Demorei muito para te encontrar

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Demorei muito para te encontrar
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“Demorei muito para te encontrar...”
Meu nome é Marília Viana Berzins, 55 anos, nascida em Belo Horizonte – MG,
e sou assistente social, especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira
de Geriatria e Gerontologia, mestre em Gerontologia Social – PUC-SP; doutora
em Saúde Pública – USP.
Corria o ano de 1996 e eu trabalhava no Centro de Controle de Zoonoses da
Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura de São Paulo. O que me deixava
perplexa era encontrar, dentro de casas, a presença de pessoas, em sua
grande maioria idosas, vivendo em companhia de 10, 20, 30 e até 100 gatos ou
cachorros, ou até mesmo as duas espécies juntas. Perguntava a elas o porquê
de terem tantos bichos e as respostas eram muito semelhantes: “eles são a
razão da minha vida; eles são os meus filhos; eles me fazem companhia ou os
bichos são melhores do que gente”.
Ficava assustada em ver tantos animais com pessoas idosas, e me inquietava
mais ainda verificar a intensidade da relação que essas mesmas pessoas
estabeleciam com todos aqueles animais. Com cada um dos animais eram
estabelecidas relações únicas, singulares e permeadas de profundo
significado.
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A prática profissional exercida no CCZ me impulsionou a buscar a academia.
Encontrei a compreensão teórica do envelhecimento no Programa de PósGraduação em Gerontologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
na qual ingressei em 1997, na primeira turma de mestrado. Os significados que
a pesquisa procurou desvendar são aqueles relativos à identidade de velho e
velhice. Interessaram-nos não só os significados que os próprios velhos
atribuem à relação com seus animais, mas, principalmente, descobrir outros
significados distintos, ainda não revelados, que os velhos possuem a seu
próprio respeito.
Trabalhei na Zoonoses até o ano de 2001, quando fui para o Gabinete da
Secretaria Municipal da Saúde. Foi lá que a Gerontologia se concretizou mais
intensamente na minha vida profissional. Continuei estuando, fiz o doutorado e
hoje estou mergulhada na temática do envelhecimento.
A Gerontologia abriu e continua abrindo várias oportunidades na minha vida
profissional.
Em 2001, quando a prefeita Marta Suplicy iniciou o seu mandato, e por meio do
secretário Municipal da Saúde, Eduardo Jorge, foi implantado o SUS na nossa
cidade e fui convidada para trabalhar na Área Técnica de Saúde da Pessoa
Idosa da Secretaria Municipal da Saúde. Fiquei lá até o ano de 2012, quando
me aposentei do serviço público. Fui trabalhar na área técnica planejando,
implantando e acompanhando políticas públicas de saúde para a população
idosa da cidade de São Paulo.
O Programa Acompanhante de Idosos desenvolvido pela SMS em São Paulo
teve a minha participação técnica durante todo o processo de criação,
planejamento e implantação. Tive a oportunidade de conhecer e conviver com
excelentes profissionais da Geriatria e Gerontologia. Destaco o médico Sérgio
Márcio Pacheco Paschoal, coordenador da área técnica, querido amigo e
colega de trabalho durante quase dez anos.
Na Secretaria Municipal da Saúde tive contato com a temática da violência
contra a pessoa idosa no Projeto Resgate Cidadão. Motivada pelo meu
desconhecimento do tema fui desafiada novamente a estudar. Em 2004 fui
aprovada pela Faculdade de Saúde Pública da USP para fazer doutorado,
concluído em 2009 com a pesquisa sobre violência institucional contra a
pessoa idosa. Olhando para trás, posso concluir que o meu percurso
profissional nos últimos 22 anos se deu a partir do meu encontro com a
Gerontologia. Atualmente estou trabalhando como consultora e presto
assessoria a diversos municípios e instituições. Dou aula em diversos cursos
de Gerontologia. Tem sido uma prática bastante satisfatória.
Faço minhas as palavras de Doris Lessing, quando comecei a trabalhar com
velhice e envelhecimento em 1996: “sei tão pouco sobre pessoas velhas”.
Depois de todos esses anos, retorno à autora inglesa que assim descreveu o
pensamento da protagonista no final do livro Diário da Boa Vizinha:
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“No passado eu tinha tanto medo da idade, da morte, que me
recusava ver os velhos na rua – para mim eles não existiam, agora
fico horas naquela enfermaria – realidade social - e observo e me
espanto, fico maravilhada e admiro”.
A Gerontologia é a minha estação de trabalho por opção. Gosto muito do que
faço, já fiz e certamente farei nesse campo. Gosto da música do Capital Inicial
que se chama “Demorei muito para te encontrar”. Adotei essa música como a
melodia do que a Gerontologia é na minha vida profissional e pessoal:
“Eu quero só você, eu quero só você. Tava cansado de te procurar...”
Eu tenho a oportunidade de participar do OLHE desde o começo como membro
fundadora, e acredito que ele contribui muito na provocação e na construção de
uma cultura da longevidade e da velhice, cumprindo assim a sua missão.
Atualmente sou a primeira secretária da diretoria e participo do Programa
Cuidar é Viver - curso de formação de Cuidador de Idosos - no qual sou
coordenadora desde o início, em maio 2011. Trabalhar na formação das
cuidadoras de idosos tem sido muito gratificante. Estou investindo na formação
de mulheres que estão fora do mercado de trabalho ou estão mudando de
função.
São muitos os desafios do Programa Cuidar é Viver. Talvez os mais
importantes deles sejam a organização da categoria profissional e o
reconhecimento formal da profissão, e acompanhamos o processo de
regulamentação da profissão pelo Congresso Nacional.
O OLHE liderou o processo de criação da Associação de Cuidadores de Idosos
da Região Metropolitana de São Paulo – Acirmesp, que em junho de 2012
empossou a primeira diretoria. Continuamos a dar apoio ao fortalecimento da
Associação, pois a organização da categoria é muito útil na defesa dos direitos
desses profissionais do cuidado.
Acredito que a sociedade se beneficia dos projetos e programas desenvolvidos
pelo OLHE. Colaboramos imensamente na construção da cultura da
longevidade quando formamos alunas e alunos com a visão gerontológica de
respeito e valorização das pessoas idosas.
Nossas alunas concluem o curso de formação de cuidadoras de idosos
pensando no processo individual da própria velhice como sujeitos históricos, e
das pessoas com quem trabalharão. Nossa metodologia baseia-se
fundamentalmente na educação para a mudança. Nessa perspectiva
investimos o conhecimento.
Para quem se inicia na área gerontológica posso dizer que está no caminho
certo, fazendo uma boa opção de trabalho que traz impacto direto em sua
existência. Não podemos falar da velhice do outro sem que essa velhice rebata
em nossa própria existência. A Gerontologia é uma área de conhecimento
nova, e há sempre novidades e desafios. É necessário estudar sempre para se
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atualizar. O curso não encerra a aquisição do conhecimento; pelo contrário,
abre a porta para novos saberes, influência da realidade social em seus
conflitos, diferenças e iniquidades.
“Aqui não há ninguém a falar de organização, disse a mulher do
médico ao marido, Talvez a organização seja noutra praça,
respondeu ele. Continuaram a andar. Um pouco adiante a mulher do
médico disse, Há mais mortos no caminho do que de costume, É a
nossa resistência que está a chegar ao fim, o tempo acaba-se, a
água esgota-se, as doenças crescem, a comida torna-se veneno, tu
o disseste antes, lembrou o médico. Quem sabe se entre esses
mortos não estarão os meus pais, disse a rapariga dos óculos
escuros, e eu aqui passando ao lado deles, e não os vejo. É um
velho costume da humanidade, esse passar ao lado dos mortos e
não os ver, disse a mulher do médico.”
José Saramago
Referências
LESSING, Doris. O diário de uma boa vizinha. Rio de Janeiro: Editora Record,
1983.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008.
_________________________
Marília Viana Berzins. Assistente social. Especialista e mestre em
Gerontologia. Doutora em Saúde Pública. Membro fundador do OLHE.
E-mail: [email protected]
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