antes dele, Zengi, o OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 93 I N S I G H T INTELIGÊNCIA atabeg turco de Mossul e seu filho Nur al-Din haviam se destacado como terríveis adversários dos Estados cruzados. Zengi, durante seu período, contivera vitoriosamente qualquer expansão dos cruzados à custa de território controlado pelos muçulmanos. Nur al-Din, por seu turno, foi decisivo em provocar o fracasso da Segunda Cruzada e, no ano de 1149, derrotou decisivamente a soberba cavalaria cristã do principado de Antioquia na batalha de Inab. Raymond de Poitiers, o príncipe de Antioquia, foi morto na refrega. Nur al-Din enviou sua cabeça como um regalo ao califa em Bagdá. Tudo indica que tanto Zengi quanto Nur al-Din compreenderam o prestígio político, celebridade e fama que amealhavam no mundo muçulmano ao assumirem a postura de campeões da fé e líderes da Jihad contra os reinos latinos do Oriente. Na condição de turcos, jamais poderiam esperar alcançar o título supremo de califa, mas certamente cabia ao califa titular reconhecer seus esforços como Defensores dos Crentes, atribuindo-lhes o título de sultão, isto é, comandante militar – uma palavra em todo caso de origem turca. A carreira de Saladino como líder político e guerreiro se iniciou à sombra de seu tio, Shirkuh. Uma das facções do Egito fatímida, incapaz de obter a vitória sobre seus adversários em meio a uma longa crise palaciana, pede auxílio a Nur al-Din. Este resolve intervir, enviando uma força de aproximadamente sete mil mamelucos e cavaleiros turcos liderados por Shirkuh. Saladino acompanhou o tio como um de seus ajudantes de campo. Contava 28 anos de idade. A interferência dos enviados de Nur al-Din contribuiu decisivamente para pôr um fim às lutas internas fatímidas. Mais do que isso, encerrou de vez o próprio califado xiita, substituindo-o por um novo governo, tendo Shirkuh como vizir, Nur al-Din como sultão e reconhecendo a supremacia do califa sunita de Bagdá, isto é, uma vez convidadas, as raposas não tardaram a se assenhorar do galinheiro. 94 ENTARDECER I N S I G H T INTELIGÊNCIA S hirkuk, porém, susteve as rédeas do poder no Egito por pouco tempo. Com sua morte, foi substituído no vizirato por seu sobrinho, Saladino. A regência do Egito em nome de seu senhor, Nur al-Din, foi a primeira experiência de Saladino como governante de fato. O novo vizir eliminou taxas abusivas que eram cobradas pelos velhos vizires fatímidas. As costumeiras, contudo, determinou que fossem escrupulosamente recolhidas ao tesouro. Conta-se que dava o exemplo, comportando-se como um governante austero e sério. O fausto das cortes orientais, o luxo descrito nos contos das mil e uma noites não eram de seu gosto. Vestiase com simplicidade, jamais ostentava jóias, apreciava boa comida, mas nada de extravagâncias em sua mesa. Observava zelosamente os rituais islâmicos da oração e presenteava os pobres que se aglutinavam nas suas portas com a esmola regulamentar. Logo começou a administrar o Egito como se Nur al-Din não existisse. Esse poderia ser um passo perigoso, mas Saladino tinha lá suas cautelas. O braço de seu senhor estava longe, e os mamelucos e turcos do exército de Nur al-Din que vieram para o Egito com Shirkuk há muito recebiam as tâmaras e as dádivas diretamente das mãos de Saladino. O Egito era rico, e quando gozava de bom governo, tornava-se mais proveitoso ainda. Isso permitia que Saladino enviasse com regularidade presentes para os emires do norte – da Síria, do Iraque, Ásia Menor, da Arábia e do Iêmen, não deixando de cumular o califa de Bagdá de dádivas para manifestar seu respeito. Quando, no ano de 1174, Nur al-Din veio a falecer, Saladino já se achava na prática como sultão do Egito. O herdeiro do velho líder, al-Salih, era uma criança. Caso lhe fosse permitido chegar à idade adulta, os Estados em torno de Mossul, Damasco, Alepo e os territórios da Ásia Menor lhe forneceriam poder suficiente para contestar a posição de Saladino no Egito. Mas o pobre al-Salih nada mais era do que uma criança. Sem emires poderosos a sustentar sua posição, dificilmente herdaria alguma coisa. Saladino, nesse episódio, demonstrou todo o seu senso de oportunidade. Tal como um raio, reuniu seus guerreiros e partiu em direção ao norte. Contando com a retaguarda dos recursos econômicos do Egito, angariou o apoio de vários emires nortistas contra o herdeiro. Nos anos seguintes, uma a uma, as cidades de Mossul, Damasco e Alepo cairiam em suas mãos. Estendeu seu domínio sobre todos os territórios que antes eram controlados pelos seu antigo senhor. Ninguém mais teria notícias do paradeiro de al-Salih, e foi assim que se encerraram os dias da gloriosa casa de Zengi. Quanto ao califa de Bagdá, nenhuma outra saída lhe restava a não ser reconhecer formalmente o poder conquistado por Saladino. Ao mesmo tempo, o novo sultão assumiu a responsabilidade quanto à dura luta contra os Estados latinos do Oriente. Uma olhadela no mapa revela que os cruzados estavam em maus lençóis. Seus Estados se encontravam totalmente envolvidos por territórios controlados por Saladino. As relações entre os adversários era sinuosa. Escaramuças e hostilidades eram pausadas por longos períodos de trégua. Ao longo do período, Saladino comemorou êxitos mas também amargou algumas derrotas. Mas o rei de Jerusalém e seus vassalos não dispunham de força suficiente para desafiar Saladino. Nesse sentido, a tática mais correta era a de cair na defensiva, confiando que a integridade de seus domínios fosse garantida pelo controle da grande rede de castelos. A forças móveis só deveriam ser usadas com o fito de socorrer fortalezas assediadas pelo inimigo. Saladino, de seu lado, só atacaria quando reunisse poder sufi- OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 95 I N S I G H T INTELIGÊNCIA cientemente vasto para tanto. Uma guerra geral contra os Estados cruzados implicava um sem-número de assédios a castelos, obtenção de máquinas de guerra e capacidade financeira para manter um grande exército mobilizado por um longo período. Ao mesmo tempo, o sultão precisava de forças adicionais para manter seus vastos domínios sossegados, o que nem sempre era fácil. Via-se assim impedido de empregar todo o seu poder contra os cruzados. Para Saladino, tudo se tornaria mais simples se conseguisse atrair o exército de Jerusalém para uma batalha em circunstâncias que lhe fossem favoráveis, destruí-lo, capturar os principais próceres da nobreza e, se possível, o próprio rei. Uma vez eliminado o exército e os dignatários, as cidades cairiam em suas mãos com muito mais facilidade, poupando seus recursos de sustentar sítios dispendiosos. Em outras palavras, o sultão precisava de um rei de Jerusalém muito desastrado, dotado de uma incompetência militar escandalosa e que atuasse de modo totalmente inverso aos seus interesses e bom senso. Caso Saladino tenha orado por isso, encontrou a resposta para suas preces na figura do rei Guy de Lusignan, coadjuvado pelo nobre “trânsfuga” Raymond de Chantillon. A crise política que produziu a conjuntura cujo ponto culminante foi a batalha de Hattin foi obra das trapalhadas de Raynald de Chântillon, o senhor de Kerak. Chântillon havia se transferido para a Terra Santa como membro da Segunda Cruzada. Era valente e um competente líder de homens. Abriu caminho na direção ao topo à custa de intrigas e na ponta de sua espada. Mas mesmo seus êxitos só aconteciam após muita bulha e confusão. Seduziu a princesa de Antioquia e com ela casou-se secretamente. O matrimônio foi cancelado, pois acontecera sem a autorização do rei Balduíno III de Jerusalém. Acusou o imperador bizantino de não pagar-lhe uma quantia em dinheiro prometida em recompensa por seus serviços militares. Como compensação, decidiu invadir Chipre. No entanto, faltava-lhe dinheiro para a empreitada. Resolveu solicitar fundos ao rico patriarca latino de Antioquia, Aimery de Limoges. O digno prelado recusou-se a colaborar. Chântillon raptou o patriarca, arrancou-lhe as vestes, untou-o com mel e deixou-o exposto ao sol no topo da cidadela. Após algumas horas de bronzeamento, Limoges decidiu ser razoável e abriu as algibeiras. Chântillon montou sua expedição contra Chipre, submetendo a ilha à mais célebre e metódica pilhagem de sua extensa história. Na volta, enquanto promovia o saque contra aldeias na Síria, descuidou-se e foi capturado pelos muçulmanos. Aprisionado como refém em Alepo, suportou 17 anos de cativeiro, sendo finalmente resgatado pela fabulosa soma de 120 mil dinares de ouro. A longa prisão de modo algum abrandou seu temperamento. Obtendo a posse do poderoso castelo de Kerak, situado ao Sul da Palestina, organizou uma frota com a finalidade de atacar os navios de peregrinos que faziam a rota de Meca no Mar Vermelho. Atacou ainda cidades costeiras na Península Arábica. Propalava aos quatro ventos que seu plano era o de organizar uma expedição contra a própria Meca, pilhar seus tesouros e incendiar a Caaba. A ousadia desmedida de Chântillon não o impedia e contar com o apoio de aliados poderosos entre os senhores francos do Oriente, ainda que não fosse difícil de imaginar que as conseqüências de seus atos poderiam atingir a todos. Kerak era uma base perfeita para interceptar as caravanas que cruzavam a rota entre o Egito e a Síria. Durante o período de uma trégua firmada entre Saladino e Guy de Lusignan, no ano de 1186, os cavaleiros de Kerak quebraram o trato atacando uma caravana particularmente rica. Saladino solicitou que Chântillon fosse punido, porém, seus aliados se opuseram violentamente e Lusignan, um rei fraco, que costumava seguir sempre a última opinião que ouvia ou quem gritava mais alto, furtou-se a cumprir seu dever e punir Chântillon. 96 ENTARDECER I N S I G H T INTELIGÊNCIA A trégua estava definitivamente rompida. Retomando as hostilidades no ano seguinte, Saladino reuniu seus emires, mamelucos, curdos e arqueiros turcomanos, invadindo a Galiléia, impondo assédio contra a cidade de Tiberíades. Ordenou ainda que os beduínos atacassem os campos controlados pelos senhores latinos, difundindo insegurança na retaguarda do adversário. O sultão levantara um exército excepcionalmente forte para aquela campanha. Ao todo, segundo os cálculos mais prováveis, seguiam seus estandartes 45 mil homens: 12 mil cavaleiros profissionais – mamelucos, turcomanos e curdos, sendo o resto constituído de irregulares beduínos e infantaria. Saladino não esperava que os senhores latinos saíssem em campo para enfrentar um exército desse porte. Contentava-se em tomar Tiberíades e melhorar sua posição estratégica no norte. O mês de junho de 1187 findava e o verão seguia tórrido. Para a imensa surpresa do sultão, o rei de Jerusalém resolvera fazer precisamente o que não devia. Proclamara um arrière ban – um chamamento geral de todos os vassalos às armas. Ao exército de Jerusalém juntaram-se as forças do condado de Trípoli, do principado de Antioquia, das cidades da costa e dos feudos de Outrejourdan. As ordens militares religiosas dos cavaleiros do Templo e de São João do Hospital deixaram pequenas guarnições em seus castelos, reunindo-se ao exército com todos os seus cavaleiros e homens-dearmas. O rei e os grandes senhores alugaram também o serviço de numerosos turcopolos, guerreiros mercenários do Oriente equipados ao estilo parta. O Rei Guy tinha consigo a força militar total dos Estados latinos: por volta de 1.200 cavaleiros pesados, 4.000 cavaleiros ligeiros (homens-de-armas e turcopolos) e por volta de 15.000 a 18.000 infantes (entre lanceiros, arqueiros e besteiros). Por esses números, Saladino desfrutava de uma vantagem de 3 x 2 em relação aos senhores latinos. Apesar do verão abrasador, o exército partiu na direção do norte para levantar o sítio contra Tiberíades. Raymond, conde de Trípoli, comandava a vanguarda; o rei liderava o centro onde estava o núcleo do exército de Jerusalém; Raynald de Chântillon e Balian de Ibelin estavam à frente da retaguarda junto com as ordens militares, a gente do senhor de Ibelin e os cavaleiros de Kerak. A infantaria marchava nas alas do exército, com o intuito de proteger com seus escudos os grandes cavalos, pois era hábito dos muçulmanos realizarem sortidas repentinas disparando flechas a distância para ferir as montarias do inimigo. Junto com o exército, como uma garantia de proteção divina e vitória, seguia a Verdadeira Cruz. Os batedores de Saladino não perdiam de vista os movimentos do exército inimigo. Ao saber de sua aproximação, deixou uma pequena tropa mantendo Tiberíades bloqueada e marchou ao encontro do inimigo. Lusignan escolheu muito mal o lugar para seu acampamento. Ordenou erguer as tendas próximas a um poço seco. Dominava sua posição a colina de Hattin, uma elevação rochosa de 30 metros de altura, encimada por dois cumes. O povo da aldeia próxima chamava o lugar de “os Cornos de Hattin”. Saladino acampou junto a um vale verdejante. Ao preparar seu estratagema de batalha, elegeu como a chave do combate o problema do acesso às fontes de água. Seu exército tinha toda a água que precisava, mas Lusignan, que escolhera desastradamente seu campo, não. O que se seguiu, no alvorecer abrasador do dia 4 de julho de 1187, foi um combate no qual o rei de Jerusalém e seus vassalos estavam derrotados antes mesmo de começar. Os muçulmanos dominavam o campo com seus velozes cavalos. Seus arqueiros impediam que os sedentos latinos alcançassem a água doce OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 97 I N S I G H T INTELIGÊNCIA do mar da Galiléia. Saladino, de seu posto de comando, estava atento a tudo. Inquietava-se quando percebia que os cavaleiros cristãos se agrupavam para uma carga. Dias antes, advertira todos os seus emires e comandantes de unidade para prestarem atenção. A ordem era de não enfrentar o choque. Deviam dispersar, sair da frente, deixando que os cavaleiros pesados carregassem sobre o vazio. Deviam, após dispersar, rodopiar as montarias e contra-atacar pelas alas, mirando suas setas nos grandes cavalos de batalha. Uma vez a pé, com o calor do sol e a agonia da sede, os pesados cavaleiros cristãos tornavam-se presa fácil para a leve infantaria muçulmana que enxameava por todo o terreno. Com o passar do dia, o calor piorando e o exército cristão desmoralizado pela sede, os guerreiros de Saladino e o próprio sultão, deixaram de lado a cautela e partiram para o confronto desejando resolver a peleja. Passaram ao ataque geral, visando a atingir o cimo da colina, onde ser erguia o pavilhão vermelho do rei de Jerusalém. Para o filho de Saladino, al-Afdal, Hattin era sua primeira batalha. Estando o tempo todo ao lado do pai, deixou-nos um vívido relato do que se passava naquele terrível dia: “Depois de o rei franco se retirar para o cimo da colina, os seus cavaleiros fizeram uma elegante investida e repeliram os muçulmanos sobre meu pai. Observei a sua consternação. Empalideceu e deu repelões na barba, para em seguida avançar velozmente gritando: ‘Ataquem o diabo!’ Portanto, os nossos homens caíram sobre o inimigo, o qual se retirou colina acima. Quando vi os francos fugirem, gritei com alegria: ‘Expulsamo-los!’ , mas eles voltaram a investir e repeliram os nossos homens de volta para onde meu pai se encontrava. Mais uma vez, este exortou os nossos homens a avançar, e mais uma vez, estes forçaram o inimigo a subir a colina. De novo gritei: ‘Expulsamo-los!’. Mas meu pai voltou-se para mim e disse: “cala-te. Não os derrotamos enquanto aquela tenda ali estiver de pé.” Nesse momento a tenda caiu por terra. Então meu pai desmontou, curvou-se para o solo, dando graças a Deus, com lágrimas de júbilo.“ 98 ENTARDECER I N S I G H T INTELIGÊNCIA O exército de Jerusalém jazia destruído e seu rei capturado. Muitos cavaleiros haviam conseguido abrir caminho e fugir. A maioria, no entanto estava morta, ferida ou capturada. Dizem os cronistas que Saladino sacou sua espada e executou pessoalmente Chântillon, o senhor de Kerak, que caíra prisioneiro. Para ele, Raynald de Chântillon não passava de um bandido. Não havia como perdoar que este, sequer, tenha pensado em conspurcar Meca. Todos os cavaleiros capturados foram poupados para resgate, menos os templários e os hospitalários. Eram detestados pelos muçulmanos e foram devidamente passados a fio de espada. Nos meses que se seguiram, Tiberíades, Acre, Nablus, Toron, Jafa, Sidon, Beirute e Jabail caíram nas mãos do Islã. Jerusalém também não resistiu. Mas diferentemente de Godofredo, Saladino aceitou a rendição da cidade e permitiu que quem desejasse partisse, levando os pertences que pudessem carregar. Primeiro exigiu resgate. Depois, simplesmente deixou que se fossem. Não foi coagido a isso por causa de uma resistência brilhante e corajosa da cidade. Saladino agiu desse modo porque quis, e nada mais. Poderia ter executado quem desejasse, vingando assim a chacina de antanho. Mas simplesmente não quis. Os problemas entre os muçulmanos e os cristãos não terminariam com a momentosa vitória de Hattin. Saladino cometeu o erro de não tomar Tiro, permitindo a manutenção de uma cabeça-de-ponte cruzada na região. Passou também maus momentos enfrentando as forças da Terceira Cruzada, cujo maior guerreiro foi Ricardo Coração de Leão. O sultão viria a falecer em 1193, contando com aproximadamente 55 anos de idade. Seu corpo jaz até hoje em sua cidade favorita, Damasco. Em julho de 1920, sua memória foi incomodada por uma tolice arrogante, tipicamente gaulesa. O general Henri Gouraud ao tomar posse de Damasco em nome da França, visitou o túmulo de Saladino, junto à Grande Mesquita, e exclamou: ¨Saladino, nós voltamos. Minha presença aqui consagra a vitória da Cruz sobre o Crescente. Teriam os muçulmanos sido justificadamente acometidos pela fúria? Creio que seria desnecessário. Esse foi um dos momentos em que a França foi apequenada, envergonhada mesmo por um de seus generais. Os feitos de Saladino não podem ser empanados pela tagarelice desrespeitosa de um mero general. E muitos muçulmanos continuaram sonhando com Hattin. [email protected] OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 99 102 ALVORECER LEONARDO BRAGA OFICIAL-COMANDANTE SUBMARINISTA DA MARINHA O ACIDENTE BRASILEIRO & o fundamentalismo português OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 103 I N S I G H T INTELIGÊNCIA “As armas e os Barões assinalados Que da Ocidental praia Lusitana Por mares nunca de antes navegados Passaram ainda além da Taprobana1, Em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram; E também as memórias gloriosas Daqueles Reis que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando, E aqueles que por obras valerosas Se vão da lei da Morte libertando, Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte.” (CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas – Canto I; Universidade de São Paulo – Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro) 104 ALVORECER I N S I G H T INTELIGÊNCIA N o ano da graça de 1119, nove homens fundaram uma pequena ordem religiosa católica devotada à proteção dos peregrinos que se dirigiam à Jerusalém. A tarefa era ingrata – do porto de Jaffa, no Mar Mediterrâneo (atualmente território de Israel), até a cidade santa, as estradas eram infestadas de inimigos da cristandade, dispostos a pilhar e a enviar sem demora os devotos para o reino dos céus. A força das armas era necessária e assim a Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão se pôs a construir, ao passar dos anos, uma longa história de enfrentamento contra os mulçumanos, onde fosse necessário. Durante os dois séculos seguintes eles foram admirados, invejados e respeitados não só pelas ações em combate como também pela habilidade em reunir consideráveis recursos para o financiamento das cruzadas. Porém, no século XIV, eles pereceram, subjugados pela conspiração e pela intriga pacientemente preparadas no seio da Igreja. Na França do Papa Clemente V a Ordem foi dissolvida pelo Concílio de Viena, e seus membros julgados e condenados por heresia. Talvez você os conheça pelas telas do cinema ou pelos romances que se acotovelam nas livrarias, falando sobre o tesouro do Rei Salomão ou pela busca do cálice de Cristo. Talvez você os conheça pelo nome mais popular – Cavaleiros Templários. A despeito da universalidade da decisão, no pequeno reino de Portugal, a perseguição não foi levada a termo. No século XII os pobres cava- leiros estiveram ferozmente engajados na expulsão dos mulçumanos, estabelecendo um vínculo visceral com a própria existência do país. Este feito foi um dos menos famosos no currículo dos monges guerreiros, mas permitiu, com a condescendência do Rei D. Diniz, a perpetuação da espécie com um novo nome – os Cavaleiros da Ordem de Cristo. Ao amanhecer do século XV, quase cem anos mais tarde, a Ordem de Cristo pôs-se a perpetuar sua cruzada num terreno bem diferente – a água. Pelas mãos de seu Grão-Mestre, o Infante Dom Henrique, os portugueses foram liderados numa empreitada de altíssimo risco e retorno mais que duvidoso. Utilizando os recursos financeiros da Ordem, Henrique, filho do rei Dom João, reuniu junto à localidade de Sagres toda a sorte de gente do mar. Lá, a sinergia entre astrônomos, cartógrafos, marinheiros e artesãos rendeu-lhe a qualificação necessária para enfrentar o Atlântico, conquistando importantes ilhas oceânicas e estabelecendo entrepostos comerciais na costa ocidental da África (por onde Portugal passou a escoar parte do comércio do Saara e a obter ouro em pó, o que lhe permitiu cunhar suas primeiras moedas de ouro). Sua empreitada ultramarina, ao contrário do que versam as cartilhas escolares, foi decerto motivada por uma forte convicção religiosa – um compromisso quase messiânico de perpetuar a OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 105 I N S I G H T guerra contra o Islã. Dentro do contexto português, de setecentos anos de ocupação muçulmana e de raivosos combates de cunho religioso, tal interpretação é perfeitamente aceitável especialmente se observarmos as dificuldades colossais envolvidas na exploração de um mar desconhecido e recoberto de lendas e histórias de mau agouro. “Navegar é preciso, viver não é preciso” é talvez uma expressão perfeita de fanatismo, e não de destemor aventureiro. Consciente das limitações do poderio militar cristão, o infante e seu pai logo teriam percebido que expedições para a reconquista da Terra Santa eram, a esta altura, inviáveis sonhos do passado. Mas o espírito cruzado permanecia vivo e era preciso a ele dar vazão. Talvez por isso, na busca por alternativas exeqüíveis, os olhos lusitanos tenham se fixado, tão obsessivamente, na obscura lenda de Preste João. Segundo informações rarefeitas de mercadores e diplomatas do Oriente Médio, deveria haver um exuberante reino cristão além dos domínios mulçumanos. Governado por um rei-sacerdote (Preste João), este reino em tese serviria a Portugal como valioso aliado na luta contra os infiéis. Sua localização era contudo im- 106 ALVORECER INTELIGÊNCIA precisa e a sua busca demandava a organização de grandes expedições marítimas e terrestres às Índias (com a conotação que a palavra tinha no século XV – qualquer lugar da África Central ao Extremo Oriente). Tratava-se de uma empreitada suicida. Os meios adequados e as técnicas necessárias nem sequer existiam. Mas havia a fé, que para o Infante Dom Henrique parecia bastar. As embarcações, as técnicas de navegação e as táticas de combate existentes não atendiam as exigências do bravio Atlântico. Destinavamse ao cenário do mar Mediterrâneo onde se desenhava a vasta teia de rotas comerciais que animava o mundo ocidental. As especiarias eram os produtos centrais da expansão econômica e percorriam o mais longo caminho. Da Índia e do Oriente Médio seguiam por caravanas até os portos do Egito e da Síria – dali, pelo mar, chegavam até a Península Itálica. Uma vez na Europa, estes produtos eram redistribuídos por intermédio de centros regionais, como Sevilha, Lisboa, Londres, Amsterdã e Hamburgo. Os consumidores finais acabavam por adquirir itens que vinham literalmente de “não sei onde”, pois afinal, mais da metade do planeta ainda estava para ser descoberta e as regiões conhecidas fora da Europa eram pobremente mapeadas. I N S I G H T INTELIGÊNCIA V eneza e Gênova, hábeis na proteção de seu tráfego mercante e dispondo de privilegiada posição geográfica, se estabeleceram como os grandes atravessadores da Europa. Os altos preços praticados garantiam generosas margens de lucro e permitiam o acúmulo de mais riqueza, utilizada também para o refinanciamento da própria atividade marítima. Por décadas a fio estas duas cidades disputaram em pé de igualdade o controle das rotas mediterrâneas, até o que os turcos muçulmanos se constituíram como a grande ameaça comum. O uso da vela como propulsor único limitavase essencialmente aos navios mercantes e aos navios de transporte de tropas. Armados à semelhança dos navios de guerra, estas naves eram construídas de modo a dispor de bons recursos de defesa, capazes de lidar com a pirataria epidêmica da época, sem comprometer o espaço para a carga. O balanceamento adequado entre estas duas características determinava o sucesso ou a bancarrota dos mercadores. A única embarcação especialmente projetada para expedições militares, em uso tanto por cristãos quanto mulçumanos, era a galera. Feita de madeira e impulsionada por velas e remos, seu desenho permitia a operação em águas rasas, bem perto da costa. A ausência de vento não era problema – os remadores garantiam a propulsão necessária e a conseqüente liberdade de manobra em batalha. Mas os músculos humanos logo se fadigam e são inúteis em longas travessias. Numa guerra de galeras o combate se dava essencialmente entre as tripulações, começando quando os navios se encontravam ao alcance das flechas. Seguia-se a abordagem, e logo os conveses se transformavam em pequenas praças de guerra flutuantes. Nas plataformas elevadas na proa e na popa (chamados de castelos) a tripulação buscava refúgio para melhor combater o inimigo que invadira o navio pela parte mais baixa (a central). A vantagem, desconsiderando a habilidade individual no manejo das armas, estava ao lado do navio maior (porque a sua borda era mais alta) e mais densamente tripulado (vantagem numérica no embate corpo-a-corpo). As ações táticas limitavam-se a bem manobrar para abordagem, para quebrar os remos adversários ou para forçar o inimigo a mover-se em águas rasas, onde haveria o risco de encalhe ou colisão com pedras e recifes submersos. A introdução da artilharia pouco iria mudar o modo de emprego das galeras dado que os primeiros canhões utilizados eram pequenos, de curtíssimo alcance, e destinados essencialmente a ferir a tripulação adversária – e não a provocar danos nos navios. O material utilizado para a confecção das peças foi inicialmente o ferro, enquanto os projéteis eram de pedra. A técnica de construção, em estágio embrionário, proporcionava pouca resistência às peças, determinando o conseqüente uso de pouca pólvora nos disparos. Em decorrência os alcances eram reduzidos e havia ocasiões em que o canhão explodia ferindo ou matando sua guarnição. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 107 I N S I G H T O uso de canhões pesados para sitiar e destruir fortalezas medievais estimulou a adoção destas mesmas peças a bordo, incrementando o poder combatente dos navios. Por certo era mais fácil operar a bordo um canhão pesado do que arrastá-lo por aí em estradas lamacentas sobre rodas de carroça. O bronze, mais resistente, foi adotado para fundição das peças. E os canhões deixaram de lançar “pedradas” para disparar projéteis maciços de ferro. Ainda assim, os alvos não seriam os outros navios. A nova artilharia embarcada fora concebida para destruir fortificações litorâneas, tal como seus pares nos exércitos. O uso de um canhão pesado contra um alvo móvel era uma sofisticação que viria mais tarde, somente quando as embarcações fossem capazes de manobrar com presteza. As galeras pareciam se prestar bem para o emprego de artilharia e se adaptavam perfeitamente à geografia do Mediterrâneo Oriental. Utilizando trajetos curtos, parando nas ilhas ou baías abrigadas do continente, iam avançando longas distâncias em pequenos passos. Mas como boa parte das embarcações litorâneas, elas não se entendiam muito bem com mares agitados. Boa parte da tripulação combatia também em terra permitindo o desdobramento de forças sem dificuldade. Uma pequena casta de profissionais a bordo era responsável pelo manuseio efetivo das equipagens do barco, tais como velas, cabos e aparelhos de força. Com a adoção dos canhões, armas vistas como altamente especializadas, juntaram-se a eles os artilheiros na composição do grupo de autênticos homens do mar. 108 ALVORECER INTELIGÊNCIA P ara o guarnecimento dos remos toda sorte de soluções foi adotada, dependendo da época e da demanda por remadores. Homens livres quase voluntários, escravos comprados, prisioneiros de guerra e criminosos condenados sentaram-se nos bancos das galeras para dar-lhes vida e movimento. Para suportar a operação dos esquadrões de galeras era preciso dispor de uma considerável estrutura de apoio. Era preciso um “dar al-sina”, expressão árabe que presumidamente deu origem à palavra “arsenal ”, denominação do complexo de instalações destinado à construção e manutenção de navios. Veneza apresenta um bom exemplo com seu Darsena Arsenale, construído e ampliado ao longo de mais de dois séculos a fim de permitir à República lidar com a ameaça dos genoveses e mais tarde dos turcos. Acredita-se que fora concebido para apoiar pelo menos vinte e cinco galeras e que contava com paióis de explosivos, oficinas de cabos e velas, carpintarias, armazéns e com o Forni Pubblici – a padaria onde era produzido um tipo especial de pão que alimentava as tripulações, o biscotti 1. A navegação era essencialmente costeira, conduzida pelos “práticos” ou pilotos, marinheiros (normalmente nativos), que conheciam por experimentação a região por onde navegam. Eles embarcavam durante o trecho de interesse e, guiados pelos acidentes geográficos e por sondagens2, indicavam ao comandante do barco o caminho a ser seguido. I N S I G H T Quando Pedro Álvares Cabral partiu de Lisboa em 9 de março de 1500, o projeto de Sagres contava com mais de 80 anos de vida e um espírito surpreendentemente vigoroso. Portugal acumulara experiência e desenvolvera um cabedal de conhecimentos náuticos de grande valor. O reino encontrava-se na vanguarda tecnológica do mundo ocidental e suas forças navais haviam construído um jeito próprio para lidar com o Atlântico e com as ameaças além-mar. Algo bem distante do mundo das galeras mediterrâneas. De fato, após inúmeras tentativas frustradas, os portugueses encontraram um reino cristão copta na África, do suposto Preste João – mas não com a pujança que esperavam. As andanças, porém, trouxeram dividendos até então inimagináveis e aí sim – os benefícios econômicos e a guerra comercial contra o Islã tornarse-iam os novos e principais propósitos de Lisboa. Pimenta, ouro, gente, canela ou pau-brasil – pouco importa. Quase tudo o que era trazido poderia ser vendido a bom preço, com lucros extraordinários. E até mesmo a captura de escravos em pouco tempo se tornaria atividade pouco dispendiosa e comum – não seria mais preciso atacar os povoados para aprisionar os aldeões. Na África de outrora os povos derrotados nas sangrentas guerras tribais eram vendidos aos portugueses pelos vencedores. Eram africanos que vendiam os africanos. Melhor do que os dias de hoje, onde os vencedores chacinam seus rivais, sem poupar idosos, mulheres ou crianças. INTELIGÊNCIA Pela aplicação da violência, os esquadrões lusitanos impuseram aos seus ditos parceiros comerciais a proibição de negociar com os mulçumanos, conduzindo assim uma espécie de “cruzada econômica”. Os povos mais fracos pouco ou nenhuma resistência ofereciam. Contra os mais fortes o conflito era inevitável e a inferioridade numérica (natural para quem opera tão longe de casa) era compensada pelo poder de destruição da artilharia embarcada. De modo pioneiro os portugueses evitavam a aproximação das embarcações nativas com o fogo dos canhões, prevenindo as tentativas de abordagem e o desvantajoso combate corpo a corpo. Tal novidade tática estava explícita nas instruções emanadas por D. Manuel para a viagem de Cabral, onde o descobridor do Brasil é orientado a evitar a aproximação de embarcações muçulmanas e a atirar contra o velame inimigo, a fim de “tornar a guerra mais segura e com menores perdas humanas em seus navios” 3. As “bocas de fogo ” serviam também como meio para intimidar as populações litorâneas pelo bombardeio de seus vilarejos e instalações portuárias. A credibilidade auferida por estas demonstrações de força permitiu aos portugueses a venda de cartas de salvo-conduto. Tratava-se de um documento, adquirido mediante ao pagamento de taxas, destinado a garantir proteção à embarcação portadora. Proteção, na verdade, contra os próprios portugueses, já que antes da chegada dos europeus, a Ásia era pouco assolada pela pirataria. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 109 I N S I G H T O padrão opressivo de conquista português, legalmente amparado por várias bulas papais, serviria de modelo para as potências européias que se seguiriam. Segundo o respeitado trabalho de Charles Boxer, Roma estabelece de modo inequívoco a cartilha do imperialismo europeu: “As três mais importantes foram a Dum Diversas, de 18 de junho de 1452, a Romanus Pontifex, de 8 de janeiro de 1544 e a Intercaetera, de 13 de março de 1456. Na primeira, o papa autoriza o rei de Portugal a atacar, conquistar e submeter sarracenos, pagãos e outros infiéis inimigos de Cristo; a capturar os bens e territórios a eles pertencentes; a reduzi-los à escravidão perpétua e a transferir suas terras e propriedades para o rei de Portugal e seus sucessores” 4. Espanhóis, holandeses, franceses e ingleses se fariam ao mar, cada um a seu tempo, apresentando às civilizações americanas e orientais a maior das inovações do ocidente – o uso eficiente e sistemático da violência. A segunda bula louva as conquistas do Infante Dom Henrique e lhe atribui a tarefa de circunavegar a África em busca de povos que “segundo se diz, honram o nome de Cristo ” 5 – uma clara referência à procura por Preste João. Não é tarefa fácil para os leitores do século XX entender a magnitude da empreitada portuguesa. Em especial nós, brasileiros, fomos impelidos pelo ensino regular a entender como triviais as grandes navegações, desconhecendo os aspectos práticos, a dimensão humana e o forte cunho religioso, capaz de mover os homens em direção a enormes perigos, no limite da sanidade. 110 ALVORECER INTELIGÊNCIA Na verdade, antes de pensarmos em ações de caráter militar, há uma longa estrada a ser percorrida para que uma instituição privada ou estatal se faça ao mar. É preciso dispor de (ou contratar) homens habilitados, conhecedores do ofício, minimamente organizados numa cadeia de comando. São necessárias embarcações adequadas e entrepostos de suporte logístico para apoiá-las com suprimentos, munição e manutenção. E, além disso, é fundamental deter a capacidade de se orientar no mar (navegação) e de compreender os fenômenos naturais que afetam o navio (meteorologia e hidrografia). Os portugueses responderam de modo satisfatório a cada uma destas questões. Mas para tal, desenvolveram e fizeram uso de duas ferramentas bem distintas – as expedições de exploração e as expedições comercial-militares. As viagens de exploração tinham como propósito reunir dados sobre o regime de ventos, correntes marinhas, contorno da costa, acidentes geográficos e entrepostos comerciais. Para delas dar conta, os portugueses empregaram a caravela. Rápida, arisca e apta para navegar em mares agitados, esta pequena embarcação deslocava de 100 a 300 toneladas e tinha um calado6 reduzido, o que permitia o trânsito em águas rasas. Dispunha normalmente de dois mastros e envergava velas latinas. Ao contrário da galera, não empregava qualquer tipo de remo em sua propulsão. I N S I G H T A s velas latinas têm um formato triangular e são empregadas nos dias de hoje nas embarcações de esporte e recreio. Sua principal vantagem, em comparação àquelas em uso na época (quadradas), é a de permitir o deslocamento do barco em rumos mais próximos do vento. Isto porque, ao contrário do que reza o senso comum, os veleiros não são necessariamente empurrados pelo vento. Imaginemos um veleiro parado, como na Figura 1. O vento está entrando pelo seu bordo direito (que chamamos de boreste) e saindo pelo seu lado esquerdo (que chamamos de bombor- INTELIGÊNCIA do) com suas velas soltas ao vento. A vela é então bem ajustada pelo navegador, e sob um vento de intensidade moderada, passa a apresentar uma superfície bem lisa, encurvada como uma banana. O vento que sopra encontrará no belo pano branco um novo caminho, sendo desviado em direção à popa do barco. Mas por trás do pano cria-se uma zona onde o ar encontra-se em menor quantidade, e portanto numa pressão menor. Como resultado, a vela é, na realidade, “ sugada ” arrastando consigo o mastro, e por conseguinte a sua base, presa ao navio. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 111 I N S I G H T Reparemos que, ao final das contas, a força do vento irá mover o navio não na direção em que aponta sua proa, mas sim, numa direção aproximadamente perpendicular à posição da vela. Em termos comuns o navio vai andar para frente e vai “rolar” para o lado também. Para minimizar este efeito indesejável, é necessária uma bolina, acessório similar à barbatana de um tubarão, instalada na espinha dorsal do navio (a quilha). Ela opõe uma resistência ao deslocamento lateral fazendo com que o movimento pra frente seja maximizado. É possível navegar assim até por volta de 30o defasado da direção do vento. Em arcos menores a vela é ineficaz. Deste modo, para atingir um lugar que está exatamente na direção de onde o vento vem, é preciso fazer sucessivas manobras de ziguezague, mantendo o vento ora 112 ALVORECER INTELIGÊNCIA por um lado do barco, ora pelo outro, como mostra a Figura 2. Leia-se, usando um barco a vela, a menor distância entre dois pontos não é necessariamente uma reta. Na navegação à vela vemos no exemplo que uma rota direta do Ponto A ao Ponto C é impossível. Forçosamente será necessário atingir um ponto B, mais afastado. Considerando o regime de ventos predominante no Atlântico Sul e as limitações do emprego da vela, percebemos que a melhor rota entre Lisboa e o Extremo Sul da África é um grande arco beijando o litoral brasileiro ou uma sucessão de arcos menores. De qualquer modo, este estratagema implicava um incômodo afastamento da costa, tornando inúteis as técnicas de navegação baseadas em referências de terra. I N S I G H T E m seu livro “De Vasco a Cabral” o professor Luís Adão da Fonseca apresenta um episódio, considerado não totalmente verídico, narrado pelo cronista Gaspar Correia sobre a expedição de 1498, em que Vasco da Gama dobrou o Cabo da Esperança e pela primeira vez atingiu as Índias. Trata-se de uma bem vinda ilustração sobre o moral a bordo durante as pernadas em arco: “E lá passando de um mês que corriam nesta volta, fizeram volta à terra vindo de lá quanto podiam, todos pedindo a Nosso Senhor que fossem dobrados além da terra, mas quando a tornaram a ver foram mui tristes; mas acharam-se muito avante, pelos sinais das sondas que os pilotos tomavam e viram terra de outra feição que não tinham visto, e, vendo que a costa corria pera o mar, os mestres e pilotos foram em muita confusão, e duvidosos de tornarem outra vez ao mar, dizendo que aquela terra atravessava o mar e não tinha cabo. O que ouvido por Vasco da Gama [...], disse aos pilotos que não cuidassem tal, porque sem dúvida eles achariam cabo àquela terra, e além dele muito mar, e terras que correr. [...] O que lhe[s] Vasco da Gama dizia por os esforçar, porque os via mui desacoroçados, e em propósito de quererem arribar a Portugal [...]. Vasco da Gama, parecendo-lhe já tempo, mandou que fizessem outra volta, mostrando-se muito agastado, jurando que, se o cabo não dobravam, havia de tornar ao mar tantas vezes até que o dobrasse, ou fosse o que Deus quisesse.”7 INTELIGÊNCIA Vasco da Gama mostrava-se irritado e contrafeito (agastado) com seus compatriotas incrédulos e acovardados (desacoroçoados). Mas era preciso perseverar na busca pelo Cabo das Tormentas (rebatizado de Cabo de Boa Esperança), já visitado por Bartolomeu Dias em 1488. Perdoe-me o ilustre navegador português (e cavaleiro da Ordem de Cristo), mas qualquer ser humano minimamente lúcido teria mesmo pedido para voltar para casa (arribar a Portugal). A navegação astronômica era a técnica que permitia o afastamento considerável de terra, mas naturalmente, era um ofício de muito poucos a bordo. O marinheiro médio pouca instrução possuía e sua alma era brutalizada pelos rigores do mar. Uma viagem de ida e volta para as Índias durava mais de dois anos, desfazendo os laços emocionais e familiares com parentes e prometidas em Portugal (isto é, para aqueles que voltassem vivos). As condições sanitárias seguiam os padrões medievais. Mas some ao rosário de martírios a precariedade da alimentação, paupérrima em alimentos frescos e o racionamento de água doce – pouca e valiosa considerando os longos períodos de travessia e as altas temperaturas observadas nos conveses cobertos, quando navegando nas regiões tropicais (50oC). Os barbeiros sangradores eram os médicos de bordo. Não gozavam de qualquer prestígio e ganhavam menos do que um marinheiro experimentado. Talvez para a melhor compreensão, fosse melhor chamá-los de açougueiros, pois lhes eram exigidas tão somente as habilidades para cortar e costurar feridas. Faziam uso também das “cousas de botica”: ungüentos, óleos, pós e pomadas, normalmente reunidos numa arca e aplicados sob vaga prescrição, tal como um baú de tolas panacéias. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 113 I N S I G H T INTELIGÊNCIA C omo era de se esperar, os índices de mortalidade eram muito altos, em decorrência não só dos suplícios de bordo, mas também pelo contágio de doenças tropicais e pelos ferimentos em combate. Como cita o Irmão Manuel de Morais, da Companhia de Jesus “E assim sustentamos os doentes que não padecessem de todo, porque alguns deles não eram doentes senão de pura fome, e outros das gengivas e das pernas que quase todos as incham no Cabo da Boa Esperança onde já todas as coisas de comer não têm substância”8. Vários historiadores convergem, pela análise dos registros disponíveis, para a estima de 40% de mortos entre as tripulações portuguesas do século XVI. Não é a toa, que no dito popular, se fala sobre um moribundo como aquele que “já cruzou o Cabo da Boa Esperança”. A vontade férrea dos comandantes, normalmente nobres, cavaleiros da Ordem de Cristo, só encontrava semelhança nos dias de hoje à determinação dos homens-bomba. Para os tripulantes, alguns deles recolhidos entre vagabundos e mantidos acorrentados para que de bordo não fugissem, era mesmo difícil entender como a coisa toda se passava. Como poderia um homem, olhando para o céu e empunhando um pedaço de madeira, determinar onde eles se encontravam e para onde deveriam ir?Porque insistia em prosseguir diante de tantos riscos e interrogações? 114 ALVORECER Expedições comercial-militares, como a de Pedro Álvares Cabral, utilizavam um navio de maior capacidade de carga – a carraca ou nau. Boa sorte de velas, entre latinas e quadradas adornava seus mastros na tentativa de bem aproveitar o vento de todas as direções e intensidades possíveis. O castelo de popa foi incorporado ao desenho do casco e o castelo de proa tornou-se mais leve, a fim de permitir ao navio uma recuperação rápida da proa, quando atingida e coberta por ondas grandes. No auge do seu primor, a carraca atingiu até 2.000 toneladas e supõe-se ter dado origem aos famosos galeões9. Há um consenso de que em torno de dez carracas e três caravelas compuseram a expedição de Cabral10, a maior força-tarefa a cruzar o Atlântico até então. Apenas seis navios viram Lisboa novamente. Considerando que uma das naus foi utilizada para transportar de volta a carta de Caminha, e que uma outra perdeu-se no caminho, regressando prematuramente, contabilizamos um total de cinco navios naufragados (quatro deles numa tempestade junto ao Cabo da Boa Esperança e um na viagem de regresso)11. Alguns historiadores se perguntam como estas expedições ultramarinas, apoiadas por pouco mais de uma dúzia de entrepostos comercias e fortificações, permitiram à pátria de Camões estabelecer séculos de dominação na vastidão contida entre a costa oriental africana e o Japão empregando um contingente militar tão reduzido. De fato é preciso perceber que os recur- I N S I G H T sos do mar nunca estiveram (até o século XX12) associados à noção de território. E aí jaz uma das grandes diferenças entre a guerra terrestre e a guerra naval – não há sentido em falarmos de posições, regiões conquistadas ou ocupadas. Faz sentido em falarmos sim, de controle sobre uma área marítima. Como são bastante vastos os oceanos, o controle de um modo geral não pode e nem deve ser exercido com muito rigor. Na verdade, o esforço de toda potência naval sempre se traduziu no envio e manutenção de navios de guerra nas regiões focais – aquelas em que a atividade marítima apresenta-se concentrada. São normalmente entradas de portos, baías, limites de canais, estreitos e todo o local por onde os navios sejam obrigados a fluir – foram nestas regiões, não tão numerosas, que os portugueses concentraram seus esforços. Dom Henrique ficaria certamente regozijado se, alguns séculos após a sua morte, pudesse presenciar o resultado da cruzada econômica portuguesa. O progressivo esvaziamento da rota ter- INTELIGÊNCIA restre de especiarias, que fez ruir lentamente o maior entre os reinos mulçumano – o Império Turco Otomano. Mas uma cena em especial talvez o fizesse abrir um grande sorriso. A bandeira da Ordem de Cristo, desfraldada em lugar de destaque na primeira missa celebrada no Brasil, como reza a Carta de Pero Vaz de Caminha: “Ao domingo de Páscoa pela manhã, determinou o Capitão ir ouvir missa e sermão naquele ilhéu. E mandou a todos os capitães que se arranjassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou armar um pavilhão naquele ilhéu, e dentro levantar um altar mui bem arranjado. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual disse o padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que todos assistiram, a qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção. Ali estava com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saíra de Belém, a qual esteve sempre bem alta, da parte do Evangelho.” 13 [email protected] NOTAS 1. Rose, Susan – Medieval Naval Warfare – Routlegde 2000, pg 23 a 26 2. Medição da profundidade do local. Atualmente é realizada por sonares ecobatímetros mas, na época, utilizava-se tão somente um cabo comprido, com nós e marcas, com um peso na ponta. 3. Parker, Geoffrey – The Military Revolution: military inovation and the rise of the West – Cambrigde University Press, 1996 – p. 94. 4. Boxer, Charles – O Império Marítimo Português 1415-1825; Companhia das Letras – 2002, p. 37 5. Boxer, Charles – O Império Marítimo Português 1415-1825; Companhia das Letras – 2002, p. 37 6. Distância entre a linha de flutuação e parte mais baixa do navio, seja ela a quilha ou um acessório qualquer, como uma bolina. 7. Fonseca, Luís Adão da – De Vasco a Cabral: Oriente e Ocidente nas navegações oceânicas – EDUSC, 2001 – p. 33. 8. Rodrigues de Abreu, Rui Manuel – Apontamento para a História da Medicina Militar. A Marinha – Revista Militar, OUT/2006. 9. Giorgetti, Franco (Editor) – The Great Sailing Ships: The History of Sail from its origins to the presente day – White Star 2001 – p.39. 10. Fonseca, Luís Adão da – De Vasco a Cabral: Oriente e Ocidente nas navegações oceânicas – EDUSC, 2001 – p. 89. 11. Fonseca, Luís Adão da – De Vasco a Cabral: Oriente e Ocidente nas navegações oceânicas – EDUSC, 2001 – p. 204 12. Antes do século XX as iniciativas para delimitação do mar territorial foram incipientes e mormente regionais, tornando-se costumeira a adoção de uma faixa de 3 milhas de largura a partir da costa. 13. A Carta, de Pero Vaz de Caminha; Universidade de São Paulo – Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 115 116 (R ISOS ) OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 117 118 (R ISOS ) I N S I G H T INTELIGÊNCIA ’ 1. CREPUSCULO Cansado, chegou ao barraco. No espelho, contemplou seu último nariz. Como o cirurgião não removera o anterior, desde a última operação, ele tinha quatro narinas. Se fosse nos seus dias de glória, aquilo viraria moda. Descalçou os sapatos; tirou as roupas íntimas, que lhe disfarçavam a barriga. E as não íntimas, que escondiam a decadência geral. Guardou a dentadura, pôs a peruca no cabide, desatarraxou a perna postiça. Tirou as lentes de contato. Um olho era de vidro: colocou-o na geladeira. A maquiagem, derretida, havia deixado um rastro por onde ele passara. Em outros tempos, as fãs o teriam lambido. Verificou o marca-passo: estava funcionando, mesmo com a bateria vencida. Aliás, baterias vencidas eram um problema também do aparelho anti-surdez, um modelo antigo que não cabia atrás da orelha. O rim solitário incomodava, e ele se lembrou que vendera o outro a um traficante de órgãos. Com o dinheiro, fez uma viagem a Jeremoabo, na Bahia. Um dia, ele cantara ali, num grande show. Um pênis de borracha substituía o original, reduzido a farelos pelo câncer. Peça móvel, como as outras, também depositada na gaveta, como as outras. Quantas mulheres havia tido? Impossível contar. Hoje, portava um pênis falso, somente útil para fins urinários. Para reduzir o mau hálito, habituara-se a manter uma medalha de Nossa Senhora de Fátima e um limão sem casca embaixo da língua. Funcionava. (Mas, agora, quase esquecia de cuspi-los.) Da mão direita, dois dos dedos eram artificiais: tirou-os, e os colocou na gaveta. Ainda bem que, com os três restantes, podia fazer quase tudo. Como isso que ele estava fazendo neste instante: apontando o revólver contra o ouvido e estourando os próprios miolos. O sangue que lhe jorrou da cabeça tinha sido recebido em transfusão, duas horas antes. Na breve notícia do dia seguinte, o jornal considerou isso um desperdício. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 119 120 (R ISOS ) I N S I G H T INTELIGÊNCIA 2. CABECA PENSANTE ’ D omador de animais ferozes há trinta e cinco anos, Antonio Severiano ficou sabendo que ia ser mandado embora. E que os seus leões seriam abandonados próximos a um culto religioso, onde havia carne macia em abundância. Nada disso tinha a ver com a globalização. Apenas, o dono do circo perdera a paciência. Alimentar as feras custava caro e ninguém mais queria saber de leões e domadores. Antonio ficou devastado, porém não surpreso. Sabia que o público se desinteressara de seu espetáculo. Tinha reagido, inventando novos quadros. Uma, duas, cinco vezes, sem nenhum resultado; seis, sete, dez outras, e nada. Em desespero, decidira superar seus limites: desde há um mês, enquanto os tambores rufavam, ele punha sua cabeça dentro da boca de Espartaco, o maior dos oito leões. Era uma temeridade, mas, fazer o quê? Mesmo assim, a platéia se manteve indiferente. O patrão percebeu e tomou sua decisão. Antonio viu o mundo desmoronar. Vivia daquilo. Pediu clemência. Não adiantou. E, assim, neste seu último dia no emprego, ele está ali, enfrentando as feras. O número chega ao clímax: sob o rufar dos tambores, Antonio Severiano põe a cabeça na boca de Espartaco. Ato contínuo, num gesto súbito e inapelável, o leão trinca os dentes, decapitando o domador. No instante seguinte, o Antonio sem cabeça se põe a dar voltas frenéticas pelo picadeiro, jorrando sangue em grandes golfadas. Espartaco abre a boca e cospe o pedaço de gente que quase engolira. De uma pessoa, o domador se transforma em duas: o tronco com as pernas e os braços, que sai correndo em círculos feito louco, tingindo o circo de vermelho; e a cabeça, que fica plantada no chão, os olhos esbugalhados observando a cena. E então o público entende que aquilo tudo faz parte do show e começa a aplaudir vibrantemente. Gritos de viva ecoam sob a lona, em um delírio geral. Há uma atmosfera de entusiasmo. As crianças estão empolgadas, pois são crianças; o vendedor de pipocas joga os saquinhos para o ar, em puro deslumbramento; o dono do circo chora, de incontida alegria; o domador decapitado gira a esmo pelo palco, como se fosse de felicidade. Mais uns poucos segundos sob intensos aplausos e o Antonio sem cabeça dá a sua última volta, antes de tombar para sempre, branco como um giz, em estertores. A platéia se põe de pé, em uma ovação jamais vista. Nos bastidores, trapezistas, macacos, palhaços e mágicos se cumprimentam efusivamente. Trepados nas arquibancadas, meninos e meninas devoram as pipocas caídas do céu, muitas delas pintadas de vermelho. Eufórico, o dono do circo entra na jaula – com um pontapé, afasta do caminho a cabeça do domador – e abraça Espartaco, de cuja boca ainda escorre um resto de sangue humano. No chão, agora toda melada de cocô, mas com os olhos bem abertos e um sorriso vitorioso nos lábios, a cabeça de Antonio Severiano somente tem tempo para os dois momentos de sua última reflexão: – Por que não pensei nisso antes? Por que não pensei nisso antes? OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 121 122 (R ISOS ) I N S I G H T INTELIGÊNCIA 3. LEDO E CRASSO NA ESCOLA Quanto ao mais, estava tudo bem. Mas ele se chamava Ledo e havia aquela associação. Pior sorte, só a do mano Crasso. Na escola, Dona Marta era a mais impiedosa: – Você fez boa prova, mas cometeu um erro, Crasso. Os outros alunos riam. Como irmão mais velho, Ledo às vezes tomava-lhe as dores. A professora não perdoava: – Não estou perseguindo ninguém, Ledo. Engano seu. E a coisa terminava em gargalhadas. A vingança dele era saber que um dia, não muito distante no tempo, diante do inevitável aumento da competição causado pela abertura da economia e pelo progresso tecnológico, Dona Marta iria para o brejo. Antes mesmo de começar a globalização. Professora de latim, o marido empregado em empresa estatal e uma filha estudando datilografia… Eta futuruzinho incerto! PREVISÕES ECONOMÉTRICAS Certa feita, já adulto, o empresário Ledo, do ramo secos e molhados, bebeu demais, botou alta velocidade no carro, entrou na contramão e se chocou de frente com um caminhão. Só não morreu por engano. Pouco antes, ele tinha contratado uma consultoria muito cara, a Liverpool Economic Data Analysis, Leda, que, rodando um modelo econométrico com 453 equações, fez projeções a torto e a direito sobre o Brasil, o mundo, e o setor onde o empresário operava. Tudo matemático, perfeito. A economia brasileira iria reduzir seu crescimento para 0,23% ao ano, no primeiro trimestre, mas se recuperaria depois, fechando os doze meses com uma expansão de 3,42% do PIB. As importações, no cenário que incluía a manutenção flexibilizada da política cambial, iriam aumentar em 4,85%, a partir de abril, quando o modelo previa um déficit público de 3,57% do produto interno bruto. E o ramo de secos e molhados poderia exportar mais 5,42%, no próximo ano, mas apenas nos três últimos trimestres e isso se a desoneração do ICMS fosse mantida, o que só teria sido provável se viesse a acontecer. Para o primeiro trimestre, o setor sofreria uma redução de 49,87% nas vendas, garantia o modelo da Leda. No hospital, lembrando dessas econometrias, Ledo consolavase com o pensamento de que ficaria internado três meses, exatamente os piores do ano, para seu negócio. Poderia até dar férias coletivas aos empregados. Quando voltasse, as coisas estariam bem. Ledo engano: a Leda engana. ARTE E BONS NEGÓCIOS Ao saber que um quadro de Dali, aquele da mulher com três cabeças e meia, havia sido vendido por sete milhões de dólares (dois milhões per capita), Ledo e Crasso decidiram promover a Primeira Bienal de Arte Moderna na pequena cidade interiorana em que moravam. Assim o fizeram. No Diário de Cricri, Pedro Pierre escreveu sua crítica: “Atenção amante da arte: a Bienal está imperdível!!! Imagine que, após passar na bilheteria, você entra na sala de exposições, onde não existe absolutamente nada, exceto o chão, as paredes e o teto. Não há qualquer objeto que possa ser tocado, cheirado, ou contemplado. Brilhante. É a vitória definitiva do abstracionismo picassiano sobre o concretismo pós-meridional. A única, única, única, concessão ao mundo real é o preço do ingresso. (Por sinal, uma nota.) O máximo! Todo o entusiasmo é justificável. E o leitor que me desculpe o tom emocional. É-me impossível conter a imensa alegria que sinto em não ver a arte contemporânea. Vá lá também, você merece!” Houve quem percebesse uma sutil ironia nas duas últimas frases do crítico. Pouca gente. A Bienal constituiu um grande sucesso: tudo o que os promotores diziam estar exposto foi vendido durante o próprio evento. Ledo e Crasso ficaram ricos. Os compradores, confiantes em Pedro Pierre, acham que fizeram um grande negócio. Ainda mais porque as obras compradas não ocupam espaço, não têm custo de transporte e nem podem ser roubadas. Em breve, alguém as chamará de meta-virtuais e aí será a glória. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 123 124 (R ISOS ) I N S I G H T INTELIGÊNCIA 4. BRAVO ! Um instante depois de fazer soar a última nota do seu concerto, o velho pianista ouviu a platéia gritar “Bravo!, Bravo!”. Ele se levantou da banqueta, foi até o centro do palco; respeitosamente inclinou-se para frente; apontou para a orquestra, numa forma de dizer que queria dividir com ela aquele momento de glória; e os aplausos continuaram. Então, o artista curvou-se outra vez, antes de se afastar para os bastidores. Mas o som das palmas ficou mais forte, forçando-o a reaparecer. Novos cumprimentos ao público; e os aplausos não pararam. Pela segunda vez, o pianista se retirou. Como as palmas continuassem intensas, voltou novamente ao palco; de novo, dali saiu e, outra vez, teve de retornar. Quinze minutos mais tarde, com a orquestra ainda de pé, o público não se aquietara. Se isso era inusitado, o que dizer, duas horas e quarenta minutos depois? Sem parar de aplaudir, um estatístico presente ao concerto havia contado cento e vinte e oito idas e vindas do pianista ao palco; duzentas e oitenta e nove expressões de agradecimento; trezentas e quarenta e cinco flexões em frente ao público. Em média, cada pessoa, tão feliz que ria à toa para o pianista e os músicos, havia batido oito mil, trezentas e vinte e duas palmas. Às quatro da madrugada, o público ainda aplaudia; a orquestra ainda estava de pé, o pianista ainda ia e vinha, fazendo flexões de agradecimento. Desde a meia-noite, a energia elétrica havia sido cortada, mas os músicos da orquestra não se sentaram, nem as palmas cessaram, nem o pianista deixou de ir e vir. Cinco horas depois, alguém lhe ofereceu um sanduíche e um copo d’água, que ele comeu e bebeu andando e se inclinando em agradecimento pelos aplausos. Eram nove da manhã. A polícia tinha sido mandada terminar com aquilo, mas, ao chegar ao teatro, os soldados apenas se juntaram à multidão nos aplausos. Até então, o artista havia caminhado quatro quilômetros, oitocentos e trinta metros. Na platéia, as pessoas já não riam, nem para o pianista, nem para os músicos da orquestra, nem para os vizinhos espectadores. Havia, sim, uma expressão de cansaço, talvez até de raiva, se bem que disfarçada pelo contínuo bater de palmas. Pouco antes das onze horas, mais de cem homens e mulheres no público tinham as mãos sangrando, pelo esforço continuado. A incontinência urinária de muitos era visível; além disso, um número grande deles havia defecado sob as roupas, causando intenso mau cheiro. Logo apareceram ratos lambendo as poças de sangue, urina e fezes no chão. E moscas, em nuvens. Do fim do concerto até as duas horas da tarde do dia seguinte, trezentas e quarenta e oito pessoas haviam desmaiado. Quando despertavam, se punham de pé, novamente a aplaudir. Os homens e mulheres já não disfarçavam um ódio intenso contra o pianista e os músicos que os mantinham presos a um tal absurdo; e contra todos os demais ali presentes, amontoados, sujos, fedendo-se uns aos outros. Mesmo assim, as palmas não esmoreciam. Na tarde daquele dia, a Câmara Municipal aprovou um projeto que proibia aplausos por mais de cinco minutos nos teatros sob sua jurisdição. O prefeito sancionou a lei na manhã seguinte, mas uma liminar impediu sua aplicação retroativa e as pessoas continuaram a aplaudir o pianista, sem mais questionamentos jurídicos. Já estavam no terceiro dia. Devidamente anotados pelo estatístico, dezoito mortos jaziam na platéia, nas frisas e camarotes, sem que ninguém fizesse nada para removê-los, presos que estavam ao incessante aplauso. Aplauso, diga-sede passagem, nem era mais um termo correto. Pois, em vez de palmas batendo em palmas, já eram, em muitos casos, ossos estalando em ossos, fazendo um curioso toc-toc. Mas, quer fossem aplausos ou estalos, não iriam parar tão cedo. Quatro dias depois de terminado o concerto, o pianista ainda OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 125 I N S I G H T ia e vinha ao palco, agora numa cadeira de rodas. Suas flexões de agradecimento se haviam tornado imperceptíveis. Não houve um segundo sanduíche (o primeiro, ele vomitara) nem um novo copo de água. Os músicos permaneciam de pé, enquanto os toc-toc de ossos contra ossos, como se fossem palmas, continuavam. Do lado de fora, uma multidão se formara de curiosos, políticos, flanelinhas, jornalistas e familiares dos espectadores e músicos. A irmã do pianista, nos seus setenta e muitos anos, repetia, baixinho: “Um dia tinha de dar errado; um dia tinha de dar errado”. Mas não explicava o que estava dizendo, nem era perguntada a respeito. E a verdade é que, muito além dos temores da irmã, coisas ainda mais chocantes estavam a ponto de acontecer. Os relógios marcavam quatro e meia da tarde quando o pianista, ao tentar a sua centésima milionésima terceira flexão de agradecimento,desequilibrou-se, caiu da cadeira de rodas e estatelou-se no chão. Recobrou-se, dois ou três segundos depois, já sem tempo de evitar a tragédia da qual ele seria a primeira vítima. Foram os únicos dois ou três segundos, desde o fim do concerto, quase uma semana atrás, durante os quais, enquanto o público aplaudia, o pianista fazia outra coisa além de ir, ou vir, ou se curvar em agradecimento. Deve ter sido isso que quebrou o encanto. Quando, finalmente, o artista se pôs de pé, logo percebeu que uma revolução havia ocorrido. Detrás, os músicos corriam em sua direção, aparentando enorme agressividade; da frente, o público já começara a escalar o palco, igualmente dando mostras de um irrefreável ódio. INTELIGÊNCIA No instante seguinte, músicos e espectadores se precipitaram sobre o pianista rasgando suas roupas meladas de vômito, fezes e urina, arrancando-lhe os cabelos desalinhados, comendo-lhe as carnes e chupando-lhe o sangue. Especialmente disputados, os olhos azuis do velho artista motivaram uma briga particular entre dois espectadores que tinham curso de gastronomia. Em três minutos, daquele homem que fora tão aplaudido, só restavam os ossos, dispersos pelo palco, depois de cinco mil, quatrocentas e oitenta e duas mordidas. Como por ironia, seus dedos descarnados jaziam sobre o teclado, formando um perfeito ré menor. Mas o pior ainda estava por vir. Vendo-se frente à frente dos músicos, a multidão de espectadores começou a atacá-los, como havia feito com o pianista, numa luta de dentes contra dentes; unhas contra unhas; cabos de guarda-chuvas contra hastes de violinos, violas, violoncelos e contrabaixos; bolsas femininas contra oboés, fagotes e clarinetes (afinal, era uma orquestra sinfônica). Venceu o público, pela superioridade numérica, apesar da desvantagem em armamentos. Dos quarenta e nove músicos, como, antes, do pianista, sobraram apenas ossadas desconexas, dispostas pelo chão sem qualquer harmonia. E, já que havia começado, a turba enlouquecida iria terminar. O ato final do concerto foi uma batalha de dezoito mil, trezentas e setenta e duas dentadas de espectadores contra espectadores rasgando-se mutuamente, comendo-se uns aos outros, chupando o sangue de quem estivesse ao alcance. Sem um único grito de “Bravo!”, o último movimento superou as fantasias mais alucinadas dos compositores pós-modernos. [email protected] 126 (R ISOS ) ADIADO AMANHECER O BRASIL DO BREU NO FIM DO TÚNEL ! ? LUIZ CÉSAR FARO JORNALISTA !? OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 127 I N S I G H T NA MOSCA: não existem condições de discutir políticas pró-ativas de crescimento da economia a taxas mais elevadas para o quadriênio do segundo mandato do governo Lula ou mesmo para as futuras duas décadas se não for executado um programa urgente de expansão da capacidade de oferta no setor de energia elétrica e de aumento das vias de acesso e escoamento e redução dos custos dos transportes. Ao contrário do que foi dito durante todo o ano de 2005 e, de forma superlativa, na maior parte de 2006, as principais determinantes do crescimento não são, na presente conjuntura, as variáveis fiscal, monetária e cambial – o que não quer dizer que elas não sejam relevantes. É a infraestrutura o cobertor curto. Com o agravante de que não só limita a expectativa de melhoria do futuro como ameaça com sinalização de crise para um amanhã bem próximo. As advertências e a proposta que seguem pretendem nada menos do que oferecer uma tábua de salvação para o crescimento econômico do país. O autor destas linhas tenciona lançar mão de uma pitada de keynesianismo de boa cepa e borrifar com água benta os satanizados investimentos do setor público nos setores de energia e logística, os quais, em um modelo perfeito, estariam reservados para que o setor privado desse grande contribuição ao desenvolvimento nacional. O eventual estilo jocoso não busca magoar um ou outro gestor, mas subli- 128 F OGO-FÁTUO INTELIGÊNCIA nhar questões graves. Antes que os privatistas agudos acusem o signatário de viúvo dos Planos Nacionais de Desenvolvimento (PNDs) das décadas de 1960 e 1970, é melhor que leiam com atenção os motivos, a arquitetura da idéia e forma como o mercado será contemplado. A ideologização, desdém e tibieza no equacionamento da infra-estrutura podem nos custar anos e anos de lamentações, ainda mais agudas. Deixo claro não só que as expectativas de desenvolvimento estão atadas como também existem riscos de constrangimentos inaceitáveis no direito de ir e vir, suprimento de mercadorias e atendimento a todas as necessidades básicas vinculadas ao fornecimento de energia elétrica. A coisa não é para brincadeira. Agora, passadas as eleições, o governo deveria abrir o coração e dar transparência à situação de frangalhos dos alicerces que poderiam sustentar um crescimento acelerado. Tanta franqueza não equivale a um convite à expiação de culpa, mas constitui ponto de partida para um processo de “consertação” da sociedade – conforme prefere a inteligentzia do PT – em apoio a um ciclo de estatização transitória dos projetos estruturantes em energia e logística. Os adversários da proposta serão os que objetam à “estatização” aliados aos que se opõe ao “transitório”. I N S I G H T INTELIGÊNCIA Mas o aposto “transitório” não é mero detalhe. Os projetos estruturantes emergenciais devem ser realizados com objetivo de serem rentáveis e, logo após sua conclusão, transferidos à iniciativa privada, de preferência através da pulverização do controle no mercado de valores mobiliários. Entendam-se como projetos estruturantes, não o recapeamento de estradas e rodovias, manutenção de linhas de transmissão e construção de dutos, entre outras missões permanentes do Estado, mas sim obras de impacto nos macrossistemas e caráter de urgência, que afastarão o risco de crise sistêmica logo à frente e desobstruirão a principal artéria do crescimento. Por motivos que serão demonstrados, a delegação do setor privado para o encargo desta tarefa – o que seria o estado da arte nesta equação – é pura purpurina em um discurso meramente ideológico. Para não variar nunca, o ideal caminha paralelo ao real. Mas, não se trata também de uma volta ao tempo da hipertrofia da máquina do Estado, com a reutilização do sufixo “bras” para justificar a ressurreição dos mamutes pré-históricos da fase de substituição das importações. Estamos falando da garantia de que os investimentos públicos nas hidrelétricas, termelétricas, portos, rodovias, ferrovias e anéis rodoferroviários renderão dividendos para toda a sociedade, além da sua função antecedente e precípua de esteio do crescimento econômico e seguro contra uma débâcle dos serviços essenciais à sociedade. Fiquem tranqüilos, porque não faltarão gestão profissional e governança corporativa, além, é claro, de lucros de padrão internacional para distribuição a uma pletora de acionistas. O modelo proposto de privatização futura é o da public company, antídoto para “privatarias” e velho biotônico de um estado desejável de socialismo invisível. Parece tudo confuso e extravagante, não? Veremos que há fundamento no diagnóstico e método na proposição. Do binômio essencial composto por energia e logística, a primeira é certamente o principal fator de risco no presente e o grilhão que mais acorrenta um radiante porvir. Não adianta caçar bruxas para queimar na fogueira. O desacerto vem de muito tempo. E os remendos e esparadrapos usados para encobrir os desajustes do sistema aprofundaram ainda mais a esquizofrenia do modelo. Um estudo da Fundação Getulio Vargas feito para o governo revela uma majoração das tarifas de energia elétrica da ordem de 110% desde dezembro de 2002. Nada contra o governo Lula. Este foi apenas o período de análise. Se tivesse sido considerado o intervalo da gestão FHC esta linha da página não seria suficiente para o número de zeros do percentual de aumento. Paciência! O que vale constatar é que a energia brasileira ficou mais cara do que a dos países em desenvolvimento, tais como China, Índia, Rússia, Coréia do Sul e África do Sul, nossos fetiches do crescimento econômico. Mas não basta: ficou mais cara do que países desenvolvidos com renda per capita maior, tais como o Canadá e Holanda. Reduzimos em pelo menos 10% a participação da hidroeletricidade – que já foi 90% do total da matriz energética – e passamos a depender crescentemente de combustíveis externos para geração de energia. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 129 I N S I G H T A FGV foca na perda de competitividade em razão do fator preço. Segundo o estudo, pressupondo um cenário de preços crescentes na mesma proporção do período em análise, o país perderia 8,6% em seu PIB potencial entre 2006 e 2015, o correspondente a R$ 214 bilhões em moeda de 2005. Se o preço da energia não aumentar em termos reais, um cenário róseo, porque findou o tempo da energia barata, mesmo assim, o Brasil somente poderia crescer 3,6% anuais de 2006 a 2010, e 3,7% ao ano entre 2011 e 2015. A FGV fundamenta seu relatório nas projeções apresentadas pelo Plano Decenal de Energia Elétrica. Em razão delas, estima que as tarifas de energia subirão em termos reais 20,3%, no geral, e 34,6% especificamente para a indústria no período de 2006/2015. O resultado assusta até os mais otimistas: uma redução de 0,49 ponto percentual do crescimento do PIB ao ano entre 2006 e 2010. Portanto, ao invés de crescer a taxas medíocres de 3,69% do PIB, a expansão do país ficaria restrita a taxas ainda mais medíocres de 3,2%. Com as altas das tarifas de energia elétrica previstas para o quatriênio de 2011 a 2015, a FGV projeta um crescimento desolador de apenas 2,93% do PIB. A velha senhora da Praia de Botafogo leva em consideração os dados oficiais para montar o seu modelo. É o 130 F OGO-FÁTUO INTELIGÊNCIA que manda o protocolo. Mas, não só a FGV, como todos os analistas minimamente especializados concordam que a oferta de energia assegurada no planejamento dos principais braços do governo – Operador Nacional do Sistema (ONS), Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e Empresa de Pesquisa Energética (EPE) – é inferior àquela que garantiria o menor risco de paralisia do sistema. É isso mesmo que você pensou: leia-se, no limite, “apagão”. Tudo bem que os analistas, discordantes ou unânimes, estão volta e meia errando. Mas agora existem digitais evidenciando que o modelo é capenga. Por exemplo: a Petrobras confirmou oficialmente que não está entregando o gás natural necessário ao funcionamento de seis das 11 usinas termelétricas que deveriam estar operando. As térmicas que fazem parte da contabilidade do ativo elétrico assegurado do governo – sistema interligado nacional – estão lá de faz-de-conta, ou seja, a energia não pode ser despachada sempre que necessário. A auditoria pública que seria realizada na Aneel, em outubro, para aprovação de resolução excluindo as térmicas sem gás do estoque de disponibilidade energética, foi postergada para depois das eleições por motivos óbvios. Até lá, a suspeição é de que estoque declarado de energia é falso. Com um detalhe: se as termelétricas forem retiradas do cálculo da energia assegurada, o risco de racionamento pode triplicar, subindo dos atuais 6% para cerca de 17%, já em 2007. Na mesma hipótese mais grave de subtração da energia a gás, a probabilidade de racionamento no Norte/Nordeste chega a 32% em 2010. Quem é que vai investir lá? I N S I G H T INTELIGÊNCIA É assunto grave, mas assunto velho. Quem não se lembra da controversa “TermoLuma” – termelétrica no Ceará, pertencente ao empresário Eike Batista – que foi construída em meio ao desespero do apagão no governo FHC. O contrato com o empresário foi feito com a garantia de fornecimento de gás pela Petrobras, que por sua vez garantia o pagamento da mensalidade do negócio em regime de back up, mesmo com a usina parada. A Petrobras, ainda que atrasando, ia pagando direitinho, só que quando precisava despachar a energia da “TermoLuma”, não tinha o gás para entregar. Pagava, portanto, pelo que não recebia. E não recebia porque não tinha como cumprir o que prometera. Em resumo, a usina somente despachou energia para a Região Nordeste, a mais carente de suprimento emergencial, quando foi convertida para óleo combustível por decisão do empresário, que considerou a situação insustentável e, digamos assim, algo “politicamente incorreto”. As térmicas, a despeito da sua crescente importância na matriz energética, são só um aperitivo. O problema está se tornando estrutural. Vamos tentar resumir como funciona o modelo. O Operador Nacional do Sistema (ONS), que tem a função de municiar o sistema, planeja, sempre em um horizonte de 60 meses à frente, a energia assegurada (aquela energia que resistiu a uma bateria de testes em 95% dos cenários pluviométricos ou hídricos mais diversos). Só aceita trabalhar com 5% do risco, o que já é muito se comparado a países congêneres. Esse planejamento de 60 meses é refeito a cada mês em um moto-contínuo. A diferença entre energia assegurada e potência instalada é exatamente essa clivagem dos cenários chuvosos ou mais secos, no caso da hídrica, ou dos períodos de manutenção, no caso das térmicas, devido à dependência de outros combustíveis – termeletricidade a óleo (98% de potência), carvão (80%) e nuclear (85%). O Brasil tem 100 mil megawats (MW) de potência instalada e, pelo menos oficialmente, 52 mil MW de energia assegurada. Bem, seria melhor se fosse realmente assim. GRÁFICO 1 Saldo oferta de energia versus demanda - 2006-2010 CASO: COM CORTE DE LASTRO DAS TÉRMICAS POR FALTA DE GÁS (CONSIDERANDO 100% DA OFERTA DE GN PLANEJADA, COM ADIANTAMENTO DO ESPÍRITO SANTO E GNL A PARTIR DE 2009) GW MÉDIOS 2,0 DÉFICIT MÉDIO DE 800 MW EM 2008-2010, 2.000 MW MÉDIOS EM 2010 1,5 1,0 0,5 0,0 -0,5 -1,0 -1,5 -2,0 -2,5 2006 2007 2008 2009 2010 Fonte: PSR Elaboração: Gás Energy OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 131 I N S I G H T INTELIGÊNCIA A diferença de pouco mais de 45% entre energia assegurada e potencial explica-se, portanto, devido ao fato de a eletricidade das diferentes fornecedoras não poder ser entregue em 100% do tempo. Como o sistema funciona? As térmicas informam ao ONS o valor aproximado do custo do combustível (gás, óleo e carvão). O operador faz também uma estimativa do custo da água, em consonância com os informes da quantidade de hídricos de alto risco feitos pela Aneel e sempre em 95% dos cenários. Nos períodos mais chuvosos, a energia hídrica pode atender à totalidade da demanda. A energia secundária – excesso de oferta das hídricas em situação pluviométrica plena – pode então ser usada para baratear o custo do sistema. No período de seca, despacha-se a energia das térmicas, mais cara, para complementar a oferta. É o chamado modelo hidrotérmico brasileiro. O funcionamento do sistema é bem mais complexo do que o resumo acima, que serve somente para ilustrar como a banda toca. Muitas vezes, o ONS despacha a energia das térmicas antes do período de seca, porque seu modelo matemático de probabilística prevê escassez hidrológica à frente. Ela então antecipa o uso da energia térmica mais cara para garantir que os reservatórios de água não fiquem em níveis de maior risco no futuro. O modelo, conforme já foi dito, é probabilístico e leva em consideração uma vasta gama de variáveis. Uma delas é o crescimento do PIB. O ONS trabalha com 4% de crescimento do PIB no seu planejamento de 60 meses. Portanto, só há energia assegurada para esse teto de crescimento. O fator de elasticidade usado pelo governo para a energia é de 1,3 do PIB. Assim, para cada 1,0 de crescimento do PIB é necessário mais 1,3 de crescimento da oferta de energia. O saldo de energia assegurada é que permite aferir o estoque de energia existente e a necessidade de oferta futura. GRÁFICO 2 Oferta de energia versus PIB GW MÉDIOS 65 DIFERENÇA 2.000 MW MÉDIO 60 4,0% 4,0% 4,0% 4,0% 55 PIB EPE 4,0% 4,0% 50 3,0% 4,0% 3,5% 3,5% PIB ALTERNATIVO 45 40 2006 Fonte: PSR Elaboração: Gás Energy 132 F OGO-FÁTUO 2007 2008 2009 2010 I N S I G H T O engenheiro Marco Aurélio Tavares1, dirigente da consultoria Gás Energy e jovem sumidade no assunto, já enxerga nos projetos efetivos e garantidos no horizonte de 60 meses, assim como na limitação em 5% da energia assegurada excedente, duas chagas abertas no modelo. Como todo projeto de geração de energia – caso seja efetivo e garantido – leva, em condições normais, em torno de cinco anos para ser construído, e não existe uma poupança de eletricidade para lastrear políticas expansionistas do produto interno, ficamos amarrados em crescer, no máximo e olhe lá, 4% do PIB no próximo qüinqüênio, sempre a contar do mês que passa. Como diria Althusser, “o ainda futuro demora muito mesmo”. O governo FHC, que sofreu de um viés reducionista no cálculo ponderado da função de Estado e do papel e timing de ingresso do setor privado em ações estruturantes – eufemismo intrincado para monoteísmo de mercado e irresponsabilidade no planejamento – jogou todas suas fichas em uma privatização sem regulamentação e feita a toque de caixa, deixando para depois, como reserva de defesa, a justificativa de que o marco regulatório ausente foi o grande vilão dos insucessos e descasos existentes no setor elétrico. Ecoaram em vão à época as palavras do ex-ministro de Minas e Energia, Antônio Dias Leite Júnior2, que pregava aos quatro ventos sobre os riscos de desmoralização do projeto de desestatização e desconstrução do modelo energético caso ele não fosse precedido de um sólido cimento regulatório. Dias Leite fez um périplo que dura até hoje. Convenceu o saudoso jurista José Luiz Bulhões Pedreira3 a arregaçar mangas e 1. Engenheiro Químico, especialista em petróleo, gás natural e indústria petroquímica, com passagens pela Petróleo Ipiranga e pela Repsol YPF. Participou das negociações de suprimento de gás entre Bolívia, Brasil e Argentina. 2. Engenheiro, ocupou o Ministério de Minas e Energia e a presidência da Vale do Rio Doce. 3. Especialista em direito societário, foi autor da Lei das Sociedades Anônimas, em parceria com o jurista Alfredo Lamy. INTELIGÊNCIA terçar com ele, sem custo para o erário, o desafio de criar um cartapácio de leis. O calhamaço depois de produzido seria levado a audiências públicas, debatido e destrinchado, para que tão somente depois o setor de energia elétrica fosse virado de ponta-cabeça. Mandaram o exministro procurar moinhos de vento e o que se viu foi o apagão e o corre-corre da energia emergencial a “preços Daslu”. Inês é morta, e, mesmo que ao custo de um desonroso empurrão do apagão no planejamento da energia emergencial, o governo FHC deixou de herança uma poupancinha de energia razoável. Novamente, é verdade que ela foi construída ao preço vil da negligência da gestão pública, tarifas escorchantes, recessão, racionamento, espoliação da Petrobras e construção de usinas com custos pela bacia das almas. Mas, melhor com ela do que sem ela. Foi com essa raspa energética que chegamos até aqui. Mesmo assim, o programa emergencial de energia, que tinha como meta produzir 12 mil MW de energia, usando termelétricas emergenciais, somente alcançou uns 6 mil MW de térmicas instaladas. Algumas destas térmicas são aquelas que não têm gás para operar. As outras, inclusive as movidas a óleo, mesmo tendo um custo do MW incomparavelmente maior, são quem ajuda a mover o governo Lula, que não conseguiu produzir sequer uma fagulha de eletricidade. Uma contradição que merece ser mencionada apenas a título de colocar um pouco de molho nesse enredo, diz respeito à fortíssima oposição que o PT fez à implantação e à operacionalização dessas térmicas a óleo, com 2 mil MW, praticamente todas voltadas para atender ao Nordeste. O partido de oposição à época se esgoelou contra o absurdo dos contratos de cinco anos, que pagaria fábulas aos seus proprietários. Pois bem, o governo Lula, do PT, renovou o contrato dessas mesmas usinas não mais por um qüinqüênio, mas por 15 anos, pagando os tubos, porque não tem de onde tirar energia para aquela região. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 133 I N S I G H T Seja lá como for, pelo menos temos energia para crescer a passos de quelônio de, no máximo, 4% do PIB ao ano, diria você, ao ler toda essa catadupa. Errou de novo. Marco Aurélio Tavares explica que, para crescer os 4% da previsão do modelo matemático, é preciso que a oferta suba 5% ao ano, devido ao fator de elasticidade de 1.3. Em bom eletriquês, é preciso acrescentar em torno de 2,5 mil MW por ano de energia nova assegurada ou 4,6 mil MW de potência hidrelétrica/ano. É quase um megaprojeto que nem o da usina Rio Madeira a cada 12 meses. Caso não sejam aprovados projetos dessa envergadura, devido a restrições ambientais e de toda ordem – as usinas do chamado Complexo Madeira ficaram travadas durante praticamente todos os quatro anos do primeiro mandato de Lula –, teriam de ser instaladas termelétricas, com custos de energia bem mais altos. Em ambas as hipóteses, o prazo é parecido com aqueles da economia de guerra. A conclusão é que mesmo para crescer 4% na média dos próximos quatro anos, o governo tem de ir preparando algum instrumento de exceção equivalente à Câmara da Gestão da Crise de Energia, presidida pelo ex-ministro Pedro Parente no período em que o breu da escuridão quase assolou o país. Ou então acostumemo-nos a um crescimento ridículo e declinante. Nem sempre as trevas estiveram no horizonte. O PT iniciou o mandato com alguma folga, devido ao racionamento, programa de geração emergencial e aumento das 134 F OGO-FÁTUO INTELIGÊNCIA tarifas de energia antecedentes. A poupança de energia foi lubrificada com as políticas hiper-restritivas, monetária e fiscal, que a primeira gestão Lula foi obrigada a praticar logo na sua alvorada, devido à herança de terrorismo tucano. Contração na economia é igual a maior sobra de energia. Só que o excedente virou fator de negligência. Em vez de aproveitar o estio para correr atrás do prejuízo, o governo enveredou pela dispersão com a arquitetura de um plano de modicidade – redução do impacto do preço da energia e distribuição de custos mais eqüitativa entre o consumidor e as empresas – e a acomodação dos interesses do chamado mercado livre, que congrega os produtores privados independentes e os autoprodutores com excedente para a venda, esquecendo-se de que a energia nova era quem desempatava o jogo. Ninguém é contra modicidade, mas a prioridade corria em outra pista. Os projetos de expansão da geração ficaram para um segundo plano. E tudo o que foi contratado de energia elétrica foi produzido por usinas que já estavam previstas. A oferta adicional ficou zerada. A conclusão que desponta é que os juros elevados e os dolorosos superávits fiscais tiveram uma outra função que se superpunha, tacitamente, às exigências explícitas de controle inflacionário: vestir o PIB em tamanho menor do que o figurino energético. I N S I G H T INTELIGÊNCIA É sempre possível ser pior, como dizem os chineses. Em 2009, acaba a poupança energética, obedecendo-se rigidamente o cronograma e a disponibilidade de eletricidade, conforme as informações oficiais do ONS e da Aneel. O que pode ser pior? Marco Tavares, da Gás Energy, traduz o pesadelo: a atual poupança de energia não é real. Uma parcela dela, por exemplo, foi calçada no gás da Bolívia, que não será atingida devido à fratura no projeto de expansão dos dutos em 15 milhões de metros cúbicos, ainda fruto da celeuma com o governo Evo Morales. São 3 mil MW que estão contidos no sistema para efeito de contabilidade da energia assegurada nos 60 meses, que não existem. Para se ter uma idéia do significado desse contrabando de energia faltante, quando se diz que o consumo de energia do Brasil é hoje de 52,5 mil MW e que a demanda é de cerca de 48 mil MW – aquele célebre coeficiente de 5% de risco tolerado pelo ONS, Aneel e Ministério de Minas e Energia – o saldo seria de uma poupança dos mesmos 3 mil MW que deveriam vir da Bolívia. Como essa energia não existe e é improvável que exista, a poupança de fato é zero, e o coeficiente de risco real já saltou para 8%. Estudos recentes da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), feitos a pedido da Aneel, mostram uma realidade bem mais dramática com riscos subindo para patamares de 20%. Falta ainda mais energia no farnel da contabilidade oficial. Em seu planejamento, a EPE considera como energia disponível os 2,5 mil MW que deveriam vir da interligação com a Argentina (Cien) e os 500 MW da termelétrica de Araucária, que não tem contrato de gás que garanta a sua operação. Só que a Argentina decretou moratória na sua oferta de gás. A EPE também sanciona o mesmo gás portenho inexistente que deveria abastecer os 580 MW a serem gerados pela térmica de Uruguaiana, o sonho de inverno dos gaúchos para garantir a calefação da temporada. Não tem nem um, nem outro. O risco de o sistema entrar em pane já saltaria para mais de 10% caso o ONS, em uma inusitada, mas benéfica discordância pública com a EPE não desconsiderasse o CIEN e os seus 2,5 mil MW para efeito do cálculo da energia assegurada. E o que faz a EPE em toda essa história? Sua função é planejar a garantia de energia no longo prazo. Ela faz um plano decenal e um plano para os futuros 30 anos, no caso até 2025. Como todos os projetos de geração de energia são de amplo prazo de maturação, esse planejamento é fundamental para que o sistema não seja pego de calça curta, não podendo entregar, na melhor das hipóteses, a eletricidade mínima necessária para o crescimento máximo da economia estimado para o período, ou, na pior hipótese, deixando nas mãos do ONS a responsabilidade de administrar um risco de apagão. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 135 I N S I G H T A batata da energia, infelizmente, está assando e vai sair ainda mais quente. O ONS faz o favor de não projetar o Cien, mas contabiliza as térmicas a gás que não tem gás e ainda coloca no mesmo balaio a totalidade da energia alternativa do Proinfa (derivada da biomassa, eólica e Pequenas Centrais Hidrelétricas – PCHs) a ser gerada em condições lúdicas e ideais. São mais 3,3 mil MW de potência e 1,3 mil MW de energia assegurada postas para rodar no programa de probabilidades, dos quais 60% inexistem devido a atrasos nos empreendimentos, todos eles de iniciativa privada. Para dar uma pincelada na firmeza desses entrepreneurs e na confiabilidade de que a geração energética alternativa venha em tempo hábil, diversos empresários que ganharam os leilões do governo para construir esses projetos não conseguiram obter financiamentos de uma linha de crédito especial do BNDES porque simplesmente não tinham como dar garantias; alguns deles com nada no bolso e nada nas INTELIGÊNCIA mãos. Pois bem, o ONS considera que todos esses 1,3 mil MW vão entrar até 2009, mesmo os empresários declarando que o fornecimento vai atrasar. Enxerga o que bem lhe interessa. Os antecedentes das autoridades reguladoras e despachadoras de energia estimulam os chistes do signatário destas linhas. A leniência e bate-cabeças dos respectivos órgãos estratégicos do aparelho de Estado desde o governo FHC são inacreditáveis. Outro exemplo? O ONS tem que colocar também no modelo as hídricas que estão em construção. Com objetivo de classificação de risco e, portanto, de prospecção das usinas que efetivamente poderão entrar em operação dentro do cronograma proposto, é aplicada formalmente pela Aneel uma palheta de cores verdes, amarelas e vermelhas. As usinas hidrelétricas que ganham o verde correspondem a dizer que está tudo OK. As amarelas significam um sinal de atenção. E as vermelhas querem dizer sérios proble- GRÁFICO 3 Saldo oferta de energia versus demanda - 2006-2010 CASO: REDUÇÃO DE 60% DO PROINFA. DE ACORDO COM A ANEEL, DOS 3.150 MW PREVISTOS, SOMENTE 830 MW ESTÃO EM CONSTRUÇÃO 5 4 DÉFICIT DE 1.300 MW MÉDIOS EM 2010 3 2 1 0 -1 -2 2006 Fonte: PSR Elaboração: Gás Energy 136 F OGO-FÁTUO 2007 2008 2009 2010 I N S I G H T INTELIGÊNCIA GRÁFICO 4 Saldo oferta de energia versus demanda - 2006-2010 CORTE DE LASTRO ADICIONAL SE HOUVER ATRASO NO GNL (PERMANECE O RESTO DA OFERTA DE GN, INCLUSIVE O ESPÍRITO SANTO) GW MÉDIOS 2,0 1,5 DÉFICIT MÉDIO DE 2.600 MW EM 2008-2010, 2.900 MW MÉDIOS EM 2009 1,0 0,5 0,0 -0,5 -1,0 -1,5 -2,0 -2,5 -3,0 -3,5 2006 2007 2008 2009 2010 Fonte: PSR Elaboração: Gás Energy mas. Para efeito de consumo interno, ou seja, sem que ninguém tenha acesso à informação oficial, a própria Aneel considera que algumas vermelhas não terão mesmo a mínima chance de entrar em operação nos prazos previstos e pode-se dizer que agora ampliou seu arco-íris do risco energético. Entrou a cor roxa, ou quase preta, que quer dizer “sem chance”. Um exemplo de usina que poderia ser considerada roxa? A usina de Estreito, na região do Tocantins, com produção prevista de 600 MW. Mesmo assim, no modelo do ONS, a roxinha entra em operação em 2010, enquanto seus empreendedores não arriscaram nem vender energia no leilão de energia nova para 2011. No andar da carruagem, considerando-se que também são roxas as usinas de energia alternativa, das quais somente 500 MW dos 1,3 mil MW projetados vão rodar; que 400 MW de energia assegurada de outras pequenas hídricas não vêm; que os 600 MW de Estreito são roxíssimos e provavelmente só poderão ser despachados em 2012 ou 2013; e isto tudo sem contar o gás da Argentina e da Bolívia, que micaram, vão faltar cerca de 2,5 mil MW por ano até 2010. O coeficiente de risco já aponta para um enfarte muito superior ao teto de 5%. Repor o buraco no estoque de energia é o mínimo que pode e deve ser feito para que nos contentemos pelo menos com um ritmo de crescimento africano da economia. Se quisermos dar um saltinho no PIB, passando dos 4% hoje já idealizados para ainda modestos 5%, além daqueles 2,5 mil MW que significam déficit, o governo tem de acrescentar mais 700 MW por ano. Esse pontinho percentual significa a construção por ano de uma usina correspondente à encruada hidrelétrica de Estreito, que ficou amarrada na burocracia do Estado durante o todo o quadriênio do governo Lula. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 137 I N S I G H T INTELIGÊNCIA GRÁFICO 5 Risco anual de déficit: PMO Cenário Chapa Branca 25% 21.4% 20% 15% 19.2% OS RISCOS DE RACIONAMENTO ESTÃO ACIMA DO CRITÉRIO 12.0% 10% 10.3% 7.2% 11.6% 8.8% 11.1% 11.3% 8.5% 8.9% 9.0% 7.0% 5.9% 6.0% 5% 0% 4.0% 0% 0% 0% 0% 2006 2007 2008 2009 2010 Fonte: Gás Energy Caso o governo insista no seu cenário chapa branca, o déficit chega a 500 MW médios no último ano do governo Lula e o risco de racionamento de energia chega ao seu ápice em 2010, nos seguintes percentuais conforme as regiões do país: 11,1% no Sudeste, 11,3% no Sul, 19,2% no Norte e 21,4% no Nordeste. No pior cenário, onde todos os problemas previstos, mais o atraso do lastro adicional de Gás Natural Liquefeito (GNL), a tragédia pode começar em 2009, com um déficit de 2,9 MW médios naquele ano. O déficit do período 2008/2010 vai a 2,6 mil MW médios. O Nordeste conheceria a verdadeira energia Severina. O Sertão não vai virar mar de jeito nenhum. Existem outras mazelas no planejamento energético que são para não deixar ninguém dormir. Já antes do apagão, o ex-ministro e conselheiro plurigovernamental Eliezer Batista4 advertia que o mapeamento hidrológico do Brasil estava caduco há mais de década. Este levantamento detalhado dos mananciais hídricos é a primeira instância para que se reduza o desvio padrão entre o projetado e o realizado na área de energia hidrelétrica. Ora, tem rio que seca; ora, tem clima que muda. O presidente da EPE, Maurício Tolmasquim, confessou candidamente, em entrevista à imprensa, que o mapeamento hidrológico ainda não foi refeito, o que talvez comece em 2007. Em outras palavras, toda a lógica probabilística do modelo energético pode estar meio bamba. Essa corrente para frente, do deixar estar para ver como é que fica, leva ao seguinte beco: refazer o levantamento dos rios demora mais ou menos uns três anos, obter uma licença ambiental para os projetos de geração, na média mais dois anos, e uma usina de porte, mais uns quatro anos. Se não houver qualquer acidentalidade – o que, com nossos precedentes, é exceção – vamos perder uns sete anos para voltar a bradar o grito de independência do PIB. Isto se todo o processo for percorrido em ritmo de marcha forçada. 4. Ex-ministro de Minas e Energia e de Assuntos Estratégicos e ex-presidente da Vale do Rio Doce. Integra o Conselho de Administração de empresas no Brasil e no exterior. É membro eleito da Academia de Ciências Russas. 138 F OGO-FÁTUO I N S I G H T Parte do problema é bizarrice administrativa e gerencial, mas o nó górdio da questão, o crime de lesa-PIB, é mesmo a falta de definição de prioridade. É escapismo atribuir causalidade natural do problema à decantada falta de grana em razão da necessidade de gerar superávits primários, ou ao engessamento do orçamento público. O dinheiro para energia tem de sair de qualquer jeito, de qualquer forma e da rubrica orçamentária que der. O que falta é Prioridade, com “P” maiúsculo. Segundo um estudo recentíssimo do Ipea, os investimentos efetivamente realizados pelo governo federal no setor energético caíram de uma média de 0,95% do PIB entre 2001/ 2002 – isto porque ainda houve um carry over dos gastos emergenciais com o apagão, no período – para uma média de 0,51% do PIB entre 2003/2005. O fato do PIB ter sido maior no intervalo 2003/2005 deveria ter levado ao crescimento dos investimentos vis-à-vis a preocupação com o aumento da demanda. Neca! A queda relativa demonstra o quanto é flácida a noção de prioridade entre os escalões responsáveis, quem quer que sejam. INTELIGÊNCIA O diretor do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura (CBIE), Adriano Pires5, aprofunda a análise do setor de energia e observa que os investimentos realizados pela Eletrobrás caíram de uma média de 0,24% do PIB entre 2001/2002 para uma média de 0,17% entre 2003 e 2005. Conclusão número um: investimento em Bolsa Família não pode ser excludente do investimento responsável em energia. Conclusão número dois: a economia brasileira não tem como crescer acima de 4% nos próximos quatro anos sem o risco de desabastecimento se os minguados investimentos do setor e a obediência ao cronograma das obras não virarem de pernas para o ar. Conclusão número três: todas as frenéticas discussões que vêm sendo entabuladas por macro, micro e nano economistas sobre os impactos do maior ou menor afrouxamento dos torniquetes monetários e fiscais no relançamento da economia estão sendo feitas em bases movediças. Exemplo da conclusão número três: o professor Affonso Celso Pastore6 afirma que, sendo mantido o ritmo atual de crescimento dos gastos públicos, para que o país tenha sustentabilidade econômica, o PIB deverá avançar a taxas em torno de 7% nos próximos anos. Segundo ele, o motivo da improbabilidade desse crescimento é a própria velocidade do gasto público, que teria uma espécie de função entrópica e exigiria seu financiamento através do aumento da carga tributária. A econometria feita pelo professor Pastore deve estar certíssima, mas falta a variável-chave no seu raciocínio. Bem mais simples e na mira seria se ele dissesse que não tem energia e, portanto, não haverá crescimento. 5. D.Sc. em Economia Industrial pela Universidade Paris XIII e economista pela UFRJ (1981). Foi assessor da diretoria-geral da ANP e superintendente das áreas de Importação e Exportação e Abastecimento da agência. 6. Doutor em Economia pela Universidade de São Paulo, ex-presidente do Banco Central do Brasil e professor da Escola de Pós-Graduação em Economia (EPGE) da Fundação Getulio Vargas. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 139 I N S I G H T A consultoria Tendências, dirigida pelo ex-ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, em um estudo bastante recente, toca na ferida da opção preferencial do governo em trabalhar com um baixo coeficiente de risco e, portanto, com um pequeno excedente de energia no sistema. A Tendências questiona as contas ou premissas que levam ao cálculo do custo do racionamento, fator fundamental para o planejamento da oferta de geração e, portanto, do excedente de energia assegurada no sistema. Adivinhão quem apostou que o excedente teria que ser maior para evitar o risco do somatório de erros não previstos no modelo probabilístico – exemplo: o ataque endógeno da burocracia, atrasando, travando ou impossibilitando todos os projetos estruturantes. De acordo com o estudo, mantido o coeficiente de risco em 5%, a probabilidade estatística é de um risco de racionamento de energia a cada 20 anos. Os economistas Paulo Levy7 e Fabio Giambiagi8 afirmam, em nota técnica do Ipea, que as restrições à expansão da economia um milímetro mais acelerada são a baixa taxa de investimento em capital fixo, hoje em torno de 20% do PIB (ver Gráfico 6), e o risco de desabastecimento de energia. Mais recentemente, o mesmo Ipea, em estudo titulado “Uma Agenda para o Crescimento Econômico e a Redução da Pobreza” reitera que o Brasil não crescerá 5% nos próximos anos, por problemas no setor elétrico e pela baixa taxa de investimentos. O mesmo estudo vaticina que a tarefa do governo agora é criar 140 F OGO-FÁTUO INTELIGÊNCIA condições para que, na década de 2011-2020, o país possa ter um crescimento superior a 4,5% ao ano. Dói antever as conseqüências mais agudas dessa limitação. Se o filme for esse, nosso complexo de inferioridade atingirá níveis nunca dantes alcançados. O economista Ilan Goldfajn9 pavimenta com dados do FMI o caminho da frustração. Nos últimos quatro anos, enquanto o Brasil cresceu algo acima de 2%, a média dos países em desenvolvimento mostra um salto do patamar anterior de 5% para 7%. Nos últimos 10 anos, não há um único ano em que o Brasil tenha crescido acima da média dos mais ricos, que, historicamente, vinham com seu PIB atrás, arrastando-se como uma lagarta. Pode ser pior? Pode, diz Ilan. “Até recentemente, o Brasil crescia entre 1,5% e 3% abaixo da média dos países em desenvolvimento. Nos últimos anos, o Brasil se distanciou ainda mais do resto, crescendo em torno de 3% a 5% menos”. Cai o pano. 7. Diretor de Estudos Macroeconômicos do Ipea 8. Mestre em Ciências Econômicas pelo Instituto de Economia da UFRJ, integrou a Assessoria Econômica do Ministério do Planejamento e Orçamento em 1995; Teve passagem pelo BID de 1993 a 1994. Desde 1996, faz parte do Departamento Econômico do BNDES. 9. Professor do Departamento de Economia da PUC-Rio e diretor do Instituto de Ensino e Pesquisa em Economia da Casa das Garças (IEPE/ CdG). Ex-diretor de Política Econômica do Banco Central do Brasil, trabalhou como consultor do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e da Organização da Nações Unidas. Foi também da sócio da Gávea Investimentos. I N S I G H T INTELIGÊNCIA GRÁFICO 6 Taxa de investimento como proporção do PIB Dados do 1º semestre (1991-2006) 23,0% 22,1 21,8 22,0% 21,0% 20,4 20,5 20,2 20,1 20,2 19,9 20,0% 19,4 18,8 19,0% 18,4 19,0 19,0 18,3 17,7 18,0% 17,1 17,0% 16,0% 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 Fonte: IBGE Os montantes dos investimentos em energia são sempre colossais e amedrontam com a dúvida sobre sua exeqüibilidade os planejadores mais experientes mesmo em condições de baixa emergencialidade e razoável disponibilidade de recursos. Não é o caso. Para se ter uma idéia do desafio ciclópico, a Agência Internacional de Energia estima que o país teria de investir R$ 44 bilhões por ano até 2030 para se manter competitivo. A Associação Brasileira da Indústria de Base (Abdib) também projeta um valor aproximado, ou seja, R$ 17 bilhões em investimentos no setor elétrico e mais R$ 31 bilhões em petróleo e gás, por ano, em duas décadas. A Abdib acredita que esse esforço permitiria ao país voltar a crescer a 7% ao ano de forma sustentável. A FGV é mais modesta, pois também considera como benefícios certos e já equacionados os investimentos alocados para projetos que estão atrasados há um qüinqüênio. Para a FGV, bastariam recursos da ordem de R$ 7 bilhões ao ano para que não fôssemos para a terceira divisão do campeonato. Isto quer dizer, conseguir um crescimento da economia que alcance os 4% ao ano. O BNDES, em levantamento sobre os projetos que já estão mapeados, conclui brilhantemente que o setor de energia tem como característica exigir que a oferta se antecipe à demanda. Ele informa que, se confirmados, os investimentos de R$ 88 bilhões até 2010 (R$ 48 bilhões em geração, R$ 24 bilhões para distribuição e R$ 16 bilhões em linhas de transmissão) representam um aumento de 60% superior ao efetivado entre 2002 e 2005. Ora, nesse período praticamente nenhum investimento foi efetivado, sendo que a maior parte dos projetos mapeados para os quatro anos do segundo mandato de Lula deveria ter sido realizada em sua primeira gestão. Em condições que não previssem um crescimento indigente, e, portanto, a realização dos investimentos no triênio passado e neste ano, os R$ 88 bilhões deveriam alcançar R$ 150 bilhões, para garantir excedente firme de energia, reduzir no quanto for possível os custos de transação na economia e reverter as expectativas de que o crescimento do PIB está para lá de stand by. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 141 I N S I G H T INTELIGÊNCIA GRÁFICO 7 O Brasil investiu em logística bem abaixo dos benchmarks internacionais (%PIB) 7,0 Vietnam 6,0 5,0 Rússia China 4,0 Tailândia Coréia 3,0 Mongólia 2,0 Lao Índia Austrália Indonésia Japão Irã Singapura 1,0 Camboja Bangladesh Kazaquistão Brasil 100 1.000 10.000 100.000 PIB per capita (US$) Fonte: Bancos de Desnvolvimento dos países; Análises Macrologística. Parafraseando o professor Mário Henrique Simonsen, se a energia mata, a logística aleija. O país vive a ante-sala do apagão rodo-ferro-portuário. O investimento do governo é risível (logística não é prioridade) Os portos do Sul do país trabalham a 95% da capacidade instalada. O Porto de Santos, o principal do país, já bateu no seu limite. As estradas estão em petição de miséria, com o transporte de carga onerando o custo final da mercadoria, jogando lenha na inflação e reduzindo o poder de compra do consumidor. Em Santos, por exemplo, há mil vagas para caminhões, mas no período de safra agrícola chegam ao porto 13 mil veículos por dia. Os projetos ferroviários que deveriam desengargalar o sistema, estão todos atrasados, devido às exigências da própria burocracia de Estado. A navegação de cabotagem inexiste. E eu mesmo não estou me sentindo muito bem. 142 F OGO-FÁTUO Falou em logística, falou em Dr. Eliezer Batista. Para começar do início, como dizem os sábios chineses, é preciso esquartejar o que quer dizer o conceito de logística, que vem do grego Logistikós (aquele que sabe calcular racionalmente). “Portanto, a logística tem que ter uma abordagem sistêmica da origem até o destino final dos produtos, interna e externamente, e está inserida na cadeia de suprimentos (supply chain), ou seja, matéria, insumo, produção, transporte, imposto, distribuição, fluxo de informação, burocracia, gargalos institucionais, e principalmente eficiência gerencial”. Em português traduzido, logística é o custo de levar uma pessoa ou produto de um ponto ao outro. No Brasil, a abordagem da logística não é sistêmica, é anêmica. Até bem pouco tempo, o que se entendia por logística era a concessão de recursos orçamentários como moeda de troca política para construção de estradas que I N S I G H T INTELIGÊNCIA iam de lugar nenhum a lugar algum. Se logística é fator de integração, competitividade e – por que não? – qualidade de vida (o transporte de passageiro não deixa de ser um ramo do setor) somos conduzidos por um comboio para o inferno. O Brasil está situado apenas na 65ª posição entre os países mais competitivos em logística. Como nosso masoquismo pede a comparação com os países fetiches em desenvolvimento, segue a lancinante informação de que o Brasil investiu, nos últimos anos, como proporção do PIB e em ordem decrescente bem abaixo da China, Rússia, Vietnam, Tailândia, Coréia do Sul, Índia, Mongólia e Austrália (ver Gráfico 7). Na turma dos países menos relevantes que vêm logo a seguir, investimos, conforme os mesmos critérios, menos do que Irã, Indonésia, Laos, Bangladesh e Cazaquistão. Hipótese que poderia ser aventada a esta altura: investimos pouco porque já tínhamos uma base razoável, que foi sendo depreciada, mas existia, estava lá, impávida e colossal. Nâna-nâna-ninha! O custo do transporte brasileiro sempre foi alto, devido a uma série de fatores: desbalanceamento da matriz de transportes – priorização do modal rodoviário –, legislação e fiscalização inadequadas, deficiências da infra-estrutura de apoio e insegurança nas vias – roubo de cargas e falta de manutenção (Fontes: Coppead, Eliezer Batista e Macrologística). Para se ter uma idéia do significado desses enunciados a primeira vista gasosos, a matriz de transporte onera o custo do país em cerca de R$ 30 bilhões, mais do que 15 vezes o investimento total do governo no setor em 2005 (R$ 2,8 bilhões), o correspondente a esquálidos 0,15% do PIB (ver Gráfico 8). Destaque para a constatação de que, no ano passado, os recursos pífios foram um dos maiores do quadriênio anterior, quando os investimentos como proporção do PIB chegaram somente a 0,9%, em 2003, e 0,13%, em 2004. Em 2002, lavamos a égua, com o registro de 0,1% de aumento em relação a 2005. Vexame! GRÁFICO 8 Investimento brasileiro em infra-estrutura de transporte R$ 3,1 BI R$ 2,5 BI R$ 2,1 BI 0,23 R$ 2,8 BI R$ 2,3 BI 0,26 R$ 1,4 BI 0,16 0,09 2000 PIB Brasil (R$ trilhões) 1,1 2001 1,2 2002 2003 1,3 1,6 0,13 0,15 2004 2005 1,8 1,9 Fonte: PIB: 1999-2003 IBGE, 2004-2005 Seplan; Ministério do Planejamento; Análises Macrologística. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 143 I N S I G H T A inadequação da matriz de transporte salta aos olhos. No Brasil, o modal rodoviário, que tem um custo mais elevado, chega a 85% do transporte de carga, que, por sua vez representa 56% do custo da logística. Na Rússia, 70% são ferroviários; no Canadá, 60%, ferroviários; na China, 40%, aquaviários; e nos EUA, também cerca de 40% correspondem ao modal aquaviário. Pode parecer que esses comparativos são mais uma daquelas listas vindas do Fórum Mundial de Davos, do Bird, da Unctad, que estão viciadas por desconsideração de variáveis fundamentais. Mas, na prática, o cenário ainda é pior do que parece nas estatísticas. Por falta de investimentos, a maioria dos portos – incluindo Santos – não tem condições de receber navios de última geração, os chamados Post-Panamax, verdadeiros gigantes que reduzem os custos tanto para granéis como para contêineres. Se essas embarcações pudessem ser utilizadas, importadores e exportadores poderiam economizar US$ 1,5 bilhão em fretes transoceânicos. Mas, faltam prioridades vitaminadas para qualquer pontapé inicial logístico. 144 F OGO-FÁTUO INTELIGÊNCIA A diferença entre o investimento realizado e o necessário nesse segmento tem um coeficiente de dispersão assustador: se o Brasil quiser realmente voltar a crescer na faixa dos 7% (hoje seriam necessários uns 8% do PIB somente para criar mercado de trabalho para o crescimento vegetativo da população), a Associação Brasileira da Infra-Estrutura e Indústria de Base (Abdib) estima que os investimentos anuais nas próximas décadas terão que ser da ordem de R$ 16 bilhões. Alguém diria que o pessoal da Abdib chegou a essa conta porque quer fazer obra. Mas, a Fundação Getulio Vargas também não faz por menos e prevê que só a recuperação e ampliação da malha rodoviária exigirá R$ 46 bilhões no quadriênio 20072010, ou seja, cerca de R$ 11 bilhões por ano (preços de 2005). Esses recursos levam em consideração, além da reparação de 55% dos 82 mil quilômetros existentes, uma expansão de 2% ao ano no tamanho da malha por habitante, o que totaliza 27,7 mil quilômetros de estrada até o final de 2010. I N S I G H T INTELIGÊNCIA TABELA 1 Projetos prioritários em logística Fonte: Macrologística O ex-ministro Eliezer Batista e a consultoria Macrologística usam outros critérios na estimativa do quantum de investimento de que o país precisa para que o PIB rode melhor nos trilhos. Em um estudo denominado “Projeto Brasil – Logística e Infra-Estrutura do Transporte de Carga”, calculam que R$ 38 bilhões ou um acréscimo de 0,25% do PIB por ano seriam suficientes para adequação da matriz de transporte com uma redução total deste segmento no Custo Brasil da ordem de R$ 28 bilhões. Os gastos subiriam para R$ 96 bilhões se fosse feita a adequação do supply chain. O pay back médio dos investimentos é de 1,5 ao ano. Se isso fosse o retorno sobre o investimento de ação negociada nas bolsas, qualquer um de nós compraria. Eliezer considera que, quando se trata de logística, não cabem gatilhos. É claro que é necessário tapar buracos e fazer manutenção das rodovias. Isto para tudo ficar como está, para ver como é que fica. Mas, mesmo novos investimentos devem levar em consideração que projetos pontuais trazem pouco impacto econômico e social. O erro tem sido a não adoção da visão sistêmica. O desvio no tempo entre um projeto e outro anula os ganhos de sinergia e acaba produzindo uma indesejável anergia. Gastam-se recursos escassos para que as coisas fiquem ainda piores. O mestre da logística aposta suas fichas que o investimento total de R$ 96 bilhões em 10 anos (menos de 0,7% ao ano) na adequação do supply chain teria um espetacular retorno em dois anos, ou seja, o investimento se pagaria em um biênio, o que viabilizaria o acesso a financiamentos para implantação dos projetos. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 145 I N S I G H T É nesse ponto que se volta ao círculo vicioso: as necessidades são prementes, os investimentos são postergados, as necessidades ficam ainda mais prementes, maiores investimentos são novamente postergados... e o PIB, aqui, ó! O não-desatamento dos nós da infra-estrutura, inviabilizando o crescimento econômico, não é uma inevitável e irrefutável conseqüência de uma opção por uma política de estabilização by the book, mas uma escolha política. Diz o ex-ministro Delfim Netto, “o Estado é maior do que o PIB”. Pode até ser que a galhofa corresponda à realidade. Seja como for, as exigências cruciais em energia e logística têm que ser sobrepesadas. E la plata? – perguntariam, novamente, os cidadãos bombardeados pelo discurso de que o Estado quebrou. Evidência de que recursos orçamentários até existem é a interdição por motivos de credo fiscal das verbas da Contribuição sobre Intervenção no Domínio Econômico (Cide), criada com a finalidade única de bancar os investimentos públicos em infra-estrutura de transporte. De janeiro de 2002 a dezembro de 2005, o Cide proporcionou receita de R$ 31,5 bilhões ao governo federal. Entretanto, somente 17% foram direcionados a rodovias, ferrovias e hidrovias. A alocação foi propositalmente suspensa para colaborar na formação do superávit primário das contas do governo, configurando uma espécie de “responsabilidade fiscal ao contrário”, quando contribuições que somente foram criadas para determinado fim não são utilizadas para fim nenhum. É muito provável e certamente bastante fundamentada a lógica de que o equilíbrio orçamentário – avançando inclusive para a extinção do déficit nominal – seja requisito para a estabilidade macro-econômica. E que um ajuste fiscal mais intenso seja necessário para alcançarmos o ponto de bala para a recuperação dos investimentos e retomada do crescimento econômico em bases sustentáveis. Há quem diga que a galinha nasceu primeiro que o ovo, defendendo que o crescimento seja requisito fundamental e antecedente do ajuste fiscal e da estabilização macroeconômica. Di- INTELIGÊNCIA vergências conceituais à parte, as emproadas assertivas ficam ineptas e meio que inúteis sem as devidas manutenção, adequação e ampliação dos modais de transportes. Isto para não falar da absolutamente prioritária oferta de energia compatível com uma elasticidade de demanda decente, comparável pelo menos à média internacional. Que se tirem os recursos de onde estiverem, como quiserem e do jeito que for possível. No setor de logística, a privatização só merece loas – aliás, toda vez que se consegue atrair o setor privado para a empreitada, a bola rola mais redonda no gramado. Depois de realizados os leilões de concessão, os investimentos aumentaram, os portos ganharam em eficiência, reduziu-se o custo homem/hora, aumentou a velocidade de embarque, caiu o custo da mercadoria embarcada, estradas foram melhores asfaltadas e sinalizadas etc. Poderia ser ainda melhor? O superintendente da Secretaria de Assuntos Econômicos do BNDES, Fernando Puga10, diz que sim com a onipresente condicionante que os investimentos na infra-estrutura dependem de uma complementação pública. No setor portuário, por exemplo, faltam as obras de entorno, como dragagens e rodovias de acesso, entre outros, que são de responsabilidade pública. Mesmo que o Estado estivesse na ponta dos cascos nos chamados “investimentos complementares não-estruturantes”, existiria ainda um hiato entre a razão e dinâmica do interesse privado e a exigência do interesse nacional, variável-chave que trataremos logo a seguir. Se a velocidade de sensibilização do interesse empresarial, assim como sua lógica de compreensão da necessidade do projeto no tempo, fosse a mesma que a legítima ansiedade nacional imprime para desobstrução dos gargalos do crescimento, estava tudo resolvido. 10. Economista e integrante da área de planejamento do BNDES. 146 F OGO-FÁTUO I N S I G H T INTELIGÊNCIA O ex-ministro Roberto Campos, que não pode ser acusado de inimigo das privatizações, entendia que o investimento público não era excludente do sempre desejável investimento privado. Pelo contrário. Era função do Estado aplicar seus recursos em setores não-rentáveis e também na criação de “células germinativas”, que potencializariam a participação posterior da iniciativa privada. Em palavras mais simples, isto quer dizer que o Estado precisa investir a fundo perdido para atrair o empresariado, que, ato contínuo, tem notória e indiscutível vantagem na eficiência da gestão e busca de resultados. Nesse aspecto, seriam oportunas, mais econômicas e simplificadoras do resgate do investimento em infraestrutura as Parcerias Público-Privadas (PPPs), que têm por objetivo reduzir os custos dos empreendimentos para o governo e otimizar sua resposta e retorno. Os dois primeiros quesitos estão bem defendidos. Já com relação à função simplificadora das PPPs há mais do que controvérsias. As PPPs são uma modalidade de concessão patrocinada, na qual o governo paga, através de contra-prestações, parcela dos projetos de geração de serviços públicos que serão explorados pela iniciativa privada. Se o quebra-cabeça já viesse pronto, o expediente permitiria ao governo economizar recursos escassos, pagando parte da obra. Para não dizer que não falamos de espinhos, a contrapartida é que a fatura não seria paga nunca. Ao invés do modelo convencional de privatização, o Estado não se ressarciria de alguma maneira após pagar parte da conta. Em alguns países, as PPPs funcionaram, mas sempre de forma complementar e minoritária no total do investimento em infra-estrutura. Seria bom se funcionassem aqui, apesar da querela contra a “doação” pelo Tesouro aos grupos priva- OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 147 I N S I G H T INTELIGÊNCIA dos. Quer seja “teta pública” ou não, o fato é que as PPPs, muito mimosas e engenhosas, não andaram uma esquina. Nenhuma parceria, das dezenas aventadas, foi firmada no primeiro mandato do governo Lula. O edital da primeira PPP, que prevê a concessão das rodovias BR-116 (trecho que liga Feira de Santana à divisa da Bahia com o Rio de Janeiro) e BR-324 (ligação de Salvador a Feira de Santana), somente apresentado, atrasadíssimo, no final de setembro, foi recebido com desânimo desolador. Não se sabe se as dezenas de dúvidas levantadas em relação à atratividade do negócio têm por objetivo a elevação da contrapartida oficial (se o leilão for realizado, ganhará o grupo privado que pedir a menor contraprestação do governo). Pode ser. É fato, contudo, que mais uma vez a importância do projeto para o interesse nacional e sua urgência são exponencialmente maiores do que a do interesse privado e sua necessidade projetada no horizonte. A razão privada responde tão somente a rentabilidade e garantia. Velocidade é sempre um fator em função do tempo. A mais recorrente reclamação do setor privado diz respeito à ausência de um sistema regulatório compatível com os riscos dos investimentos. É justa, digamos até justíssima. Ocorre que marco regulatório não é analgésico. Tem prazos de construção, adequação, discussão, aperfeiçoamento e credibilidade não compatíveis com a urgência da taxa de retorno do investimento privado. No caso do marco regulatório, a melhor analogia é com o processo sedimentar, ou seja, depende de compósito sobre compósito. Mais uma vez vale o princípio da Física de que velocidade é função do tempo. Tem maior complexidade ainda o quesito credibilidade, no qual as exigências seriam cômicas se não fossem homicidas do condão empresarial para resolver os problemas. Ah, como era doce a minha solução neoliberal! 148 F OGO-FÁTUO I N S I G H T Exemplo extremo do limite da desconfiança unilateral empresário versus governo é a discussão das garantias. Não basta, portanto, o governo convidar e garantir o pagamento de parcela negociada do empreendimento, que será benefício exclusivo da parte privada ao longo do prazo contratual. O “parceiro” privado também quer garantias adicionais e proporcionais, devido ao risco de que o “parceiro” público também queira renegociar o contrato, explícita ou implicitamente, dando nova interpretação às regras após a realização dos investimentos; ou que não possa pagar o que deve, em razão de restrições financeiras. Ora, as mesmas premissas seriam compatíveis com as obrigações pecuniárias do governo; se valessem, estaria em xeque todo o sistema de títulos públicos. No limite, o risco adequado é não correr risco. As PPPs podem e devem ser um tempero nos investimentos em infra-estrutura, mas, pelo menos no horizonte do previsível, são uma pulga na balança. No mundo idealizado, o sistema funcionaria de forma eficiente e as travas que impedem não somente a participação desinibida do setor privado, mas também o cumprimento nos prazos dos investimentos públicos, seriam todas removidas por um processo de auto-aperfeiçoamento ou seleção natural. As burocracias do Estado tratariam o empresariado de forma diferenciada, azeitando o caminho para que a rentabilidade, motor do seu engajamento no processo de ampliação e redução dos custos dos serviços públicos, fosse considerada prioridade nacional. É claro que não é assim. Há motivações racionais, constitucionais e irrefutáveis para que todos os expedientes e dispositivos urgentes e prioritários sejam prerrogativa do Estado. O que não for fundamentado e devidamente embalado, com base nessa prerrogativa, a burocracia veta, INTELIGÊNCIA defendendo assim sua legítima função. E aperta tanto o setor privado quanto o público. Não é que a burocracia jogue na contramão do interesse nacional. Ela corre em pista diferente. Somente pode ser aparteada em nome de um objetivo superveniente. Sua apoteose obstrutiva decorre do estado de abulia no planejamento e o supracitado buraco negro no campo das prioridades governamentais. Ela jamais é um mal em si mesma. Se tudo ou nada têm preferência e caráter emergencial, então que pelo menos se cumpram os estatutos e regulamentos, garantindo no mínimo a proteção do dever cumprido. É o que a burocracia faz, muito bem por sinal. A burocracia é um capítulo à parte na conjuntura de indisposição generalizada da infra-estrutura nacional. Ela reflete em primeira instância uma das fases das democracias nascentes, quando os grupos de interesse legítimo dentro do aparelho de Estado são fortalecidos em razão da ampliação da representação política de uma diversidade de demandas da sociedade que até então estavam à margem dos processos de participação e influência decisória. Autoridades ambientalistas, gerentes de controle de contas, procuradores e neo-reguladoras a granel são árbitros potencializados pela participação social em um sistema não-linear de acertos e concordâncias. A Constituição de 1988, “a cidadã”, talvez tenha estimulado a uma predominância do peso das burocracias específicas em relação ao contrapeso do próprio Estado. É uma discussão de fundo, que não tem resposta já e, portanto, não cabe neste ensaio. A energia e a logística têm prioridade emergencial! Ponto final. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 149 I N S I G H T É importante ressaltar que o instrumento da obstrução em defesa do interesse público, tal como definido em lei, é legítimo e inerente às burocracias fiscalizadoras, normativas e reguladoras, exceção quando o Estado sobrepõe o argumento de prioridade maior. A obstrução, portanto, é um dos motivos principais da existência dos grupos de interesse formal dentro do aparelho de Estado, com poder de veto legal. O que tem se verificado e tanto incomoda no cenário, é que as burocracias não decepcionaram, muito pelo contrário, mandaram ver e, dentro do protocolo, obstruíram praticamente todos os projetos nos setores de energia e logística. Melhor – ou pior dependendo do ângulo – amplificaram a possibilidade de obstrução através do recurso do procedimento cruzado entre arbitragens diferentes, permitindo que as liminares, alvarás de obras, licenças ambientais e denúncias ao Ministério Público, possam ser utilizados anulando uns aos outros, na medida em que as exigências vão sendo cumpridas e continuamente questionadas ou anuladas por uma outra instância. Somam-se às burocracias do Estado os grupos de interesse espalhados pela sociedade (ONGs, fundações, sindicatos etc.). A amálgama dos dois jogaria uma pá de cal em qualquer princípio de planejamento, tendo em vista metas rigorosas e de alcance obrigatório. O passado nacional corrobora e condena a ditadura do impossível quando o trinômio é composto de burocracias afiadas, projetos ao léu e falta de prioridade do Estado. Todas as obras de infra-estrutura consideradas “prioritárias” do primeiro mandato do governo Lula, os 150 F OGO-FÁTUO INTELIGÊNCIA chamados projetos estruturantes (não por acaso todos em energia e logística), no total cerca de R$ 40 bilhões, ficaram a ver navios. Certamente menos por motivo de ausência de recursos, mas sim por obstruções de toda ordem, o top team da infra-estrutura nacional ganhou a prioridade e tratamento do estatuto da pequena e média empresa, com todo o respeito por esse importante segmento da economia brasileira. Ficaram ao relento os seguintes projetos: Complexo Rio Madeira (conjuntos de hidrelétricas com importância proporcionalmente maior do que a de Itaipu na ocasião da sua construção), Hidrelétrica de Belo Monte (Rio Xingu), Ferrovia Norte-Sul, Ferrovia Transnordestina, Ferroanel (sistema ferroviário em torno de São Paulo), Perimetral do Porto de Santos, dragagem do Porto de Santos, Arco Rodoviário do Rio de Janeiro, BR-163 e duplicação da BR-116. Os atrasos decorrem em primeira instância da indecisão do governo federal – as usinas nucleares, não constam do top team, mas são exemplos de dúvida hamletiana de mais de duas décadas. Pegam carona, sempre como motivos adjuntos, a obstrução pelas burocracias e morosidade nos processos, irmãos siderurgicamente xifópagos. Se forem levados em consideração os outros projetos “prioritários” em setores diversos, tais como licitação de petroleiros, refinarias, gasodutos etc., a paralisia teve um impacto negativo no fluxo de recursos na economia da ordem de R$ 90 bilhões e menos alguns vários pontos percentuais de crescimento do PIB, nesses últimos quatro anos. Pior do que a perda realizada é o comprometimento do crescimento à frente, colocando um cabresto no desenvolvimento. Por trás das possibilidades permanentes de intervenção sem limite de prazo, vetos de toda ordem, homologações, acórdãos, medidas cautelares e I N S I G H T INTELIGÊNCIA ações judiciais se agiganta a ausência de pulso firme do governo federal. Há algo de patológico ou de perverso quando um país só se debruça sobre seu próprio desatino quando chega a situações de afogamento ou terminalidade, a exemplo do que foram os planos macroeconômicos, com a hiperinflação, e as medidas para enfrentamento emergencial da crise energética, com a ocorrência dos apagões. Só reagimos frente à localização do carcinoma. Omissões de um lado, excessos de outro. O palco suporta todo tipo de alegoria. A crônica dos acontecimentos escalafobéticos é rica e incorpora medidas e procedimentos rocambolescos, não fossem amparados legalmente. A hidrelétrica de Estreito, no Rio Tocantins, que vem sendo travada desde 1999, tem histórias folclóricas, como o pedido pelo Ibama para que fosse preparado um estudo ambiental sobre o impacto das obras no ecossistema dos botos naquela região. O consórcio responsável pelo projeto saiu em campo para procurar um especialista em assunto tão específico e delicado. Achou uma raríssima acadêmica habilitada para a tarefa, que, por acaso, se chamava por certidão de batismo de Vera “Boto”. A professora “Boto” estudou longamente as exigências e desferiu a sentença: o estudo necessário para o eventual licenciamento pelo Ibama demoraria de cinco a seis anos. A aceitação da medida levaria a inviabilidade na obra, devido à majoração dos custos em razão de um atraso amalucado no cronograma. O consórcio responsável pela obra na hidrelétrica de Estreito voltou ao Ibama e ponderou que a missão era impossível. Ponderação aceita, o Ibama solicitou então que fosse feito no lugar do estudo sobre os botos, um amplo estudo sobre as tartarugas. Pano rápido novamente! Seguem estudos sobre aranhas, borboletas e índios. Este último, buscando medir o impacto antropológico dos projetos nas comunidades indígenas, também com prazo de cinco anos (as preocupações são com a tribo dos Krikati). Tudo se torna assim impossível. E o governo assiste ao descalabro em estado de distanciamento bretchiniano. A usina de Tijuco Alto tem uma história ainda mais hilária do que a de Estreito. O processo de licenciamento ambiental teve início em 1989 e a expectativa mais otimista é de que a licença seja concedida em 2008, dezenove anos após a sua entrada. O enredo necessita de maior desdobramento para sejam apreciadas todas as suas delícias. Segue o relato da trama, no melhor estilo de um conto de Kafka, conforme notícias pinçadas no jornal Valor Econômico. Vale a leitura: OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 151 I N S I G H T INTELIGÊNCIA “A saga da usina Tijuco Alto começa com a realização pelo Grupo Votorantim do primeiro estudo ambiental do aproveitamento hidrelétrico, que previa a construção de usina hidrelétrica com capacidade de geração de 148 MW no rio Ribeira, no Vale do Ribeira. Desde o início o projeto sofreu contestações de grupos ambientais (o que não é usufruto deste empreendimento, mas de qualquer uma das usinas hidrelétricas na prancheta). Como o rio fica na divisa dos estados do Paraná e de São Paulo, o Votorantim entrou com processo de licenciamento tanto na Secretaria de Meio Ambiente paulista, como no Instituto Ambiental do Paraná (IAP). Os órgãos ambientais concederam ao empreendimento a licença prévia, primeiro passo no processo de licenciamento, em 1994.” “No mesmo ano, o Ministério Público entrou com ação pública de questionamento da competência dos Estados em conceder o licenciamento ambiental deste projeto. O fato é que entre o início do empreendimento e a obtenção de licença prévia, a legislação ambiental mudou, transferindo ao Ibama a competência para licenciamento ambiental em projetos de usinas cujos rios atendam dois ou mais estados. O julgamento dessa ação ocorreu em 1999, definindo o Ibama como órgão adequado para o licenciamento do empreendimento. Antes disso, porém, o Votorantim já havia se antecipado, dando entrada em 1997 ao pedido de licenciamento de Tijuco Alto no próprio Ibama. Em 2003, porém, o Ibama indeferiu a concessão de nova licença prévia. O órgão federal argumentou que o estudo ambiental, devido à passagem do tempo, já não retratava as condições socio-ambientais da região. Na época, o Ibama determinou que fosse apresentado novo estudo, sem o qual não seria possível retomar o processo de licenciamento. A empresa refez o estudo e voltou novamente a entregá-lo em outubro de 2005.” Ao que consta, não surgiu ainda sinal de novo impedimento à vista. 152 F OGO-FÁTUO I N S I G H T Tijuco Alto e Estreito são apenas dois dos múltiplos coadjuvantes em uma pantomima no qual o protagonista é o Estado narcotizado. Um levantamento realizado no mostruário do Ibama revela que entre 30 projetos de hidrelétricas fiscalizados, 28 estão com atraso no processo de licenciamento ambiental. Quando não é o Ibama é o TCU. Se não for o TCU é a Justiça Federal. E caso o obstáculo na esfera jurídica seja suplantado, volta de novo para a ambiental, por decurso de prazo. O maior projeto do governo no setor de energia elétrica, o Complexo do Madeira, é um exemplo dessa brincadeira de gato e rato. Depois de uma batalha que atravessou governos, a licença ambiental prévia para a construção das usinas de Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira, foi liberada para audiência pública. Bastou essa etapa do processo ser resolvida para que uma liminar concedida pela Justiça Federal impedisse o rito normal da licença. Em ação cautelar, o Ministério Público Federal e o Ministério Público Estadual alegaram que não foi respeitado um prazo mínimo de 60 dias entre a apresentação do EIARima (relatório de impacto ambiental) às comunidades locais e a realização das audiências públicas. Quer mais? Pois saiba que o Ministério Público de Rondônia já está tramando um conflito entre Brasil e Bolívia por causa dos riscos de inundação do país vizinho, devido ao mesmo Complexo do Madeira – qualquer semelhança com a teoria conspiratória de que íamos usar a hidrelétrica de Itaipu como dispositivo militar de inundação da Argentina não é loucura menor. As autoridades rondonenses estão a favor dos bolivianos, apesar do relatório de impacto ambiental, feito por quem deveria entender do assunto, ser favorável à construção das usinas. O argumento é que uma grande área de vegetação de igapós, que na natureza fica alagada sazonalmente, poderia acabar submersa para sempre. Rondônia 1 x 0 Brasil. INTELIGÊNCIA E não há garantia de que exista um limite às desautorizações cruzadas intra-autoridades do setor público. Em última instância parece sempre haver mais uma instância. Exemplos? Um questionamento do recente do Ministério Público Federal (MPF) coloca em xeque a competência do Feam, autoridade ambiental de Minas Gerais, para conceder a licença de instalação da usina de Baguari. O MPF considera que o licenciamento ambiental cabe ao Ibama, porque o Rio Doce, onde será instalado o empreendimento, passa por dois estados. O mesmo questionamento atrasa a licença ambiental da hidrelétrica de Mauá, que já foi incluída no próximo leilão de energia elétrica do governo, mesmo sem poder ter sido. Licitada em 2001, a hidrelétrica, que também atravessa dois estados, ainda aguarda licença ambiental. Já chega, não? A logística e a energia são irmãs na dor. Ambas sofrem extravagantes amputações, todas elas solidamente amparadas nos limites estritos da Lei. A logística, além de apanhar muito das autoridades federais e estaduais do meio ambiente e do Ministério Público, toma sovas homéricas das autoridades municipais. Há uma exigência que atende pelo desaforado epíteto de “dispêndios compensatórios sem critérios objetivos”; que, por sua vez, é uma espinha na garganta dos projetos tais estruturantes, que, por sua vez, já deveriam, há muito tempo, ter sido estruturantes de alguma coisa. O dispositivo vive no limbo, entre a formalidade e a informalidade, o confessável e o inconfessável. Permite, por exemplo, que prefeituras cobrem uma espécie de pedágio em obras pelo alvará para determinado projeto, sem qualquer relação com o seu objetivo, traçado e custo original. São impostas contrapartidas ao empreendimento, que podem ir desde investimentos em construção de estradas e pontes até clubes, piscinas, calçadões, coretos e monumentos nas praças, conforme o gosto do freguês. O dispositivo fica na fronteira entre a compensação e a chantagem. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 153 I N S I G H T É uma bela espécie do toma lá, dá cá. Exemplo: o projeto de expansão do Porto de Itaguaí, compartilhado pela Vale do Rio Doce e pela Companhia Siderúrgica Nacional e com verba já aprovada de R$ 100 milhões (nem um tostão de dinheiro público) está entravado há mais de um ano em razão de pedágio imposto pela prefeitura local. No caso, o valor arbitrado no fio do bigode pelo alcaide foi de R$ 13 milhões a serem pagos através de investimentos em obras escolhidas a dedo. A atitude é plenamente constitucional. E o interesse nacional? A prefeitura responderia: farinha pouca, meu pirão primeiro. O governo federal que se apresente para terçar os floretes. Touché! O presidente Lula, ainda medindo a estatura das adversidades, deu sinais de que aceitará o desafio. Seu primeiro aceno nesta direção foi o anúncio, no período pré-eleitoral, da única meta quantitativa deste seu segundo mandato, ou seja, a ampliação do investimento em formação bruta de capital fixo (FBKF) dos atuais 20% do PIB para 25% até o final da gestão de governo. A participação do governo na FBKF se situou no ridículo intervalo entre 0,8% e 2% do PIB durante todo o primeiro mandato. Cabe aqui uma alerta para a primeira armadilha: imaginar que o setor privado amplie sua taxa de investimento agregado, devido a medidas de desoneração fiscal, redução de taxas de juros e oferta de crédito oficial, é bem plausível; já imaginar que o empresariado vá cumprir a missão de aportar os recursos nos projetos considerados vitais pelo governo, obedecendo a um cronograma restrito e uma planilha de amplas exigências, é o mesmo que vestir o parangolé da fantasia liberal. 154 F OGO-FÁTUO INTELIGÊNCIA Para fazer frente às espetaculares restrições, o governo precisa ampliar a fatia do investimento público de 2% para 5% do PIB, garantindo com recursos próprios o custeio, tanto dos projetos estruturantes já definidos, como também dos novos projetos de expansão ainda porvir, exemplo das usinas nucleares do Nordeste – energia ainda guardada no farnel –, que deverão ser anunciadas como complementares à usina de Angra III. Isto quer dizer que o patamar de 25% do PIB de taxa de investimento agregado tem que ser a meta do piso, e que o governo teria que anunciar sua disposição de fazer mais. É preciso gerar um excedente bem mais confortável de energia assegurada no futuro, assim como reduzir o custo dos transportes. Os dois objetivos simultâneos visam a reduzir os custos de transação do país, o que permitirá o aumento da competitividade sistêmica e a conseqüente atração dos investimentos diretos do setor privado. Empresário gosta de aportar em porto de águas calmas, rodar por estrada macia e ligar o ar- condicionado a toda energia. Não há nada de original nos dizeres acima. Todos os países, sem exceção, que constam no display da nossa recente admiração foram intensivos em investimentos públicos infra-estruturais, ou seja, nos setores responsáveis pela redução dos custos de transação. China, Índia, Rússia, Coréia do Sul, África do Sul, Irlanda, Turquia, somente para dizer algumas nações congêneres e mais exibidas em taxas de crescimento, mantém os setores de energia e logística sob o alvo do investimento público, regulação governamental e forte planejamento do Estado. Nossa jabuticaba foi entender que poderia ser diferente. I N S I G H T INTELIGÊNCIA A ministra Dilma Rousseff é do ramo e tem a compreensão de que o governo caminha como uma lagarta no fio da navalha. Em novembro, Dilma declarou, em entrevista coletiva: “É preciso diminuir os custos de investimento. O custo do capital precisa ser reduzido com a adoção de melhores estruturas de financiamento e criação de fundos de investimento específicos em infra-estrutura. É preciso promover uma desoneração tributária cada vez maior do investimento, resolver alguns entraves institucionais, diminuir a judicialização. Há todo um ritual contestatório nos processos licitatórios que pode adiar ad infinitum o investimento.” Antigos ideais, grandes idéias. Mas continua faltando o anúncio solene do que é prioridade. E a demonstração de que a prioridade é para valer. Até prova em contrário, somente a percepção coletiva de que “o que tiver que ser feito será feito” resultará no necessário vetor de alteração favorável da expectativa racional dos agentes. Nas quatro reuniões que Lula realizou com seus ministros – duas delas, também com dirigentes de estatais – após as eleições, a assessoria de comunicação da Presidência fez questão de frisar na divulgação que os encontros foram tensos, possível indício de um rito preparatório. Em todas as reuniões, o tema foi o atraso dos projetos estruturantes e a anemia dos investimentos, claro indício que a ficha caiu no Palácio do Planalto. Em uma delas, foi divulgado que o ajuste fiscal complementar será utilizado para a ampliação do investimento público, um bom sinal nas circunstâncias. Finalmente, no encontro ministerial de 18 de novembro, Lula rasgou o verbo, se disse “angustiado” e pediu, publicamente, providências urgentes para que o governo corra atrás do prejuízo e consiga desobstruir os projetos prioritários. Pela conta mais fresquinha do governo, apresentada nesta mesma reunião, há hoje no país 120 obras com pendências ambientais e jurídicas, sendo 100 na área de energia e 20 na de transportes. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 155 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Lula quer enviar ao Congresso projeto de lei definindo competências no licenciamento ambiental, evitando assim a superposição entre órgãos federais, estaduais e federais, além da intervenção e questionamentos freqüentes do Judiciário. Boa medida! Mas não basta para desenrolar o emaranhado do carretel. A medida desejável deve colocar um holofote na gravidade do momento, indo além de uma legislação generalista. O governo precisaria sim enviar um projeto de Lei ao Congresso, mas determinando, através de legislação complementar com quorum qualificado, que os projetos prioritários, os tais estruturantes, teriam tratamento diferenciado. As burocracias e grupos de interesse da sociedade com poder de veto informal teriam prazo definido para apresentar, em caráter emergencial, seus óbices. Os gestores dos respectivos projetos também teriam de apresentar as soluções em um prazo máximo fixado. As demais prerrogativas não seriam consideradas nos casos especiais. Prioridade é prioridade, e estamos conversados. Em meio à necessidade de ações legiferantes, é preciso enfatizar que o argumento conservador de que não existem recursos para as prioridades é falso, paradoxal, capcioso e covarde. A não ser por erro de hermenêutica, a conta das prioridades no orçamento se faz ao contrário. O que é prioritário entra primeiro no fusquinha. Há um insidioso pensamento que induz a crença de que somente são possíveis os investimentos em infra-estrutura se forem reduzidos ou cortados os igualmente preferenciais investimentos sociais. Os dois corpos não caberiam no mesmo espaço. E a alternativa possível, aquela sob medida para reduzir popularidade ou desestabilizar governos, seria o aumento da carga tributária, na “hipótese inadmissível 1”. Na “hipótese inadmissível 2”, a troca se daria pelo aumento da inflação. 156 F OGO-FÁTUO I N S I G H T Em primeiro lugar, uma parte dos recursos necessários já está aprovada e disponível e faz parte do chamado Projeto Piloto de Investimento (PPI), expediente que desconsidera os investimentos com retorno definido do cálculo do superávit primário do governo. É possível elevar ainda mais o montante dos PPI? Elementar, meu caro Watson! Em segundo, existem medidas de aperto de cintos que podem trazer alguma complementaridade de recursos – é inaceitável ouvir a fanfarronice de que o Governo Federal do Brasil não tem poder de decisão ou soberania sobre um tostão do seu orçamento engessado. Em terceiro, é possível, provável e desejável que sejam estruturadas operações de funding, usando o mercado de capitais, securitização de recebíveis dos respectivos projetos, técnicas de project finance e – por que não? – alguma ampliação da dívida externa da União (o Brasil caminha para ter mais do que o dobro da dívida do governo no exterior garantida por reservas cambiais). Em quarto e último, que, se necessário for, se utilizem os expedientes e decretos de urgência, até os cabíveis em caso de guerra. Sim, de guerra contra a mutilação do crescimento nacional. O que não vale é o elogio da impotência. O curioso e intrigante é que parte das legiões que hoje cantam o réquiem do crescimento e pregam a morte da inventiva nacional, da subversão do convencionado e do poder libertário do ato político, são exatamente aqueles que estiveram no front de algumas das maiores rupturas de nossa História. É gente que foi à fronteira do conhecimento, ceifou farisaicos limites institucionais e elevou a decisão política ao panteão dos atos heróicos, quer tenham sido eles bem-sucedidos na primeira hora ou não. Quem não se lembra do confisco da INTELIGÊNCIA base monetária, das tablitas de conversão ou mesmo da criação de uma inusitada moeda com curso legal e sem poder liberatório, a Unidade Real de Valor (URV). Pois é, talvez não seja assim tão curiosa e intrigante a má vontade dessa turma. Uma idéia mais factível e engenhosa, por exemplo, está sendo desenvolvida e modelada pelo ex-ministro Raphael de Almeida Magalhães11, e consiste na criação de uma espécie de “Fundo Brasil”, que teria um grande aporte inicial de recursos do Tesouro Nacional, a fundo perdido. Investidores institucionais, internacionais e domésticos, a exemplo do Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento, Cooperação Andina de Fomento, fundos de pensão e outros fundos de investimento voltados para infra-estrutura, a exemplo do Brasil Energia, Infra-Brasil e AG Angra, também seriam sensibilizados a participar do funding. Os projetos que comporiam a carteira do fundo seriam todos rentáveis, o que está em perfeita sintonia com a esmagadora maioria dos projetos estruturantes em energia e logística. A União seria garantidora dos recursos para a complementação das obras no prazo determinado caso os recursos suplementares, vindo de outras origens, por algum motivo não se realizassem. Os projetos seriam desenvolvidos pelos operadores naturais, Eletrobrás, Furnas, Petrobras etc. Após sua conclusão, os projetos seriam privatizados, preferencialmente com a pulverização do seu controle, conforme projeto de lei, que criaria o fundo e disporia sobre a obrigatoriedade da sua posterior alienação em mercado. Raphael de Almeida Magalhães tem os detalhes. 11. Advogado, foi vice-governador e governador em exercício do Estado do Rio de Janeiro em 1964 e 1965 e deputado federal. Presidiu a Federação Nacional das Empresas de Seguros Privadas. Foi secretario de Educação e Cultura do Rio de Janeiro e ministro da Previdência e Assistência Social. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 157 I N S I G H T INTELIGÊNCIA As decisões técnicas, dirigidas a estilhaçar os grilhões infra-estruturais do crescimento deveriam estar amparadas por um ambiente político de convergência em torno de um denominador comum. Esse é, provavelmente, um desafio superior ao da engenharia dos projetos e liberação dos recursos. O caminho da “consertação” vem sendo considerado à via menos estreita para a desobstrução dos obstáculos que travam um novo surto de crescimento econômico. É a chamada “economia política do possível”, cujo expoente é o economista-chefe e vice-diretor do Centro de Desenvolvimento da OCDE, Javier Santiso, que abre uma trincheira no debate entre ortodoxos e heterodoxos na América Latina. Sua essência é galvanizar os diferentes espectros sociopolíticos em torno de uma agenda dos chamados “quase-consensos”, aqueles pontos sobre os quais gregos e troianos e russos e lituanos convergem. No pensamento de Santiso chegamos à iminência da esperada terceira via, fator de predominância na escolha de uma entre as três visões distintas do crescimento, conforme a caracterização do ex-ministro Maílson da Nóbrega: a que resume tudo a uma questão de vontade política; a que responsabiliza a política econômica; e a que enfatiza a acumulação e resolução dos gargalos estruturais. A “via do possível” é esta última. Caberia ao presidente da República explicitar ao povo brasileiro a gravidade do momento, conclamando-o para a grande virada, uma “consertação” em nome do mais nobre dever pátrio, a libertação do desenvolvimento. Lula passou metade do seu primeiro mandato tentando se livrar da mortalha deixada sobre seu governo pela gestão FHC. A outra metade do mandato foi preenchida pela resistência, no limite da exaustão, ao maior linchamento político já promovido pelas oposições. Vitorioso, fortalecido pelas urnas e usufruindo do estio natural dos inícios de mandato, seria a hora de fincar a agenda do desenvolvimento, ignorando os riscos do convite ao entendimento ser considerado apenas uma confissão de incompetência da sua gestão, que teria levado o país “à terra arrasada da infra-estrutura”. Entregar a encomenda do crescimento a partir de já e garantir sua promessa no futuro é a única medida que a responsabilidade de Estado-Maior admite numa situação como a do Brasil. Nossos filhos, presidente, agradecem! [email protected] 158 F OGO-FÁTUO