Demorei muito para te encontrar
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Demorei muito para te encontrar
23 “Demorei muito para te encontrar...” Meu nome é Marília Viana Berzins, 55 anos, nascida em Belo Horizonte – MG, e sou assistente social, especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, mestre em Gerontologia Social – PUC-SP; doutora em Saúde Pública – USP. Corria o ano de 1996 e eu trabalhava no Centro de Controle de Zoonoses da Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura de São Paulo. O que me deixava perplexa era encontrar, dentro de casas, a presença de pessoas, em sua grande maioria idosas, vivendo em companhia de 10, 20, 30 e até 100 gatos ou cachorros, ou até mesmo as duas espécies juntas. Perguntava a elas o porquê de terem tantos bichos e as respostas eram muito semelhantes: “eles são a razão da minha vida; eles são os meus filhos; eles me fazem companhia ou os bichos são melhores do que gente”. Ficava assustada em ver tantos animais com pessoas idosas, e me inquietava mais ainda verificar a intensidade da relação que essas mesmas pessoas estabeleciam com todos aqueles animais. Com cada um dos animais eram estabelecidas relações únicas, singulares e permeadas de profundo significado. REVISTA PORTAL de Divulgação (São Paulo), 35, Ano III, ago. 2013. ISSN 2178-3454. www.portaldoenvelhecimento.org.br/revista 24 A prática profissional exercida no CCZ me impulsionou a buscar a academia. Encontrei a compreensão teórica do envelhecimento no Programa de PósGraduação em Gerontologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na qual ingressei em 1997, na primeira turma de mestrado. Os significados que a pesquisa procurou desvendar são aqueles relativos à identidade de velho e velhice. Interessaram-nos não só os significados que os próprios velhos atribuem à relação com seus animais, mas, principalmente, descobrir outros significados distintos, ainda não revelados, que os velhos possuem a seu próprio respeito. Trabalhei na Zoonoses até o ano de 2001, quando fui para o Gabinete da Secretaria Municipal da Saúde. Foi lá que a Gerontologia se concretizou mais intensamente na minha vida profissional. Continuei estuando, fiz o doutorado e hoje estou mergulhada na temática do envelhecimento. A Gerontologia abriu e continua abrindo várias oportunidades na minha vida profissional. Em 2001, quando a prefeita Marta Suplicy iniciou o seu mandato, e por meio do secretário Municipal da Saúde, Eduardo Jorge, foi implantado o SUS na nossa cidade e fui convidada para trabalhar na Área Técnica de Saúde da Pessoa Idosa da Secretaria Municipal da Saúde. Fiquei lá até o ano de 2012, quando me aposentei do serviço público. Fui trabalhar na área técnica planejando, implantando e acompanhando políticas públicas de saúde para a população idosa da cidade de São Paulo. O Programa Acompanhante de Idosos desenvolvido pela SMS em São Paulo teve a minha participação técnica durante todo o processo de criação, planejamento e implantação. Tive a oportunidade de conhecer e conviver com excelentes profissionais da Geriatria e Gerontologia. Destaco o médico Sérgio Márcio Pacheco Paschoal, coordenador da área técnica, querido amigo e colega de trabalho durante quase dez anos. Na Secretaria Municipal da Saúde tive contato com a temática da violência contra a pessoa idosa no Projeto Resgate Cidadão. Motivada pelo meu desconhecimento do tema fui desafiada novamente a estudar. Em 2004 fui aprovada pela Faculdade de Saúde Pública da USP para fazer doutorado, concluído em 2009 com a pesquisa sobre violência institucional contra a pessoa idosa. Olhando para trás, posso concluir que o meu percurso profissional nos últimos 22 anos se deu a partir do meu encontro com a Gerontologia. Atualmente estou trabalhando como consultora e presto assessoria a diversos municípios e instituições. Dou aula em diversos cursos de Gerontologia. Tem sido uma prática bastante satisfatória. Faço minhas as palavras de Doris Lessing, quando comecei a trabalhar com velhice e envelhecimento em 1996: “sei tão pouco sobre pessoas velhas”. Depois de todos esses anos, retorno à autora inglesa que assim descreveu o pensamento da protagonista no final do livro Diário da Boa Vizinha: REVISTA PORTAL de Divulgação (São Paulo), 35, Ano III, ago. 2013. ISSN 2178-3454. www.portaldoenvelhecimento.org.br/revista 25 “No passado eu tinha tanto medo da idade, da morte, que me recusava ver os velhos na rua – para mim eles não existiam, agora fico horas naquela enfermaria – realidade social - e observo e me espanto, fico maravilhada e admiro”. A Gerontologia é a minha estação de trabalho por opção. Gosto muito do que faço, já fiz e certamente farei nesse campo. Gosto da música do Capital Inicial que se chama “Demorei muito para te encontrar”. Adotei essa música como a melodia do que a Gerontologia é na minha vida profissional e pessoal: “Eu quero só você, eu quero só você. Tava cansado de te procurar...” Eu tenho a oportunidade de participar do OLHE desde o começo como membro fundadora, e acredito que ele contribui muito na provocação e na construção de uma cultura da longevidade e da velhice, cumprindo assim a sua missão. Atualmente sou a primeira secretária da diretoria e participo do Programa Cuidar é Viver - curso de formação de Cuidador de Idosos - no qual sou coordenadora desde o início, em maio 2011. Trabalhar na formação das cuidadoras de idosos tem sido muito gratificante. Estou investindo na formação de mulheres que estão fora do mercado de trabalho ou estão mudando de função. São muitos os desafios do Programa Cuidar é Viver. Talvez os mais importantes deles sejam a organização da categoria profissional e o reconhecimento formal da profissão, e acompanhamos o processo de regulamentação da profissão pelo Congresso Nacional. O OLHE liderou o processo de criação da Associação de Cuidadores de Idosos da Região Metropolitana de São Paulo – Acirmesp, que em junho de 2012 empossou a primeira diretoria. Continuamos a dar apoio ao fortalecimento da Associação, pois a organização da categoria é muito útil na defesa dos direitos desses profissionais do cuidado. Acredito que a sociedade se beneficia dos projetos e programas desenvolvidos pelo OLHE. Colaboramos imensamente na construção da cultura da longevidade quando formamos alunas e alunos com a visão gerontológica de respeito e valorização das pessoas idosas. Nossas alunas concluem o curso de formação de cuidadoras de idosos pensando no processo individual da própria velhice como sujeitos históricos, e das pessoas com quem trabalharão. Nossa metodologia baseia-se fundamentalmente na educação para a mudança. Nessa perspectiva investimos o conhecimento. Para quem se inicia na área gerontológica posso dizer que está no caminho certo, fazendo uma boa opção de trabalho que traz impacto direto em sua existência. Não podemos falar da velhice do outro sem que essa velhice rebata em nossa própria existência. A Gerontologia é uma área de conhecimento nova, e há sempre novidades e desafios. É necessário estudar sempre para se REVISTA PORTAL de Divulgação (São Paulo), 35, Ano III, ago. 2013. ISSN 2178-3454. www.portaldoenvelhecimento.org.br/revista 26 atualizar. O curso não encerra a aquisição do conhecimento; pelo contrário, abre a porta para novos saberes, influência da realidade social em seus conflitos, diferenças e iniquidades. “Aqui não há ninguém a falar de organização, disse a mulher do médico ao marido, Talvez a organização seja noutra praça, respondeu ele. Continuaram a andar. Um pouco adiante a mulher do médico disse, Há mais mortos no caminho do que de costume, É a nossa resistência que está a chegar ao fim, o tempo acaba-se, a água esgota-se, as doenças crescem, a comida torna-se veneno, tu o disseste antes, lembrou o médico. Quem sabe se entre esses mortos não estarão os meus pais, disse a rapariga dos óculos escuros, e eu aqui passando ao lado deles, e não os vejo. É um velho costume da humanidade, esse passar ao lado dos mortos e não os ver, disse a mulher do médico.” José Saramago Referências LESSING, Doris. O diário de uma boa vizinha. Rio de Janeiro: Editora Record, 1983. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. _________________________ Marília Viana Berzins. Assistente social. Especialista e mestre em Gerontologia. Doutora em Saúde Pública. Membro fundador do OLHE. E-mail: [email protected] REVISTA PORTAL de Divulgação (São Paulo), 35, Ano III, ago. 2013. ISSN 2178-3454. www.portaldoenvelhecimento.org.br/revista
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