NOÇÕES SOBRE O (MAU) PROFESSOR DE HISTÓRIA NA
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NOÇÕES SOBRE O (MAU) PROFESSOR DE HISTÓRIA NA
NOÇÕES SOBRE O (MAU) PROFESSOR DE HISTÓRIA NA ATUALIDADE Márcia Elisa Teté Ramos (Universidade Estadual de Londrina) Resumo: Conforme o contexto histórico os professores, no caso, que ministram tanto a disciplina escolar como a acadêmica da História, têm sido vistos de diferentes formas. Estas noções e/ou representações podem estar tanto na legislação educacional, quanto nos discursos políticos, mas também em materiais midiáticos. O professor de história pode ser visto como: essencial à construção da identidade nacional (em especial, na passagem do século XIX para o XX); capaz de adaptar seu aluno ao meio social (com a disciplina de Estudos Sociais); aquele que fornece condições para o aluno se tornar crítico (período de redemocratização) e, no momento, um grupo vem destacando de forma negativa que este seria excessivamente politizado. Apresenta-se as noções circulantes na atualidade no Brasil sobre o (mau) professor de história, considerando escritos de ampla divulgação, principalmente os “guias politicamente incorretos” (de História do Brasil, de História da América Latina e de História do Mundo), bem como posts em comunidades do facebook (como “Meu professor de história mentiu pra mim”). Enquanto que os “guias” expressam ideias de intelectuais ligados ao jornalismo, é possível ver nas comunidades do facebook opiniões de jovens estudantes, do Ensino Médio ou do ensino superior, porém, estas noções se assemelham. Sublinham-se nestes materiais as declarações e as críticas que nos remetem ao sentido pejorativo em relação ao professor de história. Diante da crise de representação que sofre o professor, questiona-se qual seria sua função social na atualidade, considerando a multiperspectividade como elemento fundamental da construção de uma literacia histórica. Palavras-chave: Professor de história; Cultura midiática; Literacia histórica; Multiperspectividade. Conforme o contexto histórico, ou seja, considerando lugar e temporalidade, os professores são vistos de diferentes modos, pelas políticas públicas para a 411 educação, pelos sujeitos envolvidos diretamente com o processo de ensino/aprendizagem, pela mídia, etc. Tais “representações” sobre os professores podem ser consideradas como um dos meios a partir dos quais os próprios professores estruturam seu rol de comportamentos e valores em torno de seu ofício. Existe um “modelo de mestre” que circula em uma sociedade, uma figura simbólica capaz de influenciar a atuação dos professores (BAILLAUQUÊS, 2001, p. 39). A forma de como se pensa a sociedade e a escola, determina o que se objetiva em relação ao professor, ao seu modo de “ser”. Neste texto, apresento algumas mensagens que circulam na mídia sobre o que seria o bom e o mau professor, especialmente o professor de história. Tomo dois grupos destes materiais: um, refere-se aos “guias politicamente incorretos”1 que vem nos últimos cinco anos alcançando grande tiragem, o outro, algumas páginas do facebook, destacando “Meu professor de história mentiu pra mim”2, bastante “curtida” por jovens do Ensino Médio ou universitários. As fontes por mim escolhidas podem ser consideradas como produtos da “cultura midiática” e representam a noção sobre como deve ser o novo trabalhador/professor. Não caberia no presente texto, contrapor historicamente os dados, as informações, os acontecimentos, as noções, enfim, a história posta nos “guias...”, ou nas páginas de uma rede social, mas sim, de mostrar qual seria este estereótipo do mau/bom professor de história e qual a noção que apresentam sobre a historiografia e o ensino de história. Mostrar os “erros” dos autores dos “guias...” seria posicionar-se na disputa de narrativas com os mesmos argumentos: assim, a História-Verdade não seria esta, mas outra, ou 1 São eles: Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil de Leandro Narloch; Guia politicamente Incorreto da América Latina de Leandro Narloch e Duda Teixeira; Guia politicamente incorreto da História do Mundo de Leandro Narloch e Guia politicamente incorreto da filosofia Luiz Felipe Pondé. 2 Evidentemente, outras fontes podem mostrar outra forma de entender o papel social do professor, mas neste trabalho, optei pelas fontes que o entende, principalmente o que ministra a disciplina escolar da história, como um profissional desqualificado. A página https://www.facebook.com/pages/Meu-Professor-de-História-Mentiu-Pra-MimHomenagem/421159311360826?fref=ts critica o “esquerdismo” dos professores de história (tem em torno de 4.700 “curtidas”). Enquanto que a página https://www.facebook.com/pages/Meu-professorde-História-mentiu-pra-mim/453502911416721?ref=ts&fref=ts com o mesmo título, “Meu professor de história mentiu pra mim” critica a visão de que o professor de história seja “esquerdista”. Esta última tem aproximadamente 2.500 “curtidas”, ou seja, metade das “curtidas” da primeira página. 412 ainda, o professor de história não seria da forma que retrata os “guias...” e as postagens do facebook, mas de outra forma, aquela em que acredito3. No século XIX, sob o objetivo de afirmação/consolidação dos Estados-Nação, a escola torna-se fundamental para o processo de homogeneização cultural e formação da identidade nacional (NÓVOA, 1998, p. 22). Portanto, os professores eram vistos como agentes do projeto social e político da modernidade (NÓVOA, 1998, p. 22). Ao professor de história competia mostrar que existia um passado comum, em que determinados personagens importantes, através de seus feitos grandiosos, conseguiram levar a Nação ao progresso e à civilização. No início do século XX, crê-se que a escola seria capaz de regenerar uma sociedade em crise, por isso a ideia de que o professor poderia “salvar” a sociedade (NÓVOA, 1998, p. 24). Já nos anos 60-70 do século passado, pensava-se, geralmente, que a escola teria a função de “reproduzir” a ideologia, ou seja, de agente modernizador, o professor passa a ser visto como agente ligado aos interesses da classe dominante (NÓVOA, 1998, p. 25). Nos anos 70-80, os professores são vistos como técnicos cuja tarefa seria o de aplicar “ideias e procedimentos elaborados por outros grupos sociais ou profissionais” (NÓVOA, 1988, p. 27). Nos anos 90, a racionalização do ensino chega a seu extremo, através de uma lógica economicista/empresarial, e do professor é exigido que ele seja um profissional do “novo século” e/ou do “novo mundo do trabalho” (NÓVOA, 1998, p. 27). Estas transformações não configuram etapas que possam corresponder a mudanças abruptas na forma de se ver o professor. Permanências e mudanças, antes de representarem forças dicotômicas, correspondem ao mesmo continuum. A meu ver, “acumulamos” estas noções sobre o professor, mas também, nossa formação histórico-cultural permite afirmar que as representações prevalecentes sobre o que seria ser um bom ou um mau professor (de história) corresponderia ainda a esta última fase. E mais: os professores, de “apóstolos das luzes” do século XIX, da ilustração, da civilização (NÓVOA, 1998, p. 25), passariam a ser aqueles que, na maioria, seriam mal formados, incompetentes e improdutivos, pois, incapazes de gerar uma escola de qualidade. 3 Logicamente, ao propor este objetivo, minha posição não é neutra, antes, é contrária às representações que circulam nestes materiais que desqualificam o professor de história como “esquerdista”. 413 No discurso educacional tornou-se comum exibir a insatisfação relacionada a uma escola que estaria em crise por não viabilizar a formação do sujeito condizente com as novas exigências da realidade “globalizada”. No contexto das transformações no mundo do trabalho4, ganhou popularidade um receituário para uma completa mudança de comportamento e de habilidades cognitivas por parte dos trabalhadores, de modo a melhorar a produtividade em um momento de acirrada competitividade e fragmentação dos mercados (RAMOS, 2009, p. 187). No que diz respeito à escola, sua situação passa a ser compreendida como resultado de má gestão dos poderes públicos e da administração interna, de falta de produtividade dos professores, de métodos atrasados, de currículo inadequado e do fracasso escolar. Os problemas da escola são vistos seguindo a ótica que impugna os espaços públicos, tidos como ineficientes, improdutivos, repletos de corrupção e desperdício (RAMOS, 2009, p. 196). Enquanto em outros períodos as representações sobre o professor circulavam na legislação educacional, nos discursos políticos, às vezes em alguns canais midiáticos, da década de 90 em diante, tais representações espraiam em diversas esferas e em maior intensidade devido à “cultura midiática”, que corresponde à contemporaneidade, que perpassa todo o cotidiano da grande maioria das pessoas (RAMOS, 2009, p. 17). Assim, dois fatores se conjugam no modo de entender o professor de história atualmente: a capacidade de a grande mídia ter sido incorporada nas experiências cotidianas e o discurso de que o professor deve adequar-se às exigências do novo mundo do trabalho, do novo paradigma educacional. Nesta direção, os professores de história seriam desatualizados, pois continuam ministrando aulas da mesma maneira há 40 anos. São defasados, tradicionais, resistentes às inovações didáticopedagógicas e aos novos conhecimentos. 4 Segundo David Harvey, ao invés da rigidez do fordismo, ocorre o que ele denominou de “acumulação flexível” que se apoia na volatilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e dos padrões de consumo. A reestruturação produtiva é marcada pelos altos níveis de desemprego, aumento da competição e/ou estreitamento da margem de lucro das empresas, ganhos modestos de salários reais, retrocesso do poder sindical, o que resulta na imposição de contratos de trabalho e trabalhadores mais flexíveis. Na forma flexibilizada de acumulação, baseada na reengenharia, na empresa enxuta, há uma crescente redução do trabalho estável e desconcentração do espaço físico produtivo, gerando o novo trabalhador e em menor escala o trabalhador polivalente e multifuncional da era informacional, capaz de controlar diversas máquinas, equipes, saberes, competências (HARVEY, 1996, p. 140-146). 414 Existe um esquema tão repetido para contar a história de alguns países que basta misturar chavões, mudar datas, nomes de nações colonizadas, potências opressoras, e pronto. Você já pode passar em qualquer prova de história na escola e, na mesa do bar, dar uma de especialista em todas as nações da América do Sul, África e Ásia. As pessoas certamente concordarão com suas opiniões, os professores vão adorar as respostas. (NARLOCH, 2011, p. 24). Os professores de história reproduziriam ideias, concepções, construídas no passado. Por exemplo, sobre os indígenas, tomariam Florestan Fernandes que em 1952 escreveu A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá e criou a tradicional visão de que os índios são puros e os conquistadores são cruéis e gananciosos (NARLOCH, 2011, p. 32). Outro exemplo, sobre a Guerra do Paraguai, parece, segundo Narloch, que os professores de história tem um chip, e “basta em vez de apertar a barriga, pronunciar a expressão „Guerra do Paraguai‟, que dirão sempre a mesma coisa” (NARLOCH, 2011, p. 173). Para Narloch, o ensino de história “atrasado” seria aquele que é “simples e rápido, mas também chato e quase sempre errado” (NARLOCH, 2011, p. 24), em que: “Os ricos só ganham o papel de vilões – se fazem alguma bondade, é porque foram movidos por interesses. Já os pobres são eternamente do bem, vítimas da elite e das grandes potências, e só fazem besteira porque são obrigados a isso” (NARLOCH, 2011, p. 25)5. Esta desatualização teria relação com a tendência dos professores de História (também os de Geografia e de Português e/ou das Ciências Humanas nas escolas e universidades) de se prenderem em determinado passado, do pós-Regime Militar. ...a ditadura militar desmoronava e a esquerda brasileira crescia. Nos palanques do ABC, Lula se tornava uma personalidade nacional. a campanha Diretas Já mostrava a força de uma nova opinião pública. Falar mal de militares era intelectualmente estimulante para os autores e um jeito fácil de ganhar popularidade. Nas escolas, professores de história e geografia ressaltavam verdades à esquerda que criariam a base do senso comum nos anos 2000. (NARLOCH, 2011, p. 175) 5 Na reportagem da revista Superinteressante intitulada “A nova História do Brasil” – edição 279 de junho de 2010 –, publicada pela Editora Abril, para divulgação do “Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil”, escrita pelo próprio autor, que também está disponível on line, o subtítulo diz: “Uma nova geração de pesquisadores destrói mitos e revela o verdadeiro passado do Brasil: um país mais forte, mais complexo e bem mais humano do que ensinaram na escola” (NARLOCH, 2010). Disponível em http://super.abril.com.br/historia/nova-historia-brasil-614332.shtml 415 Assim, deve-se superar o “atraso” existente até então no ensino de história, adotando o que há de mais moderno, mais “científico”. O autor recorre à historiografia ou a algumas fontes documentais para legitimação e/ou complementação do discurso, dizendo seguir a Nova História. Para o autor, esta vertente possui análises mais complexas e “saborosamente desagradáveis para os que adotam o papel de vítimas ou bons mocinhos”, ou seja, para aqueles (marxistas) que acreditam (ainda) em uma sociedade marcada pela diferenciação de classes sociais. Vale lembrar que não é objetivo do autor tomar para si a função do historiador, e sim o de demonstrar, conforme a metodologia do jornalista, as falhas, os erros, as incoerências na história ensinada. Assim, confronta o que para ele seria “antigo” e “moderno” no ensino de história, procurando causar o “efeito de polêmica”, próprio do “jornalismo denúncia”, em que se aponta de forma dramatizada o que pode ser considerado pelo público como insólito ou absurdo, aquilo que estaria em desordem, infringindo o óbvio, o científico, o certo, somando-se a isso o “efeito de atualidade”, ou seja, deve-se passar ao leitor a sensação de novidade, portanto de pertinência (CHARAUDEAU, 2006, p. 140-141). É neste sentido que os “guias politicamente incorretos...” se direcionam, daí que Narloch cobra um “olhar mais científico do que político” (NARLOCH, 2011, p. 175). Os historiadores “científicos”, sem ideologias: “Tem mais cuidado ao falar de consequências de uma lógica financeira e pesquisam sem se importar com o uso ideológico de suas conclusões” (NARLOCH, 2011, p. 26). Entende-se, nos “guias...” que a história deve voltar-se para a verdade, para o que realmente aconteceu. Assim, no que diz respeito aos historiadores da antiguidade: “É pouco frutífero tentar descobrir o que é mito e o que é realidade nessa história. Os autores antigos não ligavam para a verdade objetiva como fazemos hoje” (NARLOCH, 2013, p. 20). Ou seja, Narloch se autodenomina como “objetivo”, e aponta que apenas alguns historiadores também conseguem se dar conta das ideologias que devem ser desmitificadas (NARLOCH, 2013, p. 31). Para os “guias...” o politicamente correto são os historiadores, professores de história e/ou das Ciências Humanas carregados de ideologia de esquerda, marxistas, socialistas. Assim, “ganhava mais sorrisos das alunas o professor que 416 deixava de lado as grandes civilizações para olhar com generosidade os povos exóticos”, e quais seriam estes “povos exóticos”? “principalmente aqueles que derrubam os poderosos imperialistas” (NARLOCH, 2013, 31)6. Ocorre desta forma, uma generalização – que implica na constituição de um estereótipo – e uma contraposição quanto aos politicamente incorretos (mais científicos) e os politicamente corretos (que incorrem em erros, lapsos, “furos”, inverdades sobre a história): “A invasão politicamente correta nos estudos sobre a queda de Roma acabou embaralhando verdades óbvias sobre a época...” (NARLOCH, 2013, p. 32). Em linhas gerais, o politicamente correto seria aquele intelectual, historiador ou professor de história e/ou de Ciências Humanas que não admite que: 1) o capitalismo, em contraste com o socialismo/comunismo é o único caminho para o progresso: a revolução Industrial acabou com a fome, rendeu empregos, acabou com a mortalidade infantil, bem como com o trabalho infantil. Diferente do que Engels dizia, houve uma melhora na qualidade de vida do trabalhador. (NARLOCH, 2013, p. 90-111). O comércio trouxe paz entre os povos, pois você não vai lutar com o outro se tem relações comerciais com ele (NARLOCH, 2013, p. 123). “Os agrotóxicos salvaram florestas e milhões de vidas”. Pois implicam no avanço tecnológico e/ou no progresso (NARLOCH, 2013, p. 265). 2) as diferenças, as injustiças existem, são naturais e por vezes, necessárias: “Os melhores lideram, os médios e medíocres seguem” e qualquer professor deveria saber disso, pois seria “uma das maiores besteiras em educação” entender que “os alunos são iguais em capacidade de produzir e receber conhecimento” (PONDÉ, 2012, p. 38); “só fanático podia imaginar uma sociedade com „justiça social‟, porque produzir riqueza tem a ver com originalidade, inteligência, capacidade de disciplina, e nada disso tem a ver com „igualdade‟” (PONDÉ, 2012, p. 166); para esta linha de pensamento, injusto seriam os programas sociais, ou seja, o não reconhecimento de que o Estado de Bem Estar Social pune os esforçados, inteligentes e disciplinados que deveriam “gozar dos resultados de suas virtudes”, e termina por estimular o vício fazendo com que os uns acabem pagando “a conta dos vagabundos” (PONDÉ, 2012, p. 208). 3) a realidade é naturalmente injusta e seria incoerente pensar em um mundo melhor: “Basicamente, o mundo sempre foi mau e continuará a ser, porque ele é fruto do comportamento 6 Narloch refere-se à tese sobre os motivos do Império Romano entrar em colapso devido à invasão dos povos bárbaros. Reafirma que tais povos não eram civilizados, ao contrário do Império Romano. 417 humano, que aprece ter certos pressupostos naturais” (PONDÉ, 2012, p. 39). 4) o politicamente correto, a esquerda, é fascista, adepta do totalitarismo/autoritarismo: “Toda forma de totalitarismo (o politicamente correto é uma forma de totalitarismo, e essa forma está presente na palavra “correto”) sobrevive ás hordas de inseguros, medíocres e covardes que povoam a educação e o mundo da cultura e da arte” (PONDÉ, 2012, p. 98) 5) o politicamente correto é contraditório sempre: critica a Revolução Industrial, mas não vê que esta fez aumentar o número de pessoas que podem “se dar o luxo de passar a vida em bibliotecas e escolas discutindo ideias – e reclamando (que grande ironia) dos terríveis feitos do capitalismo (NARLOCH, 2013, p. 112). A principal premissa dos “guias...” ao travarem o combate contra os politicamente corretos, é a de que a universidade e a escola é o lugar de professores politicamente corretos, portanto, marxistas, “de esquerda”, fracassados e não inteligentes: são pessoas que, além de não gostarem dos alunos, têm uma inteligência mediana e foram, quando jovens, alunos medíocres, que fizeram Ciências Humanas porque sempre foi fácil entrar na faculdade (PONDÉ, 2012, p. 97). Segundo esta perspectiva, estes professores politicamente corretos encontrem respaldo nas escolas: “Só se contam histórias que não ferem o pensamento politicamente correto e não correm o risco de serem mal interpretados por pequenos incapacitados nas escolas” (NARLOCH, 2011, p. 25). No caso da universidade, seria esta que: (...) começou a produzir (sendo a universidade sempre de esquerda) teorias sobre como a ideologia (estamos falando de descendentes diretos de Marx) de ricos, brancos, homens heterossexuais, ocidentais, cristãos criaram mentiras para colocar as vítimas (os grupos de excluídos citados acima [gays, índios e negros]) como sendo menos inteligentes, capazes, honestos, etc. (PONDÉ, 2012, p. 31). Este professor de história, sempre “de esquerda”, principalmente no “Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil” seria defasado e pode até ter boas intenções, mas é ingênuo ao acreditar em um mundo melhor, Era aluno de um colégio de freiras e considerava os professores de história e geografia meus heróis. Um deles era candidato a deputado estadual, o outro 418 organizava mutirões para construção de casas na periferia. As provas que eles passavam era geralmente questionários – ganhava 10 quem respondesse os lugares-comuns na linha política do professor ou do livro didático que ele usava (NARLOCH, 2011, p. 177) Para os “guias...” os professores politicamente corretos não reconhecem que na história real que: 1) certos heróis da esquerda devem ser desmitificados: João Goulart (NARLOCH, 2011). Che Guevara, Símon Bolívar, Perón e Evita, Pancho Villa e Salvador Allende (NARLOCH; TEIXEIRA, 2012); Mao Tsu-Tung (NARLOCH, 2013). Segundo os “guias...” estes heróis da esquerda, quando alcançam o poder, tornam-se autoritários. Os meios para chegarem ao poder são cruéis, por vezes sanguinários. 2) alguns heróis da esquerda não são tão virtuosos assim: Ghandi era gay e simpatizante do nazismo, um “canastrão” (NARLOCH, 2013, p. 226). Marx era contra judeus (NARLOCH, 2013, p. 188). Madre Teresa de Calcutá defendia como Gandhi a austeridade e a pobreza, mas na verdade era sádica, pois negava remédio aos doentes para aliviar a dor (NARLOCH, 2013, p. 242-243); Zumbi tinha escravos (NARLOCH, 2011, p. 83). 3) alguns vilões da esquerda não são tão ruins assim: os bandeirantes não eram facínoras ou assassinos, mas desbravadores e progressistas, portanto, heróis (NARLOCH, 2011, p. 65). Hitler iniciou sua carreira no Partido dos Trabalhadores da Alemanha, e, embora não fosse exatamente de esquerda no começo, passou a ser. Mussolini foi inspiração, junto com Hitler para os direitos trabalhistas no Brasil (NARLOCH, 2013)7. A bomba de Hiroshima e de Nagasaki salvou milhões de japoneses, pois afastou a União Soviética que se preparava para invadir o Japão (NARLOCH, 2013, p. 132). Os religiosos na idade Média não eram avessos ao racionalismo e à ciência, pois, na verdade, apoiaram Galileu em suas teorias (NARLOCH, 2013, p. 80); 4) as revoluções por um mundo melhor resultaram em desastre: após a Revolução Francesa, acabaram com um líder mais despótico que Luís XVI (NARLOCH, 2013, p. 55); o povo quando “aparece politicamente, é pra quebrar coisas” e “adere fácil e descaradamente (como aderiu nos séculos 19 e 20) a toda forma de totalitarismo” (PONDÉ, 2012, p. 49); 5) algumas revoluções foram realizadas não se sabe porque: Maio de 68 foi realizada 7 Ainda: “(...) somos todos no fundo covardes e dispostos a colaborar com os nazistas (ou seus similares) se para nós for melhor em termos de sobrevivência” (PONDÉ, 2012, p. 29). 419 devido ao tédio da juventude (NARLOCH, 2013, p. 250), pois a sociedade francesa estava progredindo. Faziam ataques inconsequentes “à sociedade de consumo, à Guerra do Vietnã e uma grande ode à Revolução Cultural Chinesa” (NARLOCH, 2013, p. 253); 6) os indígenas e os negros não inventaram nada, são atrasados: os indígenas na época da colonização: “Não desenvolveram tecnologias de transporte. Não conheciam a roda. A roda. (NARLOCH, 2011, p. 48). Seria absurdo que “os índios, que vivem na idade da pedra, seriam melhores que nós, ocidentais (PONDÉ, 2012, p. 71). A cultura negra, a música popular em outros lugares que não o Brasil, adotou instrumentos eletrônicos, se modernizando, se tornando assim melhores (NARLOCH, 2011, p. 165); 6) os indígenas e os negros não são vítimas: quem matou mais indígenas foram os próprios indígenas (NARLOCH, 2011, p. 34), sendo que estes, e não o colonizador, foram os que devastavam as matas (NARLOCH, 2011, p. 54). Os indígenas participavam das bandeiras também, gostavam dos portugueses e de suas novidades (NARLOCH, 2011, p. 33). Quem destruiu a África, foram os próprios africanos, com suas guerras étnicas como uma apropriação da luta de classes e não a colonização e/ou imperialismo (NARLOCH, 2013, p. 287); 7) os politicamente corretos, que são da esquerda, marxistas, comunistas/socialistas começam com um discurso pautado na justiça, mas recorrem no autoritarismo: os jovens revolucionários politicamente corretos criaram o Auschwitz (NARLOCH, 2013, p. 195), e embora bem-intencionada acaba caindo “liberdades individuais em nome da justiça social, da saúde pública ou de outro bem comum” (NARLOCH, 2013, p. 159); 8) os politicamente corretos usam a escola para disseminar suas ideias em toda a história: é pela escola, pelos livros didáticos e pelos professores de história que os nazistas divulgavam suas ideias (NARLOCH, 2013, p. 197). No que se refere especificamente ao ensino de história, não apenas os professores de historia são politicamente corretos (“esquerdistas”) como os livros didáticos de história (NARLOCH; TEIXEIRA, 2011, p. 26) e as provas, os vestibulares e o ENEM (NARLOCH, 2013, p. 277). Na página do facebook, “Meu professor de história mentiu pra mim”, os professores de história são chamados de “professorzinho padrão Méqui”. Seriam sempre: De esquerda – praticamente a maioria dos posts associa o professor de história à esquerda, ao comunismo, ao socialismo, ao Partido dos Trabalhadores. 420 Por conta disto, todos seriam a favor do aborto, contra o desarmamento, a favor da “ditadura gay”, dos regimes comunistas totalitários, adoradores de Cuba e Fidel Castro. 1) Contraditórios – “defendem o assassinato de crianças (aborto), mas são contra pena de morte para estupradores, homicidas porque os consideram como vítimas do sistema"; “odeiam privatizações, mas adoram usar celular de 2 chips”; “dizem que homossexualismo é natural, mas que heterossexualismo é apenas uma “construção social do patriarcalismo machista”; 2) Utópicos – “Não permita que seu professor, colega de classe, a mídia ou uma figura pública te levem a crer num "mundo melhor"; 3) Ateus – “ofendem homofobicamente os padres dizendo que eles são gays enrustidos, mas se fingem de bonzinhos defendendo o direito dos gays"; “dizem que os cristãos são intolerantes homofóbicos, mas quando eles agridem os cristãos veem como ato justo e correto”; 3) Supostas vítimas – "Cada vez que um esquerdista vier com coitadice, mostre-lhe estas fotos e diga: - VOCÊ fez isto"8; 4) Feministas – “dizem que a direita é machista, mas eles odeiam a Coréia do Sul onde uma mulher foi eleita democraticamente e apoiam a Coréia do Norte onde uma dinastia machista patriarcalista domina a cena”. Comparando dois materiais tão diferentes, livros designados ao grande público e a página de uma rede social, pode-se perceber que são semelhantes as ideias que circulam. Embora apenas esporadicamente a página “Meu professor de história mentiu pra mim” tente o que diz ser “desmascarar” acontecimentos do passado, basta nos remeter ao título para saber que é o “professor de história” o personagem a ser criticado, porque este “mente”. Ou seja, os princípios são os mesmos: a história está sendo ensinada de forma errada, não-científica, desonesta, ideológica, mentirosa nas escolas e nas universidades9. Há que ressaltar o autor mais citado por esta página é Olavo de Carvalho: “Se um dia um esquerdista vier com aquela demagogia que lhe é peculiar, por favor, façam como o Prof. Olavo de Carvalho sugeriu...”. Os “guias...” também tem grande popularidade na referida 8 Supostas fotos de algumas vítimas do regime comunista na China. https://www.facebook.com/421159311360826/photos/a.421178214692269.1073741828.42115931136 0826/429027513907339/?type=1&theater (acesso em 22 de julho de 2014) 9 Na grande mídia, os autores dos “guias...”, Leandro Narloch é jornalista, foi repórter da revista Veja e editor das revistas Aventuras na História e Superinteressante, Duda Teixeira também é jornalista e editor-assistente internacional da revista Veja e é autor de O Calcanhar de Aquiles sobre Grécia Antiga. Luiz Felipe Pondé é filósofo, professor da PUC-SP e da FAAP e ainda, colunista da Folha de São Paulo, autor de diversos livros de filosofia. 421 página do facebook, ou seja, existe uma circularidade de ideias deste tipo que perpassam diversas esferas sociais.10 A multiperspectividade das interpretações é inerente ao conhecimento histórico, o que significa que os profissionais da história não tem uma única explicação para o passado – nem para o presente –. Contudo, o ensino e a pesquisa em história sempre foram campos em que os debates são acolhidos, mesmo porque, também integra a forma histórica de ver o mundo (literacia histórica), a capacidade de argumentação. Os estereótipos produzidos nestes materiais culturais quanto ao professor de história subentendem determinada posição política, mesmo que se digam “sem ideologias” e apontem a ideologia do “Outro”. Em termos de conhecimento histórico o que se apresenta é uma concepção que se movimenta nos extremos da “História-Verdade” e do relativismo. Para Carlos Barros, nesta perspectiva, que também se apresenta entre profissionais da história, existe de um lado o “retorno ao positivismo” quando se quer defender um ponto de vista, convencer o leitor de sua “Verdade”, e de outro lado, a ideia sobre a história como versões diferentes e igualmente válidas quando se quer amenizar ou relativizar alguns fatos passados como as Ditaduras (BARROS, 2007). Para este historiador, o auge dos usos públicos da história se dá em tempos de crise e, na atualidade, se coaduna com o aproveitamento do boom midiático do conhecimento histórico. Este mesmo autor entende que: “em ningún outro lugar es más conveniente que el profesor de historia actúe como um historiador público, comprometido com la tarea de hacer de los anumnos parte activa del sujeto de la historia que se aprende y que se hace” (BARROS, 2007, p. 6-7), por isso as críticas em relação ao professor de história e às instituições que o formam. 10 A revista Veja, em alguns momentos, se preocupou com a história ensinada e rege-se pelos mesmos argumentos dos “guias...”. A edição n. 2074, de 20 de agosto de 2008, com a reportagem de capa “Você sabe o que estão ensinando a ele?”, com o subtítulo “Prontos para o Século XIX”, dizia então que “Muitos professores e seus compêndios enxergam o mundo de hoje como ele era no tempo dos tílburis” remetendo-se a um ensino ultrapassado, pois ainda incutiria “ideologias anacrônicas e preconceitos esquerdistas nos alunos” (VIEBERG; PEREIRA, 2008, p. 76). Uma imagem em que a foice é uma caneta e o martelo, um lápis, reforça o argumento, e, novamente a história como disciplina escolar é a mais criticada por ser “marxista”, ou mais precisamente, os professores de história e os livros didáticos de história. Em 2013, a Editora Abril e as duas jornalistas responsáveis pela reportagem tiveram que indenizar um professor de história de Porto Alegre citado na reportagem (valor de R$ 80,000,00). http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/veja-condenada-porofensa-a-professor-de-historia (Acesso em 26 de julho de 2014). 422 Estes materiais com os quais trabalho não classificam diretamente o professor como “improdutivo” e de alto custo para o Estado, mas o considera como sendo sem qualidade, porque politicamente correto, pois não apenas usaria métodos ultrapassados, mas, por ensinarem uma história “de esquerda”, não teriam a neutralidade e a objetividade que a disciplina da história exige, seja ela escolar ou acadêmica. A História-Verdade que se almeja reverte-se no seu contrário, ou seja, o uso da história para se defender determinada postura. Desta construção do argumento posicionado, cria-se um estereótipo quanto ao professor de história, – bastante repetido independente do suporte de comunicação –, e todo estereótipo subentende generalização e, portanto, preconceito. Referências BAILLAUQUÈS, Simoni. Trabalho das representações na formação dos professores. In PAQUAY, Léopold et al. Formando professores profissionais: quais estratégias? Quais competências? 2 ed., Porto Alegre: ArtMed, 2001. BARROS, Carlos. Propuestas para el nuevo paradigma educativo de la historia. Revista HISTEDBR On-line, n.28, p.2-24, dez. 2007 CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. Trad. Ângela M. S. Correa. São Paulo: Contexto, 2006. NARLOCH, Leandro. A nova História do Brasil. Revista Superinteressante. Edição 279. São Paulo: Editora Abril, 2010. NARLOCH, Leandro. Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil. 2 ed., São Paulo: Leya, 2011. NARLOCH, Leandro. Guia Politicamente Incorreto da História do Mundo. São Paulo: Leya, 201. NARLOCH, Leandro; TEIXEIRA, Duda. Guia Politicamente Incorreto da América Latina. São Paulo: Leya, 2011. NÓVOA, António. Relação escola-sociedade: “novas respostas para um velho problema”. In SERBINO, Raquel V. et al. Formação de professores. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. PONDÉ, Luiz Felipe. Guia Politicamente Incorreto da Filosofia. São Paulo: Leya, 2012. 423 RAMOS, M. E. T. O ensino de história na revista Nova Escola (1986-2002): cultura midiática, currículo e ação docente. 272 f. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2009. VIEBERG; PEREIRA. Você sabe o que estão ensinando a ele? Revista Veja. São Paulo: Editora Abril, edição n. 2074, de 20 de agosto de 2008. 424
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