26 edição histórica - Insight Inteligência

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26 edição histórica - Insight Inteligência
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Inteligência – O presidente Lula disse que não vai mais se comparar a governos anteriores, particularmente com o do Fernando
Henrique Cardoso. Vai se comparar apenas com seu primeiro mandato. Diante das experiências que vocês têm com relação à análise
de vários problemas concretos do país de longa data, de curta data
ou contemporâneos, será este um critério suficiente para estabelecer a avaliação de desempenho de um governo? Ou é necessário
deduzir considerações sobre as necessidades das áreas em que as
políticas foram elaboradas pelo governo? Exemplo, a partir de agora qualquer política de saneamento com investimento considerável
será espetacular porque, no primeiro mandato, quase nada foi feito
nesta área.
Vera Brandimarte – Ao dizer isso, o presidente Lula está querendo marcar posição, sinalizando que vai fazer um governo diferente
no segundo mandato, focado no desenvolvimento. O que a gente
não viu até agora são as condições concretas para uma grande
mudança. Logicamente, ainda não conhecemos os ministros e os
ocupantes dos cargos mais importantes, antes do que será difícil
imaginar qual vai ser o peso de uma política de maior investimento.
Mas, independentemente de quem o presidente nomeará para as
pastas mais importantes, pode-se ter mais 1% ou menos 1% de
crescimento sobre o PIB. Ao longo do período eleitoral, esforçamonos em olhar apenas para o que acontecia nos fundamentos da
economia. Se comparado aos últimos dez anos, houve uma melhoria de todos os indicadores. Por outro lado, também está cada vez
mais claro que começamos a testar taxas de juros que o país nunca
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teve nos últimos dez anos. E, ainda assim, não se vê uma reação na
economia real. É impressionante. Não há resposta em termos de
expansão da economia, o que torna muito claro que existem componentes muito mais complexos que estão constrangendo a economia brasileira. São muito mais complexos do que simplesmente
uma política monetária restritiva. Isso gera muitas dúvidas sobe
como será o segundo mandato. Há uma forte expectativa, por exemplo, de que esses próximos anos serão marcados por grandes obras
de infra-estrutura, o que acabaria puxando todos os investimentos
em vários outros setores. Mas, concretamente, não se observam as
condições objetivas para a realização destas obras. O tempo de
começar a fazer investimentos pesados em energia e logística está
passando.
Claudia Safatle – Esta comparação entre o primeiro e o segundo mandato talvez seja uma maneira ingênua de se tratar a
questão. A política é um processo. Estamos, hoje, tentando sair
de uma crise que começa de fato em 1982. Vai se tentando tirar
os problemas mais urgentes, as dificuldades do momento. Durante muito tempo, esse problema era a hiperinflação. Agora,
quando cai a hiperinflação, o que acontece? O Lula também
passou os primeiros quatro anos cuidando da superinflação,
que ameaçava despontar em 2003. Desenvolvemos algumas tecnologias interessantes para lidar com este mal e temos, hoje,
uma inflação praticamente semimorta. Mais recentemente, a
taxa de juros, que era o monstro de 12 cabeças, também começou a cair. Estamos com a menor taxa de juros real dos últimos
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doze anos. E, mesmo assim, o Brasil não vai crescer! Não vai
crescer! Agora, começa-se a perceber que o buraco está na
questão fiscal, que começou a ser levantada no Brasil na década de 80 e, desde então, pouco avançou. Fernando Henrique
Cardoso aumentou a carga tributária em mais de 15% do PIB.
Esgotou-se o modelo de aumento da carga tributária. E agora?
Enquanto o país não desatar esse nó fiscal, os recursos para os
investimentos continuarão travados e o crescimento de 5% vai
ficar apenas na promessa.
Vera – Acrescentaria outra questão tão complicada quanto a carga
tributária e que tem aflorado mais recentemente, Em que medida a
nova fase de crescimento e investimentos no país não depende das
decisões de grandes oligopólios? A princípio, isto não seria um
problema, se as agências estivessem funcionando e impusessem
limites à atuação desses oligopólios. No entanto, toda decisão que
elas tomam não tem poder de lei. A empresa atingida por uma
decisão contrária aos seus interesses vai à justiça e, ali, a questão
pode durar até dez anos, ou mais. Em dez anos, o mundo é outro.
Concordo que, a partir do momento em que se tirou o fantasma da
Claudia – Há uma maçaroca institucional. Hoje, o Ministério Público e o
TCU funcionam como agência de proteção ambiental. Às vezes, o Ibama faz
uma Rima e o Ministério Público se
opõe à decisão. Não está definido o
que o Ministério Público faz, o que
cabe ao TCU, e qual o papel do Ibama. O próprio Ibama federal entra em
conflito com os Ibamas estaduais. Ou
seja, fazer obras no Brasil é uma odisséia. Hoje, não haveria hipótese de se
construir uma Itaipu.
Pedro Cafardo – Com relação à pergunta inicial, quero fazer uma observação um pouco diferente da visão fiscalista apresentada pela Claudia. Na minha visão, está correto comparar os diferentes mandatos do presidente Lula
por uma razão prática e simples. Não
tem jeito de saber se este país está indo
para trás ou para frente à não ser
olhando o passado. E no governo Lula,
INTELIGÊNCIA
inflação, que monopolizava toda a atenção da política econômica,
começa-se a ver os outros problemas da economia brasileira. Na
maioria dos casos, são mesmo fruto de decisões tomadas lá atrás.
Acho que demorou muito tempo para a gente perceber os efeitos
da atuação desses grupos.
Inteligência – Você acha que esses grupos são novos atores,
reconhecidos finalmente, no sistema político brasileiro? Eles têm
objeções a esforços no sentido do grande salto de qualidade, de
uma ruptura do padrão de rotina do primeiro mandato?
Vera – Não diria que eles têm objeções, mas há um excesso de
poder na mão deles. É como se o governo, para levar à frente suas
propostas de crescimento em várias áreas, de investimentos em
varias áreas, tivesse uma forte dependência das decisões tomadas
por esses grupos. Não se vêem novos atores na economia surgindo
para contrabalançar e dar uma nova dinâmica ao processo. Logicamente, a burocracia do Estado joga com um papel forte, não só no
plano federal, mas nos estados. Existe uma atuação do Ministério
Público que acaba por obstruir os investimentos.
qualquer indicador, tanto
continuasse a fazer sua parna área social quanto na
te, os investimentos ainda
área econômica, sejamos
estariam em torno dos
tucanos ou petistas, é me25% do PIB – aliás, a únilhor. Admita-se. Ele não
ca meta numérica do PT.
ganhou a eleição por acaso. Ganhou porque a poInteligência – O governo
pulação enxerga esses inPT fala muito em “conserdicadores no seu dia-a-dia!
tação”, mas de quê? PossiEntão, a comparação com
velmente em torno do
o primeiro mandato é bas- Pedro Cafardo
crescimento. Não partindo
tante razoável. Todos sade uma visão fiscalista, os
bemos que o governo tem de fazer in- orçamentos estão engessados por uma
vestimentos, senão não cresce.
serie de travas, como o contingenciamento e o pacto federativo. Seria possíClaudia – Começa daí: o governo tem vel, Rosângela, tendo em vista que os
de fazer esses investimentos? Esse é o investimentos deveriam premiar uma
seu papel?
relação maior de elasticidade e produto, tentar destravar os orçamentos? Não
Pedro – Bem, o país tem feito investi- estamos falando de aumento da carga
mentos mais ou menos no mesmo rit- tributária ou mesmo de corte de gastos
mo que vinha fazendo antes. Quem e sim de recursos que estão travados e
baixou o seu volume de investimentos têm uma distribuição que, pode não ser
foi o próprio governo. Se o governo ótima, mas é a necessária.
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Rosângela Bittar – Não acho que seja possível destravar o orçamento. Essas vinculações foram concedidas a custo de sangue,
suor e lágrimas. A vinculação da educação, por exemplo, que acompanhei bem de perto, custou muito. Se houver essa desvinculação,
áreas como educação e saúde vão falir. No Congresso, qualquer
tipo de “consertação” com objetivo de fazer o orçamento mais
maleável será muito difícil. Haverá mobilizações contrárias muito
firmes. Acredito ainda que o governo poderá ser administrativamente mais forte, uma vez que já carrega a experiência dos quatro
primeiros anos. Em compensação, do ponto de vista político, sentirá muita falta de algumas pessoas. Márcio Thomaz Bastos foi um
esteio do primeiro governo, principalmente a partir da saída de
Inteligência – Não sabemos se alguém é insubstituível. Antes do Palocci, também se achava que não havia ninguém. Aliás, havia o Celso Daniel. Depois do seu assassinato, perguntava-se quem daria esse esteio político. Apareceu o Palocci e foi aquele
deslumbre. Talvez essa sensação de
dificuldade se deva a uma certa falta
de confiança na criatividade para o
processo. Basta conversar. Os russos
não falam nada? O PSDB não fala
nada? O PMDB não fala nada no
Congresso? Basta conversar com os
empresários, ver os problemas que necessitam de legislação, de reforma legislativa. Enfim, pode-se conversar
com todo mundo. Pode até se conversar nos restaurantes, escondido.
Agora, em algum momento, vai ter de
desaguar no Congresso, que é muito
forte. E que Congresso é este? Um
Congresso em que dois dos grandes
partidos, PSDB e PMDB, convivem
com uma divisão difícil de superar.
Depois de 1945, a esquerda no Brasil
passou a ser democrática. O grupo de
políticos que se opunham à ditadura
de Vargas criou a esquerda democrática. Lembra um pouco o PSDB hoje.
Tinha uma parte mais trotskista, ou-
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INTELIGÊNCIA
José Dirceu. Muito provavelmente, não estará no segundo mandato. Fará enorme falta. O governo precisa de personagens como ele
para sair do imobilismo político. Ao mesmo tempo, ainda não apareceu, nos primeiros desenhos do futuro governo, um nome com
peso político suficiente para transitar pelo Congresso e junto à
própria sociedade.
Vera – Antes desta conversa, especulávamos entre nós qual será o
papel que o ex-ministro Antonio Palocci terá nessa articulação,
principalmente com o meio empresarial. Colaria aqui meu ceticismo. Não sei se, neste momento, é uma boa opção para o governo
deixar esse espaço nas mãos do Palocci.
tra mais comprometida com o progresso do país e ainda uma parcela extremamente conservadora. Não houve uma agenda capaz de conciliar esses interesses. Dessa esquerda democrática, saiu o Partido Socialista Brasileiro, saiu a UDN. Se o PSDB continuar do jeito que está, com suas divisões internas, as eleições municipais
de 2008 serão muito complicadas. O
PT tem rua. O PSDB, não.
deiras eleitorais. O orçamento é outra
armadilha. A desvinculação é um processo extremamente complexo. Exatamente por ser forte, o Congresso pode
forçar o governo a estender esta desvinculação para os recursos destinados
aos estados.
José Roberto Campos – Por que é
complicado para os estados e não para
a União? A União pode fazer e os estados não podem?
Maria Cristina Fernandes – Antes de entrarmos
Maria Cristina – Você
nessa questão do Congresjá viu alguma manchete
so, gostaria de dar umas
de jornal sobre o nãopinceladas sobre esse tema
cumprimento dos gastos
da comparação entre os
em educação e saúde no
dois governos Lula. Essa
estado do Amapá, por
idéia do “quero comparar
exemplo? Ou no Tocancomigo mesmo” é bastantins? A visibilidade do deste compreensível, sobretucumprimento das despedo do ponto de vista elei- José Roberto Campos
sas nos estados é muito
toral. Ao mesmo tempo, ao
pequena, até porque a
lançar esta perspectiva, ele montou uma imprensa local tem um poder de presarmadilha. Vamos pegar um ponto es- são mais reduzido. Não há Tribunais
pecífico: o salário-mínimo. Ele sofrerá de Contas em todas as unidades da
grandes pressões para não manter a va- Federação. Ao passo que existe uma
lorização do salário nos mesmos pata- fiscalização maior quanto ao cumprimares do primeiro mandato. E essa foi mento ou não das despesas orçamenjustamente uma de suas grandes ban- tárias por parte da União.
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Campos – Voltando à questão inicial, há uma outra linha que o
Lula adotou ao longo de sua campanha. Ele dizia: “Vou comparar o
Brasil com o próprio Brasil”. Nos últimos cinco anos, crescemos, na
média, 2,3%. Neste ano, vamos crescer algo como 2,7%. Continuamos patinando na lama. Com relação ao orçamento, a vinculação é
a jabuticaba brasileira. Estamos discutindo sobre um valor que
equivale a cerca de 10% de todo o orçamento. A Constituição de
1988 criou, sim, um seguro contra a gestão política. Ou seja, separando este dinheiro, ninguém mexe nele.
Claudia – A vinculação foi criada para quem tem voz. Na área da
saúde, quem conseguiu foi o pessoal do jaleco. Na educação, os
professores, os reitores e os empresários do setor. Não é uma
conquista dos pobres.
Rosângela – Mas também se arrumou dinheiro para o Bolsa Família, destinado a quem não tem voz. Ninguém fez greve para ter
direito ao Bolsa Família!
Claudia – Mas o dinheiro do Bolsa Família não tem vinculação
formal ao orçamento. É uma generosidade, digamos assim, de um
determinado governo.
Pedro – É só trocar o governo que o Bolsa Família acaba.
Claudia – Não, não! Ninguém tira mais.
Pedro – Pode até ser devagar, mas tira. Em quatro, cinco anos,
elimina!
Campos – Essa questão da vinculação é mesmo muito curiosa.
Em percentual sobre o PIB, o que o governo gasta em educação
não é menor do que a média dos países emergentes. O mesmo
vale para a saúde. Há prefeitos nadando em dinheiro. Para cumprir o orçamento, acabam construindo escolas de que não precisam. A vinculação, boa parte dela constitucional, criou um seguro
contra a gestão política. Mas todo mundo só olha para a União.
Por que o estado e o município não podem desvincular? Por que
não se cobra cumprimento do orçamento do prefeito e do governador. Tudo depende da União. Então, é ingovernável. Diz-se que
o dinheiro do Bolsa Família, R$ 8 bilhões, não é muito. Mas quanto o Estado investiu em capital fixo no ano? Cerca de R$ 10
bilhões, ou seja, apenas R$ 2 bilhões a mais do que no Bolsa
Família.
INTELIGÊNCIA
Maria Cristina – O governo gastou R$ 8 bilhões e atendeu a 55
milhões de pessoas. Nenhum outro programa teria um alcance
desse tamanho.
Campos – Não sou contra o Bolsa Família, mas existe um certo
triunfalismo de que essa parte está resolvida. Não está! Ela só
estará resolvida quando o Brasil crescer. Há duas decisões eminentes que são muito sinalizadoras da direção que o presidente Lula
vai tomar. Esse pacote da contenção de gastos vai mostrar que
áreas serão prioritárias. A segunda é a escolha do ministério. É um
péssimo sinal dar ministério de porteira aberta para o PMDB. Tudo
indica que o buraco fiscal pode escapar por aí. O PMDB, tradicionalmente, não tem responsabilidade com o dinheiro público. Está
pouco se lixando para contenção. Basta ver os seus governos.
Vera – Ministério não tem muito o que fazer. Cumpre as regras
estabelecidas pelo Planejamento. Não é um ministério do PMDB
que vai ou não desrespeitar uma regra fiscal. Além disso, se o PT
fizer uma aliança para valer com o PMDB, o governo terá de ser de
coalizão. Não adianta fingir como foi feito até agora.
Inteligência – Vamos voltar a esta questão importante, sobre o
presidencialismo de coalizão. Estamos falando sobre o problema
do federalismo brasileiro, que não existe. Não somos capazes de
aceitar a idéia de deixar realmente os municípios e os estados se
administrarem. E se eles administrarem mal, danem-se. Os eleitores que votem e resolvam. Não temos condições de aceitar porque
falta coragem para implementar o artigo não sei das quantas da
Constituição que prevê intervenção federal em caso de descalabro
das contas públicas. É evidente que o país, do ponto de vista do
município e do estado, tem um descompasso entre administrações
mais regulares e outras completamente estapafúrdias. O Brasil
paga o preço de jamais ter tentando o federalismo para valer em
mais de duzentos anos de organização política. O século XIX é todo
de centralização imperial. Começa com um pseudo-federalismo na
República, que não se consegue manter. Depois, temos Getúlio
Vargas e por aí afora. Os políticos brasileiros, os técnicos, os burocratas ficam apavorados com a idéia de entregar a administração
de recursos públicos a cidadãos que foram eleitos para administrar
recursos públicos. A centralização de decisão política neste país é
enorme, contrariamente à descentralização da competição político-partidária. Há partidecos importantes em zonas de fronteira,
áreas não alcançadas pelo PMDB ou pelo PSDB. São esses partidos
que organizam a vida política nessas regiões mais remotas, mas
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ninguém quer dar a eles maior capacidade de administração financeira na fronteira da barbárie. O país vai ter de pagar esse preço do
estabelecimento do efetivo federalismo.
Vera – Isso não é bem assim! Há uma serie de projetos, só que
estão todos parados no Ibama ou no Ministério Publico. Existem
obras já em execução e outras que nem começaram.
Maria Cristina – A partir dessa idéia, não parece a todos que essa
eleição demonstrou o poder do governo central, por exemplo, no
ataque às oligarquias no Nordeste? ACM, o PFL em Pernambuco e
o PSDB no Ceará foram derrubados, talvez na carona dos programas federais. O poder central teve força.
Claudia – Mas não há essa visão de planejamento! Por exemplo,
há quanto anos estamos discutindo energia nuclear? É uma complementaridade importante ou não é? Precisamos definir estas
mínimas questões. De vez em quando, alguém do governo fala da
construção de Angra 3 e até de mais de cinco usinas. Quem sabe
um dia! Não tem uma coisa focada, com visão de longo prazo,
capaz de detalhar quais são as projeções para 10 ou 20 anos. Falta
quem diga quanto o país precisa gerar de energia hídrica, térmica
e nuclear. Essa visão estratégica de crescimento, de casar oferta
com demanda no futuro desapareceu.
Inteligência – Sem dúvida. Voltando ao tema do crescimento,
como questão fiscal, as amarras orçamentárias e até mesmo uma
maior clareza sobre o papel do Estado, estão devidamente mapeados. Sabe-se também que é absolutamente imprescindível atacar
os gargalos da infra-estrutura, notadamente energia e transporte.
Porém, todos estes fatores são tratados de maneira muito dispersa, como se fossem questões anérgicas. Estes ingredientes não se
entrelaçam e muito menos são observados de maneira sistêmica.
Fica claro que o Brasil não tem mais estrategistas que consigam
integrar estas variáveis em nome de um planejamento nacional. É
possível crescer sem este planejamento e sem estrategistas?
Claudia – Realmente, o Brasil não tem mais estrategistas. O desmonte nessa área foi enorme. Passamos muitos anos preocupados
quase que exclusivamente com a inflação. Então, o orçamento era
de mentira. O Executivo fazia de conta que elaborava, o Congresso
fazia de conta que aprovava e o governo fazia de conta que cumpria.
Há pouco tempo, fiz uma matéria sobre projetos de estradas no
Brasil. Não tem inteligência. O Departamento Nacional de InfraEstrutura em Transporte (Denit) tem apenas dois engenheiros. Dois!
Não há uma gaveta de projeto para cinco anos, 10 ou 15 anos. O
empresariado se ressente desta falta de planejamento estratégico.
Inteligência – Curiosamente, fica se bradando que o Estado brasileiro é enorme, quando absolutamente ele é apenas disforme.
Comparando a porcentagem do PIB gasta no pagamento do funcionalismo com a de outros países, o Estado brasileiro é uma bobagem. O que há é uma distribuição de força de trabalho inteiramente desequilibrada por conta dos períodos em que o Estado oligárquico servia como cabide de emprego. Há uma quantidade de motorista de caminhão, de porteiros, ascensoristas.
Claudia – Mas onde está a inteligência para o planejamento? O
país precisa de energia hídrica, mas onde estão os projetos?
32 EDIÇÃO HISTÓRICA
Vera – Não é que não haja uma visão estratégica. Houve uma
questão muito clara no primeiro governo Lula. Todos os esforços
foram direcionados para se cumprir uma determinada meta fiscal.
Então, todos os projetos de investimentos estavam lá.
Claudia – Não sei. Quando se foi fazer os PPIs, que tinha o grande
mérito de não ser contabilizado como déficit, não havia o que escolher. As equipes do Tesouro e do Planejamento tentaram selecionar
alguns projetos, mas não tinha prateleira.
Vera – Existe outra questão grave. Havia uma proposta, sempre
lembrada pelo Tesouro, de construção de cinco ferrovias. Ora, vamos fazer uma, que já exige um esforço monumental para se construir. Pode colocar cinco, dez, o número que for, que não vai sair.
Não há definição de prioridades
Campos – O país ficou com uma visão de curto prazo. Não temos
planejamento nem mesmo para cortar despesas. O governo reduz
as verbas para a sanidade animal e dá um enorme problema de
febre aftosa no país, porque não há R$ 60 milhões disponíveis para
a vacinação do gado. Desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, só fazemos cortar, cortar, cortar. Desta forma se tem planejamento ou não passa a ser quase irrelevante.
Vera – Tudo foi para segundo plano em nome dessa prioridade do
ajuste fiscal. Não vale a pena discutirmos se o governo exagerou ou
não no rigor da política monetária. O fato é que se obteve resultado
ao se perseguir o controle da inflação. A um custo monumental?
Não se sabe. Mas é por conta disso que se tem hoje uma situação
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estável em contas externas. Já que haverá mais folga nos próximos
anos, a despesa de juros vai cair e o governo poderá definir outras
prioridades. A questão é saber se tem gente a postos capaz de
elencar estas prioridades e persegui-las.
Inteligência – Como dizia Paulo Francis, o Brasil tem um reduzido
número de pessoas capazes de pensar em bloco. Mas talvez não
precise de um grupo tão exagerado de pessoas. Roberto Campos
afirmava que, com duzentas pessoas, era possível administrar o
Brasil com eficiência e transformá-lo em uma potência monumental. Para executar, é necessário ter uma burocracia extremamente
bem azeitada, com uma cultura profissional bastante modernizada. O problema é que o governo toma decisões, e essas deliberações não são cumpridas, ou por má-fé ou por incompetência. E não
tem como dar jeito! O custo de se recuperar o fracasso de uma
Rosângela – As pessoas ficam muito
dependentes da agenda do governo. Algumas entidades, como Fiesp e CNI,
até tentam criar uma agenda própria,
mas a regra geral é aguardar pelo posicionamento do governo central, o que
vale até mesmo para a oposição. O
próprio governo não deverá ter grandes problemas para emplacar suas propostas no Congresso, pelo menos naquelas questões que não afetarem as
corporações ou um grupo determinado. Não creio que a oposição vá ser
refratária à agenda do governo. O que
pode ser sim um problema para o Lula
é a falta de um sucessor dentro do próprio PT. Os partidos da aliança vão se
engalfinhar para ocupar esta vacância,
o que pode acabar trazendo problemas
para o governo. Aliás, o PT não tem
nem mesmo um personagem que consiga personificar a coordenação do partido. Por enquanto, o próprio Lula tem
cumprido este papel, não se sabe por
quanto tempo.
Maria Cristina – Salta aos olhos a dificuldade de o PT em manter um controle. Ao mesmo tempo, acho que superestimamos muito essa idéia de que
INTELIGÊNCIA
política é enorme. Contrariando Marx, o país está enfrentando
problemas que não tem capacidade de resolver!
Vera – Não é só um problema do Estado. Sem grandes obras há
mais de 20 anos, o país não tem mais engenheiros. A maioria dos
engenheiros formados nos últimos anos foi para o mercado financeiro. As próprias empreiteiras dizem que, se houver uma fase de
obras intensivas em infra-estrutura, vai faltar profissional.
Inteligência – Essa agenda de problemas cruciais que estamos
passando não é a agenda que aparece na fala dos novos governantes
e até mesmo dos grandes empresários. Ou estão fazendo um discurso hipócrita ou há realmente um descompasso entre o que se pode
identificar e até medir e os fatores que os administradores públicos
e privados reconhecem como as maiores dificuldades da nação.
o PT não consegue sobreviver sem a
mão pesada do Planalto ou de um Zé
Dirceu. Nas eleições, mesmo sem o Zé
Dirceu ali para carrear os recursos e
distribuir a verba partidária, o PT elegeu governadores onde não tinha. Devese ressaltar essa capacidade do PT de
se auto-prover, mesmo sem uma mão
forte. Eles vão criar muitos problemas
para o presidente Lula, mas todo o partido cria problemas para
um governante, mesmo
que seja seu filiado.
Rosângela – Acho que
teve a independência do
voto. O PT funcionou
mais ou menos como os
outros partidos. Agora,
olhando para o segundo
mandato, o presidente Lula Rosângela
tem um problema não só
no PT, mas nos partidos de aliança. Mal
acabou o segundo turno, o PT e o
PMDB já estavam em guerra aberta
pelo domínio dos principais cargos.
Não vejo como o Lula vai conduzir
essa articulação política por muito mais
tempo. Isso vai explodir em algum momento.
Maria Cristina – No primeiro mandato, esse problema explodiu na sucessão na Câmara. Era uma coalizão
majoritariamente dominada pelo PT,
que não arbitrou, naquele momento,
que o partido só podia ter um candidato. Deixou aquela situação prosseguir em rumos distintos e deu no que
deu, na eleição do Severino Cavalcanti. Agora, o governo parece mais consciente do que é uma coalizão e o PMDB terá uma
participação no executivo
correspondente ao seu
poder no Congresso.
Rosângela – As eleições
aumentaram a auto-preservação do PT. O resultado foi surpreendente
para eles próprios. FizeBittar
ram uma banca expressiva. No caso dos governos estaduais,
nem o Lula acreditava na vitória do
Jacques Wagner na Bahia. O próprio
Lula, dizem as pessoas mais próximas a ele, cita recorrentemente a performance de Jacques Wagner. O presidente a considera um feito extraordinário.
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33
I N S I G H T
Vera – Cristina, você falou que o partido sempre traz problemas aos governantes. Acho que está sendo injusta,
porque o PSDB não causou maiores
problemas ao Fernando Henrique.
Maria Cristina – Nossa, Vera! A natureza do conflito pode até ser diferente, mas houve muitos choques. O
Serra atormentava publicamente o juízo do Malan. Houve várias dissidências quando o partido foi votar a aliança com o PFL.
Vera – É verdade, mas eram disputas
entre aquelas estrelas, como Mendonça de Barros, Serra, Sergio Motta.
Além disso, os desencontros entre a
área econômica e outros ministérios,
sobretudo da área social, são comuns.
Historicamente é assim em qualquer
governo. A demanda é sempre muito
maior do que o caixa. Mas acho que
são questões diferentes dos problemas
que o PT trouxe para o Lula.
Inteligência – Mudando um pouco
o rumo da prosa, há uma razoável
concordância de que o crescimento
é a mãe de todas as batalhas do segundo mandato. Será que, ao deci-
dir, por exemplo, por um corte de gastar R$ 150 bilhões para pagamengastos da ordem de 2% do PIB, o to de juros. Pode perfeitamente pepresidente Lula não tragar R$ 10 bilhões e colobalha com a hipótese de
car na infra-estrutura. A
negociar alguma folga oreconomia pega no ato.
çamentária evocando um
Nós já vimos esse filme
certo caráter emergenentre os anos 70 e 80.
cialista? Mal comparando,
Agora, precisamos analio Fer nando Henrique
sar que crescimento é
usou este expediente na
esse. Talvez ele já tenha
questão do apagão, ao
começado. No governo
criar uma câmara de criLula, houve uma melhoses. A intensidade dos
ria dos índices de distriproblemas, uma vez reve- Maria Cristina Fernandes buição de renda. Os últilada, poderia permitir a
mos índices disponíveis
criação de instrumentos administra- sobre o desempenho econômico do
tivos e políticos capazes de desenges- Nordeste são de 2003. Mas tenho
sar os recursos públicos.
certeza de que, quando os índices de
2004 e 2005 aparecerem, vamos ver
Pedro – Crescer é absolutamente um avanço significativo na região, suimportante e ninguém nega. Voltan- perior ao do Sul e do Sudeste. O mesdo um pouco no tempo, na época do mo vale para o Norte. Será um cresSimonsen, houve um momento em cimento quase em ritmo chinês, e
que a grande batalha brasileira era com distribuição de renda porque lá
segurar o crescimento. Pois tem mui- está a população mais pobre. Então,
ta gente segurando o salto econômi- o Brasil não precisa ter necessariaco no país. Não precisa de muita coi- mente um boom de crescimento. O
sa para deslanchar e readquirir essa país pode crescer 4% ou 5%, com
dinâmica. Não é necessário quebrar uma média maior nestas áreas. A ecoo Estado e gastar uma enormidade. nomia paraense, por exemplo, teve
O governo, por exemplo, não precisa um salto de 25%.
Vera – Falamos genericamente dos investimentos de que o Brasil
precisa. Mas é necessário separar o que depende diretamente do
setor público e outros projetos que poderiam ser tocados pela
iniciativa privada. As ferrovias que estão bem são as privadas. O
que tem de diferente para acontecer é uma notícia positiva: estamos às vésperas de um investment grade, o que mudará substancialmente as condições de financiamento. Ao mesmo tempo, é preciso estimular os empresários a buscar ainda mais recursos no
exterior. Se não, ficamos sempre naquela história: o que vem primeiro, oferta ou demanda? A indústria não cresce porque não tem
demanda. O país não consome porque não tem aumento da produção. Além da energia, dos tributos e da logística, devemos discutir
mais profundamente o problema da insegurança regulatória. As
agências foram criadas, mas o que elas decidem não é cumprido.
34 EDIÇÃO HISTÓRICA
INTELIGÊNCIA
Inteligência – Vamos voltar à questão do caráter emergencial. No
primeiro mandato, o Lula esteve premido pelo terrorismo tucano. A
hiperinflação, a crise cambial e o risco do direito de propriedade
estavam à espreita, diziam. Depois, ele foi linchado e não teve o
devido tempo para confessar o tal caráter emergencial. Ou seja, até
agora foi complicado para o Lula dizer à nação o grau dos problemas
que temos. Será que ele não vai ter de amplificar e purgar publicamente estes entraves para conseguir instaurar uma aceitação a este
clima de emergência e aí sim começar a soltar as amarras?
Claudia – O governo vai ter de ousar. E vai ousar! Vai ousar numa
política fiscal, com ganhos imediatos. Só vale à pena ter certa
audácia na política fiscal se o ganho for precificado a valores de
hoje e não daqui a quatro anos. A minha impressão, pelo que ouço
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
do pessoal da área econômica, é que tudo dependerá do Congresso. No passado, era possível se fazer muita coisa na gestão do
Orçamento. Como o governo vai tirar dinheiro da Saúde, trocar a
correção do PIB nominal para o IPCA? Tudo depende do Congresso.
dinheiro neste governo. No fundo, é essa desconfiança de que um
“PSOL do B” possa dar um golpe.
Vera – Quando pensamos em termos de desenvolvimento, ainda
recorremos a algumas demandas que eram muito claras na década
de 70. Não sei é importante o governo investir em um porto quando
o setor privado tem capacidade para isso. No fundo, o papel do
Estado é dar condições para o crescimento. É reduzir imposto para
gerar competitividade. Se não mexe no câmbio, tem outras formas
de dar força indústria nacional. Do contrário, continuará assistindo
ao êxodo de empresas que buscarão outros lugares para produzir.
E como se dá a competição? Isso, sim, é papel do governo. É menos
complicado tomar decisões que estimulem o setor produtivo do
que o próprio governo arrumar caixa para tocar projetos. Ocorre
que o capitalismo brasileiro jamais viveu a experiência de o Estado
dar as regras e o empresariado ir sozinho. O Estado sempre precisou
puxar a indústria. O grande boom de crescimento, na década de
1970, se deu pela ação direta do BNDES. Na área rural, por exemplo,
a Embrapa foi extremamente importante. Só existe o cerrado porque
houve investimento público da empresa na área de pesquisa.
Pedro – Também preconceito, mas tem essa desconfiança de que
o Lula continua sendo o sapo barbudo.
Inteligência – Uma área de pesquisa sobre a qual não havia controvérsia política e ideológica. Este é ponto crucial para esta discussão
a propósito do caráter emergencial das decisões. Estamos esquecendo que o Estado tem um partido político hegemônico, o PT, e um
problema para resolver. O empresariado não investe porque, não
obstante todas as declarações, não sabe se amanhã haverá uma
revolução dentro do partido e o “PSOL do PT” toma o poder. Por
“PSOL do PT” entenda-se aquela turma que ainda ficou. Há um problema político seríssimo em relação a quem verdadeiramente manda no partido hegemônico do governo. Isso não está claro para quem
corre o risco de perder dinheiro, assim como não está claro para as
pessoas que fazem análise. Aquele pessoal é capaz de reduzir a capacidade de decisão do governo como um todo porque tem um restinho
de poder de veto. Eles não têm força para decidir, mas sim para vetar.
Podem sim comprometer a velocidade das decisões e a capacidade
de implementação. É o caso do Ibama. O PT está lá dentro, criando
muitos problemas e obstáculos para as obras de infra-estrutura.
Claudia – Imagina o João Pedro Stédile no Banco Central!
Pedro – Existe, de fato, uma desconfiança das elites empresarias
em relação ao PT. O Lula mesmo perguntou durante a campanha
por que os banqueiros votavam no Alckmin se ganharam tanto
Maria Cristina – Por falar em Walter Pinheiro, o financiamento
que ele recebeu de grandes empresas foi estrondoso. Esses personagens, por mais que continuem incendiários, estabeleceram uma
Vera – Desconfiança ou preconceito? O que pesa mais nessa balança?
Claudia – Nossa história recente é muito complicada. Tivemos um
Collor que fez confisco. Esse risco de descumprimento do estabelecido está no DNA de todos nós. O Estado brasileiro é arbitrário e
isso está na memória de todos.
Campos – O caso do Hélio Costa é típico, até pelo fato de que a
área de comunicações funciona perfeitamente e está diante de um
novo boom de investimentos. O órgão regulador toma uma decisão
e o ministro fala que vai pedir intervenção. Ora, quem manda nisso
aí? Todos pedem regulação, e, quando ela existe, vem um ministro,
de péssima qualidade por sinal, e diz que não.
Inteligência – Imagina se alguém deduzir que esse ministro pode
ser o Olívio Dutra. Se bem que ele ainda é dos mais moderados.
Rosângela – Nem precisa ser tão radical. Essa mudança de respeito
em relação às agências começou com a Dilma Rousseff, que, no Ministério de Minas e Energia, passou a desconsiderar o marco regulatório.
Ela instaurou o novo marco do setor elétrico por medida provisória.
Inteligência – Em relação à Dilma, a versão é outra. Ela é uma
ditadora confiável. Todo mundo sabe que ela vai cumprir. Durante a
ditadura, os empresários investiram pesadamente. Não havia problema de confiança. Hoje em dia, a questão é que os grupos dentro
do PT têm capacidade de complicar o processo decisório e dilatar
tempo. Eles fazem isso em todas as instâncias, inclusive dentro do
próprio partido com a postergação das investigações sobre as ilegalidades cometidas. O empresário não olha apenas para o que o
Lula diz. Olha também para o que o Walter Pinheiro e tantos outros
com poder burocrático dentro do partido e do Congresso dizem.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006
35
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INTELIGÊNCIA
interlocução com o setor privado importante ao longo desses quatro anos e desenvolveram uma participação decisiva na definição
dos rumos do país.
Maria Cristina – Mas há uma crescente força que se opõe a esse
grupo em outros estados, em outros setores, em outras facções do
PT, como o Marcelo Deda e o Jorge Vianna.
Inteligência – A experiência permite que se criem expectativas
posteriormente confirmadas pela reiteração da relação. Mas como
este processo no Brasil é recente, a taxa de ansiedade é grande.
Seis meses antes de chegar ao governo, quando fez a Carta de
Recife, o Lula dizia que ia fazer uma revolução socialista. E, não
obstante, recebeu mais financiamento em todos os setores econômicos do que o Serra, à exceção do sistema financeiro. A banca foi
o único setor que deu mais financiamento à campanha do Serra do
que a do Lula. É uma aposta, um investimento. Essas divisões dos
dois principais partidos vão dar pano para manga no Congresso.
Até para se criar este gatilho do caráter emergencial, será uma
briga danada dentro do PT.
Rosângela – São pessoas que já existiam antes. Como estão
em postos no executivo, talvez não tenham condições de assumir a liderança do partido. Nenhum deles parece estar disposto
a puxar o partido para seu pensamento, para sua maneira de se
comportar.
Maria Cristina – Talvez essas divisões internas do PT tenham sido
acentuadas no primeiro mandato porque existia claramente alguém
que mandava no partido além do Lula, que era o caso do José Dirceu.
O fato de não ter alguém com um poder próximo ao do presidente da
República não pode dirimir um pouco o poder de confusão?
Inteligência – Quais são as pessoas eleitas que compõem a bancada federal do PT? A que tipos de corporações são ligados? É
complicado passar qualquer coisa na área de Saúde porque tem
Jandira demais no setor. A Jandira Feghali é um voto apenas no
Congresso, mas tem uma capacidade de intervenção muito grande.
Maria Cristina – As pessoas do PT envolvidas no mensalão eram
todas de um único grupo, beneficiado por gente de dentro do Palácio, que tinha interesse em fortalecer esta parcela do partido. Hoje,
não vejo claramente um centro de poder do PT que tenha sua
representação no Palácio, com capacidade de fazer isso. Pode ser
que haja e a gente ainda não tenha descoberto.
Rosângela – Acho que esse grupo não foi desbaratado. Esse grupo
que tinha a proteção do Palácio permanece, agora com a proteção
do PT. É o mesmo grupo que recebeu dinheiro do partido nestas
eleições de 2006, ainda claramente alimentado pela liderança do
Zé Dirceu. Grande parte não foi eleita, mas contou com a proteção
do partido. Eles apareceram no palanque do Lula de maneira discreta, caso do João Paulo Cunha, eleito com dinheiro do PT e alimentado por esse grupo antigo.
36 EDIÇÃO HISTÓRICA
Campos – O fato de muitos dos mensaleiros terem sido eleitos me
dá cada vez mais certeza de que o PT, com uma velocidade incrível,
com a máquina burocrática de dominação do partido, decretou sua
independência em relação às bases. Os parlamentares propuseram que, na estruturação do PT, houvesse mais vagas na executiva
nacional aos bons de voto. Ou seja, para a própria bancada parlamentar. Esse movimento é típico. As bases têm pouco poder hoje
sobre a máquina. Acho que a tendência é descolar.
Maria Cristina – Precisamos ver quanto da bancada eleita contou
com dinheiro do partido para saber se essa máquina burocrática
teve esse peso todo na eleição deles. Não dá para saber se o João
Paulo Cunha foi eleito pela máquina do partido. O que sei é que ele,
como ex-presidente da Câmara, teve muito dinheiro de empresas
privadas. De algumas grandes companhias, foi o deputado que
mais recebeu doações.
Rosângela – O partido privilegiou, sim, esses candidatos ligados à máquina, que são bons de voto. Aqueles candidatos do
chamado voto de opinião não tiveram praticamente nenhum recurso do partido. O Greenhalgh, por exemplo, não deve ter recebido um tostão.
Maria Cristina – É uma boa matéria levantar esses dados.
Inteligência – E a Ângela Guadagnin, que não foi eleita, recebeu
dinheiro? E o Genoíno?
Rosângela – Devem ter recebido.
Vera – Nós jornalistas somos muito críticos, faz parte desta
nossa profissão. Em toda esta nossa conversa, parece até que
estamos meio pessimistas com relação ao segundo mandato.
Acho que é o contrário. As condições objetivas e os fundamen-
I N S I G H T
tos da economia estão muito melhores do que no início do primeiro mandato. O que não temos é a ilusão de um programa
realmente revolucionário, que vá apresentar uma ruptura. Não
acredito em uma grande mudança, mas, com certeza, tudo indica que teremos quatro anos melhores do ponto de vista do
crescimento econômico.
Claudia – Com relação às condições objetivas da economia, não
tenho dúvida de que o momento é muito positivo. Estou cobrindo
economia desde 1975 e nunca houve uma situação tão boa no país
como agora. Agora, há uma armadilha fiscal grave. É preciso fazer
a reforma da Previdência, que não é brincadeira. Todos acham que
o governo promoveu a reforma do setor público. Houve, sim, muito
barulho no Congresso, mas na hora de regulamentar ficou tudo
igual ao que sempre foi. Será necessária uma capacidade muito
grande de imprimir mudanças importantes. Vou parafrasear o Delfim: ou o Lula volta para governar como um grande estadista ou
como mecânico fracassado. Não tem meio termo. Governar entre-
Campos – O salário-mínimo é outra
jabuticaba. Ele só tem importância por
causa da Previdência. Só no Brasil os
aposentados recebem salário. No caso
do setor público, o salário da ativa. Isso
não existe em nenhum lugar do mundo. Se houver a desvinculação, esta
passa a ser uma questão menor.
Inteligência – Vigora, portanto, a
idéia de que, há tanto tempo, não existem condições macroeconômicas tão
favoráveis para o desempenho econômico genérico, sem especificação
de justiça social, beneficiação setorial ou regional. Existem condições
excepcionais para o desempenho,
mas faltam algumas que seriam cruciais para resolver os estrangulamentos do grande salto. De qualquer
maneira o desempenho final estará
aquém daquilo que, em tese, as condições permitiriam, pela impossibilidade de resolução satisfatória de problemas intermediários. Pode ser que
os problemas dos portos e da ener-
INTELIGÊNCIA
gando crescimento de 2,5% será um fracasso. Ou continuamos
nessa mediocridade ou damos um salto de qualidade.
Maria Cristina – A questão, Claudia, é como convencer as pessoas dessas regiões que tiveram esse crescimento chinês de que o
país inteiro precisa se desenvolver como um todo e que este pensamento também beneficiará diretamente as suas vidas. Como dizer
a elas que suas vidas continuarão melhorando se o investimento
público aumentar? Ao mesmo tempo, precisamos saber se o Estado
conseguirá manter essa política de valorização do salário-mínimo
e, ao mesmo tempo, ampliar os investimentos de base.
Claudia – Ou ele desvincula o salário mínimo da Previdência ou vai
ter de parar. É uma questão aritmética! A soma das partes não
pode ser maior do que o todo!
Maria Cristina – Mas é uma aritmética que tem de ser negociada
politicamente.
gia sejam resolvidos em 15 anos, mas ferente caso tivesse ocorrido retorestamos pensando no saldo ao final no tucano-pefelista ao governo. Esta
de quatro anos. Nesse passo, há dois é uma tese genuinamente tucana. A
caminhos de análise. Um tem a ver de que, mesmo com estas condições
com as dificuldades reais
positivas, muita coisa
do estágio material da coestá e deverá continuar
munidade brasileira. Há
sem solução.
limites físicos, de todo jeito, que impedem que se
Vera – Esse negócio da
vá além de um certo, diqualidade da máquina é
gamos, crescimento porelativo. No governo tucatencial econômico, polítino, um governo de intelecco e social. Há outra tese
tuais, o país teve um apade que este estágio ótimo
gão, um sintoma claro de
não será alcançável por Vera Brandimarte
incapacidade. Se houvesincompetência – incomse uma máquina de mepetência é um nome forte, um pou- lhor qualidade, os alertas teriam sido
co agressivo – digamos que por defi- dados de outra forma. O país se expôs
ciência de capacidade operacional da muito. Na área de educação, por exemequipe eleita. Portanto, não é um pro- plo, houve um avanço no número de
blema estritamente de dificuldades crianças na escola, mas a qualidade deimateriais, mas decorrente também do xou a desejar. Justamente por existir
fato de que o PT e seus associados essa deficiência de gestão, é difícil imanão terão condições de dar as me- ginar, em um regime democrático, uma
lhores soluções para esses problemas. mudança muito rápida e muito profunTodo mundo reconhece que seria di- da em assuntos fundamentais.
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INTELIGÊNCIA
Inteligência – Será que a
meiro mandato foram
burocracia do segundo e teradmitidos sem concurso.
ceiro escalões, aquela ativiOs salários foram readade-meio, responderia?
justados porque houve
Quando falamos em gestão,
uma grita enorme. A Pofalamos em dois animais. Os
lícia Federal não tinha
diretores, substituíveis em
condições de dar conta
função de mudança de gode suas atribuições. No
verno, e o pessoal que receBrasil, para se ter uma
be a ordem. Há uma polítireforma do Estado efica de salário que não avalia Claudia Safatle
ciente, é preciso aumeneficiência e competência.
tar gastos. As pessoas
Esta é uma variável estratégica.
querem um Estado eficiente, mas sem
gastar dinheiro. Não é possível! Esse
Claudia – O Fernando Henrique só Estado não foi criado para atender poconcedeu reajuste para algumas carrei- líticas de uma sociedade complexa,
ras do funcionalismo. O Lula deu au- como a brasileira.
mento para todo mundo. Ninguém
pode chorar mais.
Claudia – Por outro lado, não faz o
menor sentido o orçamento dar R$1 biInteligência – O Bresser Pereira ten- lhão para ONGs que não se sabem de
tou criar uma política de remuneração onde saíram. Não há a menor cobrancom critérios de avaliação e desempe- ça do que foi feito com esse dinheiro,
nho, mas saiu do governo antes de con- se ele foi para as criancinhas do Peloucluir o trabalho. Mas, voltando ao as- rinho ou para alguém para comprar vessunto, cabe relembrar que os policiais tidinhos. O orçamento é cheio de rafederais contratados no início do pri- bos. Some dinheiro e ninguém vê!
Claudia – Uma maneira de prover o Estado sem gastar muito é
partir para a terceirização. Contrata-se um especialista para fazer
um trabalho com tempo determinado. O que faz a Justiça? Demite
todos os terceirizados, faz concurso e bota todo mundo para dentro
com todos os direitos.
Pedro – Tem um dado irretorquível. O Legislativo e o Judiciário
concentram o maior aumento dos gastos com pessoal. O Judiciário
é um absurdo.
Claudia – Agora vamos ver a campanha pela isonomia. Os demais
poderes vão buscar igualdade de condições salariais com o Judiciário.
Inteligência – Não é o governo central que gasta mais dinheiro.
Aliás, o governo central não tem capacidade de fazer cumprir o que
decide há cinqüenta quilômetros de Brasília. Não tem porque não
dispõe de capacidade operacional. Para se resolver estas e outras
questões, fundamentalmente o crescimento, precisa-se do Congresso. O PT e o PSDB são cruciais! E tem a questão do PMDB. Ninguém
38 EDIÇÃO HISTÓRICA
Inteligência – Havia um empresário
paulista, do tempo do Sarney, que montou um grupo de trabalho para pensar
a reforma administrativa. Os estudos
mostraram que, para cada posto de
saúde, havia três guardas e um quarto
de enfermeira. Logicamente, quando
se tem apenas a quarta parte de uma
enfermeira no posto de saúde, tem que
botar três seguranças para dar porrada no pessoal que não é atendido. O
grupo de trabalho chegou à conclusão
de que era muito melhor pegar o excesso de ascensorista, motorista e limpadores, entre outros, e deixá-los em
casa, recebendo o salário integral. A
economia com energia, papel e outras
coisas do gênero compensaria o procedimento. O Estado teria um pouco
mais de folga para fazer contratações
em áreas realmente necessitadas.
Rosângela – Foi a filosofia da época
do Collor. Ele pôs uma série de funcionários públicos em disponibilidade,
mas, por ordem judicial, todos tiveram
de ser reintegrados.
governa este país se estiver por muito tempo do lado contrário ao
PMDB. Paga-se um preço pela coalizão, mas é melhor do que tê-lo
como inimigo do governo central. Até porque, ao contrário da idéia
comum, o Congresso brasileiro trabalha bastante. Aquilo é um inferno democrático. Uma coisa é o pessoal do pinga-fogo, que só quer
aparecer para a televisão. Mas a maioria faz emendas e apresenta
projetos alternativos. As comissões trabalham muito.
Campos – Não vejo uma atividade no Congresso tão produtiva
assim. Para o país é vital uma reforma política que garanta mais
eficácia. Quando se chega ao ponto de uma Lei de Diretrizes Orçamentária parar o Congresso por causa da ponte do deputado de
Alagoas chegamos ao fim do poço. Tem de haver fidelidade partidária e voto distrital, não com lista fechada, para possibilitar a formação de maiorias mais facilmente. Não faz sentido discutir tudo a
todo momento.
Inteligência – Em certos momentos é perfeitamente defensável o
direito de o representante consultar a sua consciência. É claro que,
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INTELIGÊNCIA
dito assim, pode parecer que é uma anarquia. Mas esse direito
deve ser reconhecido. O exercício do direito no Brasil é pífio. Essas
questões são democraticamente legítimas, mas têm de ser discutidas com um pouco mais de cuidado e com a apreciação das experiências históricas. A humanidade está aprendendo a conciliar vários fatores que não são fáceis. Não é simples harmonizar liberdade individual e interesses da coletividade.
o PIB potencial brasileiro se o país não faz censo industrial e agrícola há mais de 15 anos?
Campos – Minha preocupação é que houve tempo demais para se
aprender e os resultados são ruins. Não há nada mais desmoralizado do que o político.
Claudia – Na década 1970, o Geisel deu dinheiro para Deus e o
mundo e criou o parque siderúrgico e o parque petroquímico.
Pedro – Se não tem uma mínima seleção na apresentação do
candidato, a taxa de renovação é essa sempre. Bota porcaria, tira,
bota porcaria, tira. O problema é não botar porcaria.
Inteligência – A taxa de renovação da Câmara dos Deputados nos
Estados Unidos é de 2%. São dados oficiais. A cada eleição, se tem
a reprodução de 98% dos representantes que lá estão. O deputado
só sai morto.
Campos – Mas lá tem uma deformação. Os eleitos refazem o
distrito eleitoral e, aí, o cargo vira aposentadoria. Mas, mesmo
com esta baixa renovação, o Congresso norte-americano funciona.
A Alemanha funciona.
Claudia – E no meio de toda essa discussão, ainda temos de
encontrar tempo para fazer a economia crescer.
Inteligência – Pois vamos voltar a essa questão do crescimento.
Elencamos aqui a necessidade de reformas modernizantes, lições
permanentes de melhoria da qualidade e da eficiência das políticas
e da burocracia. Mas, ainda assim, a principal pergunta continua
sem resposta: como entregar crescimento rapidamente? Quais são
os fusíveis que precisam ser ligados?
Pedro – Não existe nenhuma dificuldade em fazer um crescimento
de 7%, 8%, 10%. É facílimo! Faz uma nova Brasília e despacha
dinheiro para tudo que é indústria. O problema é saber se a inflação vai voltar. Será que vai quebrar o país? O Juscelino fez isso,
deixou um déficit fiscal fenomenal e, ainda assim, só se fala dele. É
a eterna referência.
Inteligência – Falta norte para o crescimento. Como se sabe qual
Claudia – Quando o Banco Central introduziu esse conceito de PIB
potencial foi uma coisa para olhar. Não é fator determinante.
Inteligência – O PIB potencial é complacente.
Inteligência – A questão maior, neste momento, são os investimentos estruturantes, que poderão abrir um caminho para o setor
privado. Mas será que o próprio governo não pode tomar mais
recursos no exterior, até porque esses investimentos de base são
pouco rentáveis e não interessam à iniciativa privada?
Vera – Talvez não seja necessário o Estado fazer mais dívida externa. O BNDES pode tomar dinheiro aqui dentro mesmo. Ele colocou
alguns produtos financeiros, usando como lastro as ações de empresas das quais participa. A capacidade de captação do BNDES,
sem risco cambial, é muito grande.
Inteligência – Não é preciso aumentar o investimento público na
formação bruta de capital fixo? Não é essa a origem do nosso
drama? Ou seja, o governo tem de fazer a reforma fiscal para
aumentar o investimento público em capital fixo?
Vera – Volto a perguntar: um Estado com este nível de endividamento precisa ser a alavanca? O problema é que o excesso de
carga fiscal mina a competitividade do setor privado. O Brasil vem
aumentando a exportação, mas sua participação no mercado internacional é muito pequena.
Claudia – Não gosto muito de políticas dirigidas a setores, porém,
como não há espaço fiscal para um rebaixamento de alíquotas, o
país tem mesmo de criar condições especiais para diversas áreas.
Mas a teoria econômica diz que, geralmente, quando se tem muitos problemas, não pode atacar só um. Tem de atacar todos eles
pouco a pouco, em um ajuste gradativo. O governo não pode dizer
que vai reduzir a carga tributária de 42% para 35% do PIB, senão
quebra. Na semana seguinte, não paga mais salário aos servidores. Agora, pode reduzir um pouco a arrecadação de quem vai
efetivamente investir.
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INTELIGÊNCIA
Inteligência – Olha a sofisticação da burocracia necessária para
implementar estas mudanças. Tudo depende de um aparelho de
Estado decente, com gente moderna.
Rosângela – O jornalismo deixou de ser uma profissão de homens
nos anos 80. Dizem que tem a ver com o salário, os homens não
quiseram ganhar pouco.
Claudia – Quando se reduz a alíquota, cresce o número de contribuintes. Na Rússia, a alíquota do Imposto de Renda é 10% para
qualquer classe e houve um aumento da base de arrecadação.
Vera – Antigamente, se dizia nos jornais que as mulheres eram
ótimas para operacionalizar, mas sempre com a chefia de um
homem.
Maria Cristina – Vão todos me chamar de dinossauro, mas por
que não aumenta um pouco que seja o Imposto sobre Propriedade
Territorial Rural (ITR)?
Pedro – Esta é a primeira geração de mulheres que está chegando
ao topo na imprensa.
Pedro – É o imposto menos arrecadado do país. Quase ninguém paga.
Inteligência – Bem, vamos tratar de assuntos mais amenos. O
que podemos falar da presença majoritariamente feminina nesta
mesa? Houve alguma conspirata para a tomada do poder no jornal? Além de estarem em número maior como editoras, as mulheres comandam a redação. Antigamente, quando uma tarefa era
executada por um grupo de mulheres, havia um fato jornalístico.
Hoje, não mais.
Vera – Mas o jornal foi criado por um homem, o Celso Pinto.
Quando ele se afastou, por questões de saúde, os acionistas decidiram manter a mesma equipe.
40 EDIÇÃO HISTÓRICA
Claudia – Na economia, a forte presença de mulheres na redação
é uma tradição que vem da Gazeta Mercantil. A maioria de nós
trabalhou na Gazeta e isso inclui os homens. O Campos e o Pedro
também passaram por lá.
Vera – Buscamos muitas das pessoas com quem já havíamos trabalhado. A equipe tinha uma identidade no modo de pensar economia. Isso nos ajudou muito nos momentos de preparação, pois
tivemos apenas três meses para montar todo o jornal. Seis anos
depois, é fácil falar. Mas nas primeiras semanas, a sintonia foi
fundamental. Nós olhamos um para o outro e já sabemos o que
fazer.
Inteligência – Então, só nos falta agora a pose para fotos!
I N S I G H T
42
LUSCO-FUSCO
INTELIGÊNCIA
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
DANDO
FORÇA
AOS PARTIDOS BRASILEIROS
JAIRO NICOLAU
CIENTISTA POLÍTICO
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006
43
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
O
presidente Lula, logo no primeiro discurso como candidato eleito, prometeu (o candidato derrotado
também prometia) que entre as prioridades do seu segundo mandato estaria a reforma política. Há
mais de uma década ela é discutida – segundo o clichê preferido, ela seria a mãe das reformas – de
maneira quase obsessiva no meio político brasileiro. Mas as coisas ficam mais complicadas quando surge a
pergunta óbvia: para que fazer uma reforma política?
O experimento é simples: escolha dois políticos e repita a pergunta acima. As chances de aparecerem uma
lista de tópicos desconexos são altas; as de aparecerem pontos em comum são reduzidas. Por conta dessa
dissonância, talvez não tenha tanto sentido falar em ser contra ou a favor da reforma política, mas muito mais
em tentar responder a pergunta: reforma para quê?
Em primeiro lugar é preciso demarcar o território. O debate sobre a reforma deve se concentrar em
tópicos relativos ao método de escolha de representantes (sistema eleitoral) e a regulação dos partidos e das
eleições. Portanto, devem estar de fora temas caros à tradição republicana brasileira, tais como o voto
obrigatório, o presidencialismo, o federalismo e o bicameralismo. Ainda que existam discordâncias doutrinárias sobre esses temas entre políticos e estudiosos, eles são típicos para serem discutidos em uma Assembléia Constituinte ou decididos em consultas plebiscitárias.
Tomando o termo reforma política no sentido mais restrito (de reforma partidária e eleitoral) e observando a
experiência de outras democracias, a questão acima pode ser respondida de diversas maneiras. Algumas reformas
eleitorais são feitas com o intuito de ampliar a representatividade. Um exemplo recente é o da Nova Zelândia, que
utilizava o sistema majoritário-distrital, mas depois de duas eleições em que um partido com a segunda maior
NA LEGISLATURA 2003-2007 DA CÂMARA DOS DEPUTADOS HOUVE MAIS DE 350 TROCAS DE LEGENDAS,
44
LUSCO-FUSCO
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INTELIGÊNCIA
votação ficou com o maior número de cadeiras, adotou um sistema misto com forte componente proporcional. Em
outras democracias, o intuito é diminuir a fragmentação partidária (diminuindo assim a proporcionalidade). A
Polônia, por exemplo, tinha uma Câmara dos Deputados altamente fragmentada; em 1993, uma cláusula de
barreira de 5% foi introduzida e teve um efeito devastador sobre os pequenos partidos: 40% dos votos dados para
esses partidos foram computados como votos nulos. Algumas democracias fazem reformas para ampliar a liberdade
de escolha dos eleitores (A Suécia trocou a lista fechada pela lista flexível); outras para diminuir a autonomia dos
eleitores e dar mais peso aos partidos (em 2006, a Itália trocou um sistema misto pela lista fechada).
No Brasil, um dos maiores pecados da discussão sobre a reforma eleitoral tem sido o de não definir com
clareza os seus objetivos. Assim, o debate sobre o tema é baseado em listas de propostas (muitas vezes
contraditórias entre si). Uma versão radicalizada dessa tendência é a adesão a certos projetos pela sua
aparente superioridade estética. Durante bom tempo, alguns defensores do sistema em vigor na Alemanha
(que ganhou entre nós o curioso nome de sistema distrital-misto) pareciam se guiar somente pelo inegável
charme desse modelo. Mas, de novo a pergunta: sistema alemão por que mesmo?
Se reformas eleitorais devem ter objetivos; se defendo que se faça uma reforma para aperfeiçoar o
sistema representativo brasileiro; logo, devo responder à pergunta: reforma para quê? Minha resposta é
breve e clara: reforma para fortalecer os partidos e lhes dar um papel mais importante do que têm hoje na
arena eleitoral e no processo decisório.
Não se trata aqui de entrar no interminável debate conceitual sobre o que sejam partidos fracos e
partidos fortes, sistemas partidários consolidados e não consolidados. Nem julgar que o sistema político
REVELANDO O BAIXO COMPROMISSO DOS LEGISLADORES COM OS PARTIDOS QUE OS ABRIGAM
brasileiro é caótico e os partidos não valem muita coisa. Cabe simplesmente assinalar dois pontos. O primeiro, percebido por todos que acompanham a vida política com mais atenção, é que os partidos brasileiros estão
dando sinais evidentes de exaustão. Um indicador encontra-se no fato de que na legislatura 2003-2007 da
Câmara dos Deputados houve mais de 350 trocas de legendas – os números ainda não estão completos, mas
já superam o das legislaturas anteriores – revelando o baixo compromisso dos legisladores com os partidos
que os abrigam. Durante a campanha eleitoral de 2006, outro indicador, as referências partidárias desapareceram, sobretudo na disputa para Câmara dos Deputados e Assembléias. O horário eleitoral virou um rol de
apelos particularistas: da cidade x, do sindicato y, da corporação z, da religião w.
O segundo ponto é que estou largamente familiarizado com as mudanças pelas quais os partidos têm
passado em outras democracias (declínio da filiação, redução dos recursos financeiros derivados dos militantes, declínio do voto partidário). Não alimento a ilusão de que teremos partidos escandinavos (até por que
eles estão desaparecendo até da Escandinávia). Mas creio que temos espaço para organizar um sistema
partidário um pouco mais estruturado, que facilite as escolhas dos eleitores, seja mais fiel à vontade das
urnas e possa produzir políticas públicas mais eficientes.
Acredito que a adoção de três medidas poderia ter um impacto significativo sobre o sistema representativo brasileiro. São elas: proibição de coligação nas eleições proporcionais; adoção da lista flexível e inibição
às trocas de legenda. Além dessas, mais dois tópicos complementares precisam ser discutidos com cuidado.
O primeiro é uma nova legislação sobre financiamento de campanhas. O segundo, a introdução de novas
regras para a eleição de suplentes de senador. Neste texto me concentro no que, creio, seja o núcleo de uma
reforma política: as propostas para o fortalecimento dos partidos.
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INTELIGÊNCIA
1. FIM DAS COLIGAÇÕES NAS ELEIÇÕES PROPORCIONAIS
As premissas do sistema de representação proporcional de lista são conhecidas: a cada partido a representação na proporção de seus votos. Mas a possibilidade de coligações entre os partidos, em vigor no Brasil,
produz graves conseqüências para a representação parlamentar das correntes de opinião. A análise dos
resultados das eleições para deputado federal ou estadual de qualquer estado pode mostrar esses efeitos.
Vejamos, por exemplo, os resultados da disputa para Câmara dos Deputados no estado de Minas Gerais, em
1998. A Tabela 1 apresenta o percentual de votos e cadeiras obtidos pelos principais partidos na disputa.
Um partido (PSDB) e quatro coligações conseguiram ultrapassar o quociente eleitoral de 1,84% dos votos.
Quando o percentual de votos de cada partido/coligação é comparado com o percentual de cadeiras, observase uma distribuição bastante equilibrada. Os problemas aparecem quando se analisa o desempenho de cada
partido. O PSB e o PPS, com mais votos do que o PCdoB, não elegeram deputados, enquanto este elegeu um
representante. O PL, apesar de ter tido menos votos do que o PTB, conquistou mais cadeiras do que este,
enquanto o PPB, com votação um pouco superior ao mesmo PTB, ficou com um número mais de três vezes
maior de cadeiras (sete contra duas).
Em geral, as coligações tendem a favorecer os menores partidos, que, caso competissem sozinhos, teriam
poucas chances de ultrapassar o quociente eleitoral. Mas os maiores partidos também se beneficiam da
transferência de votos dos pequenos, a saber, quando estes não conseguem colocar os seus candidatos entre
os primeiros nomes da lista dos eleitos. É justamente esse componente aleatório produzido pela regra de
coligação que tem gerado graves distorções na relação entre os votos e cadeiras dos partidos.
EM GERAL, AS COLIGAÇÕES TENDEM A FAVORECER OS MENORES PARTIDOS. MAS OS MAIORES
TABELA 1
Distribuição de Votos e Cadeiras dos Partidos e Coligações,
Eleições para a Câmara dos Deputados, Minas Gerais, 1998
Partidos/ Coligações
PSDB
PFL
PPB
PTB
Total
PMDB
PST
Total
PT
PDT
PCdoB
PSB
PCB
PV
Total
PL
PPS
PSL
Total
Outros Partidos
Total
% de Votos
24,4
14,9
8,5
6,5
29,9
16,6
1,6
18,2
11,5
4,0
0,6
0,8
0,1
0,2
17,2
5,2
0,9
0,0
6,1
4,2
100,0
* quociente eleitoral: 1,84% dos votos
46
LUSCO-FUSCO
% de Cadeiras
26,4
15,1
13,2
3,8
32,1
17,0
1,9
18,9
13,2
1,9
1,9
0,0
0,0
0,0
17,0
5,7
0,0
0,0
5,7
100,0
Cadeiras
14
8
7
2
17
9
1
10
7
1
1
0
0
0
10
3
0
0
3
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INTELIGÊNCIA
PARTIDOS TAMBÉM SE BENEFICIAM DA TRANSFERÊNCIA DE VOTOS DOS PEQUENOS
Outro efeito negativo das coligações opera durante o mandato dos deputados. Parlamentares de um
partido que deixam o Legislativo temporariamente (para assumir cargos no Executivo, ou por licença médica),
ou definitivamente (por morte, cassação, ou para assumir prefeituras conquistadas no meio do mandato), são
substituídos por suplentes de outras legendas. Como as substituições são freqüentes, a composição das
bancadas partidárias se altera intensamente ao longo da legislatura.
Para traduzir de maneira mais equânime a vontade do eleitor expressa nas urnas – seja na distribuição de
cadeiras, seja nas substituições de titulares pelos suplentes ao longo do mandato – a melhor alternativa é
simplesmente proibir a coligação nas eleições proporcionais. Os partidos poderiam continuar formando
coalizões para a disputa de cargos majoritários, mas na disputa para os cargos proporcionais teria que contar
com seus próprios esforços para ultrapassar o patamar de votos exigido para obter uma cadeira.
2. ADOÇÃO DA LISTA FLEXÍVEL
O sistema de lista aberta em vigor no Brasil desde 1945 tem uma série de virtudes, entre elas, a liberdade
de escolha (o eleitor pode votar na legenda ou escolher um candidato de qualquer lista), e a facilidade para
renovação parlamentar. Por outro lado, esse modelo tem sido criticado por estimular campanhas centradas nos
candidatos, em detrimento das campanhas de acento partidário. A personalização das campanhas (e consequentemente do mandato) derivaria, sobretudo, do sistema majoritário adotado para alocar as cadeiras em cada
lista. Tendo que disputar com colegas da mesma legenda, os candidatos teriam fortes incentivos para pedir votos
para si e reforçar características de sua trajetória que os diferenciem (lugar de moradia, religião, corporação,
gênero, entre outras), e não que os assemelhem aos colegas (o pertencimento ao mesmo partido).
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006
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INTELIGÊNCIA
O sistema de lista flexível pode ser adotado como opção à lista aberta. Nessa versão de representação
proporcional, os partidos ordenam a lista de candidatos antes das eleições, como no modelo de lista fechada,
mas o eleitor pode votar em um determinado nome da lista. Caso um candidato, posicionado na parte inferior
da lista, tenha um número expressivo de votos nominais ele pode se eleger. Creio que a lista flexível seja uma
boa opção para o Brasil, pois reforça a importância dos partidos na arena eleitoral, sem tirar do eleitor a
possibilidade de votar em um determinado candidato.
Até onde eu saiba, até hoje nenhum projeto de adoção da lista flexível foi apreciada no Congresso
Nacional. Como acredito que pode ser uma alternativa para o aperfeiçoamento da representação proporcional no Brasil, apresento uma proposta de como poderia funcionar. Em linhas gerais, a principal mudança seria
na contagem dos votos de legenda que passariam a ser transferidas para os primeiros nomes da lista:
1. Os partidos apresentam aos eleitores uma lista de candidatos em ordem de preferência. Para tornar o
processo de organização da lista mais democrático, a legislação pode garantir que a escolha dos nomes seja
feita pelo voto secreto dos delegados nas convenções partidárias; e que a posição dos nomes na lista seja
definida proporcionalmente aos votos de cada chapa que disputar a convenção partidária.
2. Os eleitores continuam votando em um nome da lista ou na legenda
3. O total de votos obtido por um partido (nominal mais legenda) é dividido pelo número de cadeiras que
o partido elegeu, obtendo-se uma quota.
4. Os votos de legenda são transferidos para o primeiro nome da lista até que este atinja a quota. Os votos
em excesso são transferidos para o segundo candidato, e assim sucessivamente.
A PRINCIPAL VANTAGEM DA LISTA FLEXÍVEL SERIA A DE FORTALECER OS PARTIDOS SEM
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LUSCO-FUSCO
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INTELIGÊNCIA
5. Caso um candidato obtenha uma votação nominal superior à quota, ele tem prioridade na lista de eleitos.
O exemplo hipotético abaixo ilustra como quatro cadeiras obtidas por um partido seriam alocadas para os
candidatos de uma lista no modelo flexível. Os 15 candidatos do partido somados obtiveram 180.000 votos, e
o partido obteve mais 20.000 votos de legenda, perfazendo um total de 200.000 votos. O total de votos
(200.000) seria dividido por quatro (as cadeiras eleitas) encontrando-se a quota de 50.000 votos.
Os votos de legenda seriam transferidos para o primeiro nome da lista até que ele atingisse a quota. No
exemplo, o candidato 1 receberia mais 10.000 votos. Os votos de legenda remanescentes seriam transferidos
para o segundo da lista, que receberia 10.000 votos.
A primeira cadeira seria alocada para o candidato 8, que obteve 55.000 votos nominais. A segunda iria
para o candidato 1, que obteve 50.000 votos (40.000 nominais + 10.000 de legenda transferidos). A terceira
iria para o candidato 5 com 32.000 votos nominais. A última cadeira seria conquistada pelo candidato 2 com
22.000 votos (12.000 nominais + 10.000 de legenda transferidos). O exemplo é demonstrado na Tabela 2.
Na prática, quanto mais eleitores votem na legenda, mais o sistema se aproxima de um sistema de lista
fechada. Na situação oposta, com altos contingentes de votos nominais, o sistema se aproximaria do modelo
de lista aberta vigente.
A principal vantagem da lista flexível seria a de fortalecer os partidos, sem privar os eleitores da possibilidade de votar em candidatos individuais. Com a apresentação da lista ordenada, os partidos provavelmente
teriam forte incentivo para paulatinamente concentrar a campanha na reputação do partido, num esforço de
diferenciação com outras legendas.
PRIVAR OS ELEITORES DA POSSIBILIDADE DE VOTAR EM CANDIDATOS INDIVIDUAIS
TABELA 2
Distribuição de cadeiras em um sistema de lista flexível
Candidato
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
12
13
14
15
Legenda
Total
Votos
40.000
12.000
15.000
10.000
32.000
1.000
2.000
55.000
1.500
1.000
500
18.000
500
1.000
20.000
200.000
Transferências do Voto de Legenda
10.000
10.000
Total
50.000
22.000
15.000
10.000
32.000
1.000
2.000
55.000
1.500
1.000
500
18.000
500
1.000
Situação
2° Eleito
4° Eleito
3° Eleito
1° Eleito
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INTELIGÊNCIA
3. INIBIÇÃO ÀS TROCAS DE LEGENDA
Uma marca do atual ciclo democrático brasileiro é a intensidade com que a elite política troca de partidos.
Em cada legislatura da Câmara dos Deputados cerca de um terço dos deputados abandona o partido pelo qual
foi eleito. As trocas já estão absolutamente naturalizadas, e não espantam mais os analistas e nem preocupam os eleitores.
A política partidária não pode ser congelada. Por isso, políticos trocam de legenda no mundo inteiro.
Facções saem de um partido e formam novas legendas; partidos se fundem; dissidentes abandonam um
partido por diversas razões. Os problemas das trocas partidárias no Brasil são a intensidade e a permanência
do fenômeno. Chegamos a acreditar que elas cessariam após a reacomodação natural dos primeiros anos de
regime democrático. Mas isso não aconteceu.
No Brasil, as mudanças de legenda passaram a ser vistas como uma simples idiossincrasia da carreira
política, quase um problema pessoal dos políticos: alguns trocam, outros não. O que se esquece é que elas têm
produzido um profundo descolamento entre a decisão dos eleitores nas urnas e a representação parlamentar.
Nos sistemas representativos modernos, eleições servem para definir a distribuição de poder em termos partidários. Votos são contados e fórmulas mobilizadas com este intuito. Ora, de que adianta todo esse cuidado se a
distribuição de poder definida pelos eleitores nas eleições dura apenas horas? Partidos derrotados nas urnas são
fortalecidos pelas trocas. Partidos vitoriosos podem ver suas bancadas minguarem ao longo do mandato.
Obviamente, as mudanças de partido podem ser funcionais tanto para o chefe do Executivo (que pode
ampliar sua bancada atraindo parlamentares individuais para a base governista), bem como para os políticos
UM TERÇO DOS DEPUTADOS ABANDONA O PARTIDO PELO QUAL FOI ELEITO
(que maximizam as oportunidades de carreira). Mas da perspectiva dos eleitores elas são um desrespeito. Por
essa razão, alguma medida deve ser introduzida para inibir a migração partidária. Creio que a mais eficiente
seria ampliar o prazo de filiação partidária. Atualmente o prazo mínimo de filiação para poder concorrer em
uma eleição é de um ano. A ampliação desse prazo para dois anos, por exemplo, provavelmente já inibiria
grande número de trocas. Um político que concorreu por um partido nas eleições gerais teria que concorrer
pelo mesmo partido nas eleições municipais. E assim sucessivamente.
Minha impressão é a de que essas três medidas (todas aprovadas por legislação ordinária) poderiam dar
maior vitalidade aos partidos e maior estabilidade ao sistema partidário. O fim das coligações daria maior
importância ao partido como unidade eleitoral, e conferiria mais estabilidade às bancadas no Legislativo, já
que os suplentes passariam a ser do mesmo partido do titular. A lista flexível poderia fortalecer os partidos
durante as eleições (incentivo para o voto partidário) e no período entre uma eleição e outra (incentivo ao
trabalho partidário e convenções decisivas). O fim (ou pelo menos a redução acentuada) da migração partidária poderia ampliar os vínculos dos eleitores com os partidos.
Esses três pontos podem parecer pouco ambiciosos para os que acreditam na necessidade de uma
reforma política radical. Mais modesto, o propósito aqui foi tentar responder à pergunta fundamental feita
logo no primeiro parágrafo: reforma para que? Reforma para fortalecer partidos. Este objetivo é factível e as
medidas sugeridas são apropriadas.
[email protected]
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AURORA
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RACHEL MENEGUELLO
CIENTISTA POLÍTICA
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AURORA
os
54
cos foram fundamentais para as bases de legitimação e funcionamento dos novos regimes (LEWIS-BECK, 1988;
REMMER, 1993; MENEGUELLO, 1995; ECHEGARAY, 1995; 2005). Esses processos constituíram eventos
politizadores através de políticas econômicas, e criaram
níveis de identificação política, definiram parâmetros de
avaliação de governos e estabeleceram clivagens definidas
pela ação de lideranças.
O caso brasileiro traduz bem esse processo. Já no
início do regime democrático, estudos identificavam nas
referências de expectativa de bem-estar e busca dos patamares mínimos de sobrevivência as bases da concepção
constituída e esperada de democracia. A tarefa de enfrentar os problemas econômicos se transformou numa das
maiores demandas da população, definindo um dos pilares do apoio político ao regime. Na mesma direção, a
percepção sobre o desempenho da sucessiva onda de im-
Ao
á várias questões pouco exploradas sobre a rotina política de nossa democracia. Uma delas diz
respeito às determinantes do comportamento. Em geral,
quando se trata das perspectivas eleitorais dos governantes, o pressuposto das análises é que, se a economia anda
bem, o governo tem sucesso nas urnas. De fato, nossa experiência recente mostra que o curso das ações econômicas dos governantes tem impacto certo sobre suas possibilidades políticas, mas o que não sabemos a fundo é qual
dimensão da economia tem mais relevância sobre a avaliação e aprovação das gestões: se o controle da inflação, a
perspectiva de emprego, ou a percepção dos níveis de renda. O fato é que ao longo de nossa jovem democracia, os
índices de avaliação dos governos vêm caminhando lado a
lado dos índices de percepção econômica dos cidadãos, e
as expectativas positivas sobre o controle do desemprego e
inflação durante o governo Lula parecem preencher um
lugar definitivo na avaliação de seu desempenho.
Sabemos que a composição das preferências políticas
é múltipla, e que os valores da política e da democracia
contam para a avaliação do desempenho dos governantes.
Mesmo assim, olhando o caso da democratização brasileira, os referenciais econômicos cotidianos e gerais dos cidadãos parecem ter proeminência nesse processo. Essa não
é uma tendência nova.
Parâmetros econômicos, como o controle inflacionário e as tendências de melhoria de renda e emprego, tiveram papel central no conjunto de expectativas de democratização dos países da América Latina no início dos anos
80. No período da transição, tratava-se de superar cenários marcados pela depressão generalizada, depreciação dos
indicadores de crescimento e o déficit social herdado dos
regimes autoritários anteriores. Com isso, o terreno predominante das preferências e escolhas políticas constituiuse na embocadura da avaliação das políticas econômicas e
da perspectiva de estabilização monetária.
Os estudos sobre democratização mostram que as experiências de recuperação econômica nesses novos cenários tiveram influência significativa sobre o processo de
formação de preferências dos cidadãos e indicam que ao
lado dos processos políticos, os processos socioeconômi-
INTELIGÊNCIA
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INTELIGÊNCIA
GRÁFICO 1
Evolução do grau de confiança no presidente da República (1989-1993)
Brasil (%)
COLLOR
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89
21
Fonte: dados do Ibope - Banco de Dados do Cesop/Unicamp
Pergunta: “Vou ler o nome de alguns órgãos, instituições e pessoas e gostaria que o(a) sr.(a) me dissesse se, de uma maneira geral, confia ou não confia no
presidente da república?”.
plantação dos planos no governo Sarney – Cruzado (1986),
Bresser (1987) e Choque Verão (1989) – e, em seguida,
no governo Collor – Brasil Novo (1990) –, condicionando as oscilações nos níveis de prestígio dos governos. Os
índices de confiança no presidente Sarney, no último ano
de governo, e de Collor, mesmo no período anterior ao
processo de impeachment iniciado em meados de 1992,
sugerem o claro impacto das frustrações da população
com os fracassos dos planos implementados, e foi com
esse clima de recepção desconfiada que a população recebeu as primeiras ações econômicas de Itamar Franco em
1993 (Gráfico 1).
De fato, em pesquisa nacional realizada em junho de
1993, 49% da população consideravam que o Plano de Ação
do então ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso
tinha pouca ou nenhuma chance de dar certo. Mas seria
em 1994, com a implantação do Plano Real, que se fortaleceria a tendência de associação das preferências públicas
pela manutenção do cenário de estabilização e possibilidades de crescimento econômico às avaliações do governo.
Com a implementação do plano de estabilização de
julho de 1994 ocorreram mudanças favoráveis nos níveis
de atividade econômica e de renda no Brasil, marcando de
forma positiva a transformação do quadro de pobreza do
país. Entre 1993 e 1995, a proporção de pobres passou de
44% (62,6 milhões de pessoas) em 1993 para 33,3% (49
milhões de pessoas) em 1995. Como um fenômeno geral,
afetando todos os estratos de residência e regiões do país,
marcou um substancial crescimento da renda per capita
nesse período.
Entre 1994 e 1995 houve uma evolução significativa
do produto nacional, chegando a 8,29% no segundo trimestre de 1995, e marcando muito positivamente o primeiro período do primeiro mandato do presidente Fernando Henrique. É fato que o modelo brasileiro desenvolvido trouxe um crescimento econômico acompanhado de
uma das mais desiguais relações de distribuição de renda.
No entanto, esse período apresenta um aumento de consumo de produtos básicos pelos estratos mais pobres, e ampliou de forma significativa o acesso ao mercado de segOUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006
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I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
GRÁFICO 2
Evolução da Avaliação Positiva do governo FHC e do Plano Real (%)
Brasil (Janeiro/95 a Dezembro/02)
75
69
71
64
61
Avaliação positiva do Plano Real
54
47
34
36
40
41
39
37
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z/
02
Avaliação positiva de FHC
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38
Fonte: Pesquisas Nacionais Instituto Datafolha - Banco de Dados do Cesop/Unicamp
Perguntas: “Como você avalia o desempenho de FHC?”; ‘Como você avalia o desempenho do Plano Real?” (avaliação positiva é a soma das
respostas ‘ótimo e bom’)
mentos antes marginalizados (HOFFMAN, 2001). Este
será um componente central do capital político da Presidência da República no período, estabelecendo os patamares de apoio e aprovação governamental.
As possibilidades distributivas do Plano Real se esgotariam já em 1996, em uma tendência de declínio que
marcou todo o período até o início de 1999, coincidindo
com o término do primeiro mandato de FHC (ROCHA,
1996 e 2000). Apesar disso, os cinco anos de experiência
de estabilização haviam proporcionado uma ruptura com
um período sem controle da inflação e tiveram um importante impacto positivo sobre as possibilidades de consumo
da população em geral, e em específico dos estratos mais
pobres. Os quatro anos do primeiro governo FHC promoveram uma experiência de estabilidade monetária desconhecida de várias gerações de brasileiros e, mesmo sem
estar atrelado a uma política de desenvolvimento capaz de
produzir e enraizar as bases dessa estabilidade, o governo
foi capaz de produzir um alto grau de popularidade presi56
AURORA
dencial baseada na avaliação prospectiva da melhora global do país, do fim da inflação e do aumento relativo do
poder de compra. Estes fatores foram traduzidos em expectativas de desempenho futuro que garantiram a reeleição do presidente em 1998.
Dados de pesquisas de opinião ilustram a sintonia entre o aumento do apoio a Fernando Henrique e a popularidade do Plano Real, indicando um movimento claramente
combinado entre as duas avaliações. As pesquisas mostraram em 1994 que, ao lado do recém-bem-sucedido plano
econômico, a vitória de Fernando Henrique foi sustentada
em boa medida pela expectativa econômica positiva. Da
mesma maneira, a evolução das preferências para a campanha de 1998 foi conduzida em boa parte pela avaliação
do Plano Real e pela manutenção da política de estabilização monetária, praticamente repetindo os parâmetros da
escolha de 1994 (Gráfico 2).
Essa relação simbiótica entre as tendências de avaliação do desempenho presidencial e do desempenho do pla-
I N S I G H T
mercado de trabalho, como as transformações da oferta e
demanda de trabalho e os aumentos reais do salário mínimo, e às redes de proteção social, como os programas de
transferência de renda, com destaque ao ‘Bolsa Família’
(SOARES, 2006).
Além do impacto dos programas sociais na redução da
miséria, atingindo 19,18% entre 2003 e 2005, e na redução da pobreza, atingindo uma proporção de 22,7% em
2005 e 21,9% em 2006, houve a partir de 2004 um importante crescimento da renda média dos brasileiros, chegando a 6,6% em 2005. Os segmentos mais pobres foram os
mais beneficiados, com acréscimos de renda de 8,6%, os
setores intermediários, com acréscimos de 5,7%, e para
os mais ricos, 6,9% (NERI, 2006).
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ci
Os
es
re
nd
a
no de estabilização marcou as percepções da população
em geral sobre o governo no período entre 1995 e 2002.
Em artigo sobre dimensões explicativas das motivações do voto em eleições presidenciais, Balbachevsky e
Holzhacker (2004) apontam que a partir de 1994, com o
impacto que o Plano Real teve sobre as expectativas de
performance do presidente da República, delineou-se um
padrão de escolha no qual a dimensão do desempenho passado do candidato e as expectativas sobre suas realizações
futuras predominaram como conteúdo estratégico do voto.
As autoras apontam ainda que em 2002, segundo os dados
do Eseb (Estudo Eleitoral Brasileiro), a candidatura do
PSDB não conseguiu ver transferida para si a mobilização
da grande parcela do eleitorado associado às motivações
pelo desempenho, descredenciando-se frente ao eleitorado, portanto, a receber as expectativas de realização de
benefícios, formadas com base na avaliação retrospectiva
de governo. O artigo indica ainda que, segundo a pesquisa, em 2002 a vitória de Lula teve na forte identidade do
eleitorado com o candidato a principal motivação do voto.
Este capital político será o diferencial de Lula no seu conjunto de possibilidades eleitorais em 2006.
A decisão do eleitor depende de motivações variadas,
mas, no caso da eleição presidencial de 2006, economia e
adesão política parecem ter sido os vetores principais.
A ascensão de um ex-operário à Presidência, ex-líder
sindical do movimento de vanguarda do sindicalismo, líder do principal partido de esquerda do país, um cidadão
com escolaridade mínima legitimado por mais de 52 milhões de votos, trouxe para grande parte da população um
forte sentimento de identidade e pertencimento às mudanças preconizadas pelo novo governo.
O capital político inicial de Lula traduziu-se em altos
índices de aprovação de desempenho já nos primeiros meses
de governo, mesmo sem que houvesse um agente de estabilidade similar ao Plano Real para compor o binômio
popularidade/desempenho econômico.
No âmbito econômico, o período de quatro anos de
governo apresentou indicadores modestos de crescimento, mas abrigou uma importante queda na desigualdade da
distribuição de renda, resultante da fatores associados ao
INTELIGÊNCIA
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006
57
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
GRÁFICO 3
Evolução das expectativas de aumento de inflação e desemprego e avaliação do governo Lula (2003-2006)
Brasil (%)
61
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51
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40
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47
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38
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38
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Avaliação positiva do governo Lula
set/06
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mar/04
jan/04
nov/03
set/03
jul/03
mai/03
mar/03
expectativa de aumento inflação
expectativa de aumento desemprego
Fonte: Pesquisas Nacionais do Ibop - Banco de Dados do Cesop/Unicamp
Perguntas: “Na sua avaliação, o Governo do Presidente Lula está sendo: Ótimo, Bom, Regular, Ruim ou Péssimo?” (avaliação positiva é a soma das
respostas ‘ótimo’ e ‘bom’); “Levando em conta a situação do País nos últimos seis meses, na sua opinião a inflação / o desemprego vai aumentar, vai
diminuir, ou não vai mudar nos próximos seis meses?”.
Dados de pesquisas de opinião mostram que esses indicadores foram percebidos pela população e tal como no
período anterior, acompanharam a avaliação governamental. Tanto para a evolução das expectativas de aumento da
inflação quanto de desemprego, os dois momentos de destaque são o período inicial do governo Lula, quando as
proporções de expectativa de aumento têm uma forte queda, traduzindo o grau de confiança no novo período, e o
momento final do governo, em meados de 2006, já durante a campanha eleitoral para a Presidência, que refletiu a
melhora dos indicadores econômicos e apontou as perspectivas positivas para um quadro de reeleição.
O mesmo ocorre com as percepções sobre o aumento
da renda geral e pessoal da população, que claramente acompanham as oscilações de avaliação de governo e chegam
no segundo semestre de 2006 traduzindo o crescimento
real indicado (Gráficos 3 e 4).
58
AURORA
No âmbito das avaliações propriamente políticas, os
dados de pesquisas do período traduzem um notável apoio
popular ao presidente da república. Durante quase todo o
governo, o grau de confiança no presidente manteve patamares altos de apoio, acima de 50% e, as altas proporções
de confiança são estreitamente acompanhadas pela aprovação da forma de Lula governar. É um dado impressionante a manutenção de índices significativos de confiança,
com proporções entre 43% e 44%, no período da crise
política de 2005 que envolveu o PT, com denúncias de
corrupção atingindo diretamente o governo. Em 2006, a
confiança no presidente voltou a recuperar os índices anteriores, e já no período da campanha eleitoral em setembro, logo anterior ao primeiro turno, atingiu 58% da população (Gráfico 5).
Além do forte apoio popular, há dados que apontam
uma significativa adesão política ao presidente, observada
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
GRÁFICO 4
Evolução das expectativas de aumento de renda geral e renda pessoal e avaliação do governo Lula (2003-2006)
Brasil (%)
Avaliação positiva do governo Lula
51
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45
43
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41
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31
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31
31
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24
24
23
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23
25
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31
26
23
28
39
28 29
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25
28
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set/06
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mar/04
jan/04
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set/03
jul/03
mai/03
mar/03
expectativa de aumento de renda geral
expectativa de aumento de renda pessoal
Fonte: Pesquisas Nacionais do Ibop--Banco de Dados do Cesop/Unicamp
Perguntas: “Na sua avaliação, o Governo do Presidente Lula está sendo: Ótimo, Bom, Regular, Ruim ou Péssimo?” (avaliação positiva é a soma das
respostas ‘ótimo’ e ‘bom’); “Levando em conta a situação do País nos últimos seis meses, na sua opinião sua renda geral / sua renda pessoal vai
aumentar, vai diminuir, ou não vai mudar nos próximos seis meses?”.
a partir da recuperação voto na eleição presidencial de 2002.
Dados de pesquisa nacional realizada em junho de 20061
mostravam uma notável manutenção da identificação do
eleitorado de Lula entre os dois pleitos presidenciais: 49,9%
dos eleitores entrevistados consideravam que Lula deveria
ser reeleito em 2006 e, desses, 64,7% haviam sido eleitores de Lula em 2002.
A mesma pesquisa indica que o apoio à reeleição vinha associado à avaliação positiva geral do governo e avaliações positivas da condição econômica própria e do país,
e sobretudo, às suas expectativas de melhora.
Para os que afirmaram que Lula deveria ser reeleito:
• 80,9% avaliaram o governo como ótimo e bom;
1. Pesquisa A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas, José Álvaro Moisés e Rachel Meneguello, DCP/USP e Cesop/
Unicamp . Pesquisa nacional com 2.004 eleitores, realizada em junho
de 2006 no âmbito do Projeto Temático Fapesp 04/07952-8.
• 62,8% avaliaram a situação econômica do país como
ótima e boa, ampliando para 80,2% aqueles com expectativa de melhora no próximo ano;
• 55,3% avaliaram a situação econômica própria como
ótima e boa, ampliando para 84% os que têm expectativa
de melhora em 2007.
Os dados também indicam que esta adesão tem um
componente partidário. Observou-se uma importante potencial capacidade de o Partido dos Trabalhadores manterse como referência de identificação partidária, em um cenário de profunda fragilidade da relação entre eleitores e
partidos, e em uma campanha marcada pela desaparição
quase completa da militância petista: dos 25% de entrevistados que afirmavam alguma proximidade com os partidos
políticos, 51% se identificavam com o PT. Mais ainda,
apesar da grave crise institucional do partido, e do distanciamento que o próprio Lula impôs para equacionar a criOUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006
59
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
GRÁFICO 5
Evolução da Aprovação à forma de governar e do Grau de Confiança no presidente Lula (2003-2006)
Brasil (%)
76
70
69
75
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6
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l/
06
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06
confiança no Presidente
aprovação do governo
Fonte: Pesquisas Nacionais do Ibop - Banco de Dados do Cesop/Unicamp
Perguntas: “O (A) sr(a). confia ou não no presidente Luiz Inácio Lula da Silva?”(respostas ‘sim’); “O sr.(a) aprova ou desparova a maneira como o
Presidente Lula vem governando o Brasil?” (respostas ‘aprova’)
se política, essa ainda é uma referência fortemente associada ao presidente: dos 49,9% dos entrevistados que apoiavam a reeleição de Lula, 72% afirmavam alguma proximidade ou identidade com o PT. Este é um dado importante
e merece maior estudo.
Nossos anos democráticos levaram a que as eleições
presidenciais se tornassem o principal evento de mobilização e expressão política das demandas coletivas do eleitorado e as possibilidades políticas dos governantes residem
nas estratégias de ocupação desse espaço.
O pleito de 2006 teve a liderança do presidente Lula
nas intenções de voto na totalidade da campanha, feita em
dois turnos. Este dado global fornece uma medida da reação positiva às ações de governo, revela a permeabilidade
do Estado à sociedade e suas demandas, e corrobora a
influência exercida pela expectativa dos ganhos e benefícios advindos do desempenho governamental sobre as preferências eleitorais. Adicionem-se a isso os dados de apoio
político que dão a dimensão da adesão ao presidente-candidato, e temos aqui uma idéia do conteúdo estratégico do
voto em 2006.
[email protected]
60
AURORA
REFERÊNCIAS
BALBACHEVSKY, Elisabeth & HOLZHACKER, Denilde. 2004.
“Identidade, oposição e pragmatismo: O conteúdo estratégico da
decisão eleitoral em 13 anos de eleições”. Opinião Pública, vol.10,
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Brasil no período 1993-99", mimeo, Unicamp
LEWIS-BECK, Michael .1988.Economics and Elections, Ann
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MENEGUELLO, Rachel. 1995.”Electoral Behavior in Brazil: the
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NERI, Marcelo (coord.) . 2006. Miseria, Desigualdade e Estabilidade. O Segundo Real. Rio de Janeiro, FGV.
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SOARES, Sergei S. D. 2006. “Distribuição de Renda no Brasil de
1976 a 2004 com ênfase no período entre 2001 e 2004”, Textos para
Discussão, nº1166, Brasilia, Ipea
62 ÀS ESCURAS
AS SAS
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CIENTISTA POLÍTICO
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006
63
I N S I G H T
T
oda eleição se parece quando as pesquisas eleitorais são
temas de debate. Elas erram, elas erram, é o bordão
principal! Aqueles que ficam com mais votos nas urnas do
que nas pesquisas denunciam uma suposta manipulação para
prejudicá-los. Em particular quando “aqueles” designa um candidato que ficou em segundo lugar. Suspeitas não-provadas circulam como verdades. Há de tudo: candidato que contrata um instituto de pesquisa local para conferir um outro instituto, os que
presenciaram uma negociação duvidosa, os que afirmam terem
visto eleitores mudando de voto por causa das pesquisas etc.
Qualquer que seja a estória, a conclusão é uma só: as pesquisas
erram, e muito.
No terreno da técnica, o mundo dos estatísticos, a crítica recai
sobre a amostra. No Brasil não se utiliza a amostra probabilística,
mas sim a amostra por cotas. Neste caso, tomam-se os dados
censitários do Censo do IBGE, ou amostrais da PNAD, e se projeta
para a população uma amostra que seja proporcional a sexo, idade,
escolaridade, região e outras variáveis consideradas importantes
para o voto. Os estatísticos estão certos, salvo por um detalhe, a
amostra probabilística é muito cara e não haveria clientes para ele.
Ou se faz a amostra probabilística sem fazer pesquisas, ou se faz
pesquisas sem fazer amostra probabilística. E a escolha é entre o
INTELIGÊNCIA
mal menor. Apesar disso, cabe a pergunta: quantas pesquisas caíram fora da margem de erro?
Este texto aborda a eficácia das pesquisas feitas no Brasil comparando seus resultados com os respectivos resultados eleitorais.
São avaliadas as que foram publicadas antes das eleições e também as de boca-de-urna. Mais de 550 estimativas de pesquisas são
confrontadas com os resultados eleitorais em 1986, 1988, 1989,
1990, 1994, 1996, 1998, 2000 e 2002.
Exatas 562 pesquisas foram confrontadas com as revelações das
urnas. Sem exceção, todas foram publicadas. Destas, 41% foram
pesquisas feitas por um instituto (Tabela 1), 35% por um outro instituto e 24% por um terceiro instituto. O número de pesquisas é
crescente com o passar dos anos. Poucas foram feitas na década de
1980 (Tabela 2), a maior parte na década de 1990, e um grande
número na ainda inconclusa primeira década do século XXI. Convencionou-se, para efeito deste texto, denominar “pesquisas de prognóstico” as realizadas antes dos pleitos, e pesquisas de boca-deurna as levadas a cabo após o eleitor depositar seu voto. A rigor, só
se pode esperar que caiam dentro da margem de erro as pesquisas
de boca-de-urna, já que a cabeça do eleitor pode mudar antes dele
entrar na cabine de votação – 24% do total de pesquisas aqui avaliadas são deste tipo. As demais foram realizadas antes das eleições.
TABELA 1
Pesquisas por instituto
Instituto A
Instituto B
Instituto C
Total
Numero de pesquisas
232
197
133
562
%
41
35
24
100
Numero de pesquisas
1
41
6
40
115
76
110
67
106
562
%
0,2
7
1
7
21
14
20
12
19
100
Numero de pesquisas
430
132
562
%
77
24
100
TABELA 2
Pesquisas por ano
1986
1988
1989
1990
1994
1996
1998
2000
2002
Total
TABELA 3
Pesquisas por tipo
Prognóstico
Boca de urna
Total
64
I N S I G H T
A maior parte visava acompanhar a disputa para governador –
220 consultas, ou 39% do total – seguida das pesquisas para prefeito, senador e presidente (Tabela 4). Considerou-se pesquisa de
primeiro turno e turno único, além daquelas feitas para este turno
de uma eleição prevista para acontecer em duas rodadas, também
as pesquisas para eleições de senador e de prefeitos de cidades
com eleição em apenas um turno (Tabela 5); estas constituem a
grande maioria, 457 pesquisas ou 81% do total. Foram 105 pesquisas de segundo turno, equivalentes a 19% do total.
Sudeste e Nordeste são os campeões de pesquisa, juntos totalizando 60% do total – 35% para o Sudeste e 25% no Nordeste
(Tabela 6). Sul e Centro-Oeste ficam próximos – 17% das pesquisas
executadas na primeira região e 13% no Planalto Central do Brasil.
O Norte, menos populoso e desenvolvido, e também em função de
sua logística que encarece as pesquisas, soma apenas 7% do total
de pesquisas. Enquanto, a cada quatro anos, disputam-se 27 eleições para governos estaduais e senadores e apenas uma para
presidente, é compreensível que somente 4% das pesquisas analisadas sejam para a disputa do mandatário máximo da nação.
Os três estados do Sul, o Distrito Federal e os três principais
estados do Sudeste concentram o maior número de pesquisas (Tabela 7). Eles são seguidos dos três maiores estados nordestinos,
Bahia, Pernambuco e Ceará, além de Goiás. Depois dos estados, os
mais premiados com as informações das pesquisas foram os eleitores das cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.
Somando-se às pesquisas nacionais, temos aí praticamente 60%
das 562 pesquisas avaliadas. As pesquisas de boca-de-urna, mais
as feitas no dia anterior e dois dias antes da eleição, chegam a
75% de todas as que foram estudadas (Tabela 8). Quando se aumenta um pouco, para cinco dias, a distância entre a pesquisa e a
eleição, tem-se quase 90% de todas as pesquisas avaliadas.
INTELIGÊNCIA
TABELA 4
Pesquisas por cargo
Numero de pesquisas
220
137
184
21
562
Governador
Senador
Prefeito
Presidente
Total
%
39
24
33
4
100
TABELA 5
Pesquisas por turno da eleição
Segundo turno
Primeiro turno e turno único
Total
Numero de pesquisas
105
457
562
percentual
19
81
100
TABELA 6
Pesquisas por região do país
Sul
Sudeste
Nordeste
Centro-Oeste
Norte
Brasil
Total
Numero de pesquisas
96
197
140
71
37
21
562
percentual
17
35
25
13
7
4
100
TABELA 7
Pesquisas por estados e cidades
SP
RJ
MG
DF
SC
RS
PR
PE
BA
CE
GO
São Paulo
Rio de Janeiro
Belo Horizonte
Brasil
Total parcial
Numero de pesquisas
32
31
28
27
26
26
23
20
20
19
16
13
13
13
21
328
percentual
6
6
5
5
5
5
4
4
4
3
3
2
2
2
4
58
TABELA 8
Número de dias entre a pesquisa e a eleição
0
1
2
3
4
5
Total parcial
Total geral
Numero de pesquisas
133
163
127
26
26
25
500
562
percentual
24
29
22
5
5
4
89
100
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006
65
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INTELIGÊNCIA
VIVA O PRIMEIRO COLOCADO! ELE TEM
MAIS VOTOS NA PESQUISA DO QUE NA URNA
Discrepância não é erro. Em cada uma das 562 pesquisas foi
medida a distância entre ela e o resultado eleitoral. Em 1998, no
Ceará, um dia antes da eleição, uma pesquisa indicou que Tasso
Jereissati teria 13 pontos percentuais a mais do que acabou tendo
nas urnas (Tabela 9). Na pesquisa, o segundo colocado ficou cinco
pontos percentuais acima e o terceiro colocado quatro pontos percentuais abaixo das urnas1. Os “sem candidato” – que incluem, na
pesquisa, brancos, nulos e indecisos e, nas urnas, apenas os brancos e nulos – saíram muito diferentes: foram 9% na pesquisa e
24% nas urnas. Uma diferença de 15 pontos percentuais2. Desprezando-se o sinal de positivo e negativo, e somando-se tudo, tem-se
que a discrepância desta pesquisa em relação ao resultado foi de
37 pontos percentuais (Tabela 9).
Tabelas idênticas às Tabelas 9, 10 e 11 foram construidas para
as 562 pesquisas, e para cada uma delas foi calculada a soma das
discrepâncias entre pesquisa e voto, as chamadas “discrepâncias
absolutas”, isto é, sem o sinal de negativo. Deve ser notado que
este método de análise objetiva apenas avaliar comparativamente
o desempenho das pesquisas por ano, cargo, tipo de pesquisa etc.
Isto é, o objetivo principal não é detectar quais e quantas pesquisas caíram dentro ou fora da margem de erro estatístico.
As Tabelas 9 a 11 expõem uma importante descoberta: há um
padrão de erro que é subestimar os brancos e nulos e superestimar
o percentual do primeiro colocado, independentemente de sua coloração partidária3. Por exemplo, na eleição em que disputou e
venceu em Pernambuco, o esquerdista Miguel Arraes também foi
superestimado pelas pesquisas. Os votos brancos e nulos, apesar
de não serem considerados pela legislação eleitoral votos válidos,
têm importância do ponto de vista científico. No jargão técnico, são
um parâmetro a ser estimado por uma pesquisa, assim como são
parâmetros as votações dos candidatos.
1. Os candidatos que tinham percentuais menores que 5% nas pesquisas
tiveram seus percentuais somados e foram renomeados como “outros”, e esta
soma foi comparada com a respectiva soma no resultado eleitoral. O candidato
com 5% ou mais das intenções de voto não entrou na soma “outros”.
2. Nos resultados de pesquisas a rubrica “sem candidato” representa a soma
dos resultados para “indecisos”, votos “brancos” e “nulos”. Esta mesma
rubrica, no resultado da eleição, é a soma de apenas votos “brancos” e
“nulos”. A título de exemplo (tabela 9), no primeiro turno da eleição para
governador do Ceará em 1998 um instituto estimou que os “sem candidato”
seriam 9% quando foram 24%. Como o percentual de 9% contém os indecisos,
que não existem em resultados eleitorais, a discrepância da estimativa dos
brancos e nulos foi ainda maior do que 15 pontos percentuais.
3. Obviamente, há de tudo na comparação entre pesquisas e resultados eleitorais: erros, acertos, erros para cima no candidato primeiro colocado, erros para
cima no candidato segundo colocado, o que as tabelas 9 a 11 ilustram é o erro
mais comum.
66 ÀS ESCURAS
Erro sistemático: o candidato primeiro colocado é superestimado pelas pesquisas:
Em 65% das pesquisas, o candidato primeiro colocado terminou
com um percentual mais elevado do que nas urnas, tendo sido,
portanto, superestimado pelas pesquisas;
Em 28% das pesquisas, o primeiro colocado foi subestimado;
E em 7% das pesquisas, o percentual do primeiro cravou o percentual de votos.
Outro erro sistemático: o candidato segundo colocado é subestimado pelas pesquisas:
Em 50% das pesquisas, o candidato segundo colocado ficou com
um percentual menor do que o obtido nas urnas. Foi, portanto,
subestimado pelas pesquisas;
Em 40% das pesquisas, o segundo colocado foi superestimado;
E em 10% das pesquisas, o percentual do segundo cravou o
percentual de votos.
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
TABELA 9
Ilustração do cálculo da discrepância entre o resultado de pesquisa e o resultado eleitoral
(Exemplo para a eleição do Ceará, 1998, governador, primeiro turno, pesquisa de prognóstico)
Tasso – PSDB
Gonzaga Mota – PMDB
José Aírton – PT
Outros
Sem candidato
Discrepância total
Pesquisa de prognóstico
61%
22
7
1
9
Resultado eleitoral
48%
17
11
1
24
Diferença absoluta pesquisa – eleição
13 pontos percentuais (pp)
5 pp
4 pp
0 pp
15 pp
37 pp
TABELA 10
Minas Gerais, 1994, governador, primeiro turno, pesquisa de prognóstico
Hélio Costa – PP
Eduardo Azeredo – PSDB
Antônio Carlos –PT
José Alencar
Outros
Sem candidato
Discrepância total
Pesquisa de prognóstico
47%
21
6
7
0
19
Resultado eleitoral
33%
18
7
7
3
32
Diferença absoluta pesquisa – eleição
14 pontos percentuais (pp)
3 pp
1 pp
0 pp
3 pp
13 pp
34 pp
Resultado eleitoral
27%
15
20
19
4
1
15
Diferença absoluta pesquisa – eleição
5 pontos percentuais (pp)
4 pp
2 pp
5 pp
2 pp
0 pp
5 pp
23 pp
TABELA 11
São Paulo, 1998, governador, primeiro turno, pesquisa de prognóstico
Maluf – PPB
Rossi – PDT
Mário Covas - PSDB
Marta – PT
Quércia - PMDB
Outros
Sem candidato
Discrepância total
Pesquisa de prognóstico
32%
19
18
14
6
1
10
Mais um erro sistemático: a proporção de brancos e nulos é
subestimada pelas pesquisas:
Em 49% das pesquisas a proporção de votos brancos e nulos
encontrada nas urnas foi subestimada pelas pesquisas;
Em 46% das pesquisas esta proporção foi superestimada;
E 5% das pesquisas cravaram o branco e nulo das urnas.
GRÁFICO 1
Discrepâncias das pesquisas
por 1 a 3 anos de estudos
20
20
18
18
Por que esse padrão de erro? Por que o candidato que fica em
primeiro tem – sistematicamente – um percentual mais elevado
nas pesquisas do que nas eleições? A explicação é politicamente
incorreta: as pesquisas estão mais certas do que as urnas! Os erros
são maiores nos estados e cidades onde a escolaridade é mais
baixa. Isto indica algo muito simples: as pessoas de escolaridade
mais baixa ao responderem a uma pesquisa de opinião declaram,
em sua maioria, preferência pelo primeiro colocado. Porém, no
momento de votar, elas erram e acabam ou anulando o voto ou
votando em branco.
16
16
14
13
12
6% a 13%
14% a 18%
19% a 21%
22% ou mais
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006
67
I N S I G H T
GRÁFICO 2
Discrepâncias das pesquisas por PIB
24
24
22
20
19
19
18
16
14
14
1.313 a 8.317
14.592 a 29.454
32.490 a 78.604
86.758 a 810.829
GRÁFICO 3
Discrepância das pesquisas por tipo de pesquisa
18
18
16
15
14
Boca de urna
Prognóstico
GRÁFICO 4
Discrepância das pesquisas por cargo
20
18
18
17
16
16
14
12
11
10
Presidente
68 ÀS ESCURAS
Prefeito
Governador
Senador
INTELIGÊNCIA
Qualquer que seja a eleição, prefeito, governador, senador ou
presidente, a discrepância entre pesquisa e resultado é maior nos
estados ou municípios onde a escolaridade é pior. Nas áreas onde
há de 6% a 13% de eleitores com um a três anos de estudo, a
discrepância é de 13 pontos percentuais (gráfico 1); aumenta para
16 pontos percentuais onde 14% a 18% dos eleitores têm um a
três anos de estudo; e sobe ainda mais – para 20 pontos percentuais – onde mais de 22% estão neste nível de escolaridade.
Estados ou municípios mais escolarizados tendem a ter um PIB
mais elevado. Neles, a proporção de pessoas com um a três anos
de estudo é menor e a proporção de quem tem oito a dez anos de
estudo, maior. Aumenta a escolaridade e aumenta o PIB. Resultado: diminui a discrepância entre pesquisa e resultado das urnas
(gráfico 2).
É fato também que quanto mais elevada a escolaridade, menor a quantidade de votos brancos e nulos. Em uma linguagem
estatística, a correlação entre oito a dez anos de estudo e proporção de votos brancos e nulos é -0,42 (muito significante). Isto fica
patente quando se vê que as eleições nos estados e capitais
I N S I G H T
nordestinas têm mais brancos e nulos do que as eleições ocorridas no “sul maravilha”.
Em 228 resultados de pesquisas para o cargo de governador, a
correlação significativa entre o erro das pesquisas e o branco e
nulo foi de 0,74. Essa mesma correlação cai para 0,3 nas 141 pesquisas para o Senado analisadas e se torna completamente irrelevante nas 430 pesquisas para prefeito. Em suma, o padrão de erro
identificado se encontra, em grande medida, nas eleições para
governador e senador e está correlacionado com a proporção de
votos brancos e nulos.
As pesquisas tendem a ser mais imprecisas quando são de
prognóstico, para governador e no primeiro turno ou quando a
eleição ocorre em um só turno e são feitas na Região Nordeste. É o
que pode ser visto no gráfico 3.
As pesquisas de boca-de-urna são mais precisas porque elas
acertam com mais freqüência o percentual de votos brancos e nulos do que as pesquisas de prognóstico. Isto ocorre porque o método da pesquisa de boca-de-urna exige que o eleitor escreva o seu
voto em uma cédula dada a ele pelo instituto de pesquisa e o
INTELIGÊNCIA
deposite em uma urna, o que não ocorre, em grande medida, nas
pesquisas de prognóstico.
A análise dos dados por cargo desfaz o mito de que as pesquisas municipais erram mais do que as demais pesquisas. É
claro o fato de que o melhor desempenho é das pesquisas para
presidente e prefeito, e o pior é das pesquisas para governador
e senador. No caso dos senadores, trata-se de um cargo – para
o eleitorado – menos importante e mais incompreensível do
que os cargos de presidente, governador e prefeito. Nestes três,
trata-se de quem executa. Naquele, de quem faz o que? Legisla? Mas não é esse o papel dos deputados estaduais e federais?
É comum, todos, sabem que senadores são eleitos porque “colaram” em candidatos favoritos ao governo estadual. Assim, é
possível supor que o erro das pesquisas para o senado esteja
associado a fortes mudanças de voto que tendem a acontecer
nos últimos dias de campanha eleitoral.
Adicionalmente as pesquisas feitas no segundo turno são muito
mais precisas do que as feitas no primeiro turno. Essa constatação contraria a teoria estatística: a margem de erro tende a ser
TABELA 12
Proporção média de brancos e nulos nas eleições
que foram comparadas com as pesquisas
Estado
Alagoas
Bahia
Pernambuco
Minas Gerais
Piauí
Paraíba
Maranhão
Ceará
Sergipe
Paraná
Mato Grosso
Tocantins
Rio Grande do Norte
Mato Grosso do Sul
Rondônia
Santa Catarina
Rio de Janeiro
Pará
Goiás
Amazonas
Acre
São Paulo
Rio Grande do Sul
Espírito Santo
Amapá
Roraima
Distrito Federal
Branco e nulo
0,35
0,32
0,31
0,28
0,27
0,26
0,25
0,24
0,23
0,23
0,22
0,22
0,22
0,21
0,21
0,20
0,19
0,18
0,18
0,17
0,17
0,17
0,15
0,15
0,13
0,11
0,11
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006
69
I N S I G H T
GRÁFICO 5
INTELIGÊNCIA
GRÁFICO 7
Discrepâncias das pesquisas por turno
Discrepância das pesquisas por Estado, os 10 mais imprecisos
34
20
33
32
19
30
18
18
31
28
27
26
16
24
22
14
24
PE
PI
25
22
20
18
24
19
19
20
16
12
14
10
10
12
Segundo turno
Único turno
PB
Primeiro turno
GRÁFICO 6
Discrepância das pesquisas por região
22
22
20
18
16
16
16
14
15
14
12
10
11
Brasil
Sul
Centro-Oeste
Norte
Sudeste
Nordeste
maior no segundo turno do que no primeiro. Há uma razão técnica
para isso e, infelizmente, é difícil evitar uma linguagem técnica.
Isso acontece porque, pegando-se dois eleitores ao acaso, no
segundo turno são maiores as chances de que, destes dois, um
vote no candidato A e outro não vote no candidato A. No primeiro
turno tais chances são menores. No segundo turno o eleitorado
tende a se dividir de forma mais próxima de 50% para um lado e
50% para o outro do que no primeiro turno, e isso influencia na
margem de erro.
Estranho, não? Sendo maior a margem de erro no segundo
turno, as pesquisas erram menos. Que acontecimento surpreendente. Há nele uma evidente indicação de que o erro amostral é
menos importante do que outros tipos de erro. Por exemplo, há
menos pesquisas no segundo do que no primeiro turno. O resultado disso é que os institutos, com um volume menor de trabalho,
70 ÀS ESCURAS
RO
CE
PA
TO
BA
MA
AL
I N S I G H T
podem utilizar suas melhores equipes e controlar de forma mais
rigorosa o trabalho de campo. Como as amostras não mudam do
primeiro para o segundo turno e, repito, deveriam ser mais sujeitas a erros no segundo turno, como também o know how utilizado
para a confecção dos questionários de pesquisa não muda de um
turno para outro, então as suspeitas recaem sobre o trabalho de
campo. Afinal, trabalho de campo também é fonte de erro.
O Nordeste é a região onde os institutos de pesquisas têm
mais problemas. Na média, pesquisas feitas em cidades ou estados
nordestinos apresentam uma discrepância de 22 pontos percentuais. Essa diferença cai para 16 pontos percentuais no Sudeste e
no Norte e 15 pontos percentuais no Centro-Oeste e no Sul. É no
Nordeste que estão os mais pobres e, não coincidentemente, os
menos escolarizados. É também no Nordeste onde o PIB é menor e
os votos brancos e nulos são maiores.
A informação acerca dos estados somente reforça esta conclusão. Dos 10 estados com maior discrepância, sete são do Nordeste
e os outros são Tocantins, Pará e Rondônia. Em 2006, no primeiro
turno no Maranhão, Roseana Sarney teve mais votos nas pesquisas
de prognóstico do que nas eleições. Ela era, na ocasião, a candidata primeira colocada. Ou seja, a conclusão acerca do padrão de
erro é – no jargão científico – robusta. Ela permite prever o futuro.
Ela permite fazer inferência.
O mais provável é que ocorra erro de medição. É possível que
haja erros na coleta de dados, no trabalho de campo, ou mesmo
nos procedimentos de aplicação dos questionários, de tal maneira
que aqueles que votariam branco ou anulariam o voto (principalmente em função de erro) venham a responder o nome do primeiro
INTELIGÊNCIA
GRÁFICO 8
Passam os anos e as pesquisas ficam mais precisas
22
20
19
20
19
18
16
14
14
12
1990
1994
1996
2002
TABELA 13
Comparação entre o desempenho de pesquisas nos estados do Nordeste
e estados de outras regiões – pesquisas selecionadas
Ordenamento
da maior para
a menor
discrepância
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
INSTITUTO A - PRIMEIRO TURNO
1990 - Governador
Prognóstico
Boca-de-urna
Alagoas
Alagoas
Bahia
Pernambuco
Pernambuco
Rio de Janeiro
Minas Gerais
Santa Catarina
Rio de Janeiro
Bahia
Paraná
Minas Gerais
Santa Catarina
Paraná
São Paulo
Rio Grande do Sul
Ceará
São Paulo
Distrito Federal
Distrito Federal
Rio Grande do Sul
Ceará
1994 - Governador
Prognóstico
Boca-de-urna
Bahia
Pernambuco
Pernambuco
Bahia
Goiás
Santa Catarina
Minas Gerais
Rio de Janeiro
Ceará
Distrito Federal
Mato Grosso do Sul Rio Grande do Sul
Paraná
São Paulo
São Paulo
Goiás
Distrito Federal
Minas Gerais
Rio de Janeiro
Paraná
Santa Catarina
Mato Grosso do Sul
Rio Grande do Sul
Ceará
1998 - Governador
Prognóstico
Boca-de-urna
Ceará
Pernambuco
Bahia
Bahia
Pernambuco
Paraná
Paraná
Ceará
Minas Gerais
Minas Gerais
Santa Catarina
Rio Grande do Sul
São Paulo
São Paulo
Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
Rio Grande do Sul Santa Catarina
Distrito Federal
Distrito Federal
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006
71
I N S I G H T
colocado na pesquisa. Este fenômeno está associado à baixa escolaridade do eleitorado. As discrepâncias das pesquisas feitas no
Nordeste em comparação com os estados da Região Sul servem
para ilustrar e reforçar este ponto (Tabela 13).
A análise estatística revela que as variáveis que melhor prevêem a discrepância de pesquisas são o tipo de consulta (boca-deurna ou prognóstico), o turno da eleição, e a escolaridade do eleitorado. As maiores discrepâncias ocorrem em pesquisas de prognóstico, no primeiro turno e onde o eleitorado é menos escolarizado. Por outro lado, as menores discrepâncias se dão em pesquisas
de boca-de-urna, no segundo turno e em estados nos quais a escolaridade média é mais elevada.
INTELIGÊNCIA
GRÁFICO 9
Discrepância das pesquisas por
percentual de votos informatizados
22
22
20
18
18
18
16
15
14
Quando as pesquisas são avaliadas no passar do tempo, notase que eles ficaram mais precisas. Isso vale tanto nas eleições para
senador e governador quanto nas eleições municipais. Entre 1990
e 1998 a discrepância das pesquisas que tinham como área geográfica de realização os estados variou em torno de 20 pontos
percentuais. Essa discrepância caiu para 14 pontos percentuais
em 2002. Nas eleições municipais essa melhora foi de 17 pontos
percentuais em 1996 para 14 pontos percentuais em 2000. Parabéns para os institutos que identificaram os erros e mudaram procedimentos! Parabéns?
12
0%
7% a 27%
30% a 39%
100%
GRÁFICO 10
Brancos e nulos por informatização do voto
e escolaridade do eleitorado
0,4
Proporção de votos brancos e nulos por comparecimento
AS PESQUISAS SE TORNARAM MAIS PRECISAS:
VIVA A URNA ELETRÔNICA!
0,3
0,2
0,1
0,0
0,0
0,1
0,2
0,3
0,4
Analfabeto/Sem instrução e menos de 1 ano de estudo
100% informatizado
Voto parcialmente eletrônico
Voto no papel
72 ÀS ESCURAS
I N S I G H T
As discrepâncias diminuíram em função da informatização do
voto. Em que pese a indignação dos opositores da urna eletrônica, ela contribuiu para que voto na urna ficasse mais próximo do
voto declarado na pesquisa. Veja-se que foi exatamente o que
ocorreu. Nas eleições que antecederam a completa informatização, a discrepância das pesquisas foi de 18 ou de 22 pontos percentuais. Já sob o total uso da máquina de votar, as pesquisas
passaram a apresentar uma discrepância bem menor, de 15 pontos percentuais.
O grande feito da urna eletrônica foi contribuir para diminuir a
proporção de votos brancos e nulos. As pessoas de pouca escolaridade que tiveram a chance de escrever seu voto no papel sabem
como isso era difícil. Os fiscais de apuração de todos os partidos
cansaram de ver votos anulados porque o eleitor escrevia no lugar
errado o voto: o nome do deputado estadual onde deveria haver um
xis para governador, um xis para presidente ou governador no lugar
que deveria haver o nome ou número do deputado federal, e assim
por diante. A urna eletrônica – e a “colinha” com o número dos
candidatos – reduziu de maneira significativa a proporção de brancos e nulos (gráfico 10). Mais do que isso, tornou o branco e nulo
mais dependente da escolaridade – isso é de suma importância
para se entender a redução dos erros de pesquisas.
INTELIGÊNCIA
Quando o voto era no papel – em 1994 –, a escolaridade baixa
explicava 19% dos brancos e nulos. Em 1998, a baixa escolarização
passou a explicar 37% dos brancos e nulos e esse percentual subiu
para 46% em 2002, com 100% do voto na maquininha. O que isso
quer dizer? Que antes da urna eletrônica muitos votos nulos e brancos ocorriam por causa de outros erros que não somente o equívoco
devido à escolaridade baixa. Podia ocorrer que pessoas mais bem
instruídas, por falta de familiaridade com a complexidade da cédula
eleitoral, errassem o voto. Atualmente, pelo contrário, é preciso ser
muito incapaz – cognitivamente – para desperdiçar o voto. A conseqüência foi direta: caiu bastante a proporção de brancos e nulos.
Como já deu para depreender de uma conclusão importante deste
estudo: aumentou muito a precisão das pesquisas.
Assim, apesar da enorme preocupação com o erro amostral, o
grande problema das pesquisas é o erro não-amostral. É nele que
recai a explicação para os principais erros de pesquisas. Ainda mais
quando sabemos que isto acontece de forma sistemática em pesquisas de prognóstico, no primeiro turno, e em estados com escolaridade baixa. Assim, é necessário aumentar o controle do trabalho de campo realizado em estados de escolaridade mais baixa.
Isso esbarra em custo. São justamente os locais nos quais os contratantes das pesquisas estão menos dispostos a pagar por isso.
[email protected]
74
Ana suspira fundo e acende mais um cigarro, quarenta e seis redações escolares para corrigir, gritaria
das crianças no pátio do edifício, um entardecer calorento, canto ensandecido de cigarras e a avó com a
televisão ligada em alto volume! Mas que mais pode
oferecer a pobre velha cega e quase surda? Que
situação!
Empurra para trás a cadeira, coloca os pés sobre
a mesa para descansar as pernas, traga profundamente o cigarro, fecha os olhos e se distrai ouvindo o
diálogo do seriado de televisão. Homem e mulher tramam um golpe, coisa em torno de um assassinato
com rendimento de setenta mil dólares. A mulher sussura prazeres de shopping center e ilhas gregas.
Irritada, levanta. Quem sabe a avó dormiu e ela
pode diminuir o som da televisão? Som vagabundo,
história vagabunda!
Parada na porta da sala, Ana observa a avó, sentada na poltrona, rosto banhado pela luz da televisão,
os olhos cegos fechados, a boca murcha entreaberta, a cabeça pendida sobre o ombro, gotas de suor
sob os cabelos ralos. A mão direita da velha acaricia
o seio, a mão esquerda passando sobre a púbis.
76 BO
Desconfiada, a velha enrijece o corpo, se recompõe:
— É você... Ana?
Ana não se move, toda em silêncio. A velha ainda
escuta mais um pouco, aquieta-se e, num suspiro
profundo, retoma o passeio das mãos pelo corpo
cheio de seus desejos. Enquanto, na tela da televisão, os assassinos golpeiam a cabeça da vítima, a
mão esquerda da vó acelera o movimento, peito arfante. Lábios apertados, pernas retesadas em espasmo. O último gemido do homem assassinado na televisão em sincronia com o prazer silencioso da velha.
Ana espera, até entrar na sala barulhentamente,
derrubando uma cadeira.
— É você Ana? Sempre derrubando as coisas... e
a cega sou eu.
— Vou fazer o seu lanche, ou quer deixar para
mais tarde, depois do seriado?
— Traz agora, minha filha. Não sei por que, hoje
estou com uma fome danada!
Antes que Ana entre na cozinha, é alcançada
pela voz trêmula da velha.
— Me diz uma coisa, Ana... A cena agora era uma
cena de amor, não era?
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006
77
I N S I G H T
80 ÀS CLARAS
INTELIGÊNCIA
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006
81
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
É
praticamente uma mania entre as pessoas de
bem deste planeta falar mal do presidente
americano, George W. Bush. É extensa, mesmo, a lista de adjetivos normalmente atribuídos ao filho do pai dele, com destaque para
“arrogante, prepotente, inconseqüente, megalômano, imperialista”. “Texano e republicano” também já foram alçados à categoria
de xingamento nesses últimos anos, dentro e fora daquele país
ao Norte – conheci um sujeito em Praga, coitado, que mal se
apresentava e já ia chamando o interlocutor para briga: “Sou do
Texas, sim, e daí? A culpa não é minha.” Os que preferem o bom
português costumam ficar com o sempre eficaz “anta”. Os mais
jovens apelam ao novíssimo “mane”, cuja menção não fica nem
bem na abertura deste artigo, que, aliás, há de me fazer perder uns
dois ou três amigos de esquerda que ainda me restam.
Num distante 2002, um ano após a mãe de todas as provocações àquela nação, como foi interpretada, os americanos nem
bem se acostumavam à idéia de acordar com aviões caindo sobre
suas cabeças, e nosso republicano apresentou em público o que
era, para ele, a lista de motivos para a ainda não iniciada invasão ao
Iraque de Saddam Hussein, encerrada com uma declaração prosaica, referindo-se ao agora ex-ditador: “Afinal de contas, esse é
um cara que tentou matar papai uma vez.” Simples assim, dito
quase com muxoxo de menino que vê o vizinho “bobo, feio e
cabeludo”, como diria meu afilhado, brigar com o herói da família. Foi em 26 de setembro de 2002, num discurso em Houston,
Texas, durante o qual só faltou dizer “Houston, temos um problema”. Era a época em que o “filho de papai” consultava a ONU
e o Congresso, só para saber, se deveria ir à guerra. Também era a
época em que o ex-líder iraquiano já tinha sido devidamente colocado pelo Pentágono no posto de inimigo número um do planeta, uma vez que nem CIA nem FBI davam conta de encontrar
um tal Osama Bin Laden – simplesmente porque não quiseram,
diz a turma das teorias da conspiração. Era, ainda, a época em que
a Casa Branca começava a botar na cabeça dos americanos a existência das armas de destruição em massa que jamais foram encontradas. Naquele discurso no Texas, Bush se referia a um plano
de Saddam que os Estados Unidos provaram ser o de matar o
presidente George Bush pai há anos.
82 ÀS CLARAS
Assisti a esse discurso de setembro de 2002 com mais de 12
horas de atraso, na TV, de manhã cedo, num quarto de hotel no
estado de Minnesota, que dividia com uma jovem de Jacarta.
Nós duas éramos bolsistas de um programa para jornalistas estrangeiros promovido por uma organização americana, financiado por grandes empresas de mídia e outros setores do país.
Tivemos um surto e praguejamos durante o café da manhã –
minha companheira de quarto estava especialmente irritada porque uma cidadã americana comum se surpreendera ao descobrir
que a Indonésia tinha dentistas. E, nos valendo do nosso quinhão de arrogância, concluímos que Bush se enterraria de vez
com aquela declaração que achamos ridícula, certas de que o argumento não iria convencer nem os republicanos, certas de que a
ONU iria fazer algo para evitar a guerra. Do Congresso americano
já tínhamos desistido. Há quase dois meses no país, já sabíamos
que, às vezes, republicanos e democratas são o que são, mesmo:
o azul e o vermelho da mesma bandeira. Mas nossas convicções
duraram tanto quanto o pãozinho do café da manhã. No momento em que ameaçamos zombar do presidente, já a caminho
do trabalho, nossa guia naquele dia, jornalista de carreira brilhante
no país, contemporânea de George, o W., nos calou a boca: “E o
que tem isso? Eu também chamo meu pai de “papai”. O presidente fala como nós falamos.” Cai o pano.
A verdade é que rasgo o coração de esquerda confusa aqui ao
Sul para sugerir que, no mínimo, ampliemos o conceito de “anta”
para abranger republicanos que, embora repitam discursos feitos
por assessores muito bem pagos, tenham a capacidade quase
espiritual de falar à alma do americano comum. Bush é um deles,
e sabe-se lá de onde diabos ele tirou o talento de falar no tom de
quem o escuta; de ficar à vontade na camisa azul clara, manga
arregaçada, versão ianque do casaquinho Lacoste do Cesar Maia
de outrora; de, a cada vez que vai ao Sul do país, forçar tanto o
sotaque sulista que vira um arremedo muito do mal-acabado da
minha querida Janis Joplin, a branca de voz mais preta que já
habitou este planeta – sinto que essa metáfora e a recusa a escrever
afro-americana vão me carregar mais uns dois ou três amigos.
Mas insisto.
I N S I G H T
Pouca gente lembra, mas o W. que vem entre o George e o
Bush é Walker, igual ao Johnny, bom escocês que o presidente,
aliás, jura ter abandonado após uma juventude de abuso de
álcool e, dizem os detratores, outros prazeres ilícitos. Foi pressão
da mulher, Laura. Não sei se meu amigo de Praga sabe, mas o
homem nem no Texas nasceu. O ocorrido foi em New Haven,
Connecticut, Nordeste dos EUA, há 60 anos. Virou texano quando, em 1988, comprou o Texas Rangers, time de beisebol do
estado em que decidiu criar suas raízes políticas. Funcionou, e,
em 1994, foi eleito governador. A essa altura, os mesmos assessores bem pagos perceberam que o sotaque sulista lhe caía bem.
Foi criado o buddy, o “cara legal”, em termos republicanos – é
bom ressaltar –, o que fala como a gente do povo, o que comete
erros gramaticais crassos como o cidadão comum, o que mata de
raiva os pacifistas e os americanos de boa vontade. Dizem os
especialistas que o sotaque do Sul é a voz do povo naquele país.
Equivale ao sotaque nordestino de certo presidente que acaba de
ser reeleito no país onde o antecessor, intelectual de berço, jurou
uma vez ser pretíssimo.
– Durante boa parte do século passado, a fé dos Estados
Unidos na liberdade e na democracia era um rochedo no mar
revolto. Agora, é uma semente ao vento, criando raízes em várias
nações – disse, em janeiro de 2001, o presidente eleito após um
pleito conturbado, sob suspeita de fraude, em meio a uma interminável recontagem de votos na Flórida, estado governado por
seu irmão, Jeb, outro “homem do povo”, mais próximo, este sim,
do nosso conceito clássico de “anta”. Na época, democracia ainda
era só o que é, mesmo, coisa a ser mencionada em discurso moderado de posse. Ainda não tinha virado argumento para a guerra.
Chegou a falar em armas de destruição em massa, que prometeu enfrentar, assim, genericamente. Mas elas ainda não tinham um dono. Ainda não eram o instrumento do mal.
O “mal”, como argumento-coringa, só foi incorporado num
certo 11 de setembro do mesmo ano ao discurso do presidente,
que, até hoje, sempre dá um jeito de mencionar a palavra (evil, no
original), não importa o assunto de sua preleção – faz lembrar o
velho Leonel de Moura, que, não importasse o assunto de suas
conversas com jornalistas, conseguia sempre responsabilizar o
empresário Roberto Marinho e a TV Globo, nesta ordem, por
alguma mazela social.
INTELIGÊNCIA
Naquela noite, às 20h30min em ponto, horário da capital
Washington, Bush fez pronunciamento à nação. Voz embargada
– há quem jure que tinha lágrimas nos olhos -, discursou por
exatos cinco minutos, inglês limpíssimo, ensaiadíssimo, sem
sotaque carregado. Naquele dia, ele mirou em todos os americanos, do Maine à Flórida. Pausas ensaiadas, não disse uma só frase
sem engolir em seco ao menos uma vez. O “mal”, mencionou
quatro vezes, uma delas num Salmo: “Ainda que eu ande pelo
vale das trevas da morte, não temo nenhum mal porque Vós
estais a meu lado”, numa tradução literal do que disse naquela
noite. “Liberdade”, repetiu três vezes. “Paz”, duas. “Raiva”, disse uma única. Gaguejou duas vezes, uma delas quando mencionou, já ao final, os “inimigos” de outrora, que os EUA derrotaram. “Inimigos” também virou palavra obrigatória nos discursos que se seguiram. Foi em 11 de setembro de 2001, cerca de 12
horas após os atentados, que o presidente referiu-se, pela primeira vez, para nunca mais parar, à tal “guerra contra o terrorismo”.
– Não faremos nenhuma distinção entre os terroristas que
cometeram esses atos e aqueles que lhes derem abrigo – ameaçou,
sem elevar o tom, com a mesma tristeza que tinha na voz quando, no início do discurso, lamentou a morte de “mamães e papais, amigos e vizinhos”.
Três dias depois, quando protagonizou a célebre cena nos
escombros do World Trade Center, megafone em punho, era
outro. Era o próprio general à paisana, sem o terno de sempre,
saudado por uma multidão de operários, policiais e bombeiros,
emocionados, aos gritos “USA”, “USA”.
– Eu estou ouvindo vocês. O resto do mundo está ouvindo
vocês. As pessoas que derrubaram estes prédios vão ouvir falar
de nós em breve – gritou.
A imagem rodou mundo, mas o presidente perdeu o título
de Pessoa do Ano, da Time, para o também republicano Rudolph Giuliani, prefeito de Nova York na época dos atentados. Hoje
sabe-se que o voto do corpo editorial da revista era para Osama
bin Laden, o homem que naquele ano causou o maior impacto
no noticiário mundial, pré-requisito básico para o candidato em
potencial ao título criado pela revista em 1927. A idéia chegou a
ser seriamente cogitada, mas os anunciantes avisaram que sairiam
todos da edição se a empresa insistisse, e os editores da publicação que já elegeu Adolf Hitler o Homem do Ano de 1938 recuaram. Iria dar trabalho demais explicar a uma nação traumatizada
por que a encarnação do “mal” iria ser estampada na capa menos
de seis meses depois dos ataques.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006
83
I N S I G H T
Daquele momento até março de 2003, mês da invasão ao
Iraque, George Walker Bush fez discursos que variaram sobre o
mesmo tema, uma repetição quase num mantra das palavraschave que escolheu no discurso de 11 de setembro. O tom de voz
variou do firme, a cada vez que ameaçou “fazer justiça” àqueles
que cometeram os “atos de terror contra os Estados Unidos da
América”, ao embargado, contido, as pausas de sempre, quando
precisou parecer humano.
– Muito obrigado por sua hospitalidade. Nós acabamos de
ter uma discussão ampla sobre... sobre o problema que temos
nas mãos. – disse, em 17 de setembro de 2001, quando foi ao
Centro Islâmico de Washington para tentar provar que a “raiva”
do país não era direcionada à religião que os terroristas levaram ao
extremo. O sotaque do Sul, naquele dia, parecia natural, espontâneo, mesmo – há quem diga que, quando o presidente se emociona sinceramente, os assessores nem precisam lembrá-lo de
falar como o cidadão comum. Falou do “mal”, e deu um jeito de
encontrar um trecho do Corão que incluía a palavra, como seu
Salmo preferido.
– A tradução para o inglês não é tão eloqüente quanto o
original em árabe, mas permitam-me citar o próprio Corão: “O
mal extremo será o fim daqueles que fazem o mal, pois estes
rejeitaram os sinais de Alá e os ridicularizaram”, disse, pouco
antes de pedir aos americanos que respeitassem os milhões de
muçulmanos que escolheram o país para viver. – As mulheres
que cobrem suas cabeças neste país devem se sentir à vontade
para sair de suas casas. As mamães que se cobrem não devem ser
intimidadas nos EUA. Que Deus nos abençoe a todos.
A todos, menos os que colaboram com o “mal”, os que
planejam colaborar e os que têm potencial de, um dia, talvez,
pensar em colaborar. Em 26 de outubro do ano que, para os
americanos e para o Iraque, não acabou ainda, o presidente assina
o USA Patriot Act of 2001, uma lista interminável de medidas
que liberam as autoridades federais do país para ignorar uma
parte razoável das leis de respeito à privacidade dos cidadãos de
bem. Nas palavras do líder, de volta à voz firme:
– Estamos lidando com terroristas que usam métodos e tecnologias altamente sofisticados, que, alguns deles, nem existiam
ainda quando nossa legislação atual foi criada. A lei que tenho
diante de mim leva em consideração a nova realidade e os novos
perigos apresentados por terroristas modernos. Vai ajudar as
autoridades a identificar e a punir terroristas antes que eles ajam.
84 ÀS CLARAS
INTELIGÊNCIA
Em novembro, dirigindo-se ao planeta, cravou o já histórico
“ou vocês estão conosco ou contra nós na luta contra o terror.” E
passou o ano seguinte transformando Saddam Hussein no inimigo público número 1 do planeta. Não, ninguém perguntou ao
presidente quem tinha criado o monstro há mais de uma década,
o mesmo valendo para os talibãs do Afeganistão que um dia
enfrentaram um “mal” aparentemente inofensivo agora, os tais
comunistas. Adivinhem que potência mundial ajudou, no passado, os “inimigos” de agora?
Foi em 19 de março de 2003 que, de novo formal, discurso
ensaiado, Bush foi à TV anunciar oficialmente, em cadeia nacional, que “americanos e forças da coalizão” estavam “iniciando
operações militares para desarmar o Iraque, libertar seu povo e
defender o mundo de um grave perigo.” Jurou que obteria a
vitória que até hoje não veio. Em 10 de abril do mesmo ano,
falou aos iraquianos. Com a mesma calma, prometeu liberdade a
cada cidadão do país outrora governado com mão-de-ferro pelo
homem condenado à forca recentemente – faltou detalhar livre
de quem eles seriam. Também garantiu sossego aos sunitas e
xiitas daquele país, que hoje se matam numa guerra civil fora de
controle, que acabou por derrubar o artífice da invasão, o agora
ex-secretário de Defesa, Donald Rumsfeld.
Em junho de 2003, num episódio que só foi divulgado no
ano passado, a explicação que faltava àqueles já convencidos de
que o presidente dividiu o mundo entre os que estão com ele e os
que vivem contra ele veio do próprio, numa reunião com líderes
palestinos. Às aspas, que são ouro puro:
“Estou guiado por uma missão de Deus. Deus me disse:
‘George, vá lutar contras aqueles terroristas do Afeganistão’. E eu
fui. Então, Deus me disse: ‘George, vá acabar com a tirania no
Iraque’. E eu fui. Agora, de novo, eu sinto as palavras de Deus
vindo a mim: ‘George, vá e dê aos palestinos seu Estado e aos
israelenses, sua segurança. E dê paz ao Oriente Médio.’ Por Deus,
eu vou fazê-lo.”
I N S I G H T
A intimidade com o Todo-Poderoso talvez explique a reeleição do líder em 2004, a guerra já fazendo água, americanos já
desconfiados de que a invasão, talvez, não tenha sido, de todo,
uma boa idéia. No discurso de agradecimento pelos votos, em
novembro de 2004, a falta de ênfase do pronunciamento da primeira posse foi substituída pelos novos desafios. Falou de liberdade, de paz, de guerra ao terror. E agradeceu ao Texas, claro.
Mas deve ter perdido a fé em algum momento. Em agosto
do primeiro ano de seu segundo mandato, um furacão com nome
de moça, Katrina, expôs em rede nacional as feridas de uma sociedade partida entre pretos e brancos, ao Sul do país – logo no Sul,
seu rincão querido. O símbolo da tragédia que atropelou o governo preocupado em reconstruir o Iraque e libertar os povos oprimidos por tiranias do outro lado do mundo foi a histórica Nova
Orleans, inundada porque um dique mal conservado se rompeu.
A agência criada pelo próprio Bush para dar conta de eventos de
tal magnitude não funcionou, a ordem de evacuar a região chegou depois do furacão, morreram milhares, e o prefeito da cidade, o democrata Ray Nagin, perdeu a paciência.
– Movam o traseiro – disse o homem negro alto, bemapanhadíssimo, em uma entrevista a uma rádio no auge da crise,
protegido pela falta de memória dos próprios americanos: Nagin
começou a carreira como republicano e só mudou de partido por
ter percebido que tinha potencial para ganhar os votos das populações negras, mais à esquerda, da região, o que, no fim das contas, deu certo.
O presidente moveu o seu, e foi até a região afetada pelo
Katrina, que atingiu meia dúzia de estados, incluindo os diretamente destruídos pela força dos ventos e das águas e aqueles que
tiveram que dar abrigo a hordas de miseráveis, na época desabrigados. Também resolveu proibir os canais de TV do país de
mostrar as imagens dos corpos boiando pela capital da boêmia
americana. No dia 15 de setembro, fez discurso de 26 minutos do
meio da Jackson Square, em Nova Orleans. Nunca esteve tão
sulista, nunca arrastou tanto o sotaque, nunca quis parecer tão
menos branco – faltou subir som com alguma gravação clássica
de Old Man River.
86
INTELIGÊNCIA
Como poucas vezes fez, assumiu a responsabilidade pelos
incontáveis erros cometidos pelo governo federal e anunciou verbas para tentar minimizar o estrago. Há quem aposte que aprendeu um pouco – quem não aposta apela para o velho “era o único
jeito, ele não tinha saída”. Mas já era tarde. Perder a guerra no
distante Oriente Médio, vá lá – quem reclama, no fim das contas,
são os pacifistas de sempre. Não dar conta dos próprios americanos dentro do próprio quintal pareceu um pouco demais até para
os republicanos.
O troco veio em novembro deste ano. Não adiantaram as
mudanças de tom nos discursos num tour sem fim a bordo do
Air Force One, o avião presidencial, nos últimos dias antes das
eleições legislativas. Não adiantaram os apelos aos estados do Sul
na reta final.
– Agora, os democratas em Washington estão fazendo outras previsões. Eles estão dizendo a vocês que vão vencer as eleições. Bem, se as previsões eleitorais deles forem tão confiáveis
quanto suas previsões econômicas, 7 de novembro será um bom
dia para o Partido Republicano – disse, na Geórgia, em 30 de
outubro.
Atirou e acertou os dois pés. Perdeu o controle na Câmara de
Deputados e no Senado. Fortaleceu o agora casal feliz Hillary e
Bill Clinton, mais democratas que nunca. Foi obrigado a ceder o
debate sobre a guerra no Iraque com a oposição. Perdeu o secretário de Defesa. Tem, nos últimos dois anos de seu mandato, que
aturar a democrata Nancy Pelosi, presidente da Câmara, desafeto
a quem sempre se referiu como “aquela mulher”. Mas deu show
de bom humor na primeira entrevista coletiva aos repórteres que
cobrem a Casa Branca. E deu resposta de líder que ainda pensa
que passo dará no momento seguinte a uma derrota espetacular
a uma das jornalistas, Suzanne – sim, ele tem a mania de tratar as
pessoas pelo primeiro nome para forjar uma informalidade que
nem sempre é de seu agrado, como Deus, que, já sabemos, o
chama de George.
– Senhor presidente, com todo o respeito, Nancy Pelosi já o
chamou de incompetente, mentiroso, imperador nu, e, ontem,
de perigoso. Como o senhor vai trabalhar com alguém que tem
tão pouco respeito a sua liderança e é a terceira na hierarquia de
poder do país?
– Suzanne, eu estou na política há algum tempo. Eu sei
quando acaba a campanha e quando começa o governo. Vou trabalhar com pessoas dos dois partidos.
Também disse que não era seu primeiro “rodeio”. Oremos.
[email protected]
NA QUAL INFIÉIS MUÇULMANOS
ATOCHARAM FIÉIS CRISTÃOS
88 ENTARDECER
Nesses tempos bicudos em que vivemos, não é difícil imaginar que todo
o muçulmano decentemente informado sente engulhos estomacais só em
ouvir a menção do termo “Cruzada”. A comunidade judaica, aliás, poderia
justificadamente irmanar-se em similar mal-estar, pois, tanto na Europa
quanto na Terra Santa, as mobilizações para as Cruzadas realimentaram
violentas perseguições contra judeus, contidas aqui e ali pelas autoridades
eclesiásticas, ao que parece, mais preocupadas em restaurar a ordem do que
verdadeiramente solidárias quanto às crueldades cometidas contra os filhos de Abraão.
Logo após o episódio do 11 de Setembro, o presidente dos Estados
Unidos apareceu diante das câmeras e, tal qual um São Bernardo de
Clairvaux revivido – evidentemente desprovido do talento oratório do santo, que segundo dizem os cronistas era notável - pregou a “Cruzada” pela
defesa da liberdade e contra o terrorismo. O presidente certamente falou
de improviso. Creio que todos os assessores presidenciais do mundo
apreciariam que seus ministérios de ciência e tecnologia fornecessem um
aparelho que, uma vez plugado nos presidentes, produzisse um violento
choque elétrico, toda a vez que suas excelências resolvessem se aventurar
no improviso. Como o tal dispositivo ainda não foi inventado – ou, caso
exista, encontra-se constitucionalmente indisponível – sobrou para os assessores presidenciais dizer ao presidente dos Estados Unidos para não
repetir o termo “Cruzada” em seus pronunciamentos, a não ser que desejasse de imediato contar com a repulsa de boa parte dos milhões de muçulmanos do mundo, eliminando qualquer solidariedade inicial pelas vítimas inocentes produzidas pelo 11 de Setembro.
A opção adotada acabou sendo “Guerra contra o terrorismo”, que passou
a ser martelada na mídia insistentemente, justificou a guerra no Afeganistão, a invasão do Iraque, as prisões de Abu Graib, Guantanamo e os
cárceres clandestinos da CIA especialmente na Europa e no Paquistão
e um polpudo aumento do orçamento de defesa dos Estados Unidos.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006
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O
INTELIGÊNCIA
s episódios históricos, especialmente os momentosos como é o caso das Cruzadas, têm o
hábito de jamais desaparecer da memória coletiva sem deixar vestígios. Assombram as gerações futuras
como uma lembrança nem um pouco vaga de ofensas, crueldades e abusos desmedidos. E nesse cenário
específico, as duas culturas, por meio da menção de meras palavras – porém recheadas de robustos significados – são capazes de causar mal-estar recíproco imediato. Quando os ocidentais se deparam com o termo
Jihad, imediatamente o associam a Guerra Santa, ao fanatismo religioso e a comportamentos extremados
vinculados a obscurantismo. Pouco importa o denodo dos especialistas tentando explicar que, a princípio, o
conceito de Jihad tem sua relevância no sentido de uma luta interior que o crente deve travar para alcançar
a “fé perfeita” e assim concretizar sua mais absoluta submissão à vontade de Deus – pois Islã, como todos
sabemos, significa “submissão”. Este seria, a “Jihad Maior”, um encontro eminentemente pessoal com a fé.
Existe ainda, a “Jihad Menor”, esse, sim, o esforço que os muçulmanos devem empreender para levar a
mensagem de Deus para aqueles que a desconhecem.
Contudo, os povos do Ocidente só conseguem perceber a Menor, não dando a mínima importância para a
Maior. Assim, às mentes do senso comum ocidental e muçulmano, o termos “Jihad” e “Cruzada”, causam
idênticos sentimentos de sobressalto e hostilidade. Não há dúvida que auxiliam a alimentar o “choque de
civilizações” mencionado faz uns 25 anos com algum estardalhaço por Samuel Hutington e, de um modo ou de
outro, servem como justificativa para dar suporte aos grupos políticos radicais, ditos fundamentalistas, que
tentam convencer os povos islâmicos a levantarem-se contra seus próprios governos, acusados de infiéis e de
falsos muçulmanos, que contam com o apoio dos “cruzados ocidentais” – idéia inevitavelmente presente nos
comunicados de Osama Bin Laden, por exemplo. Segundo essa tese, o mundo, incluindo o Islã, estaria
prisioneiro de uma nova jahilyya, palavra que designa o “estado de ignorância” em que vivia a humanidade
antes da difusão da mensagem de Deus sussurrada pelo anjo Gabriel junto ao ouvido do profeta Maomé. A
jahillya estaria então de volta, e a razão de as coisas não irem bem para os muçulmanos nos últimos tempos
é precisamente causada por este afastamento e esquecimento de Deus.
90 ENTARDECER
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INTELIGÊNCIA
O Islã está em toda a parte. A última guerra travada no Sul do Líbano, causou surpresa para muitos
brasileiros ao se aperceberem a quantidade de conterrâneos que residem ou mantêm fortes laços com sua
velha terra. O governo do Brasil, mesmo dispondo de parcos recursos, não fugiu à sua responsabilidade e
prestou toda a ajuda possível a esses cidadãos. Muitos deles são muçulmanos. Porém, ainda que saibamos
que existem comunidades islâmicas em todos os países civilizados do planeta, lembremos que a totalidade
das nações majoritariamente islâmicas se localiza no Terceiro Mundo. Tarik Ali, escritor paquistanês, dotado
de adequado estilo literário e com muitas de suas obras publicadas no Brasil, ressalta insistentemente a
presença de um forte sentimento de humilhação disseminado entre as massas dos países muçulmanos em
relação ao Ocidente. O triunfo europeu que se consolidou em fins do século XVIII e ao longo do século XIX,
construiu o conjunto de situações político-econômicas que materializou a oportunidade de uma tutela ocidental sobre as velhas terras do Islã.
Para os muçulmanos, de nada adiantou invocar as glórias de seu passado brilhante, a superioridade de
seus poetas, a certeza da veracidade de sua religião revelada. Superados pela tecnologia, economia, máquinas e capacidade implacável de gerenciar a morte e a destruição em grande escala da parte dos dispositivos
militares dos potentados ocidentais, durante boa parte da era contemporânea, viram-se relegados a mais
dura insignificância política. As tentativas de reação, levadas a cabo após o fim da Segunda Guerra Mundial
com os movimentos de descolonização e as lutas de libertação nacional, não obraram ainda em anular as
diferenças e as vantagens materiais do Ocidente desenvolvido. Não obstante alguns países árabes e o Irã
“boiarem” em um mar de petróleo e “flutuarem” em meio a densas nuvens de valioso gás natural, os
processos de independência nacional e modernização desses países não libertou seus povos da pobreza e do
atraso – na verdade, em alguns lugares a situação até piorou. Dessa maneira, o tal sentimento de humilhação
descrito por Tarik Ali persiste impávido. O discurso que atribui aos “cruzados ocidentais” importantes fatias
de culpa na eternização desse estado de coisas, continua desfrutando de imensa popularidade.
É por isso que para muitos muçulmanos, a política americana, a cupidez alimentada pelo petróleo, a
invasão do Iraque, Israel, a globalização, a postura “dois pesos, duas medidas” da ONU são interpretadas
como “farinha do mesmo saco”. Vive-se no seio de um sistema internacional firmemente alicerçado numa
“aliança cruzado-sionista” que tutela cruelmente os países do Terceiro Mundo e, entre eles, as terras
muçulmanas. Obviamente que podemos considerar uma avaliação como essa como uma espécie de delírio,
fruto de manipulação política ou de um entendimento exageradamente parcial dos acontecimentos. O que
não se pode negar é a popularidade deste tipo de ponto de vista. Ele predomina nos bazares de todo o Oriente
Médio, no bate-papo após as orações nas mesquitas e, até mesmo, nas palavras desaforadas proferidas
contra as autoridades em meio a uma das espetaculares bebedeiras do ator-diretor Mel Gibson.
A nossa é uma história de como as coletividades trabalham referências históricas à luz de suas questões
e inquietações hodiernas. Isso evidentemente não é uma novidade, mas creio que pode nos ensejar um
exercício de algum modo esclarecedor. Os muçulmanos, especialmente os árabes-muçulmanos, em face das
suas agruras da modernidade, imaginando modalidades possíveis para encerrar seu longo período de humilhação, sonham com Hattin.
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os dias 3 e 4 de julho de 1187, num lugar ao Norte da Palestina denominado “os Cornos de
Hattin”, o exército do reino latino de Jerusalém, tendo à frente o rei Guy de Lusignan, foi fragorosamente
derrotado pelas forças muçulmanas combinadas do Egito, Síria e Mossul lideradas pelo sultão Saladino. A
vitória de Hattin foi um episódio decisivo para pôr fim a uma humilhação que durava 88 anos, quando em 1099,
Godofredo, duque da Baixa-Lorena, liderara o assalto e a tomada da cidade santa de Jerusalém, consolidando
a permanência dos Estados latinos – o reino de Jerusalém, o condado de Trípoli, no litoral do atual Líbano, o
principado de Antioquia e o condado de Edessa – no território da então chamada Grande Síria. A Primeira
Cruzada fora vitoriosa porque chegara ao Oriente num momento de grave divisão intestina do mundo islâmico. O poder do califa sunita de Bagdá tornara-se meramente formal; a força militar dos turcos de seldjuk
fenecia; o califado fatímida (xiita) do Egito se encontrava em vertiginosa decadência; os emires da Síria,
divididos, lutavam entre si semelhantes a escorpiões danados, visando exclusivamente a assegurar seus
parcos nacos de poder.
Em Hattin, 88 anos depois, foi possível graças a divisões muito parecidas que começaram a se sedimentar
no campo latino e, de acordo com os cronistas, em virtude da notável engenharia política do sultão Saladino.
Quando os árabes, hoje em dia, sonham com Hattin, de imediato, sonham também com um novo Saladino.
Saladino pertencia a um clã guerreiro curdo, os Ayyúbidas, castelãos de Tikrit, que serviam aos poderosos
chefes militares turcos, os atabegs de Mossul, especialmente ao grande Nur al-Din. No ano provável de seu
nascimento, 1138 d.C, recebeu o nome de Yûsuf, que entrava na composição do nome completo, Salah al-Din
Yûsuf bin Ayyub. É interessante lembrar que quando o presidente do Iraque, Saddam Hussein, tentava incorporar “contornos saladínicos” à sua pessoa, a propaganda governamental insistia em reafirmar que o presidente nascera na mesma cidade que fora o berço de Salah al-Din, Tikrit. Naturalmente, o fato de Saddam ser
árabe e do antigo herói ser de procedência curda era convenientemente deixado de lado.
Muito embora tenha nascido no Curdistão, logo o clã de Ayyub, seguindo as ordens de seus suseranos,
transferiu-se para Damasco, carregando armas, bagagens e toda a sua prole, incluindo Saladino. Os cronistas
afirmam que mais do que um curdo, Saladino sentia-se um verdadeiro damasceno, pois foi nessa cidade
antiga e famosa que passou boa parte de sua infância, adolescência e recebeu sua educação. Como membro
do clã Ayyub, Saladino mereceu as tintas de uma educação aristocrática. Antes de mais nada, aprender a ler
e escrever para ser familiarizado com a Revelação Divina contida no Corão. O ensinamento religioso, o
detalhado conhecimento sobre os conteúdos do “livro dos livros, era imprescindível. Ao que tudo indica, uma
das virtudes de Saladino era sua devoção religiosa. Seus apologistas apreciam propalar que, mesmo sendo
religioso e observador estrito dos rituais muçulmanos, Saladino jamais dera guarida para qualquer tipo de
fanatismo. A sinceridade e seriedade com que lidava com os assuntos da religião serviam de esteio para sua
liderança e, especialmente, sua popularidade.
A equitação não podia se ausentar no currículo de um futuro emir. Embora não houvesse nada de errado
com os pacatos e resistentes camelos, os aristocratas do Islã, em todas as épocas, amavam seus cavalos.
Cobriam os animais das mais tocantes atenções, atentos à sua alimentação, ao estado dos cascos e patas e
às condições das estrebarias. Na literatura islâmica medieval, é muito freqüente a menção ao modo pelo qual
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a aristocracia era entusiasta do jogo de pólo. Jogar pólo era uma maneira viril e divertida de treinar equitação.
Como o gosto pela atividade era vivamente difundida entre a nobreza damascena, podemos imaginar o jovem
Saladino entretido em animadas partidas de pólo.
Mas, com todo o deleite que a equitação poderia causar, montar cavalos era acima de tudo uma atividade
de preparação para a guerra. Diferentemente dos cavaleiros ocidentais, que usavam suas montarias – de
preferência, os grandes garanhões de batalha – para o choque, os muçulmanos eram treinados no que era
chamado de “estilo de guerra dos partas”. Os partas, que na antiguidade controlavam a velha Pérsia e parte
do Iraque, adotaram para si a modalidade de combate de cavalaria dos povos das estepes, tais como os hunos,
os turcos e os mongóis. Montando cavalos pequenos e velozes, usando blindagem corporal leve, enfatizavam
a velocidade, e não o choque. O método de luta parta utilizava a combinação mortal do cavaleiro a disparar
do alto de sua cela setas por meio de um pequeno, porém certeiro e resistente arco compósito. Evitavam o
ataque no centro da linha inimiga, dando preferência a acometer pelas alas. Disparavam quando chegavam no
alcance das setas, disparavam novamente no momento que estancavam o cavalo para dar a volta e, finalmente, disparavam uma vez mais quando começavam a recuar – este último, um tiro particularmente difícil, pois
significava um disparo com o cavaleiro com o tronco virado para trás na cela. Após terminada a correria e
rodopio, reagrupavam para acometer de novo. A intenção era dissolver a coesão do inimigo, atarantando-o
com uma chuva ininterrupta de setas mortais. Uma vez disperso, os cavaleiros podiam atacar com lanças e
espadas, contando com a ajuda de sua própria infantaria.
O leitor há de imaginar que o espetáculo de três ou quatro linhas, cada uma delas com centenas de
cavaleiros armados com arco compósito, evoluindo e disparando organizadamente, deveria ser algo admirável de se assistir – especialmente se não estivermos entre os alvos do ataque. A luta com espadas, lanças,
dardos e o difícil manejo do arco compósito devia constar na lista de aprendizado de um jovem aristocrata
como Saladino.
A trilha que Saladino seguiu para conquistar a liderança política e destacar-se como um adversário
competente do domínio latino na Grande Síria não foi aberta exclusivamente por ele. Antes dele, Zengi, o
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atabeg turco de Mossul e seu filho Nur al-Din haviam se destacado como terríveis adversários dos Estados
cruzados. Zengi, durante seu período, contivera vitoriosamente qualquer expansão dos cruzados à custa de
território controlado pelos muçulmanos. Nur al-Din, por seu turno, foi decisivo em provocar o fracasso da
Segunda Cruzada e, no ano de 1149, derrotou decisivamente a soberba cavalaria cristã do principado de
Antioquia na batalha de Inab. Raymond de Poitiers, o príncipe de Antioquia, foi morto na refrega. Nur al-Din
enviou sua cabeça como um regalo ao califa em Bagdá. Tudo indica que tanto Zengi quanto Nur al-Din
compreenderam o prestígio político, celebridade e fama que amealhavam no mundo muçulmano ao assumirem a postura de campeões da fé e líderes da Jihad contra os reinos latinos do Oriente. Na condição de turcos,
jamais poderiam esperar alcançar o título supremo de califa, mas certamente cabia ao califa titular reconhecer seus esforços como Defensores dos Crentes, atribuindo-lhes o título de sultão, isto é, comandante militar
– uma palavra em todo caso de origem turca.
A carreira de Saladino como líder político e guerreiro se iniciou à sombra de seu tio, Shirkuh. Uma das
facções do Egito fatímida, incapaz de obter a vitória sobre seus adversários em meio a uma longa crise
palaciana, pede auxílio a Nur al-Din. Este resolve intervir, enviando uma força de aproximadamente sete mil
mamelucos e cavaleiros turcos liderados por Shirkuh. Saladino acompanhou o tio como um de seus ajudantes
de campo. Contava 28 anos de idade.
A interferência dos enviados de Nur al-Din contribuiu decisivamente para pôr um fim às lutas internas
fatímidas. Mais do que isso, encerrou de vez o próprio califado xiita, substituindo-o por um novo governo,
tendo Shirkuh como vizir, Nur al-Din como sultão e reconhecendo a supremacia do califa sunita de Bagdá, isto
é, uma vez convidadas, as raposas não tardaram a se assenhorar do galinheiro.
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INTELIGÊNCIA
S
hirkuk, porém, susteve as rédeas do poder no Egito por pouco tempo. Com sua morte, foi
substituído no vizirato por seu sobrinho, Saladino. A regência do Egito em nome de seu senhor, Nur al-Din, foi
a primeira experiência de Saladino como governante de fato. O novo vizir eliminou taxas abusivas que eram
cobradas pelos velhos vizires fatímidas. As costumeiras, contudo, determinou que fossem escrupulosamente
recolhidas ao tesouro. Conta-se que dava o exemplo, comportando-se como um governante austero e sério.
O fausto das cortes orientais, o luxo descrito nos contos das mil e uma noites não eram de seu gosto. Vestiase com simplicidade, jamais ostentava jóias, apreciava boa comida, mas nada de extravagâncias em sua
mesa. Observava zelosamente os rituais islâmicos da oração e presenteava os pobres que se aglutinavam nas
suas portas com a esmola regulamentar.
Logo começou a administrar o Egito como se Nur al-Din não existisse. Esse poderia ser um passo perigoso,
mas Saladino tinha lá suas cautelas. O braço de seu senhor estava longe, e os mamelucos e turcos do exército
de Nur al-Din que vieram para o Egito com Shirkuk há muito recebiam as tâmaras e as dádivas diretamente
das mãos de Saladino. O Egito era rico, e quando gozava de bom governo, tornava-se mais proveitoso ainda.
Isso permitia que Saladino enviasse com regularidade presentes para os emires do norte – da Síria, do Iraque,
Ásia Menor, da Arábia e do Iêmen, não deixando de cumular o califa de Bagdá de dádivas para manifestar seu
respeito.
Quando, no ano de 1174, Nur al-Din veio a falecer, Saladino já se achava na prática como sultão do Egito.
O herdeiro do velho líder, al-Salih, era uma criança. Caso lhe fosse permitido chegar à idade adulta, os
Estados em torno de Mossul, Damasco, Alepo e os territórios da Ásia Menor lhe forneceriam poder suficiente
para contestar a posição de Saladino no Egito. Mas o pobre al-Salih nada mais era do que uma criança. Sem
emires poderosos a sustentar sua posição, dificilmente herdaria alguma coisa. Saladino, nesse episódio,
demonstrou todo o seu senso de oportunidade. Tal como um raio, reuniu seus guerreiros e partiu em direção
ao norte. Contando com a retaguarda dos recursos econômicos do Egito, angariou o apoio de vários emires
nortistas contra o herdeiro. Nos anos seguintes, uma a uma, as cidades de Mossul, Damasco e Alepo cairiam
em suas mãos. Estendeu seu domínio sobre todos os territórios que antes eram controlados pelos seu antigo
senhor. Ninguém mais teria notícias do paradeiro de al-Salih, e foi assim que se encerraram os dias da
gloriosa casa de Zengi.
Quanto ao califa de Bagdá, nenhuma outra saída lhe restava a não ser reconhecer formalmente o poder
conquistado por Saladino. Ao mesmo tempo, o novo sultão assumiu a responsabilidade quanto à dura luta
contra os Estados latinos do Oriente. Uma olhadela no mapa revela que os cruzados estavam em maus
lençóis. Seus Estados se encontravam totalmente envolvidos por territórios controlados por Saladino. As
relações entre os adversários era sinuosa. Escaramuças e hostilidades eram pausadas por longos períodos de
trégua. Ao longo do período, Saladino comemorou êxitos mas também amargou algumas derrotas.
Mas o rei de Jerusalém e seus vassalos não dispunham de força suficiente para desafiar Saladino. Nesse
sentido, a tática mais correta era a de cair na defensiva, confiando que a integridade de seus domínios fosse
garantida pelo controle da grande rede de castelos. A forças móveis só deveriam ser usadas com o fito de
socorrer fortalezas assediadas pelo inimigo. Saladino, de seu lado, só atacaria quando reunisse poder sufi-
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INTELIGÊNCIA
cientemente vasto para tanto. Uma guerra geral contra os Estados cruzados implicava um sem-número de
assédios a castelos, obtenção de máquinas de guerra e capacidade financeira para manter um grande
exército mobilizado por um longo período. Ao mesmo tempo, o sultão precisava de forças adicionais para
manter seus vastos domínios sossegados, o que nem sempre era fácil. Via-se assim impedido de empregar
todo o seu poder contra os cruzados.
Para Saladino, tudo se tornaria mais simples se conseguisse atrair o exército de Jerusalém para uma
batalha em circunstâncias que lhe fossem favoráveis, destruí-lo, capturar os principais próceres da nobreza e,
se possível, o próprio rei. Uma vez eliminado o exército e os dignatários, as cidades cairiam em suas mãos com
muito mais facilidade, poupando seus recursos de sustentar sítios dispendiosos. Em outras palavras, o sultão
precisava de um rei de Jerusalém muito desastrado, dotado de uma incompetência militar escandalosa e que
atuasse de modo totalmente inverso aos seus interesses e bom senso. Caso Saladino tenha orado por isso,
encontrou a resposta para suas preces na figura do rei Guy de Lusignan, coadjuvado pelo nobre “trânsfuga”
Raymond de Chantillon.
A crise política que produziu a conjuntura cujo ponto culminante foi a batalha de Hattin foi obra das
trapalhadas de Raynald de Chântillon, o senhor de Kerak. Chântillon havia se transferido para a Terra Santa
como membro da Segunda Cruzada. Era valente e um competente líder de homens. Abriu caminho na direção
ao topo à custa de intrigas e na ponta de sua espada. Mas mesmo seus êxitos só aconteciam após muita bulha
e confusão. Seduziu a princesa de Antioquia e com ela casou-se secretamente. O matrimônio foi cancelado,
pois acontecera sem a autorização do rei Balduíno III de Jerusalém. Acusou o imperador bizantino de não
pagar-lhe uma quantia em dinheiro prometida em recompensa por seus serviços militares. Como compensação, decidiu invadir Chipre. No entanto, faltava-lhe dinheiro para a empreitada. Resolveu solicitar fundos ao
rico patriarca latino de Antioquia, Aimery de Limoges. O digno prelado recusou-se a colaborar. Chântillon
raptou o patriarca, arrancou-lhe as vestes, untou-o com mel e deixou-o exposto ao sol no topo da cidadela.
Após algumas horas de bronzeamento, Limoges decidiu ser razoável e abriu as algibeiras. Chântillon montou
sua expedição contra Chipre, submetendo a ilha à mais célebre e metódica pilhagem de sua extensa história.
Na volta, enquanto promovia o saque contra aldeias na Síria, descuidou-se e foi capturado pelos muçulmanos.
Aprisionado como refém em Alepo, suportou 17 anos de cativeiro, sendo finalmente resgatado pela fabulosa
soma de 120 mil dinares de ouro.
A longa prisão de modo algum abrandou seu temperamento. Obtendo a posse do poderoso castelo de
Kerak, situado ao Sul da Palestina, organizou uma frota com a finalidade de atacar os navios de peregrinos
que faziam a rota de Meca no Mar Vermelho. Atacou ainda cidades costeiras na Península Arábica. Propalava
aos quatro ventos que seu plano era o de organizar uma expedição contra a própria Meca, pilhar seus
tesouros e incendiar a Caaba. A ousadia desmedida de Chântillon não o impedia e contar com o apoio de
aliados poderosos entre os senhores francos do Oriente, ainda que não fosse difícil de imaginar que as
conseqüências de seus atos poderiam atingir a todos. Kerak era uma base perfeita para interceptar as
caravanas que cruzavam a rota entre o Egito e a Síria. Durante o período de uma trégua firmada entre
Saladino e Guy de Lusignan, no ano de 1186, os cavaleiros de Kerak quebraram o trato atacando uma
caravana particularmente rica. Saladino solicitou que Chântillon fosse punido, porém, seus aliados se opuseram violentamente e Lusignan, um rei fraco, que costumava seguir sempre a última opinião que ouvia ou quem
gritava mais alto, furtou-se a cumprir seu dever e punir Chântillon.
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INTELIGÊNCIA
A
trégua estava definitivamente rompida. Retomando as hostilidades no ano seguinte,
Saladino reuniu seus emires, mamelucos, curdos e arqueiros turcomanos, invadindo a Galiléia, impondo
assédio contra a cidade de Tiberíades. Ordenou ainda que os beduínos atacassem os campos controlados
pelos senhores latinos, difundindo insegurança na retaguarda do adversário. O sultão levantara um exército
excepcionalmente forte para aquela campanha. Ao todo, segundo os cálculos mais prováveis, seguiam seus
estandartes 45 mil homens: 12 mil cavaleiros profissionais – mamelucos, turcomanos e curdos, sendo o resto
constituído de irregulares beduínos e infantaria. Saladino não esperava que os senhores latinos saíssem em
campo para enfrentar um exército desse porte. Contentava-se em tomar Tiberíades e melhorar sua posição
estratégica no norte. O mês de junho de 1187 findava e o verão seguia tórrido.
Para a imensa surpresa do sultão, o rei de Jerusalém resolvera fazer precisamente o que não devia.
Proclamara um arrière ban – um chamamento geral de todos os vassalos às armas. Ao exército de Jerusalém
juntaram-se as forças do condado de Trípoli, do principado de Antioquia, das cidades da costa e dos feudos de
Outrejourdan. As ordens militares religiosas dos cavaleiros do Templo e de São João do Hospital deixaram
pequenas guarnições em seus castelos, reunindo-se ao exército com todos os seus cavaleiros e homens-dearmas. O rei e os grandes senhores alugaram também o serviço de numerosos turcopolos, guerreiros mercenários do Oriente equipados ao estilo parta. O Rei Guy tinha consigo a força militar total dos Estados latinos:
por volta de 1.200 cavaleiros pesados, 4.000 cavaleiros ligeiros (homens-de-armas e turcopolos) e por volta de
15.000 a 18.000 infantes (entre lanceiros, arqueiros e besteiros). Por esses números, Saladino desfrutava de
uma vantagem de 3 x 2 em relação aos senhores latinos.
Apesar do verão abrasador, o exército partiu na direção do norte para levantar o sítio contra Tiberíades.
Raymond, conde de Trípoli, comandava a vanguarda; o rei liderava o centro onde estava o núcleo do exército
de Jerusalém; Raynald de Chântillon e Balian de Ibelin estavam à frente da retaguarda junto com as ordens
militares, a gente do senhor de Ibelin e os cavaleiros de Kerak. A infantaria marchava nas alas do exército,
com o intuito de proteger com seus escudos os grandes cavalos, pois era hábito dos muçulmanos realizarem
sortidas repentinas disparando flechas a distância para ferir as montarias do inimigo. Junto com o exército,
como uma garantia de proteção divina e vitória, seguia a Verdadeira Cruz.
Os batedores de Saladino não perdiam de vista os movimentos do exército inimigo. Ao saber de sua
aproximação, deixou uma pequena tropa mantendo Tiberíades bloqueada e marchou ao encontro do inimigo.
Lusignan escolheu muito mal o lugar para seu acampamento. Ordenou erguer as tendas próximas a um poço
seco. Dominava sua posição a colina de Hattin, uma elevação rochosa de 30 metros de altura, encimada por
dois cumes. O povo da aldeia próxima chamava o lugar de “os Cornos de Hattin”. Saladino acampou junto a
um vale verdejante. Ao preparar seu estratagema de batalha, elegeu como a chave do combate o problema do
acesso às fontes de água. Seu exército tinha toda a água que precisava, mas Lusignan, que escolhera
desastradamente seu campo, não.
O que se seguiu, no alvorecer abrasador do dia 4 de julho de 1187, foi um combate no qual o rei de
Jerusalém e seus vassalos estavam derrotados antes mesmo de começar. Os muçulmanos dominavam o
campo com seus velozes cavalos. Seus arqueiros impediam que os sedentos latinos alcançassem a água doce
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INTELIGÊNCIA
do mar da Galiléia. Saladino, de seu posto de comando, estava atento a tudo. Inquietava-se quando percebia
que os cavaleiros cristãos se agrupavam para uma carga. Dias antes, advertira todos os seus emires e
comandantes de unidade para prestarem atenção. A ordem era de não enfrentar o choque. Deviam dispersar,
sair da frente, deixando que os cavaleiros pesados carregassem sobre o vazio. Deviam, após dispersar,
rodopiar as montarias e contra-atacar pelas alas, mirando suas setas nos grandes cavalos de batalha. Uma
vez a pé, com o calor do sol e a agonia da sede, os pesados cavaleiros cristãos tornavam-se presa fácil para
a leve infantaria muçulmana que enxameava por todo o terreno. Com o passar do dia, o calor piorando e o
exército cristão desmoralizado pela sede, os guerreiros de Saladino e o próprio sultão, deixaram de lado a
cautela e partiram para o confronto desejando resolver a peleja. Passaram ao ataque geral, visando a atingir
o cimo da colina, onde ser erguia o pavilhão vermelho do rei de Jerusalém. Para o filho de Saladino, al-Afdal,
Hattin era sua primeira batalha. Estando o tempo todo ao lado do pai, deixou-nos um vívido relato do que se
passava naquele terrível dia:
“Depois de o rei franco se retirar para o cimo da colina, os seus cavaleiros fizeram uma elegante
investida e repeliram os muçulmanos sobre meu pai. Observei a sua consternação. Empalideceu e deu
repelões na barba, para em seguida avançar velozmente gritando: ‘Ataquem o diabo!’ Portanto, os
nossos homens caíram sobre o inimigo, o qual se retirou colina acima. Quando vi os francos fugirem,
gritei com alegria: ‘Expulsamo-los!’ , mas eles voltaram a investir e repeliram os nossos homens de
volta para onde meu pai se encontrava. Mais uma vez, este exortou os nossos homens a avançar, e
mais uma vez, estes forçaram o inimigo a subir a colina. De novo gritei: ‘Expulsamo-los!’. Mas meu pai
voltou-se para mim e disse: “cala-te. Não os derrotamos enquanto aquela tenda ali estiver de pé.”
Nesse momento a tenda caiu por terra. Então meu pai desmontou, curvou-se para o solo, dando
graças a Deus, com lágrimas de júbilo.“
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INTELIGÊNCIA
O
exército de Jerusalém jazia destruído e seu rei capturado. Muitos cavaleiros haviam conseguido abrir caminho e fugir. A maioria, no entanto estava morta, ferida ou capturada. Dizem os cronistas que
Saladino sacou sua espada e executou pessoalmente Chântillon, o senhor de Kerak, que caíra prisioneiro.
Para ele, Raynald de Chântillon não passava de um bandido. Não havia como perdoar que este, sequer, tenha
pensado em conspurcar Meca. Todos os cavaleiros capturados foram poupados para resgate, menos os
templários e os hospitalários. Eram detestados pelos muçulmanos e foram devidamente passados a fio de
espada. Nos meses que se seguiram, Tiberíades, Acre, Nablus, Toron, Jafa, Sidon, Beirute e Jabail caíram nas
mãos do Islã. Jerusalém também não resistiu. Mas diferentemente de Godofredo, Saladino aceitou a rendição
da cidade e permitiu que quem desejasse partisse, levando os pertences que pudessem carregar. Primeiro
exigiu resgate. Depois, simplesmente deixou que se fossem. Não foi coagido a isso por causa de uma resistência brilhante e corajosa da cidade. Saladino agiu desse modo porque quis, e nada mais. Poderia ter executado
quem desejasse, vingando assim a chacina de antanho. Mas simplesmente não quis.
Os problemas entre os muçulmanos e os cristãos não terminariam com a momentosa vitória de Hattin.
Saladino cometeu o erro de não tomar Tiro, permitindo a manutenção de uma cabeça-de-ponte cruzada na
região. Passou também maus momentos enfrentando as forças da Terceira Cruzada, cujo maior guerreiro foi
Ricardo Coração de Leão. O sultão viria a falecer em 1193, contando com aproximadamente 55 anos de idade.
Seu corpo jaz até hoje em sua cidade favorita, Damasco.
Em julho de 1920, sua memória foi incomodada por uma tolice arrogante, tipicamente gaulesa. O general
Henri Gouraud ao tomar posse de Damasco em nome da França, visitou o túmulo de Saladino, junto à Grande
Mesquita, e exclamou:
¨Saladino, nós voltamos. Minha presença aqui consagra a vitória da Cruz sobre o Crescente.
Teriam os muçulmanos sido justificadamente acometidos pela fúria? Creio que seria desnecessário. Esse
foi um dos momentos em que a França foi apequenada, envergonhada mesmo por um de seus generais. Os
feitos de Saladino não podem ser empanados pela tagarelice desrespeitosa de um mero general. E muitos
muçulmanos continuaram sonhando com Hattin.
[email protected]
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102 ALVORECER
LEONARDO BRAGA
OFICIAL-COMANDANTE SUBMARINISTA DA MARINHA
O ACIDENTE
BRASILEIRO
&
o fundamentalismo
português
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I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
“As armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana1,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.”
(CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas – Canto I;
Universidade de São Paulo – Biblioteca Virtual
do Estudante Brasileiro)
104 ALVORECER
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
N
o ano da graça de 1119, nove homens
fundaram uma pequena ordem religiosa católica devotada à proteção dos peregrinos que se
dirigiam à Jerusalém. A tarefa era ingrata – do
porto de Jaffa, no Mar Mediterrâneo (atualmente
território de Israel), até a cidade santa, as estradas eram infestadas de inimigos da cristandade, dispostos a pilhar e a enviar sem demora
os devotos para o reino dos céus. A força das
armas era necessária e assim a Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão se pôs a construir, ao passar dos anos, uma
longa história de enfrentamento contra os mulçumanos, onde fosse necessário.
Durante os dois séculos seguintes eles foram
admirados, invejados e respeitados não só pelas ações em combate como também pela habilidade em reunir consideráveis recursos para o
financiamento das cruzadas. Porém, no século
XIV, eles pereceram, subjugados pela conspiração e pela intriga pacientemente preparadas no
seio da Igreja. Na França do Papa Clemente V a
Ordem foi dissolvida pelo Concílio de Viena, e
seus membros julgados e condenados por heresia. Talvez você os conheça pelas telas do cinema ou pelos romances que se acotovelam nas livrarias, falando sobre o tesouro do Rei Salomão
ou pela busca do cálice de Cristo. Talvez você os
conheça pelo nome mais popular – Cavaleiros
Templários.
A despeito da universalidade da decisão, no
pequeno reino de Portugal, a perseguição não
foi levada a termo. No século XII os pobres cava-
leiros estiveram ferozmente engajados na expulsão dos mulçumanos, estabelecendo um vínculo visceral com a própria existência do país. Este
feito foi um dos menos famosos no currículo dos
monges guerreiros, mas permitiu, com a condescendência do Rei D. Diniz, a perpetuação da
espécie com um novo nome – os Cavaleiros da
Ordem de Cristo.
Ao amanhecer do século XV, quase cem anos
mais tarde, a Ordem de Cristo pôs-se a perpetuar sua cruzada num terreno bem diferente –
a água. Pelas mãos de seu Grão-Mestre, o Infante Dom Henrique, os portugueses foram liderados numa empreitada de altíssimo risco e retorno mais que duvidoso. Utilizando os recursos financeiros da Ordem, Henrique, filho do
rei Dom João, reuniu junto à localidade de Sagres toda a sorte de gente do mar. Lá, a sinergia
entre astrônomos, cartógrafos, marinheiros e
artesãos rendeu-lhe a qualificação necessária
para enfrentar o Atlântico, conquistando importantes ilhas oceânicas e estabelecendo entrepostos comerciais na costa ocidental da África (por
onde Portugal passou a escoar parte do comércio do Saara e a obter ouro em pó, o que lhe permitiu cunhar suas primeiras moedas de ouro).
Sua empreitada ultramarina, ao contrário do
que versam as cartilhas escolares, foi decerto
motivada por uma forte convicção religiosa – um
compromisso quase messiânico de perpetuar a
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guerra contra o Islã. Dentro do contexto português, de setecentos anos de ocupação muçulmana e de raivosos combates de cunho religioso,
tal interpretação é perfeitamente aceitável especialmente se observarmos as dificuldades
colossais envolvidas na exploração de um mar
desconhecido e recoberto de lendas e histórias
de mau agouro. “Navegar é preciso, viver não é
preciso” é talvez uma expressão perfeita de fanatismo, e não de destemor aventureiro.
Consciente das limitações do poderio militar cristão, o infante e seu pai logo teriam percebido que expedições para a reconquista da
Terra Santa eram, a esta altura, inviáveis sonhos do passado. Mas o espírito cruzado permanecia vivo e era preciso a ele dar vazão. Talvez por isso, na busca por alternativas exeqüíveis, os olhos lusitanos tenham se fixado, tão
obsessivamente, na obscura lenda de Preste
João.
Segundo informações rarefeitas de mercadores e diplomatas do Oriente Médio, deveria haver um exuberante reino cristão além dos domínios mulçumanos. Governado por um rei-sacerdote (Preste João), este reino em tese serviria a Portugal como valioso aliado na luta contra os infiéis. Sua localização era contudo im-
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INTELIGÊNCIA
precisa e a sua busca demandava a organização
de grandes expedições marítimas e terrestres
às Índias (com a conotação que a palavra tinha
no século XV – qualquer lugar da África Central ao Extremo Oriente). Tratava-se de uma
empreitada suicida. Os meios adequados e as
técnicas necessárias nem sequer existiam. Mas
havia a fé, que para o Infante Dom Henrique
parecia bastar.
As embarcações, as técnicas de navegação e
as táticas de combate existentes não atendiam
as exigências do bravio Atlântico. Destinavamse ao cenário do mar Mediterrâneo onde se desenhava a vasta teia de rotas comerciais que
animava o mundo ocidental. As especiarias eram
os produtos centrais da expansão econômica e
percorriam o mais longo caminho. Da Índia e
do Oriente Médio seguiam por caravanas até os
portos do Egito e da Síria – dali, pelo mar, chegavam até a Península Itálica. Uma vez na Europa, estes produtos eram redistribuídos por intermédio de centros regionais, como Sevilha,
Lisboa, Londres, Amsterdã e Hamburgo. Os consumidores finais acabavam por adquirir itens
que vinham literalmente de “não sei onde”, pois
afinal, mais da metade do planeta ainda estava
para ser descoberta e as regiões conhecidas fora
da Europa eram pobremente mapeadas.
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
V
eneza e Gênova, hábeis na proteção de seu
tráfego mercante e dispondo de privilegiada
posição geográfica, se estabeleceram como os
grandes atravessadores da Europa. Os altos preços praticados garantiam generosas margens de
lucro e permitiam o acúmulo de mais riqueza,
utilizada também para o refinanciamento da
própria atividade marítima. Por décadas a fio
estas duas cidades disputaram em pé de igualdade o controle das rotas mediterrâneas, até o
que os turcos muçulmanos se constituíram como
a grande ameaça comum.
O uso da vela como propulsor único limitavase essencialmente aos navios mercantes e aos
navios de transporte de tropas. Armados à semelhança dos navios de guerra, estas naves
eram construídas de modo a dispor de bons recursos de defesa, capazes de lidar com a pirataria epidêmica da época, sem comprometer o espaço para a carga. O balanceamento adequado
entre estas duas características determinava o
sucesso ou a bancarrota dos mercadores.
A única embarcação especialmente projetada para expedições militares, em uso tanto por
cristãos quanto mulçumanos, era a galera. Feita de madeira e impulsionada por velas e remos, seu desenho permitia a operação em águas
rasas, bem perto da costa. A ausência de vento
não era problema – os remadores garantiam a
propulsão necessária e a conseqüente liberdade de manobra em batalha. Mas os músculos
humanos logo se fadigam e são inúteis em longas travessias.
Numa guerra de galeras o combate se dava
essencialmente entre as tripulações, começando quando os navios se encontravam ao alcance
das flechas. Seguia-se a abordagem, e logo os
conveses se transformavam em pequenas praças
de guerra flutuantes. Nas plataformas elevadas
na proa e na popa (chamados de castelos) a tripulação buscava refúgio para melhor combater
o inimigo que invadira o navio pela parte mais
baixa (a central). A vantagem, desconsiderando
a habilidade individual no manejo das armas,
estava ao lado do navio maior (porque a sua
borda era mais alta) e mais densamente tripulado (vantagem numérica no embate corpo-a-corpo). As ações táticas limitavam-se a bem manobrar para abordagem, para quebrar os remos
adversários ou para forçar o inimigo a mover-se
em águas rasas, onde haveria o risco de encalhe ou colisão com pedras e recifes submersos.
A introdução da artilharia pouco iria mudar
o modo de emprego das galeras dado que os primeiros canhões utilizados eram pequenos, de
curtíssimo alcance, e destinados essencialmente
a ferir a tripulação adversária – e não a provocar danos nos navios. O material utilizado para
a confecção das peças foi inicialmente o ferro,
enquanto os projéteis eram de pedra. A técnica
de construção, em estágio embrionário, proporcionava pouca resistência às peças, determinando o conseqüente uso de pouca pólvora nos disparos. Em decorrência os alcances eram reduzidos e havia ocasiões em que o canhão explodia ferindo ou matando sua guarnição.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 107
I N S I G H T
O uso de canhões pesados para sitiar e destruir fortalezas medievais estimulou a adoção
destas mesmas peças a bordo, incrementando o
poder combatente dos navios. Por certo era mais
fácil operar a bordo um canhão pesado do que
arrastá-lo por aí em estradas lamacentas sobre
rodas de carroça. O bronze, mais resistente, foi
adotado para fundição das peças. E os canhões
deixaram de lançar “pedradas” para disparar
projéteis maciços de ferro.
Ainda assim, os alvos não seriam os outros
navios. A nova artilharia embarcada fora concebida para destruir fortificações litorâneas, tal
como seus pares nos exércitos. O uso de um canhão pesado contra um alvo móvel era uma sofisticação que viria mais tarde, somente quando as embarcações fossem capazes de manobrar
com presteza.
As galeras pareciam se prestar bem para o
emprego de artilharia e se adaptavam perfeitamente à geografia do Mediterrâneo Oriental.
Utilizando trajetos curtos, parando nas ilhas ou
baías abrigadas do continente, iam avançando
longas distâncias em pequenos passos. Mas como
boa parte das embarcações litorâneas, elas não
se entendiam muito bem com mares agitados.
Boa parte da tripulação combatia também em
terra permitindo o desdobramento de forças
sem dificuldade. Uma pequena casta de profissionais a bordo era responsável pelo manuseio
efetivo das equipagens do barco, tais como velas, cabos e aparelhos de força. Com a adoção
dos canhões, armas vistas como altamente especializadas, juntaram-se a eles os artilheiros
na composição do grupo de autênticos homens
do mar.
108 ALVORECER
INTELIGÊNCIA
P
ara o guarnecimento dos remos toda sorte
de soluções foi adotada, dependendo da época e
da demanda por remadores. Homens livres quase voluntários, escravos comprados, prisioneiros de guerra e criminosos condenados sentaram-se nos bancos das galeras para dar-lhes
vida e movimento.
Para suportar a operação dos esquadrões de
galeras era preciso dispor de uma considerável
estrutura de apoio. Era preciso um “dar al-sina”,
expressão árabe que presumidamente deu origem à palavra “arsenal ”, denominação do complexo de instalações destinado à construção e
manutenção de navios.
Veneza apresenta um bom exemplo com seu
Darsena Arsenale, construído e ampliado ao
longo de mais de dois séculos a fim de permitir
à República lidar com a ameaça dos genoveses e
mais tarde dos turcos. Acredita-se que fora concebido para apoiar pelo menos vinte e cinco galeras e que contava com paióis de explosivos,
oficinas de cabos e velas, carpintarias, armazéns e com o Forni Pubblici – a padaria onde
era produzido um tipo especial de pão que alimentava as tripulações, o biscotti 1.
A navegação era essencialmente costeira,
conduzida pelos “práticos” ou pilotos, marinheiros (normalmente nativos), que conheciam por
experimentação a região por onde navegam. Eles
embarcavam durante o trecho de interesse e,
guiados pelos acidentes geográficos e por sondagens2, indicavam ao comandante do barco o
caminho a ser seguido.
I N S I G H T
Quando Pedro Álvares Cabral partiu de Lisboa em 9 de março de 1500, o projeto de Sagres
contava com mais de 80 anos de vida e um espírito surpreendentemente vigoroso. Portugal acumulara experiência e desenvolvera um cabedal
de conhecimentos náuticos de grande valor. O
reino encontrava-se na vanguarda tecnológica
do mundo ocidental e suas forças navais haviam
construído um jeito próprio para lidar com o
Atlântico e com as ameaças além-mar. Algo bem
distante do mundo das galeras mediterrâneas.
De fato, após inúmeras tentativas frustradas,
os portugueses encontraram um reino cristão
copta na África, do suposto Preste João – mas
não com a pujança que esperavam. As andanças, porém, trouxeram dividendos até então
inimagináveis e aí sim – os benefícios econômicos e a guerra comercial contra o Islã tornarse-iam os novos e principais propósitos de Lisboa. Pimenta, ouro, gente, canela ou pau-brasil
– pouco importa. Quase tudo o que era trazido
poderia ser vendido a bom preço, com lucros
extraordinários. E até mesmo a captura de escravos em pouco tempo se tornaria atividade
pouco dispendiosa e comum – não seria mais
preciso atacar os povoados para aprisionar os
aldeões. Na África de outrora os povos derrotados nas sangrentas guerras tribais eram vendidos aos portugueses pelos vencedores. Eram
africanos que vendiam os africanos. Melhor do
que os dias de hoje, onde os vencedores chacinam seus rivais, sem poupar idosos, mulheres
ou crianças.
INTELIGÊNCIA
Pela aplicação da violência, os esquadrões
lusitanos impuseram aos seus ditos parceiros
comerciais a proibição de negociar com os mulçumanos, conduzindo assim uma espécie de
“cruzada econômica”. Os povos mais fracos pouco ou nenhuma resistência ofereciam. Contra os
mais fortes o conflito era inevitável e a inferioridade numérica (natural para quem opera tão
longe de casa) era compensada pelo poder de
destruição da artilharia embarcada. De modo
pioneiro os portugueses evitavam a aproximação das embarcações nativas com o fogo dos canhões, prevenindo as tentativas de abordagem e
o desvantajoso combate corpo a corpo. Tal novidade tática estava explícita nas instruções emanadas por D. Manuel para a viagem de Cabral,
onde o descobridor do Brasil é orientado a evitar a aproximação de embarcações muçulmanas e a atirar contra o velame inimigo, a fim de
“tornar a guerra mais segura e com menores
perdas humanas em seus navios” 3.
As “bocas de fogo ” serviam também como
meio para intimidar as populações litorâneas
pelo bombardeio de seus vilarejos e instalações
portuárias. A credibilidade auferida por estas
demonstrações de força permitiu aos portugueses a venda de cartas de salvo-conduto. Tratava-se de um documento, adquirido mediante ao
pagamento de taxas, destinado a garantir proteção à embarcação portadora. Proteção, na verdade, contra os próprios portugueses, já que
antes da chegada dos europeus, a Ásia era pouco assolada pela pirataria.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 109
I N S I G H T
O padrão opressivo de conquista português,
legalmente amparado por várias bulas papais,
serviria de modelo para as potências européias
que se seguiriam. Segundo o respeitado trabalho de Charles Boxer, Roma estabelece de modo
inequívoco a cartilha do imperialismo europeu:
“As três mais importantes foram a Dum Diversas, de 18 de junho de 1452, a Romanus Pontifex,
de 8 de janeiro de 1544 e a Intercaetera, de 13
de março de 1456. Na primeira, o papa autoriza
o rei de Portugal a atacar, conquistar e submeter sarracenos, pagãos e outros infiéis inimigos
de Cristo; a capturar os bens e territórios a
eles pertencentes; a reduzi-los à escravidão perpétua e a transferir suas terras e propriedades
para o rei de Portugal e seus sucessores” 4. Espanhóis, holandeses, franceses e ingleses se fariam ao mar, cada um a seu tempo, apresentando às civilizações americanas e orientais a maior
das inovações do ocidente – o uso eficiente e sistemático da violência. A segunda bula louva as
conquistas do Infante Dom Henrique e lhe atribui a tarefa de circunavegar a África em busca
de povos que “segundo se diz, honram o nome
de Cristo ” 5 – uma clara referência à procura
por Preste João.
Não é tarefa fácil para os leitores do século XX
entender a magnitude da empreitada portuguesa.
Em especial nós, brasileiros, fomos impelidos pelo
ensino regular a entender como triviais as grandes navegações, desconhecendo os aspectos práticos, a dimensão humana e o forte cunho religioso,
capaz de mover os homens em direção a enormes
perigos, no limite da sanidade.
110 ALVORECER
INTELIGÊNCIA
Na verdade, antes de pensarmos em ações
de caráter militar, há uma longa estrada a ser
percorrida para que uma instituição privada
ou estatal se faça ao mar. É preciso dispor de
(ou contratar) homens habilitados, conhecedores
do ofício, minimamente organizados numa cadeia de comando. São necessárias embarcações
adequadas e entrepostos de suporte logístico
para apoiá-las com suprimentos, munição e manutenção. E, além disso, é fundamental deter a
capacidade de se orientar no mar (navegação) e
de compreender os fenômenos naturais que afetam o navio (meteorologia e hidrografia).
Os portugueses responderam de modo satisfatório a cada uma destas questões. Mas para
tal, desenvolveram e fizeram uso de duas ferramentas bem distintas – as expedições de exploração e as expedições comercial-militares.
As viagens de exploração tinham como propósito reunir dados sobre o regime de ventos,
correntes marinhas, contorno da costa, acidentes geográficos e entrepostos comerciais. Para
delas dar conta, os portugueses empregaram a
caravela. Rápida, arisca e apta para navegar em
mares agitados, esta pequena embarcação deslocava de 100 a 300 toneladas e tinha um calado6 reduzido, o que permitia o trânsito em
águas rasas. Dispunha normalmente de dois
mastros e envergava velas latinas. Ao contrário
da galera, não empregava qualquer tipo de remo
em sua propulsão.
I N S I G H T
A
s velas latinas têm um formato triangular e são empregadas nos dias de hoje nas embarcações de esporte e recreio. Sua principal
vantagem, em comparação àquelas em uso na
época (quadradas), é a de permitir o deslocamento do barco em rumos mais próximos do
vento. Isto porque, ao contrário do que reza o
senso comum, os veleiros não são necessariamente empurrados pelo vento.
Imaginemos um veleiro parado, como na Figura 1. O vento está entrando pelo seu bordo
direito (que chamamos de boreste) e saindo pelo
seu lado esquerdo (que chamamos de bombor-
INTELIGÊNCIA
do) com suas velas soltas ao vento. A vela é então
bem ajustada pelo navegador, e sob um vento de
intensidade moderada, passa a apresentar uma
superfície bem lisa, encurvada como uma banana. O vento que sopra encontrará no belo pano
branco um novo caminho, sendo desviado em
direção à popa do barco. Mas por trás do pano
cria-se uma zona onde o ar encontra-se em menor quantidade, e portanto numa pressão menor. Como resultado, a vela é, na realidade,
“ sugada ” arrastando consigo o mastro, e por
conseguinte a sua base, presa ao navio.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 111
I N S I G H T
Reparemos que, ao final das contas, a força
do vento irá mover o navio não na direção em
que aponta sua proa, mas sim, numa direção
aproximadamente perpendicular à posição da
vela. Em termos comuns o navio vai andar para
frente e vai “rolar” para o lado também. Para
minimizar este efeito indesejável, é necessária
uma bolina, acessório similar à barbatana de
um tubarão, instalada na espinha dorsal do
navio (a quilha). Ela opõe uma resistência ao
deslocamento lateral fazendo com que o movimento pra frente seja maximizado.
É possível navegar assim até por volta de 30o
defasado da direção do vento. Em arcos menores a vela é ineficaz. Deste modo, para atingir
um lugar que está exatamente na direção de
onde o vento vem, é preciso fazer sucessivas
manobras de ziguezague, mantendo o vento ora
112 ALVORECER
INTELIGÊNCIA
por um lado do barco, ora pelo outro, como mostra a Figura 2. Leia-se, usando um barco a vela,
a menor distância entre dois pontos não é necessariamente uma reta.
Na navegação à vela vemos no exemplo que
uma rota direta do Ponto A ao Ponto C é impossível. Forçosamente será necessário atingir um
ponto B, mais afastado.
Considerando o regime de ventos predominante no Atlântico Sul e as limitações do emprego da vela, percebemos que a melhor rota
entre Lisboa e o Extremo Sul da África é um
grande arco beijando o litoral brasileiro ou
uma sucessão de arcos menores. De qualquer
modo, este estratagema implicava um incômodo afastamento da costa, tornando inúteis as
técnicas de navegação baseadas em referências
de terra.
I N S I G H T
E
m seu livro “De Vasco a Cabral” o professor Luís Adão da Fonseca apresenta um episódio, considerado não totalmente verídico, narrado pelo cronista Gaspar Correia sobre a expedição de 1498, em que Vasco da Gama dobrou
o Cabo da Esperança e pela primeira vez atingiu as Índias. Trata-se de uma bem vinda ilustração sobre o moral a bordo durante as pernadas em arco:
“E lá passando de um mês que corriam nesta
volta, fizeram volta à terra vindo de lá quanto
podiam, todos pedindo a Nosso Senhor que fossem dobrados além da terra, mas quando a tornaram a ver foram mui tristes; mas acharam-se
muito avante, pelos sinais das sondas que os pilotos tomavam e viram terra de outra feição que
não tinham visto, e, vendo que a costa corria
pera o mar, os mestres e pilotos foram em muita confusão, e duvidosos de tornarem outra vez
ao mar, dizendo que aquela terra atravessava o
mar e não tinha cabo. O que ouvido por Vasco
da Gama [...], disse aos pilotos que não cuidassem tal, porque sem dúvida eles achariam cabo
àquela terra, e além dele muito mar, e terras
que correr. [...] O que lhe[s] Vasco da Gama dizia
por os esforçar, porque os via mui desacoroçados, e em propósito de quererem arribar a Portugal [...]. Vasco da Gama, parecendo-lhe já tempo, mandou que fizessem outra volta, mostrando-se muito agastado, jurando que, se o cabo
não dobravam, havia de tornar ao mar tantas
vezes até que o dobrasse, ou fosse o que Deus
quisesse.”7
INTELIGÊNCIA
Vasco da Gama mostrava-se irritado e contrafeito (agastado) com seus compatriotas incrédulos e acovardados (desacoroçoados). Mas era
preciso perseverar na busca pelo Cabo das Tormentas (rebatizado de Cabo de Boa Esperança),
já visitado por Bartolomeu Dias em 1488. Perdoe-me o ilustre navegador português (e cavaleiro da Ordem de Cristo), mas qualquer ser
humano minimamente lúcido teria mesmo pedido para voltar para casa (arribar a Portugal).
A navegação astronômica era a técnica que
permitia o afastamento considerável de terra,
mas naturalmente, era um ofício de muito poucos a bordo. O marinheiro médio pouca instrução possuía e sua alma era brutalizada pelos
rigores do mar. Uma viagem de ida e volta para
as Índias durava mais de dois anos, desfazendo
os laços emocionais e familiares com parentes e
prometidas em Portugal (isto é, para aqueles que
voltassem vivos). As condições sanitárias seguiam os padrões medievais. Mas some ao rosário de martírios a precariedade da alimentação, paupérrima em alimentos frescos e o racionamento de água doce – pouca e valiosa considerando os longos períodos de travessia e as
altas temperaturas observadas nos conveses cobertos, quando navegando nas regiões tropicais
(50oC).
Os barbeiros sangradores eram os médicos
de bordo. Não gozavam de qualquer prestígio e
ganhavam menos do que um marinheiro experimentado. Talvez para a melhor compreensão,
fosse melhor chamá-los de açougueiros, pois lhes
eram exigidas tão somente as habilidades para
cortar e costurar feridas. Faziam uso também
das “cousas de botica”: ungüentos, óleos, pós e
pomadas, normalmente reunidos numa arca e
aplicados sob vaga prescrição, tal como um baú
de tolas panacéias.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 113
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
C
omo era de se esperar, os índices de mortalidade eram muito altos, em decorrência não
só dos suplícios de bordo, mas também pelo contágio de doenças tropicais e pelos ferimentos
em combate. Como cita o Irmão Manuel de Morais, da Companhia de Jesus “E assim sustentamos os doentes que não padecessem de todo,
porque alguns deles não eram doentes senão de
pura fome, e outros das gengivas e das pernas
que quase todos as incham no Cabo da Boa Esperança onde já todas as coisas de comer não
têm substância”8. Vários historiadores convergem, pela análise dos registros disponíveis, para
a estima de 40% de mortos entre as tripulações portuguesas do século XVI. Não é a toa,
que no dito popular, se fala sobre um moribundo como aquele que “já cruzou o Cabo da Boa
Esperança”.
A vontade férrea dos comandantes, normalmente nobres, cavaleiros da Ordem de Cristo,
só encontrava semelhança nos dias de hoje à
determinação dos homens-bomba. Para os tripulantes, alguns deles recolhidos entre vagabundos e mantidos acorrentados para que de bordo não fugissem, era mesmo difícil entender
como a coisa toda se passava. Como poderia um
homem, olhando para o céu e empunhando um
pedaço de madeira, determinar onde eles se
encontravam e para onde deveriam ir?Porque
insistia em prosseguir diante de tantos riscos e
interrogações?
114 ALVORECER
Expedições comercial-militares, como a de
Pedro Álvares Cabral, utilizavam um navio de
maior capacidade de carga – a carraca ou nau.
Boa sorte de velas, entre latinas e quadradas adornava seus mastros na tentativa de bem aproveitar o vento de todas as direções e intensidades
possíveis. O castelo de popa foi incorporado ao
desenho do casco e o castelo de proa tornou-se
mais leve, a fim de permitir ao navio uma recuperação rápida da proa, quando atingida e coberta por ondas grandes. No auge do seu primor,
a carraca atingiu até 2.000 toneladas e supõe-se
ter dado origem aos famosos galeões9.
Há um consenso de que em torno de dez carracas e três caravelas compuseram a expedição de Cabral10, a maior força-tarefa a cruzar o
Atlântico até então. Apenas seis navios viram
Lisboa novamente. Considerando que uma das
naus foi utilizada para transportar de volta a
carta de Caminha, e que uma outra perdeu-se
no caminho, regressando prematuramente, contabilizamos um total de cinco navios naufragados (quatro deles numa tempestade junto ao
Cabo da Boa Esperança e um na viagem de regresso)11.
Alguns historiadores se perguntam como estas expedições ultramarinas, apoiadas por pouco mais de uma dúzia de entrepostos comercias
e fortificações, permitiram à pátria de Camões
estabelecer séculos de dominação na vastidão
contida entre a costa oriental africana e o Japão empregando um contingente militar tão reduzido. De fato é preciso perceber que os recur-
I N S I G H T
sos do mar nunca estiveram (até o século XX12)
associados à noção de território. E aí jaz uma
das grandes diferenças entre a guerra terrestre e a guerra naval – não há sentido em falarmos de posições, regiões conquistadas ou ocupadas. Faz sentido em falarmos sim, de controle
sobre uma área marítima.
Como são bastante vastos os oceanos, o controle de um modo geral não pode e nem deve
ser exercido com muito rigor. Na verdade, o esforço de toda potência naval sempre se traduziu no envio e manutenção de navios de guerra
nas regiões focais – aquelas em que a atividade
marítima apresenta-se concentrada. São normalmente entradas de portos, baías, limites de canais, estreitos e todo o local por onde os navios
sejam obrigados a fluir – foram nestas regiões,
não tão numerosas, que os portugueses concentraram seus esforços.
Dom Henrique ficaria certamente regozijado
se, alguns séculos após a sua morte, pudesse presenciar o resultado da cruzada econômica portuguesa. O progressivo esvaziamento da rota ter-
INTELIGÊNCIA
restre de especiarias, que fez ruir lentamente o
maior entre os reinos mulçumano – o Império
Turco Otomano. Mas uma cena em especial talvez
o fizesse abrir um grande sorriso. A bandeira
da Ordem de Cristo, desfraldada em lugar de
destaque na primeira missa celebrada no Brasil,
como reza a Carta de Pero Vaz de Caminha:
“Ao domingo de Páscoa pela manhã, determinou o Capitão ir ouvir missa e sermão naquele
ilhéu. E mandou a todos os capitães que se arranjassem nos batéis e fossem com ele. E assim
foi feito. Mandou armar um pavilhão naquele
ilhéu, e dentro levantar um altar mui bem arranjado. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a
qual disse o padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros
padres e sacerdotes que todos assistiram, a qual
missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.
Ali estava com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saíra de Belém, a qual esteve sempre bem alta, da parte do Evangelho.” 13
[email protected]
NOTAS
1. Rose, Susan – Medieval Naval Warfare – Routlegde 2000, pg 23 a 26
2. Medição da profundidade do local. Atualmente é realizada por sonares ecobatímetros mas, na época, utilizava-se tão somente um cabo
comprido, com nós e marcas, com um peso na ponta.
3. Parker, Geoffrey – The Military Revolution: military inovation and the rise of the West – Cambrigde University Press, 1996 – p. 94.
4. Boxer, Charles – O Império Marítimo Português 1415-1825; Companhia das Letras – 2002, p. 37
5. Boxer, Charles – O Império Marítimo Português 1415-1825; Companhia das Letras – 2002, p. 37
6. Distância entre a linha de flutuação e parte mais baixa do navio, seja ela a quilha ou um acessório qualquer, como uma bolina.
7. Fonseca, Luís Adão da – De Vasco a Cabral: Oriente e Ocidente nas navegações oceânicas – EDUSC, 2001 – p. 33.
8. Rodrigues de Abreu, Rui Manuel – Apontamento para a História da Medicina Militar. A Marinha – Revista Militar, OUT/2006.
9. Giorgetti, Franco (Editor) – The Great Sailing Ships: The History of Sail from its origins to the presente day – White Star 2001 – p.39.
10. Fonseca, Luís Adão da – De Vasco a Cabral: Oriente e Ocidente nas navegações oceânicas – EDUSC, 2001 – p. 89.
11. Fonseca, Luís Adão da – De Vasco a Cabral: Oriente e Ocidente nas navegações oceânicas – EDUSC, 2001 – p. 204
12. Antes do século XX as iniciativas para delimitação do mar territorial foram incipientes e mormente regionais, tornando-se costumeira
a adoção de uma faixa de 3 milhas de largura a partir da costa.
13. A Carta, de Pero Vaz de Caminha; Universidade de São Paulo – Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro.
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INTELIGÊNCIA
’
1. CREPUSCULO
Cansado, chegou ao barraco. No espelho, contemplou seu
último nariz. Como o cirurgião não removera o anterior, desde a
última operação, ele tinha quatro narinas. Se fosse nos seus dias
de glória, aquilo viraria moda.
Descalçou os sapatos; tirou as roupas íntimas, que lhe disfarçavam a barriga. E as não íntimas, que escondiam a decadência geral.
Guardou a dentadura, pôs a peruca no cabide, desatarraxou a perna
postiça. Tirou as lentes de contato. Um olho era de vidro: colocou-o
na geladeira. A maquiagem, derretida, havia deixado um rastro por
onde ele passara. Em outros tempos, as fãs o teriam lambido.
Verificou o marca-passo: estava funcionando, mesmo com a bateria vencida. Aliás, baterias vencidas eram um problema também
do aparelho anti-surdez, um modelo antigo que não cabia atrás da
orelha. O rim solitário incomodava, e ele se lembrou que vendera o
outro a um traficante de órgãos. Com o dinheiro, fez uma viagem a
Jeremoabo, na Bahia. Um dia, ele cantara ali, num grande show.
Um pênis de borracha substituía o original, reduzido a farelos
pelo câncer. Peça móvel, como as outras, também depositada na
gaveta, como as outras. Quantas mulheres havia tido? Impossível contar. Hoje, portava um pênis falso, somente útil para fins
urinários.
Para reduzir o mau hálito, habituara-se a manter uma medalha
de Nossa Senhora de Fátima e um limão sem casca embaixo da
língua. Funcionava. (Mas, agora, quase esquecia de cuspi-los.)
Da mão direita, dois dos dedos eram artificiais: tirou-os, e os
colocou na gaveta. Ainda bem que, com os três restantes, podia
fazer quase tudo. Como isso que ele estava fazendo neste instante: apontando o revólver contra o ouvido e estourando os próprios
miolos.
O sangue que lhe jorrou da cabeça tinha sido recebido em
transfusão, duas horas antes. Na breve notícia do dia seguinte, o
jornal considerou isso um desperdício.
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2. CABECA PENSANTE
’
D
omador de animais ferozes há trinta e cinco anos, Antonio
Severiano ficou sabendo que ia ser mandado embora. E que os
seus leões seriam abandonados próximos a um culto religioso,
onde havia carne macia em abundância. Nada disso tinha a ver
com a globalização. Apenas, o dono do circo perdera a paciência.
Alimentar as feras custava caro e ninguém mais queria saber de
leões e domadores.
Antonio ficou devastado, porém não surpreso. Sabia que o
público se desinteressara de seu espetáculo. Tinha reagido, inventando novos quadros. Uma, duas, cinco vezes, sem nenhum resultado; seis, sete, dez outras, e nada. Em desespero, decidira superar
seus limites: desde há um mês, enquanto os tambores rufavam, ele
punha sua cabeça dentro da boca de Espartaco, o maior dos oito
leões. Era uma temeridade, mas, fazer o quê? Mesmo assim, a
platéia se manteve indiferente. O patrão percebeu e tomou sua
decisão. Antonio viu o mundo desmoronar. Vivia daquilo. Pediu
clemência.
Não adiantou. E, assim, neste seu último dia no emprego, ele
está ali, enfrentando as feras. O número chega ao clímax: sob o
rufar dos tambores, Antonio Severiano põe a cabeça na boca de
Espartaco. Ato contínuo, num gesto súbito e inapelável, o leão
trinca os dentes, decapitando o domador.
No instante seguinte, o Antonio sem cabeça se põe a dar voltas
frenéticas pelo picadeiro, jorrando sangue em grandes golfadas.
Espartaco abre a boca e cospe o pedaço de gente que quase engolira. De uma pessoa, o domador se transforma em duas: o tronco
com as pernas e os braços, que sai correndo em círculos feito louco,
tingindo o circo de vermelho; e a cabeça, que fica plantada no
chão, os olhos esbugalhados observando a cena.
E então o público entende que aquilo tudo faz parte do show e
começa a aplaudir vibrantemente. Gritos de viva ecoam sob a
lona, em um delírio geral. Há uma atmosfera de entusiasmo. As
crianças estão empolgadas, pois são crianças; o vendedor de pipocas joga os saquinhos para o ar, em puro deslumbramento; o dono
do circo chora, de incontida alegria; o domador decapitado gira a
esmo pelo palco, como se fosse de felicidade.
Mais uns poucos segundos sob intensos aplausos e o Antonio
sem cabeça dá a sua última volta, antes de tombar para sempre,
branco como um giz, em estertores. A platéia se põe de pé, em uma
ovação jamais vista. Nos bastidores, trapezistas, macacos, palhaços e mágicos se cumprimentam efusivamente. Trepados nas arquibancadas, meninos e meninas devoram as pipocas caídas do
céu, muitas delas pintadas de vermelho. Eufórico, o dono do circo
entra na jaula – com um pontapé, afasta do caminho a cabeça do
domador – e abraça Espartaco, de cuja boca ainda escorre um
resto de sangue humano.
No chão, agora toda melada de cocô, mas com os olhos bem
abertos e um sorriso vitorioso nos lábios, a cabeça de Antonio
Severiano somente tem tempo para os dois momentos de sua última reflexão:
– Por que não pensei nisso antes? Por que não pensei nisso
antes?
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3. LEDO E CRASSO
NA ESCOLA
Quanto ao mais, estava tudo bem. Mas ele se chamava Ledo e
havia aquela associação. Pior sorte, só a do mano Crasso. Na escola, Dona Marta era a mais impiedosa:
– Você fez boa prova, mas cometeu um erro, Crasso.
Os outros alunos riam. Como irmão mais velho, Ledo às vezes
tomava-lhe as dores. A professora não perdoava:
– Não estou perseguindo ninguém, Ledo. Engano seu.
E a coisa terminava em gargalhadas. A vingança dele era saber
que um dia, não muito distante no tempo, diante do inevitável
aumento da competição causado pela abertura da economia e pelo
progresso tecnológico, Dona Marta iria para o brejo. Antes mesmo
de começar a globalização.
Professora de latim, o marido empregado em empresa estatal
e uma filha estudando datilografia… Eta futuruzinho incerto!
PREVISÕES ECONOMÉTRICAS
Certa feita, já adulto, o empresário Ledo, do ramo secos e
molhados, bebeu demais, botou alta velocidade no carro, entrou
na contramão e se chocou de frente com um caminhão. Só não
morreu por engano.
Pouco antes, ele tinha contratado uma consultoria muito cara,
a Liverpool Economic Data Analysis, Leda, que, rodando um modelo
econométrico com 453 equações, fez projeções a torto e a direito
sobre o Brasil, o mundo, e o setor onde o empresário operava. Tudo
matemático, perfeito.
A economia brasileira iria reduzir seu crescimento para 0,23%
ao ano, no primeiro trimestre, mas se recuperaria depois, fechando
os doze meses com uma expansão de 3,42% do PIB. As importações, no cenário que incluía a manutenção flexibilizada da política
cambial, iriam aumentar em 4,85%, a partir de abril, quando o
modelo previa um déficit público de 3,57% do produto interno
bruto. E o ramo de secos e molhados poderia exportar mais 5,42%,
no próximo ano, mas apenas nos três últimos trimestres e isso se a
desoneração do ICMS fosse mantida, o que só teria sido provável
se viesse a acontecer. Para o primeiro trimestre, o setor sofreria
uma redução de 49,87% nas vendas, garantia o modelo da Leda.
No hospital, lembrando dessas econometrias, Ledo consolavase com o pensamento de que ficaria internado três meses, exatamente os piores do ano, para seu negócio. Poderia até dar férias
coletivas aos empregados. Quando voltasse, as coisas estariam bem.
Ledo engano: a Leda engana.
ARTE E BONS NEGÓCIOS
Ao saber que um quadro de Dali, aquele da mulher com três
cabeças e meia, havia sido vendido por sete milhões de dólares
(dois milhões per capita), Ledo e Crasso decidiram promover a
Primeira Bienal de Arte Moderna na pequena cidade interiorana
em que moravam. Assim o fizeram. No Diário de Cricri, Pedro Pierre
escreveu sua crítica:
“Atenção amante da arte: a Bienal está imperdível!!!
Imagine que, após passar na bilheteria, você entra na sala de
exposições, onde não existe absolutamente nada, exceto o chão,
as paredes e o teto. Não há qualquer objeto que possa ser tocado,
cheirado, ou contemplado. Brilhante. É a vitória definitiva do abstracionismo picassiano sobre o concretismo pós-meridional. A única, única, única, concessão ao mundo real é o preço do ingresso.
(Por sinal, uma nota.) O máximo!
Todo o entusiasmo é justificável. E o leitor que me desculpe o
tom emocional. É-me impossível conter a imensa alegria que sinto
em não ver a arte contemporânea. Vá lá também, você merece!”
Houve quem percebesse uma sutil ironia nas duas últimas frases do crítico. Pouca gente. A Bienal constituiu um grande sucesso:
tudo o que os promotores diziam estar exposto foi vendido durante
o próprio evento. Ledo e Crasso ficaram ricos. Os compradores,
confiantes em Pedro Pierre, acham que fizeram um grande negócio. Ainda mais porque as obras compradas não ocupam espaço,
não têm custo de transporte e nem podem ser roubadas.
Em breve, alguém as chamará de meta-virtuais e aí será a
glória.
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4. BRAVO !
Um instante depois de fazer soar a última nota do seu concerto, o velho pianista ouviu a platéia gritar “Bravo!, Bravo!”. Ele se
levantou da banqueta, foi até o centro do palco; respeitosamente
inclinou-se para frente; apontou para a orquestra, numa forma de
dizer que queria dividir com ela aquele momento de glória; e os
aplausos continuaram. Então, o artista curvou-se outra vez, antes
de se afastar para os bastidores. Mas o som das palmas ficou mais
forte, forçando-o a reaparecer. Novos cumprimentos ao público; e
os aplausos não pararam. Pela segunda vez, o pianista se retirou.
Como as palmas continuassem intensas, voltou novamente ao palco; de novo, dali saiu e, outra vez, teve de retornar.
Quinze minutos mais tarde, com a orquestra ainda de pé, o
público não se aquietara. Se isso era inusitado, o que dizer, duas
horas e quarenta minutos depois? Sem parar de aplaudir, um estatístico presente ao concerto havia contado cento e vinte e oito idas
e vindas do pianista ao palco; duzentas e oitenta e nove expressões de agradecimento; trezentas e quarenta e cinco flexões em
frente ao público. Em média, cada pessoa, tão feliz que ria à toa
para o pianista e os músicos, havia batido oito mil, trezentas e
vinte e duas palmas.
Às quatro da madrugada, o público ainda aplaudia; a orquestra
ainda estava de pé, o pianista ainda ia e vinha, fazendo flexões de
agradecimento. Desde a meia-noite, a energia elétrica havia sido
cortada, mas os músicos da orquestra não se sentaram, nem as
palmas cessaram, nem o pianista deixou de ir e vir. Cinco horas
depois, alguém lhe ofereceu um sanduíche e um copo d’água, que
ele comeu e bebeu andando e se inclinando em agradecimento
pelos aplausos. Eram nove da manhã. A polícia tinha sido mandada
terminar com aquilo, mas, ao chegar ao teatro, os soldados apenas
se juntaram à multidão nos aplausos. Até então, o artista havia
caminhado quatro quilômetros, oitocentos e trinta metros.
Na platéia, as pessoas já não riam, nem para o pianista, nem
para os músicos da orquestra, nem para os vizinhos espectadores.
Havia, sim, uma expressão de cansaço, talvez até de raiva, se bem
que disfarçada pelo contínuo bater de palmas. Pouco antes das
onze horas, mais de cem homens e mulheres no público tinham as
mãos sangrando, pelo esforço continuado. A incontinência urinária
de muitos era visível; além disso, um número grande deles havia
defecado sob as roupas, causando intenso mau cheiro. Logo apareceram ratos lambendo as poças de sangue, urina e fezes no chão.
E moscas, em nuvens.
Do fim do concerto até as duas horas da tarde do dia seguinte,
trezentas e quarenta e oito pessoas haviam desmaiado. Quando
despertavam, se punham de pé, novamente a aplaudir. Os homens
e mulheres já não disfarçavam um ódio intenso contra o pianista e
os músicos que os mantinham presos a um tal absurdo; e contra
todos os demais ali presentes, amontoados, sujos, fedendo-se uns
aos outros. Mesmo assim, as palmas não esmoreciam.
Na tarde daquele dia, a Câmara Municipal aprovou um projeto
que proibia aplausos por mais de cinco minutos nos teatros sob sua
jurisdição. O prefeito sancionou a lei na manhã seguinte, mas uma
liminar impediu sua aplicação retroativa e as pessoas continuaram
a aplaudir o pianista, sem mais questionamentos jurídicos. Já estavam no terceiro dia. Devidamente anotados pelo estatístico, dezoito mortos jaziam na platéia, nas frisas e camarotes, sem que
ninguém fizesse nada para removê-los, presos que estavam ao
incessante aplauso. Aplauso, diga-sede passagem, nem era mais
um termo correto. Pois, em vez de palmas batendo em palmas, já
eram, em muitos casos, ossos estalando em ossos, fazendo um
curioso toc-toc.
Mas, quer fossem aplausos ou estalos, não iriam parar tão
cedo. Quatro dias depois de terminado o concerto, o pianista ainda
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 125
I N S I G H T
ia e vinha ao palco, agora numa cadeira de rodas. Suas flexões de
agradecimento se haviam tornado imperceptíveis. Não houve um
segundo sanduíche (o primeiro, ele vomitara) nem um novo copo
de água. Os músicos permaneciam de pé, enquanto os toc-toc de
ossos contra ossos, como se fossem palmas, continuavam.
Do lado de fora, uma multidão se formara de curiosos, políticos, flanelinhas, jornalistas e familiares dos espectadores e músicos. A irmã do pianista, nos seus setenta e muitos anos, repetia,
baixinho: “Um dia tinha de dar errado; um dia tinha de dar errado”. Mas não explicava o que estava dizendo, nem era perguntada
a respeito. E a verdade é que, muito além dos temores da irmã,
coisas ainda mais chocantes estavam a ponto de acontecer.
Os relógios marcavam quatro e meia da tarde quando o
pianista, ao tentar a sua centésima milionésima terceira flexão
de agradecimento,desequilibrou-se, caiu da cadeira de rodas e
estatelou-se no chão. Recobrou-se, dois ou três segundos depois, já sem tempo de evitar a tragédia da qual ele seria a
primeira vítima.
Foram os únicos dois ou três segundos, desde o fim do concerto, quase uma semana atrás, durante os quais, enquanto o público
aplaudia, o pianista fazia outra coisa além de ir, ou vir, ou se curvar
em agradecimento. Deve ter sido isso que quebrou o encanto.
Quando, finalmente, o artista se pôs de pé, logo percebeu que uma
revolução havia ocorrido. Detrás, os músicos corriam em sua direção, aparentando enorme agressividade; da frente, o público já
começara a escalar o palco, igualmente dando mostras de um irrefreável ódio.
INTELIGÊNCIA
No instante seguinte, músicos e espectadores se precipitaram
sobre o pianista rasgando suas roupas meladas de vômito, fezes e
urina, arrancando-lhe os cabelos desalinhados, comendo-lhe as
carnes e chupando-lhe o sangue. Especialmente disputados, os
olhos azuis do velho artista motivaram uma briga particular entre
dois espectadores que tinham curso de gastronomia. Em três minutos, daquele homem que fora tão aplaudido, só restavam os ossos,
dispersos pelo palco, depois de cinco mil, quatrocentas e oitenta e
duas mordidas. Como por ironia, seus dedos descarnados jaziam
sobre o teclado, formando um perfeito ré menor.
Mas o pior ainda estava por vir. Vendo-se frente à frente dos
músicos, a multidão de espectadores começou a atacá-los, como
havia feito com o pianista, numa luta de dentes contra dentes;
unhas contra unhas; cabos de guarda-chuvas contra hastes de violinos, violas, violoncelos e contrabaixos; bolsas femininas contra
oboés, fagotes e clarinetes (afinal, era uma orquestra sinfônica).
Venceu o público, pela superioridade numérica, apesar da desvantagem em armamentos. Dos quarenta e nove músicos, como, antes, do pianista, sobraram apenas ossadas desconexas, dispostas
pelo chão sem qualquer harmonia.
E, já que havia começado, a turba enlouquecida iria terminar. O
ato final do concerto foi uma batalha de dezoito mil, trezentas e
setenta e duas dentadas de espectadores contra espectadores rasgando-se mutuamente, comendo-se uns aos outros, chupando o
sangue de quem estivesse ao alcance. Sem um único grito de “Bravo!”, o último movimento superou as fantasias mais alucinadas
dos compositores pós-modernos.
[email protected]
126 (R ISOS )
ADIADO AMANHECER
O BRASIL DO
BREU
NO FIM DO TÚNEL
!
?
LUIZ CÉSAR FARO
JORNALISTA
!?
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 127
I N S I G H T
NA MOSCA: não existem condições de discutir políticas pró-ativas de crescimento da
economia a taxas mais elevadas para o quadriênio do
segundo mandato do governo Lula ou mesmo para as
futuras duas décadas se não for executado um programa
urgente de expansão da capacidade de oferta no setor
de energia elétrica e de aumento das vias de acesso e
escoamento e redução dos custos dos transportes. Ao
contrário do que foi dito durante todo o ano de 2005 e, de
forma superlativa, na maior parte de 2006, as principais
determinantes do crescimento não são, na presente conjuntura, as variáveis fiscal, monetária e cambial – o que
não quer dizer que elas não sejam relevantes. É a infraestrutura o cobertor curto. Com o agravante de que não só
limita a expectativa de melhoria do futuro como ameaça
com sinalização de crise para um amanhã bem próximo.
As advertências e a proposta que seguem pretendem
nada menos do que oferecer uma tábua de salvação para
o crescimento econômico do país. O autor destas linhas
tenciona lançar mão de uma pitada de keynesianismo de
boa cepa e borrifar com água benta os satanizados investimentos do setor público nos setores de energia e
logística, os quais, em um modelo perfeito, estariam reservados para que o setor privado desse grande contribuição ao desenvolvimento nacional. O eventual estilo
jocoso não busca magoar um ou outro gestor, mas subli-
128 F OGO-FÁTUO
INTELIGÊNCIA
nhar questões graves. Antes que os privatistas agudos
acusem o signatário de viúvo dos Planos Nacionais de
Desenvolvimento (PNDs) das décadas de 1960 e 1970, é
melhor que leiam com atenção os motivos, a arquitetura
da idéia e forma como o mercado será contemplado. A
ideologização, desdém e tibieza no equacionamento da
infra-estrutura podem nos custar anos e anos de lamentações, ainda mais agudas.
Deixo claro não só que as expectativas de desenvolvimento estão atadas como também existem riscos de
constrangimentos inaceitáveis no direito de ir e vir, suprimento de mercadorias e atendimento a todas as necessidades básicas vinculadas ao fornecimento de energia elétrica. A coisa não é para brincadeira. Agora, passadas as eleições, o governo deveria abrir o coração e
dar transparência à situação de frangalhos dos alicerces que poderiam sustentar um crescimento acelerado.
Tanta franqueza não equivale a um convite à expiação
de culpa, mas constitui ponto de partida para um processo de “consertação” da sociedade – conforme prefere a inteligentzia do PT – em apoio a um ciclo de
estatização transitória dos projetos estruturantes em
energia e logística. Os adversários da proposta serão
os que objetam à “estatização” aliados aos que se opõe
ao “transitório”.
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Mas o aposto “transitório” não é mero detalhe. Os projetos estruturantes emergenciais devem ser realizados com objetivo de serem rentáveis e, logo após sua conclusão,
transferidos à iniciativa privada, de preferência através da pulverização do controle no
mercado de valores mobiliários. Entendam-se como projetos estruturantes, não o recapeamento de estradas e rodovias, manutenção de linhas de transmissão e construção de
dutos, entre outras missões permanentes do Estado, mas sim obras de impacto nos
macrossistemas e caráter de urgência, que afastarão o risco de crise sistêmica logo à
frente e desobstruirão a principal artéria do crescimento. Por motivos que serão demonstrados, a delegação do setor privado para o encargo desta tarefa – o que seria o
estado da arte nesta equação – é pura purpurina em um discurso meramente ideológico.
Para não variar nunca, o ideal caminha paralelo ao real.
Mas, não se trata também de uma volta ao tempo da hipertrofia da máquina do
Estado, com a reutilização do sufixo “bras” para justificar a ressurreição dos mamutes
pré-históricos da fase de substituição das importações. Estamos falando da garantia de
que os investimentos públicos nas hidrelétricas, termelétricas, portos, rodovias, ferrovias e anéis rodoferroviários renderão dividendos para toda a sociedade, além da sua
função antecedente e precípua de esteio do crescimento econômico e seguro contra
uma débâcle dos serviços essenciais à sociedade. Fiquem tranqüilos, porque não faltarão gestão profissional e governança corporativa, além, é claro, de lucros de padrão
internacional para distribuição a uma pletora de acionistas. O modelo proposto de
privatização futura é o da public company, antídoto para “privatarias” e velho biotônico
de um estado desejável de socialismo invisível. Parece tudo confuso e extravagante,
não? Veremos que há fundamento no diagnóstico e método na proposição.
Do binômio essencial composto por energia e logística, a primeira é certamente o
principal fator de risco no presente e o grilhão que mais acorrenta um radiante porvir. Não
adianta caçar bruxas para queimar na fogueira. O desacerto vem de muito tempo. E os
remendos e esparadrapos usados para encobrir os desajustes do sistema aprofundaram
ainda mais a esquizofrenia do modelo. Um estudo da Fundação Getulio Vargas feito para o
governo revela uma majoração das tarifas de energia elétrica da ordem de 110% desde
dezembro de 2002. Nada contra o governo Lula. Este foi apenas o período de análise. Se
tivesse sido considerado o intervalo da gestão FHC esta linha da página não seria suficiente para o número de zeros do percentual de aumento.
Paciência! O que vale constatar é que a energia brasileira ficou mais cara do que a dos
países em desenvolvimento, tais como China, Índia, Rússia, Coréia do Sul e África do Sul,
nossos fetiches do crescimento econômico. Mas não basta: ficou mais cara do que países
desenvolvidos com renda per capita maior, tais como o Canadá e Holanda. Reduzimos em
pelo menos 10% a participação da hidroeletricidade – que já foi 90% do total da matriz
energética – e passamos a depender crescentemente de combustíveis externos para
geração de energia.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 129
I N S I G H T
A FGV foca na perda de competitividade em razão do
fator preço. Segundo o estudo, pressupondo um cenário de
preços crescentes na mesma proporção do período em
análise, o país perderia 8,6% em seu PIB potencial entre
2006 e 2015, o correspondente a R$ 214 bilhões em moeda de 2005. Se o preço da energia não aumentar em termos reais, um cenário róseo, porque findou o tempo da
energia barata, mesmo assim, o Brasil somente poderia
crescer 3,6% anuais de 2006 a 2010, e 3,7% ao ano entre
2011 e 2015. A FGV fundamenta seu relatório nas projeções apresentadas pelo Plano Decenal de Energia Elétrica.
Em razão delas, estima que as tarifas de energia subirão
em termos reais 20,3%, no geral, e 34,6% especificamente para a indústria no período de 2006/2015. O resultado
assusta até os mais otimistas: uma redução de 0,49 ponto
percentual do crescimento do PIB ao ano entre 2006 e
2010. Portanto, ao invés de crescer a taxas medíocres de
3,69% do PIB, a expansão do país ficaria restrita a taxas
ainda mais medíocres de 3,2%. Com as altas das tarifas de
energia elétrica previstas para o quatriênio de 2011 a
2015, a FGV projeta um crescimento desolador de apenas
2,93% do PIB.
A velha senhora da Praia de Botafogo leva em consideração os dados oficiais para montar o seu modelo. É o
130 F OGO-FÁTUO
INTELIGÊNCIA
que manda o protocolo. Mas, não só a FGV, como todos
os analistas minimamente especializados concordam que
a oferta de energia assegurada no planejamento dos principais braços do governo – Operador Nacional do Sistema (ONS), Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e
Empresa de Pesquisa Energética (EPE) – é inferior àquela
que garantiria o menor risco de paralisia do sistema. É
isso mesmo que você pensou: leia-se, no limite, “apagão”. Tudo bem que os analistas, discordantes ou unânimes, estão volta e meia errando. Mas agora existem
digitais evidenciando que o modelo é capenga. Por exemplo: a Petrobras confirmou oficialmente que não está entregando o gás natural necessário ao funcionamento de
seis das 11 usinas termelétricas que deveriam estar operando. As térmicas que fazem parte da contabilidade do
ativo elétrico assegurado do governo – sistema interligado nacional – estão lá de faz-de-conta, ou seja, a energia não pode ser despachada sempre que necessário. A
auditoria pública que seria realizada na Aneel, em outubro, para aprovação de resolução excluindo as térmicas
sem gás do estoque de disponibilidade energética, foi
postergada para depois das eleições por motivos óbvios.
Até lá, a suspeição é de que estoque declarado de energia é falso. Com um detalhe: se as termelétricas forem
retiradas do cálculo da energia assegurada, o risco de
racionamento pode triplicar, subindo dos atuais 6% para
cerca de 17%, já em 2007. Na mesma hipótese mais
grave de subtração da energia a gás, a probabilidade de
racionamento no Norte/Nordeste chega a 32% em 2010.
Quem é que vai investir lá?
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
É assunto grave, mas assunto velho. Quem não se lembra da controversa “TermoLuma” – termelétrica no Ceará,
pertencente ao empresário Eike Batista – que foi construída em meio ao desespero do apagão no governo FHC. O
contrato com o empresário foi feito com a garantia de fornecimento de gás pela Petrobras, que por sua vez garantia
o pagamento da mensalidade do negócio em regime de back up, mesmo com a usina parada. A Petrobras, ainda que
atrasando, ia pagando direitinho, só que quando precisava despachar a energia da “TermoLuma”, não tinha o gás
para entregar. Pagava, portanto, pelo que não recebia. E não recebia porque não tinha como cumprir o que prometera.
Em resumo, a usina somente despachou energia para a Região Nordeste, a mais carente de suprimento emergencial,
quando foi convertida para óleo combustível por decisão do empresário, que considerou a situação insustentável e,
digamos assim, algo “politicamente incorreto”.
As térmicas, a despeito da sua crescente importância na matriz energética, são só um aperitivo. O problema está
se tornando estrutural. Vamos tentar resumir como funciona o modelo. O Operador Nacional do Sistema (ONS), que
tem a função de municiar o sistema, planeja, sempre em um horizonte de 60 meses à frente, a energia assegurada
(aquela energia que resistiu a uma bateria de testes em 95% dos cenários pluviométricos ou hídricos mais diversos).
Só aceita trabalhar com 5% do risco, o que já é muito se comparado a países congêneres. Esse planejamento de 60
meses é refeito a cada mês em um moto-contínuo. A diferença entre energia assegurada e potência instalada é
exatamente essa clivagem dos cenários chuvosos ou mais secos, no caso da hídrica, ou dos períodos de manutenção,
no caso das térmicas, devido à dependência de outros combustíveis – termeletricidade a óleo (98% de potência),
carvão (80%) e nuclear (85%). O Brasil tem 100 mil megawats (MW) de potência instalada e, pelo menos oficialmente,
52 mil MW de energia assegurada. Bem, seria melhor se fosse realmente assim.
GRÁFICO 1
Saldo oferta de energia versus demanda - 2006-2010
CASO: COM CORTE DE LASTRO DAS TÉRMICAS POR FALTA DE GÁS
(CONSIDERANDO 100% DA OFERTA DE GN PLANEJADA, COM ADIANTAMENTO
DO ESPÍRITO SANTO E GNL A PARTIR DE 2009)
GW MÉDIOS
2,0
DÉFICIT MÉDIO DE 800 MW
EM 2008-2010, 2.000 MW
MÉDIOS EM 2010
1,5
1,0
0,5
0,0
-0,5
-1,0
-1,5
-2,0
-2,5
2006
2007
2008
2009
2010
Fonte: PSR
Elaboração: Gás Energy
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 131
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
A diferença de pouco mais de 45% entre energia assegurada e potencial explica-se,
portanto, devido ao fato de a eletricidade das diferentes fornecedoras não poder ser
entregue em 100% do tempo. Como o sistema funciona? As térmicas informam ao ONS
o valor aproximado do custo do combustível (gás, óleo e carvão). O operador faz também
uma estimativa do custo da água, em consonância com os informes da quantidade de
hídricos de alto risco feitos pela Aneel e sempre em 95% dos cenários. Nos períodos
mais chuvosos, a energia hídrica pode atender à totalidade da demanda. A energia
secundária – excesso de oferta das hídricas em situação pluviométrica plena – pode
então ser usada para baratear o custo do sistema. No período de seca, despacha-se a
energia das térmicas, mais cara, para complementar a oferta. É o chamado modelo
hidrotérmico brasileiro.
O funcionamento do sistema é bem mais complexo do que o resumo acima, que serve
somente para ilustrar como a banda toca. Muitas vezes, o ONS despacha a energia das
térmicas antes do período de seca, porque seu modelo matemático de probabilística
prevê escassez hidrológica à frente. Ela então antecipa o uso da energia térmica mais
cara para garantir que os reservatórios de água não fiquem em níveis de maior risco no
futuro. O modelo, conforme já foi dito, é probabilístico e leva em consideração uma vasta
gama de variáveis. Uma delas é o crescimento do PIB. O ONS trabalha com 4% de
crescimento do PIB no seu planejamento de 60 meses. Portanto, só há energia assegurada para esse teto de crescimento. O fator de elasticidade usado pelo governo para a
energia é de 1,3 do PIB. Assim, para cada 1,0 de crescimento do PIB é necessário mais 1,3
de crescimento da oferta de energia. O saldo de energia assegurada é que permite aferir
o estoque de energia existente e a necessidade de oferta futura.
GRÁFICO 2
Oferta de energia versus PIB
GW MÉDIOS
65
DIFERENÇA 2.000 MW MÉDIO
60
4,0%
4,0%
4,0%
4,0%
55
PIB EPE
4,0%
4,0%
50
3,0%
4,0%
3,5%
3,5%
PIB ALTERNATIVO
45
40
2006
Fonte: PSR
Elaboração: Gás Energy
132 F OGO-FÁTUO
2007
2008
2009
2010
I N S I G H T
O engenheiro Marco Aurélio Tavares1, dirigente da
consultoria Gás Energy e jovem sumidade no assunto, já
enxerga nos projetos efetivos e garantidos no horizonte
de 60 meses, assim como na limitação em 5% da energia
assegurada excedente, duas chagas abertas no modelo.
Como todo projeto de geração de energia – caso seja
efetivo e garantido – leva, em condições normais, em
torno de cinco anos para ser construído, e não existe
uma poupança de eletricidade para lastrear políticas
expansionistas do produto interno, ficamos amarrados
em crescer, no máximo e olhe lá, 4% do PIB no próximo
qüinqüênio, sempre a contar do mês que passa. Como
diria Althusser, “o ainda futuro demora muito mesmo”.
O governo FHC, que sofreu de um viés reducionista
no cálculo ponderado da função de Estado e do papel e
timing de ingresso do setor privado em ações estruturantes – eufemismo intrincado para monoteísmo de mercado e irresponsabilidade no planejamento – jogou todas
suas fichas em uma privatização sem regulamentação e
feita a toque de caixa, deixando para depois, como reserva de defesa, a justificativa de que o marco regulatório
ausente foi o grande vilão dos insucessos e descasos
existentes no setor elétrico. Ecoaram em vão à época as
palavras do ex-ministro de Minas e Energia, Antônio Dias
Leite Júnior2, que pregava aos quatro ventos sobre os
riscos de desmoralização do projeto de desestatização e
desconstrução do modelo energético caso ele não fosse
precedido de um sólido cimento regulatório. Dias Leite
fez um périplo que dura até hoje. Convenceu o saudoso
jurista José Luiz Bulhões Pedreira3 a arregaçar mangas e
1. Engenheiro Químico, especialista em petróleo, gás natural e indústria petroquímica, com passagens pela Petróleo Ipiranga e pela Repsol
YPF. Participou das negociações de suprimento de gás entre Bolívia, Brasil e Argentina.
2. Engenheiro, ocupou o Ministério de Minas e Energia e a presidência
da Vale do Rio Doce.
3. Especialista em direito societário, foi autor da Lei das Sociedades Anônimas, em parceria com o jurista Alfredo Lamy.
INTELIGÊNCIA
terçar com ele, sem custo para o erário, o desafio de criar
um cartapácio de leis. O calhamaço depois de produzido
seria levado a audiências públicas, debatido e destrinchado, para que tão somente depois o setor de energia
elétrica fosse virado de ponta-cabeça. Mandaram o exministro procurar moinhos de vento e o que se viu foi o
apagão e o corre-corre da energia emergencial a “preços
Daslu”.
Inês é morta, e, mesmo que ao custo de um desonroso empurrão do apagão no planejamento da energia
emergencial, o governo FHC deixou de herança uma poupancinha de energia razoável. Novamente, é verdade que
ela foi construída ao preço vil da negligência da gestão
pública, tarifas escorchantes, recessão, racionamento,
espoliação da Petrobras e construção de usinas com custos pela bacia das almas. Mas, melhor com ela do que
sem ela. Foi com essa raspa energética que chegamos
até aqui. Mesmo assim, o programa emergencial de energia, que tinha como meta produzir 12 mil MW de energia,
usando termelétricas emergenciais, somente alcançou
uns 6 mil MW de térmicas instaladas. Algumas destas
térmicas são aquelas que não têm gás para operar. As
outras, inclusive as movidas a óleo, mesmo tendo um
custo do MW incomparavelmente maior, são quem ajuda
a mover o governo Lula, que não conseguiu produzir sequer uma fagulha de eletricidade. Uma contradição que
merece ser mencionada apenas a título de colocar um
pouco de molho nesse enredo, diz respeito à fortíssima
oposição que o PT fez à implantação e à operacionalização dessas térmicas a óleo, com 2 mil MW, praticamente
todas voltadas para atender ao Nordeste. O partido de
oposição à época se esgoelou contra o absurdo dos contratos de cinco anos, que pagaria fábulas aos seus proprietários. Pois bem, o governo Lula, do PT, renovou o
contrato dessas mesmas usinas não mais por um qüinqüênio, mas por 15 anos, pagando os tubos, porque não
tem de onde tirar energia para aquela região.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 133
I N S I G H T
Seja lá como for, pelo menos temos energia para
crescer a passos de quelônio de, no máximo, 4% do PIB
ao ano, diria você, ao ler toda essa catadupa. Errou de
novo. Marco Aurélio Tavares explica que, para crescer os
4% da previsão do modelo matemático, é preciso que a
oferta suba 5% ao ano, devido ao fator de elasticidade
de 1.3. Em bom eletriquês, é preciso acrescentar em torno de 2,5 mil MW por ano de energia nova assegurada ou
4,6 mil MW de potência hidrelétrica/ano. É quase um
megaprojeto que nem o da usina Rio Madeira a cada 12
meses. Caso não sejam aprovados projetos dessa envergadura, devido a restrições ambientais e de toda ordem
– as usinas do chamado Complexo Madeira ficaram travadas durante praticamente todos os quatro anos do primeiro mandato de Lula –, teriam de ser instaladas termelétricas, com custos de energia bem mais altos. Em
ambas as hipóteses, o prazo é parecido com aqueles da
economia de guerra. A conclusão é que mesmo para crescer 4% na média dos próximos quatro anos, o governo
tem de ir preparando algum instrumento de exceção equivalente à Câmara da Gestão da Crise de Energia, presidida pelo ex-ministro Pedro Parente no período em que o
breu da escuridão quase assolou o país. Ou então acostumemo-nos a um crescimento ridículo e declinante.
Nem sempre as trevas estiveram no horizonte. O PT
iniciou o mandato com alguma folga, devido ao racionamento, programa de geração emergencial e aumento das
134 F OGO-FÁTUO
INTELIGÊNCIA
tarifas de energia antecedentes. A poupança de energia
foi lubrificada com as políticas hiper-restritivas, monetária e fiscal, que a primeira gestão Lula foi obrigada a
praticar logo na sua alvorada, devido à herança de terrorismo tucano. Contração na economia é igual a maior
sobra de energia. Só que o excedente virou fator de negligência. Em vez de aproveitar o estio para correr atrás
do prejuízo, o governo enveredou pela dispersão com a
arquitetura de um plano de modicidade – redução do
impacto do preço da energia e distribuição de custos
mais eqüitativa entre o consumidor e as empresas – e a
acomodação dos interesses do chamado mercado livre,
que congrega os produtores privados independentes e os
autoprodutores com excedente para a venda, esquecendo-se de que a energia nova era quem desempatava o
jogo. Ninguém é contra modicidade, mas a prioridade
corria em outra pista. Os projetos de expansão da geração ficaram para um segundo plano. E tudo o que foi
contratado de energia elétrica foi produzido por usinas
que já estavam previstas. A oferta adicional ficou zerada.
A conclusão que desponta é que os juros elevados e os
dolorosos superávits fiscais tiveram uma outra função
que se superpunha, tacitamente, às exigências explícitas de controle inflacionário: vestir o PIB em tamanho
menor do que o figurino energético.
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
É sempre possível ser pior, como dizem os chineses. Em 2009, acaba a
poupança energética, obedecendo-se rigidamente o cronograma e a disponibilidade de eletricidade, conforme as informações oficiais do ONS e da
Aneel. O que pode ser pior? Marco Tavares, da Gás Energy, traduz o pesadelo: a atual poupança de energia não é real. Uma parcela dela, por exemplo,
foi calçada no gás da Bolívia, que não será atingida devido à fratura no
projeto de expansão dos dutos em 15 milhões de metros cúbicos, ainda fruto
da celeuma com o governo Evo Morales. São 3 mil MW que estão contidos no
sistema para efeito de contabilidade da energia assegurada nos 60 meses,
que não existem. Para se ter uma idéia do significado desse contrabando de
energia faltante, quando se diz que o consumo de energia do Brasil é hoje de
52,5 mil MW e que a demanda é de cerca de 48 mil MW – aquele célebre
coeficiente de 5% de risco tolerado pelo ONS, Aneel e Ministério de Minas e
Energia – o saldo seria de uma poupança dos mesmos 3 mil MW que deveriam vir da Bolívia. Como essa energia não existe e é improvável que exista,
a poupança de fato é zero, e o coeficiente de risco real já saltou para 8%.
Estudos recentes da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE),
feitos a pedido da Aneel, mostram uma realidade bem mais dramática com
riscos subindo para patamares de 20%.
Falta ainda mais energia no farnel da contabilidade oficial. Em seu planejamento, a EPE considera como energia disponível os 2,5 mil MW que deveriam vir da interligação com a Argentina (Cien) e os 500 MW da termelétrica
de Araucária, que não tem contrato de gás que garanta a sua operação. Só
que a Argentina decretou moratória na sua oferta de gás. A EPE também
sanciona o mesmo gás portenho inexistente que deveria abastecer os 580
MW a serem gerados pela térmica de Uruguaiana, o sonho de inverno dos
gaúchos para garantir a calefação da temporada. Não tem nem um, nem
outro. O risco de o sistema entrar em pane já saltaria para mais de 10% caso
o ONS, em uma inusitada, mas benéfica discordância pública com a EPE não
desconsiderasse o CIEN e os seus 2,5 mil MW para efeito do cálculo da
energia assegurada. E o que faz a EPE em toda essa história? Sua função é
planejar a garantia de energia no longo prazo. Ela faz um plano decenal e um
plano para os futuros 30 anos, no caso até 2025. Como todos os projetos de
geração de energia são de amplo prazo de maturação, esse planejamento é
fundamental para que o sistema não seja pego de calça curta, não podendo
entregar, na melhor das hipóteses, a eletricidade mínima necessária para o
crescimento máximo da economia estimado para o período, ou, na pior hipótese, deixando nas mãos do ONS a responsabilidade de administrar um risco
de apagão.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 135
I N S I G H T
A batata da energia, infelizmente, está assando e vai
sair ainda mais quente. O ONS faz o favor de não projetar
o Cien, mas contabiliza as térmicas a gás que não tem
gás e ainda coloca no mesmo balaio a totalidade da energia alternativa do Proinfa (derivada da biomassa, eólica
e Pequenas Centrais Hidrelétricas – PCHs) a ser gerada
em condições lúdicas e ideais. São mais 3,3 mil MW de
potência e 1,3 mil MW de energia assegurada postas
para rodar no programa de probabilidades, dos quais
60% inexistem devido a atrasos nos empreendimentos,
todos eles de iniciativa privada. Para dar uma pincelada
na firmeza desses entrepreneurs e na confiabilidade de
que a geração energética alternativa venha em tempo
hábil, diversos empresários que ganharam os leilões do
governo para construir esses projetos não conseguiram
obter financiamentos de uma linha de crédito especial
do BNDES porque simplesmente não tinham como dar
garantias; alguns deles com nada no bolso e nada nas
INTELIGÊNCIA
mãos. Pois bem, o ONS considera que todos esses 1,3 mil
MW vão entrar até 2009, mesmo os empresários declarando que o fornecimento vai atrasar. Enxerga o que bem
lhe interessa.
Os antecedentes das autoridades reguladoras e despachadoras de energia estimulam os chistes do signatário destas linhas. A leniência e bate-cabeças dos respectivos órgãos estratégicos do aparelho de Estado desde o
governo FHC são inacreditáveis. Outro exemplo? O ONS
tem que colocar também no modelo as hídricas que estão em construção. Com objetivo de classificação de risco e, portanto, de prospecção das usinas que efetivamente poderão entrar em operação dentro do cronograma proposto, é aplicada formalmente pela Aneel uma
palheta de cores verdes, amarelas e vermelhas. As usinas hidrelétricas que ganham o verde correspondem a
dizer que está tudo OK. As amarelas significam um sinal
de atenção. E as vermelhas querem dizer sérios proble-
GRÁFICO 3
Saldo oferta de energia versus demanda - 2006-2010
CASO: REDUÇÃO DE 60% DO PROINFA. DE ACORDO COM A ANEEL,
DOS 3.150 MW PREVISTOS, SOMENTE 830 MW ESTÃO EM CONSTRUÇÃO
5
4
DÉFICIT DE 1.300 MW
MÉDIOS EM 2010
3
2
1
0
-1
-2
2006
Fonte: PSR
Elaboração: Gás Energy
136 F OGO-FÁTUO
2007
2008
2009
2010
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
GRÁFICO 4
Saldo oferta de energia versus demanda - 2006-2010
CORTE DE LASTRO ADICIONAL SE HOUVER ATRASO NO GNL
(PERMANECE O RESTO DA OFERTA DE GN, INCLUSIVE O ESPÍRITO SANTO)
GW MÉDIOS
2,0
1,5
DÉFICIT MÉDIO DE 2.600 MW
EM 2008-2010, 2.900 MW
MÉDIOS EM 2009
1,0
0,5
0,0
-0,5
-1,0
-1,5
-2,0
-2,5
-3,0
-3,5
2006
2007
2008
2009
2010
Fonte: PSR
Elaboração: Gás Energy
mas. Para efeito de consumo interno, ou seja, sem que ninguém tenha acesso à informação oficial, a própria Aneel
considera que algumas vermelhas não terão mesmo a mínima chance de entrar em operação nos prazos previstos e
pode-se dizer que agora ampliou seu arco-íris do risco energético. Entrou a cor roxa, ou quase preta, que quer dizer
“sem chance”. Um exemplo de usina que poderia ser considerada roxa? A usina de Estreito, na região do Tocantins,
com produção prevista de 600 MW. Mesmo assim, no modelo do ONS, a roxinha entra em operação em 2010,
enquanto seus empreendedores não arriscaram nem vender energia no leilão de energia nova para 2011.
No andar da carruagem, considerando-se que também são roxas as usinas de energia alternativa, das quais
somente 500 MW dos 1,3 mil MW projetados vão rodar; que 400 MW de energia assegurada de outras pequenas
hídricas não vêm; que os 600 MW de Estreito são roxíssimos e provavelmente só poderão ser despachados em 2012
ou 2013; e isto tudo sem contar o gás da Argentina e da Bolívia, que micaram, vão faltar cerca de 2,5 mil MW por ano
até 2010. O coeficiente de risco já aponta para um enfarte muito superior ao teto de 5%. Repor o buraco no estoque
de energia é o mínimo que pode e deve ser feito para que nos contentemos pelo menos com um ritmo de crescimento
africano da economia. Se quisermos dar um saltinho no PIB, passando dos 4% hoje já idealizados para ainda
modestos 5%, além daqueles 2,5 mil MW que significam déficit, o governo tem de acrescentar mais 700 MW por ano.
Esse pontinho percentual significa a construção por ano de uma usina correspondente à encruada hidrelétrica de
Estreito, que ficou amarrada na burocracia do Estado durante o todo o quadriênio do governo Lula.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 137
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
GRÁFICO 5
Risco anual de déficit: PMO
Cenário Chapa Branca
25%
21.4%
20%
15%
19.2%
OS RISCOS DE RACIONAMENTO
ESTÃO ACIMA DO CRITÉRIO
12.0%
10%
10.3%
7.2%
11.6%
8.8%
11.1% 11.3%
8.5% 8.9% 9.0%
7.0%
5.9% 6.0%
5%
0%
4.0%
0%
0% 0% 0%
2006
2007
2008
2009
2010
Fonte: Gás Energy
Caso o governo insista no seu cenário chapa branca, o déficit chega a 500 MW médios no último ano
do governo Lula e o risco de racionamento de energia chega ao seu ápice em 2010, nos seguintes
percentuais conforme as regiões do país: 11,1% no Sudeste, 11,3% no Sul, 19,2% no Norte e 21,4% no
Nordeste. No pior cenário, onde todos os problemas previstos, mais o atraso do lastro adicional de Gás
Natural Liquefeito (GNL), a tragédia pode começar em 2009, com um déficit de 2,9 MW médios naquele
ano. O déficit do período 2008/2010 vai a 2,6 mil MW médios. O Nordeste conheceria a verdadeira
energia Severina. O Sertão não vai virar mar de jeito nenhum.
Existem outras mazelas no planejamento energético que são para não deixar ninguém dormir. Já
antes do apagão, o ex-ministro e conselheiro plurigovernamental Eliezer Batista4 advertia que o mapeamento hidrológico do Brasil estava caduco há mais de década. Este levantamento detalhado dos
mananciais hídricos é a primeira instância para que se reduza o desvio padrão entre o projetado e o
realizado na área de energia hidrelétrica. Ora, tem rio que seca; ora, tem clima que muda. O presidente
da EPE, Maurício Tolmasquim, confessou candidamente, em entrevista à imprensa, que o mapeamento
hidrológico ainda não foi refeito, o que talvez comece em 2007. Em outras palavras, toda a lógica
probabilística do modelo energético pode estar meio bamba. Essa corrente para frente, do deixar estar
para ver como é que fica, leva ao seguinte beco: refazer o levantamento dos rios demora mais ou menos
uns três anos, obter uma licença ambiental para os projetos de geração, na média mais dois anos, e uma
usina de porte, mais uns quatro anos. Se não houver qualquer acidentalidade – o que, com nossos
precedentes, é exceção – vamos perder uns sete anos para voltar a bradar o grito de independência do
PIB. Isto se todo o processo for percorrido em ritmo de marcha forçada.
4. Ex-ministro de Minas e Energia e de Assuntos Estratégicos e ex-presidente da Vale do Rio Doce. Integra o Conselho de Administração de empresas no Brasil e no exterior. É membro eleito da Academia de Ciências Russas.
138 F OGO-FÁTUO
I N S I G H T
Parte do problema é bizarrice administrativa e gerencial, mas o nó górdio da questão, o crime de lesa-PIB,
é mesmo a falta de definição de prioridade. É escapismo
atribuir causalidade natural do problema à decantada
falta de grana em razão da necessidade de gerar superávits primários, ou ao engessamento do orçamento público. O dinheiro para energia tem de sair de qualquer jeito,
de qualquer forma e da rubrica orçamentária que der. O
que falta é Prioridade, com “P” maiúsculo. Segundo um
estudo recentíssimo do Ipea, os investimentos efetivamente realizados pelo governo federal no setor energético caíram de uma média de 0,95% do PIB entre 2001/
2002 – isto porque ainda houve um carry over dos gastos
emergenciais com o apagão, no período – para uma média de 0,51% do PIB entre 2003/2005. O fato do PIB ter
sido maior no intervalo 2003/2005 deveria ter levado ao
crescimento dos investimentos vis-à-vis a preocupação com
o aumento da demanda. Neca! A queda relativa demonstra o quanto é flácida a noção de prioridade entre os escalões responsáveis, quem quer que sejam.
INTELIGÊNCIA
O diretor do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura
(CBIE), Adriano Pires5, aprofunda a análise do setor de
energia e observa que os investimentos realizados pela
Eletrobrás caíram de uma média de 0,24% do PIB entre
2001/2002 para uma média de 0,17% entre 2003 e 2005.
Conclusão número um: investimento em Bolsa Família
não pode ser excludente do investimento responsável
em energia. Conclusão número dois: a economia brasileira não tem como crescer acima de 4% nos próximos
quatro anos sem o risco de desabastecimento se os minguados investimentos do setor e a obediência ao cronograma das obras não virarem de pernas para o ar. Conclusão número três: todas as frenéticas discussões que
vêm sendo entabuladas por macro, micro e nano economistas sobre os impactos do maior ou menor afrouxamento dos torniquetes monetários e fiscais no relançamento da economia estão sendo feitas em bases movediças. Exemplo da conclusão número três: o professor Affonso
Celso Pastore6 afirma que, sendo mantido o ritmo atual
de crescimento dos gastos públicos, para que o país tenha sustentabilidade econômica, o PIB deverá avançar a
taxas em torno de 7% nos próximos anos. Segundo ele, o
motivo da improbabilidade desse crescimento é a própria velocidade do gasto público, que teria uma espécie
de função entrópica e exigiria seu financiamento através
do aumento da carga tributária. A econometria feita pelo
professor Pastore deve estar certíssima, mas falta a variável-chave no seu raciocínio. Bem mais simples e na
mira seria se ele dissesse que não tem energia e, portanto, não haverá crescimento.
5. D.Sc. em Economia Industrial pela Universidade Paris XIII e economista pela UFRJ (1981). Foi assessor da diretoria-geral da ANP e superintendente das áreas de Importação e Exportação e Abastecimento da
agência.
6. Doutor em Economia pela Universidade de São Paulo, ex-presidente
do Banco Central do Brasil e professor da Escola de Pós-Graduação em
Economia (EPGE) da Fundação Getulio Vargas.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 139
I N S I G H T
A consultoria Tendências, dirigida pelo ex-ministro
da Fazenda, Maílson da Nóbrega, em um estudo bastante recente, toca na ferida da opção preferencial do governo em trabalhar com um baixo coeficiente de risco e,
portanto, com um pequeno excedente de energia no sistema. A Tendências questiona as contas ou premissas
que levam ao cálculo do custo do racionamento, fator
fundamental para o planejamento da oferta de geração
e, portanto, do excedente de energia assegurada no sistema. Adivinhão quem apostou que o excedente teria
que ser maior para evitar o risco do somatório de erros
não previstos no modelo probabilístico – exemplo: o ataque endógeno da burocracia, atrasando, travando ou impossibilitando todos os projetos estruturantes. De acordo com o estudo, mantido o coeficiente de risco em 5%,
a probabilidade estatística é de um risco de racionamento de energia a cada 20 anos.
Os economistas Paulo Levy7 e Fabio Giambiagi8 afirmam, em nota técnica do Ipea, que as restrições à expansão da economia um milímetro mais acelerada são a
baixa taxa de investimento em capital fixo, hoje em torno
de 20% do PIB (ver Gráfico 6), e o risco de desabastecimento de energia. Mais recentemente, o mesmo Ipea,
em estudo titulado “Uma Agenda para o Crescimento
Econômico e a Redução da Pobreza” reitera que o Brasil
não crescerá 5% nos próximos anos, por problemas no
setor elétrico e pela baixa taxa de investimentos. O mesmo estudo vaticina que a tarefa do governo agora é criar
140 F OGO-FÁTUO
INTELIGÊNCIA
condições para que, na década de 2011-2020, o país possa ter um crescimento superior a 4,5% ao ano. Dói antever as conseqüências mais agudas dessa limitação. Se o
filme for esse, nosso complexo de inferioridade atingirá
níveis nunca dantes alcançados.
O economista Ilan Goldfajn9 pavimenta com dados
do FMI o caminho da frustração. Nos últimos quatro anos,
enquanto o Brasil cresceu algo acima de 2%, a média
dos países em desenvolvimento mostra um salto do patamar anterior de 5% para 7%. Nos últimos 10 anos, não
há um único ano em que o Brasil tenha crescido acima da
média dos mais ricos, que, historicamente, vinham com
seu PIB atrás, arrastando-se como uma lagarta. Pode ser
pior? Pode, diz Ilan. “Até recentemente, o Brasil crescia
entre 1,5% e 3% abaixo da média dos países em desenvolvimento. Nos últimos anos, o Brasil se distanciou ainda mais do resto, crescendo em torno de 3% a 5% menos”. Cai o pano.
7. Diretor de Estudos Macroeconômicos do Ipea
8. Mestre em Ciências Econômicas pelo Instituto de Economia da UFRJ,
integrou a Assessoria Econômica do Ministério do Planejamento e Orçamento em 1995; Teve passagem pelo BID de 1993 a 1994. Desde 1996,
faz parte do Departamento Econômico do BNDES.
9. Professor do Departamento de Economia da PUC-Rio e diretor do Instituto de Ensino e Pesquisa em Economia da Casa das Garças (IEPE/
CdG). Ex-diretor de Política Econômica do Banco Central do Brasil, trabalhou como consultor do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e da Organização da Nações Unidas. Foi também da sócio da
Gávea Investimentos.
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
GRÁFICO 6
Taxa de investimento como proporção do PIB
Dados do 1º semestre (1991-2006)
23,0%
22,1
21,8
22,0%
21,0%
20,4
20,5
20,2
20,1 20,2
19,9
20,0%
19,4
18,8
19,0%
18,4
19,0
19,0
18,3
17,7
18,0%
17,1
17,0%
16,0%
1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006
Fonte: IBGE
Os montantes dos investimentos em energia são sempre colossais e amedrontam com a dúvida sobre
sua exeqüibilidade os planejadores mais experientes mesmo em condições de baixa emergencialidade e
razoável disponibilidade de recursos. Não é o caso. Para se ter uma idéia do desafio ciclópico, a Agência
Internacional de Energia estima que o país teria de investir R$ 44 bilhões por ano até 2030 para se manter
competitivo. A Associação Brasileira da Indústria de Base (Abdib) também projeta um valor aproximado, ou
seja, R$ 17 bilhões em investimentos no setor elétrico e mais R$ 31 bilhões em petróleo e gás, por ano, em
duas décadas. A Abdib acredita que esse esforço permitiria ao país voltar a crescer a 7% ao ano de forma
sustentável. A FGV é mais modesta, pois também considera como benefícios certos e já equacionados os
investimentos alocados para projetos que estão atrasados há um qüinqüênio. Para a FGV, bastariam
recursos da ordem de R$ 7 bilhões ao ano para que não fôssemos para a terceira divisão do campeonato.
Isto quer dizer, conseguir um crescimento da economia que alcance os 4% ao ano.
O BNDES, em levantamento sobre os projetos que já estão mapeados, conclui brilhantemente que o
setor de energia tem como característica exigir que a oferta se antecipe à demanda. Ele informa que, se
confirmados, os investimentos de R$ 88 bilhões até 2010 (R$ 48 bilhões em geração, R$ 24 bilhões para
distribuição e R$ 16 bilhões em linhas de transmissão) representam um aumento de 60% superior ao
efetivado entre 2002 e 2005. Ora, nesse período praticamente nenhum investimento foi efetivado, sendo
que a maior parte dos projetos mapeados para os quatro anos do segundo mandato de Lula deveria ter sido
realizada em sua primeira gestão. Em condições que não previssem um crescimento indigente, e, portanto,
a realização dos investimentos no triênio passado e neste ano, os R$ 88 bilhões deveriam alcançar R$ 150
bilhões, para garantir excedente firme de energia, reduzir no quanto for possível os custos de transação na
economia e reverter as expectativas de que o crescimento do PIB está para lá de stand by.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 141
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
GRÁFICO 7
O Brasil investiu em logística bem abaixo dos benchmarks internacionais
(%PIB)
7,0
Vietnam
6,0
5,0
Rússia
China
4,0
Tailândia
Coréia
3,0
Mongólia
2,0
Lao
Índia
Austrália
Indonésia
Japão
Irã
Singapura
1,0
Camboja
Bangladesh
Kazaquistão
Brasil
100
1.000
10.000
100.000
PIB per capita (US$)
Fonte: Bancos de Desnvolvimento dos países; Análises Macrologística.
Parafraseando o professor Mário Henrique Simonsen, se a energia mata, a logística aleija. O país vive a
ante-sala do apagão rodo-ferro-portuário. O investimento do governo é risível (logística não é prioridade) Os
portos do Sul do país trabalham a 95% da capacidade
instalada. O Porto de Santos, o principal do país, já
bateu no seu limite. As estradas estão em petição de
miséria, com o transporte de carga onerando o custo
final da mercadoria, jogando lenha na inflação e reduzindo o poder de compra do consumidor. Em Santos, por
exemplo, há mil vagas para caminhões, mas no período
de safra agrícola chegam ao porto 13 mil veículos por
dia. Os projetos ferroviários que deveriam desengargalar o sistema, estão todos atrasados, devido às exigências da própria burocracia de Estado. A navegação de
cabotagem inexiste. E eu mesmo não estou me sentindo muito bem.
142 F OGO-FÁTUO
Falou em logística, falou em Dr. Eliezer Batista. Para
começar do início, como dizem os sábios chineses, é preciso esquartejar o que quer dizer o conceito de logística,
que vem do grego Logistikós (aquele que sabe calcular
racionalmente). “Portanto, a logística tem que ter uma
abordagem sistêmica da origem até o destino final dos
produtos, interna e externamente, e está inserida na
cadeia de suprimentos (supply chain), ou seja, matéria,
insumo, produção, transporte, imposto, distribuição, fluxo de informação, burocracia, gargalos institucionais, e
principalmente eficiência gerencial”. Em português traduzido, logística é o custo de levar uma pessoa ou produto de um ponto ao outro.
No Brasil, a abordagem da logística não é sistêmica,
é anêmica. Até bem pouco tempo, o que se entendia por
logística era a concessão de recursos orçamentários como
moeda de troca política para construção de estradas que
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
iam de lugar nenhum a lugar algum. Se logística é fator
de integração, competitividade e – por que não? – qualidade de vida (o transporte de passageiro não deixa de
ser um ramo do setor) somos conduzidos por um comboio
para o inferno. O Brasil está situado apenas na 65ª posição entre os países mais competitivos em logística. Como
nosso masoquismo pede a comparação com os países
fetiches em desenvolvimento, segue a lancinante informação de que o Brasil investiu, nos últimos anos, como
proporção do PIB e em ordem decrescente bem abaixo da
China, Rússia, Vietnam, Tailândia, Coréia do Sul, Índia,
Mongólia e Austrália (ver Gráfico 7). Na turma dos países
menos relevantes que vêm logo a seguir, investimos, conforme os mesmos critérios, menos do que Irã, Indonésia,
Laos, Bangladesh e Cazaquistão.
Hipótese que poderia ser aventada a esta altura:
investimos pouco porque já tínhamos uma base razoável, que foi sendo depreciada, mas existia, estava lá,
impávida e colossal. Nâna-nâna-ninha! O custo do transporte brasileiro sempre foi alto, devido a uma série de
fatores: desbalanceamento da matriz de transportes –
priorização do modal rodoviário –, legislação e fiscalização inadequadas, deficiências da infra-estrutura de
apoio e insegurança nas vias – roubo de cargas e falta
de manutenção (Fontes: Coppead, Eliezer Batista e Macrologística). Para se ter uma idéia do significado desses enunciados a primeira vista gasosos, a matriz de
transporte onera o custo do país em cerca de R$ 30
bilhões, mais do que 15 vezes o investimento total do
governo no setor em 2005 (R$ 2,8 bilhões), o correspondente a esquálidos 0,15% do PIB (ver Gráfico 8). Destaque para a constatação de que, no ano passado, os
recursos pífios foram um dos maiores do quadriênio
anterior, quando os investimentos como proporção do
PIB chegaram somente a 0,9%, em 2003, e 0,13%, em
2004. Em 2002, lavamos a égua, com o registro de 0,1%
de aumento em relação a 2005. Vexame!
GRÁFICO 8
Investimento brasileiro em infra-estrutura de transporte
R$ 3,1 BI
R$ 2,5 BI
R$ 2,1 BI
0,23
R$ 2,8 BI
R$ 2,3 BI
0,26
R$ 1,4 BI
0,16
0,09
2000
PIB Brasil
(R$ trilhões)
1,1
2001
1,2
2002
2003
1,3
1,6
0,13
0,15
2004
2005
1,8
1,9
Fonte: PIB: 1999-2003 IBGE, 2004-2005 Seplan; Ministério do Planejamento; Análises Macrologística.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 143
I N S I G H T
A inadequação da matriz de transporte salta aos
olhos. No Brasil, o modal rodoviário, que tem um custo
mais elevado, chega a 85% do transporte de carga, que,
por sua vez representa 56% do custo da logística. Na
Rússia, 70% são ferroviários; no Canadá, 60%, ferroviários; na China, 40%, aquaviários; e nos EUA, também
cerca de 40% correspondem ao modal aquaviário. Pode
parecer que esses comparativos são mais uma daquelas
listas vindas do Fórum Mundial de Davos, do Bird, da
Unctad, que estão viciadas por desconsideração de variáveis fundamentais. Mas, na prática, o cenário ainda é
pior do que parece nas estatísticas. Por falta de investimentos, a maioria dos portos – incluindo Santos – não
tem condições de receber navios de última geração, os
chamados Post-Panamax, verdadeiros gigantes que reduzem os custos tanto para granéis como para contêineres. Se essas embarcações pudessem ser utilizadas, importadores e exportadores poderiam economizar US$ 1,5
bilhão em fretes transoceânicos. Mas, faltam prioridades vitaminadas para qualquer pontapé inicial logístico.
144 F OGO-FÁTUO
INTELIGÊNCIA
A diferença entre o investimento realizado e o necessário nesse segmento tem um coeficiente de dispersão
assustador: se o Brasil quiser realmente voltar a crescer
na faixa dos 7% (hoje seriam necessários uns 8% do PIB
somente para criar mercado de trabalho para o crescimento vegetativo da população), a Associação Brasileira
da Infra-Estrutura e Indústria de Base (Abdib) estima que
os investimentos anuais nas próximas décadas terão que
ser da ordem de R$ 16 bilhões. Alguém diria que o pessoal da Abdib chegou a essa conta porque quer fazer
obra. Mas, a Fundação Getulio Vargas também não faz
por menos e prevê que só a recuperação e ampliação da
malha rodoviária exigirá R$ 46 bilhões no quadriênio 20072010, ou seja, cerca de R$ 11 bilhões por ano (preços de
2005). Esses recursos levam em consideração, além da
reparação de 55% dos 82 mil quilômetros existentes,
uma expansão de 2% ao ano no tamanho da malha por
habitante, o que totaliza 27,7 mil quilômetros de estrada
até o final de 2010.
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
TABELA 1
Projetos prioritários em logística
Fonte: Macrologística
O ex-ministro Eliezer Batista e a consultoria Macrologística usam outros critérios na estimativa do quantum de
investimento de que o país precisa para que o PIB rode melhor nos trilhos. Em um estudo denominado “Projeto Brasil
– Logística e Infra-Estrutura do Transporte de Carga”, calculam que R$ 38 bilhões ou um acréscimo de 0,25% do PIB
por ano seriam suficientes para adequação da matriz de transporte com uma redução total deste segmento no Custo
Brasil da ordem de R$ 28 bilhões. Os gastos subiriam para R$ 96 bilhões se fosse feita a adequação do supply chain.
O pay back médio dos investimentos é de 1,5 ao ano. Se isso fosse o retorno sobre o investimento de ação negociada
nas bolsas, qualquer um de nós compraria.
Eliezer considera que, quando se trata de logística, não cabem gatilhos. É claro que é necessário tapar buracos e
fazer manutenção das rodovias. Isto para tudo ficar como está, para ver como é que fica. Mas, mesmo novos
investimentos devem levar em consideração que projetos pontuais trazem pouco impacto econômico e social. O erro
tem sido a não adoção da visão sistêmica. O desvio no tempo entre um projeto e outro anula os ganhos de sinergia e
acaba produzindo uma indesejável anergia. Gastam-se recursos escassos para que as coisas fiquem ainda piores. O
mestre da logística aposta suas fichas que o investimento total de R$ 96 bilhões em 10 anos (menos de 0,7% ao ano)
na adequação do supply chain teria um espetacular retorno em dois anos, ou seja, o investimento se pagaria em um
biênio, o que viabilizaria o acesso a financiamentos para implantação dos projetos.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 145
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É nesse ponto que se volta ao círculo vicioso: as necessidades são prementes, os investimentos são postergados, as necessidades ficam ainda mais prementes,
maiores investimentos são novamente postergados... e o
PIB, aqui, ó! O não-desatamento dos nós da infra-estrutura, inviabilizando o crescimento econômico, não é uma
inevitável e irrefutável conseqüência de uma opção por
uma política de estabilização by the book, mas uma escolha política. Diz o ex-ministro Delfim Netto, “o Estado
é maior do que o PIB”. Pode até ser que a galhofa corresponda à realidade. Seja como for, as exigências cruciais
em energia e logística têm que ser sobrepesadas.
E la plata? – perguntariam, novamente, os cidadãos
bombardeados pelo discurso de que o Estado quebrou.
Evidência de que recursos orçamentários até existem é a
interdição por motivos de credo fiscal das verbas da Contribuição sobre Intervenção no Domínio Econômico (Cide),
criada com a finalidade única de bancar os investimentos
públicos em infra-estrutura de transporte. De janeiro de
2002 a dezembro de 2005, o Cide proporcionou receita
de R$ 31,5 bilhões ao governo federal. Entretanto, somente 17% foram direcionados a rodovias, ferrovias e
hidrovias. A alocação foi propositalmente suspensa para
colaborar na formação do superávit primário das contas
do governo, configurando uma espécie de “responsabilidade fiscal ao contrário”, quando contribuições que somente foram criadas para determinado fim não são utilizadas para fim nenhum. É muito provável e certamente
bastante fundamentada a lógica de que o equilíbrio orçamentário – avançando inclusive para a extinção do
déficit nominal – seja requisito para a estabilidade macro-econômica. E que um ajuste fiscal mais intenso seja
necessário para alcançarmos o ponto de bala para a recuperação dos investimentos e retomada do crescimento
econômico em bases sustentáveis. Há quem diga que a
galinha nasceu primeiro que o ovo, defendendo que o
crescimento seja requisito fundamental e antecedente
do ajuste fiscal e da estabilização macroeconômica. Di-
INTELIGÊNCIA
vergências conceituais à parte, as emproadas assertivas
ficam ineptas e meio que inúteis sem as devidas manutenção, adequação e ampliação dos modais de transportes. Isto para não falar da absolutamente prioritária oferta de energia compatível com uma elasticidade de demanda decente, comparável pelo menos à média internacional. Que se tirem os recursos de onde estiverem,
como quiserem e do jeito que for possível.
No setor de logística, a privatização só merece loas –
aliás, toda vez que se consegue atrair o setor privado
para a empreitada, a bola rola mais redonda no gramado. Depois de realizados os leilões de concessão, os investimentos aumentaram, os portos ganharam em eficiência, reduziu-se o custo homem/hora, aumentou a velocidade de embarque, caiu o custo da mercadoria embarcada, estradas foram melhores asfaltadas e sinalizadas etc.
Poderia ser ainda melhor? O superintendente da Secretaria de Assuntos Econômicos do BNDES, Fernando Puga10,
diz que sim com a onipresente condicionante que os investimentos na infra-estrutura dependem de uma complementação pública. No setor portuário, por exemplo, faltam as obras de entorno, como dragagens e rodovias de acesso, entre outros, que são de responsabilidade pública. Mesmo que o Estado estivesse na ponta dos
cascos nos chamados “investimentos complementares
não-estruturantes”, existiria ainda um hiato entre a razão e dinâmica do interesse privado e a exigência do
interesse nacional, variável-chave que trataremos logo a
seguir. Se a velocidade de sensibilização do interesse
empresarial, assim como sua lógica de compreensão da
necessidade do projeto no tempo, fosse a mesma que a
legítima ansiedade nacional imprime para desobstrução
dos gargalos do crescimento, estava tudo resolvido.
10. Economista e integrante da área de planejamento do BNDES.
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INTELIGÊNCIA
O ex-ministro Roberto Campos, que não pode ser acusado de inimigo das privatizações,
entendia que o investimento público não era excludente do sempre desejável investimento
privado. Pelo contrário. Era função do Estado aplicar seus recursos em setores não-rentáveis e também na criação de “células germinativas”, que potencializariam a participação
posterior da iniciativa privada. Em palavras mais simples, isto quer dizer que o Estado
precisa investir a fundo perdido para atrair o empresariado, que, ato contínuo, tem notória
e indiscutível vantagem na eficiência da gestão e busca de resultados. Nesse aspecto,
seriam oportunas, mais econômicas e simplificadoras do resgate do investimento em infraestrutura as Parcerias Público-Privadas (PPPs), que têm por objetivo reduzir os custos dos
empreendimentos para o governo e otimizar sua resposta e retorno. Os dois primeiros
quesitos estão bem defendidos. Já com relação à função simplificadora das PPPs há mais do
que controvérsias.
As PPPs são uma modalidade de concessão patrocinada, na qual o governo paga,
através de contra-prestações, parcela dos projetos de geração de serviços públicos que
serão explorados pela iniciativa privada. Se o quebra-cabeça já viesse pronto, o expediente
permitiria ao governo economizar recursos escassos, pagando parte da obra. Para não
dizer que não falamos de espinhos, a contrapartida é que a fatura não seria paga nunca. Ao
invés do modelo convencional de privatização, o Estado não se ressarciria de alguma
maneira após pagar parte da conta. Em alguns países, as PPPs funcionaram, mas sempre de
forma complementar e minoritária no total do investimento em infra-estrutura. Seria bom
se funcionassem aqui, apesar da querela contra a “doação” pelo Tesouro aos grupos priva-
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INTELIGÊNCIA
dos. Quer seja “teta pública” ou não, o fato é que as PPPs, muito mimosas e engenhosas, não andaram uma
esquina. Nenhuma parceria, das dezenas aventadas, foi firmada no primeiro mandato do governo Lula. O
edital da primeira PPP, que prevê a concessão das rodovias BR-116 (trecho que liga Feira de Santana à divisa
da Bahia com o Rio de Janeiro) e BR-324 (ligação de Salvador a Feira de Santana), somente apresentado,
atrasadíssimo, no final de setembro, foi recebido com desânimo desolador. Não se sabe se as dezenas de
dúvidas levantadas em relação à atratividade do negócio têm por objetivo a elevação da contrapartida
oficial (se o leilão for realizado, ganhará o grupo privado que pedir a menor contraprestação do governo).
Pode ser. É fato, contudo, que mais uma vez a importância do projeto para o interesse nacional e sua
urgência são exponencialmente maiores do que a do interesse privado e sua necessidade projetada no
horizonte. A razão privada responde tão somente a rentabilidade e garantia. Velocidade é sempre um fator
em função do tempo.
A mais recorrente reclamação do setor privado diz respeito à ausência de um sistema regulatório
compatível com os riscos dos investimentos. É justa, digamos até justíssima. Ocorre que marco regulatório
não é analgésico. Tem prazos de construção, adequação, discussão, aperfeiçoamento e credibilidade não
compatíveis com a urgência da taxa de retorno do investimento privado. No caso do marco regulatório, a
melhor analogia é com o processo sedimentar, ou seja, depende de compósito sobre compósito. Mais uma
vez vale o princípio da Física de que velocidade é função do tempo. Tem maior complexidade ainda o quesito
credibilidade, no qual as exigências seriam cômicas se não fossem homicidas do condão empresarial para
resolver os problemas. Ah, como era doce a minha solução neoliberal!
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Exemplo extremo do limite da desconfiança unilateral empresário versus governo é a discussão das garantias. Não basta, portanto, o governo convidar e garantir o
pagamento de parcela negociada do empreendimento,
que será benefício exclusivo da parte privada ao longo do
prazo contratual. O “parceiro” privado também quer garantias adicionais e proporcionais, devido ao risco de
que o “parceiro” público também queira renegociar o
contrato, explícita ou implicitamente, dando nova interpretação às regras após a realização dos investimentos;
ou que não possa pagar o que deve, em razão de restrições financeiras. Ora, as mesmas premissas seriam compatíveis com as obrigações pecuniárias do governo; se
valessem, estaria em xeque todo o sistema de títulos
públicos. No limite, o risco adequado é não correr risco.
As PPPs podem e devem ser um tempero nos investimentos em infra-estrutura, mas, pelo menos no horizonte do previsível, são uma pulga na balança. No mundo
idealizado, o sistema funcionaria de forma eficiente e as
travas que impedem não somente a participação desinibida do setor privado, mas também o cumprimento nos
prazos dos investimentos públicos, seriam todas removidas por um processo de auto-aperfeiçoamento ou seleção natural. As burocracias do Estado tratariam o empresariado de forma diferenciada, azeitando o caminho para
que a rentabilidade, motor do seu engajamento no processo de ampliação e redução dos custos dos serviços
públicos, fosse considerada prioridade nacional. É claro
que não é assim. Há motivações racionais, constitucionais e irrefutáveis para que todos os expedientes e dispositivos urgentes e prioritários sejam prerrogativa do
Estado. O que não for fundamentado e devidamente embalado, com base nessa prerrogativa, a burocracia veta,
INTELIGÊNCIA
defendendo assim sua legítima função. E aperta tanto o
setor privado quanto o público. Não é que a burocracia
jogue na contramão do interesse nacional. Ela corre em
pista diferente. Somente pode ser aparteada em nome
de um objetivo superveniente. Sua apoteose obstrutiva
decorre do estado de abulia no planejamento e o supracitado buraco negro no campo das prioridades governamentais. Ela jamais é um mal em si mesma. Se tudo ou
nada têm preferência e caráter emergencial, então que
pelo menos se cumpram os estatutos e regulamentos,
garantindo no mínimo a proteção do dever cumprido. É o
que a burocracia faz, muito bem por sinal.
A burocracia é um capítulo à parte na conjuntura de
indisposição generalizada da infra-estrutura nacional. Ela
reflete em primeira instância uma das fases das democracias nascentes, quando os grupos de interesse legítimo dentro do aparelho de Estado são fortalecidos em
razão da ampliação da representação política de uma
diversidade de demandas da sociedade que até então
estavam à margem dos processos de participação e influência decisória. Autoridades ambientalistas, gerentes
de controle de contas, procuradores e neo-reguladoras a
granel são árbitros potencializados pela participação
social em um sistema não-linear de acertos e concordâncias. A Constituição de 1988, “a cidadã”, talvez tenha
estimulado a uma predominância do peso das burocracias específicas em relação ao contrapeso do próprio Estado. É uma discussão de fundo, que não tem resposta já
e, portanto, não cabe neste ensaio. A energia e a logística têm prioridade emergencial! Ponto final.
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É importante ressaltar que o instrumento da obstrução em defesa do interesse público, tal como definido em lei, é legítimo e inerente às burocracias fiscalizadoras, normativas e reguladoras, exceção quando o Estado sobrepõe o argumento de prioridade maior. A obstrução, portanto, é um dos motivos principais da existência dos grupos de interesse formal dentro do aparelho de Estado, com poder de veto legal. O que tem se
verificado e tanto incomoda no cenário, é que as burocracias não decepcionaram, muito pelo contrário, mandaram ver e, dentro do protocolo, obstruíram praticamente todos os projetos nos setores de energia e logística. Melhor – ou pior dependendo do ângulo – amplificaram a possibilidade de obstrução através do recurso
do procedimento cruzado entre arbitragens diferentes,
permitindo que as liminares, alvarás de obras, licenças
ambientais e denúncias ao Ministério Público, possam
ser utilizados anulando uns aos outros, na medida em
que as exigências vão sendo cumpridas e continuamente questionadas ou anuladas por uma outra instância.
Somam-se às burocracias do Estado os grupos de interesse espalhados pela sociedade (ONGs, fundações, sindicatos etc.). A amálgama dos dois jogaria uma pá de
cal em qualquer princípio de planejamento, tendo em
vista metas rigorosas e de alcance obrigatório.
O passado nacional corrobora e condena a ditadura
do impossível quando o trinômio é composto de burocracias afiadas, projetos ao léu e falta de prioridade do Estado. Todas as obras de infra-estrutura consideradas
“prioritárias” do primeiro mandato do governo Lula, os
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INTELIGÊNCIA
chamados projetos estruturantes (não por acaso todos
em energia e logística), no total cerca de R$ 40 bilhões,
ficaram a ver navios. Certamente menos por motivo de
ausência de recursos, mas sim por obstruções de toda
ordem, o top team da infra-estrutura nacional ganhou a
prioridade e tratamento do estatuto da pequena e média
empresa, com todo o respeito por esse importante segmento da economia brasileira. Ficaram ao relento os seguintes projetos: Complexo Rio Madeira (conjuntos de
hidrelétricas com importância proporcionalmente maior
do que a de Itaipu na ocasião da sua construção), Hidrelétrica de Belo Monte (Rio Xingu), Ferrovia Norte-Sul,
Ferrovia Transnordestina, Ferroanel (sistema ferroviário
em torno de São Paulo), Perimetral do Porto de Santos,
dragagem do Porto de Santos, Arco Rodoviário do Rio de
Janeiro, BR-163 e duplicação da BR-116. Os atrasos decorrem em primeira instância da indecisão do governo
federal – as usinas nucleares, não constam do top team,
mas são exemplos de dúvida hamletiana de mais de duas
décadas. Pegam carona, sempre como motivos adjuntos,
a obstrução pelas burocracias e morosidade nos processos, irmãos siderurgicamente xifópagos.
Se forem levados em consideração os outros projetos
“prioritários” em setores diversos, tais como licitação
de petroleiros, refinarias, gasodutos etc., a paralisia teve
um impacto negativo no fluxo de recursos na economia
da ordem de R$ 90 bilhões e menos alguns vários pontos
percentuais de crescimento do PIB, nesses últimos quatro anos. Pior do que a perda realizada é o comprometimento do crescimento à frente, colocando um cabresto
no desenvolvimento. Por trás das possibilidades permanentes de intervenção sem limite de prazo, vetos de toda
ordem, homologações, acórdãos, medidas cautelares e
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INTELIGÊNCIA
ações judiciais se agiganta a ausência de pulso firme do governo federal. Há algo de
patológico ou de perverso quando um país só se debruça sobre seu próprio desatino
quando chega a situações de afogamento ou terminalidade, a exemplo do que foram
os planos macroeconômicos, com a hiperinflação, e as medidas para enfrentamento
emergencial da crise energética, com a ocorrência dos apagões. Só reagimos frente
à localização do carcinoma.
Omissões de um lado, excessos de outro. O palco suporta todo tipo de alegoria.
A crônica dos acontecimentos escalafobéticos é rica e incorpora medidas e procedimentos rocambolescos, não fossem amparados legalmente. A hidrelétrica de Estreito, no Rio Tocantins, que vem sendo travada desde 1999, tem histórias folclóricas,
como o pedido pelo Ibama para que fosse preparado um estudo ambiental sobre o
impacto das obras no ecossistema dos botos naquela região. O consórcio responsável pelo projeto saiu em campo para procurar um especialista em assunto tão
específico e delicado. Achou uma raríssima acadêmica habilitada para a tarefa, que,
por acaso, se chamava por certidão de batismo de Vera “Boto”. A professora “Boto”
estudou longamente as exigências e desferiu a sentença: o estudo necessário para
o eventual licenciamento pelo Ibama demoraria de cinco a seis anos. A aceitação da
medida levaria a inviabilidade na obra, devido à majoração dos custos em razão de
um atraso amalucado no cronograma. O consórcio responsável pela obra na hidrelétrica de Estreito voltou ao Ibama e ponderou que a missão era impossível. Ponderação aceita, o Ibama solicitou então que fosse feito no lugar do estudo sobre os
botos, um amplo estudo sobre as tartarugas. Pano rápido novamente!
Seguem estudos sobre aranhas, borboletas e índios. Este último, buscando
medir o impacto antropológico dos projetos nas comunidades indígenas, também
com prazo de cinco anos (as preocupações são com a tribo dos Krikati). Tudo se torna
assim impossível. E o governo assiste ao descalabro em estado de distanciamento
bretchiniano. A usina de Tijuco Alto tem uma história ainda mais hilária do que a de
Estreito. O processo de licenciamento ambiental teve início em 1989 e a expectativa
mais otimista é de que a licença seja concedida em 2008, dezenove anos após a sua
entrada. O enredo necessita de maior desdobramento para sejam apreciadas todas
as suas delícias. Segue o relato da trama, no melhor estilo de um conto de Kafka,
conforme notícias pinçadas no jornal Valor Econômico. Vale a leitura:
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INTELIGÊNCIA
“A saga da usina Tijuco Alto começa com a realização pelo Grupo Votorantim do primeiro estudo
ambiental do aproveitamento hidrelétrico, que previa a construção de usina hidrelétrica com capacidade de
geração de 148 MW no rio Ribeira, no Vale do Ribeira. Desde o início o projeto sofreu contestações de
grupos ambientais (o que não é usufruto deste empreendimento, mas de qualquer uma das usinas hidrelétricas na prancheta). Como o rio fica na divisa dos estados do Paraná e de São Paulo, o Votorantim entrou
com processo de licenciamento tanto na Secretaria de Meio Ambiente paulista, como no Instituto Ambiental
do Paraná (IAP). Os órgãos ambientais concederam ao empreendimento a licença prévia, primeiro passo no
processo de licenciamento, em 1994.”
“No mesmo ano, o Ministério Público entrou com ação pública de questionamento da competência dos
Estados em conceder o licenciamento ambiental deste projeto. O fato é que entre o início do empreendimento e a obtenção de licença prévia, a legislação ambiental mudou, transferindo ao Ibama a competência
para licenciamento ambiental em projetos de usinas cujos rios atendam dois ou mais estados. O julgamento
dessa ação ocorreu em 1999, definindo o Ibama como órgão adequado para o licenciamento do empreendimento. Antes disso, porém, o Votorantim já havia se antecipado, dando entrada em 1997 ao pedido de
licenciamento de Tijuco Alto no próprio Ibama. Em 2003, porém, o Ibama indeferiu a concessão de nova
licença prévia. O órgão federal argumentou que o estudo ambiental, devido à passagem do tempo, já não
retratava as condições socio-ambientais da região. Na época, o Ibama determinou que fosse apresentado
novo estudo, sem o qual não seria possível retomar o processo de licenciamento. A empresa refez o estudo
e voltou novamente a entregá-lo em outubro de 2005.” Ao que consta, não surgiu ainda sinal de novo
impedimento à vista.
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Tijuco Alto e Estreito são apenas dois dos múltiplos
coadjuvantes em uma pantomima no qual o protagonista
é o Estado narcotizado. Um levantamento realizado no
mostruário do Ibama revela que entre 30 projetos de
hidrelétricas fiscalizados, 28 estão com atraso no processo de licenciamento ambiental. Quando não é o Ibama é o TCU. Se não for o TCU é a Justiça Federal. E caso
o obstáculo na esfera jurídica seja suplantado, volta de
novo para a ambiental, por decurso de prazo. O maior
projeto do governo no setor de energia elétrica, o Complexo do Madeira, é um exemplo dessa brincadeira de
gato e rato. Depois de uma batalha que atravessou governos, a licença ambiental prévia para a construção das
usinas de Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira, foi liberada para audiência pública. Bastou essa etapa do processo ser resolvida para que uma liminar concedida pela
Justiça Federal impedisse o rito normal da licença. Em
ação cautelar, o Ministério Público Federal e o Ministério
Público Estadual alegaram que não foi respeitado um
prazo mínimo de 60 dias entre a apresentação do EIARima (relatório de impacto ambiental) às comunidades
locais e a realização das audiências públicas.
Quer mais? Pois saiba que o Ministério Público de
Rondônia já está tramando um conflito entre Brasil e
Bolívia por causa dos riscos de inundação do país vizinho, devido ao mesmo Complexo do Madeira – qualquer semelhança com a teoria conspiratória de que íamos usar a hidrelétrica de Itaipu como dispositivo militar de inundação da Argentina não é loucura menor. As
autoridades rondonenses estão a favor dos bolivianos,
apesar do relatório de impacto ambiental, feito por quem
deveria entender do assunto, ser favorável à construção das usinas. O argumento é que uma grande área de
vegetação de igapós, que na natureza fica alagada sazonalmente, poderia acabar submersa para sempre.
Rondônia 1 x 0 Brasil.
INTELIGÊNCIA
E não há garantia de que exista um limite às desautorizações cruzadas intra-autoridades do setor público.
Em última instância parece sempre haver mais uma instância. Exemplos? Um questionamento do recente do
Ministério Público Federal (MPF) coloca em xeque a competência do Feam, autoridade ambiental de Minas Gerais, para conceder a licença de instalação da usina de
Baguari. O MPF considera que o licenciamento ambiental cabe ao Ibama, porque o Rio Doce, onde será instalado o empreendimento, passa por dois estados. O
mesmo questionamento atrasa a licença ambiental da
hidrelétrica de Mauá, que já foi incluída no próximo
leilão de energia elétrica do governo, mesmo sem poder ter sido. Licitada em 2001, a hidrelétrica, que também atravessa dois estados, ainda aguarda licença ambiental. Já chega, não?
A logística e a energia são irmãs na dor. Ambas
sofrem extravagantes amputações, todas elas solidamente amparadas nos limites estritos da Lei. A logística, além de apanhar muito das autoridades federais e
estaduais do meio ambiente e do Ministério Público,
toma sovas homéricas das autoridades municipais. Há
uma exigência que atende pelo desaforado epíteto de
“dispêndios compensatórios sem critérios objetivos”;
que, por sua vez, é uma espinha na garganta dos projetos tais estruturantes, que, por sua vez, já deveriam, há
muito tempo, ter sido estruturantes de alguma coisa. O
dispositivo vive no limbo, entre a formalidade e a informalidade, o confessável e o inconfessável. Permite, por
exemplo, que prefeituras cobrem uma espécie de pedágio em obras pelo alvará para determinado projeto,
sem qualquer relação com o seu objetivo, traçado e
custo original. São impostas contrapartidas ao empreendimento, que podem ir desde investimentos em construção de estradas e pontes até clubes, piscinas, calçadões, coretos e monumentos nas praças, conforme o
gosto do freguês. O dispositivo fica na fronteira entre a
compensação e a chantagem.
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É uma bela espécie do toma lá, dá cá. Exemplo: o
projeto de expansão do Porto de Itaguaí, compartilhado
pela Vale do Rio Doce e pela Companhia Siderúrgica
Nacional e com verba já aprovada de R$ 100 milhões
(nem um tostão de dinheiro público) está entravado há
mais de um ano em razão de pedágio imposto pela
prefeitura local. No caso, o valor arbitrado no fio do
bigode pelo alcaide foi de R$ 13 milhões a serem pagos
através de investimentos em obras escolhidas a dedo. A
atitude é plenamente constitucional. E o interesse nacional? A prefeitura responderia: farinha pouca, meu
pirão primeiro. O governo federal que se apresente para
terçar os floretes.
Touché! O presidente Lula, ainda medindo a estatura das adversidades, deu sinais de que aceitará o desafio. Seu primeiro aceno nesta direção foi o anúncio, no
período pré-eleitoral, da única meta quantitativa deste
seu segundo mandato, ou seja, a ampliação do investimento em formação bruta de capital fixo (FBKF) dos
atuais 20% do PIB para 25% até o final da gestão de
governo. A participação do governo na FBKF se situou no
ridículo intervalo entre 0,8% e 2% do PIB durante todo o
primeiro mandato. Cabe aqui uma alerta para a primeira
armadilha: imaginar que o setor privado amplie sua taxa
de investimento agregado, devido a medidas de desoneração fiscal, redução de taxas de juros e oferta de crédito
oficial, é bem plausível; já imaginar que o empresariado
vá cumprir a missão de aportar os recursos nos projetos
considerados vitais pelo governo, obedecendo a um cronograma restrito e uma planilha de amplas exigências, é
o mesmo que vestir o parangolé da fantasia liberal.
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Para fazer frente às espetaculares restrições, o governo precisa ampliar a fatia do investimento público de
2% para 5% do PIB, garantindo com recursos próprios o
custeio, tanto dos projetos estruturantes já definidos,
como também dos novos projetos de expansão ainda
porvir, exemplo das usinas nucleares do Nordeste – energia ainda guardada no farnel –, que deverão ser anunciadas como complementares à usina de Angra III. Isto
quer dizer que o patamar de 25% do PIB de taxa de
investimento agregado tem que ser a meta do piso, e
que o governo teria que anunciar sua disposição de fazer
mais. É preciso gerar um excedente bem mais confortável de energia assegurada no futuro, assim como reduzir
o custo dos transportes. Os dois objetivos simultâneos
visam a reduzir os custos de transação do país, o que
permitirá o aumento da competitividade sistêmica e a
conseqüente atração dos investimentos diretos do setor
privado. Empresário gosta de aportar em porto de águas
calmas, rodar por estrada macia e ligar o ar- condicionado a toda energia.
Não há nada de original nos dizeres acima. Todos os
países, sem exceção, que constam no display da nossa
recente admiração foram intensivos em investimentos
públicos infra-estruturais, ou seja, nos setores responsáveis pela redução dos custos de transação. China,
Índia, Rússia, Coréia do Sul, África do Sul, Irlanda, Turquia, somente para dizer algumas nações congêneres e
mais exibidas em taxas de crescimento, mantém os setores de energia e logística sob o alvo do investimento
público, regulação governamental e forte planejamento do Estado. Nossa jabuticaba foi entender que poderia ser diferente.
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A ministra Dilma Rousseff é do ramo e tem a compreensão de que o governo caminha como uma lagarta no fio da navalha. Em novembro, Dilma declarou,
em entrevista coletiva: “É preciso diminuir os custos de investimento. O custo
do capital precisa ser reduzido com a adoção de melhores estruturas de financiamento e criação de fundos de investimento específicos em infra-estrutura. É
preciso promover uma desoneração tributária cada vez maior do investimento,
resolver alguns entraves institucionais, diminuir a judicialização. Há todo um
ritual contestatório nos processos licitatórios que pode adiar ad infinitum o
investimento.”
Antigos ideais, grandes idéias. Mas continua faltando o anúncio solene do
que é prioridade. E a demonstração de que a prioridade é para valer. Até prova
em contrário, somente a percepção coletiva de que “o que tiver que ser feito
será feito” resultará no necessário vetor de alteração favorável da expectativa
racional dos agentes. Nas quatro reuniões que Lula realizou com seus ministros – duas delas, também com dirigentes de estatais – após as eleições, a
assessoria de comunicação da Presidência fez questão de frisar na divulgação
que os encontros foram tensos, possível indício de um rito preparatório. Em
todas as reuniões, o tema foi o atraso dos projetos estruturantes e a anemia
dos investimentos, claro indício que a ficha caiu no Palácio do Planalto. Em uma
delas, foi divulgado que o ajuste fiscal complementar será utilizado para a
ampliação do investimento público, um bom sinal nas circunstâncias. Finalmente, no encontro ministerial de 18 de novembro, Lula rasgou o verbo, se
disse “angustiado” e pediu, publicamente, providências urgentes para que o
governo corra atrás do prejuízo e consiga desobstruir os projetos prioritários.
Pela conta mais fresquinha do governo, apresentada nesta mesma reunião, há
hoje no país 120 obras com pendências ambientais e jurídicas, sendo 100 na
área de energia e 20 na de transportes.
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Lula quer enviar ao Congresso projeto de lei definindo competências no licenciamento ambiental,
evitando assim a superposição entre órgãos federais, estaduais e federais, além da intervenção e
questionamentos freqüentes do Judiciário. Boa medida! Mas não basta para desenrolar o emaranhado do carretel. A medida desejável deve colocar um holofote na gravidade do momento, indo além de
uma legislação generalista. O governo precisaria sim enviar um projeto de Lei ao Congresso, mas
determinando, através de legislação complementar com quorum qualificado, que os projetos prioritários, os tais estruturantes, teriam tratamento diferenciado. As burocracias e grupos de interesse da
sociedade com poder de veto informal teriam prazo definido para apresentar, em caráter emergencial, seus óbices. Os gestores dos respectivos projetos também teriam de apresentar as soluções em
um prazo máximo fixado. As demais prerrogativas não seriam consideradas nos casos especiais.
Prioridade é prioridade, e estamos conversados.
Em meio à necessidade de ações legiferantes, é preciso enfatizar que o argumento conservador
de que não existem recursos para as prioridades é falso, paradoxal, capcioso e covarde. A não ser por
erro de hermenêutica, a conta das prioridades no orçamento se faz ao contrário. O que é prioritário
entra primeiro no fusquinha. Há um insidioso pensamento que induz a crença de que somente são
possíveis os investimentos em infra-estrutura se forem reduzidos ou cortados os igualmente preferenciais investimentos sociais. Os dois corpos não caberiam no mesmo espaço. E a alternativa
possível, aquela sob medida para reduzir popularidade ou desestabilizar governos, seria o aumento
da carga tributária, na “hipótese inadmissível 1”. Na “hipótese inadmissível 2”, a troca se daria pelo
aumento da inflação.
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Em primeiro lugar, uma parte dos recursos necessários já está aprovada e disponível e faz parte do chamado
Projeto Piloto de Investimento (PPI), expediente que desconsidera os investimentos com retorno definido do cálculo do superávit primário do governo. É possível elevar
ainda mais o montante dos PPI? Elementar, meu caro
Watson! Em segundo, existem medidas de aperto de cintos que podem trazer alguma complementaridade de recursos – é inaceitável ouvir a fanfarronice de que o Governo Federal do Brasil não tem poder de decisão ou
soberania sobre um tostão do seu orçamento engessado.
Em terceiro, é possível, provável e desejável que sejam
estruturadas operações de funding, usando o mercado
de capitais, securitização de recebíveis dos respectivos
projetos, técnicas de project finance e – por que não? –
alguma ampliação da dívida externa da União (o Brasil
caminha para ter mais do que o dobro da dívida do governo no exterior garantida por reservas cambiais). Em quarto e último, que, se necessário for, se utilizem os expedientes e decretos de urgência, até os cabíveis em caso
de guerra. Sim, de guerra contra a mutilação do crescimento nacional. O que não vale é o elogio da impotência.
O curioso e intrigante é que parte das legiões que
hoje cantam o réquiem do crescimento e pregam a morte
da inventiva nacional, da subversão do convencionado
e do poder libertário do ato político, são exatamente
aqueles que estiveram no front de algumas das maiores
rupturas de nossa História. É gente que foi à fronteira
do conhecimento, ceifou farisaicos limites institucionais e elevou a decisão política ao panteão dos atos
heróicos, quer tenham sido eles bem-sucedidos na primeira hora ou não. Quem não se lembra do confisco da
INTELIGÊNCIA
base monetária, das tablitas de conversão ou mesmo
da criação de uma inusitada moeda com curso legal e
sem poder liberatório, a Unidade Real de Valor (URV).
Pois é, talvez não seja assim tão curiosa e intrigante a
má vontade dessa turma.
Uma idéia mais factível e engenhosa, por exemplo,
está sendo desenvolvida e modelada pelo ex-ministro
Raphael de Almeida Magalhães11, e consiste na criação
de uma espécie de “Fundo Brasil”, que teria um grande
aporte inicial de recursos do Tesouro Nacional, a fundo
perdido. Investidores institucionais, internacionais e domésticos, a exemplo do Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento, Cooperação Andina de Fomento, fundos de pensão e outros fundos de investimento voltados para infra-estrutura, a exemplo do Brasil Energia, Infra-Brasil e AG Angra, também seriam sensibilizados a participar do funding. Os projetos que comporiam a
carteira do fundo seriam todos rentáveis, o que está em
perfeita sintonia com a esmagadora maioria dos projetos estruturantes em energia e logística. A União seria
garantidora dos recursos para a complementação das
obras no prazo determinado caso os recursos suplementares, vindo de outras origens, por algum motivo não se
realizassem. Os projetos seriam desenvolvidos pelos operadores naturais, Eletrobrás, Furnas, Petrobras etc. Após
sua conclusão, os projetos seriam privatizados, preferencialmente com a pulverização do seu controle, conforme projeto de lei, que criaria o fundo e disporia sobre a
obrigatoriedade da sua posterior alienação em mercado.
Raphael de Almeida Magalhães tem os detalhes.
11. Advogado, foi vice-governador e governador em exercício do Estado do Rio de Janeiro em 1964 e 1965 e deputado federal. Presidiu a Federação Nacional das Empresas de Seguros Privadas. Foi secretario de
Educação e Cultura do Rio de Janeiro e ministro da Previdência e Assistência Social.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2006 157
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
As decisões técnicas, dirigidas a estilhaçar os grilhões infra-estruturais do crescimento
deveriam estar amparadas por um ambiente político de convergência em torno de um
denominador comum. Esse é, provavelmente, um desafio superior ao da engenharia dos
projetos e liberação dos recursos. O caminho da “consertação” vem sendo considerado à
via menos estreita para a desobstrução dos obstáculos que travam um novo surto de
crescimento econômico. É a chamada “economia política do possível”, cujo expoente é o
economista-chefe e vice-diretor do Centro de Desenvolvimento da OCDE, Javier Santiso,
que abre uma trincheira no debate entre ortodoxos e heterodoxos na América Latina. Sua
essência é galvanizar os diferentes espectros sociopolíticos em torno de uma agenda dos
chamados “quase-consensos”, aqueles pontos sobre os quais gregos e troianos e russos e
lituanos convergem. No pensamento de Santiso chegamos à iminência da esperada terceira
via, fator de predominância na escolha de uma entre as três visões distintas do crescimento,
conforme a caracterização do ex-ministro Maílson da Nóbrega: a que resume tudo a uma
questão de vontade política; a que responsabiliza a política econômica; e a que enfatiza a
acumulação e resolução dos gargalos estruturais. A “via do possível” é esta última.
Caberia ao presidente da República explicitar ao povo brasileiro a gravidade do momento, conclamando-o para a grande virada, uma “consertação” em nome do mais nobre dever
pátrio, a libertação do desenvolvimento. Lula passou metade do seu primeiro mandato
tentando se livrar da mortalha deixada sobre seu governo pela gestão FHC. A outra metade
do mandato foi preenchida pela resistência, no limite da exaustão, ao maior linchamento
político já promovido pelas oposições. Vitorioso, fortalecido pelas urnas e usufruindo do
estio natural dos inícios de mandato, seria a hora de fincar a agenda do desenvolvimento,
ignorando os riscos do convite ao entendimento ser considerado apenas uma confissão de
incompetência da sua gestão, que teria levado o país “à terra arrasada da infra-estrutura”.
Entregar a encomenda do crescimento a partir de já e garantir sua promessa no futuro é a
única medida que a responsabilidade de Estado-Maior admite numa situação como a do
Brasil. Nossos filhos, presidente, agradecem!
[email protected]
158 F OGO-FÁTUO

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