encontros teológicos 65
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Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC ISSN 1415-4471 http://www.facasc.edu.br Encontros Teologicos 65.indb 1 17/10/2013 15:09:08 FUNDAÇÃO DOM JAIME DE BARROS CÂMARA FACULDADE CATÓLICA DE SANTA CATARINA – FACASC INSTITUTO TEOLÓGICO DE SANTA CATARINA – ITESC Corpo Diretivo Diretor Geral da FACASC e do ITESC: Pe. Dr. Vitor Galdino Feller Diretora Acadêmica da FACASC: Profa. Ana Cristina Barreto Floriani Diretor Administrativo da FACASC: Pe. Dr. Vilmar Adelino Vicente Vice-Diretor do ITESC e Marketing da FACASC: Pe. Dr. Domingos Volney Nandi Coordenador da Graduação em Teologia da FACASC e Secretário do ITESC: Prof. Celso Loraschi Coordenador dos Cursos de Pós-Graduações da FACASC: Pe. Dr. Tarcísio Pedro Vieira Coordenadora dos Cursos de Extensão da FACASC: Silvia Regina Togneri Corpo Técnico Administrativo Assistente Administrativo: Donizeti Mendes Guimarães Bibliotecária: Adriana de Mello Tomaz Pesquisador Institucional: Raphael Leopoldo Novaresi Recursos Humanos: Aline Maria Pereira Secretária Acadêmica: Crisleine Daiana Radatz Recepcionista: Viviani Borges de Abreu Recepcionista: Edegar Fronza Júnio Assistente da Biblioteca: Jéssica Bedin Serviços Gerais: Geane Teresa Nascimento [Catalogação na fonte por Daurecy Camilo (Beto)] CRB-14/416 Encontros Teológicos. Revista da Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC e do Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC, n. 65, Florianópolis, 2013. Quadrimestral ISSN 1415-4471 I. Instituto Teológico de Santa Catarina CDU 2 (05) Preço de Assinatura para o ano 2014 Contribuição a partir de R$ 55,00 Forma de Pagamento Cheque em nome da Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC ou depósito bancário: Banco do Brasil, Agência 3191-7, Conta 09.645-8 Banco HSBC, Agência 1301, C/C.: 00286-19 Correspondência e Assinatura Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC Caixa Postal 5041 88040-970 Florianópolis, SC Fone/Fax: (0xx48) 3234-0400 Home Page: www.facasc.edu.br E-mail: [email protected] Revisão: Pe. Ney Brasil Pereira Editoração eletrônica e projeto gráfico da capa: Atta Projeto gráfico: Antônio Frutuoso Printed in Brasil Encontros Teologicos 65.indb 2 Pede-se permuta Exchange is Requested 17/10/2013 15:09:08 ENCONTROS TEOLÓGICOS Revista quadrimestral fundada em 1986 Diretor: Elias Wolff Editor: Vitor Galdino Feller Redator: Ney Brasil Pereira Conselho Editorial: Celso Loraschi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Domingos Nandi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Edinei da Rosa Cândido – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Elias Wolff – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Helcion Ribeiro – PUC – Curitiba, PR Inácio Neutzling – UNISINOS – São Leopoldo, RS João Batista Libânio – ISI-FAJE – Belo Horizonte, MG José Artulino Besen – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Lilian Blanck de Oliveira – FURB – Blumenau, SC Luiz Carlos Susin – PUC-RS e ESTEF – Porto Alegre, RS Márcio Fabri dos Anjos – Pontifícia Faculdade N. Sra. da Assunção – São Paulo, SP Maria Clara Bingemmer – PUC-RJ, Rio de Janeiro, RJ Maria de Lourdes Pereira Dias – UFSC – Florianópolis, SC Marlene Bertoldi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Ney Brasil Pereira – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Rudolf von Sinner – EST – São Leopoldo, RS Valter Maurício Goedert – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Vilmar Adelino Vicente – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Vitor Galdino Feller – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC CoNSELHO CONSULTIVO: Analita Candaten – Centro de Fomação Scalabriniana – Passo Fundo, RS Armando Lisboa – UFSC – Florianópolis, SC Cecília Hess – UNIVILLE – Joinville, SC Érico Hammes – PUC-RS – Porto Alegre, RS Evaristo Debiasi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Fábio Régio Bento – UNISUL – Tubarão, SC Gabriele Cipriani – CONIC – Brasília, DF Joaquim Cavalcante – Universidade Estadual de Goiás – Itumbiara, GO Luís Dietrich – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Luís Inácio Stadelmann SJ – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Márcio Bolda da Silva – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Marta Magda Antunes Machado – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Paulo Cezar da Costa – PUC-Rio, Rio de Janeiro, RJ Roberto Iunskovski – UNISUL – Florianópolis, SC Sérgio Rogério Junqueira Azevedo – PUC-PR – Curitiba, PR Siro Manoel de Oliveira – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Vilson Groh – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Nota: O autor de cada artigo desta publicação assume a responsabilidade das opiniões que expressa. Publicação dirigida aos agentes de pastoral das igrejas e aos professores universitários, pesquisadores e alunos nas áreas da Teologia, das Ciências da Religião e Ciências Humanas em geral, com o objetivo de favorecer a formação religiosa, social e humana, promover o debate e incentivar a troca de informações sobre temas teológicos, pastorais e sociais. Encontros Teologicos 65.indb 3 17/10/2013 15:09:08 Encontros Teologicos 65.indb 4 17/10/2013 15:09:08 Sumário Editorial ....................................................................................................... 7 A revitalização das paróquias Pe. Edson Oriolo....................................................................................................... 11 Paróquia, comunidade de comunidades. Desafios centrais José Carlos Pereira.................................................................................................. 31 A paróquia e um conceito “forte” de comunidade: Uma compreensão pela sociologia e pela pastoral Prof. Sérgio Ricardo Coutinho.................................................................................. 51 Formação cristã na comunidade paroquial Pe. José de Lima....................................................................................................... 65 O cristão leigo e a paróquia Laudelino Augusto dos Santos Azevedo.................................................................... 79 A missão “da” e “na” paróquia: Um ensaio de releitura do documento de estudos 104 da CNBB, na perspectiva da “missão” Sidnei Marco Dornelas, CS...................................................................................... 99 Grupo de Reflexão, modelo de comunidade para a paróquia Elias Wolff................................................................................................................. 115 Família como comunidade e comunidade eclesial como família: fraternidade cristã e universal na nova paróquia Rafael Cerqueira Fornasier...................................................................................... 133 A nudez de Francisco, o Papa Elias Wolff................................................................................................................. 145 A produção musical cristã contemporânea e a música ritual cristã pósconciliar: história, questões e desafios Murilo Guesser......................................................................................................... 157 Recensões...................................................................................................... 177 Crônicas........................................................................................................ 187 Encontros Teologicos 65.indb 5 17/10/2013 15:09:08 Encontros Teologicos 65.indb 6 17/10/2013 15:09:09 (Faça uma cópia, caso não queira recortar esta página da revista!) Editorial Vivemos um tempo de reflexão e repensamento sobre a organização da comunidade cristã em torno da paróquia. Estruturada segundo os contextos sociocultural e religioso da Idade Média, por séculos a paróquia foi praticamente o único espaço de referência para a vivência da fé dos cristãos católicos. Ali se conjugam a vida social e a vida religiosa, são recebidos os ensinamentos da fé, os sacramentos, a orientação espiritual para o cotidiano da existência. A paróquia atinge a totalidade da vida dos seus membros, nas suas várias dimensões e circunstâncias, do batizado ao sepultamento. A paróquia tem sido uma possibilidade privilegiada para uma verdadeira experiência de vida comunitária, de encontro e diálogo, conhecimento mútuo, solidariedade, crescimento comum na fé. Isso acontece onde ela se caracteriza pela acolhida, relação, gratuidade, solidariedade, testemunho comum da fé. Essa forma de organizar a comunidade sofreu distorções ao longo do tempo. O espírito comunitário, participativo, de amizade e solidariedade fraternas foi-se fragilizando por uma série de fatores. As distorções aparecem, sobretudo, no paroquialismo, no clericalismo, na burocratização dos serviços pastorais, entre outros. E a paróquia deixou de ser um espaço significativo para responder às necessidades espirituais de muitos paroquianos. Além disso, emergem atualmente novas formas de vida comunitária, ambientais, afetivas, virtuais... que congregam as pessoas sobretudo pelo vínculo afetivo. Os elementos objetivos do projeto pastoral da paróquia, bem como o elemento canônico do território, não são critérios únicos de pertença a uma comunidade paroquial. Para muitos, o vínculo comunitário é subjetivo, o critério de pertença é existencial, afetivo, espiritual. E por não sentirem-se correspondidos nesses critérios, muitos deixam a comunidade paroquial como o lugar de referência para a vivência comunitária da fé. Outras formas de organizar a comunidade cristã concorrem com a comunidade paroquial, além de muitas comunidades paroquiais agregarem em si mesmas diferentes formas de viver em comunidade. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 7 7 17/10/2013 15:09:09 Editorial Esse fato tem implicações também para a função do líder religioso tradicional da paróquia, o pároco. Muitos paroquianos já não mais têm o pároco como seu líder religioso, e por vezes nem mesmo um membro do clero. Há líderes que transcendem as fronteiras territoriais da comunidade paroquial – como também canônicas, teológicas, litúrgicas... Igualmente, questiona-se o conteúdo da orientação religiosa que a paróquia oferece. Enfim, outras formas de organizar a comunidade, com outros líderes religiosos, apresentam diferentes conteúdos pastorais e espirituais que não raro se manifestam concorrentes. A paróquia, centro histórico de referência para a educação e vivência da fé, recebe atualmente questionamentos, oriundos de contextos ad intra à Igreja – teológicos, pastorais, eclesiais e de contextos ad extra – socioculturais. O Concílio Vaticano II buscou revigorar a paróquia como espaço privilegiado para a vida comunitária dos cristãos católicos. A partir de então, as conferências do episcopado latino-americano procuram fortalecer a paróquia em sua dimensão profética (Medellín, 1968), de comunhão e participação (Puebla, 1979), lugar da nova evangelização, da promoção humana e da cultura cristã (Santo Domingo, 1992), comunidade do discipulado e da missão (Aparecida (2007). A conferência de Aparecida possibilita um real repensamento da paróquia para que seja “comunidade de comunidades”. Para tal, faz-se necessária uma verdadeira “conversão pastoral” que apresenta três exigências: uma pastoral missionária; a superação da pastoral de conservação – abandonando estruturas que não mais contribuem com as exigências da evangelização hoje; a setorização da paróquia em unidades territoriais menores, com mais dinamismo, criatividade e lideranças leigas. É no horizonte da proposta da Conferência de Aparecida que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil propõe uma compreensão de Paróquia como: a) Casa da Iniciação à Vida Cristã; b) Lugar de animação bíblica da pastoral; c) Comunidade de comunidades; d) Serviço da vida plena para todos (Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja do Brasil 2011 a 2015). O debate sobre a “Paróquia: comunidade de comunidades” se intensificou na 51ª Assembleia Geral da CNBB (abril de 2013), resultando no Documento de Estudos n. 104, “Comunidade de comunidades: uma nova paróquia”. Trata-se de uma questão essencial para a vida cristã e eclesial: como organizar e viver na Igreja de comunhão e participação? É uma questão teológica, pastoral e espiritual, a um só tempo. Exige o resgate dos valores das primeiras comunidades cristãs, onde “todos os que abraçaram a fé estavam unidos e tudo par- 8 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 8 17/10/2013 15:09:09 Editorial tilhavam... a multidão dos fiéis tinha um só coração e uma só alma” (At 2,44-45 e 4,32). Retoma a eclesiologia de comunhão proposta pelo Concílio Vaticano II e a tradição latino-americana, afirmando o valor da corresponsabilidade de todos os fiéis na organização da Igreja Povo de Deus e na evangelização, a criação de uma comunidade toda ministerial versus o binômio clero-leigo, a pastoral orgânica e de conjunto e o planejamento pastoral versus o voluntarismo e o personalismo, a opção preferencial pelos pobres, as pastorais sociais e a presença profética da comunidade paroquial na sociedade. A revista Encontros Teológicos quer dar a sua contribuição nesse esforço de refletir sobre a Paróquia para que ela seja uma rede de comunidades. Apresentamos aqui a reflexão de Edson Oriolo sobre a “Revitalização das Paróquias”, José Carlos Pereira mostra os “Desafios Centrais para uma Paróquia Comunidade de comunidades”, Sérgio Coutinho reflete sobre “A paróquia e um conceito ‘forte’ de comunidade”, em perspectiva sociológica e pastoral, José de Lima trata da “Formação cristã na comunidade paroquial”, Laudelino Augusto dos Santos Azevedo trata da relação entre “O cristão leigo e a paróquia”, Sidnei Marco Dornelas, analisa “A missão ‘da’ e ‘na’ paróquia”, a partir do documento 104 da CNBB, Elias Wolff propõe os “Grupos de Reflexão como modelo de vida comunitária para a paróquia”, Rafael Fornasier reflete sobre a relação “Família e Paróquia”. Apresentamos, ainda, recensões e crônicas. Esperamos, assim, contribuir para o debate sobre a paróquia que busca compreendê-la como espaço de relações solidárias, de acolhida, de corresponsabilidade, de comunhão... Paróquia, Comunidade de Comunidades. Elias Wolff Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 9 9 17/10/2013 15:09:09 Publicações de nossos Professores FELLER, Vitor Galdino. “Ser Padre hoje”, São Paulo, Editora Ave Maria, 144 pp. O autor, doutor em Teologia, é Diretor da nossa Faculdade Católica de Santa Catarina, FACASC, vigário geral da Arquidiocese de Florianópolis e colaborador mensal da página “Tema do Mês” do Jornal da Arquidiocese. Com vários livros publicados e experiência pastoral diversificada – foi vigário paroquial, pároco, reitor de Seminário, coordenador de Pastoral etc, e há 30 anos professor de Teologia – tem condições de explicitar o “Ser”, “hoje”, dessa figura humano-divina que é o Padre, o Presbítero, ao qual o Concílio dedicou dois documentos: “Presbyterorum Ordinis” e “Optatam totius”. Após uma Introdução, o autor procede por três capítulos. O primeiro (pp. 13-30), situando o padre “no mundo que nos cerca”, com seus desafios: sociais, eclesiais, pessoais, etapa do VER. O segundo (pp. 31-77), apresentando os elementos fundamentais da teologia do presbiterato, do mistério, do ser do Presbítero, no modelo e no seguimento do único, sumo e eterno Sacerdote, Jesus Cristo, conforme o magistério da Igreja e o ensino dos grandes mestres, etapa do JULGAR. O terceiro (pp. 79-140), apontando caminhos práticos do ministério, do agir presbiteral, no seguimento de Jesus Cristo, Bom Pastor, no serviço à Igreja e ao Reino, etapa do AGIR. “Situar, ser e agir. Mundo, mistério e ministério. No mundo em que o padre se situa, ele se configura no ser e no mistério do Cristo, para agir no ministério do Cristo e da Igreja, a serviço do Reino” (p. 11). Citamos a Conclusão (p. 141): “O presbítero de hoje situa-se num mundo carregado de desafios, numa ‘mudança de época’ que exige dele força interior e abertura. Somente possuído pelo Espírito Santo ele conseguirá exercer a caridade pastoral de Jesus Cristo em favor do povo santo de Deus Pai. Ele não pode deixar-se levar pela inquietação provocada pelo pluralismo religioso do nosso tempo nem pode fechar-se em copas, com medo de perder os privilégios que o clero alcançou no passado. Deverá ser homem ousado, com uma espiritualidade centrada no seguimento de Jesus Cristo, no anúncio do Reino de Deus e na opção pelos pobres. Para além do culto a ser celebrado no interior da comunidade de fé, ele deverá fazer uso da palavra de Deus a ser anunciada em toda parte e de todos os modos, em vista da formação das consciências e da edificação de uma sociedade justa, igualitária e fraterna. Deverá presidir a comunidade que lhe for confiada, valorizando todas as riquezas espirituais e morais dos fiéis leigos e priorizando a caridade em favor dos necessitados, em cujo rosto há de sempre enxergar e apontar o rosto do Senhor, crucificado e ressuscitado.” (N.B.P.) Encontros Teologicos 65.indb 10 17/10/2013 15:09:09 Resumo: As muitas transformações pelas quais passa a paróquia como modelo de organização da Igreja, exige um repensamento que a favoreça como lugar da experiência comunitária dos cristãos católicos. Isso exige avaliar a estrutura paroquial em sua história, organização concreta e finalidades. Urge resgatar e revitalizar a paróquia como lugar da vida eclesial, da experiência comunitária dos fiéis, da pregação do Evangelho. Para tal, é fundamental uma readequação dos elementos institucionais da paróquia ao contexto social e religioso dos nossos tempos, de modo a possibilitar à paróquia continuar sendo lugar de referência para a vivência da fé. Abstract: As a result of many transformations happening in the parish as a model of Church organization, it is no surprise that new thought patterns have to be taken into account in order to face up with the demands for improvement of all sorts of community experience of Catholics. This requires an evaluation of the parochial structures in the course of history, especially its organization and objectives. Above all the parish has to be endowed with new life in order to fulfill its role as source of vitality in ecclesial performance affecting the sense of belonging of the faithful to a community and its relationship with Jesus Christ, preaching the Gospel. The need for a more adequate scaffolding for the institutions of the parish in the present time there are stringent procedures to be attended affecting both the social and religious context, so that the parish may continue to have its functional relevance in the faith community of the Church and its role in spreading Christian culture throughout the world. A revitalização das paróquias Pe. Edson Oriolo* * O autor é presbítero da Arquidiocese de Pouso Alegre, MG. Mestre em Filosofia Social, Especialista em Marketing, Pós Graduado em Gestão de Pessoas, Pós Graduação em Aristóteles, Professor na Faculdade Arautos do Evangelho, em Caieiras, SP, no Instituto Filosófico Aristotélico Tomista (IFAT) e no Instituto Teológico São Tomás de Aquino (ITTA), Caieiras, SP. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013, p. 11-30. Encontros Teologicos 65.indb 11 17/10/2013 15:09:09 A revitalização das paróquias Nestes últimos anos, a instituição paróquia tem passado por grandes transformações no desempenho da missão e da administração. É uma instituição eclesiástica antiga e atual1, que devemos valorizar. Acredito que são inúmeros os termos para referir neste artigo sobre “paróquia”. A reestruturação, a reorganização, o reajustamento, a reforma, a renovação, a reorientação, a revitalização etc... Achei por bem intitulá-lo como a revitalização das paróquias. O artigo surge como proposta para ajudar a resgatar e revitalizar as paróquias. É uma luz para o cristão escutar a Boa Nova, celebrar a fé, dar sua resposta participativa e se alimentar no mistério da unidade, a Eucaristia. A intenção é valorizar, possibilitar e abrir caminhos para a instituição paroquial se adequar ao contexto histórico. É um incentivo para se criar novas estruturas pastorais e administrativas, a fim de que a paróquia seja “uma determinada comunidade de fiéis, sob o cuidado pastoral do pároco como seu pastor próprio, em união com o bispo diocesano” (cf. Cân. 515 &1).2 O artigo quer colaborar no esforço para que a paróquia seja lugar de visibilidade da Igreja, não ficando indiferente ao mundo em mudança.3 A Igreja tem a missão de evangelizar. Desde seu inicio, a Igreja sabe da necessidade de anunciar a Boa Nova, segundo a ordem de Jesus: “Ide por todo o mundo, proclamai o Evangelho a toda Criatura” (Mc 16,15). A Igreja sempre se preocupou em responder a esta nobilíssima vocação de ser portadora da Boa Nova e de ser sacramento universal de salvação (cf. LG 48). Para tanto, no decorrer do tempo, criou estruturas, e a paróquia é uma delas. No início da era cristã, o Império Romano abrangia grandes metrópoles como Roma, Alexandria e Antioquia da Síria, ligadas entre si pelas vias romanas. Com a expansão do cristianismo, em Roma e Alexandria, os presbíteros começaram a presidir assembléias cristãs, dispersas pelas cidades, mas as grandes celebrações do batismo e da 12 1 “A antiga e venerada estrutura da paróquia tem uma missão imprescindível e de grande atualidade: iniciar e congregar o povo na normal expressão da vida litúrgica; conservar e reavivar a fé das pessoas de hoje; oferecer-lhes a doutrina Salvadora de Cristo; realizar pelo coração e pela prática da caridade as obras boas e fraternas” (cf. Paulo VI, discurso ao clero de Roma, de 24 de junho de 1963). 2 O Código de Direito Canônico consagra às “paróquias, párocos e vigários paroquiais” o Cap. VI do titulo III Secção II, livro II, num total de 38 cânones (512-552). 3 A Paróquia representa, de alguma maneira, a Igreja visível espalhada por toda a terra (SC 42). Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 12 17/10/2013 15:09:10 Edson Oriolo eucaristia eram reservadas aos bispos4. A Igreja, sob a presidência do bispo com seus presbíteros e diáconos, desenvolveu-se até o século V com base nas comunidades estabelecidas nas cidades. Com a queda o Império Romano, as cidades perderam a importância e houve o predomínio rural, acarretando enorme perturbação na organização da Igreja. Surgiram vários lugares de culto, espalhados pelos campos, e foi implementado o sistema paroquial, no qual o bispo concedia ao pároco poderes para celebrar localmente a eucaristia nas festas mais solenes5. Assim sendo, a partir do século VI, multiplicam-se as Igrejas rurais menores, isto é, as paróquias, à frente das quais estava um presbítero diocesano ou presbítero paroquiato, que imitava toda ação do bispo para responder às necessidades dos fiéis. Mais, tarde, surgem vários movimentos dissidentes ou heréticos (Valdenses, Cátaros etc.), fazendo com que a paróquia se afirmasse como lugar de controle dos fiéis. Com a obrigação imposta aos fiéis de se confessarem ao seu pároco ao menos uma vez por ano e de comungarem pela Páscoa na sua Paróquia (cf. Concilio de Latrão IV, 1205), conclui-se uma evolução secular. Com esta medida fica reforçada a função de controle social da paróquia, função retomada e ainda mais valorizada pelo Concilio de Trento e pelos subseqüentes movimentos de reforma.6 Segundo o Concílio de Trento, a paróquia era um território demarcado, com um pároco, em nome do bispo, residindo nele. Havia uma estreita ligação do pároco com os fiéis e a obrigação de conhecer as ovelhas. Foi com Trento que surgiram os “livros das almas” e os registros paroquiais que se conhecem e fazem comunidade7. Eles deram credibilidade à instituição paróquia. Com a Renascença, a Reforma Protestante e os Sínodos dos séculos XVII e XVIII, foi-se estruturando o sistema paroquial. A preocupação maior recaía mais sobre a boa organização, registros, contabilidade e festas populares do que sobre a santidade manifestada no testemunho cristão da consciência e obrigação missionária da Igreja Católica8. 4 Cf. Canônica, Lusitânia, A Paróquia Comunidade de Fiéis, pp. 35-36 5 Id. Cf. pp. 37- 42. 6 BORRAS, Alphonse e Routhier, Gilles, A NOVA PAROQUIA, Gráfica Coimbra, p. 22. 7 BORRAS, Alphonse e Routhier, Gilles, A NOVA PAROQUIA, Gráfica Coimbra, pp. 40-41. 8 Id. Cf. pp. 42-49. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 13 13 17/10/2013 15:09:10 A revitalização das paróquias Os documentos do Concílio Vaticano II vieram modificar, ou melhor, corrigir o modelo de paróquia adotado por Trento, cinco séculos antes, e apresentar uma relação calorosa entre os fiéis que se conhecem e fazem comunidade.9 Eles deram credibilidade à instituição “paróquia”. É bom lembrar que o Concílio, mesmo não tendo dedicado um documento ou capítulo à instituição paróquia, a reforma pastoral provocada por ele teve repercussões profundas na vida e constituição desta instituição.10 O método indutivo, aplicado pelo Vaticano II à própria Igreja e à sua missão no mundo, permite considerar a paróquia como um grupo humano de crentes, estabelecido num lugar, com determinadas relações e implicações sociais.11 Toda a literatura sobre a paróquia, a partir de 1965, embora não anunciasse simplesmente o seu desaparecimento, preconizava, se não a abolição do princípio territorial, ao menos a revisão da ideia de paróquia, que deveria criar-se a partir da junção de pequenos grupos afins constituídos na base de relações de proximidade. Sobre esses alicerces seriam edificadas verdadeiras “comunidades cristãs”.12 O Concilio Vaticano II definiu a paróquia como “célula da diocese” (cf. AA 10c) e ainda, segundo o mesmo, “as paróquias representam a Igreja visível estabelecida em toda a terra com o propósito de que floresça o sentido comunitário paroquial (cf. SC 42). A Constituição sobre a liturgia deu à paróquia um quadro eclesiológico imprescindível, ao afirmar que, como não é possível ao bispo, sempre e em todas as partes, presidir pessoalmente na sua Igreja a toda a grei, deve, por necessidade, erigir diversas comunidades de fiéis. Entre elas sobressaem as paróquias, entregues localmente a um pastor que faz as vezes do bispo, já que de alguma maneira representam a Igreja visível estabelecida em toda a terra.13 O Vaticano II descreve a paróquia de modo análogo ao da Igreja local, com a diferença de que esta é a Igreja ou nela reside a Igreja, enquanto que a paróquia realiza a Igreja diocesana parcialmente e na dependência da referida Igreja local. 9 BORRAS, Alphonse e ROUTHIER, Gilles, A NOVA PARÓQUIA, Gráfica Coimbra, pp. 40-41. 10 11 14 FLORISTÁN, Casiano, “Para Compreender a Paróquia”, p. 51. Id., Ibid. 12 BORRAS, Alphonse e ROUTHIER, Gilles, A NOVA PARÓQUIA, Gráfica Coimbra, p. 43. 13 SC 42. Podemos citar quatro textos conciliares relativos à paróquia: LG 28; PO 5,6 e 8 e AA 10. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 14 17/10/2013 15:09:10 Edson Oriolo As noções teológico-canônicas mais significativas de paróquia são dadas pelo Concilio Vaticano II, à luz da tradição e da doutrina católica, baseadas na eclesiologia de comunhão e traduzidas, depois, em leis pelo Código de Direito Canônico.14 Segundo o Código de 1983, “a paróquia é uma determinada comunidade de fiéis, constituída de modo estável na Igreja particular, cujo cuidado pastoral, sob a autoridade do bispo diocesano, se entrega a um pároco, como pastor próprio” (cf. Cân 515 &1). Dão-se, agora, relevo a quatro critérios: a paróquia representa a Igreja universal; é uma parte da Igreja diocesana; é uma comunidade de fiéis; e desenvolve uma ação pastoral básica. a) Representa a Igreja Universal O Vaticano II afirmou com clareza que a paróquia representa, de alguma maneira, a Igreja visível espalhada por toda a terra (cf. SC 42) e que reduz à unidade todas as diversidades humanas que nela se encontram, inserindo-as na universalidade da Igreja (cf. AA 10b). A paróquia é a Igreja, localmente implantada, na sua catolicidade essencial. É a realização concreta da Igreja num determinado lugar. b) É uma parte da Igreja Diocesana A paróquia é, de fato, uma parte da diocese, em virtude do princípio da territorialidade. A Igreja local não é uma parte da Igreja universal, mas uma porção, isto é, a realização da Igreja do Senhor num determinado lugar. O novo Código tem em conta a teologia da Igreja local ao afirmar, com o Concílio (cf. CD, 11a), que a diocese é uma porção do povo de Deus cujo cuidado pastoral se entrega ao bispo, com a colaboração do presbitério, de maneira que, unida ao seu pastor e congregada por ele no Espírito, mediante o evangelho e a eucaristia, constitua uma Igreja particular, na qual está presente e atua a Igreja de Cristo, una, santa, católica e apostólica (cf. Cân 369). 14 Presbítero Pastor e Guia da Comunidade Paroquial, 18. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 15 15 17/10/2013 15:09:10 A revitalização das paróquias c) É uma comunidade de fiéis De acordo com a eclesiologia da comunhão, a paróquia é congregação de fiéis (cf. LG, 28), confiada a um presbítero que representa o bispo (cf. PO, 5). É comunidade de fiéis, ainda que não única, mas organizada na base do povo. Teologicamente falando, os fiéis que a compõem são a Igreja: contribuem para a sua missão neste lugar. O pároco não faz tudo, mas vela para que tudo se faça: é, pois, consignada uma oportunidade importante, quer para a renovação do ministério presbiteral, quer para a aprendizagem da colaboração pastoral da parte dos fiéis que tiverem as qualidades requeridas para tal. d) Desenvolve uma ação pastoral básica A paróquia é sinal visível da Igreja universal (cf. AA 10) quando vivencia a profecia (Espírito Santo), a diaconia (evangelho), a liturgia (eucaristia) e o serviço (ministérios). Segundo o decreto Apostolicam Actuositatem, a paróquia oferece um modelo claríssimo de apostolado comunitário, porque reduz à unidade todas as diversidades humanas e insere-se na universalidade da Igreja (cf. AA 10b). Historicamente, a estrutura paroquial foi ganhando forças principalmente com os padres conciliares no Vaticano II, que analisaram a evolução do sistema paroquial como uma condição histórica do cumprimento do mandato de Jesus. Basta percorrermos os documentos conciliares, o Código de Direito Canônico e o Catecismo da Igreja Catolica15. Porém, nos tempos subseqüentes, pela década de 70 e 90, por conta do progresso e da urbanização, a instituição paroquial passou a ser objeto de grandes interrogações e reflexões. Poderíamos dizê-la uma instituição “vetusta”, no sentido de antiquada? Ao longo da segunda metade da década de sessenta, as maiores reparações dizem respeito ao reajustamento do espaço litúrgico, para adaptá-lo às orientações da reforma litúrgica na vida paroquial. Depois, na segunda metade da década de setenta, o acento é posto, com toda a evidência, na instalação de escritórios e secretarias. Finalmente, por volta dos anos oitenta, prossegue a mesma tendência, 15 16 SC 24 e 42, LG 20 e 26, CD 28-32, 35, 44, OT 2, 22, AA 10, 26, 30, AG 37, PO 19-22. CDC cânones 374$1, 515-552, 1740-1752 e ainda 89, 107, 233, 510&2, 757, 776, 800, 833, 877, 911, 958, 968, 1079, 1110, 1272. CIC 2579 e 2226. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 16 17/10/2013 15:09:10 Edson Oriolo acrescentando-se-lhe a instalação de salas de reunião e para a prestação dos diferentes serviços: encontros, reuniões das comissões etc...16 A área da paróquia estreita-se e converte-se cada vez mais num espaço para serviços religiosos especializados: sacramentos e educação da fé. Assim, a compra do mobiliário necessário para os escritórios e salas de reunião, supera em muito todo o resto, inclusive a aquisição de bens relacionados com a função litúrgica da paróquia. Os gastos do ítem papelaria e despesas de secretaria sofrem um aumento constante, sobretudo a partir dos anos oitenta. O documento Catechesi Tradendae, fruto do Sínodo de 1977 sobre catequese, afirmou: “A paróquia foi profundamente abalada pelo fenômeno da urbanização. Alguns chegaram mesmo a admitir com demasiada facilidade que a paróquia estava ultrapassada, se não mesmo votada ao desaparecimento, em favor de pequenas comunidades mais adaptadas e mais eficazes”17. De fato, o mundo urbano nos apresenta novas questões e pede novas respostas. Não podemos descansar num cristianismo tradicional, baseado em ritos e tradições culturais. Temos que ser visionários em relação à instituição paroquial. Foi a partir da década de 80, que a instituição paroquial ganhou maior renovação na linha eclesiólogica, sendo progressivamente reconhecida e revalorizada. No final do ano de 1988, na exortação apostólica pós-sinodal Christifideles laici, sobre a Vocação e Missão dos Leigos na Igreja e no Mundo, o papa João Paulo II afirmou que as paróquias vivem numa fase nova e prometedora: “A paróquia não é uma estrutura, um território, um edifício, mas é a família de Deus, como uma fraternidade animada pelo espírito de unidade; é uma casa de família, fraterna e acolhedora, a comunidade dos fieis18. Com efeito, cada paróquia está fundada sobre uma realidade teológica, pois ela é uma comunidade eucarística. Isso significa que ela é uma comunidade idônea para celebrar a Eucaristia, na qual se situam a raiz viva do seu edificar-se e o vínculo sacramental do seu estar em plena comunhão com toda a Igreja. Essa idoneidade mergulha no fato de a paróquia ser uma comunidade de fé e uma comunidade orgânica, isto é, constituída pelos ministros ordenados e pelos outros cristãos, na 16 BORRAS, Alphonse e ROUTHIER, Gilles, A NOVA PARÓQUIA, Gráfica Coimbra, p. 61. 17 Catechesi Tradendae, 67. 18 Christifideles Laici, 26. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 17 17 17/10/2013 15:09:10 A revitalização das paróquias qual o pároco, que representa o bispo diocesano, é o vinculo hierárquico com toda a Igreja particular19. Com o passar do tempo e, recentemente, com os processos de urbanização, rurbanização e conurbanizacão, a estrutura paroquial ainda continua objeto de discussão e questionamento. O âmbito desse questionamento é muito variado: uns comentam a abolição desse modelo, pois o consideram sem perspectiva; alguns dizem que é algo medieval e rural e outros afirmam, ainda, que é uma realidade totalmente voltada para si mesma, uma instituição eclesiástica que ignora o crescimento e desenvolvimento do mundo. De fato, o surgimento da civilização urbana transforma os modos de viver, as estruturas habituais da existência e os relacionamentos na família, na vizinhança, modificando os próprios moldes da comunidade eclesial. Alguns caminhos, pistas, balizas para revitalização das Paróquias, são a compreensão da paróquia enquanto instituição insubstituível e grandeza teológica, bem como as noções de paróquia evangelizadora e de setorização paroquial: A) Paróquia: instituição insubstituível Na Exortação Apostólica Catechesi Tradendae, de 16 de outubro de 1979, o papa João Paulo II afirmou: “A paróquia foi profundamente abalada pelo fenômeno da urbanização. Alguns chegaram mesmo a admitir com demasiada facilidade, que a paróquia estava ultrapassada, se não mesmo votada ao desaparecimento, em favor de pequenas comunidades mais adaptadas e eficazes. Quer se queira quer não, a paróquia continua a ser ponto de referência importante para o povo cristão, a até mesmo para os não praticantes” (n. 67). Atualmente, a instituição paróquia sofre com tantas mudanças culturais, principalmente com o avanço vertiginoso e desordenado da urbanização e da rurbanização. Mesmo assim, a paróquia constitui uma instituição insubstituível. Ela continua sendo o lugar privilegiado onde a maioria dos fiéis busca fazer uma experiência concreta de Cristo, na verdadeira comunhão eclesial. 19 18 Congregação para o Clero, O presbítero, pastor e guia da comunidade paroquial, 14.08.2002, pág. 18. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 18 17/10/2013 15:09:10 Edson Oriolo Desde o século IV, a instituição paróquia sempre foi uma estrutura eclesial a que o povo cristão teve mais acesso para viver sua experiência cristã. Mesmo sabendo que as paróquias, nos séculos XIV e XV, tinham um baixo nível espiritual, o Concílio de Trento, em 1563, sancionou o estatuto jurídico da paróquia considerada como órgão principal da pastoral, com o decreto De reformatione, sessão XIV. Decidiu que cada populus (conjunto de pessoas residentes num determinado lugar) constituísse uma paróquia e que tivesse um pastor para conhecer suas ovelhas, residindo no território e cuidando do ministério da palavra e dos sacramentos. A paróquia tridentina estava, pois, baseada na autoridade sagrada do pároco, na celebração da Palavra, dos sacramentos e no cuidado do povo. Nos dias de hoje, pela realidade que nos cerca, sabemos que a estrutura paroquial não corresponde aos desafios da missão, sobretudo, neste mundo em “mudança de época”. A estrutura eclesial não pode parar na paróquia, sobretudo, na paróquia tradicional avessa à renovação. Frente a esta sociedade em mudança, a instituição paróquia tem que desenvolver projetos missionários que atendam às reais possibilidades dos fenômenos da urbanização, rurbanização, da evangelização e missão profética da Igreja. A paróquia deve prestar uma contribuição relevante em nível de relacionamento humano. De fato, a paróquia é a última localização da Igreja. Em certo sentido, é a própria Igreja que vive no meio das casas dos seus filhos e das suas filhas, com a missão de ser “uma casa de família, fraterna e acolhedora” (CFL, 26). Assim sendo, a instituição paroquial tradicional é concebida para ter continuidade, ser receptiva a mudanças e com possibilidade de efetuar diálogo com a sociedade moderna, mesmo fazendo memória do pensamento do papa Clemente I (ano 88 e 97) quando afirmou: “A Igreja tem consciência da necessidade de pensar a evangelização, mas tem dificuldade de encontrar caminhos para a ação”. A conferência de Santo Domingo (1992) abriu horizontes ao afirmar que “a nova evangelização exige conversão pastoral” (n. 30), e o documento de Aparecida veio dar mais um passo importante no caminho da Igreja Latino-americana, com a questão da “conversão pastoral”. Assim, a instituição paróquia requer conversão pastoral. Uma verdadeira comunidade, onde a Palavra e Eucaristia levem à verdadeira experiência do encontro pessoal com Jesus Cristo. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 19 19 17/10/2013 15:09:10 A revitalização das paróquias A paróquia como instituição exige transformações radicais: a profunda conversão pastoral e missionária de nossas comunidades, de que fala o Documento de Aparecida, n. 384, como que recolhendo clamores, aspirações e indicações que vêm de toda parte. Destarte, a paróquia, como suporte institucional no contexto atual, só será insubstituível quando aprender, com a história do magistério ordinário e extraordinário, a saber se renovar a tempo e assimilar, sem ingenuidades ou falsos preconceitos, os valores seculares condizentes com o Evangelho que ela tantas vezes apregoa e aprecia. Para isso tornar-se realidade, o papa Bento XVI nos ensina: “[...] uma das tarefas da paróquia é a hospitalidade, para quantos não conhecem esta vida típica da comunidade paroquial. Não devemos ser um círculo fechado em nós mesmos. Temos os nossos costumes, mas devemos abrir-nos e procurar criar também vestíbulos, ou seja, espaços de aproximação. Devemos procurar criar, com a ajuda da Palavra, aquilo que a Igreja antiga criou para os catecúmenos: espaços pelos quais a Palavra se torna compreensível e realista, correspondente às formas da experiência real” (Discurso de Bento XVI, 26 de fevereiro de 2009). B) Paróquia: grandeza teológica João XXIII foi o papa do aggiornamento, isto é, da atualização, da revisão e da modernização da Igreja. Iluminado pelo Espírito Santo, fonte de luz e renovação, fez a Igreja sacudir a poeira de séculos. O papa do “novo pentecostes” teve uma formação piedosa, sólida, no estilo de paróquia rural. Era afável, bondoso e, quando morreu, ficou conhecido como “João o Bom, o Bondoso” por causa de sua pessoa e de seu apostolado. Em seu breve pontificado, deixou-nos muitas intuições, principalmente quando disse: “A paróquia é como que a fonte da aldeia à qual todos acorrem para matar a sede”. Com esta máxima podemos transcender a instituição paroquial, da dimensão de realidade jurídica para a dimensão de mistério, ou melhor, a paróquia, uma grandeza teológica onde a Eucaristia é a verdadeira fonte. A paróquia, à luz da teologia eucarística, faz da celebração da eucaristia fonte e referência de todas as atividades sacramentais, pastorais, caritativas... O próprio Código de Direito Canônico nos ajuda a entender que é “pela eucaristia, continuamente, que vive e cresce a Igreja” e que, por ela, “é significada e se realiza a unidade do povo de Deus e 20 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 20 17/10/2013 15:09:10 Edson Oriolo se completa a construção do Corpo de Cristo” (Cân. 897). Portanto, “o sacrifício eucarístico, memorial da morte e ressurreição do Senhor, no qual se perpetua pelos séculos o sacrifício da cruz, é o ápice e a fonte de todo o culto e da vida cristã” (Cân. 897). Na sociedade que liquefaz as instituições, é um desafio reavivar o valor da paróquia entre os demais desafios de nossa época. O fato de vivermos em um mundo globalizado significa que não sós os limites geográficos se desfazem. As transformações atingem os setores da vida humana, de modo que já não vivemos “uma época de mudança, mas uma mudança de época”. O que era certeza se mostra insuficiente para responder a situações novas (cf. DGAE 2011-2015,19). Nesse contexto, na celebração eucarística, o povo de Deus se reúne sob a presidência de um ministro qualificado e legitimamente autorizado (Cf. Cân 899,§2), para celebrar a memória sacramental d’Aquele que quer ser reconhecido presente em cada irmão e em cada irmã (Mt 18,20; Mt 25,40) e que clama: ABBA! Pai! (Gl 4,6) A partir dessas considerações, podemos entender que a essência da paróquia como fonte de vivência cristã só vai ser entendida quando o mistério eucarístico for o alimento para o nosso caminhar peregrino neste mundo. A paróquia, nesse sentido, é uma realidade dinâmica e viva, cuja transformação visa ser realmente o espaço onde o fiel possa alimentar-se do mistério de Jesus Cristo celebrado eclesialmente. Assim, a missão do pároco consiste em fazer com que a celebração da Eucaristia se torne o elemento central da vida eclesial dos fieis (Cf. Cân. 5280), de sorte que tenham energia para irradiar o seu sentido de ação de graças em todos os momentos de suas vidas. Pois, o antigo “Ite, missa est” insinuava, e podemos dizer: “Ide, a missa continua”, isto é, agora é vossa a missão! A Eucaristia vai aos poucos apontando horizontes novos para que a paróquia não fique apenas no aspecto territorial, mas vivencie seu autêntico caráter de assembléia eucarística. Finalmente, a paróquia realizará seu indispensável papel institucional, não como uma instância burocrática de prestação de serviços religiosos, mas como um organismo vivo, se souber estabelecer uma ligação simbiótica com as comunidades locais e destas com ela, bem como com os movimentos e as associações, respeitando e promovendo a sua legítima autonomia. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 21 21 17/10/2013 15:09:10 A revitalização das paróquias C) A paróquia evangelizadora A Igreja tem a missão de evangelizar. Desde seu início, a Comunidade dos discípulos soube ser chamada a anunciar a boa-nova, segundo a ordem de Jesus: “Ide por todo o mundo, proclamai o evangelho a toda a criatura” (Mc 16,15).A Igreja de todos os tempos se preocupou em compreender esta sua vocação e responder a ela. O Vaticano II sintetiza essa consciência ao afirmar que a comunidade eclesial é portadora da boa-nova e é sacramento universal de salvação (cf. LG, 48). Hoje, cada vez mais, tem-se a consciência de que a evangelização faz parte constitutiva da instituição paroquial. Já então, o Sínodo dos Bispos sobre os leigos (1987), pedia que as paróquias fossem verdadeiramente missionárias, no sentido de que anunciassem o evangelho de Jesus Cristo aos não crentes e também aos batizados, para que eles vivessem assiduamente uma vida plenamente cristã, a nível pessoal, familiar e comunitário (cf. Proposição 11). Em setembro de 2010, o papa Bento XVI criou o Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização através do motu proprio, intitulado Ubicumque et Semper. O objetivo desse Conselho, segundo o papa, é que retome o dinamismo da missão de Jesus Cristo e explicite para os nossos dias o sentido e o alcance da nossa missão como Igreja. São, pois, atribuições deste novo Conselho: aprofundar o significado teológico e pastoral da evangelização nos tempos atuais; dar a conhecer e incentivar iniciativas ligadas a uma evangelização que vá ao encontro dos anseios humanos atuais; estudar e favorecer a utilização das formas de comunicação modernas, pelo seu papel de transformação das relações entre as pessoas; promover o uso do Catecismo da Igreja Católica como roteiro essencial e completo do conteúdo da fé para os homens do nosso tempo. Nessas atribuições, percebe-se a preocupação eclesial em vivenciar o mandato missionário de Jesus Cristo: anúncio de uma boa nova para o coração inquieto do ser humano atual. Se o anúncio do evangelho é, segundo Paulo VI, a verdadeira identidade da Igreja, o desafio é como tornar esse anúncio fonte de uma experiência de fé transformadora da vida e da convivência humana. Se a evangelização é suscitar a fé, então a paróquia, como espaço de ação evangelizadora, tem que se constituir para os seus membros no tempo e lugar para poderem viver e irradiar a alegre mensagem cristã. 22 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 22 17/10/2013 15:09:10 Edson Oriolo Para tanto, as instâncias paroquiais: anúncio profético, serviço diaconal, celebração litúrgica da fé e comunhão no amor, cada uma a seu modo, expressam a dimensão essencial da Igreja de Jesus Cristo: semear a semente do amor soberano de Deus que quer pessoas comprometidas na sua irradiação para a vida digna de todos os homens. A evangelização na instituição paroquial acontece, portanto, com o serviço de unidade a ser realizado pelo pároco, de forma colegiada, e em nome do bispo. Acontece com o anúncio da palavra de Deus, em sintonia com os ensinamentos da fé. Acontece pela celebração da memória de Jesus Cristo, que vivifica os seus através de gestos sacramentais. Acontece também pela prática fiel das obras de amor misericordioso, que resgatam a dignidade humana (Mt 25,30 ss). Percebe-se que a ação evangelizadora na vida paroquial será uma realidade, se ali se desenvolver a rede de comunidades cuja interação relacional tem o objetivo de todos se manterem em comum união. A visibilidade disso se dá pelo bom entendimento entre os fiéis paroquianos com o seu pároco, e deste com o seu bispo. Não se trata de falsa harmonia, como se fosse possível viver sem conflitos. Mas, que estes não levem à ruptura e ao contra-testemunho. A porção do povo de Deus, confiada a um bispo, a que chamamos de diocese, é uma instância colegiada no exercício de governar. É indispensável a cooperação do presbitério que comporta, em sentido amplo, não apenas os ministros ordenados, mas também os demais agentes pastorais. Cada qual tem sua responsabilidade própria. Todos, porém, estão a serviço da unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade da Igreja (cf. CD,11). Nestas nossas considerações vamos focar o papel do bispo e dos sacerdotes como servidores privilegiados da ação evangelizadora. Deles se pede comunhão e que sejam agentes da unidade na caridade (cf. PO, 6). Portanto, a paróquia é uma comunidade de fiéis confiada pelo bispo diocesano ao pároco e seus colaboradores para que lhe proporcionem os bens da salvação. A ação evangelizadora na comunidade paroquial impõe ao bispo e ao pároco a busca de conhecer os membros de sua comunidade. Esse esforço fomenta o progresso da vida cristã, seja em cada um dos fiéis, seja nas famílias, seja nas associações, principalmente nas que se dedicam ao apostolado, seja na comunidade paroquial inteira (cf. CD, 30). Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 23 23 17/10/2013 15:09:10 A revitalização das paróquias A ação evangelizadora na vida paroquial requer também o desenvolvimento do ensinamento do evangelho. De acordo com o documento conciliar Christus Dominus, que acredito ser a Carta Magna dos responsáveis pelas paróquias, os párocos devem “pregar a Palavra de Deus a todos os fiéis, a fim de que, fundados na fé, esperança e caridade, cresçam em Cristo, e a comunidade cristã dê aquele testemunho de caridade que o Senhor recomendou” (CD, 30). Sem duvida, a paróquia conta com os meios tradicionais para isso, como a homilia e a catequese. Contudo, é preciso ir além, p. ex., desenvolver uma leitura orante da palavra de Deus, escola da fé, círculos bíblicos, sem esquecer o recurso das redes sociais. Um espaço que está para ser mais bem conhecido e aproveitado. A ação evangelizadora da vida paroquial se preocupará em desenvolver os meios pelos quais a ação atuante do Espírito santifica os membros da comunidade. Para que a Eucaristia seja o centro e o ponto alto de toda a vida da comunidade cristã, sua celebração deve ser diversificada, segundo o tempo e as circunstâncias concretas. Igualmente os demais sacramentos serão celebrados de forma variada, tendo presente as necessidades concretas dos fiéis. A frequência não pode levar à rotina, nem a variedade à busca de novidade. A vivência sacramental requer um envolvimento consciente e uma afetuosa participação litúrgica (cf. CD, 30). Celebrar bem os sacramentos é servir ao povo de Deus (cf. Mc 9,35). O programa paroquial preverá tempos fortes de oração e de contemplação, pessoal e comunitária. Sem dúvida, a melhor maneira para a paróquia ser evangelizadora é termos presbíteros cujo discipulado e missionaridade os faça servidores da vida digna e cheios de misericórdia, à luz do que nos ensina o evangelho e que o documento de Aparecida exorta: a) Padres-discípulos: que tenham profunda experiência de Deus, configurados com o coração do Bom Pastor; dóceis às orientações do Espírito, que se nutram da Palavra de Deus, da Eucaristia e da oração; b) Padres-missionários: movidos pela caridade pastoral que os leve a cuidar do rebanho a eles confiado e a procurar os mais distantes, pregando a Palavra de Deus, sempre em profunda comunhão com o bispo, com os outros presbíteros, os diáconos, religiosos, religiosas e leigos; c) Padres-servidores da vida: que estejam atentos às necessidades dos mais pobres, comprometidos na defesa dos direitos dos mais fracos, e promotores da cultura da solidariedade; 24 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 24 17/10/2013 15:09:10 Edson Oriolo d) Padres-cheios de misericórdia: disponíveis para administrar o sacramento da reconciliação, o que, inclusive, foi uma das tônicas do Sínodo para a Nova Evangelização celebrado recentemente, em Roma. (cf. DAp, 190). D) Setorização Paroquial O Documento de Aparecida aconselha-nos a setorizar as paróquias, para que haja comunidades de famílias que vivam em comum sua fé cristã e dêem respostas aos problemas que enfrentam, tendo à frente a animação e coordenação de equipes de leigos (cf. DAp. 372; 403; 406; 413; 458; 505; 508; 513-518). Assim, levando em consideração as dimensões de nossas paróquias, é preciso transformá-las em unidades territoriais menores, com equipes próprias de animação e coordenação, que permitam uma maior proximidade das pessoas e dos grupos que vivem na região. A setorização das paróquias é um modelo de organização pastoral baseado nos moldes das comunidades primitivas, de uma Igreja presente nas casas, que desenvolve a missão a partir da constituição de relacionamentos dos seus membros, vizinhos, companheiros de trabalho ou estudo e familiares. A respeito das pequenas comunidades eclesiais, o Documento de Aparecida afirma: “Constata-se que nos últimos anos está crescendo a espiritualidade de comunhão e que, com diversas metodologias, não poucos esforços têm sido feitos para levar os leigos a se integrarem em pequenas comunidades eclesiais, que vão mostrando frutos abundantes. Nas pequenas comunidades eclesiais temos um meio privilegiado para a nova evangelização e para chegar a que os batizados vivam como autênticos discípulos e missionários de Cristo” (DAp. 308) Os setores na vida da paróquia colaboram para que a ação pastoral, evangelizadora e missionária, faça a passagem de uma pastoral da conservação para uma pastoral da conversão pastoral, renovando a vida das pessoas e as estruturas das comunidades e de todo o corpo eclesial para uma visibilidade maior da Igreja. A paróquia é a Igreja viva e eficaz. Na diocese, devem florescer as paróquias e as comunidades cristãs, como células vivas e pujantes da vida eclesial (cf. SD, 55). A setorização paroquial contribui para a revitalização da paróquia, fazendo dela “comunidade de comunidades”. Os setores são um lugar privilegiado para uma experiência concreta de Cristo e uma Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 25 25 17/10/2013 15:09:10 A revitalização das paróquias experiência de comunhão. Os setores “são um ambiente propício para se escutar a Palavra de Deus, para se viver a fraternidade, para se animar na oração, para aprofundar processos de formação na fé, e para fortalecer o exigente compromisso de termos apóstolos na sociedade de hoje. São os lugares de experiência cristã e evangelização que, em meio à situação cultural que nos afeta, secularizada e hostil à Igreja, se fazem muito mais necessários” (DAp. 308). Assim, a setorização na vida paroquial deve proporcionar o crescimento do relacionamento interpessoal na fé, o aprofundamento da Palavra de Deus, a participação na Eucaristia, a comunhão com os pastores e um maior compromisso social (cf. DAp. 307-310). As pequenas comunidades são a esperança da Igreja (cf. EN, 58). Os setores são um belo modo de ser Igreja: Igreja discípula, Igreja missionária, Igreja nas ruas, nas casas, Igreja Povo de Deus. Não podemos permanecer na sacristia, nem na secretaria paroquial. Temos de ir ao encontro do povo, ir onde o povo está. Os verbos ir, sair, partir, caminhar, tão próprios da atividade missionária, são muito usados no livro dos Atos dos Apóstolos para falar da atividade missionária das primeiras comunidades cristãs. As paróquias devem se tornar, mediante uma ação renovadora, espaços de iniciação cristã, da educação e celebração da fé, abertas à diversidade de carismas, serviços e ministérios. A paróquia “comunidade de comunidades” deve ser o lugar privilegiado no qual a maioria dos fiéis tem uma experiência concreta de Cristo e da Comunhão eclesial. As paróquias são chamadas a ser “casas e escolas de comunhão” (DAp. 170). Conclusão “Coisas novas estão surgindo” (Is 43,19). Estas palavras do profeta Isaías abrem perspectivas para que as paróquias, na sociedade pós-moderna, sejam criativas, operativas, funcionais, organizadas, estratégicas, estabeleçam entre os fiéis um envolvimento diferenciado e possibilitem a experiência concreta do Cristo Ressuscitado. Assim sendo, o profeta Isaías abre horizontes para o novo tempo que precisa ser conquistado. Nosso Deus é aquele que cria caminho onde não existe caminho algum. Ele cria algo novo, uma saída para situações em que não se enxerga mais possibilidade alguma. No mundo pós-moderno, estamos cansados, estressados por tantas questões vindas do ambiente paroquial em que vivemos ou somos res- 26 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 26 17/10/2013 15:09:11 Edson Oriolo ponsáveis. O risco do burnout, síndrome do esgotamento, pode atingir a todos, leigos e ministros ordenados. Esta situação exige que os párocos façam do seu ministério um dom de amor, de entrega, de dedicação e de envolvimento com as pessoas, para que nossas paróquias sejam mais vivas e se destaquem como um sinal do Reino de Deus na vida das comunidades de fé. Precisamos que bispos, sacerdotes e leigos trabalhem juntos para lançar as sementes do Verbo num contexto complexo e que nos traz perplexidades. Neste tempo, caracterizado como de “mudança de época”, as paróquias devem ser um lugar privilegiado de evangelização, de encontro, de alegria, de conforto, de acolhida, de encorajamento e de expressão da comunhão e participação eclesial; um ambiente propício à reflexão e à escuta orante da Palavra de Deus; um lugar de oração pessoal e comunitária e da vivência dos sacramentos, principalmente da Eucaristia. Devemos buscar, juntos, caminhos para que nossas paróquias progridam como: a) espaço de santificação dos seus membros: “Seguindo o exemplo da primeira comunidade cristã (cf. At 2,46-47), a comunidade paroquial se reúne para partir o pão da Palavra e da Eucaristia e perseverar na catequese, na vida sacramental e na prática da caridade “a fim de que todos os discípulos missionários possam, nos sacramentos, dar frutos permanentes de caridade, reconciliação e justiça para o mundo” (DAp 175). b) lugar privilegiado onde os fiéis possam fazer a experiência concreta da Igreja diocesana: “A paróquia é a realização concreta da Igreja num determinado lugar. É sinal da Igreja universal” (AA 10). c) comunidade onde os leigos participam ativa e ardorosamente: As paróquias devem ser: “espaços da iniciação cristã, da educação e celebração da fé, abertas às diversidades de carismas, serviços e ministérios, organizadas de modo comunitário e responsável, integradoras de movimentos de apostolado já existentes, atentas à diversidade cultural de seus habitantes, abertas aos projetos pastorais e supraparoquais, e às realidades circundantes” (DAp 170). d) comunidade fiel à missão de anunciar o Evangelho. As paróquias sejam missionárias (cf. DAp 173) e “todos os membros da comunidade paroquial são responsáveis pela evangelização dos homens e mulheres em cada ambiente” (DAp l71). Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 27 27 17/10/2013 15:09:11 A revitalização das paróquias Olhando para esses paradigmas, dando-lhes vida e priorizando-os, podemos dizer com o profeta Isaías que “coisas novas estão surgindo” (43,19). Necessitamos investir na organização da missão e da finalidade das paróquias na vida eclesial, para que elas possam se tornar uma prática vantajosa, altamente benéfica que, por sua vez, atesta a necessidade de rever e criar novos ministérios, formando novas funções e idealizando novas tarefas numa sociedade em constante transformação. Assim, certamente, a paróquia contribuirá para a realização de um mundo renovado segundo o projeto de Deus: “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5). No entanto, a conversão pastoral, na dinâmica da nova evangelização, necessita de uma visão sistêmica (magistério ordinário e extraordinário) sobre a natureza, a finalidade e a missão da Igreja de Jesus Cristo, isto é, identificar o papel e a importância de todas as áreas, ações e atividades da Igreja. Quanto ao pároco, pelo fato de ser ele o referencial da vida paroquial, é sua a responsabilidade de cuidar das coisas sagradas (santificar) e desempenhar a missão de ensinar e governar o povo de Deus que lhe foi confiado. Para tudo isso, além de agir in persona Christi, ele deveentender a dinâmica da liderança. O pároco, como persona Christi, é servo, no sentido de que sua existência, ontologicamente configurada com Cristo, adquire uma índole essencialmente relacional: ele vive em Cristo, por Cristo e com Cristo a serviço das pessoas Ele pertence a Cristo e encontra-se radicalmente a serviço dos irmãos e irmãs. É ministro de sua salvação, nessa progressiva assunção da vontade de Cristo, na oração, no “estar coração a coração” com ele. Esta é a condição imprescindível de cada anúncio, que exige a participação na oferenda sacramental da Eucaristia e a obediência dócil à Igreja (cf. Bento XVI, Audiência geral, Praça São Pedro, 24/06/2009). As paróquias têm um papel fundamental na evangelização e precisam tornar-se sempre mais comunidades vivas e dinâmicas de discípulos e missionários de Jesus, sendo os seus responsáveis verdadeiros líderes in persona Christi (cf. DGAE 2008-2010, 154 e DGAE 2011-2015, 57). Destarte, o pároco com convicções fortes, objetivos claros e bem definidos, deve ser capaz de recrutar leigos e leigas para participarem de pastorais e movimentos, somando forças na construção da Igreja do Senhor. Os párocos devem ser líderes in persona Christi nos seguintes aspectos: espiritualidade, autoridade, conhecimento e personalidade. 28 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 28 17/10/2013 15:09:11 Edson Oriolo O pároco líder deve ser capaz de conquistar respeito para si próprio como pessoa, por ser homem de Deus, de oração, da cruz, do amor sem limite, do evangelho, da Eucaristia, da esperança, do discernimento e das vocações. Referências bibliográficas BORRAS, Alphonse; ROUTHIER, Gilles. A nova paróquia. Tradução de Margarida Maria Osório Gonçalves. Coimbra: Gráfica Coimbra, 2010. CELAM. Documento de Aparecida. 2. ed. Brasília: CNBB; São Paulo: Paulinas; Paulus, 2007. CONCILIO ECUMÊNICO VATICANO II. Compêndio do Vaticano II: constituição, decretos, declarações. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1968. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. Instrução O presbítero, pastor e guia da comunidade paroquial. 14 agosto 2002. DIRETRIZES GERAIS DA AÇÃO PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL – 2011-2015. FLORISTÁN, Casiano; SIMÕES, Idalino. Para Compreender a Paróquia. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1995. FUENTE, E. Bueno de la; PÉREZ, R. Calvo. La Iglesia Local. Madrid: Ed. San Pablo, 2000. IGREJA CATÓLICA. Catecismo da Igreja Católica. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. IGREJA CATOLICA. Código de Direito Canônico. Trad. Oficial da CNBB, com notas e comentários de Jesus Hortal, sj. São Paulo: Loyola, 1983. João Paulo II. Ecclesia in America. 22 fev. 1999. MAESTRO, Jésus Alvarez. La Nueva Parroquia Evangelizadora. Renovación interior y creatividad pastoral. Madrid: Edibesa, 2012. Revista Vida Pastoral, n. 278, Maio e Junho de 2011, pp. 5 a 7, sob o titulo: “A Revitalização da Paróquia”. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 29 29 17/10/2013 15:09:11 A revitalização das paróquias Revista Eclesiástica Brasileira (REB), n. 282, Abril de 2011, pp. 426 a 438, sob o titulo: “ Identidade Presbiteral: Estatuto Social do Sacerdote”. REB, n. 287, Julho de 2012, pp. 688 a 710, sob o titulo: “ A Revitalização da Paróquia”. REB, n. 289, Janeiro de 2013, pp. 181 a 200, sob o titulo: “Paróquia – lugar de transmissão da fé”. ROCHA, Georgino. Paróquia e unidades pastorais. Coimbra: Gráfica Coimbra, 2010. 30 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 30 17/10/2013 15:09:11 Resumo: Refletir sobre a Paróquia como Comunidade de comunidades é simples. Difícil mesmo é colocar em prática tal proposta. Sabemos os caminhos, os procedimentos, mas nos falta ainda o ardor missionário para agir dentro desse processo, pois ele exige a renovação de nossas estruturas paroquiais e a conversão para a missão, e muitos ainda não estão preparados ou dispostos a isso. Sabemos que não se faz renovação estrutural das paróquias sem a conversão dos seus agentes. Assim sendo, esta reflexão busca apontar os apelos da Igreja, através dos seus principais documentos dos últimos anos, e questionar nossa postura diante desses apelos, apontando as questões e os desafios centrais para organizar uma paróquia que seja, verdadeiramente, comunidade de comunidades. Palavras chaves: paróquia, comunidade, estrutura, renovação, missão. Abstract: Reflecting on the Parish as a community of communities is simple. It is difficult to put into practice such a proposal. We know the roads, the procedures, but we still lack the missionary zeal to act within this process, as it requires the renewal of our parish structures and conversion to the mission, and many are not prepared or willing to do so. We know that one does not make structural renewal of parishes without a conversion of the agents. Therefore, this reflection seeks to identify the calls of the Church, through its principal documents of recent years, and to question our attitude to these appeals, pointing out the issues and challenges central to organize a parish that is truly community of communities. Keywords: parish, community structure, renovation, mission. Paróquia, comunidade de comunidades. Desafios centrais José Carlos Pereira* * José Carlos Pereira é padre passionista, professor licenciado em Filosofia pela UNISAL; bacharel em Teologia pelo Ateneo Santo Anselmo de Roma; mestre em Ciências da Religião e doutor em Sociologia pela PUC-SP. É autor de mais de 45 livros nas áreas de Sociologia, Antropologia, Espiritualidade e Teologia (eclesiologia, missiologia, pastoral, dogmática), publicados no Brasil e no exterior. Tem-se especializado em gestão do terceiro setor, com ênfase em paróquias. Publicou artigos em Revistas e Jornais nacionais e internacionais. Foi pesquisador bolsista do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e expôs diversas pesquisas em Congressos de Universidades brasileiras e estrangeiras, dentre elas, na Universidade de Coimbra (Portugal), Universidade Nacional de Córdoba (Argentina) e Universidade de Havana (Cuba), além de universidades brasileiras, como USP; PUC/SP; Universidade Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013, p. 31-49. Encontros Teologicos 65.indb 31 17/10/2013 15:09:11 Paróquia, comunidade de comunidades. Desafios centrais Introdução Desde a V Conferência do Episcopado Latino Americano e Caribenho, a paróquia tem sido tema central de reflexão na Igreja. Até então se falava muito em missão, mas os espaços das paróquias não eram vistos como campo de missão e nem se alardeava a importância dela como lugar de formação dos discípulos missionários. A partir da V Conferência, a Igreja lançou luzes sobre as paróquias e, sabiamente, enxergou nelas um espaço privilegiado para a formação de missionários e lugar onde a missão deve começar. Vale lembrar que, se não formos missionários nas nossas paróquias, dificilmente seremos missionários em outros lugares. Muitos investimentos na missão ad gentes não têm dado certo porque são enviados missionários para essa modalidade de missão que não foram missionários nos seus lugares de origem, nas suas paróquias. Quando isso acontece, o resultado é catastrófico, pois o que se espera de todo missionário, mas, sobretudo dos missionários da missão ad gentes, é que tenham sido missionários nas suas paróquias e que tenham, além da prática, recebido formação para a missão. Assim sendo, o Documento de Aparecida chama a atenção para a formação permanente de missionários em nossas paróquias, dizendo que “se queremos que as nossas paróquias sejam centros de irradiação missionária em seus próprios territórios, elas devem ser também lugares de formação permanente” (D. Ap, n. 306). Assim sendo, a tônica recai sobre a formação de missionários em nossas paróquias, de modo que ela, a paróquia, adote uma postura missionária. Adotar uma postura missionária significa que todos os trabalhos da paróquia, até aqueles que parecem nada ter de missão, sejam missionários. Quando o pároco, seus vigários paroquiais e demais agentes de pastoral, leigos e consagrados, adotam Metodista (São Bernardo do Campo/SP); Faculdade Católica do Tocantins (Palmas/ TO), entre outras. Tem participado de bancas de defesa de tese e em outros eventos acadêmicos. É membro do Núcleo de Estudos Religião e Sociedade (NURES), do Programa de pós-graduação em Ciências Sociais da PUC/SP; é articulista da Revista “Paróquias e Casas Religiosas”, da qual também faz parte do Conselho de conteúdo e participou das pesquisas do CERIS (Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais), fazendo a análise sociológica das suas últimas pesquisas sobre a realidade do clero brasileiro. É assessor do CCM (Centro Cultural Missionário), de Brasília/DF, organismo da CNBB e ministra cursos e palestras em paróquias e dioceses do Brasil. Maiores informações curriculares encontram-se na Plataforma Lattes do CNPq. Endereço eletrônico: http://lattes.cnpq.br/3087275365776123 e em sua home page: www.pejosecarlospereira.com.br. 32 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 32 17/10/2013 15:09:11 José Carlos Pereira posturas missionárias, toda a paróquia se torna missionária, pois os trabalhos desenvolvidos por esses agentes serão trabalhos missionários. Mas, para que isso aconteça, é preciso mexer na estrutura da paróquia, fazendo com que ela passe de uma paróquia com pastorais de manutenção, centralizadora, para uma paróquia, rede de comunidades. Por essa razão, o Documento de Aparecida propôs a formação de redes de comunidades nas nossas paróquias, porque esse é o procedimento mais indicado para torná-la missionária. Na esteira de Aparecida nós tivemos o Projeto de Evangelização, a Missão Continental, que acentuou esse procedimento nas paróquias, vendo nele algo essencial para a missão. Nessa mesma linha, os Bispos do Brasil lançaram as Diretrizes Gerais para a Ação Evangelizadora da Igreja: 2011-2015, enfatizando, entre seus desafios, a formação de comunidades nas paróquias, trazendo como um de seus eixos de reflexão, a “Igreja, comunidade de comunidades”. Por se tratar de um tema medular no processo de evangelização permanente, e na formação de uma paróquia missionária, esse tema foi eleito para a 51ª Assembleia dos Bispos do Brasil, onde foi refletido com esta formulação: “Comunidade de comunidades, uma nova paróquia” (Doc. Estudos da CNBB, n. 104). Vemos, assim, a importância do tema para a vida de nossas paróquias. A comunidade como o caminho para a reestruturação de nossas paróquias, de modo que elas se tornem verdadeiramente missionárias. É nessa direção que conduzo esta reflexão, retomando algumas questões, ou desafios centrais, para uma paróquia comunidade de comunidades. Quais são estes desafios? O que precisamos fazer para responder a eles? Que procedimentos tomar diante de uma paróquia ainda centralizadora e com pastorais de manutenção? Esses e outros questionamentos serão respondidos nesta reflexão, buscando apontar caminhos para a formação de comunidades em nossas paróquias. Para isso, é necessário retomar os últimos documentos mais relevantes da Igreja e extrair deles as propostas para uma Paróquia, Comunidade de comunidades. Quais são estes Documentos? O primeiro e mais importante é o Documento de Aparecida. Desse Documento, outros se desdobraram. Farei, assim, num primeiro momento, uma breve abordagem do Documento de Aparecida, extraindo dele as indicações para uma paróquia missionária. Depois resgatarei alguns elementos da Missão Continental, sobretudo do Documento “O Brasil na Missão Continental” (Doc. CNBB 88). Em seguida, veremos as Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil: 2011-2012 (Doc. CNBB, n. 94), e os Estudos da CNBB Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 33 33 17/10/2013 15:09:11 Paróquia, comunidade de comunidades. Desafios centrais (Doc. 104), “Comunidades de Comunidade, uma nova paróquia”. Desses Documentos apontaremos os desafios, e também as pistas de ação, para uma paróquia Comunidade de comunidades. As reflexões aqui propostas serão práticas e objetivas, sem a pretensão de incursões teóricas pelo complexo universo da Teologia, mas, sim, enveredaremos pelos caminhos da práxis pastoral e da missão. Assim sendo, são reflexões eclesiológicas, com enfoque na ação pastoral e missionária da paróquia. 1 A paróquia no Documento de Aparecida Ao analisar o Documento de Aparecida, buscando nele o tema paróquia, vamos encontrar 39 citações. Não é pouco, quando comparado com a grandeza desse Documento e a gama de temas que nele é tratado. Dessas 39 citações, duas delas dão destaque à paróquia, de modo que tudo o que nós temos de reflexões sobre a paróquia, são extraídas destes dois números do Documento (170 e 304). Mas, o que dizem de tão importante esses números do Documento de Aparecida para as nossas paróquias? Eles trazem as indicações medulares para qualquer trabalho missionário. São constatações e pistas de ações que, se colocadas em prática, a paróquia estará em estado permanente de missão. Dessas pistas surgiram outras, ampliando a e visibilizando a sua importância. Vejamos rapidamente estas indicações. 1.1 Paróquia em células: Comunidade de Comunidades A partir do número 170, até o número 177, nós encontramos o tema central desta nossa reflexão. A proposta de uma paróquia que se torne uma Comunidade de comunidades. Ou seja, a estrutura da paróquia deve ser uma estrutura que forme e fomente comunidades. Se assim não for, ela perde sua razão de ser e se empobrece. Uma paróquia que não se preocupa com a vida de comunidade em seu território, é uma paróquia estagnada no tempo, sem ação missionária, que se encerra no seu conceito jurídico e administrativo. Porém, não é fácil formar comunidade, porque comunidade se subentende consciência do seu significado, compromisso e responsabilidades. À vista disso, não se forma comunidade por decreto. Não basta sair por aí comprando terreno e levantando templos, que eles não serão comunidades se antes não existir uma conscientização sobre esse modo de vida e, sobretudo, uma conversão para viver essa proposta 34 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 34 17/10/2013 15:09:11 José Carlos Pereira eclesial. Há párocos que até procedem assim, supondo formar comunidade por decreto, imposição, ou ação isolada, mas esse procedimento não funciona. O que se cria com esses procedimentos são capelas, templos, que correm o risco de reproduzirem um modelo centralizador de paróquia, mas não comunidade no seu verdadeiro sentido. Comunidade é lugar de comunhão, de partilha, de solidariedade. Lugar onde um grupo de pessoas se reúnem e celebram a vida em todas as suas dimensões. Nisso consiste uma comunidade, e não apenas um templo onde se reproduzem estruturas arcaicas de comportamentos religiosos, mas sem compromissos ou laços afetivos. Assim, comunidade é uma espécie de “célula” que ajuda a conferir vida a um corpo que é a paróquia. Desse modo, as comunidades são células vivas da paróquia, enquanto as paróquias são células vivas da Diocese e, por sua vez, as Dioceses formam as células vivas da Igreja como um todo. Temos assim, uma espécie de corpo eclesial, com cada célula cumprindo o seu papel. Assim sendo, as comunidades da paróquia são células que ajudam a compor um corpo onde a vida pulsa em todas as suas dimensões. É nesse sentido que o Documento de Aparecida usa a expressão “células vivas da Igreja”. Essa expressão não é uma expressão nova, como muitos imaginam. Ela vem de outro momento forte de mudança da Igreja, o Concílio Vaticano II e seus desdobramentos. A primeira vez que se tem notícia do uso dessa expressão foi com Decreto Apostolicam Actuositatem, sobre o apostolado dos leigos, promulgado em de 18/11/65. Portanto, é uma expressão com mais de 50 anos. A expressão foi usada na época para reforçar a unidade da Igreja. “Célula” tem sentido de unidade. É um termo oriundo da biologia, mas que expressa muito bem o que desejamos quando falamos de Comunidade de comunidades. Assim, comunidade é lugar de unidade, de entrelaçamento de ideias, de ações, de pessoas que, com suas diferenças, estão unidas por algo em comum, que é Cristo, dentro de um corpo que é a Igreja. Esta, no caso, representada pela paróquia, irradiando suas energias e somando forças, conferindo vitalidade a esse corpo. É nesse sentido que a expressão foi usada. Porém, no Decreto conciliar, enfatizava-se a unidade das paróquias com as Dioceses. As paróquias eram vistas como células da Diocese e deveriam comportar-se como tais. Diz o Decreto: “Cultivem o sentido de diocese, de que a paróquia é como uma célula, e estejam sempre prontos, à voz do seu pastor, a somar as suas forças às iniciativas diocesanas” (A.A, n˚ 10). Essa recomendação expressa muito bem o sentido da unidade que deve existir na comunidade. A paróquia não deve ser uma igreja partiEncontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 35 35 17/10/2013 15:09:11 Paróquia, comunidade de comunidades. Desafios centrais cular agindo por conta própria, sem vínculo ou sem dar satisfações ao Bispo, mas uma igreja filiada à Diocese, sintonizada com suas ações e colocando em prática as suas recomendações e orientações, sem perder a sua particularidade própria de cada realidade missionária onde a paróquia está inserida. Com esse espírito de unidade a paróquia torna-se comunidade, ou seja, comum-unidade com a Diocese. Esse é o primeiro passo para que ela se torne, de fato, Comunidade de comunidades. Sem esse primeiro procedimento, dificilmente a paróquia irá formar comunidade em sua estrutura. A partir desse indicativo caminha-se para a formação da unidade dentro da estrutura paroquial. Porém, antes de tratar da comunidade dentro da estrutura paroquial, quero trazer presente outro momento em que o termo “célula vida da igreja” foi utilizado. Foi na IV Conferência do Episcopado Latino Americano, que aconteceu em Santo Domingo, na República Dominicana, em 1992. Ali esse tema voltou, reforçando o sentido de unidade das paróquias com as Dioceses, mas já apontando também para a vivência dessa unidade dentro das paróquias. Diz esse Documento: “Em torno do Bispo e em perfeita comunhão com ele, devem florescer as paróquias e as comunidades cristãs, como células vivas e pujantes de vida eclesial” (Santo Domingo, n˚ 55). Assim, despontam aqui as comunidades cristãs dentro das paróquias, formando aquilo que a Conferência de Aparecida chamou de “células vivas da Igreja”. É dentro desse contexto histórico que a Conferência de Aparecida retomou a expressão, colocando-a no coração do projeto da transformação, ou reestruturação, das paróquias em Comunidades de Comunidades, de modo que toda a conjuntura paroquial seja uma rede de comunidades, e não apenas as capelas pertencentes a essa paróquia, como comumente se imagina. Ainda hoje, quando se fala de comunidade, a primeira imagem que vem a mente é a das capelas. As capelas podem e devem se tornar comunidades, mas não apenas elas. Outras instâncias e grupos da paróquia precisam se tornar comunidade, sobretudo a chamada “igreja matriz”, tão comum no modelo tradicional de paróquia. Aqui está um dos desafios. Como fazer com que a igreja matriz seja uma comunidade? Para que a igreja matriz seja uma comunidade ela precisa dividir, repartir suas ações, sobretudo, as celebrações e atividades formativas, catequéticas etc. Temos, assim, o desdobramento da expressão “células vivas da Igreja”, usada em Aparecida como o tema central para a formação de comunidade de comunidades. Desse tema central se desdobram outros, que vão 36 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 36 17/10/2013 15:09:11 José Carlos Pereira formando aquilo que estamos a refletir neste momento, os desafios para uma paróquia ser de fato Comunidade de comunidades. Assim, o Documento de Aparecida retoma essa expressão significativa e destaca a importância de as paróquias serem células vivas da Igreja, enfatizando-as como lugar privilegiado no qual a maioria dos fiéis tem uma experiência concreta de Cristo, vivendo a comunhão eclesial. Desse modo, comunidade é lugar de comunhão. Se não houver a experiência de comunhão, não é comunidade. Quando o Documento fala de comunhão, não está se referindo apenas à comunhão eucarística, no sentido estrito do termo, mas, sobretudo, à vida de comunidade que se desdobra da comunhão eucarística, tendo como modelo as primeiras comunidades cristãs (At 2, 42-47), que se tornaram comunidades porque comungavam com Cristo. Eram espaços onde as pessoas eram perseverantes em tudo, como, por exemplo, na escuta dos ensinamentos oriundos da Palavra de Deus; na comunhão fraterna; no partir o pão e nas orações, colocando tudo em comum. Lugar onde, com tais gestos, se aprende o temor de Deus, não no sentido de medo de Deus, mas de ser fiel à sua Palavra, colocando-a em prática, o que consiste no amor a Deus e aos irmãos, na solidariedade e na compaixão. Nesse sentido, destaque para a questão da união, algo tão importante para a vida de comunidade. Onde não há união, não se pode dizer que há comunidade. Esse pode ser um identificador para verificar se nas nossas paróquias existe verdadeira vida de comunidade. Assim, podemos perguntar: há união nos trabalhos da paróquia? As pessoas se ajudam? Há comprometimento com os empreendimentos missionários da paróquia, ou apenas alguns assumem, enquanto outros ficam apenas observando, ou criticando o trabalho dos irmãos e irmãs? 1.2 Paróquias: Casas e Escolas de formação de comunidades O Documento de Aparecida destaca ainda o elemento da formação. É preciso que nossas paróquias invistam na formação dos seus leigos, pois somente assim teremos verdadeiros missionários que sabem formar e viver em comunidade. Quando o documento afirma que nossas paróquias “são chamadas a serem casas e escolas de comunhão”, está afirmando que a paróquia tem o dever de ensinar as pessoas a viverem em comunidade. Esse é um dos grandes desafios de nossas paróquias: formar pessoas para viverem em comunidade e formar outras comunidades. Não é algo tão simples, tendo em vista o mundo em que vivemos, Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 37 37 17/10/2013 15:09:11 Paróquia, comunidade de comunidades. Desafios centrais que prima pelo individualismo, pela competição, por incitar as pessoas a levarem vantagem em tudo, num clima de competição que não respeita o próximo. Às vezes essas situações são reproduzidas dentro de nossas paróquias, nos espaços que chamamos de “comunidades”. Que comunidade é essa onde as pessoas querem prejudicar as outras, onde o eu é mais forte que o nós, onde as vaidades pessoais são mais importantes que o bem comum? Enquanto existirem na Igreja, ou seja, nas paróquias, essas relações que refletem as relações da sociedade, nós, isto é, nossas paróquias, estaremos longe de ser comunidade cristã. Podemos ser comunidade no sentido social do termo, mas não comunidade cristã, com valores teológicos, onde impera a teologia da graça e não simplesmente as relações de troca. À vista disso, o Documento reforça a questão da formação, tornando nossas paróquias lugares de formação permanente. Nisto consiste a expressão “casas e escolas de comunhão”. Casa é o lar, lugar de pertença, lugar onde nos sentimos bem, à vontade, lugar que é nosso, de encontro e de convivência entre irmãos. Quando a Igreja se torna essa “casa”, todos se sentirão em casa nela e não apenas alguns. Porém, quando as comunidades têm donos, com territórios demarcados, elas não estão sendo verdadeiramente comunidade. Comunidade não tem dono, é de todos e para todos. O mesmo sentimento que sentimos em nossa casa, devemos sentir na Igreja para que ela seja comunidade de fato. Além disso, temos a expressão “escola de comunhão”, que dispensa comentários. Escola é lugar onde se aprende. A paróquia precisa ser lugar onde se ensina e se aprende a viver em comunhão, isto é, em comunidade. Enquanto nossas paróquias não se preocuparem em ser escolas de comunhão, elas não serão comunidade. 1.3 Renovação das estruturas paroquiais Para que tudo isso aconteça, é preciso romper com certas estruturas, sobretudo com estruturas arcaicas, centralizadoras, que reproduzem modelos de Igreja que não respondem mais aos desafios e demandas da atualidade. Essa reestruturação é fundamental, se queremos uma paróquia verdadeiramente missionária, comunidade de comunidades. Porém, quando se fala em mexer em estruturas, muitos se arrepiam, sobretudo os padres. Não digo todos, mas apenas os que se acomodaram nos modelos tradicionais de paróquias e que não estão abertos a mudanças. Aqueles que não querem perder os benefícios que esse modelo tradicional lhe confere. Esses precisam passar por um processo de conversão, porque 38 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 38 17/10/2013 15:09:11 José Carlos Pereira se isso não ocorrer a sua paróquia estará longe de conseguir se renovar e se tornar missionária. O Documento de Aparecida fala de “uma valente ação renovadora das paróquias”. É preciso valentia e ousadia para empreender tal renovação, pois ela mexerá com estabilidades. Estabilidade financeira, patrimonial, estrutural e geográfica, teológica. É preciso mudar conceitos, paradigmas, valores. E nem todos estão preparados para tais mudanças. Nesse novo modelo de paróquia, a igreja matriz deixa de concentrar todas as ações em seu espaço e divide com as comunidades as suas atividades. O padre divide suas ações com os leigos. De início pode parecer algo desestabilizador da vida da paróquia e das ações do padre, mas não é. Pelo contrário, é divisão de ações para somar forças. Essa é a ideia principal que norteia o conceito e a vida de comunidade. Quando as ações são divididas, as forças se multiplicam e todos têm participação ativa, afetiva e efetiva na comunidade. Nasce assim o verdadeiro sentido de comunidade, pois comunidade é muito mais que um espaço geográfico, é um sentimento humano. Portanto, o objetivo dessa ação renovadora das paróquias é torná-la espaços de comunidades e esses espaços se tornam comunidades quando eles se tornam espaços de iniciação cristã, espaços de educação, espaços de celebração da fé, espaços de confraternização, espaços abertos às diversidades de carismas, serviços e ministérios, de partilha de dons. Enquanto nossas paróquias tiverem sempre as mesmas pessoas, fazendo sempre as mesmas coisas, concentrando tudo num pequeno grupo, sem dar espaço para outros, sem renovarem seus agentes de pastoral, ela ainda não atingiu o sentido de comunidade renovada. Cabe aqui a cada um olhar para o interior de sua paróquia e visualizar sua estrutura pastoral e administrativa e verificar se ali existe o sentido de comunidades, ou se são apenas “panelinhas”. Para isso, veja quantos anos um agente de pastoral permanece na coordenação de uma determinada pastoral. Verifique quais os argumentos são usados para se permanecer na coordenação por muitos anos, como, por exemplo, “não tem ninguém que quer assumir”, “não temos pessoas preparadas”, “ninguém quer compromisso” etc. Essas desculpas são desculpas de quem não quer que outros assumam o seu lugar. Não somos imprescindíveis e nem insubstituíveis. Sempre virão outros depois de nós que poderão fazer igual, ou ainda melhor do que nós. O mais importante é renovar. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 39 39 17/10/2013 15:09:12 Paróquia, comunidade de comunidades. Desafios centrais Quando uma paróquia investe em seus agentes de pastoral, ela sempre terá bons agentes e esses não precisarão se perpetuar na mesma função, como acontece, por exemplo, com muitos ministros extraordinários da sagrada comunhão, que assumem o ministério como se fosse o sacramento da ordem, para sempre. Uma paróquia renovada é uma paróquia que renova os seus agentes de pastoral, de modo que eles tenham tempo determinado em determinada função. Depois que cumpriu o seu tempo, ceda o lugar para outro e vá atuar em outras frentes pastorais da comunidade. Isso serve também para os padres. Seria bom que as Dioceses tivessem um tempo determinado para os párocos e que esse tempo não fosse mais que quatro ou seis anos. Um tempo muito longo, que ultrapasse seis anos, pode não contribuir para a renovação da paróquia. Desse modo, uma comunidade paroquial renovada é uma comunidade que faz uma espécie de rodízio dos seus agentes nos seus trabalhos pastorais. É uma comunidade integradora e não uma comunidade que dispersa e desagrega. Uma comunidade integradora é uma comunidade que acolhe a todos, sobretudo seus movimentos de apostolado, que, às vezes, caminham isolados da conjuntura pastoral da paróquia. Quando todos os organismos são integrados, a paróquia se revela na sua dimensão de comunidade. Porém, quando as pastorais, movimentos, grupos e demais organismos, caminham isoladamente, fechados em sim, sem se abrir aos demais e aos desafios da paróquia e da igreja, a paróquia dá demonstração de que não é integradora e nem comunidade de comunidades. É importante lembrar que todos os membros da comunidade, independentemente da pastoral ou movimento de que participam, são responsáveis pela evangelização das pessoas e do próprio ambiente onde atuam. Sim, nossos espaços e ambientes de atuação pastoral carecem de evangelização permanente. Quem acha que já sabe tudo, que está pronto e que não precisa mais ser evangelizado, revela seus limites e fraquezas, de modo que precisa, ainda mais que outros, de ser evangelizado, para não dizer, convertido. Enfim, reconhecer as fragilidades não é fraqueza, é humildade, e a Igreja precisa de pessoas que sirvam na humildade. À vista disso, a missão da paróquia é se abrir para a missão territorial. Parece redundante e paradoxal essa proposta, mas é exatamente isso que a Igreja está pedindo às nossas paróquias, ao pedir que elas se transformem em comunidade de comunidades. Assim, a tarefa missionária das paróquias é abrir-se às comunidades, assim como ocorreu em Pentecostes (At 2,1-13), conforme pede o Documento de Aparecida (nº 171). É diante de tudo isso que a Igreja apresenta o grande desafio 40 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 40 17/10/2013 15:09:12 José Carlos Pereira de nossas paróquias: reformulação de suas estruturas, com tudo o que isso implica. Porém, sem essa reformulação, não se atingirá o objetivo de se formar comunidades de comunidades. O caminho é a formação de redes de comunidades, através da setorização da paróquia em unidades menores. 1.4 Rede de comunidades: a setorização das paróquias A setorização, ou descentralização da paróquia, é um passo importante para a transformação dela em Comunidades de comunidades. O que são setores? Setores, como diz o Documento de Aparecida, são unidades menores, como, por exemplo, as áreas pastorais, os bairros, quadras ou quarteirões, as capelas, as ruas, os grupos de reflexão, enfim, os próprios organismos da paróquia (pastorais, movimentos, grupos e associações). Todas essas instâncias podem ser setores que ajudam a descentralizar da matriz suas atividades e criar nesses espaços verdadeiras comunidades. Mas, para que esses setores sejam comunidades, é preciso que eles tenham intensas atividades, como, por exemplo, celebrações, formação, conselhos, atividades pastorais, confraternizações, enfim, vida de comunidade. A esta altura da reflexão, muitos devem estar se perguntando: mas como o padre vai dar conta de tudo isso? Vamos precisar de muitos padres? Porém, se fizermos tais perguntas é porque não entendemos o sentido da descentralização pedida na formação dessas comunidades. O padre não precisa estar o tempo todo nessas comunidades. Elas existem exatamente para dar responsabilidades e participação dos fiéis leigos. Se o padre tiver que sempre celebrar missa em todas essas comunidades, elas continuam clericais e não se enquadram no modelo renovado. É apenas uma ampliação da estrutura paroquial já existente. Nesse modelo renovado destaca-se o protagonismo do leigo, que assume dirigir as celebrações da Palavra, ministrar as formações sacramentais e os próprios sacramentos, como, por exemplo, os batizados, os casamentos e tudo aquilo que a Igreja possibilita que os leigos façam. Comunidade onde tudo está centrado na figura do padre, não é uma comunidade renovada. Isso não quer dizer que, com esse modelo de paróquia renovada nas suas estruturas, o padre irá perder o seu papel, a sua importância. Pelo contrário, ele continua sendo muito importante, mas esse modelo quer dizer que os leigos também ganharão importância, sem diminuir o valor e a importância do presbítero. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 41 41 17/10/2013 15:09:12 Paróquia, comunidade de comunidades. Desafios centrais Um dos objetivos da formação e da transformação da paróquia em comunidades de comunidade é fazer com que a Igreja se achegue mais às pessoas, principalmente os mais afastados. Quando a paróquia divide responsabilidades, ela soma forças. Essa divisão em células, isto é, em setores, significa formação de comunidades. Significa aumento no alcance da paróquia, e assim, ela será mais evangelizadora, mais missionária, porque está mais próxima das pessoas, dando-lhes oportunidade de participar mais efetiva e afetivamente. Muitos não vão até a nossa matriz, por vê-la muito distante de sua realidade. Alguém que mora na periferia se sentiria deslocado dentro da igreja matriz, mas se sentirá em casa na comunidade do seu bairro, entre iguais. Essa pessoa que participa da sua comunidade local é tão católica quanto aquela que participa da igreja matriz, no centro da cidade, com a diferença de que ali, na sua comunidade, ela é conhecida, reconhecida, valorizada, podendo desempenhar funções que talvez em outros espaços, como o supracitado, ela não conseguiria. Vemos, assim, que a formação de pequenas comunidades possibilita a participação das pessoas em todos os sentidos. Isso é comunidade, e não aquele modelo antigo, em que as pessoas vão à igreja para “assistir” a missa, saindo tão anônimas quanto chegaram, sem nenhum envolvimento afetivo com as pessoas e com o espaço onde participa da celebração. Essa mudança de estrutura vale para todas as realidades de paróquia, tanto para as do mundo urbano, como para as paróquias rurais. Porém, cada realidade tem o seu desafio e cabe à comunidade paroquial descobrir quais são esses desafios e empreender a missão de superá-los. Uma sugestão para isso é fazer um recenseamento paroquial, a fim de se obter um mapa da realidade. Com esse procedimento ficará mais fácil à descentralização, a setorização em unidades menores. Para isso, é preciso imaginação e criatividade, diz o Documento de Aparecida (n˚ 173). Somente assim se poderá chegar às multidões dos afastados. 1.5 Paróquias com novas estruturas pastorais Dentre as sugestões que o Documento de Aparecida apresenta, está a criação de novas estruturas pastorais. Estruturas pastorais que respondam aos desafios encontrados pela paróquia nas suas respectivas áreas de missão. Dentre as pastorais que considero uma ferramenta imprescindível no processo de evangelização e na formação e comunidades, estão 42 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 42 17/10/2013 15:09:12 José Carlos Pereira a Pastoral da Acolhida e a Pastoral da Visitação. Essas duas pastorais são fundamentais nesse processo de renovação paroquial. a. Pastoral da Acolhida ou dimensão do acolhimento A pastoral da acolhida se enquadra na dimensão do acolhimento. Uma paróquia que não é acolhedora, não evangeliza. Quando falo da Pastoral da Acolhida, não falo de mais uma pastoral na paróquia, mas de uma pastoral que esteja permeada na ação de todos os agentes de pastoral, sobretudo nas ações do padre. Uma paróquia que não prima pelo acolhimento é uma paróquia fadada à estagnação e ao fracasso missionário. A acolhida está na base de todas as ações de evangelização. É o primeiro passo para qualquer trabalho pastoral. A missão da pastoral da acolhida é fazer com que todos os agentes de pastoral, e a própria paróquia como um todo, adote uma postura acolhedora. Do acolhimento nascem outras ações que colocarão a paróquia em estado permanente de missão. Ela ajuda, sobretudo, a reforçar o sentido e a vivência de comunidade. Paróquia que não acolhe não é comunidade. b. Pastoral da visitação ou dimensão missionária A pastoral da visitação é outra pastoral de suma importância. Ela é uma ferramenta eficaz no processo de evangelização permanente e na formação de comunidades. Com a pastoral da visitação, a igreja sai dos seus templos e vai até as pessoas, sobretudo dos afastados, e os inclui na comunidade. Com essa pastoral se poderá obter um retrato fiel da comunidade paroquial missionária. Ela poderá ajudar a paróquia no processo de setorização e na formação de comunidades nesses setores. Por isso ela é muito importante. Paróquias que ainda não têm essas duas pastorais de ponta no processo de evangelização, terão mais dificuldade de renovação de suas estruturas. A pastoral da visitação representa a dimensão missionária da paróquia, na sua ação mais concreta e evidente. É a pastoral que vai ao encontro das multidões de afastados, como pede o Documento de Aparecida. Cada agente dessa pastoral é um discípulo missionário que vai ao encontro das “ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 10, 6). Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 43 43 17/10/2013 15:09:12 Paróquia, comunidade de comunidades. Desafios centrais 2 Os desdobramentos da V Conferência para as paróquias Tratamos até agora de alguns dos apontamentos feitos pela V Conferência do Episcopado latino americano e caribenho, contidos no Documento de Aparecida, tendo em vista a renovação das estruturas paroquiais para a formação de paróquias que sejam comunidade de comunidades. Vejamos agora os seus desdobramentos em outros documentos, que acentuaram essas e outras indicações e desafios. Começamos pela Missão Continental. 2.1 A Missão Continental Podemos dizer que a missão continental foi a tentativa mais ousada que a Igreja deste Continente teve para colocar em prática os elementos centrais da Conferência de Aparecida. Podemos afirmar também que, dentro do método “ver, julgar e agir”, usado nessa Conferência, a Missão Continental corresponde à parte do agir. A Missão Continental foi distribuída em cinco etapas, e cada uma delas buscou abarcar os pontos principais de um processo de evangelização em vista da missão permanente, que no final culmina na formação de comunidades. A primeira etapa começou logo após as conclusões da Conferência de Aparecida (2007) e seu objetivo primordial foi e ainda é, fortalecer a dimensão missionária da Igreja, envolvendo as paróquias nesse processo missionário. Ela provocou-nos a repensar muitas das nossas estruturas pastorais, tendo como espírito constitutivo a “espiritualidade de comunhão”, ou seja, aquela espiritualidade que brota da comunidade e na comunidade, e não uma espiritualidade apenas intimista e individualista, presente em certos movimentos religiosos que não querem compromisso com a paróquia e nem com a vida de comunidade. Assim, um dos propósitos dessa primeira etapa foi a conversão pessoal para vida de comunidade. Para isso, a Missão lançou o desafio de se criar, nas nossas paróquias, estruturas abertas e flexíveis, capazes de animar a missão permanente da Igreja. Cada etapa da missão continental teve indicativos de ação, tempo delimitado de aplicação destas ações, propostas e meios para se atingir os objetivos propostos. A primeira etapa, delimitada entre os anos de 2008 e 2009, teve como meta a preparação e sensibilização dos agentes de pastoral. Foi um passo fundamental, porque correspondeu ao tempo previsto para a 44 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 44 17/10/2013 15:09:12 José Carlos Pereira conscientização para a necessidade da missão. Lamentavelmente, não foram todas as Dioceses e paróquias que deram esses passos, dificultando a obtenção dos resultados previstos nessa missão. A segunda etapa foi a partir de 2009, e teve como objetivo a formação e o reencantamento dos agentes de pastoral. A partir desse ano, era para se ter buscado meios e estratégia de reencantar os nossos agentes de pastoral, regatando o seu ardor missionário, o seu gosto pela missão, enfim, conseguir revesti-los da dimensão missionária. Sabemos que pessoas desencantadas com a Igreja dificilmente serão missionárias. E temos muitos agentes de pastoral, inclusive padres, desencantados com a missão. Esses fazem as coisas mecanicamente, por obrigação. Esses deveriam ser os primeiros a serem reencantados. A terceira etapa, a partir de 2010, foi a de trabalhar com grupos prioritários, como, por exemplo, os catequistas, os professores de religião, enfim, pessoas e grupos que trabalham em campos específicos, que lidam com muita gente. A quarta etapa, a partir de 2011, chamada de missões setoriais e ambientais, tratou de aproximar de nós a missão, trazendo-a para determinados setores da sociedade e da Igreja. Por fim, a quinta e última etapa traz a missão até as nossas paróquias. É a missão territorial (a partir de 2012 em diante). Ou seja, é a hora da missão em nossas paróquias. Assim, a missão territorial é a missão paroquial. É a missão Continental na paróquia, onde todos os passos acima devem ser vividos e celebrados. E esse está sendo o nosso esforço enquanto Igreja que somos. A Igreja no Brasil vem se empenhando nisso. Está aí, diante de nós, o grande desafio de fazer, de nossas paróquias, comunidade de comunidades: esse é um passo importante na missão territorial. Ampliando o projeto da Missão Continental, a CNBB lançou o projeto “O Brasil na Missão Continental” (Doc. 88) onde tratou de definir os objetivos, geral e específico, desse empreendimento missionário, destacando a necessidade de “abrir-se ao impulso do Espírito Santo e incentivar, nas comunidades e em cada batizado, o processo de conversão pessoal e pastoral ao estado permanente de missão para a vida plena” (objetivo geral do Brasil na Missão Continental). Nos seus objetivos específicos encontramos a meta de “repensar as estruturas de nossa ação evangelizadora para um compromisso de ir e atingir a quem normalmente não atingimos”. Aqui vemos contemplada a pastoral da visitação e da acolhida, como foi dito anteriormente, e a formação de pequenas comunidades que possibilitam não apenas a igreja chegar até os afastados, mas os afastados se achegarem à igreja. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 45 45 17/10/2013 15:09:12 Paróquia, comunidade de comunidades. Desafios centrais 2.2 Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil: 2011 – 2015. Um passo importante nesse processo de formação para a missão As Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil: 2011-2015 foram um passo importante nesse processo de orientação de nossas paróquias para a formação de comunidades de comunidade em sua estrutura. Aqui o termo paróquia não aparece muitas vezes, mas, nas poucas vezes que aparece, tem um enfoque especial. Aliás, todo o documento dá enfoque especial às paróquias, porque traz como tema medular a proposta de uma Igreja, comunidade de comunidades. Se nós queremos que nossas paróquias se tornem comunidade de comunidades, não podemos prescindir desse documento. Aqui encontramos as principais constatações e pistas de ação, ou operacionalização, de que precisamos para executar esse projeto. Das cinco citações sobre a paróquia encontradas nesse Documento, a primeira (nº 60), traz o tema que estamos a refletir, e que foi tema da 51ª Assembleia dos Bispos: a necessidade de as paróquias se tornarem Comunidade de comunidades. Na segunda (nº 90), encontramos a paróquia como lugar privilegiado de iniciação cristã; na terceira (nº 99), volta o tema da Comunidade de comunidades, mostrando a urgência de se trabalhar esse aspecto em nossas paróquias, de modo que elas se tornem vivas e dinâmicas; na quarta citação (nº 101), encontramos a urgência da setorização das paróquias em unidades menores, como uma das formas de renovação paroquial. Por fim, na quinta referência à paróquia (nº 138), vemos a necessidade de pensar os organismos de articulação dessas pistas de ação para tornar as paróquias Comunidades de comunidades. Dentre esses organismos, destaque para as assembleias paroquiais, os conselhos paroquiais, enfim, instâncias onde se podem definir os passos a serem dados, envolvendo a comunidade paroquial nesse processo. Aqui, nesse número, as Diretrizes retomam o desafio da renovação das paróquias, transformando-as em unidades menores, através da setorização. Percebemos assim que são temas contemplados no Documento de Aparecida, e que ganham destaque nessas Diretrizes da Ação Evangelizadora. Enfim, as Diretrizes ora tratadas dizem categoricamente que, se queremos uma paróquia verdadeiramente missionária, é preciso torná-la uma Comunidade de comunidades. E que, para assim torná-la, é preciso que aprendamos a valorizar as diversas formas de vida comunitária, não 46 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 46 17/10/2013 15:09:12 José Carlos Pereira apenas as mais conhecidas, como as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), ou as tradicionais capelas de nossas paróquias. Hoje, existem muitas maneiras de se viver em comunidade, as chamadas, novas comunidades cristãs e tantas outras. Outro passo importante já visto é a setorização da paróquia em unidades menores, formando uma rede de comunidades e, essas pequenas comunidades, sendo células vivas, formando no seu interior conselhos e coordenações pastorais que fomentem essa organização de comunidade. 2.3 51ª Assembleia Geral dos Bispos e o enfoque na dimensão da Comunidade Por fim, tivemos a 51ª Assembleia dos Bispos do Brasil, que se reuniu em Aparecida, de 10 a 19 de abril de 2013, para tratar do tema da paróquia, enfatizando a dimensão de Comunidade de comunidades. Com o tema, “Comunidade de comunidades: uma nova paróquia”, o Documento de Estudo lançou luzes sobre aquilo que para nós, Igreja no Brasil, é prioridade e que estamos aqui refletindo. De início o Documento faz uma constatação que é real. Nossas paróquias têm oferecido resistência, ao longo da história, para a renovação de suas estruturas. Essa resistência é sentida quando adentramos as realidades das dioceses e paróquias pelo Brasil afora. São poucos os que estão empenhados nessa mudança estrutural. As resistências derivam de uma série de fatores, dentre eles, a acomodação, a falta de comprometimento por parte de lideranças pastorais, sobretudo de padres e de bispos que não têm essa preocupação como prioridade; o desconhecimento dos apelos do Documento de Aparecida e dos demais Documentos da Igreja no Brasil; uma paróquia voltada mais para o culto, isto é, a liturgia, mais do que para a vida de comunidade, a pregação ou o serviço. São afirmações contundentes que encontramos no n˚ 54 desse Documento e que nos levam a pensar a nossa vida de Igreja hoje, de comunidades paroquiais que já não respondem aos desafios do mundo atual. Diante desses apelos, qual deve ser o nosso procedimento enquanto agente de pastoral, comprometido com a Igreja? O primeiro passo é conhecer mais profundamente o que a Igreja vem pedindo, através dos seus Documentos, estudando e fomentando o estudo desses materiais entre o clero e os leigos de nossas paróquias. Muitas dioceses vêm propondo essa reflexão com seu clero e leigos, e esse é um passo importante. Desses estudos e reflexões nascem iniciativas importantes, que ajudam as Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 47 47 17/10/2013 15:09:12 Paróquia, comunidade de comunidades. Desafios centrais paróquias a darem passos nessa direção. Assim sendo, ter conhecimento dos desafios e propostas desse projeto de evangelização, e colocar em prática as pistas de ação indicadas nesses Documentos, bem como as pistas de ação que cada diocese ou paróquia encontrar na sua realidade, é também outro passo importante a ser dado. Considerações finais Estamos diante do grande apelo da Igreja no Brasil, que é a conversão de nossas paróquias em Comunidade de comunidades. Para isso, temos grandes desafios, dentre os quais, alguns estão apontados no Documento de Aparecida e em outros Documentos, e tivemos oportunidade de refletir sobre eles. Outros despontam em nossas realidades paroquiais. Todos são passíveis de ser enfrentados, carecendo apenas do empenho e comprometimento de todos, e de todas as instâncias da Igreja, começando pelas Dioceses, paróquias, ou seja, bispos, padres e leigos. Dos desafios apresentados, destaco resumidamente, a título de conclusão, os mais urgentes. Renovação ou reformulação das estruturas de nossas paróquias. Essa renovação consiste, em primeiro lugar, na sua descentralização que, por sua vez, significa a formação de unidades menores, como células vivas, e dessas células formar-se-ão comunidades. Assim, a paróquia estaria no processo de renovação pedido pela Igreja. Para isso é preciso investir na formação, em todas as suas dimensões, sobretudo espiritual e missionária, de modo que a paróquia adote uma postura missionária. Mas sabemos que, para atingir tal objetivo, será necessário, em primeiro lugar, conversão pessoal e comunitária. Vemos, assim, quão desafiador é o processo de formação da paróquia em Comunidade de comunidades, mas não há outro caminho. Ou vamos por esse, sugerido pela Igreja, ou ficamos parados, estagnados, vendo a nossa Igreja fenecer por falta de ousadia missionária. Ainda está valendo a proposta para avançarmos para águas mais profundas. É hora de soltar as âncoras de nossos barcos, ajeitar as velas e se lançar mar adentro. Os rumos já nos foram apontados. O lado certo para jogar as redes, também. Faltam agora pessoas, com renovado ardor missionário, para tomarem o leme e conduzirem o barco nessa direção, com as redes em punho. Muitos já estão fazendo essa travessia e se encontram em meio às águas turbulentas da missão. Outros estão ainda ancorados na praia, com medo ou acomodados. Aos que já estão na rota da missão, cabe chamar os que ainda estão nas mar- 48 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 48 17/10/2013 15:09:12 José Carlos Pereira gens. Eis um dos tantos desafios que ainda temos, para atingir a meta de transformar a paróquia em Comunidade de comunidades. O desafio está lançado também para os estudantes de teologia, seminaristas, os futuros padres que irão conduzir as paróquias nesta direção. Bibliografia CELAM. Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. Brasília/São Paulo: CNBB/Paulus/Paulinas, 2007. _____. A Missão continental. Para uma Igreja missionária. Brasília: CNBB, 2008. _____. Itinerário da Missão Continental. Brasília: CNBB, 2009. CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil: 2011-2015. São Paulo: Paulinas, 2011. _____. Projeto Nacional de Evangelização: O Brasil na Missão Continental. Documentos da CNBB, n. 88. Brasília: CNBB, 2008. _____. Comunidade de Comunidades: Uma nova paróquia. Col. Estudos da CNBB, n˚ 104. Brasília: CNBB, 2013. PEREIRA, José Carlos. Paróquia Missionária à luz do Documento de Aparecida: Procedimentos fundamentais. Brasília: CNBB, 2012. _____. Projeto Paroquial: Orientações para a implantação de uma evangelização permanente. Petrópolis: Vozes, 2009. _____. Como fazer um recenseamento paroquial. Metodologia de pesquisa. Uberlândia/MG: A Partilha, 2013. _____. Serviço de animação vocacional paroquial. Subsídio de implantação, formação e atuação dos agentes. São Paulo: Paulus, 2013. Endereço do Autor: Rua Barão de Mesquita, 763 Bairro Andaraí 20540-002 Rio de Janeiro, RJ Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 49 49 17/10/2013 15:09:12 Papa Francisco AOS CATEQUISTAS, NO ANO DA FÉ No domingo, 29-09, partindo da 1ª leitura da Missa, que era um texto de Amós, o Papa Francisco assim se dirigiu aos catequistas: “Ai dos despreocupados em Sião, daqueles que comem, bebem, cantam, se divertem e não se preocupam com os problemas das outras pessoas” (cf Am 6,1.4) [...] Tentemos perguntar-nos: Por que é que isso acontece? Como é possível que as pessoas, talvez também nós, caiamos no perigo de encerrar-nos, de colocar a nossa segurança nas coisas, que no final das contas nos roubam o rosto, o nosso rosto humano? Isso acontece quando perdemos a lembrança de Deus. Se não há memória de Deus, tudo fica nivelado, tudo vai para o ego, para o meu bem-estar. A vida, o mundo, os outros, perdem a consistência, não contam para nada, tudo se reduz a uma única dimensão: o ter. [...] Agora, olhando para vocês, me pergunto: quem é o catequista? É aquele que protege e alimenta a memória de Deus: guarda-a em si mesmo e sabe despertá-la nos outros. É bonito isso: fazer memória de Deus, como Nossa Senhora, que, diante da ação maravilhosa de Deus na sua vida, não pensa na honra, no prestígio, nas riquezas, não se fecha em si mesma. Pelo contrário, depois de ter acolhido o anúncio do Anjo e de ter concebido o Filho de Deus, o que faz? Vai,visita Isabel, também grávida, para ajudála: e, no encontro com ela, o seu primeiro ato é fazer memória do atuar de Deus, da fidelidade de Deus na sua vida, na história do seu povo, na nossa história: “A minha alma engrandece o Senhor... pois sua misericórdia se estende de geração em geração” (Lc 1,46.50) [...] O catequista é precisamente um cristão que carrega consigo a memória de Deus, se deixa guiar pela memória de Deus em toda a sua vida, e sabe como despertá-la no coração dos outros. Isso é exigente! Compromete toda a vida! O que é o Catecismo, senão a própria memória de Deus, memória da sua ação na história, do seu ter-se feito próximo em Cristo, presente na sua Palavra, nos Sacramentos, na sua Igreja, no seu amor? Caros catequistas, pergunto-lhes: nós somos memória de Deus? Somos realmente como sentinelas que despertam nos outros a memória de Deus, que nos aquece o coração? Encontros Teologicos 65.indb 50 17/10/2013 15:09:12 Resumo: O texto visa propor uma “concepção forte” de comunidade para desafiar a ideologia individualista, presente no conceito de redes sociais, predominante na atualidade. Uma boa comunidade é aquela em que há argumentação e até conflito sobre o significado dos valores e objetivos compartilhados; é o lugar em que nos comunicamos com os outros, tomamos decisões, chegamos a acordos sobre padrões e normas, perseguimos em conjunto o esforço de criar uma forma de vida de valor. Daí, o texto procura aplicar esta concepção na atual configuração da “paróquia” no Brasil. Abstract: This text aims to propose a “strong design” of community to challenge the individualistic ideology, in this social networking concept, prevalent nowadays. A good community is one in which no argument and even conflict over the meaning of shared values and goals, is the place in which we communicate with others, make decisions, come to agreements on standards and norms, we pursue together the effort to create a way of life value. Hence, this text seeks to apply this concept in the current configuration of the “parish” in Brazil. A paróquia e um conceito “forte” de comunidade: Uma compreensão pela sociologia e pela pastoral Prof. Sérgio Ricardo Coutinho* * Mestre (UnB) e doutorando (UFG) em História Social, professor de Teoria Política e de Formação Política e Econômica do Brasil no curso de Serviço Social do Centro Universitário IESB de Brasília, professor de História da Igreja no Instituto São Boaventura, presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina (CEHILA-Brasil) e assessor da Comissão Episcopal Pastoral para o Laicato, Setor CEBs, da CNBB. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013, p. 51-63. Encontros Teologicos 65.indb 51 17/10/2013 15:09:12 A paróquia e um conceito “forte” de comunidade 1 O “sentimento de comunidade”: o conceito pelo olhar da Sociologia Clássica e Contemporânea O conceito de comunidade nunca foi uma unanimidade. Os autores clássicos, como Ferdinand Tönnies, procuravam conceituar a comunidade em oposição à sociedade. Tönnies procurou criar um conceito “puro” de comunidade, idealizada, oposta ao conceito de sociedade, criado pela vida moderna. Para Tönnies, Gemeinschaft (comunidade) representava o passado, a aldeia, a família, o calor. Tinha motivação afetiva, era orgânica, lidava com relações locais e com interação. As normas e o controle davam-se através da união, do hábito, do costume e da religião. Seu círculo abrangia família, aldeia e pequena cidade. Já Gesellschaft (sociedade) era a frieza, o egoísmo, fruto da calculista modernidade. Sua motivação era objetiva, mecânica, observava relações supralocais e complexas. As normas e o controle davam-se através de convenção, lei e opinião pública. Seu círculo abrangia metrópole, nação, Estado e Mundo. Para Tönnies, a comunidade seria o estado ideal dos grupos humanos. A sociedade, por outro lado, seria a sua corrupção.1 No entendimento de Max Weber, o conceito de comunidade baseia-se na orientação da ação social. Para ele, a comunidade funda-se em qualquer tipo de ligação emocional, afetiva ou tradicional. Weber explica comunidade pelo tipo de relação social provocada por uma ação social: “Chamamos de comunidade uma relação social na medida em que a orientação da ação social, na média ou no tipo ideal – baseia-se em um sentido de solidariedade: o resultado de ligações emocionais ou tradicionais dos participantes”.2 Para Weber, a comunidade só existiria propriamente quando, sobre a base de um sentimento de situação comum e de suas consequências, está também situada a ação reciprocamente referida e essa referência traduz o sentimento de formar um todo. Dessa forma, a visão de uma comunidade como “redentora” e tipo “ideal” de convivência humana permeia muitas das visões e ideias da sociologia clássica, bem como a dicotomia entre comunidade e sociedade. Por isso, a palavra comunidade era (e ainda é em muitos círculos acadêmicos) frequentemente utilizada no sentido de “grupos de pequena 52 1 MERLO, Valério. Rumo à Origem da Sociologia Rural: Vontade Humana e Estrutura Social no Pensamento de Ferdinand Tönnies. In MIRANDA, Orlando. Para Ler Ferdinand Tönnies. SP: EDUSP, 1995. 2 WEBER, Max. Conceitos Básicos de Sociologia. SP: Editora Moraes, 1987, p. 77. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 52 17/10/2013 15:09:12 Sérgio Ricardo Coutinho escala”, de relações diretas, particularmente a pequena cidade, a vila, o vilarejo, o povoado; é o que os alemães chamam de Gemeinschaft. Há uma longa tradição de glorificação desse tipo de comunidade, mas de uma maneira frequentemente sentimental e nostálgica. A ideia moderna de comunidade começou a se distinguir de seu protótipo antigo, apoiando-se em diferentes princípios de coesão entre os seus elementos constituintes, como o contraste entre parentesco e território, sentimentos e interesses, etc. Este conceito “moderno” de comunidade foi identificado com diversos aspectos complexos como a coesão social, a base territorial, o conflito e a colaboração para um fim comum, e não mais a ideia de uma relação familiar, como na Gemeinschaft tönnesiana. Palacios3 enumera os elementos que caracterizariam esse tipo complexo de comunidade: o sentimento de pertença, a territorialidade, a permanência, caráter corporativo, emergência de um projeto comum e a existência de formas próprias de comunicação. O sentimento de pertença, ou “pertencimento”, seria a noção de que o indivíduo é parte do todo, coopera para uma finalidade comum com os demais membros (caráter corporativo, sentimento de comunidade e projeto comum); a territorialidade, o locus da comunidade; a permanência, condição essencial para o estabelecimento das relações sociais. Outros autores, como Beamish4, explicam que o significado de comunidade giraria em torno de dois sentidos mais comuns. O primeiro refere-se ao lugar físico, geográfico, como a vizinhança, a cidade, o bairro. Assim, as pessoas que vivem em um determinado lugar geralmente estabelecem relações entre si, devido à proximidade física, e vivem sob convenções comuns. O segundo significado refere-se ao grupo social, de qualquer tamanho, que divide interesses comuns, sejam religiosos, sociais, profissionais, etc. Ou seja, Beamish separa o conceito sob dois aspectos: o do território como elemento principal na constituição do grupo e/ou o interesse comum (e neste caso, o território comum não é mais condição para a existência das relações entre as pessoas) como cerne da constituição do grupo. 3 PALACIOS, Marcos. Cotidiano e Sociabilidade no Cyberespaço: Apontamentos para Discussão. Disponível em: <http://facom/ufba/br/pesq/cyber/palacios/cotidiano. html>. 4 BEAMISH, Anne. Communities on-line: A Study of Community–Based Computer Networks. Tese de Mestrado em Planejamento de Cidades. Instituto de Tecnologia de Massachusetts – Estados Unidos. 1995. Disponível em: <http://albertimit.edu/ arch/4.207/anneb/thesis/toc.html>. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 53 53 17/10/2013 15:09:13 A paróquia e um conceito “forte” de comunidade Pode-se observar assim que o termo comunidade evoluiu de um sentido quase “ideal” de família, comunidade rural, passando a integrar um maior conjunto de grupos humanos com o passar do tempo. Com o advento da Modernidade e da urbanização, principalmente, as comunidades rurais passaram a desaparecer, cedendo espaço para as grandes cidades. Com isso, a ideia de comunidade como a sociologia clássica a concebia, como um tipo rural, ligado por laços de parentesco em oposição à ideia de sociedade, parece desaparecer não da teoria, mas da prática. Ray Oldenburg, citado por Hamman5 e Rheingold6, afirma que as comunidades estariam desaparecendo da vida moderna devido à falta dos lugares que ele chama de “great good places” (“lugares muito bons”). Segundo ele, haveria três tipos importantes de “lugares” em nossa vida cotidiana: o lar, o trabalho e os “terceiros lugares”, referentes àqueles onde os laços sociais fomentadores das comunidades seriam formados, como a igreja, o bar, a praça etc. Esses lugares seriam mais propícios para a relação social que ele julga necessária para o “sentimento de comunidade”, porque seriam aqueles onde existe o “lazer”, onde as pessoas encontram-se de modo desinteressado para se divertirem (lugares de vida pública “informal”, nas palavras do autor). Como esses lugares estariam desaparecendo da vida moderna, devido às atribulações do dia-a-dia, as pessoas estariam sentindo que o “sentimento de comunidade” estaria em falta. O trabalho de Oldenburg revelou que na maior parte das cidades da América do Norte e do Ocidente realmente havia um declínio desses “terceiros lugares”. Daí a constatação de Bauman: “a decadência da comunidade nesse sentido se perpetua; uma vez instalada, há cada vez menos estímulos para deter a desintegração dos laços humanos e para procurar meios de unir de novo o que foi rompido”.7 Por outro lado, este “sentimento” é paradoxal. Como afirma o mesmo Bauman, “não ter comunidade significa não ter proteção; alcançar a comunidade, se isto ocorrer, poderá em breve significar perder a liberdade”.8 Rheingold aponta esta ausência do “sentimento de comunidade” como uma das causas do surgimento das chamadas comunidades virtuais ou redes sociais. 54 5 HAMMAN, Robin. Introduction to Virtual Communities Research and Cybersociology Magazine Issue Two in http://members.aol.com/Cybersoc/is2intro.html. 6 RHEINGOLD, Howard. La Comunidad Virtual: Una Sociedad sin Fronteras. Gedisa Editorial. Colección Limites de La Ciencia. Barcelona, 1994, p. 61. 7 BAUMAN, Zigmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. RJ: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 48. 8 Idem, p. 10. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 54 17/10/2013 15:09:13 Sérgio Ricardo Coutinho 2 Do conceito de comunidade para o de rede social: uma nova sociabilidade? A generalização da atual interconexão entre as pessoas tem chamado a atenção de muitos teóricos, sobre seus efeitos no quadro das relações individuais e igualmente na forma como os grupos se comportam quando se constituem como redes de alta densidade. Todos eles apontam para uma mesma situação: estamos em rede, interconectados com um número cada vez maior de pontos e com uma frequência que só faz crescer. Em função disso, o que os recentes analistas de redes apontam é para a necessidade de uma mudança no modo de compreender o conceito de comunidade: novas formas de comunidade surgiram, o que tornou mais complexa nossa relação com as antigas formas. Para isso, o foco se dirige diretamente para os “laços sociais e para os sistemas informais de troca de recursos”, ao invés de focar nas pessoas vivendo em vizinhanças e nas pequenas cidades. O que se verá é uma imagem das relações interpessoais bem diferentes daquelas com as quais a sociologia clássica se habituou a pensar. Por isso, as análises recentes remetem para uma transmutação do conceito de comunidade para o de rede social. Se solidariedade, vizinhança e parentesco eram aspectos predominantes quando se procurava definir uma comunidade, hoje eles seriam apenas alguns dentre os muitos padrões possíveis das redes sociais. Atualmente, o que os analistas estruturais procuram avaliar são as formas nas quais padrões estruturais alternativos afetam o fluxo de recursos entre os membros de uma rede social. Estaríamos diante de novas formas de associação, imersos numa complexidade chamada rede social, com muitas dimensões, e que mobiliza o fluxo de recursos entre inúmeros indivíduos distribuídos segundo padrões variáveis. Deste modo, para esses analistas de redes e sociólogos urbanos, o conceito de redes sociais responderia a uma compreensão da interação humana de modo mais amplo que o de comunidade. As análises sociológicas de Granovetter9 e Wellman10 caminhavam nessa direção já no final dos anos 1970, e as proposições filosóficas de Deleuze e Guattari também seguiram esse caminho nessa mesma época. Conceitos como 9 10 GRANOVETTER, M. Le marché autrement. Paris: Desclée de Brouwer, 2000. WELLMAN, B. & BERKOWITZ, S. D. Social structures: a network approach. New York: Cambridge University Press, 1988. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 55 55 17/10/2013 15:09:13 A paróquia e um conceito “forte” de comunidade rizoma11 e agenciamento coletivo procuravam traduzir o sentimento de que a sociedade do final do século XX já não se organizava mais segundo parâmetros convencionais de localidade, parentesco, vizinhança etc.12 Essas reflexões surgiram, de fato, ao mesmo tempo em que se desencadeava uma profunda revolução nos meios de comunicação. Isto acabou por provocar uma mudança determinante na forma de interação entre os indivíduos, no modo como cada um poderia interagir e estar em contato com outros ao seu redor. É o que vivenciamos hoje, com o surgimento do ciberespaço, a multiplicação das ferramentas de colaboração on-line, as tecnologias de comunicação móvel se integrando às mídias tradicionais etc. E o resultado mais conhecido de todo esse processo são as comunidades virtuais. Desde seu início, elas sempre foram criticadas pela ausência de contato físico entre seus participantes. Mas para Pierre Lévy13, as comunidades virtuais são uma nova forma de se fazer sociedade. Essa nova forma é rizomática (cf. nota 12), transitória, desprendida de tempo e espaço, baseada muito mais na cooperação e trocas objetivas do que na permanência de laços. E isso tudo só foi possível com o apoio das novas tecnologias de comunicação. Assim, para estes sociólogos, não se trataria mais de definir relações de comunidade exclusivamente em termos de laços próximos e persistentes, mas se deveria mudar o foco em direção às redes pessoais. É cada indivíduo que está apto a construir sua própria rede de relações, sem que essa rede possa ser definida precisamente como comunidade. A pergunta que fica é: esta nova forma de sociabilidade preencheria a perda do “sentimento de comunidade”? A “permanência de laços”, no tempo e no espaço, não faz mais sentido hoje? 3 Um conceito “forte” de comunidade: a dimensão discursiva-normativa Pode-se buscar uma explicação “política” para esta perda do “sentimento de comunidade” e a sua substituição por novas sociabili11 56 Termo oriundo da Botânica e é aplicado para a extensão do caule que une sucessivos brotos. É a parte rasteira que cresce horizontalmente no subterrâneo. A grama é um exemplo bastante conhecido de planta rizomática, assim como o bambu e a cana de açúcar – todos da família das gramíneas. 12 DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1982. 13 LÉVY, Pierre. Cyberdemocratie. Paris: Odile Jacob, 2002. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 56 17/10/2013 15:09:13 Sérgio Ricardo Coutinho dades em torno das redes sociais em nossa sociedade contemporânea. O fortalecimento do Estado, após a “Era das Revoluções” (E. Hobsbawm), trouxe como consequência a localização abstrata do homem, constituído como cidadão na medida em que ultrapassasse laços particularizados, rejeitando eventuais identidades comunitárias, para integrar-se definitivamente ao Estado-nação, pois esta última pressupõe, de uma maneira ampla, “a adesão prioritária do cidadão à nação concebida como uma entidade superior a todas as outras comunidades intermediárias”.14 No entanto, a concepção de Estado que tem predominado em nossa sociedade é o moldado pelo modelo normativo liberal de democracia. Nesse modelo, a noção de direitos individuais é anterior a qualquer atividade política. A autonomia privada (liberdade) é o grande bem a ser preservado, na medida em que os indivíduos são capazes de formular suas próprias concepções de vida digna, independentemente do Estado. Quaisquer vínculos sociais são de importância secundária e podem ser sempre restringidos em nome da garantia da autonomia privada. Assim, o Estado é visto como um aparelho burocrático que garante a realização de interesses individuais predefinidos. Podemos dizer que este modelo, excessivamente legalista e formalista, negligencia a importância da solidariedade social. Sociedades e instituições nunca poderão ser baseadas unicamente no contrato que maximiza as oportunidades de indivíduos. Devem, ao contrário, ser também, sociedades e instituições preocupadas com a busca do bem comum. Por isso, é necessário propor uma “concepção forte” de comunidade para desafiar a ideologia individualista, também presente no conceito de redes sociais, predominante na atualidade. Neste sentido, mostra-se bastante útil o pensamento de Martin Heidegger sobre o modo de ser da existência humana. Para o filósofo, ser-com-o-outro faz parte da existência humana. A vida em comunidade não é uma opção solipsista, pois o cidadão é com o outro cidadão a partir das referências existenciais cotidianas. A comunidade é crucial para a determinação do “mundo”; isto é, o “mundo” é sempre compartilhado, e a comunidade o espaço no qual os elementos compartilhados são construídos. Considerando as características dessa existência humana, compreender a comunidade exige voltar-se para o conjunto de situações 14 NAY, Oliver. História das Ideias Políticas. RJ: Vozes, 2007, p.505. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 57 57 17/10/2013 15:09:13 A paróquia e um conceito “forte” de comunidade concretas em que é construída, sem se esquecer da importância da linguagem, pois toda comunidade é uma instância discursiva. Quando no mundo de hoje qualquer grupo social (da família à espécie humana), enfrenta questões fundamentais em relação à própria viabilidade de nosso modo de vida atual, não podemos deixar de nos perguntar o que queremos ser e aonde queremos ir. O que faz de um grupo uma comunidade e não uma simples associação contratual, para a maximização de interesses dos indivíduos envolvidos (como no modelo normativo liberal), é uma preocupação compartilhada com a questão de saber o que fará deste grupo um bom grupo, questão essa que geralmente não é opcional, pelo contrário: da resposta dada a ela depende o próprio futuro do grupo. Qualquer instituição, como uma universidade, cidade ou sociedade, desde que procure ser uma comunidade, precisa se perguntar o que é uma boa universidade, o que é uma boa cidade ou o que é uma boa sociedade, etc. Desde que obtenha consenso a respeito do bem que deve realizar (o que será sempre contestável e aberto ao debate), torna-se uma comunidade com alguns valores comuns, mas também com objetivos comuns. Uma boa comunidade é aquela em que há argumentação e até conflito sobre o significado dos valores e objetivos compartilhados, e certamente como serão realizados no dia-a-dia. Comunidade é o lugar em que nos comunicamos com os outros, tomamos decisões, chegamos a acordos sobre padrões e normas, perseguimos em conjunto o esforço de criar uma forma de vida de valor. Este é o “mundo da vida” (o Lebenswelt de Jürgen Habermas) e é lá que se realiza a comunidade. 4 A Paróquia enquanto “Comunidade de Comunidades” ou “Rede de Comunidades” O que significam essas reflexões para a compreensão atual da Paróquia? Rede de comunidades (ou redes sociais) nos conduz a pensar em duas realidades. Uma nova maneira de pensar a articulação do tecido social e, o que nos interessa aqui sobremaneira, uma nova maneira de pensar a estrutura eclesial (“um novo jeito da igreja ser”). Como vimos, apesar de serem estruturadas de forma transitória, desprendida de tempo e espaço, baseada muito mais na cooperação em vista de trocas objetivas que propriamente na permanência de laços, sociologicamente a rede de comunidades desloca o modo de pensar a estrutura social em si. Em vez 58 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 58 17/10/2013 15:09:13 Sérgio Ricardo Coutinho de assumir a forma piramidal, opta-se pela interligação entre os corpos sociais: a forma rizomática. As duas metáforas – pirâmide e rede – traduzem bem a diferença. A pirâmide pensa o poder a partir da ponta, do chefe, da autoridade maior. Dela derivam as ordens, as decisões para a base realizar. Não se trata necessariamente de autoritarismo no sentido de defeito, de abuso de poder. Acontece haver autoridades delicadas, finas, respeitosas, mas elas decidem e a base realiza. A questão não gira em torno de pessoas, mas da concepção de funcionamento da instituição em questão. A estrutura piramidal concentra, em última análise, o poder, pratica-o de maneira hierarquizada tanto no comando como na execução. Impera a figura geométrica do vertical. De fato, novas técnicas de coleta de dados mais sistemáticas, desenvolvidas desde os anos de 1950, mostraram que as comunidades tradicionais (naquele sentido idealizado por Tönnies) não eram tão solidárias quanto se acreditava. Analisando algumas sociedades de países em desenvolvimento ou pobres, constatou-se que muitas localidades (vilas, povoados, pequenas cidades) não possuem comunidades de suporte, redes sociais ou laços de parentesco consistentes como se imaginava. Para Wellman e Berkowitz, esses estudos mostram que “as relações dentro dessas sociedades pré-industriais são em geral hierárquicas, com laços de exploração especializados, com uma profunda divisão separando facções. Além disso, historiadores têm sistematicamente usado fontes demográficas e de arquivo para demonstrar que muitas comunidades pré-revolução industrial eram menos solidárias do que se pensava”.15 A experiência destas redes sociais contemporâneas, e de suas comunidades virtuais, traz em si outra concepção de estruturação social que é a sua horizontalidade rizomática. Por isso, a metáfora da rede modifica o esquema fundamental. Os corpos menores relacionam-se entre si, e da conjugação de suas deliberações surgem as decisões. Predomina a busca do consenso entre todos. As informações circulam livremente. Evita-se a concentração de poder em determinados cargos. Todos se ligam com todos. Predomina a figura geométrica do horizontal. 15 Cf. Wellman e Berkowitz, op. cit., p. 125. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 59 59 17/10/2013 15:09:13 A paróquia e um conceito “forte” de comunidade Conforme Pe. Almeida16, do ponto de vista estritamente sociológico, constata-se que muitas paróquias no Brasil se caracterizam por serem uma: a) Instituição de Cristandade17; b) Organização de Massa18; c) Caráter territorial19; d) Centralidade do culto20; e) Arquiteta da unidade e da ordem21; f) Liderança sacerdotal22; g) Instituição econômico-financeira23. Sabedores desta realidade, os bispos na Conferência de Aparecida pedem reiteradamente que as paróquias se transformem “cada vez mais em comunidades de comunidades” (DA 99, 179, 309) e, para isso, “exige-se a reformulação de suas estruturas, para que sejam uma 60 16 ALMEIDA, Pe. Antonio José de. Paróquia, comunidades e pastoral urbana. SP: Paulinas, 2009, pp. 63-87. 17 De forma simples e objetiva, Cristandade é mais que o modo concreto pelo qual a Igreja vive num determinado tempo e numa determinada cultura, mas sim a formação gradual de um modo de os cristãos regerem, em nome do Evangelho, a sociedade em que vivem; é a expressão de uma extensa fé coletiva e de um comportamento geral (pelo menos na grande maioria dos povos cristianizados), fiel ao Evangelho e ao Magistério da Igreja. 18 Nas missas paroquiais, os fiéis estão um ao lado do outro, mas sem comunicação entre si. No máximo há uma relação com o pároco e, através dele, com os demais fiéis. A paróquia, desta forma, não é uma comunidade. 19 Com o Edito de Milão (313) a Igreja foi fazendo suas as estruturas organizativo-administrativas da sociedade civil imperial, criando um paralelismo com as suas circunscrições eclesiásticas. Vítima de seu caráter territorial, a paróquia perde mobilidade e acaba se confundindo com a exterioridade física: a Igreja-matriz (simplesmente chamada de paróquia, com sua casa paroquial, secretaria e outros espaços físicos). 20 A principal função da paróquia, em sua prática mais constante e universal, não é a pregação, nem o serviço, mas o culto. Ela tem mantido e reforçado, ao longo dos séculos, o privilégio de celebrar os sacramentos. 21 A paróquia procura (ou pelo menos procurou durante a época de Cristandade) contribuir para a manutenção dos padrões coletivos tradicionais, hierárquicos, de comportamento e de ordem social. A unidade é construída verticalmente, muitas vezes à custa da liberdade individual, e confundindo-se com uniformidade. 22 Na paróquia, tudo gira em torno do pároco, que é um sacerdote, ou seja, um homem do culto. Responsável pela administração em todos os sentidos e abrangência, em última instancia, a paróquia é o “senhor pároco”. 23 O maior volume do financiamento da Igreja passa pelas paróquias. Sendo que outras instâncias eclesiais necessitam de dinheiro para se sustentar e sustentar suas atividades, a captação de recursos financeiros nas paróquias é incessante. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 60 17/10/2013 15:09:13 Sérgio Ricardo Coutinho rede de comunidades e grupos, capaz de se articular, conseguindo que os participantes se sintam realmente discípulos e missionários de Jesus Cristo em comunhão” (DA 172). Mas como? Como fazer a paróquia se tornar uma “comunidade de comunidades” naquele “sentido forte” de comunidade enquanto o lugar em que nos comunicamos com os outros, tomamos decisões, chegamos a acordos sobre padrões e normas, perseguimos em conjunto o esforço de criar uma forma de vida de valor e, no nosso caso, de “valor evangélico”? Em nossas dioceses, temos muitas comunidades. Em muitas delas, costuma-se denominá-las de comunidades eclesiais de base (CEBs), em algumas outras têm-se preferido chamar de “pequenas comunidades eclesiais”. Para se ter uma ideia, vejamos este pequeno quadro comparativo com algumas dioceses brasileiras: Prelazias/ (Arqui)Dioceses Regional Nº CNBB Paróquias Nº de CEBs e/ou Peq. Comum. Faixa Densidade Média por percentual de Demogr. Paróquia Católicos (Hab./km2 (2010) 2010) Tefé (AM) N1 14 600 42,8 75-85 Sinop (MT) O2 33 800 24,2 75-85 2-11 Almenara (MG) L2 17 271 15,9 75-85 11-24 Crateús (CE) NE 1 15 804 53,6 + 92 24-48 Brejo (MA) NE 5 16 1.250 78 85-92 24-48 CO 35 120 3,4 65-75 48-216 Palmas (TO) Criciúma (SC) 2-11 S4 29 524 18,06 85-92 48-216 NE 3 28 695 24,8 85-92 48-216 Florianópolis (SC) S4 67 602 8,9 75-85 48-216 Cachoeiro de Itapemerim (ES) L2 41 1.030 25,1 65-75 48-216 Passo Fundo (RS) S3 54 900 16,6 85-92 48-216 São Paulo (SP) (Região Brasilândia) S1 39 159 4,07 65-75 216-13 mil Porto Alegre (RS) S3 156 738 4,7 65-75 216-13 mil 544 8.493 Vitória da Conquista (BA) TOTAL 13 (4,7% das 274 dioceses do Brasil) 11 (5,07% das 10.720 paróquias do Brasil) 15,6 64,6 22,4 CEBs/Peq. Comum. por Paróquia Média nacional Média nacional Igreja “com CEBs” praticamente existe em todo o país. Elas proliferam, tornando-se pontos vitais de participação, de compromisso, de vida comunitária e de escuta da Palavra. Se quisermos pensar rede de comunidades, então não basta que a paróquia, a diocese, “tenha CEBs”, mas que as pensemos em outro esquema de estrutura eclesial, com outras Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 61 61 17/10/2013 15:09:13 A paróquia e um conceito “forte” de comunidade estruturas de mediação decisória e de atuação. Precisamos distinguir entre “Igreja com CEBs” e “Igreja de CEBs” (rede de comunidades). Em vez de elas se entenderem a partir do centro – matriz ou catedral –, elas se concebem como conjunto de comunidades entre si ligadas (horizontalidade rizomática) e dessa conexão emerge a ideia de paróquia ou diocese. Ambas não precedem as comunidades, mas o contrário. Primeiro estão as comunidades, que só se compreendem em relação de serviço, de oferta e demanda em relação às outras. E a ideia de diocese ou paróquia surge desse tecido de comunidades. As informações circulam pelas comunidades livremente, e desde daí elas decidem as ações, levando em consideração as outras comunidades na dupla atitude de quem oferece e recebe conforme a sua própria possibilidade e necessidade. Dessa forma, poderíamos falar de uma “Igreja de CEBs”. Se quisermos mudanças de fato, devemos descentralizar a experiência de fé em muitas de nossas comunidades paroquiais: a) Todas as comunidades devem ser estimuladas a dar prioridade à Palavra, para que esta possibilite o despertar e a educação da fé; b) Descentralizar a celebração dos sacramentos, desde o batismo, passando pelo matrimônio, até a eucaristia, quando possível. Uma comunidade não é mini-matriz, mas tem direito a todos os serviços da fé e caridade; c) Que as comunidades mesmas administrem suas próprias finanças; d) Os conselhos, econômico e pastoral, são os grandes meios de representação, de participação e de corresponsabilidade dentro das comunidades e no conjunto da paróquia; e) Neste processo de descentralização, muda a posição do pároco. Como o bispo tem o seu presbitério e o conselho presbiteral, o pároco deve ter sua equipe de pastoral que o ajude a pensar e a aprofundar a missão da Igreja, e com eles partilhar a missão de articulador das comunidades. Ouso, neste momento, fazer uma proposta para encerrar este texto: que a paróquia se transforme em área geográfica ou jurídica de pequenas comunidades eclesiais (CEBs). Considerem-se como “células vivas” da Igreja estas comunidades de discípulos-missionários, as comunidades de base, as comunidades geradas pela Palavra (com autonomia suficiente para serem base da Igreja). Coordenadas por leigos e leigas ou por diáconos permanentes, quando existirem, cada conjunto de comunidades 62 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 62 17/10/2013 15:09:13 Sérgio Ricardo Coutinho se articula dinamicamente, e de forma própria, dentro de uma paróquia, tendo um presbítero como animador e articulador. Talvez isso concretize a proposta de Aparecida para que a paróquia seja, de fato, “uma rede de comunidades e grupos, capaz de se articular, conseguindo que os participantes se sintam realmente discípulos e missionários de Jesus Cristo em comunhão” (DA 172). Em que tipo de rede gostaríamos que as Paróquias se transformassem: naquela que maximiza os interesses dos indivíduos que privilegiam suas redes pessoais (comunidades virtuais), ou naquela que maximiza valores e objetivos compartilhados por meio do debate e das tensões provenientes do “mundo da vida” (comunidades reais)? O que marca uma rede são os seus “laços” e não os “pontos fixos”. Endereço do Autor: SKN 212 Bl. A. Ap 114 Asa Norte 70864-010 Brasília, DF Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 63 63 17/10/2013 15:09:13 Diálogo inter-religioso Conferência do rabino JOSEPH A. EDELHEIT No dia 3 de outubro, à tarde, no auditório da FACASC, tivemos a oportunidade de ouvir o rabino húngaro-americano Joseph Edelheit, professor de Ciências da Religião na Universidade estatal de Saint Cloud, Minnesota, Estados Unidos. Ele estava em Florianópolis dando uma série de conferências na Universidade Federal de Santa Catarina. Ele começou citando Martin Buber, o pensador judeu famoso pela criação da filosofia do Diálogo, num texto que ressalta os valores do pluralismo: “É obrigação de cada pessoa em Israel saber e ter consciência de que ele é único no mundo com sua característica particular, e que nunca existiu alguém como ele no mundo, pois nesse caso não haveria necessidade de ele estar no mundo. Cada indivíduo é algo novo no mundo, e é chamado a cumprir esta sua particularidade neste planeta. Exatamente porque isto não está sendo feito, eis a razão por que a vinda do Messias é adiada”. Por isso, a mais importante tarefa de cada um é a atualização de suas únicas, não precedentes e nunca mais recorrentes potencialidades, e não a repetição de alguma coisa que um outro, por maior que tenha sido, já tenha realizado. Todos os seres humanos têm acesso a Deus, mas cada um de modo diferente. A grande chance da humanidade está precisamente nessa diferença entre as pessoas. E toda a inclusividade de Deus se manifesta precisamente na infinita multiplicidade dos caminhos que levam até Ele. Citou também Abraham Heschel, um dos mais profundos pensadores judeus do século passado, professor no Seminário rabínico de Nova York, famoso pela sua tese doutoral sobre os profetas. Sintetizando seu pensamento: O profeta é a voz emprestada à maioria silenciosa. O profeta é a voz de um Deus irado, impaciente com a maldade humana. Ele antes sacode, choca, perturba, do que consola. E lembra insistentemente que “poucos são os culpados, mas todos somos responsáveis!” O profeta visa antes de tudo sacudir a indiferença, a calosidade, a “casca grossa” da consciência das pessoas. Assim, concretamente, os campos de extermínio nazista não são culpa (só) dos alemães, mas da indiferença da humanidade... Concluindo: Deus nos chama a servir, não a julgar os outros. (N.B.P.) Encontros Teologicos 65.indb 64 17/10/2013 15:09:13 Resumo: O conceito de paróquia tem significado canônico, teológico e pastoral, indicando uma comunidade formada por uma porção dos fiéis que buscam viver conjuntamente a fé cristã, e se organizam orientados por um pároco o qual tem a responsabilidade de lhes orientar na vida cristã e eclesial. O Documento de Aparecida propõe a paróquia como “comunidade de comunidades”, “células vivas”, lugar privilegiado da vida cristã e eclesial. Isso exige repensar não apenas a paróquia, mas a Igreja que nela se manifesta. Abstract: The meaning of the word “parish” contains distinctions in various contexts, such as canonical, theological, and pastoral, applied to a determinate number of followers of the Catholic religion. A creative use of this term focuses on the endeavor to create an interfaith exchange of experience and religious rites under the directives of a pastor, appointed by the bishop, who is in charge of the organization and leadership in the style of life and ministry of the faith community. The Document of Aparecida privileged the parish as a “community of communities” supplemented by “living cells” in terms of relationship, participation, and responsibility of the parishioners in Church activities. Formação cristã na comunidade paroquial Pe. José de Lima* * Diocese de Cornélio Procópio – Paraná. Assessor Diocesano da Animação Bíblica da Catequese. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013, p. 65-78. Encontros Teologicos 65.indb 65 17/10/2013 15:09:13 Formação cristã na comunidade paroquial 1 Definição do termo paróquia Para o termo paróquia e para o assunto que será abordado neste artigo, é importante recordar, num primeiro momento, que “paróquia” segundo o Código de Direito Canônico “é uma certa comunidade de fiéis, constituída estavelmente na Igreja particular, cuja cura pastoral, sob a autoridade do Bispo diocesano, está confiada ao pároco, como seu pastor próprio”1. Em segundo lugar, quando se fala em paróquia ou comunidade paroquial, está se referindo a ela como um todo, ou seja, não somente nas pessoas que vivem em torno do centro aonde se localiza a Igreja matriz, mas, seguindo a afirmação pastoral do Documento de Aparecida: “a paróquia é comunidade de comunidades, nas quais vivem e se formam os discípulos missionários de Jesus Cristo [...]. São células vivas da Igreja e o lugar privilegiado no qual a maioria dos fiéis tem uma experiência concreta de Cristo e de comunhão eclesial”2. Por último, a paróquia, segundo as Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja do Brasil 2011 a 2015 é: a) Casa da Iniciação à Vida Cristã; b) Lugar de animação bíblica da pastoral; c) Comunidade de comunidades; d) Serviço da vida plena para todos. Nesse sentido, “é dever próprio e grave, sobretudo dos pastores de almas3, cuidar da catequese do povo cristão4, para que a fé dos fiéis, pela instrução doutrinal e experiência da vida cristã, se torne viva, explícita e operosa”5. “O pároco, em razão do ofício, tem obrigação de procurar a formação ‘catequética’ dos adultos, dos jovens e das crianças”6. 66 1 CODIGO DE DIREITO CANONICO. Can. 517, 1§. 2 CELAM. Documento de Aparecida: Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe: 13-31 de maio de 2007. Tradução de Luiz Alexandre Solano Rossi. Brasília/São Paulo: CNBB/Paulus/Paulinas, 2007. Cap. V. n. 170. 3 Entenda-se “pastores de almas” como os párocos. (Grifo meu) 4 Esse termo nos remete a toda a formação cristã de maneira geral. E quando aparecer a palavra “catequese”, não se está referindo nesse artigo a um grupo específico de evangelizadores, ou seja, os catequistas propriamente ditos, mas a todas as pessoas e grupos: pastorais, movimentos e organismos, envolvidos no processo de formação do povo de Deus na paróquia. (Grifo meu) 5 Ibid, Can. 773. 6 Ibid, Can. 776. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 66 17/10/2013 15:09:14 José de Lima 2 A Igreja num mundo em mudança Atualmente, porém, especialistas como Joel Portella Amado têm afirmado que, como estamos num tempo de “mudança de época”, este fato atinge os critérios de julgar, de ver e de compreender a vida. Afirma que os valores que no passado eram importantes, foram colocados de lado e outros valores que estavam adormecidos, retornaram para o centro do atual cenário mundial. Para ele, este contexto gera um novo perfil de crente, de relacionamento com a crença, com a fé, com a religião. Não há mais preocupação com a distinção entre as três palavras: crença, fé e religião. Esse novo crente, segundo Portella, é alguém que tem a preocupação mais voltada para si, do que para a instituição; para a escolha do que para a tradição; para a novidade, do que para a repetição; para a emotividade, do que para a racionalidade. Nesse caso, aqueles mecanismos que antes eram usados para transmitir a fé, já não têm a mesma força7. Para o autor, se faz necessário refletir sobre duas questões, por meio das quais se contextualiza o que está acontecendo: A primeira constatação nos leva a ultrapassar os limites da Igreja. O fenômeno que estamos experimentando não é específico da Igreja Católica. No âmbito religioso, ele atinge também as Igrejas da Reforma, notadamente as históricas, chegando até às demais religiões. Trata-se, portanto, de um fenômeno de amplo alcance. A diferença está no modo como ele atinge cada uma destas religiões e o modo como elas reagem. A segunda observação alarga ainda mais o fenômeno, pois chama nossa atenção para o fato de que não se trata de algo específico desta ou daquela região do planeta. A realidade sobre a qual estamos falando diz respeito ao mundo todo, ainda que sob diversos graus de afetação. É por isso que um dos termos mais usados para descrevê-lo é exatamente globalização8. “Ao ler o Documento de Aparecida, ele traz em seus números 37 a 44, o tema da globalização, mostrando que, além de ser uma realidade geográfica, no sentido de que atinge praticamente todos os povos, é também existencial, pois abrange as diversas instâncias da vida de pessoas e 7 Cf. Vídeo da 3ª Semana Brasileira de catequese. Iniciação à Vida Cristã. Comissão Episcopal para Animação Bíblico-catequética. Brasilia: Edições CNBB, 2010. 8 Texto do I Congresso Brasileiro de Animação Bíblica da Pastoral. Conferência Episcopal para Animação Bíblico-Catequética. Goiânia – GO, 8 a 11 de outubro de 2011. pg 1. CD fornecido pelo Congresso. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 67 67 17/10/2013 15:09:14 Formação cristã na comunidade paroquial povos”9. Somado ao que apresenta Joel Portella, esse assunto está dentro da proposta de renovação da Igreja. Ele se coloca dentro da preocupação missionária que perpassa hoje toda a Igreja, preocupada com a descristianização galopante tanto em países de antiga (Europa) como de nova cristandade (Brasil). Não é um tema novo, mas um desdobramento do Diretório Nacional de Catequese (2005), de Aparecida (2007): ‘uma Igreja em estado de missão’, da Missão Continental (2008)... e tantos apelos atuais da Igreja.10 3 Por onde começar O momento é de grande transcendência. É o tempo de Deus e do anúncio do Evangelho, o tempo de Jesus, tempo da escuta de Deus, tempo de profecia, tempo da descoberta de Deus como nos tempos primitivos. As pesquisas, portanto, fazem perceber uma grande debilidade do cristianismo. Existe uma progressiva diminuição da prática religiosa e da catequese das crianças e jovens. Aumentam os batismos de adultos, antes quase inexistente. Nesse sentido, quando se fala atualmente de formação cristã na paróquia, está-se falando de gerar agentes que consigam assimilar todas essas complexas mudanças que foram citadas, para poder, a partir delas, fazer o anúncio do Evangelho, pois se sabe que: A renovação da paróquia e das comunidades depende de agentes de pastoral preparados para essa nova mentalidade. É necessário reforçar uma clara e decidida opção pela formação de todos os membros das comunidades. Trata-se de um itinerário que implica uma aprendizagem gradual e requer caminhos diversificados que respeitem os processos pessoais e os ritmos comunitários. Hoje, é indispensável a interação na qual a pessoa não é apenas informada, mas aprende a formar-se junto com os outros. Métodos, pedagogias interativas e participativas, precisam ser desenvolvidos entre as lideranças cristãs, para que promovam a participação na comunidade. Essas metodologias devem considerar especialmente a prática das comunidades e as experiências de vida das 9 10 68 Ibid, pg. 2. Itaici (SP), Encontro Nacional do Clero, 08 de Fevereiro de 2010. Pe. Luiz Alves de Lima, sdb – expositor. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 68 17/10/2013 15:09:14 José de Lima pessoas, formando a consciência sobre o valor da vida comunitária para a fé cristã11. Também é preciso saber que a formação do povo de Deus é sempre uma “ação eclesial que brota de Jesus Cristo”12. Ela precisa vir depois da fé em Cristo, porque formação é aquilo que vem depois. Antes é preciso anunciar a Palavra, para que a pessoa se coloque em pé, no seguimento, no discipulado, por isso “começa sempre a partir de Jesus Cristo”13, “que introduz o ser humano na vida de comunhão com Deus e permite a entrada na sua Igreja”14. Mais do que, num primeiro momento, ou seja, o ensino de teorias, normas, dogmas, doutrina, a fim de obter um possível resultado feliz nas ações pastorais, por parte dos agentes, é preciso fazer o anúncio de Cristo, porque, a fé não é óbvia: Sucede não poucas vezes que os cristãos sintam maior preocupação com as consequências sociais, culturais e políticas da fé do que com a própria fé, considerando-a como um pressuposto óbvio da sua vida diária. Ora, tal pressuposto não só deixou de existir, mas frequentemente acaba até negado. Enquanto, no passado, era possível reconhecer um tecido cultural unitário, amplamente compartilhado no seu apelo aos conteúdos da fé e aos valores por ela inspirados, hoje parece que não é assim em grandes setores da sociedade, devido a uma profunda crise de fé que atingiu muitas pessoas15. “Na sua própria estrutura, o catecismo da Igreja Católica apresenta o desenvolvimento da fé até chegar aos grandes temas da vida diária. Repassando suas páginas, descobre-se que o que ali se apresenta não é uma teoria, mas o encontro com uma Pessoa que vive na Igreja”16. Essa Pessoa é Cristo. E Ele não é apenas um tema que se discute em reunião 11 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. 51ª Assembleia Geral da CNBB. Comunidade de comunidades: uma nova paróquia. Aparecida-SP, 10 a 19 de abril de 2013. 12 DOCUMENTOS DA CNBB. Diretrizes Gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil 2011-2015. Documento 94. São Paulo: Paulinas, 2011, n. 4. 13 Ibid, pg. 6. 14 BENTO XVI. A porta da fé (porta fidei). Carta Apostólica do Papa Bento XVI com a qual se proclama o Ano da Fé. São Paulo: Paulus, 2011. n. 1. 15 Ibid, n. 2. 16 Ibid, n. 11 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 69 69 17/10/2013 15:09:14 Formação cristã na comunidade paroquial de pastoral, em uma conferência, em seminários de teologia, mas Alguém que deve ser anunciado como proposta de vida para o mundo. Portanto, um projeto de formação paroquial deve começar com o primeiro anúncio, o Kerigma, porque o caminho da fé se começa por ele e depois virá o ensino da catequese, da doutrina. Sem o Kerigma, se constrói a comunidade sobre a areia e quando surge o menor vento de novas doutrinas, se cai no relativismo ou na idolatria. O primeiro anúncio se faz, não se ensina, e ao fazê-lo, ele dever estar impregnado de uma espiritualidade que vem da prática, dos momentos de vivência, partilha e celebrações na comunidade, nos pequenos grupos etc. Depois vem o conteúdo, mas há que saber que é como, sem menosprezo, tratar de uma criança. O alimento não pode ser muito sólido de início e tem que esperar o tempo que cada um precisa para poder receber na boca, mastigar, engolir e, mais ainda, muitas vezes é preciso dar um tempo suficiente para a pessoa digerir, ruminar, assimilar a proposta, seja ela qual for. 4 Ação formativa planejada Sabe-se que toda ação evangelizadora, portanto, demanda projetos com seus objetivos gerais, específicos, e cronograma onde são colocados os conteúdos, as pessoas envolvidas com os temas, o início, o meio, o onde, o como e com quem fazer o cronograma etc. Esses são requisitos mínimos e básicos e servem para inúmeras áreas do saber e do fazer. Se houver desprezo ou não for levando em conta de maneira séria, pode ter em mente que os resultados não serão os esperados. Os fracassos e as frustrações chegarão logo, por não serem levadas em conta coisas tão sérias. Somado a isso, faz-se necessário refletir um pouco, ou relembrar, no entanto, as inúmeras vezes que aconteceram reuniões nas paróquias, nos setores, nas dioceses, nos regionais. Quanta paciência, amor, sabedoria, caridade, calma, habilidade, foi necessário por parte dos organizadores, palestrantes, para com as pessoas em particular, porque cada um é único, e deve dar a ele ou a ela um tratamento, acompanhamento personalizado, assim também com os grupos de maneira geral com suas mais variadas questões, anseios, angústias, alegrias e muitas vezes tristezas. 70 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 70 17/10/2013 15:09:14 José de Lima Ao avaliar a ação evangelizadora concretizada naquele determinado período, anteriormente proposto para determinadas ações e, depois, uma possível elaboração de projetos de evangelização futuros, os mais variados grupos e pessoas que compõem as pastorais, movimentos e organismos, ao debaterem sobre o planejamento da ação evangelizadora da Igreja, quase sempre pedem para que se tenha mais formação. De início, não fica claro sobre quais conteúdos se deseja estudar, por onde começar, mas sempre houve uma grande insistência com o tema. São gritos, não anônimos, que surgem das bases. Estão, na verdade, dizendo que há uma carência de conhecimento e que não será possível levar adiante, de maneira eficaz, uma evangelização efetiva. Na verdade, o real interesse é que estejam melhor habilitados para o serviço do anúncio do Evangelho. Esse debate enriquecedor, com certeza lançou e continua lançando luzes e fundamentos para a criação de escolas e núcleos de formação em seus mais variados níveis, e continua ajudando na reflexão sobre como deve ser pensado, formulado, formatado, reelaborado, reeditado um bom projeto, seja ele para o nível básico, de aprofundamento, de graduação ou pós-graduação. Esse anseio dos grupos citados é sentido por toda Igreja, por todos os que lidam diariamente com as dificuldades de manter uma comunidade viva e atuante, muitas vezes debilitada nos conhecimentos básicos da fé, da religião, da Igreja, de Jesus Cristo. 5 A catequese de Iniciação à Vida Cristã Sabe-se, portanto, que essa questão não é nenhuma novidade para a Igreja, “perita em humanidade”, sobretudo no que diz respeito à necessidade de se conhecer melhor, para seguir melhor o Senhor. Seguindo o Concílio Vaticano II, por exemplo, estamos convencidos de que: “A eficácia do apostolado só é plena quando se conta com uma formação diversificada e integral, [...] adaptada à capacidade e circunstância em que vive cada um”17. “A doutrina cristã deve ser proposta de forma adaptada às necessidades de hoje, respondendo às dificuldades e às principais questões que angustiam e preocupam a humanidade”18. 17 Conc. Vat. II, Decreto Apostolicam actuositatem sobre o apostolado leigo. n. 28-29. 18 Conci. Vat. II, Decreto Christus Dominus sobre a função pastoral dos bispos e da Igreja. n. 13. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 71 71 17/10/2013 15:09:14 Formação cristã na comunidade paroquial Sejam vigilantes no que diz respeito à instituição catequética, que visa, pela ilustração da doutrina, tornar viva, explícita e atuante a fé entre os seres humanos. Que ela seja ministrada cuidadosamente às crianças e aos adolescentes, como também aos jovens e adultos. Observe-se sempre o método mais apropriado, dentro da ordem ditada menos pela conveniência da matéria do que pela índole, capacidade, idade e condição de vida dos ouvintes, sempre com base na Sagrada Escritura, na Tradição, na liturgia, no magistério e na vida da Igreja. Procurem fazer com que os catequistas sejam bem preparados para a sua função, conhecendo plenamente a doutrina da Igreja, a psicologia, a pedagogia, tanto prática como teoricamente. Reestabeleçam também, na forma mais apropriada, a instituição dos catecúmenos adultos19. Ao ler o Concílio Vaticano II, (GS, 64; SC, 65), se tem a impressão de que a reflexão catequética e a realidade eclesial vivida fez com que a Igreja olhasse para o passado para entender como as comunidades cristãs primitivas iniciavam aqueles que poderiam tomar parte dentro da própria comunidade. Nesse sentido, a Iniciação à Vida Cristã deve ser entendida como um processo pelo qual as pessoas são introduzidas, pelo desígnio salvador do Pai, ao mistério pascal do Filho, de tal forma que, gerados com filhos de Deus e cheios do Espírito Santo, se identificam progressivamente com Cristo. Isso significa que, aquilo que hoje tradicionalmente denominamos “catequese”, deve ser conduzido conforme o processo de iniciação, que é muito mais exigente e comprometedor, e não apenas “preparar para os sacramentos”, os quais infelizmente, em nossa realidade, tornam-se frequentemente “sacramentos de finalização” ou seja, são os últimos contatos que, muitas vezes, jovens e crianças têm com a Igreja (a crisma muitas vezes se degenera em “sacramento do adeus”!).20 6 O caminho da Iniciação à Vida Cristã Esse tema é de grande atualidade, porque a realidade pastoral está exigindo uma profunda renovação. O interlocutor que temos atualmente, os catequistas, sem dúvida são um novo sujeito, também novo é o contexto cultural em que vive a Igreja. É por isso que se faz necessário planejar 72 19 Ibid, 14. 20 Itaici (SP), Encontro Nacional do Clero, 08 de Fevereiro de 2010. Pe. Luiz Alves de Lima, sdb – expositor. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 72 17/10/2013 15:09:14 José de Lima uma renovação da catequese a partir desta perspectiva. A fé não é alheia a este tempo de crise na transmissão de todo tipo de valores. Portando, vamos analisar a partir de diferentes perspectivas o que implica falar de Iniciação à Vida Cristã. O tema da Iniciação à Vida Cristã sem dúvida reveste-se de uma extraordinária importância para a atualidade, porque ele está relacionado com o começo da vida cristã e se refere àquilo que se pode chamar de “tarefa central de toda a Igreja”21, a de “fazer cristãos”22. Olhando para os primeiros tempos, esse tema traz luzes para a revisão da atual realidade pastoral, e inspira para descobertas de novos caminhos. Não se trata de repetir modelos anacronicamente, senão de beber da mística que animava aqueles tempos, para recriar a catequese atual dando um novo significado à prática cotidiana. “A revisão e renovação da catequese inicial é uma convicção geral que surge, tanto da nova eclesiologia proposta a partir do Concílio Vaticano II, como da necessidade de uma consequente pastoral orgânica, junto à realidade social e cultural atual, profundamente desafiante”23. Vive-se uma mudança de época, com profundas transformações, culturais, sociais, familiares etc. Nesse sentido, para uma nova proposta pastoral, se faz necessário urgente reajuste a esta nova realidade. Deve-se olhar com muito realismo e sinceridade a atual situação. São muitos os crentes que não participam da Eucaristia dominical, nem recebem com regularidade os sacramentos, nem se inserem ativamente na comunidade eclesial [...]. Esse fenômeno nos interpela profundamente a imaginar e organizar novas formas de participação comunitária e de compromisso cidadão. Temos uma alta porcentagem de católicos sem consciência de sua missão de ser sal da terra e fermento no mundo. Esses têm uma identidade cristã fraca e vulnerável [...]. Por isso, o grande desafio hoje é a Iniciação à Vida Cristã [...]. Nesta sociedade e cultura em que se vive, sobretudo tendo em conta a descrição que traz o 21 CONSTITUIÇÃO LUMEN GENTIUM. In: KLOPPENBURG, B. (org) Compêndio do Vaticano II: Constituições, decretos e declarações. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. n. 8. 22 Cf. ALMEIDA, J. Antonio. ABC da Iniciação Cristã. São Paulo: Paulinas, 2010. pg. 23 Cf. Comissão Episcopal de catequese e pastoral Bíblica da Argentina. Isca. Módulo 0. El “Hoy” de la Iniciación Cristinana. pg. 3. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 73 73 17/10/2013 15:09:14 Formação cristã na comunidade paroquial Documento de Aparecida quando diz que, em muitas partes, a Iniciação à Vida Cristã tem sido pobre e fragmentada”24. Diante desse desafio, a realidade da catequese nos questiona sobre a necessidade de uma profunda renovação, para que se tenha uma verdadeira catequese de Iniciação à Vida Cristã, a qual, além de mostrar o quê, “dê elementos para o quem, o como e o onde se realiza”25. 7 Um olhar para nossa realidade pastoral. O sujeito da IVC26, suas motivações e as motivações da Igreja para com ele O Documento de Aparecida nos diz que, quando falamos de IVC, sempre se ouvem vozes em nossas comunidades que diagnosticam o seguinte: • Falta de compromisso e perseverança dos batizados. Onde estão eles? • Uma identidade cristã frágil ou fraca. Essas pessoas se dizem católicas? • Falta de consciência da missão. Não teríamos que ser sal e fermento na massa? Portanto, como comunidade eclesial, o Documento de Aparecida nos convida a revisar: • Como estamos educando na fé. • Como estamos alimentamos a vivência cristã. Devemos voltar com fervor aos primeiros tempos da Igreja, para dar testemunho de nosso encontro vital com Jesus Cristo... • Convidar outros e acompanhá-los em seu encontro com Jesus Cristo. Que sejam “discípulos”. 74 24 CELAM. Documento de Aparecida: Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe: 13-31 de maio de 2007. Tradução de Luiz Alexandre Solano Rossi. Brasília/São Paulo: CNBB/Paulus/Paulinas, 2007. n. 286-287. 25 CNBB. Iniciação à Vida Cristã: um processo de inspiração catecumenal. Brasília: Edições CNBB, 2009. Estudos da CNBB 97. 26 Daqui para frente, aonde se ler IVC, entende-se Iniciação à Vida Cristã. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 74 17/10/2013 15:09:14 José de Lima • Compartilhar com eles o caminho da fé para que sigam a Cristo. Que sejam “missionários”. É necessário buscar com criatividade um modelo operativo de IVC que ajude a repensar e dar um significado novo para... • • • • O que? Para quem? O como? Onde se realiza a IVC. 8 Perda da centralidade do Mistério Pascal na liturgia e da prática sacramental Não é nova a questão de que se perdeu a prática sacramental. Há muito tempo se fala de que é preciso resgatar o domingo como “dia do Senhor”, como afirma a Verbum Domini e Aparecida. É sabido que uma autêntica espiritualidade de comunhão nasce da Eucaristia. Ela preenche, com ampla plenitude, os anseios de unidade fraterna que abriga o coração humano. Não é casual que o termo “comunhão”, foi transformado em um dos nomes específicos deste sublime sacramento. Do mesmo modo, esta atitude do coração alimenta-se na escuta constante da Palavra de Deus como afirma a Verbum Domini, na liturgia dominical, na celebração gozosa do sacramento da penitência, na oração pessoal e na vida comunitária com todas as suas exigências. Muitos não participam na vida das comunidades cristãs, debilitando-se seu sentido de pertença e seu crescimento na fé. Diante dessa realidade espiritual, cada vez mais acentuada, há que se colocar um particular empenho para que, mediante um vigoroso anúncio do Evangelho, nenhum batizado fique sem completar sua Iniciação à Vida Cristã, facilitando a preparação e o acesso aos sacramentos da Confirmação, Reconciliação e Eucaristia. Com suave, porém, firme, persuasão pastoral, a Igreja convida a todos para participarem de uma vida cristã que se distingue pela arte da oração, pelo olhar de quem quer alcançar a plenitude da participação eucarística, sobretudo na celebração dominical. Se a comunidade estiver comprometida com a renovação da catequese que hoje se chama Iniciação à Vida Cristã, terá como fruto um resurgimento de tudo o que foi dito acima, uma vez que o encontro com o Senhor desperta verdadeira Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 75 75 17/10/2013 15:09:14 Formação cristã na comunidade paroquial fome, sendo que só Ele é capaz de ser o alimento verdadeiro que é distribuído entre os irmãos e irmãs que partilham da mesma fé, membros de Sua família. 9 Conceito chave: cristocentrismo trinitário nos sacramentos A Iniciação à Vida Cristã é um caminho progressivo de identificação com Cristo que tem seu começo quando o catecúmeno é marcado com a Cruz do Senhor e alcança seu momento culminante quando se faz um com Ele participando sacramentalmente do seu Mistério Pascal. Neste caminho de configuração com Cristo, o Batismo submerge a pessoa na vida de filhos no Filho. A Confirmação, pelo Dom do Espírito Santo, configura os cristãos mais perfeitamente com Cristo e fortalece a sua vida. E, pela Eucaristia, o cristão se identifica plenamente com o Senhor. Participando de seu sacrifício, os membros da comunidade se oferecem com Cristo ao Pai e, comendo o Corpo e o Sangue do Filho, desfrutam da antecipação salvífica do banquete celeste. Cada um dos sacramentos da Iniciação à Vida Cristã expressa um progressivo aprofundamento no Mistério de Cristo. Cada sacramento prepara a pessoa para o que vem depois, para o outro sacramento que virá, realizando no cristão o que se realizou em Jesus Cristo. Sendo assim, pode-se dizer que a IVC, supõe uma sequência ritual, que expressa sacramentalmente uma progressiva participação na graça de Deus. Porque os fiéis, renascidos no Batismo, se fortalecem com o Sacramento da Confirmação e são alimentados pela Eucaristia [...], assim recebendo, cada vez mais, com mais abundância, os tesouros da vida divina e avançando para a perfeição da caridade. Nesse sentido, é preciso aprofundar uma autêntica teologia deste Grande Sacramento, por isso é necessário contemplar a intrínseca relação entre a IVC e o acontecimento pascal e considerar seu significado trinitário27. Considerar a IVC como acontecimento trinitário significa compreendê-la como ação de Deus Trindade, o que implica a conversão ao Deus trinitário e procura a inserção plena – se bem que sujeita 27 76 CELAM. Documento de Aparecida: Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe: 13-31 de maio de 2007. Tradução de Luiz Alexandre Solano Rossi. Brasília/São Paulo: CNBB/Paulus/Paulinas, 2007. n. 6.1. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 76 17/10/2013 15:09:14 José de Lima à tensão escatológica, do “já, porém, ainda não” – na vida trinitária de Deus. Portanto, para planejar uma renovação da catequese com a chave da IVC, implica assumir radicalmente os conceitos já colocados no Diretório Geral de Catequese: Jesus revela o Espírito Santo que, com o Pai, Ele envia à sua Igreja. O Espírito nos une a Jesus Cristo, formando um único Corpo, a Igreja, Povo santo de Deus. Jesus de Nazaré, Filho Unigênito do Pai, e de Maria sempre Virgem, é a Palavra encarnada do Pai: Palavra única e definitiva que fala ao mundo em todas as línguas, com o seu Espírito, no seu Corpo eclesial e católico (cf. Ap 2,11). Particularmente na Confirmação, a catequese aprofunda mais a presença e a ação do Espírito com seus dons e carismas e seu impulso para a missão. O mistério da Santíssima Trindade, revelado por Jesus, é o centro da fé e da vida cristã. O Deus revelado em Jesus Cristo é um Deus-Comunhão. Esse Deus-Comunhão de Pai, Filho e Espírito Santo é a inspiração da comunhão que somos chamados a viver. É isso que significa ser “criado à imagem e semelhança de Deus”. Essa comunhão deve estar refletida nas relações pessoais, na convivência social e em todas as dimensões da vida, inclusive econômica, social e política, fazendo-nos irmãos, filhos do mesmo Pai (cf. CR 201-202; cf. P 211-219). Jesus nos ensina que a vida trinitária é a fonte e meta da nossa vida e, portanto, também da catequese.28. A Palavra de Deus, encarnada em Jesus de Nazaré, Filho de Maria virgem, é a Palavra do Pai, que fala ao mundo por meio de seu Espírito. Jesus remete-se constantemente ao Pai. Ele é conhecido como Filho Único e ungido pelo Espírito Santo. Ele é o caminho que leva ao mistério íntimo de Deus. O Cristocentrismo da catequese, em virtude de sua própria dinâmica interna, conduz à confissão da fé em Deus: O Pai e o Filho e o Espírito Santo. É um cristocentrismo essencialmente trinitário. Os cristãos, pelo Batismo, são configurados com Cristo, a segunda pessoa da Santíssima Trindade, e esta configuração situa os batizados como filhos no Filho em comunhão com o Pai e com o Espírito Santo. Por isso, a sua fé é radicalmente trinitária. O Mistério da Santíssima Trindade é o mistério central da fé e da vida cristã. O cristocentrismo trinitário da mensagem evangélica impulsiona a catequese a cuidar, entre outras coisas, dos seguintes aspectos: 28 Diretório Geral de Catequese 99-100. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 77 77 17/10/2013 15:09:14 Formação cristã na comunidade paroquial • A estrutura interna da catequese, em qualquer modalidade de apresentação, será sempre cristocêntrica-trinitária: por Cristo ao Pai e no Espírito. Uma catequese que omitir uma dessas dimensões e desconhecer sua orgânica união, correria o risco de trair a originalidade da mensagem cristã. • Seguindo a mesma pedagogia de Jesus, em sua revelação do Pai, de si mesmo como Filho e do Espírito Santo, a catequese mostrará a vida íntima de Deus, a partir de suas obras salvíficas em favor da humanidade. As obras de Deus revelam quem é Ele em si mesmo e, o mistério de seu ser íntimo ilumina a inteligência de todas suas obras. Sucede assim, analogicamente, nas relações humanas: as pessoas se revelam por suas obras e, à medida que as conhecemos melhor, compreendemos melhor sua conduta. • A apresentação do ser íntimo de Deus, revelado por Jesus, uno na essência e trino nas pessoas, mostrará as implicações vitais para a vida dos seres humanos. Confessar a um Deus único, significa que o homem não deve submeter sua liberdade pessoal, de modo absoluto, a nenhum poder terreno. Significa também, que a humanidade, à imagem de um Deus que é comunhão de pessoas, está chamada a ser uma sociedade fraterna, composta por filhos de um mesmo Pai, iguais em dignidade pessoal. As implicações humanas e sociais da concepção cristã de Deus são imensas. A Igreja, ao professar sua fé na Santíssima Trindade e anunciá-la ao mundo, se compreende a si mesma como uma multidão de pessoas reunidas pela unidade do Pai, e do Filho e do Espírito Santo. E-mail do Autor: [email protected] 78 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 78 17/10/2013 15:09:14 Resumo: Num momento em que a CNBB faz uma Assembleia e todo um mutirão para elaborar um Documento sobre: “Comunidade de comunidades: uma nova Paróquia”, o autor apresenta uma pesquisa sobre “O Cristão Leigo e a Paróquia”, em que busca nos textos e no espírito do Concilio Ecumênico Vaticano II e nos seus desdobramentos nas Conferências do CELAM, nos Sínodos Mundiais e nos Documentos da CNBB, bem como na caminhada do Conselho Nacional do Laicato do Brasil – CNLB e em sua experiência como Cristão Leigo, discípulo missionário na Igreja e no mundo, a fundamentação sobre a identidade, a vocação, a espiritualidade e a missão dos Cristãos Leigos e Leigas e o seu “protagonismo” na “conversão pastoral” e conseqüente renovação da Paróquia. Para facilitar a leitura e a compreensão, optou por transcrever no texto as citações dos referidos Documentos sem, é claro, a pretensão de ter esgotado o assunto que, certamente, permanece aberto para críticas e complementações. Abstract: At a precise moment when CNBB gathers in assembly in order to produce a document on “The Parish as a community of communities” the author presents the results of his research beginning with the initial outlay dealing with “The Christian Layman and the Parish” in which he gathers relevant texts and inspiration from the Vatican Council II as well as the aftermath in the documents of the Conferences of CELAM, in the world Synods of bishops, in the documents of CNBB, in the national Council of the Laity of Brazil (CNLB). Included as well are his value judgments and assumptions, his personal commitment as a missionary, his thoughts and convictions regarding identity, vocation, spirituality, and the mission of Christian laymen and Lay women pertaining to their leadership and pastoral conversion aiming at the renovation of the parish. So as to facilitate the assimilation of the content of the texts the author chose to transcribe the quotations of relevant documents without claiming to be all inclusive and widely extensive, thus leaving space for detailed suggestions und further remarks. O cristão leigo e a paróquia Laudelino Augusto dos Santos Azevedo* * O autor nasceu em Caxambu, MG, aos 13 de setembro de 1954, de uma família cristã participante da Ação Católica. Há 40 anos mora e trabalha em Itajubá, também no Sul de Minas. É professor de Ensino Médio, foi vereador, deputado estadual e vice-prefeito, é agente de pastoral desde a juventude e assessor de formação para a missão. Atualmente, é o vice-presidente do Conselho Nacional do Laicato do Brasil – CNLB, do qual já foi presidente e secretário. Como sempre gosta de se apresentar, é cristão leigo, membro da comunidade eclesial de Santa Isabel, na periferia da Paróquia de São José Operário, em Itajubá, na Arquidiocese de Pouso Alegre. É discípulo missionário na Igreja e no mundo. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013, p. 79-97. Encontros Teologicos 65.indb 79 17/10/2013 15:09:15 O cristão leigo e a paróquia Introdução A celebração dos 50 anos da realização do Concílio Ecumênico Vaticano II tem sido uma oportunidade privilegiada para retomarmos não apenas os textos, é claro, mas, especialmente, o espírito conciliar, a renovação ou, no dizer do Beato João XXIII, o “aggiornamento” da Igreja. Vale lembrar as primeiras linhas da “Introdução Geral ao Compêndio do Vaticano II”1, escritas pelo então Frei Boaventura Kloppenburg, OFM : Sentir com a Igreja, no momento atual, significa sentir e sintonizar com o Vaticano II. E para viver e amar este XXI Concílio Ecumênico é necessário conhecê-lo em seus documentos, em sua intenção e em seu espírito. Na Carta ao Congresso de Teologia pós-Conciliar, de 21-091966, escrevia Paulo VI: “A tarefa do Concílio Ecumênico não está completamente terminada com a promulgação de seus documentos. Esses, como o ensina a história dos Concílios, representam antes um ponto de partida que um alvo atingido. É preciso ainda que toda a vida da Igreja seja impregnada e renovada pelo vigor e pelo espírito do Concílio, é preciso que as sementes de vida lançadas pelo Concílio no campo que é a Igreja cheguem à plena maturidade. Ora, tudo isso não poderá chegar a termo antes que o riquíssimo patrimônio legado pelo Concílio à Igreja tenha sido aprofundado cuidadosa e diligentemente pelo povo cristão, antes que este o conheça e realmente possua”. Aos Bispos da Itália perguntava o mesmo Papa no dia 06-12-1965: “Findo o Concílio, volta tudo ao que era antes? […] Aludimos ao modo de considerar a Igreja, modo que o Concílio cumulou tanto de pensamentos, de temas teológicos, espirituais e práticos, de deveres e de confortos, a ponto de exigir de nós um novo fervor, um novo amor, como que um novo espírito”. De lá para cá, nestes 50 anos, os Documentos dos Papas, os Sínodos Mundiais, as Conferências do CELAM, as Diretrizes Gerais e os Documentos da CNBB, bem como os Planos Pastorais das Arquidioceses e Dioceses, vêm procurando aplicar os ensinamentos do Concílio. Com relação ao laicato, por exemplo, o Sínodo sobre os Cristãos Leigos, que teve suas conclusões apresentadas na Exortação Apostólica “Christifideles Laici – Vocação e Missão dos Leigos na Igreja e no Mundo”, de João Paulo II, afirma já na introdução : 1 80 Editora Vozes, 1968. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 80 17/10/2013 15:09:15 Laudelino Augusto dos Santos Azevedo Nos nossos dias, a Igreja do Concílio Vaticano II, numa renovada efusão do Espírito de Pentecostes, amadureceu uma consciência mais viva da sua natureza missionária e ouviu de novo a voz do seu Senhor que a envia ao mundo como “sacramento universal de salvação”. [...] De um modo especial o Concílio, com o seu riquíssimo patrimônio doutrinal, espiritual e pastoral, dedicou páginas maravilhosas à natureza, dignidade, espiritualidade, missão e responsabilidade dos fiéis leigos. [...] Trilhando os caminhos do Concílio e abrindo-se à luz das experiências pessoais e comunitárias de toda a Igreja, os Padres, enriquecidos por sínodos precedentes, abordaram de forma específica e ampla o tema: a vocação e a missão dos leigos na Igreja e no mundo. [...] Com efeito, o desafio que os padres sinodais aceitaram foi o de indicar os caminhos concretos para que a maravilhosa “teoria” sobre o laicato, expressa pelo Concílio, possa converter-se numa autêntica “praxe” eclesial. A Igreja no Brasil, para citar outro exemplo, ainda durante o Concílio, incentivada por João XXIII, elaborou o seu Plano Pastoral de Conjunto, dentro já do “espírito conciliar”, contemplando uma eclesiologia de comunhão e participação, Igreja Povo de Deus, que viria a ser confirmada e incentivada pelos documentos aprovados. As duas primeiras “Campanhas da Fraternidade”, ainda antes da conclusão do Vaticano II, demonstram este empenho da Igreja no Brasil: em 1964, “Lembre-se: você também é Igreja!” e, em 1965: “Faça de sua Paróquia uma Comunidade de Fé, Culto e Amor”. Apesar das preocupações da Conferência de Aparecida : “Lamentamos, seja algumas tentativas de voltar a um certo tipo de eclesiologia e espiritualidade contrárias à renovação do Concílio Vaticano II, seja algumas leituras e aplicações reducionistas da renovação conciliar” (DAp 100b) e o fato de que “há Paróquias que não assumiram a renovação proposta pelo Concílio Vaticano II ...”2, podemos afirmar que o Concilio Ecumênico Vaticano II foi e vem sendo acolhido e colocado em prática no Brasil. O próprio Papa Francisco, em sua recente visita ao nosso país, falando ao episcopado brasileiro, destacou: “A Igreja no Brasil recebeu e aplicou com originalidade o Concílio Vaticano II; e o percurso realizado, embora tenha sido de superar determinadas doenças infantis, levou a uma Igreja gradualmente mais madura, aberta, generosa, missionária.” 2 Estudos CNBB 104, 91. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 81 81 17/10/2013 15:09:15 O cristão leigo e a paróquia Na Igreja e no mundo Recebi a incumbência de escrever sobre “O Cristão Leigo e a Paróquia”, certamente motivado pela oportunidade que estamos vivendo de que a CNBB, trilhando os caminhos do Concílio, atendendo uma disposição de Aparecida, após realizar uma Assembléia Geral com o tema central: “Comunidade de Comunidades: uma Nova Paróquia”, está em processo de elaboração de um documento sobre este tema, contando com a participação de todos os segmentos do Corpo Eclesial3. De início, é preciso ficar bem claro que a missão da Igreja: Corpo Místico de Cristo, presente e atuante na História como Povo de Deus peregrino, é missão de todos os seus membros. A missão evangelizadora da Igreja é realizada por todo o povo de Deus, com sua variedade de vocações e ministérios – ministros ordenados, consagrados e consagradas, leigos e leigas – que se harmonizam, sem confundir-se, na realização da tarefa comum”.4 Partimos, portanto, desta consciência de que nós, cristãos leigos e leigas, vivenciamos nossa identidade, vocação, espiritualidade e missão tanto na Igreja como no mundo. “O Concílio, por sua vez, está interessado em descrever positivamente o leigo. Por isso, na seqüência vai afirmar – partindo da ênfase sobre o Batismo – a sua “incorporação a Cristo”, a sua “constituição no Povo de Deus”, a sua participação na tríplice função de Cristo. Esses elementos são comuns a todos os membros da Igreja; por isso, ao afirmá-los, o Concílio acrescenta – sem ainda explicitá-los – dois elementos de caráter distintivo: “a seu modo”, quanto à participação na tríplice função, e “pela sua parte”, quanto ao exercício da missão comum. Não deve passar despercebida a afirmação de que o leigo exerce, pela sua parte, a missão do povo cristão “na Igreja e no mundo”. O Concílio supera, desta maneira, a repartição “a Igreja aos clérigos” e o “mundo aos leigos. Isto é muito claro, pois a Igreja existe para o Reino de Deus e o Reino está presente e se realiza no mundo, na História da humanidade. Evidentemente, todos os cristãos – ordenados, consagrados e consagradas, leigos e leigas, são membros do Corpo/Igreja pelo Batismo e vivem no mundo. A diferença está no modo de estar presente e atuante tanto na Igreja como no mundo e na função, serviço, ministérios exercidos. 82 3 Documento 104: Estudos CNBB. 4 CNBB 62, 62. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 82 17/10/2013 15:09:15 Laudelino Augusto dos Santos Azevedo A III Conferência do CELAM, em Puebla, no México, falando sobre o cristão leigo, afirma: “A fidelidade e coerência com as riquezas e exigências do seu ser lhe conferem a identidade de homem da Igreja no coração do mundo e de homem do mundo no coração da Igreja” (DP 786). A V Conferência, em Aparecida, retoma esta citação (DAp 209), que pode parecer equívoca, uma vez que também os cristãos ordenados, religiosos e religiosas, são “homens e mulheres da Igreja no coração do mundo e homens e mulheres do mundo no coração da Igreja”. Inclusive o cristão bispo de Roma, o qual chamamos carinhosamente de Papa, é coração da Igreja no mundo e do mundo na Igreja. A diferença, repito, está no modo de estar presente e nos serviços que prestam. Com relação ao cristão leigo, Aparecida enfatiza: “A construção da cidadania, no sentido mais amplo, e a construção da eclesialidade nos leigos, é um só e único movimento”. (DAp 215). Ou seja, o cidadão ou cidadã, consciente e ativo na sociedade, é o mesmo cristão ou cristã, consciente e ativo no Corpo Eclesial. Toda esta reflexão é para concluirmos que falar sobre “o Cristão Leigo e a Paróquia” inclui, necessariamente, a vivência e atuação na Igreja e no mundo. Não se pode restringir só “na Igreja” e nem muito menos só “no mundo”, pois o leigo e a paróquia não são entidades isoladas uma da outra. O cristão leigo é membro da paróquia como comunidade eclesial e ambos são integrantes da comunidade humana, do mundo, ao qual devem servir, testemunhar e nele instaurar o Reino de Deus. Sem redução ao intra-eclesial Na realidade que temos presenciado e constatado, o mais comum tem sido reduzir a presença e atuação dos leigos e leigas ao “intraeclesial”, com pouca incidência na sociedade. Isto, tanto por parte da hierarquia quanto de muitos leigos. Temos encontrado pessoas esgotadas de tantos trabalhos nas pastorais, movimentos, comunidades, com uma agenda estafante, reduzidas exclusivamente a atividades no âmbito eclesial, como, também, encontramos outros tantos que se esgotam em atividades sociais e políticas e quase não participam mais de eventos e nem mesmo de celebrações eclesiais. As duas situações são equivocadas, por isso nossa insistência. A propósito, vale recordar o item 90 do Documento 62 da CNBB: “Missão e Ministérios dos Cristãos Leigos e Leigas”, que aprofunda: Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 83 83 17/10/2013 15:09:15 O cristão leigo e a paróquia Também a distinção entre ministérios “ad intra” e ministérios “ad extra” merece uma reflexão mais aprofundada. Que, de um lado, existam funções voltadas mais para a edificação e a manutenção da comunidade eclesial e, de outro, funções marcadamente destinadas à atuação da Igreja na sociedade, é um dado de fato. Aliás, salta à vista também que, nas atuais circunstâncias, na maioria de nossas Igrejas Particulares, temos um número muito maior de leigos e leigas engajados em tarefas catequéticas e litúrgicas do que, por exemplo, nas pastorais sociais ou nas atividades missionárias. A distinção entre ministérios “ad intra” e ministérios “ad extra” baseia-se numa visão teológica que separa rigidamente e inadequadamente “Igreja” e “mundo” e, conseqüentemente, “vida” da Igreja e “missão” da Igreja, “vida interna da Igreja” e “missão da Igreja no mundo”. Na verdade, a expressão “missão da Igreja” ou “ministério da Igreja” engloba num único dinamismo, embora complexo e articulado, a vida interna da Igreja e sua atuação no mundo. Se entendermos que a igreja é aquela porção da humanidade que professa, proclama, vive, celebra e serve ao mistério da salvação que Deus opera no mundo e na história, tudo na Igreja e todos na Igreja estão a serviço desse mesmo desígnio de salvação e libertação. Não é preciso ‘sair’ da Igreja para ‘ir’ ao mundo, como não é preciso ‘sair’ do mundo para ‘entrar’ e ‘viver’ na Igreja. A palavra será sempre palavra da Igreja-sacramento, serva da obra de salvação de Deus na história e no mundo. A liturgia – que é ‘o cume para o qual tende a ação da Igreja e a fonte de onde emana toda a sua força’ – cantará as maravilhas que Deus opera nos seres humanos com todas as suas relações, mais ainda, na sua história e em todo o universo. O serviço não será visto como a presença da Igreja no mundo através de alguns de seus membros ou de seus organismos, mas a face mais concreta da missão da Igreja no mundo. E estas três dimensões – palavra, liturgia, serviço – não são elementos estanques e incomunicáveis, mas intimamente entretecidos na unidade do mesmo desígnio salvífico. Por isso, não é adequado pensar a repartição das tarefas e ministérios, como se alguns devessem dedicar-se exclusivamente à ‘vida interna’ da Igreja e outros se encarregassem da ‘presença no mundo’, reproduzindo, numa forma nova, o velho esquema dos ‘dois gêneros de cristãos’. A compreensão da Igreja como ‘sacramento de salvação’ exige a superação de um ‘ad intra’ (em que a Igreja existiria e funcionaria em si e para si) e um ‘ad extra’ (em que a Igreja ou parte dela agiria a serviço do mundo). Por isso, não há ministérios para a vida interna da Igreja e ministérios para o exterior da Igreja. Os ministérios são sempre ministérios na Igreja e para a Igreja, 84 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 84 17/10/2013 15:09:15 Laudelino Augusto dos Santos Azevedo sempre Igreja sacramento de salvação e libertação do homem todo e de todos os homens na única história da salvação”. Que beleza, diria Santo Agostinho, tão antiga e tão nova! O “ser cidadão” e o “ser cristão” num único e mesmo movimento, como também a Igreja no mundo na “única história da salvação”! É o “mistério da Encarnação” que se atualiza, se faz história, que passa pela cruz, na dinâmica pascal! No concílio ecumênico Vaticano II O Concílio Ecumênico Vaticano II, que foi o “Concílio da Igreja Povo de Deus com ênfase no laicato”, afirma, no item 21 do Decreto “Ad Gentes”, sobre “A Atividade Missionária da Igreja”: “ A Igreja não se acha deveras consolidada, não vive plenamente, não é um perfeito sinal de Cristo entre os homens, se aí não existe um laicato de verdadeira expressão que trabalhe com a hierarquia. Porque o Evangelho não pode ser fixado na índole, na vida e no trabalho dum povo, sem a ativa presença dos leigos. Por isso desde a fundação da Igreja, teve-se o máximo cuidado em constituir um laicato cristão maduro”. A Constituição Dogmática “Lumen Gentium”, já havia ensinado que “O apostolado dos leigos é participação na própria missão salvífica da Igreja. A este apostolado todos são destinados pelo próprio Senhor através do Batismo e da Confirmação. Os sacramentos, principalmente a Sagrada Eucaristia, comunicam e alimentam a caridade para com Deus e para com os seres humanos, a alma de todo apostolado. Os leigos, porém, são especialmente chamados para tornarem a Igreja presente e operosa naqueles lugares e circunstâncias onde apenas através deles ela pode chegar como sal da terra. Assim, todo leigo, em virtude dos próprios dons que lhe foram conferidos, é ao mesmo tempo testemunha e instrumento vivo da própria missão da Igreja ‘na medida do dom de Cristo’”. (LG 33). Com relação aos cristãos leigos e a Paróquia, o Concílio, no Decreto “Apostolicam Actuositatem”, exorta: “A paróquia apresenta um exemplo luminoso do apostolado comunitário, congregando num todo as diversas diferenças humanas que encontra e inserindo-as na universalidade da Igreja. Habituem-se os leigos a trabalhar na paróquia, intimamente unidos aos seus sacerdotes, a trazer para a comunidade da Igreja os problemas próprios e do mundo e as questões relativas à salvação dos homens, para serem examinados e resolvidos por troca de consultas; a Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 85 85 17/10/2013 15:09:15 O cristão leigo e a paróquia empenhar-se, na medida de suas forças, em auxiliar todas as iniciativas apostólicas e missionárias da própria família eclesial.” (AA 10). Nesta questão de “trazer para a Igreja os problemas próprios e do mundo”, vale lembrar “Ad Gentes”, que continua: “Os fiéis leigos pertencem plenamente tanto ao Povo de Deus como à sociedade civil. Fazem parte do povo que os viu nascer. Pela educação começaram a participar de seus tesouros culturais. Ligam-se à sua vida por multiformes laços sociais. Cooperam para o seu progresso, no exercício da profissão. Sentem como próprios os seus problemas e se esforçam por solucioná-los. São também de Cristo porque foram regenerados na Igreja pela fé e pelo Batismo para, em novidade de vida e obras, serem de Cristo. Assim, em Cristo tudo será sujeito a Deus e afinal Deus será tudo em todas as coisas. [...] Destarte a fé em Cristo e a vida da Igreja já não serão estranhas à sociedade em que vivem, mas começarão a penetrá-la e a transformá-la. Unam-se a seus concidadãos numa caridade sincera, para que em sua vida se manifeste o novo vínculo de unidade e solidariedade universal, haurido do mistério de Cristo. Propaguem também a fé de Cristo entre aqueles a que os ligam as relações de vida e a profissão. Essa obrigação tanto mais se impõe quando muitos homens não podem a não ser pelos leigos mais próximos ouvir o Evangelho e conhecer a Cristo. [...] Respeitadas as atribuições e responsabilidades próprias dos pastores e dos leigos, toda a Igreja nova preste um só testemunho vivo e firme de Cristo, a fim de que ela se torne lúcido sinal da salvação que em Cristo nos chegou” (AG 21). A serviço do Reino Com todas estas observações, ficamos mais à vontade para falar da riqueza e da diversidade de ministérios e de serviços que os cristãos exercem para a edificação do Corpo eclesial e para a revelação e crescimento do Reino de Deus no mundo. “Os leigos e leigas contribuem para a edificação da comunidade eclesial, à qual prestam muitos serviços ou ministérios com generosidade e competência” (CNBB 62, 62). São milhões de catequistas, ministros extraordinários da Comunhão Eucarística, ministros da Palavra, do canto e animação litúrgica, animadores de comunidades, pastorais, movimentos apostólicos, associações laicais nascidas de carismas de congregações religiosas, comunidades novas, funcionários das instituições eclesiais que colaboram na manutenção da Igreja. 86 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 86 17/10/2013 15:09:15 Laudelino Augusto dos Santos Azevedo O estudo, aprofundamento e elaboração de um documento sobre “Comunidade de comunidades: uma nova Paróquia”, vem contribuir decididamente para que sejamos uma Igreja Povo de Deus, presente e atuante na história, revelando e construindo o Reino. “Para isto existe a Igreja: para o Reino de Deus, que o Cristo glorificado, na força do Espírito, continua a realizar na história humana, onde a Igreja ‘vive entre as criaturas que gemem e sofrem como que dores de parto até o presente, e aguardam a manifestação dos filhos de Deus’. Existindo em si mesma, mas não para si mesma – pois é sacramento, isto é, sinal e instrumento de salvação e libertação – ‘as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo’. Assim como o Filho do Homem ‘veio, não para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos’, a Igreja toda deve – cada vez mais – colocar-se ‘efetiva e concretamente a serviço do Reino’ para que ‘todos tenham vida e vida em plenitude’”5. No Sínodo Mundial sobre o Laicato Já que este artigo visa refletir, embasar e aprofundar a relação do cristão leigo com a paróquia, vamos retomar alguns outros textos em documentos pós conciliares, que tratam deste assunto. Vinte anos após o Concílio, em 1987, realizou-se o Sínodo Mundial sobre a “Vocação e Missão dos Leigos na Igreja e no Mundo”. A Exortação Apostólica “Christifideles Laici”, fruto deste Sínodo, trata, da mesma questão, apontando a Paróquia como um dos espaços privilegiados de participação. No item 27, por exemplo, João Paulo II exorta sobre “o empenho apostólico na paróquia” : “Necessário se torna agora considerar mais de perto a comunhão e a participação dos fiéis leigos na vida da paróquia. Neste sentido, deve chamar-se a atenção de todos os fiéis leigos, homens e mulheres, para uma observação tão verdadeira, significativa e estimulante, feita pelo Concílio: ‘No seio das comunidades da Igreja – lemos no Decreto sobre o apostolado dos leigos – a sua ação é tão necessária que, sem ela, o próprio apostolado dos pastores não pode conseguir, na maior parte das vezes, todo o seu efeito’. Esta é uma afirmação radical que, evidentemente, deve ser vista à luz da ‘eclesiologia de comunhão’: sendo diferentes e complementares, os ministérios e os carismas são 5 CNBB 62, 76. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 87 87 17/10/2013 15:09:15 O cristão leigo e a paróquia todos necessários para o crescimento da Igreja, cada um segundo a própria modalidade”. E, continua: “Os fiéis leigos devem convencer-se cada vez mais do particular significado que tem o seu empenho apostólico na sua paróquia. É ainda o Concílio que com autoridade o sublinha: ‘A paróquia dá-nos um exemplo claro de apostolado comunitário porque congrega numa unidade toda a diversidade humana que aí se encontra e insere essa diversidade na universalidade da Igreja”. E, prossegue com o texto de AA 10, já citado acima. A Exortação continua: “O acento posto pelo Concílio na análise e na solução dos problemas pastorais ‘com o contributo de todos’ deve encontrar o seu progresso adequado e estruturado na valorização cada vez mais convicta, ampla e decidida dos Conselhos Pastorais Paroquiais, nos quais justamente insistiram os padres sinodais”. Vale acrescentar, neste caso, que em nossa experiência temos encontrado muitas paróquias com um Conselho Pastoral bem estruturado, funcionando, com caráter não só consultivo mas deliberativo, o que faz com que cresça a comunhão eclesial e a missão evangelizadora aconteça mais eficazmente. Certamente, existem as que possuem o CPP apenas para constar, com pessoas clericalizadas e que apenas dizem amém ao que já vem decidido e, infelizmente, não são poucas as paróquias que ainda não têm o Conselho funcionando. O item 27 da CfL conclui com um belíssimo texto: “A paróquia, sendo a Igreja colocada no meio das casas dos homens, vive e atua profundamente integrada na sociedade humana e intimamente solidária com as suas aspirações e os seus dramas. Frequentemente, o contexto social, sobretudo em certos países e ambientes, é violentamente sacudido por forças de desagregação e de desumanização: o homem pode encontrar-se perdido e desorientado, mas no seu coração permanece o desejo, cada vez maior, de poder sentir e cultivar relações mais fraternas e humanas. A resposta a este desejo pode ser dada pela paróquia, quando esta, graças à participação viva dos fiéis leigos, se mantém coerente com a sua originária vocação e missão: ser no mundo ‘lugar’ da comunhão dos crentes e, ao mesmo tempo, ‘sinal’ e ‘instrumento’ da vocação de todos para a comunhão; numa palavra, ser a casa que se abre para todos e que está a serviço de todos, ou, como gostava de dizer o Papa João XXIII, ‘a fonte da aldeia’ a que todos acorrem na sua sede”. Que beleza a nossa vocação e, ao mesmo tempo, que responsabilidade a nossa em ser a ‘fonte da aldeia’! Como Corpo Eclesial, pastores 88 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 88 17/10/2013 15:09:15 Laudelino Augusto dos Santos Azevedo e fiéis se constituem numa Igreja que se torna resposta às necessidades mais profundas dos seres humanos. As pessoas têm sede e buscam a fonte. Não as encontrando, vão atrás das que se apresentam como tais. Outras se refugiam nas drogas, na bebida, na devassidão, na violência. Ovelhas que se perdem enquanto nos ocupamos com algumas poucas que nunca saem do redil. Esta tem sido uma realidade freqüente que temos encontrado e que explica por que, no maior país católico do mundo, crescem a violência, a corrupção, as contradições e as seitas, sem o conseqüente compromisso cristão. A Exortação Apostólica prossegue apresentando “formas de participação na vida da Igreja”: “Os fiéis leigos, juntamente com os sacerdotes, os religiosos e as religiosas, formam o único povo de Deus e Corpo de Cristo. Ser ‘membros’ da Igreja nada tira ao fato de cada cristão ser um ser ‘único e irrepetível’; antes, garante e promove o sentido mais profundo da sua unicidade e irrepetibilidade, enquanto é fonte de verdade e de riqueza para a Igreja inteira” (CfL 28). Fala, a partir daí, das formas pessoais de participação, começando pelo testemunho de vida, “primeira e insubstituível forma de evangelização” e das formas agregativas. O Sínodo constatou “um notável impulso nos tempos modernos que têm visto o nascer e o irradiar de múltiplas formas agregativas: associações, grupos, comunidades, movimentos. Pode falar-se de uma nova era agregativa dos fiéis leigos” (CfL 29). De fato, é o que está acontecendo, com o surgimento de centenas de associações laicais, movimentos apostólicos e as chamadas novas comunidades ou comunidades novas, como alguns já têm se expressado. “Antes de mais, é necessário reconhecer-se a liberdade associativa dos fiéis leigos na Igreja. Essa liberdade constitui um verdadeiro e próprio direito que não deriva de uma espécie de ‘concessão’ da autoridade, mas que promana do Batismo, qual sacramento que chama os fiéis leigos para participarem ativamente da comunhão e da missão da Igreja” (CfL 29). O próprio Código de Direito Canônico reconhece: “Os fiéis podem livremente fundar e dirigir associações para fins de caridade ou de piedade, ou para fomentar a vocação cristã no mundo, e reunir-se para alcançar em comum esses mesmos fins” (CDC 215). O item 29 da Exortação Apostólica conclui declarando que “trata-se de uma liberdade reconhecida e garantida pela autoridade eclesiástica e que deve ser exercida sempre e só na comunhão da Igreja; nesse sentido, o direito dos fiéis leigos em agregar-se é essencialmente relativo à vida de comunhão e à missão da própria Igreja”. Com esta preocupação, João Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 89 89 17/10/2013 15:09:16 O cristão leigo e a paróquia Paulo II apresenta, em seqüência, os “critérios de eclesialidade para as agregações laicais” (Cf. CfL 30). No Brasil, têm sido realizados encontros, reuniões e Seminários com representantes, na maioria os próprios fundadores e fundadoras, de comunidades novas e de associações laicais, com participação direta dos mesmos e sob a coordenação da Comissão para o Laicato da CNBB e do Conselho Nacional do Laicato do Brasil – CNLB. Na relação do cristão leigo com a paróquia é de fundamental importância considerar estas novas formas agregativas, pois, com o enfraquecimento do velho modelo ou mesmo com a displicência de pastores e/ou leigos, que deixam a paróquia fria e sem entusiasmo, cria-se o risco de fechamento ou mesmo de substituição do modelo por alguma destas novas formas. Não é à toa que os mais recentes documentos da Igreja sempre chamam a atenção para a necessidade de se observarem os “critérios de eclesialidade” e de estarem de acordo com a pastoral orgânica das paróquias e dioceses. Esses textos apresentados até agora e outros que aprofundamos no dia a dia, respaldados pela vivência e troca de experiências diárias, vão nos convencendo cada vez mais de que a comunidade cristã, no caso a paróquia, como espaço de vivência e partilha, deve ser, também, de formação para a missão que se dá no mundo, nas malhas da sociedade. A Christifideles Laici, a partir do nº 36, vai explicitar exatamente o “viver o Evangelho servindo a pessoa e a sociedade”. “Neste contributo à família dos homens, de que é responsável a Igreja inteira, cabe aos fiéis leigos um lugar de relevo, em razão da sua ‘índole secular’, que os empenha, com modalidades próprias e insubstituíveis, na animação cristã da ordem temporal”. Daí, o documento vai explicitando: Promover a dignidade da pessoa, defender o inviolável direito à vida: “Ora, se a todos pertencem a missão e a responsabilidade de reconhecer a dignidade pessoal de cada ser humano e de defender o seu direito à vida, certos fiéis leigos são a isso chamados por um título particular: são os pais, os educadores, os agentes de saúde e todos os que detêm o poder econômico e político. […] Os fiéis leigos que, a qualquer título ou a qualquer nível, se empenham na ciência e na técnica, bem como na esfera médica, social, legislativa e econômica, devem corajosamente enfrentar os ‘desafios’ que lhes lançam os novos problemas da bioética. Como disseram os padres sinodais, ‘os cristãos devem exercer a sua responsabilidade como donos da ciência 90 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 90 17/10/2013 15:09:16 Laudelino Augusto dos Santos Azevedo e da tecnologia, não como seus escravos’”. E, por aí vai, na família, no mundo do trabalho, na política etc. Em Santo Domingo Em 1992, reuniu-se em Santo Domingo a IV conferência do CELAM, que também traz importantes considerações sobre o nosso tema. Citamos apenas alguns itens: “A paróquia, comunidade de comunidades e movimentos, acolhe as angústias e esperanças dos homens, anima e orienta a comunhão, participação e missão. ‘Não é principalmente uma estrutura, um território, um edifício, é a família de Deus, como uma fraternidade animada pelo Espírito de unidade ...’ [...] A paróquia, comunhão orgânica e missionária, é assim uma rede de comunidades. Mas ainda é lento o processo de renovação da paróquia em seus agentes de pastoral e na participação dos fiéis leigos” (DSD 58). “Hoje, como sinal dos tempos, vemos um grande número de leigos comprometidos na Igreja; exercem diversos ministérios, serviços e funções nas comunidades eclesiais de base ou atividades nos movimentos eclesiais. Cresce sempre mais a consciência de sua responsabilidade no mundo e na missão ‘ad gentes’” (DSD 95). Prosseguindo, o documento constata : “Comprova-se, porém, que a maior parte dos batizados ainda não tomou plena consciência de sua pertença à Igreja. Sentem-se católicos, mas não Igreja. […] Também se comprova que os leigos nem sempre são adequadamente acompanhados pelos Pastores na descoberta e amadurecimento da própria vocação. A persistência de certa mentalidade clerical nos numerosos agentes de pastoral, clérigos e inclusive leigos, a dedicação preferencial de muitos leigos a tarefas intra-eclesiais e uma deficiente formação privam-nos de dar respostas eficazes aos atuais desafios da sociedade” (DSD 96). Neste ponto, vale muito lembrar as palavras do Papa Francisco aos cristãos bispos do CELAM, em sua recente visita ao Brasil. Alertando quanto a “algumas tentações”, Francisco adverte: “O clericalismo é também uma tentação muito atual na América Latina. Curiosamente, na maioria dos casos, trata-se de uma cumplicidade pecadora: o pároco o clericaliza, e o leigo lhe pede por favor que o clericalize, porque, no fundo, lhe resulta mais cômodo. O fenômeno do clericalismo explica, em grande parte, a falta de maturidade e de liberdade cristã em parte do laicato da América Latina”. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 91 91 17/10/2013 15:09:16 O cristão leigo e a paróquia Nossos pastores já haviam assumido, em Santo Domingo (97), como desafio, “que todos os leigos sejam protagonistas da nova evangelização, da promoção humana e da cultura cristã. É necessário a constante promoção do laicato, livre de todo clericalismo e sem redução ao intraeclesial”. Foi nesta Conferência também que se incentivou a organização do laicato: “Promover os conselhos de leigos, em plena comunhão com os pastores e adequada autonomia, como lugares de encontro, diálogo e serviço, que contribuam para o fortalecimento da unidade, da espiritualidade e da organização do laicato” (DSD 98). No Documento 62 Para uma reflexão e aprofundamento sobre “o Cristão Leigo e a Paróquia”, necessariamente temos que retomar o documento 62 da CNBB: “Missão e Ministérios dos Cristãos Leigos e Leigas”. Começou a ser escrito em 1997, passou pela Assembléia da CNBB em 1998, transformou-se em documento de estudos (nº 77), foi para as bases, comunidades, paróquias, dioceses, pastorais, movimentos, conselhos de leigos, passou pela IV Assembléia Nacional dos Organismos do Povo de Deus em outubro de 1998 e, finalmente, foi concluído e votado na AGO da CNBB em 1999. Este histórico é importante para mostrar que é resultado de ampla participação e tem o respaldo de experiências concretas. Aliás, o histórico começa mesmo na eclesiologia conciliar, passa pelas Conferências do CELAM, pelo Sínodo Mundial sobre o Laicato, ou seja, trata-se da “maravilhosa ‘teoria’ sobre o laicato, expressa pelo Concílio”, como afirmou João Paulo II na introdução da Exortação Apostólica “Christifideles Laici” e que deve “se converter numa autêntica ‘praxe’ eclesial”, conforme conclui o texto. Podemos, então, considerar que este documento está na linha do desdobramento do Concílio e contempla avanços teóricos e práticos na caminhada da Igreja no Brasil. Passados quase 15 anos de sua promulgação, já se faz necessário novo aprofundamento, o que levou a CNBB a escolher o “laicato” como tema prioritário para a próxima Assembléia Geral de 2014. Passamos a fazer algumas citações e considerações a partir deste documento, deixando como proposta que se retome a leitura e aprofundamento do texto por inteiro. Nossa ótica, neste artigo, se refere ao tema “O Cristão Leigo e a Paróquia”. O próprio título do documento já explicita que se trata da missão e ministérios de um “sujeito eclesial” – o cristão leigo ou leiga, membro do Corpo que é a Igreja, cuja cabeça é 92 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 92 17/10/2013 15:09:16 Laudelino Augusto dos Santos Azevedo o próprio Cristo. A insistência no substantivo “cristão” é para marcar a “igualdade fundamental” de todos os membros da Igreja , a “condição cristã comum a todos os batizados”. Assim, no Corpo Eclesial temos os cristãos leigos e leigas, os cristãos consagrados e consagradas, os cristãos religiosos e religiosas, os cristãos diáconos, os cristãos presbíteros e os cristãos bispos, incluindo o cristão bispo emérito de Roma e o cristão bispo de Roma, que amamos tanto e chamamos de Papa. O documento 62, inclusive, no item 96, afirma: “O leigo é, antes de tudo, o ‘homo christianus’, a cristã ou o cristão típico”, citando São Leão Magno. Neste sentido, muito nos esclarece a frase de Santo Agostinho, citada pelo Concílio na Lumen Gentium, concluindo o item 32 sobre “a dignidade dos leigos enquanto membros do Povo de Deus”: “Atemoriza-me o que sou para vós; consola-me o que sou convosco. Pois para vós sou bispo, convosco sou cristão. Ser bispo é um dever, ser cristão é uma graça. Ser bispo é um perigo, ser cristão é salvação”. Na primeira parte,em que apresenta dados e análise da realidade da época, encontramos uma estatística interessante: “Em média, atualmente, para cada presbítero, as comunidades dispõem de mais de 50 (cinqüenta) leigos, exercendo tarefas ou ministérios pastorais. Entre os agentes de pastoral, destaca-se a presença e atuação das mulheres, que constituem o contingente maior”. (62, 39). Nos itens 65 até o 79, o documento traz reflexões e decorrências sobre a expressão ‘Povo de Deus”, que seria longo tratar neste artigo, mas que vale a pena retomar, pois incidem diretamente na presença e ação dos cristãos em geral. Traz, entre outras, a reflexão sobre a participação dos cristãos leigos e leigas na”função profética”, na “função sacerdotal” e na “função real”. No item 77, ressalta: “A expressão Povo de Deus é também apropriada para ressaltar que a missão da Igreja não é responsabilidade de alguns, mas de todos. […] É neste sentido que se pode falar de ‘Igreja toda ministerial’, de ‘corresponsabilidade diferenciada’, de ‘todos responsáveis na Igreja’ de ‘Igreja de responsabilidades apostólicas compartilhadas’, de ‘Igreja toda em serviço’, de ‘comunidade enviada de serviço’, de ‘comunhão e participação’ (Puebla) ou de ‘comunhão e missão’.” O item 90 já foi citado no início deste trabalho falando sobre a necessidade de “superação entre o ‘ad intra’ e o ‘ad extra’ “ e o 91 mostra a “diferença entre serviço cristão e ministério”, importante para os cristãos leigos e leigas. O 92 lembra que “os cristãos leigos permanecem leigos” quando assumem ministérios, citando Puebla 811: “Os ministérios não clericalizam aqueles que os recebem: estes continuam sendo leigos com Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 93 93 17/10/2013 15:09:16 O cristão leigo e a paróquia uma missão fundamental de presença no mundo”. O item 100 traz uma preciosidade: “A condição de vida do leigo é lida teologicamente como vocação. A sua existência – pautada no Evangelho, na vivência da fé, da esperança e da caridade – é, por si mesma, antes mesmo de qualquer ação, possuidora de valor evangélico. É vivendo a sua própria vida “segundo Deus” que o leigo procura o Reino. Esta é a sua vocação primeira e os compromissos que ela comporta são vontade de Deus”. Os itens 104 e seguintes, mostram a necessidade de superar o binômio “hierarquia e laicato” e assumir o binômio “comunidade – carismas e ministérios”. Isto é fundamental na dinâmica da paróquia pós-conciliar. Depois, o documento traça algumas diretrizes para a evangelização, do “conhecimento e da prática da Doutrina Social da Igreja”, do “serviço e participação na transformação da sociedade pelo bem dos pobres” com ênfase na participação política, citando, inclusive João Paulo II na Exortação Apostólica sobre a Igreja na América: “A América necessita de cristãos leigos capazes de assumir cargos de dirigentes na sociedade. É urgente formar homens e mulheres capazes de influir, segundo a própria vocação, na vida pública, orientando-a para o bem comum. No exercício da política, considerada em seu sentido mais nobre e autêntico de administração do bem comum, esses homens e mulheres podem encontrar o caminho da própria santificação” (EA 44). Finalmente, o documento trata da “formação, espiritualidade e organização” dos cristãos leigos e leigas: “Uma espiritualidade cristã, baseada na oração pessoal e comunitária, na leitura da Bíblia e na vida sacramental, capaz de sustentá-los em sua atuação no mundo – na realidade da família, da educação, do trabalho, da ciência, da cultura, da política, dos compromissos sociais e civis – para testemunhar o Evangelho e transformar a sociedade”. Traz “orientações para a formação dos leigos” e cobra : “da parte da hierarquia e particularmente dos presbíteros, espera-se efetiva disposição de acompanhar os leigos e leigas que atuam nos diferentes campos de evangelização […]. O protagonismo do cristão leigo requer profundas mudanças no estilo do governo e no exercício da autoridade por parte da hierarquia [...].” Conclui incentivando os conselhos de leigos nos diversos níveis. Uma nova paróquia As Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, votadas a cada quatro anos, sempre trazem disposições sobre os cristãos 94 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 94 17/10/2013 15:09:16 Laudelino Augusto dos Santos Azevedo leigos e leigas e sua pertença e ação nas paróquias. É desnecessário fazer citações para não ficar muito repetitivo. O atual documento de estudos, nº 104, sobre “Comunidade de comunidades: uma nova paróquia”, traz vários itens sobre a questão. Basta-nos uma citação : “A conversão pastoral da paróquia em comunidade de comunidades supõe o protagonismo dos leigos. O empenho para que haja a participação de todos nos destinos da comunidade supõe reconhecer a diversidade de carismas e de ministérios dos leigos. Até mesmo confiando-lhes a administração de uma paróquia, quando a situação o exigir, como prevê o Código de Direito Canônico” (104, 189). Trata-se do Cân 517, § 2. Eu mesmo, por 5 anos, de 1983 a 1988, como cristão leigo, fui administrador da Paróquia de Sant’Ana, em Sapucaí Mirim, na Arquidiocese de Pouso Alegre, no Sul de Minas. Uma experiência enriquecedora e maravilhosa! Tensão entre Igreja e mundo Em todos esses anos de experiência como cristão leigo: Pastoral da Juventude, Equipe de Liturgia, Administrador de uma Paróquia, Conselho de Leigos, vereador, deputado estadual, vice-prefeito, presidente do CNLB, assessor de formação para a missão, posso afirmar que muitos avanços foram conquistados mas que muito ainda precisa ser feito. Tanto na formação e atuação no âmbito eclesial, quanto, e principalmente, para a atuação como Igreja no mundo. Os cristãos leigos e leigas e também os pastores, não conhecem as “ferramentas” de construção da sociedade que precisam utilizar por força da missão: movimentos populares e sociais, sindicatos, partidos políticos, conselhos de políticas públicas, ongs, grupos de acompanhamento do Legislativo, apenas para citar alguns. Até conhecem, mas não reconhecem como “ferramentas” de construção da sociedade segundo o Projeto de Deus. O pior é que os cristãos não usam mas outros usam e aí, estamos vendo e sofrendo os resultados. Graças a Deus, está crescendo a presença qualificada dos católicos militantes na sociedade, mas precisamos melhorar bem mais. Nós, cristãos leigos e leigas, vivemos numa tensão constante entre a oração, as celebrações, os trabalhos na comunidade eclesial, que amamos e fazemos com tanto carinho e a presença nas malhas da sociedade, no mundo do trabalho, da família, testemunhando, revelando e construindo o Reino de Deus. Nós do CNLB, somos cobrados porque alguns cristãos leigos e leigas, tão imersos nas realidades do mundo, participam pouco da vida da comunidade eclesial, não atuam nas pastorais Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 95 95 17/10/2013 15:09:16 O cristão leigo e a paróquia e movimentos, chegando a faltar algumas vezes à Missa Dominical e às Festas dos Padroeiros. Acolhemos tais questionamentos e procuramos corrigir. Porém, muito nos preocupa a realidade em que muitas vezes acontece o inverso. Ou seja, cristãos leigos e leigas que não saem do âmbito eclesial, super atarefados com pastorais e movimentos, participam até diariamente das Missas, mas não assumem o compromisso sóciopolítico-transformador da realidade e construtor do Reino. Muitas vezes nem respeitam e nem apoiam os que conscientemente assumem. Outras tantas vezes, são as próprias comunidades, paróquias, movimentos e agentes de pastoral, ordenados ou não, que seguram os cristãos leigos e leigas dentro do âmbito da instituição. Ora, os Cristãos Bispos em Santo Domingo, já insistiam: “Evitar que os leigos reduzam sua ação ao âmbito intra-eclesial, impulsionando-os a penetrar os ambientes socioculturais e a serem eles os protagonistas da transformação da sociedade à luz do Evangelho e da Doutrina Social da Igreja” (DSD 98). Conclusão Concluo aludindo ao trecho final da apresentação do Documento 62 da CNBB que, de certa maneira, explica a preocupação que tive com a mensagem transmitida neste texto: O Documento retoma uma preocupação presente na Christifideles Laici, que deseja, na vida do leigo cristão, unidade e comunicação entre a inserção nas realidades temporais e a vida no Espírito, que brota da comunhão com Cristo fundada no Batismo, a fim de que leigos e leigas possam santificar-se no mundo (cf. CfL 17, que cita AA 4). Essa mesma unidade é desejável também no nível das associações e organizações católicas do laicato. Elas também devem favorecer a articulação e comunicação eficaz entre as atividades dos cristãos que estão voltadas para ordenar o mundo segundo a vontade de Deus e aquelas atividades que estão voltadas para a edificação da comunidade eclesial. Por isso, o Documento, nas suas orientações práticas, em lugar de opor – com o risco de separar – empenho dos leigos no mundo e serviço na Igreja (atividades ‘ad extra’ e atividades ‘ad intra’), traça diretrizes para que os leigos participem, com autêntica inspiração cristã, de toda a missão da Igreja, ou seja, de toda a ação evangelizadora. Esta exige ‘serviço, diálogo, anúncio e comunhão’, sem jamais descuidar da presença no mundo, no coração dos dramas humanos, e sem nunca deixar 96 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 96 17/10/2013 15:09:16 Laudelino Augusto dos Santos Azevedo de haurir o espírito de Cristo na palavra do Evangelho, na celebração da Liturgia e no encontro com as pessoas humanas, especialmente dos pobres e sofredores”. Concluindo mesmo, faço minhas as palavras do item 195 da “conclusão” do Documento: “Nele, procuramos contemplar a Igreja dos nossos melhores sonhos: Igreja fiel à Trindade, Igreja servidora do Evangelho, Igreja companheira de caminhada da humanidade, Igreja missionária, dialógica e ministerial”. E, ainda, de Medellin, 2: “Esta não deixou de ser a hora da palavra, mas tornou-se, com dramática urgência, a hora da ação!” Na dinâmica do Reino, em tempos de Francisco, vamos caminhando! Endereço do Autor: Rua Urbano Matos, 110 – casa B Bairro Vila Isabel 37505-184 Itajubá, MG Tel.: (35) 9131-0523 E-mail: [email protected] Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 97 97 17/10/2013 15:09:16 Novidade GALLAZZI, Sandro. “O Evangelho de Mateus. Uma leitura a partir dos pequenininhos”, São Paulo, Fonte Editorial/Santuário, 2013, 584 pp. Realmente, uma novidade, e bem-vinda novidade, no campo exegético. O livro faz parte do “Comentário Bíblico Latinoamericano – Novo Testamento”, coleção que começou na década de 80, lançada por três editoras associadas, Vozes/ Sinodal/Metodista. Interrompida a publicação, ela foi agora retomada por duas editoras associadas, a Fonte Editorial e a Santuário. Dos quatro evangelhos, na coleção, está ainda faltando o de Lucas, que esperamos seja publicado em breve. Sandro Gallazzi, ao qual devemos o comentário de “Ester, a mulher que enfrentou o palácio” (1987), “Primeiro Macabeus, auto-crítica de um guerrilheiro” (1993), e “Judite, a mão da mulher na história do povo”, agora nos brinda com este excelente comentário do primeiro dos evangelhos, tão apreciado ao longo da história da Igreja por nos apresentar uma síntese extraordinária dos feitos e ensinamentos do Senhor. O subtítulo é programático: “Uma leitura a partir dos pequenininhos” (sic, um diminutivo do diminutivo: pequenininho). Para quem não conhece o autor, Sandro é italiano, tendo chegado ao Brasil como missionário, no Amapá, em 1973, assessor da Comissão Pastoral da Terra desde 1983, membro integrante do movimento bíblico no Brasil e na América Latina, doutor em Ciências da Religião em 1996, autor de inúmeros artigos e livros na área da leitura popular da Bíblia. Quanto ao comentário, o estilo característico de Sandro torna a leitura muito agradável e, feita “a partir dos pequenininhos”, muito proveitosa. A Introdução (pp. 9-43) aborda: 1. “o evangelho de Mateus e a história, a memória e o mistério de Jesus”; 2. “o contexto do escrito de Mateus”; 3. “o pré-texto do escrito de Mateus”; 4. “o texto do evangelho segundo Mateus”; 5. “questões em debate”. A leitura do texto é distribuída em 7 partes: 1. A gênesis de Jesus; 2. A gênesis do Reino dos céus; 3. O caminho da libertação: um novo Êxodo; 4. Dúvidas, dificuldades e conflitos; 5. A vida nova na ekklesía: o Levítico reformulado; 6. O caminho da vida e o caminho da morte; um outro Deuteronômio é possível; 7. O evangelho da comunidade de Mateus. Uma das muitas riquezas do livro é a constante citação de textos da tradição rabínica, ajudando a compreender o relacionamento entre o próprio Jesus, a comunidade de Mateus, e a Sinagoga. Vale realmente a pena conhecer este novo “Mateus”. (N.B.P.) Encontros Teologicos 65.indb 98 17/10/2013 15:09:16 Resumo: Neste artigo, o autor se propõe a fazer uma releitura do documento de estudos 104 da CNBB, “Comunidade de comunidades: uma nova Paróquia”, observando como se insere a “missão” em seu conteúdo. Assim, primeiramente se estuda como se pode entender a missão “na” Paróquia, enquanto acolhida e ação missionária em seu território. A seguir, se busca discernir a missão “da” Paróquia, como participação na natureza missionária de toda Igreja. Palavras-chaves: ação missionária; paróquia missionária; pastoral missionária. Abstract: The aim of this study is to engage in an attempt to draw attention to the document 104 issued by CNBB, as a major contribution to “the new parish as a community of communities”, which is concerned to include its “mission” as the role of the crucial theme. To begin with, it presents a special study of the mission within the parish as the place where the missionary activity spreads to its closer context and wider adjacencies. In the second part, the author attempts to develop the meaning of “mission” applied by the parish participating in the missionary activity of the whole Church. Key words: missionary activity, parish engaged in missionary activity, missionary pastoral activity. A missão “da” e “na” paróquia Um ensaio de releitura do documento de estudos 104 da CNBB, na perspectiva da “missão” Sidnei Marco Dornelas, CS* * O autor é Assessor da Comissão Episcopal para a Missão Continental – CNBB. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013, p. 99-113. Encontros Teologicos 65.indb 99 17/10/2013 15:09:16 A missão “da” e “na” paróquia O tema central da 51ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), realizada em abril de 2013, resultou num documento de estudo, “Comunidade de comunidades: uma nova paróquia”. Esse tema despertou um grande interesse em todos aqueles que tomaram a sério a proposta lançada pela Conferência de Aparecida, em 2007: a de pôr a Igreja da América Latina em estado permanente de missão. Percebeu-se a determinação dos Bispos em colocar em pauta um tema difícil, a reestruturação e renovação das paróquias (DAp 170ss). Assim, vinha ao centro da preocupação da Igreja a quarta urgência das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, “Igreja, comunidade de comunidades”. Não por acaso, um dos temas tratados insistentemente no âmbito das atividades do projeto da Missão Continental refere-se justamente à Paróquia Missionária. Nos vários encontros promovidos em diferentes instâncias da Conferência Episcopal, e que têm por objetivo colocar em prática a proposta de Aparecida nas Igrejas Locais, a problemática das paróquias é uma das mais sensíveis. Por isso, deu-nos satisfação a oportunidade de poder acompanhar e de alguma maneira colaborar no processo de desenvolvimento desse documento. Foi com esse interesse na “missão”, antes e depois de sua publicação, que nos propomos a proceder à sua releitura, observando como se insere a “missão” em seu conteúdo, e em que medida aponta para o que seria uma paróquia mais missionária. “Comunidade missionária é comunidade acolhedora” (A missão na Paróquia) Inicialmente, é preciso dizer que a questão da “missão” da e na Paróquia não é o objeto principal das reflexões desse documento. Embora desde o primeiro parágrafo se deixe claro que se busca a “conversão pastoral” das estruturas de Igreja, num “processo de transformação permanente e integral”, e nesse sentido corresponde à proposta da Missão Continental – isso tudo não significa que haja uma intenção missiológica propriamente dita por trás de suas reflexões.1 Ao contrário, percebe-se uma utilização genérica e imprecisa do termo “missão” em vários pontos do desenrolar do documento. Na verdade, o foco do seu interesse está 1 100 Na verdade, o documento não faz referência aos grandes documentos da Igreja sobre a Missão, ou mesmo sobre a Nova Evangelização, como a Ad Gentes, a Novo Milenio Ineunte ou a Redemptoris Missio. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 100 17/10/2013 15:09:16 Sidnei Marco Dornelas, CS em resgatar o valor da vida de comunidade como o fundamento de uma renovação das estruturas paroquiais. Desse processo deveria resultar aquilo que seria uma pastoral mais missionária. De alguma maneira, uma noção um pouco mais clara sobre a pastoral missionária surge apenas no final do documento, ao tratar da “transmissão da fé: novas linguagens”. Ali temos a expressão “comunidade missionária é comunidade acolhedora” (§ 206). Aqui poderíamos dizer que a pastoral da acolhida, ou a dimensão da acolhida das atividades pastorais da comunidade paroquial, é que deveria qualificá-la como “missionária”. Talvez esse entendimento sobre a missão possa encontrar uma explicação nas opções tomadas ao longo da própria construção do texto, ao privilegiar a conversão de suas estruturas e não tanto o seu dinamismo missionário. Com efeito, desde a abordagem dos dois primeiros capítulos, com a perspectiva bíblica e teológica, foi-se optando pela noção da Paróquia como “casa”, local e ambiente de construção de relações comunitárias. Existe aqui um eco da conhecida expressão cunhada em Aparecida, da Igreja como “casa e escola de comunhão” (DAp 272; NMI 43). Em torno da “casa” como referência da comunidade paroquial é que se pensa a renovação de todas as suas práticas pastorais. A partir da iniciativa evangélica da reconstrução das relações comunitárias em seu interior, se coloca em foco a transformação de suas estruturas ultrapassadas, que minariam a sua missionariedade (§ 90). Considerando que a paróquia permanece ainda hoje como um lugar visível de presença da Igreja, mas também o espaço de referência para o encontro da comunidade, o texto do documento avança duas noções fundamentais para repensar a Paróquia no contexto das “mudanças de época”: casa e acolhida de peregrinos; comunidade como lar dos cristãos (§ 83-85). Da explicitação do sentido da “casa”, local de acolhida para os desamparados de nosso tempo, mas também imagem da Igreja feita de “pedras vivas” (§ 75), o texto aponta três dimensões fundamentais da Paróquia: a casa da “palavra”, do “pão” e da “caridade”. Em síntese, a missionariedade se revelaria na disponibilidade de receber a todos e acolhê-los no convívio fraterno. Com esse referencial fundamental, o 3º capítulo trata de tudo o que impede à Paróquia assumir sua tarefa de evangelizar nos “novos contextos” com suas “mudanças de época”: a crise da pastoral de manutenção, o excesso de burocracia, a falta de participação dos leigos, de planejamento pastoral, de inovação na evangelização, o fechamento nas Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 101 101 17/10/2013 15:09:17 A missão “da” e “na” paróquia pastorais e movimentos em si mesmos. Apesar das muitas iniciativas inovadoras, os desafios continuam inquietantes: a acentuação do intimismo religioso individual, as mudanças na estruturação das famílias, a identificação da Paróquia com o território, as estruturas obsoletas de pastoral, a cultura pós-moderna e o pluralismo cultural e religioso. No âmbito da discussão sobre a comunidade e a dimensão missionária da Paróquia, entre tantos desafios, o que mais nos interessa é aquele referente à questão da territorialidade. Apesar da abertura já presente no Código do Direito Canônico atual para outras formas de definição de Paróquia, o território ainda é o principal referencial que a constitui jurídica e pastoralmente, condicionando todas as suas atividades e sua relação com a Igreja Local.2 O documento 104 refere-se a essa dificuldade, discute como se coloca a questão da territorialidade atualmente (§ 105-109), e tenta apontar para novas realidades e possibilidades de organização que privilegiam as relações comunitárias. Entretanto, no intuito de valorizar e estimular as iniciativas de vida comunitária, o documento apenas tangencia as questões ligadas ao território, sua definição canônica e a centralidade da figura do pároco. Existe uma insistência de que a Paróquia não deve se identificar com o território, e caminhar no sentido de sua superação (§ 87; 107-109; 133). Porém, no fundo, a concepção de território como base da ação pastoral continua intacta, ainda conforme um modelo tradicional de Igreja, que corresponde por sua vez a uma visão ultrapassada de missão. Como tal, prevalece a tendência em pensar a paróquia a partir de uma concepção 2 102 No Código do Direito Canônico (CDC) de 1983 temos a definição de Paróquia: “Paróquia é uma determinada comunidade de fiéis, constituída estavelmente na Igreja Particular, e seu cuidado pastoral é confiado ao pároco como a seu pastor próprio, sob a autoridade do Bispo Diocesano.” (c. 515 §1) Essa definição pode ser complementada por outro parágrafo: “Por via de regra, a paróquia seja territorial, i.e., seja tal que compreenda todos os fiéis de um determinado território; onde, porém, for conveniente constituam-se paróquias pessoais ...” (c. 518) Essa definição já aponta para alguns traços fundamentais da Paróquia e que configuram juridicamente sua ação pastoral: a comunidade estável situada na Igreja Local; a figura central do pároco, sob a autoridade e legitimidade do Bispo Diocesano; o fato de ser uma comunidade de “fiéis”, que subentende a submissão como regra e a “cura d’almas” como padrão da ação pastoral; e o território como o que configura a jurisdição da ação pastoral, que enquadra a sua normatização e a sua prática. É verdade que o CDC de 1983 (can 518) dá uma grande abertura para a constituição de “paróquias pessoais”, ou outras modalidades de administração paroquial, visando atender necessidades pastorais das Dioceses, como a presença de grandes grupos de migrantes de uma mesma língua ou cultura, e o documento 104 também reconhece isso, mas com reservas: “...essa segunda possibilidade de criação de paróquias precisa ser aprofundada”. (§106) Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 102 17/10/2013 15:09:17 Sidnei Marco Dornelas, CS estabilizada e sedentarizada de comunidade, onde certa inércia da tradição levaria à perpetuação de estruturas de conservação: Ora, é essa visão de Igreja e missão que está em jogo quando Aparecida fala de “conversão pastoral”: passar “de uma pastoral de manutenção para uma pastoral decididamente missionária” (DAp 370); ou quando o tema da “paróquia missionária” ou da “pastoral missionária” se torna objeto de tantos debates (mesmo antes do Concílio Vaticano II).3 Existem há anos no Brasil, várias iniciativas inovadoras de missão que apontam para um novo entendimento de prática missionária, buscando a renovação da Paróquia por meio de uma nova relação com o seu território. Relembramos todo um aprendizado acumulado na prática das missões populares, que a partir do desenvolvimento das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) conheceu um novo impulso e uma enorme renovação, trazendo à consciência de milhares de leigos um novo protagonismo pastoral e missionário. É na caminhada das CEBs, em várias Dioceses no interior do país, ou na periferia das metrópoles, que temos o exemplo melhor sucedido daquilo que hoje se denomina “setorização”, “rede”, ou mesmo “comunidade de comunidades”, como forma de ação evangelizadora e missionária que busca garantir uma capilaridade das comunidades e sua organização em rede no território paroquial. Assim, 3 De fato, o tema da “paróquia missionária” conhece um histórico já antigo de debates: cf. MICHONEAU, 1960; BLEUZEN, 2004. Recentemente o tema da “paróquia missionária” foi também objeto de algumas publicações: PEREIRA, 2012; MIKUSKA, 2012. Sobre a “pastoral missionária”, cf. COLOMBO, 1993. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 103 103 17/10/2013 15:09:17 A missão “da” e “na” paróquia mesmo os espaços físicos da Paróquia e de suas comunidades ganham um novo sentido: Essa dinâmica missionária garante que as estruturas da paróquia estejam a serviço de todas as dimensões da vida dos participantes da comunidade, atingidas pela missão em todos os ambientes do território paroquial, assim como a missão encontra nas estruturas paroquiais um ponto de referência, de apoio e de motivação para uma verdadeira capilaridade da ação evangelizadora. As origens dessa contribuição positiva das CEBs para a dinamização da vida das Igrejas Locais, como primeira experiência de “setorização” de grandes territórios paroquiais, estão registradas na memória dos primeiros Encontros Intereclesiais de CEBs nos anos 1970 e 19804. O documento 104 praticamente não se reporta a essa contribuição das CEBs, seja como experiência já adquirida de uma modalidade de “setorização” paroquial, seja como uma experiência renovadora de vida comunitária e dinamismo missionário, concretizado nas iniciativas das missões populares.5 Por outro lado, a importância da metodologia das missões populares para a conversão pastoral, como aprendizado acumulado em todo o Brasil, com certeza foi o que permitiu às DGAE formularem sinteticamente o que poderia ser um programa de missão permanente no âmbito da Igreja Local, Diocese e Paróquia: Cabe a cada comunidade eclesial perguntar quais são os grupos humanos ou as categorias sociais que merecem atenção especial e lhes dar prioridade no trabalho de evangelização. Entre esses grupos estão os que têm pouco vínculo 104 4 Cf. relatórios publicados nos cadernos do SEDOC, dos anos 1975, 1976, 1978 e 1981. Um bom exemplo da contribuição dada pela formação das CEBs para a renovação da ação evangelizadora da Igreja em meio urbano pode ser comprovada pela criação de comunidades na periferia da cidade de São Paulo durante os anos 1970, por ocasião da chamada “Operação Periferia”, promovida por Dom Paulo Evaristo Arns, Cf. DOMEZI, 1995. 5 Para se conhecer um pouco mais da experiência das missões populares, ou das Santas Missões Populares como são mais conhecidas, cf. CNBB, 2007. O Pe. Luis Mosconi é o nome mais conhecido como animador da metodologia das Santas Missões Populares inspiradas na prática das CEBs. Cf. MOSCONI, 2004; Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 104 17/10/2013 15:09:17 Sidnei Marco Dornelas, CS com a Igreja. Às vezes são jovens; outras vezes, pessoas vivendo na periferia de nossas cidades, intelectuais, artistas, políticos, formadores de opinião, trabalhadores com grande mobilidade, nômades etc. Importa ir ao encontro deles, não apenas nas famílias e nas residências, mas em todos os ambientes. As missões populares, indo ao encontro do apelo da Missão Continental, têm-se mostrado um caminho eficaz. As visitas sistemáticas nos locais de trabalho, nas moradias de estudantes, nas favelas e nos cortiços, nos alojamentos de trabalhadores, nas instituições de saúde, nos assentamentos, nas prisões, nos albergues e junto aos moradores de rua, entre outros, são testemunho de uma Igreja samaritana. A pastoral da visitação pode dar maior organicidade e eficácia a este serviço. (DGAE 2011-2015 §78) Assim, podemos dizer que o caminho para a missão “no” território da Paróquia parece bem delineado, muito embora a questão das diferentes metodologias de inserção missionária permaneça ainda um campo extremamente vivo de debates. Também parece aceito que tal esforço missionário deva se prolongar em alguma forma de “pastoral missionária” permanente, e que formas novas de estruturação e planejamento pastoral devam ajudar nesse sentido. É outra perspectiva para entender a proposta de trabalho em “rede” de comunidades, grupos, movimentos e pastorais, como uma das grandes urgências da Igreja no Brasil. Na continuidade da reflexão despertada pelo documento 104 parece então muito importante que essa experiência das missões populares, da pastoral da visitação, e a própria proposta da Missão Continental oriunda da Conferência de Aparecida seja mais bem apreciada. É uma carência que se percebe nessa estruturação do documento em torno da “casa”, que parece se limitar aos espaços físicos da Paróquia, e sua centralidade na dinamização da vida pastoral. A missão, dessa forma, não seria pensada apenas como uma comunidade que acolhe bem, pronta para receber quantos que desejarem participar, mas sai em busca dos que estariam “afastados”, nos mais diferentes ambientes. Reconhecendo essa tendência de pensar pastoralmente a Paróquia de maneira fixa, como lugar de “acolhida”, ou a comunidade como “lar dos cristãos”, não há como negar o enorme esforço para tratar os grandes desafios à ação pastoral e as tarefas que se impõem: o resgate da vida comunitária, a “setorização” da sua organização territorial e o trabalho em rede, a “conversão” das estruturas de pastoral, a busca de formas de gestão mais compartilhadas, a atualização da linguagem da evangelização. Sobretudo, é de se ressaltar a consciência de que é necessária muita criatividade pastoral, a fim de que surjam novas formas de atuação pastoral no meio urbano, onde justamente a questão do território ganha em complexidade (§ 131). Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 105 105 17/10/2013 15:09:17 A missão “da” e “na” paróquia Comunidade missionária é também aquela que envia! (a missão da Paróquia) Ao lado da concepção da Paróquia como “casa”, o estudo de suas origens bíblicas, históricas e teológicas aponta, no documento 104, para outra concepção que parece ainda mais rica em intuições para a ação da Igreja na realidade atual: a da Paróquia como “estação”. Com efeito, do levantamento da etimologia da palavra “paróquia” sobressai que em sua origem (numa época sem as atuais estruturas pastorais, visibilizadas em seus espaços físicos e sua territorialidade) ela se referia a uma “habitação em pátria estrangeira”, para o “estrangeiro que se encontra de passagem” (§44-45): “Paróquia, desse modo é uma ‘estação’ onde se vive de forma provisória, pois o cristão é um caminheiro”. Em outros termos, a “casa” é também uma “estação”, o que faz lembrar uma condição de mobilidade, de desinstalação da própria comunidade, que não só nasceu da missão, acolhe os peregrinos, mas envia para a missão, para além de seu território, para ser estrangeiro, “pároikos”, nas “casas” das comunidades em outros lugares.6 Nesse sentido, é importante ressaltar também como para Paulo, o grande missionário das origens da Igreja, cada “casa” estava integrada à “rede” de comunidades espalhadas por todo o mundo conhecido, além de ser o polo dinamizador da evangelização de toda uma região (§4647). Trata-se de outra fundamentação para a proposta de “comunidade de comunidades”, que relativiza o território, apostando em novas formas de relacionamento, e logo, em novas modalidades de evangelização. O documento vai lembrar a necessidade da descentralização da vida comunitária, da inserção nas redes sociais, e que a “setorização” é antes um meio em vista de novas formas de participação e integração, revitalizando nesse novo contexto a vida da comunidade cristã (§ 154ss). No entanto, apesar da riqueza dessa proposta de interpretação do significado da paróquia para a vida da Igreja, expressa na ideia de “estação”, ela não foi suficientemente explorada no desenvolvimento do documento. Para quem busca redescobrir a dimensão missionária da Paróquia, contudo, essa intuição relembra que a experiência de fé se dá também (se não principalmente) no “caminho”, e não apenas na “casa”, 6 106 Por trás desses dois parágrafos, com suas várias citações bíblicas, existe toda uma gama de estudos bíblicos e teológicos que revela o caráter profundamente itinerante, missionário e diaspórico (expressão da grande diáspora das comunidades judaicas e cristãs) da Igreja Primitiva. Cf. a título de exemplo BOSCH, 2009; WAN, 2011. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 106 17/10/2013 15:09:17 Sidnei Marco Dornelas, CS e que a casa-comunidade nasceu na verdade da missão, e por isso é chamada a despertar o continuo desejo de partir em missão. Da leitura dos textos do Novo Testamento, sobretudo dos Atos dos Apóstolos, emerge de maneira clara como a missão constituiu a Igreja, e a Igreja permanece construindo-se e renovando-se na missão. Essa visão de Igreja ganha grande atualidade no mundo globalizado atual, que tanta perplexidade causa pelo desnorteamento de antigos referenciais, o que se convencionou chamar de “mudanças de época”. O mundo não se organiza mais por seus territórios estabilizados, como referência clara e iniludível de todas as identidades, mas pelo imenso circuito de fluxos que desterritorializam e reterritorializam permanentemente o cenário da vida cotidiana.7 As redes sociais a que o documento se refere são apenas um dos aspectos mais salientes dessa mobilidade, imprevisibilidade e provisoriedade das formas contemporâneas de pensar, agir e se organizar socialmente. Na sociedade globalizada e multicultural, em que existe a sensação do tempo imediato, do encurtamento das distâncias, a incessante troca de influências culturais e religiosas, a multiplicidade e recriação de identidades e alteridades obrigam a repensar constantemente qualquer estratégia de ação pastoral. Nesse cenário cambiante, a instabilidade é a regra de todos os dias. Como pensar a missão da Igreja nesse contexto? Antes do Concílio Vaticano II, diante da inexorável necessidade de dialogar com o mundo secularizado que agia cada vez mais de forma alheia às orientações da Igreja, muitas dessas questões já se colocavam. Nesse sentido, dentre as muitas intuições seminais do Concílio, encontrase uma referente à nova concepção da natureza missionária da Igreja: A Igreja, enviada por Deus a todas as gentes para ser «sacramento universal de salvação», por íntima exigência da própria catolicidade, obedecendo a um mandato do seu fundador, procura incansavelmente anunciar o Evangelho a todos os homens ... A Igreja peregrina é, por sua natureza, missionária, visto que tem a sua origem, segundo o desígnio de Deus Pai, na «missão» do Filho e do Espírito Santo. (AG 1-2) Ainda hoje não se tiraram todas as consequências dessa nova forma de conceber a missão na Igreja. A missão da Igreja deixa de ser vista como estratégia de expansão “geográfica”, para se tornar um traço 7 Para uma leitura sobre a questão do território nos dias atuais, cf. HAESBAERT, 2004; HAESBAERT & LIMONAD, 2007; SOUZA & PEDON, 2007. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 107 107 17/10/2013 15:09:17 A missão “da” e “na” paróquia fundamental da compreensão de sua natureza. A dimensão missionária da Igreja está enraizada na própria Trindade, entendida como “Missio Dei”.8 Portanto, é próprio da catolicidade da Igreja sair de si mesma, se desinstalar, para formar novas comunidades, que ao se irmanarem entre si formam o único Povo de Deus. Em cada comunidade que celebra a Eucaristia e se reúne em torno da Palavra de Deus temos presente a verdadeira Igreja de Cristo, na medida em que está em comunhão com todas as comunidades que igualmente se reúnem e estão espalhadas no mundo inteiro. Cada uma delas é “porção” de um mesmo Povo de Deus, e por isso se constituem por natureza uma “comunidade de comunidades”. Assim, a catolicidade das igrejas e a colegialidade de seus pastores, são dimensões essenciais que se expressam pelo mesmo empenho na missão. Por meio da missão, a Igreja se reconstitui permanentemente, e deverá estar sempre em “peregrinação”. Os Bispos em Aparecida, num capítulo essencial para rever os rumos da evangelização no continente9, tiraram as consequências desses imperativos da missão da Igreja: A conversão pastoral de nossas comunidades exige que se vá além de uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente missionária. Assim será possível que “o único programa do Evangelho continue introduzindo-se na história de cada comunidade eclesial” com novo ardor missionário, fazendo com que a Igreja se manifeste como mãe que vai ao encontro, uma casa acolhedora, uma escola permanente de comunhão missionária”. (DAp 370) Logo, perguntar pela missão “da” paróquia é ir além da preocupação com suas estruturas, ou mesmo da evangelização em seu território. O mesmo impulso que conduziu à proposta da Missão Continental, e que encontrou nas missões populares e nas CEBs, uma expressão dessa busca por paróquias descentralizadas, com comunidades vivas e participativas, de ardor missionário crescente, deve também gestar o desejo pela missão além fronteiras. Numa visão de Igreja mais ampla, a missão “na” paróquia poderia ser a “sementeira” da vocação missionária, que abre a consciência para a missão “da” paróquia. Nesse nível, não se conhecem 108 8 Para uma visão ampla dos impactos da concepção da Missio Dei no âmbito do cristianismo atual, cf. BOSCH, p. 466-467. Uma boa introdução para uma teologia da Paróquia, podemos encontrar em RAMOS, 2001. 9 Trata-se do capítulo VII, que dará as motivações principais para o projeto da Missão Continental, como iniciativa da Nova Evangelização na América Latina, mas também apontará para a importância da Missão Ad Gentes (DAp 373-379). Interessante notar que esse capítulo inicia justamente com a citação de AG 2. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 108 17/10/2013 15:09:17 Sidnei Marco Dornelas, CS mais limitações de territórios ou de estruturas de institutos, grupos ou movimentos, pois o horizonte agora é a participação na missão de toda Igreja. A espiritualidade de comunhão que animou o Vaticano II ressoa até hoje no continente latino-americano, convidando à permanente generosidade para sair em missão. A Igreja Local – como Diocese, Vicariatos ou Paróquias – é chamada, dessa forma, a fazer comunidade com outras Igrejas Locais, e por isso a sair de si mesma e animar na catolicidade uma mesma comunhão. Porém, a mentalidade reinante na maioria das lideranças das Igrejas Locais, sejam elas Bispos, Párocos, leigos atuantes, parece ainda não perceber o alcance das implicações dessa concepção da missionariedade da Igreja. Constatamos pela nossa participação nos encontros de tantos Regionais da CNBB, Dioceses e Paróquias pelo Brasil, um enorme desconhecimento da organização missionária da Igreja. Se Aparecida associa o impulso da missão permanente (a Missão Continental, a Nova Evangelização) à vocação para a missão ad gentes de toda Igreja (DAp 365-379), por outro lado, na prática das Dioceses e Paróquias a chamada pastoral “ordinária” parece completamente dissociada da “animação missionária”. A formação dos Conselhos Missionários Diocesanos (COMIDIs) e Paroquiais (COMIPAs), quando existem, é frequentemente vista com reservas, e é muito comum que eles atuem paralelamente às outras pastorais e organismos, ou que os agentes de pastoral em geral a vejam como uma “pastoral a mais”. Não percebem que sua finalidade na Igreja Local é atuar como “conselho” – instância de consulta, animação, mediação e formação de mentalidade – e, assim, contribuir para que toda a Igreja se assuma como missionária.10 Igualmente o trabalho para despertar vocações para a missão e a cooperação Intereclesial, pela preparação e envio de missionários além fronteiras, ainda é marginal na maioria das Dioceses brasileiras, quando não encarada com aberta resistência. O documento 104 não explicita diretamente nem a organização missionária nem a missão ad gentes. Apenas em alguns pontos se menciona alguma forma de cooperação entre Igrejas. No § 198, o documento fala da importância de “manter vínculos afetivos e efetivos com as paróquias de áreas missionárias, especialmente na Amazônia”, e mais adiante sobre a “bela experiência das paróquias irmãs, dentro e fora da Diocese, análogo ao projeto Igrejas10 A instrução Cooperatio Missionalis frisa que é dever de toda Igreja Local participar e colaborar na missão de toda Igreja. Cf. §2; 162-13. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 109 109 17/10/2013 15:09:17 A missão “da” e “na” paróquia irmãs”. Faltaria ser mais incisivo, e não ver a missão apenas como uma atividade ao lado de outras. Seria preciso apresentá-la como dimensão que expressa a catolicidade das Igrejas Locais, Dioceses e Paróquias, de sua abertura para irmanar-se com qualquer Igreja de qualquer lugar do mundo. A cooperação entre as igrejas, o sair em missão, deveria ser um traço normal e corriqueiro do seu ser igreja, e não percebido como algo extraordinário. No entanto, é talvez no cenário urbano, em que a territorialidade que define o espaço paroquial se dilui, que melhor percebemos como a Igreja se vê obrigada a rever as estratégias pastorais e missionárias em vista de um trabalho mais integrado e cooperativo em “rede”. No meio urbano, em que se cruzam grupos de etnias, culturas e praticas religiosas as mais diversas, é que a Igreja descobre que nesse espaço a missão ad gentes se configura como missão inter-gentes. No documento 104, em alguns parágrafos, podemos perceber essa segunda maneira como se manifesta a percepção da necessidade da cooperação intereclesial. No § 197 se afirma que a paróquia não pode se isolar das outras paróquias, que deve trabalhar em consonância com elas, guiadas pelo planejamento urbano. Trata-se ainda de uma exortação. De fato, faltaria lembrar que todas as paróquias formam uma Igreja Particular, e que a eclesialidade se manifesta na colegialidade comum do presbitério, que se dedica ao mesmo Povo de Deus que habita a mesma cidade. Esse horizonte permitiria dar uma resposta de Igreja à constatação do § 192, a propósito da “interatividade da sociedade atual”, vivendo a missionariedade da paróquia para além dos seus limites geográficos, institucionais e humanos. Exemplo de experimentação de missão inter-gentes no plano urbano, de permeabilidade e interatividade nos mais diversos níveis da Igreja, é o trabalho que em vários países e também no Brasil, as paróquias desenvolvem no atendimento aos migrantes. Pode-se testemunhar em várias cidades do mundo, em localidades com grande concentração de grupos de várias procedências e etnias, a formação de comunidades de migrantes que, ao mesmo tempo em que interagem com outros grupos no território de uma Paróquia, e dividem o uso do espaço de sua sede, mantém uma rede de relações com outras comunidades e outros grupos associativos da mesma nacionalidade e/ou etnia. Igualmente, dada a diversidade de situações de trabalho e convivência entre grupos de nacionais e estrangeiros, no território paroquial e diocesano, multiplicam-se os serviços e as iniciativas para o seu acompanhamento. Assim como com os migrantes, existiriam também exemplos de acompanhamento de 110 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 110 17/10/2013 15:09:18 Sidnei Marco Dornelas, CS jovens, moradores de rua, entre outros. Essas experimentações são um sinal claro de que em vários níveis a “criatividade missionária” à qual o documento faz apelo no § 131 já se faz sentir. No entanto, elas são ainda uma dimensão excepcional, minoritária, ainda longe de motivar a transformação do corpo todo da Igreja. Apontam caminhos e, principalmente, são um sinal profético do rosto missionário da Igreja, daquilo que pode ser a missão “da” Paróquia, se ela souber ir além das estruturas de conservação. Considerações finais Em At 13,1-5, temos um relato das origens da missão, enquanto gesto voluntário, inspirado pelo Espírito. Veio de uma Igreja local, Antioquia, nascida e formada na Diáspora, por missionários diaspóricos, e que resolve enviar alguns dos seus membros, Paulo e Barnabé, para levarem a Boa Nova a outras cidades. Ela é o retrato de uma casa-comunidade que também se torna uma “estação” para os missionários, que dela partem e para ela voltam. A continuidade da narração dessa primeira iniciativa missionária empreendida por Paulo e Barnabé, mostra que eles retornaram a Antioquia para relatar tudo que puderam realizar, as comunidades que puderam formar e as pessoas que aderiram à proposta do Reino: “... contaram tudo o que Deus fizera por meio deles e como ele havia aberto a porta da fé aos pagãos. Passaram depois algum tempo com os discípulos”. (At 14,27b) A nossa “porta da fé”, hoje, talvez nos lembre que devemos voltar a ser “estação”, com comunidades e paróquias que sejam como “casas” abertas para acolher, mas também livres e generosas para enviar e deixar partir. Ao tratar da missão “da” paróquia nos lembramos de que a finalidade da vivência da fé, a construção do Reino, não reside nela própria. Antes, a experiência da fé se faz no “caminho”. É lá que a “porta da fé” se abre, no meio da missão, e é também lá que a Igreja reencontra seu rosto e identidade. Nas DGAE 84, quando se fala da missão ad gentes, sabiamente se afirma: “Uma Igreja Particular não pode esperar atingir a plena maturidade eclesial para, só então, começar a se preocupar com a missão para além de seu território. A maturidade eclesial é consequência e não apenas condição de abertura missionária.” Relembrando os primórdios da comunidade cristã, também hoje a afirmação de sua identidade missionária é condição para que as comunidades paroquiais não apenas se renovem, mas também encontrem sua verdadeira maturidade. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 111 111 17/10/2013 15:09:18 A missão “da” e “na” paróquia Referências BLEUZEN, Brigitte, L’engagement social catholique em banlieue: l’exemple des fils de Charité. In: Les Annales de la Recherche Urbaine, n. 96, 2004, pp. 25-33, cf.: http://www.annalesdelarechercheurbaine.fr/ IMG/pdf/Bleuzen_ARU-96.pdf . 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B CEP 70200-014 Brasília, DF Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 113 113 17/10/2013 15:09:18 Livros dos nossos Professores Candido, Edinei da Rosa, “São Gregório Nazianzeno sobre a mulher”, col. “Cadernos Patrísticos”, vol. 6, n. 11 (novembro 2012), Florianópolis, 272 pp. Diz o autor, na Apresentação: “Este trabalho foi gestado em ambiente acadêmico, a partir do ano de 2002, no Instituto Patrístico Augustinianum de Roma, apresentado a uma banca ad hoc e defendido publicamente em 2005, como tese para obtenção do grau acadêmico de Doutor em teologia e Ciências Patrísticas, pela Pontifícia Universidade Lateranense também de Roma, tendo por título “A Mulher no pensamento de Gregório Nazianzeno: entre Teologia, Literatura e Pastoral”. Cumprindo as formalidades de praxe, foi publicado um excerto da Tese [...]. Desde então, concebi um amplo projeto de trabalho patrístico, do qual fazia parte a publicação integral dessa pesquisa empreendida”. A seguir, o autor refere os passos dados de então para cá, aqui em Florianópolis: a criação da revista “Cadernos Patrísticos – Textos e Estudos”, já com 11 números publicados, e a criação também da “ABEPatri – Associação Brasileira de Estudos Patrísticos”. Ainda o autor: “Enfim, sob o impulso dessa nova atmosfera, com a clara consciência do dever cumprido, coloco à disposição do público interessado o presente trabalho, produto de longos anos de pesquisa e de espera. Este livro quer ser eco e reflexo de tudo isso, mas não é só; na sua especificidade, quis prenunciar o III Encontro Nacional de Estudos Patrísticos, realizado nos dias 16 a 19-09 p.p., aqui na Ilha de Santa Catarina, com o tema “A Mulher na antiguidade cristã”. O livro, após a Introdução, se desenvolve em quatro capítulos: o primeiro, “Homem e mulher: imagem e semelhança de Deus”; o segundo, “Os estados de vida: a mulher na vida cristã”; o terceiro, “O perfil feminino da exegese do Nazianzeno”; e o quarto, “Paradigmas de análise”. Após a conclusão, seguem 15 páginas de bibliografia. Da conclusão, cito ainda o parágrafo final: “Na abrangência e no modo como trata as questões femininas, Gregório Nazianzeno deixa a inconfundível convicção da sua concepção da missão do pastor, revelando simultaneamente o seu próprio perfil. No fundo, no tratamento que faz dos estados de vida da mulher cristã, virgem, casada ou viúva, e nas recorrentes admoestações sobre como bem vivê-los, o Teólogo deixa entrever sua preocupação com o espaço que a sociedade deixa à ação e à participação feminina, em qualquer estado de vida abraçado livremente pela mulher” (p. 256). (N.B.P.) Encontros Teologicos 65.indb 114 17/10/2013 15:09:18 Resumo: Os Grupos de Reflexão/Família (GR-F) são um jeito de a Igreja se organizar para realizar sua missão evangelizadora. Contribuem para responder aos anseios por vida comunitária na medida em que ajudam a paróquia a formar redes de relações entre pessoas e grupos. O GR-F não é, portanto, um setor pastoral ou uma atividade entre outras. A proposta aqui é entender o GR-F como o jeito de a Igreja ser e o eixo dinamizador das pastorais. Isso exige desenvolver uma eclesiologia, uma espiritualidade e um planejamento pastoral que acredite nos pequenos grupos que formam a “Igreja de tamanho humano”, ajudando a paróquia a ser “comunidade de comunidades” que se sustentam no encontro, no diálogo e na cooperação. Palavras-chaves: Igreja, comunidade, diálogo, participação, missão. Abstract: A determinate Groups of Thought in collaboration with Family (GR-F) and related organizations are a new trend active in the Church dealing with the task of evangelization. Its aim is to answer to the aspirations for a life in community which will help the parish to organize a net of relationship between people and groups. It is to kept in mind that the GR-F is one among many sectors of pastoral activities. What remains to be made clear from now on is the unfolding of this new approach in terms of a kind of procedure interacting dynamically on other pastoral ministries. This involves a type of ecclesiology, spirituality, and programs which give value to small groups and constitute a “Church of a more human size”. Its objective should be quite helpful to organize the parish as a “community of communities” which will be consolidated by personal encounter, dialogue, mutual cooperation. Grupo de Reflexão, modelo de comunidade para a paróquia1 Elias Wolff* * Presbítero da diocese de Lages/SC, professor de teologia na Faculdade Católica de Santa Catarina e na PUCPR. 1 O presente artigo sintetiza a conferência do autor A Igreja nos Grupos de Reflexão/ Família, feita por ocasião da Semana Teológica realizada no Instituto Teológico de Santa Catarina em 2006, que tinha como referência principal a experiência dos Grupos de Reflexão/Família no Regional Sul IV da CNBB. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013, p. 115-132. Encontros Teologicos 65.indb 115 17/10/2013 15:09:18 Grupo de Reflexão, modelo de comunidade para a paróquia Introdução Ao refletirmos sobre a “Paróquia: comunidade de comunidades”, é oportuno resgatar uma das experiências comunitárias mais significativas vividas por longos anos em várias dioceses do Brasil: os Grupos de Reflexão/Família. Eles existem desde os anos 70 do século passado, como uma rica história de vivência da fé, de oração marcada pela bíblia e pela piedade popular, de organização de comunidades, de evangelização e atuação no meio social. É uma história vivida por gente simples, a maioria pobre, habitantes de áreas rurais ou nas periferias das cidades. Essas pessoas encontram nos Grupos de Reflexão/Família um espaço social e eclesial onde podem se expressar em suas alegrias, frustrações, esperanças. Por ser uma realidade de fé que fortalece a vivência e a convivência cristãs, a história dos GR-F é uma história de Igreja. A Igreja encontra nos Grupos um jeito próprio de ser, na simplicidade de sua organização, na liberdade de expressão, na espontaneidade dos acontecimentos, na construção do comunitário sem a complexidade institucional, com legitimidade de comunidade eclesial. Nesta hora em que se fortalece a expectativa por um modo de ser Igreja caracterizado pela simplicidade, proximidade, encontro, diálogo e cooperação, fortalecidos na mística de Francisco, os GR-F têm muito a oferecer para uma Paróquia Comunidade de Comunidades. 1 Matrizes históricas A origem dos GR-F tem suas raízes nos “Círculos Bíblicos” que surgiram na década de 70 do século passado. Em algumas dioceses, sobretudo do Nordeste Brasileiro, surgiram até um pouco antes, com a Campanha da Fraternidade na diocese de Natal, em 1962. A partir de 1964, a Campanha da Fraternidade foi adotada em todas as dioceses do país. Para bem viver a Campanha, surgiram os grupos que se reuniam para rezarem nas casas, sobretudo durante a Quaresma e o Natal. Com o tempo, passou-se a elaborar subsídios próprios para os encontros nesses grupos e muitos deles passaram a ser permanentes. Na década de 70, a maioria das dioceses do país já faziam a experiência comunitária nos Grupos. Essa experiência é vivida de modos diferentes nas diversas regiões do Brasil. No Nordeste, os Círculos Bíblicos são, pelo menos em sua origem, raíz e expressão de um modelo de Igreja que se configura como Comunidades Eclesiais de Base – CEBs. Na região Sul e Sudeste, 116 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 116 17/10/2013 15:09:18 Elias Wolff eles estão mais vinculados ao estilo tradicional da paróquia. O que há de comum é o tripé que os sustenta: a oração, a reflexão e a ação2. Eles são centrados na releitura bíblica que ilumina os fatos da vida, são coordenados por lideranças leigas, possuem uma estrutura simples, e uma significativa autonomia em relação à paróquia. Os GR-F são, portanto, uma forma de organizar a Igreja conforme as orientações do Concílio Vaticano II, centrada na eclesiologia do povo de Deus, com base no sacramento do batismo e no sacerdócio comum dos fiéis. O episcopado latino-americano, sobretudo nas assembléias de Medellín (1969) e Puebla (1978), deram força a essa forma de organização eclesial. A partir dos anos 90, se intensificam novas formas de experiência comunitária, sobretudo através dos movimentos eclesiais e das chamadas novas comunidades. Diferem muito da proposta comunitária dos GR-F em seu horizonte eclesiológico, espiritual e pastoral. Também sua organização é outra: segue-se uma liderança única, que decide, orienta, dá as “normas” da comunidade – diferente dos pequenos grupos onde há mais possibilidades para partilhar a liderança; a mensagem é mais doutrinal, moral e espiritualizante, com raríssima incidência no cotidiano social das pessoas; o encontro tem características de massa, a maioria desconhecida, diferente do pequeno grupo onde todos se conhecem; se reúnem mais para ouvir uma mensagem, homilia, lição, do que para falar e partilhar suas próprias vivências. Atualmente, os GR-F, que foram “prioridades” em muitas dioceses e paróquias até os anos 90, não recebem mais a mesma atenção pastoral. Em muitos lugares deixaram de existir aqueles pequenos grupos que se encontravam, semanalmente, para refletir e rezar os fatos da vida à luz da Palavra de Deus. 2 Características da comunidade nos GR-F Os GR-F caracterizam-se por três elementos fundamentais: Social – é uma experiência de encontro comunitário que acontece nas bases da sociedade onde estão, em sua grande maioria, pessoas pobres e simples. Teológico – alimentam a fé num Deus próximo, presente, solidário nas lutas do cotidiano. Eclesial – entendem a Igreja como Povo de Deus, 2 Carlos Mesters, Introdução Geral aos Círculos Bíblicos: Guia do dirigente, Vozes, 1981. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 117 117 17/10/2013 15:09:18 Grupo de Reflexão, modelo de comunidade para a paróquia “Igreja nas casas/Igreja doméstica”3, “o jeito normal de ser Igreja”4, “um instrumento que favorece um novo jeito de ser Igreja”5. Entende-se que “a Igreja que estamos construindo através dos Grupos de Famílias ..., é sinal do Reino”6. Essas características – social, teológica e eclesial – se expressam nos GR-F pela: – Dimensão comunitária da oração: o povo tem uma herança religiosa, na qual a oração tem destaque. O povo reza com fervor e alegria, mesmo em situações de sofrimento. A dimensão comunitária da oração forma a consciência eclesial de um jeito novo, mesmo quando se cultivam as formas tradicionais de oração vocal (terço, novenas, ladainhas, etc.). – Celebrações: são momentos privilegiados e de encontro, comunhão, animação evangélica, afirmação da esperança. É algo essencial da Igreja GR-F, presente no dia-a-dia como fator de união, festa, solidariedade e reflexão. Aqui o povo mostra sua criatividade com respeito aos símbolos, à vivacidade e fecundidade, plasmando a liturgia em sintonia com a vida concreta, com cantos, oração, a Palavra, a partilha. É uma celebração doméstica, familiar, na qual os acontecimentos do cotidiano são motivos de louvor e súplica. – Vida sacramental: a Igreja dos/nos GR-F permite uma eficaz compreensão dos sacramentos e uma revisão de sua administração7. Trata-se de sinais de santificação e edificação da Igreja, fecundados pela vivência concreta que historiza o amor/caridade, para o qual os sacramentos apontam. Os sacramentos são celebrações proféticas do Reino. Não são ritos mágicos, mas 3 Diocese de Criciuma, Orientações para Animadores e Animadoras – Grupos de Família, s/d, 3. 4 Diocese de Rio do Sul, Igrejas nas Casas – Subsídio para formação de animadores de Grupos de Reflexão, 2004. 5 Arquidiocese de Florianópolis, A Igreja nas Casas – Espiritualidade e missão dos animadores e animadoras dos Grupos de Reflexão, 2002, 13. 6 Diocese DE LAGES, Diretrizes e Orientações Pastorais da Ação Evangelizadora – 200-2003, 22. 7 118 Há dioceses que, explicitamente, vinculam GR-F e sacramentos: DIOCESE DE LAGES entende ser o GR-F o espaço para a formação/catequese do sacramento do Batismo; exorta para que catequistas e catequizandos sejam participantes ativos nos GR-F (Diretrizes e Orientações, 48ss). Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 118 17/10/2013 15:09:18 Elias Wolff sinais de vida nova, de serviço de responsabilidade solidária por um mundo melhor e por uma Igreja sacramento do Reino. Nos GR-F eles revelam toda a sua densidade e dimensão dialogal e libertadora. É importante observar, ainda, as características de institucionalidade e autonomia do GR-F. Ele não é uma organização paralela à organização da paróquia. É a própria comunidade paroquial reunida em grupos. Isso dá um caráter institucional ao GR-F, presente nas discussões dos Conselhos Diocesanos e Paroquiais que planejam a evangelização, com pertinência na catequese, na liturgia, nos movimentos etc. De outro lado, o caráter institucional dos GR-F não pode tirar-lhes a liberdade e a autonomia. Eles não podem ser enquadrados em esquemas formais a partir da instituição. A sua autonomia se manifesta: na espontaneidade e liberdade para a organização dos grupos e para a realização dos encontros; nas estruturas dos grupos em relação às estruturas paroquiais; na prioridade da atuação dos ministérios leigos em relação aos ministérios ordenados. Assim, a paróquia, a diocese, o regional, funcionam como elementos de referência para a promoção, articulação e abastecimento dos GR-F, sem torná-los dependentes de suas referências institucionais como únicas. A referência primeira, que determina o modo de ser concreto da Igreja no GR-F é a comunidade local onde o grupo existe. É com base nessa realidade que outras instâncias podem ajudar na formação e andamento dos GR-F. 3 Mas..., o que é mesmo um Grupo de Família/ Reflexão? Assumimos aqui a definição de “grupo” apresentada por PichónRivière, psiquiatra e psicanalista argentino, o qual afirma que Grupo é todo um conjunto de pessoas ligadas entre si por constantes de tempo e espaço, e articuladas por sua mútua representação interna, que se propõem explícita ou implicitamente uma tarefa que constitui sua finalidade. Podemos dizer, então, que estrutura, função, coesão e finalidade, juntamente com o número determinado de integrantes, configuram a situação grupal, que tem seu modelo natural no grupo familiar8. 8 Enrique Pichon-Riviére, O Processo grupal, Martins Fontes, 1982, 34. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 119 119 17/10/2013 15:09:18 Grupo de Reflexão, modelo de comunidade para a paróquia Utilizando essa compreensão de grupo para a nossa conversa sobre os GR-F, alguns elementos merecem consideração: a) A formação do grupo só existe onde houver “ligação” entre pessoas, um vínculo que dura no tempo e que se vive num determinado ambiente. Essa “ligação” significa que existe um processo de mútua identificação afetiva e espiritual entre os membros do grupo, com valores comuns e também com problemas comuns. É o reconhecimento disso que “liga” os membros do grupo. No caso dos GR-F, entre os elementos de ligação destacam-se a fé, a pertença a uma mesma comunidade/ Igreja, a pertença ao mesmo meio social. b) Todo grupo possui uma estrutura interna própria, de coordenação, função, finalidade, que articula a ligação entre as pessoas. Essa estrutura faz com que os GR-F sejam 1) vitais: porque vão ao encontro das realidades existenciais de seus membros, respondem aos seus anseios, expectativas, sonhos, desejos, projetos. Concretamente: os GR-F articulam a vida de fé e alimentam o desejo de uma vida socialmente feliz para todos os seus membros; 2) ágeis: porque dinamizam e fortalecem o encontro entre as pessoas usando a criatividade para responder às necessidades apresentadas por elas e/ou pelo ambiente; 3) pluriformes: de acordo com as pessoas e o ambiente, será a organização e o andamento “da situação grupal”. c) Microestruturas e busca do comunitário: os grupos são estruturas pequenas e simples, de dimensão humana, que personalizam as relações, permitem o mútuo reconhecimento e valorização das pessoas, diferente de uma certa esclerose das grandes instituições, que não satisfazem às exigências de fraternidade. Assim, os GR-F são “microcomunhões” (Besret), mostrando que a pertença à Igreja passa pela pertença a uma multidão de pequenos grupos9. Os GR-F objetivam refazer o tecido comunitário pela experiência de “ser-junto”, “ser-com”, “ser-para”, caracterizado pelo desejo de comunhão. Nessas microestruturas, a comunhão é humana, afetiva, espiritual. Tal é um critério e condição para a comunhão também institucional e doutrinal. 9 120 Almir Ribeiro Guimarães, Comunidades de Base no Brasil, Vozes, 1978, 55. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 120 17/10/2013 15:09:18 Elias Wolff d) Os GR-F são unidades estruturantes da Igreja: por eles e neles, a Igreja assume um jeito próprio de ser, uma organização específica, peculiar, de acordo com a experiência de fé que ali acontece. A essência dessa organização consiste em fazer com que as estruturas eclesiais sejam mais circulares, colegiadas, acolhedoras, inclusivas. A paróquia, historicamente “guardiã da tradição” e centro unificador único, dá espaço para outro ponto de referência, o grupo, onde acontece o encontro e a comunhão de vida entre as pessoas. Diferentes GR-F formam uma rede de contatos em diferentes níveis da vida cristã e eclesial. Esta “rede”, formada pelos GR-F, tem três tarefas: 1) possibilitar a comunhão sem fragmentar a experiência de fé; 2) possibilitar uma vida cristã autêntica num processo de educação continuada na fé; 3) ser o “centro de coordenação e animação de comunidades, grupos e movimentos” (Puebla, 640). 4 Objetivos dos Grupos de Reflexão/Família O objetivo geral dos GR-F é evangelizar, anunciando e testemunhando a libertação que vem com o advento do Reino10. Isso acontece através da experiência da “Igreja nas casas”, “na base”, no “chão da vida”. Visa “aproximar a Igreja de hoje com a vida das primeiras comunidades cristãs”11, favorecendo o amadurecimento do ser cristão na vida pessoal e comunitária. Assim, o GR-F “evangeliza a pessoa, a família, a comunidade e a sociedade como um todo, em parceria com as pastorais, movimentos e ministérios, para conscientizar o povo de Deus, fortalecer a vivência cristã e transformar a realidade social”12. Desse objetivo geral, saem os objetivos específicos para os GR-F: 1) Possibilitar a formação permanente da vida cristã, sobretudo para os adultos; 2) Vivenciar com profundidade os tempos litúrgicos; 10 11 Diocese de Criciuma, Orientações para Animadores e Animadoras – Grupos de Família, 4. Arquidiocese de Florianópolis, A Igreja nas Casas, 7. 12 Diocese de Joinville, Diretrizes pastorais 2003-2007, 35. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 121 121 17/10/2013 15:09:19 Grupo de Reflexão, modelo de comunidade para a paróquia 3) Formar para a vida comunitária, na Igreja e na sociedade; 4) Despertar e formar lideranças na comunidade eclesial e na sociedade; 5) Contribuir com a vida paroquial na realização dos projetos de evangelização, fazendo da paróquia uma “rede de comunidades” e das comunidades uma rede de grupos13; 6) Possibilitar um maior conhecimento das pessoas, sobretudo da vizinhança, criando e fortalecendo laços de amizade, fraternidade e solidariedade – superando o anonimato, o individualismo, o egoísmo, o espírito de competição; 7) Despertar a consciência crítica da cidadania cristã, favorecendo a tomada de posição frente às questões sociais que contradizem o Evangelho e ameaçam a vida humana e do planeta. Esses objetivos formam a vida cristã e eclesial, unindo oração, reflexão e ação: É exatamente a reflexão que une a oração com a ação. É pela reflexão da Palavra de Deus e da realidade social, que se consegue fazer com que a oração não seja desligada da vida, mas comprometida e comprometedora com as causas e as lutas do povo. É pela reflexão que se consegue fazer que a ação não seja desligada da fé, mas fique bem enraizada no coração de Deus. Por isso, preferimos chamar nossos grupos de Grupos de Reflexão14. 5 Desafios dos GR-F para a experiência comunitária na Igreja 5.1 Desafios para toda a Igreja Compreender a Igreja como Povo de Deus e como Igreja doméstica/família/casa nos GR-F e a partir deles, tem desafios de renovação para a Igreja toda: a) Mudanças na atual fisionomia da Igreja: na mentalidade teológica, nas relações hierárquicas, no agir pastoral. 122 13 Diocese de Criciuma, Orientações para Animadores e Animadoras – Grupos de Família, 3. 14 Arquidiocese de Florianópolis, A Igreja nas Casas, 8. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 122 17/10/2013 15:09:19 Elias Wolff b) Mudanças institucionais: além da paróquia e dos ministérios ordenados, o GR-F propõe à Igreja o reconhecimento do valor de outros espaços/mediações da vida eclesial. c) Interação entre o antigo e o novo na Igreja: não se abandona a tradição de fé, os elementos já consolidados pela tradição eclesial. Mas faz-se uma reinterpretação e atualização desses elementos para um modelo concreto de Igreja nos GR-F. Tratase de superar a “pastoral da conservação”15, como propõe o documento de Aparecida. d) Espiritualidade de serviço: a espiritualidade desenvolvida nos GR-F tem uma característica eminentemente prática, numa interação estreita entre oração e ação, no horizonte da disponibilidade, da solidariedade, da generosidade. e) Educação permanente para a vida cristã: participar dos GR-F é desenvolver um processo de catequese permanente, numa atualização constante na fé. Isso tem consequências positivas para os participantes dos grupos e para a comunidade como um todo. f) Abertura missionária: tanto o GR-F quanto a comunidade encontram sua razão de ser no testemunho do evangelho. O evangelho é proclamado e testemunhado no meio social onde vivem os cristãos e onde a Igreja se organiza. Assim, os GR-F colocam a Igreja numa “pastoral decididamente missionária”16: decidida, como querem os bispos da América Latina. g) Aceitação da variedade e organicidade dos ministérios e esclarecimento do conteúdo dos vários ministérios: a Igreja dos GR-F é uma realidade toda ministerial, com uma pluralidade de ministérios/serviços que surgem por obra do Espírito Santo e como resposta às necessidades do serviço ao Evangelho em contextos bem definidos. É preciso saber acolher as múltiplas formas de evangelização, esclarecendo as competências devidas para os diferentes modos de agir dos ministros, num entendimento preciso da função que compete a cada um e numa relação orgânica dos diferentes serviços. 15 CELAM, Documento de Aparecida, n. 370. 16 CELAM, Documento de Aparecida, n. 370. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 123 123 17/10/2013 15:09:19 Grupo de Reflexão, modelo de comunidade para a paróquia 5.2 Desafios para a paróquia O modo de a Igreja ser nos GR-F faz com que a paróquia como um todo seja por ele dinamizada: “os membros dos serviços, pastorais, movimentos e associações devem participar dos Grupos de Famílias em suas Paróquias como espaço comum para todos”17. Por isso, o GR-F é “o lugar da vivência da fé, da formação da consciência crítica, da formação de novas lideranças e da organização de comunidades vivas e participativas dos discípulos e discípulas de Jesus”18. A multiplicação dos GR-F como “microcomunhões”, como “rede”, como “micro-estruturas eclesiais”, colabora com a proposta de “setorização” das paróquias, como pede o episcopado latino-americano19. Ajuda a paróquia a ser comunidade de comunidades, rede de relações. O principal desafio para a paróquia é deixar-se vitalizar, dinamizar, desmassificar, desconcentrar, descentralizar pelos GR-F. Eles exigem da paróquia mais atuação como apoio, serviço, formação, do que como administração. A matriz não é o único ponto de referência da vida eclesial, é preciso confiar nas lideranças do GR-F. As estruturas clássicas da paróquia e seus agentes, sobretudo o clero, não respondem sozinhos a todas as necessidades da evangelização. Faz-se necessário uma presença além do formal e institucional, entendendo que a paróquia sozinha não é suficiente para garantir a pertença à Igreja. Assim, o GR-F articula-se através de concretizações e estruturas comunitárias diferentes das tradicionais, com liberdade de ação e autonomia num campo de experimentação próprio. A paróquia e suas estruturas estão a serviço dos GR-F. A matriz funciona como sinal de unidade na variedade; centro de abastecimento e apoio; deve suprir o que os GR-F não podem fazer; oferecer aos GR-F espaço de maior integração e troca fraterna. Os GR-F não são “agências” da paróquia, mas realidades de Igreja, com diferentes estruturas de pertença, relação, serviços, participação e corresponsabilidade20. É importante enfatizar que não pode haver perda do vínculo entre os GR-F e a paróquia. Nos GR-F há um jeito de ser Igreja que precisa 124 17 Diocese de Criciuma, Orientações para Animadores e Animadoras – Grupos de Família, 4. 18 Diocese de Criciuma, Plano de Pastoral. 19 CELAM, Documento de Aparecida, n. 372. 20 Dom Luís Fernandes, Como se faz uma CEBs, Vozes, 1984, 68. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 124 17/10/2013 15:09:19 Elias Wolff ser respeitado e incentivado, sempre em comunhão com a paróquia. Autonomia e comunhão. A paróquia não impõe aos grupos o seu modo como conditio sine qua non de ser Igreja; e os GR-F não caminham isoladamente da paróquia. O que se deve é desenvolver um sentido de pertença mútua, espiritual e institucional, numa liberdade solidária para com os projetos de evangelização. É isso o que faz com que os GR-F sintam-se membros de uma comunidade eclesial maior, expressão dela ao mesmo tempo que contribuem para a sua renovação. 5.3 Desafios para a comunidade Os GR-F contribuem para renovar a comunidade em alguns elementos principais: a) as comunidades de hoje não estão mais apoiada no simples fato de se ter uma tradição, ou na paróquia, ou mesmo apenas em princípios religiosos. Na sociedade e na cultura atuais, é cada vez mais difícil encontrar-se razões para a formação de comunidades. Estas só nascem ao redor de uma causa, um carisma, com vínculos afetivos. Isso se encontra em pessoas que possuem convicções. É esse o espírito dos participantes dos GR-F. E eles se sentirão membros da comunidade na medida em que nesta houver o espírito que os vincula nos grupos. Aqui, o desafio para a comunidade tornar-se acolhedora, sensível às necessidades e valores de seus membros, simples em suas estruturas, afetiva nas relações. b) Nos GR-F, o processo de construção do ser Igreja é comunitário, acontece recolhendo experiências, devagar, com paciência. Ninguém sabe tudo, todos aprendem no caminho. Há uma parceria na construção dos projetos onde se aposta mais no outro do que em si mesmo. Sabe-se reconhecer os limites, com humildade, e é preciso estar disposto a recomeçar sempre que necessário. Também isso é um desafio para a comunidade. Os membros dos GR-F se sentirão comunidade na medida da participação efetiva que nela puderem ter. c) Os GR-F levam a “investir e apostar na Igreja dos pequenos grupos”21. Igualmente, levam a crer nas pequenas comunidades, “de tamanho humano”, versus massa. A massa é uma 21 Diocese de Criciuma, Plano Diocesano de Pastoral 2002-2007, 51. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 125 125 17/10/2013 15:09:19 Grupo de Reflexão, modelo de comunidade para a paróquia “mobilização aeróbica” (Gomes de Souza). Muitos eventos e celebrações na grande comunidade são verdadeiros atos-espetáculos. A questão é se o que eles propõe tem continuidade na vida eclesial e encaminham, de fato, a vivência cristã. Muitas dessas experiências, de aparente mobilização comunitária e de conversões, pouco ou nada construíram na comunidade que permaneça. A grandiosidade das mobilizações com ares de triunfalismo e competição, perde o senso crítico sem as exigências de uma fé adulta. No GR-F, a experiência da fé, as celebrações, a prática da caridade, são ancoradas em compromissos. E é isso o que sustenta as pequenas comunidades22. d) Os GR-F são “experimentações abertas” (Gomes de Souza), as práticas procuram seus próprios caminhos. Não se pode formalizar a caminhada de modo muito rápido, sob o perigo de uma “enganosa eficiência” e um engessamento teórico da experiência prática. O GR-F não é uma experiência entre outras, mas a própria Igreja que se experimenta nele. Sobrevive porque responde à necessidade vital da fé para as pessoas e para a comunidade. Daqui a importância de a comunidade saber ser flexível em suas organizações, estruturas, lideranças. Onde não houver isso, não haverá também valorização e incorporação das experiências vividas nos GR-F. e) Os GR-F explicitam a emergência de uma novidade criadora. Trata-se do Evangelho em permanente reconstrução23. Têm-se novas problemáticas e novos horizontes ao nível do real e da consciência possível que são tratados nos grupos – questões de gênero, da subjetividade, das etnias, da corporalidade, do ecumenismo, do diálogo inter-religioso, etc. Esses horizontes ampliam a visão de fé no GR-F e exigem opções irrenunciáveis para o grupo e para a Igreja como um todo. A partir disso, emerge a necessidade de uma refundação da comunidade eclesial, o que não é simples repetição de estruturas e orientações, mas real abertura para o novo que constrói a Igreja do hoje, para falar aos homens e às mulheres de hoje, em suas situações e contextos atuais. 126 22 L.A. Gomes de Souza, “As CEBs vão bem, obrigado”, in REB, 237 (2000) 106. 23 L.A. Gomes de Souza, “As CEBs vão bem, obrigado”, in REB, 237 (2000) 107. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 126 17/10/2013 15:09:19 Elias Wolff 5.4 Desafios para uma Igreja ministerial Os GR-F são um alargamento das potencialidades dos leigos, com uma efervescência de novos serviços/ministérios. A Igreja é tarefa de todos os batizados, da criança ao adulto, homens e mulheres. Por muito tempo, os leigos e as leigas foram expropriados/as na sua linguagem, reduzidos/as a ouvintes subservientes do padre, seduzidos/as pelo brilhantismo da oratória e traje clerical ou pela sacralidade de suas decisões/ gestos. No GR-F, o/a leigo/a entende-se “agente de pastoral”, “evangelizador popular” (Puebla). É sujeito eclesial. Desenvolve-se um sentido amplo de ministérios, não resumido à prática sacramental: coordenar o grupo, arrumar o ambiente, entoar os cantos, fazer as leituras, preparar os símbolos, representar o grupo em encontros da comunidade, etc. Praticamente não existe membro do GR-F sem algum serviço. O ministério leigo acompanha espiritualmente o GR-F e o representa na comunidade eclesial. Também representa publicamente a sua comunidade eclesial perante a população civil e as autoridades políticas. Essa representação ministerial fundamenta-se em cinco eixos: o testemunho do Evangelho (martyría); o serviço-ação no mundo (solidariedade); o anúncio (profecia); a celebração (sacerdotal); a coordenação (pastoral). Esses elementos fazem com que a realidade ministerial da Igreja se manifeste naturalmente nos GR-F. A partir das necessidades do grupo é que os ministérios vão surgindo, espontaneamente. Trata-se de um dom de Deus ao grupo como tal, para o benefício de todos os que dele participam. Por isso eles não são concentrados em pessoas, são rotativos. A mesma função pode ser desenvolvida por pessoas diferentes, cada um com seu próprio modo de agir. Vê-se, assim, que os GR-F propõem um novo exercício do ministério para a comunidade eclesial. São notas características desse novo estilo a circularidade da coordenação, a democratização das decisões, a partilha das responsabilidades. 5.5 Desafios para o ministério ordenado O ministério leigo é solidário com o ministério ordenado. Ao mesmo tempo, apresenta desafios para este ministério, apontando possibilidades – e necessidades – para uma redefinição dos ministérios clássicos na Igreja. Tais desafios se explicitam na multiplicação dos novos ministérios, na descentralização do poder, na socialização da Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 127 127 17/10/2013 15:09:19 Grupo de Reflexão, modelo de comunidade para a paróquia orientação religiosa da comunidade de fé. São componentes básicos para uma Igreja setorizada, renovada, participativa, Igreja comunhão, que se assenta nos GR-F. O ministério ordenado não esgota todos os ministérios na Igreja. E na medida em que se renova na compreensão de si mesmo, vai descobrindo qual a relação mais adequada que pode ter com os ministérios laicais e com os GR-F. Nos GR-F os ministros ordenados têm uma função mistagógica e pedagógica: dar o espírito, o elã, o ânimo para o grupo. Eles oferecem as condições e o apoio necessários para a organização dos GR-F como experiência de fé. Ajudam os GR-F a se afirmarem como comunidade eclesial e chão desta. Permitindo que o ministério leigo tenha seu lugar na comunidade, o ordenado deve saber calar muitas vezes e falar na hora certa; em vez de apresentar-se como o administrador, deve ser pai, conselheiro, amigo; é o ponto de encontro, de unidade entre todos – “alma escondida de tudo” 24, o “cura do povo de Deus”, que cuida, zela, ama. 5.6 Desafios para a evangelização Os GR-F propõe uma evangelização que possibilite a comunicação de fé de um modo mais existencial/experiencial do que doutrinal/ disciplinar. A mensagem de fé nos grupos atinge as pessoas que não se satisfazem com uma fé formal/institucional. Essas pessoas sentem-se atraídas pelo evangelho na medida em que são atingidas em suas “regiões de crenças” e “regiões de incredulidade”. Para tanto, há que se propor uma nova metodologia de evangelização, capaz de reconfigurar os símbolos religiosos (imagens, ritos, linguagem, instituições) em um novo contexto de religiosidade. A “fé existencial” é aquela que responde às necessidades espirituais do cotidiano das pessoas, dando sentido às situações pessoais, familiares, sociais. Desse modo, a evangelização nos GR-F ajuda a desenvolver uma linguagem. adaptada ao meio dos ouvintes, da mensagem proclamada. É uma linguagem secularizada, leiga, sem a gramática do teologuês magisterial. Isso faz dos GR-F espaços catecumenais para muitos que não vão à Igreja oficial. E mostra, também, que as estruturas paroquiais não são suficientes para garantir a pertença comunitária, chave da evangelização em toda a Igreja. 24 128 Dom Luís Fernandes, Como se faz uma CEBs, 62-63. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 128 17/10/2013 15:09:19 Elias Wolff Dois elementos ajudam para isso: 1) na evangelização nos GR-F são as tradições de devoções e piedades populares. Essas tradições sustentam a fé das pessoas no contexto de suas experiências cotidianas. Mas em geral, essas devoções têm origem na Igreja tradicional e são acríticas. Precisam ser atualizadas em seu significado para as pessoas e comunidades de fé atuais. Isso exige ressignificação linguística, simbólica e gestual da piedade popular. Em situações de sofrimento e dor, as devoções unem o consolo e a profecia numa função crítica e de contestação, quando se constatam situações de injustiça na raiz do sofrimento humano. 2) É fundamental entender os GR-F como uma escola bíblica. Recupera-se, assim, a sua origem nos “Círculos Bíblicos”. O desafio na metodologia da evangelização da Igreja que se assenta nos GR-F é desenvolver um método de compreensão das Escrituras que torne o texto carregado de sentido para o contexto dos que o escutam nas reuniões do grupo. Trata-se da releitura bíblica, como elemento fundamental para a eficácia da evangelização nos GR-F. 5.7 Desafios para a formação dos GR-F Sem dúvida, muitos são os desafios para fazer com que o conteúdo catequético-pastoral dos GR-F (bíblico, teológico, social, espiritual) seja transmitido e assimilado com profundidade, tanto no grupo quanto na comunidade eclesial. Dentre esses desafios, destacam-se: a) A necessidade da formação de animadores/as de GR-F com uma bagagem teórica e metodológica que os capacite para uma atuação eficiente e eficaz nos grupos. As pessoas que desenvolvem o serviço de animação dos GR-F receberam uma formação comum às outras lideranças. E muitas delas não receberam formação nenhuma... Dada a especificidade dos GR-F, como aqui constatada, faz-se mister também uma formação específica, com uma teoria e metodologia adequadas à eclesiologia, pastoral e espiritualidade dos GR-F. b) O conteúdo catequético-pastoral do GR-F concorre com outros conteúdos, apresentados em outros espaços eclesiais. A vitalidade da Igreja que ele propõe não encontra fácil integração ou complementariedade nos conteúdos teológicos, pastorais e espirituais transmitidos nesses espaços. Talvez a chave para equilibrar, e se possível integrar, os diferentes conteúdos, seja Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 129 129 17/10/2013 15:09:19 Grupo de Reflexão, modelo de comunidade para a paróquia apresentar o conteúdo proposto pelo GR-F como “critério de discernimento” dos demais conteúdos. c) O conteúdo social parece, por vezes, uma “racionalização” da fé, da vida eclesial e social, por parte de quem elabora o material do GR-F. Este possui uma consciência de fé esclarecida, teologizada e politizada. Mas há que se verificar se na consciência religiosa popular essa “forma” encontra acolhida real. Nem todas as pessoas “tornam-se adultas” na fé e na vida eclesial, mesmo após anos de participação no GR-F... A maioria(?) permanece no horizonte da religiosidade popular espontânea e apolítica. Isso parece não responder à “racionalidade” presente no planejamento e articulação dos GR-F. Não se pretende oferecer nenhuma receita para superar os desafios. Buscamos apenas indicar alguns elementos que podem ajudar na busca de saídas aos impasses constatados. Primeiro, é preciso investir na compreensão da Igreja que se manifesta nos GR-F, desenvolvendo uma eclesiologia que lhes seja apropriada. A viabilidade dos GR-F está onde a Igreja se manifesta como Povo de Deus, de comunhão e participação, com espaços efetivos para a atuação dos ministérios leigos. Os GR-F são conaturais a essa forma de ser Igreja. Segundo, é preciso apresentar os GR-F como um critério de orientação, discernimento e organização da vida eclesial. Não significa que outros modos de ser e de agir não tenham espaço na Igreja. É óbvio que os GR-F não são a única forma de ser Igreja. Mas o GR-F é um modo privilegiado de expressão da Igreja. Outros modos têm lugar na medida em que se vinculam de alguma forma aos GR-F. Numa Igreja que tem por “chão” os GR-F, não poderia haver projetos e/ou ações que estejam deles totalmente desvinculados. Terceiro, é preciso assumir as consequências da opção eclesial na pastoral. O modo de ser Igreja implica no seu modo de agir. Trata-se de assumir a metodologia, os objetivos e o conteúdo teológico/eclesial dos GR-F como a metodologia, os objetivos e o conteúdo da evangelização e da organização da Igreja. Isso implica na coragem de redimensionar estruturas eclesiais, objetivos e planos pastorais, teologias e espiritualidades, a fim de que os GR-F sejam os eixos dinamizadores da comunidade eclesial. 130 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 130 17/10/2013 15:09:19 Elias Wolff Quarto, é preciso ser coerente com a espiritualidade dos GR-F. Não pode haver contradição entre o modelo de Igreja que se quer e a espiritualidade que a alimenta. A espiritualidade é o que liga o plano teórico e o prático do ser e agir da Igreja. É aqui que, de fato, se concretiza a opção pelos GR-F. O jeito de ser Igreja no GR-F envolve espiritualmente a Igreja como um todo. A opção por esse jeito de ser é um processo espiritual, e somente quem o faz entende o que significa dizer: “o GR-F é o chão da Igreja”. Tal fato envolve o intelecto – compreender Deus e a Igreja no GR-F; e o afeto – “viver/sentir” a experiência de Deus e de Igreja nos GR-F. Concluindo: Paróquia, comunidade em rede dos Grupos de Reflexão/ Família A paróquia é chamada a ser uma comunidade de comunidades, que se constitui pela rede dos vários GR-F. Paróquia-comunidade-grupos, todos vinculados por um programa comum de evangelização, na dinâmica da organização da vida cristã e na espiritualidade que forma o projeto eclesial e social. Isso garante uma interdependência das diferentes instâncias da comunidade cristã, numa relação orgânica entendida como “rede”. A rede dos GR-F garante a colaboração, a solidariedade, a ajuda mútua, o compromisso comum entre os grupos e destes com a comunidade e a paróquia. Permite a troca de experiências e de informações, a diversidade e autonomia no interior da interdependência. No sistema de rede funciona o aprendizado e o crescimento comum. Não pode haver competição, acumulação, querer tirar vantagem. Todos lutam por todos, num espírito de gratuidade, serviço, caridade. A ação é do Espírito, livre e vinculada ao mesmo tempo. Na rede, o papel da liderança se desenvolve através do diálogo. A coordenação não está autorizada a “falar em nome dos” membros do grupo. É, antes, um eco da fala deles. Não representa o pensamento do grupo, mas o transmite. Quem lidera não “age pelos outros” mas faz do seu agir uma expressão e um prolongamento da ação do grupo. A experiência da democracia nas decisões é “direta”, e não “representativa”. Na democracia direta a ação dos membros do grupo é determinante, suas opiniões e decisões dão o andamento do conjunto. Se há delegação de poder, também isso é fruto de um acordo livre, aberto e rotativo, de acordo com a disponibilidade de cada um. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 131 131 17/10/2013 15:09:19 Grupo de Reflexão, modelo de comunidade para a paróquia A rede dos GR-F é uma organização horizontal, que propõe um modelo bem definido de Igreja e de sociedade, o modelo de comunhão e participação em oposição ao modelo piramidal/hierárquico. Isso faz com que os GR-F em rede formem a comunidade paroquial num jeito próprio de ser Igreja. Na medida em que o espírito da colaboração, da participação e da corresponsabilidade vai se fortalecendo, a paróquia torna-se comunidade. Cada membro do GR-F quer fazer na paróquiacomunidade a experiência de participação que faz no próprio grupo, sendo autônomo em sua ação e responsável pelos seus efeitos na realização da sua missão. Endereço do Autor: Paróquia N.S.de Lourdes e São Luiz Rua Padre Schrader, 01 – Agronômica 88025-090 Florianópolis, SC 132 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 132 17/10/2013 15:09:19 Resumo: A partir do texto de Estudos da CNBB 104, publicado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, o presente artigo se debruça sobre o vocábulo “casa” aplicado à proposta de renovação paroquial, a fim de insistir na necessária transformação da paróquia em comunidade de comunidades. Retoma-se a expressão latina Domus Ecclesiae, confrontando-a com a expressão Ecclesia domestica, atribuída pelo recente magistério à família, no intuito de se enfatizar a relação entre as características da família, como comunidade de pessoas, e a vocação da comunidade eclesial em se tornar uma família, sobretudo pelas relações humanas caracterizadas pela fraternidade. Palavras-chave: Igreja doméstica, família, comunidade, fraternidade. Abstract: From the text of Estudos da CNBB 104, published by the National Conference of Bishops of Brazil, this article focuses on the word “home” applied to the proposed parish renewal, in order to insist on the necessary transformation of the parish as community of communities. Take up the Latin expression Domus Ecclesiae, confronting it with the phrase Ecclesia domestica, attributed by the recent magisterium to the family, in order to emphasize the relationship between the characteristics of the family as a community of people, and the vocation in the ecclesial community to become a family, especially through human relationships characterized by brotherhood. Keywords: Domestic church, family, community, brotherhood. Família como comunidade e comunidade eclesial como família: fraternidade cristã e universal na nova paróquia Rafael Cerqueira Fornasier* * O autor é assessor da Comissão Episcopal de Vida e Família, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013, p. 133-144. Encontros Teologicos 65.indb 133 17/10/2013 15:09:19 Família como comunidade e comunidade eclesial como família Introdução O texto de estudo Comunidade de comunidades: uma nova paróquia, publicado recentemente pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, através de comissão ad hoc,1 ao se apoiar no vocábulo “casa”, o emprega tanto no seu sentido alegórico quanto literal, propondo que a urgente renovação paroquial passe pela transformação da comunidade eclesial em verdadeira comunidade de comunidades ou família de famílias, que se concretiza em meio às casas dos homens e mulheres de nosso tempo. Partindo do emprego que o texto supracitado faz desse vocábulo, o presente estudo se deixa incitar ao aprofundamento da percepção da realidade familiar e comunitária da Igreja primitiva e sua transposição à proposta pastoral a que se pretende, colocando em evidência o desdobramento da experiência eclesial na casa de família ou na casa-comunidade. Em seguida, assumindo a clássica expressão Domus Ecclesiae como chave hermenêutica da vida comunitária eclesial para os nossos dias, propõe-se assumir, por um lado, a analogia com a família, a fim de se desenvolver a ideia de uma comunidade familiar, e, por outro, haurir da reflexão sobre a expressão frequentemente usada pelo magistério, Ecclesia domestica – vizinha da primeira expressão – a contribuição da família como primeira comunidade eclesial no seio da Igreja. Por fim, buscando verificar a existência de estreita ligação e interação entre Domus Ecclesiae e Ecclesia domestica, avança-se a proposta de se servir da noção de fraternidade como síntese no processo de reflexão teológica, apontando suas implicações eclesiológicas e pastorais. I A casa de família e a casa-comunidade na experiência eclesial No texto de estudos n. 104 da CNBB, o vocábulo “casa” retorna aproximadamente quarenta e cinco vezes. Num primeiro momento, o texto faz referência ao dado escriturístico, fundamentando a experiência eclesial no relato da experiência cristã vivida em casas de família: “Depois da celebração, em casa, na pequena comunidade da família, o povo aprofundava o significado das leituras ouvidas na sinagoga (cf. 2Tm 3,15; 1 134 CNBB, Comunidade de comunidades: uma nova paróquia. Estudos da CNBB 104. Brasília: Edições da CNBB, 2013. Doravante indicado pela abreviação CC. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 134 17/10/2013 15:09:20 Rafael Cerqueira Fornasier 1,5).”2 Era nas casas que, principalmente, a comunidade cristã se constituía sobre as quatro colunas indicadas por Lucas.3 Nesta perspectiva, Jesus é apontado como aquele que “recupera a dimensão caseira da fé”,4 pois ele mesmo acolhia em sua própria casa (cf. Mt 9,28; Mc 1,33). Em consonância com esta leitura bíblica, a perspectiva teológica do texto supracitado retoma a referência à experiência paulina de Igreja e afirma que São Paulo prefere usar a expressão Igreja Doméstica (Domus Ecclesiae), indicando que as comunidades se reuniam na casa dos cristãos. As comunidades cristãs de Jerusalém, Antioquia, Roma, Corinto, Éfeso, entre outras, são comunidades formadas por Igrejas Domésticas, sendo que as casas serviam de local de acolhida dos fiéis para ouvir a Palavra, repartir o pão e viver a caridade que Jesus ensinou.5 Ressalta-se que, com a progressiva expansão do mundo urbano, as comunidades da Palestina, marcadamente rurais e itinerantes, passaram a um modelo6 de Igreja mais sedentarizada, porém ainda, nos três primeiros séculos, caracterizadamente doméstica. “A casa era a estrutura básica da sociedade e estava ligada à totalidade da mesma.”7 No entanto, nos períodos históricos subsequentes, a Igreja doméstica ou familiar cede espaço para a paróquia, na qual o organização central se apoia no dado territorial.8 A experiência eclesial vivida na igreja-casa se aglutina em torno a um grupo maior, ao local de reunião ou ao templo, à comunidade paroquial.9 2 Ibid., n. 12. 3 Cf. n. 36. Segundo uma leitura que se inspira da tradição judaica, alguns exegetas apontam, em lugar de quatro colunas ou fundamentos, três. Cf. BOSSUYT, P; RADERMAKERS, J. Témoins de la Parole de la Grâce. Actes des Apôtres. 2 Lecture continue. Collection IET 16. Bruxelles: Institut d’Etudes Théologiques de Bruxelles, 1995, p. 158-161. Ver também BROWN, R. E.; FITZMYER, J. A.; MURPHY, R. E. The New Jerome Biblical Commentary. New Jersey: Prentice Hall, 1990, p. 734. 4 CC, n. 22. 5 Ibid., n. 46. Cf. Fl 1,2; Col 4, 15; Rm 16, 5; 1Cor 16, 19; At 1, 13; 2, 46. 6 A respeito dos modelos de Igreja, veja-se, por exemplo, CIPOLINI, P. C., A Igreja e seu rosto histórico. Modelos de Igreja e modelo de Igreja na cidade. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, Fasc. 244, p. 825-851, dez. 2001. 7 CC, n. 47. 8 Não é intenção deste estudo fazer uma avaliação do dado negativo ou positivo da criação das paróquias como espaços de reunião ou templos, localizados e delimitados por um território. 9 Cf. CC, n. 49. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 135 135 17/10/2013 15:09:20 Família como comunidade e comunidade eclesial como família Por um lado, fica evidenciado o real risco de massificação e anonimato dos cristãos em meio à grande assembleia. Por outro, a relação entre Igreja-casa e Igreja-comunidade sempre esteve articulada como duas faces indissociáveis da mesma realidade, ou seja, a comunidade eclesial.10 Como o afirma o próprio texto de estudo da CNBB, Jesus Cristo ele mesmo, desde sua tenra infância, experimentou a vida religiosa na casa de sua família e em relação ao templo,11 local de culto público do povo de Israel. E, mais tarde, nos ensinamentos e encontros acontecidos em casa própria e alheia ou nas sinagogas e diante de multidões.12 II Relação entre ecclesia domestica e domus ecclesiae na comunidade paroquial13 O Documento de Aparecida e as Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora no Brasil (2011-2015) insistem na importância da família na ação evangelizadora, orientando que a família seja assumida como eixo transversal de toda a vida pastoral da comunidade cristã.14 De fato, “na renovação paroquial, a questão familiar exige conversão pastoral para não perder nada do que a Igreja ensina e, igualmente, não deixar de atender, pastoralmente, as novas situações familiares.”15 Ao final do documento de estudos 104 da CNBB, algumas proposições são indicadas e necessitam ser aprofundadas e implementadas para se realizar esta conversão pastoral em vista da nova evangelização, sobretudo no âmbito da pessoa e da família. Ao se falar da caridade, o texto reforça a necessidade de “valorizar a família, santuário da vida, e os grupos de casais que se apoiam mutuamente, promovendo encontros entre as famílias”, pois “são exemplos de iniciativas para conscientizar as 10 11 136 Cf. ZULEHNER, P. M. Comunidade. In: EICHER, P. (Dir.) Dicionário de Conceitos Fundamentais de Teologia. São Paulo: Paulus, 1993, p. 102. Cf. CC, n. 12. 12 Cf. CC, n. 22-23. O fenômeno de massa merece maior atenção quanto à sua contribuição no âmbito da fé cristã. Descartá-lo simplesmente, em nome da justa preocupação com a realização da vida cristã comunitária local, significa perder algo próprio da natureza humana atestado ao longo de sua história secular e também religiosa. 13 A título de metodologia, optou-se aqui por atribuir a expressão Domus Ecclesiae à comunidade e Ecclesia domestica à família, como empregado em documentos magisteriais, embora a tradução “Igreja doméstica” seja com frequência empregada tanto a uma quanta a outra. 14 DGAE, n. 108 e DAp, n. 435. 15 CC, n. 102. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 136 17/10/2013 15:09:20 Rafael Cerqueira Fornasier pessoas sobre a importância da família na vida de cada um.” Ao mesmo tempo, “acolher, orientar e incluir nas comunidades aqueles que vivem numa outra configuração familiar, são desafios do presente.”16 Todavia, é mister reassumir o lugar da família não só como sujeito a ser evangelizado, mas como sujeito de evangelização. Retomando a expressão da Lumen gentium, n. 11, o Documento de Aparecida afirma: Ao mesmo tempo, quando essa experiência de discipulado missionário é autêntica, “uma família se faz evangelizadora de muitas outras famílias e do ambiente em que ela vive”. (FC 52; CCE 1655-1658, 2204-2206, 2685) Isso age na vida diária “dentro e através dos atos, das dificuldades, dos acontecimentos da existência de cada dia”. (FC 51) O Espírito, que faz tudo novo, atua inclusive dentro de situações irregulares, nas quais se realiza um processo de transmissão da fé, mas temos de reconhecer que, nas atuais circunstâncias, às vezes esse processo se encontra com muitas dificuldades. Não se propõe que a Paróquia chegue só a sujeitos afastados, mas à vida de todas as famílias, para fortalecer nelas a dimensão missionária.17 A fim de se evitar a simples justaposição entre comunidade familiar e comunidade eclesial, como frequentemente corre-se o risco de se fazer na prática pastoral e na pesquisa teológica, é bem-vinda a apropriação da noção de Domus Ecclesiae – Igreja doméstica – aplicada à proposta de comunidade eclesial, que, por sua vez, quer vislumbrar o novo rosto da paróquia. Contudo, haja vista a atual situação do emprego da expressão nos limites da pesquisa quase que exclusivamente no âmbito da história da Igreja primitiva ou nos estudos de liturgia, parece importante adotar, como chave hermenêutica, o emprego de expressão análoga, comumente atribuída pelo magistério da Igreja à família (Ecclesia domestica). Tarefa que poderia ser objeto de pesquisa mais aprofundada, à qual aqui só se fez rápida alusão. A correlação entre os empregos em teologia da expressão Ecclesia domestica para a família e Domus Ecclesiae para comunidade paroquial necessita de aprofundamento, ainda que en passant, a fim de se colherem eventuais contribuições para a experiência eclesial que brota 16 Ibid., n. 229. 17 DAp, n. 204. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 137 137 17/10/2013 15:09:20 Família como comunidade e comunidade eclesial como família do vis-à-vis destas duas realidades, tanto em nível teológico-pastoral quanto social.18 II.1 Ecclesia domestica como família-comunidade O Documento de Aparecida oferece grande contribuição ao presente estudo, ao afirmar que “dentro do território paroquial, a família cristã é a primeira e mais básica comunidade eclesial. Nela se vivem e se transmitem os valores fundamentais da vida cristã. Ela se chama ‘Igreja Doméstica’”.19 Na mesma linha, as conferências latino-americanas também fizeram uso da expressão Ecclesia domestica (Igreja doméstica), aplicada à família, insistindo no aspecto comunional. A família é, portanto, “comunidade de fé, de oração, de amor, de ação evangelizadora, escola de catequese”20, da qual depende em grande parte o futuro da evangelização.21 Santo Domingo declara que a família cristã é “a primeira comunidade evangelizadora.”22 A própria vida quotidiana de uma família autenticamente cristã constitui a primeira “experiência de Igreja”, destinada a confirmar-se e a progredir na gradual inserção ativa e responsável dos filhos na mais vasta comunidade eclesial e na sociedade civil. Quanto mais os esposos e pais cristãos crescerem na consciência de que a sua “Igreja doméstica” participa na vida e na missão da Igreja universal, tanto mais os filhos poderão ser formados para o “sentido da Igreja” e experimentarão a beleza de dedicar as suas energias ao serviço do Reino de Deus.23 No entanto, a família não é autossuficiente e, muitas vezes, não recebe somente apoio na vida da comunidade eclesial, como também a comunidade se torna uma verdadeira referência de família, através da 138 18 É também a preocupação manifestada por Hermann Häring acerca de uma eclesiologia que se desdobra através de elementos históricos, sociológicos e dogmáticos. Cf. HÄRING, H. Igreja/Eclesiologia. B. Teologia Sistemática. In: EICHER, P. (Dir.) op. cit., p. 375. 19 DAp, n. 204. Grifo nosso. 20 MEDELIN, n. 3.IV.7 21 Cf. PUEBLA, n. 4 do Discurso Inaugural; n. 1.2 22 SANTO DOMINGO, n. 64; ver também n. 40; 210; 214; 297; 23 JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica pós-sinodal Christifideles laici, n. 62. Grifo nosso. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 138 17/10/2013 15:09:20 Rafael Cerqueira Fornasier fraternidade, da amizade, da partilha, da solidariedade da transmissão da fé etc., que muitos não dispõem no seio da própria família de origem.24 Mesmo exercendo o seu ministério – segundo a expressão da Familiaris consortio, n. 53 – como Igreja doméstica, haja vista que a missão de evangelização e de catequese deriva da única missão da Igreja, em vista da edificação do corpo de Cristo, a família permanece em comunhão com os serviços e pastorais responsáveis pela evangelização e pela catequese no seio das comunidades locais.25 II.2 Domus ecclesiae como comunidade-família Do lado da expressão domus ecclesiae parece haver uma lacuna teológica no seu aprofundamento, haja vista que se limita, em sua acepção literal, a localizar sua incidência histórica, e avaliá-la socialmente no contexto da eclesiologia da Igreja primitiva, isso quando não é omitida totalmente.26 Em sua conotação espiritual, que reenvia à realização da própria Igreja de Cristo na comunidade local, parece haver pouca transposição de seu valor teológico para a atual experiência eclesial. Talvez isso se deva ao fato de se atribuir rapidamente ao grupo de seguidores de Jesus Cristo o termo koinonía (comunidade/comunhão), que, por sua vez, dará paulatinamente lugar ao termo ekklesia.27 Portanto, o documento de Estudo 104 da CNBB faz uma instigante escolha hermenêutica ao designar a comunidade paroquial como “casa” ou domus ecclesiae. Com efeito, esta analogia pode contribuir a resgatar a própria ideia de comunidade, a partir da noção de família. Voltando ao texto de estudos da CNBB, constata-se que, ao se retomar o Documento de Aparecida,28 juntamente com a concepção da 24 Cf. DAp, n. 119; 25 Cf. JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica pós-sinodal Familiaris Consortio, n. 53. 26 Veja, por exemplo, a rápida menção que se faz da expressão em FRANKEMÖLLE, H. Igreja/Eclesiologia. A. Teologia Bíblica. In: EICHER, P. (Dir.) op. cit. Ao se tratar da comunidade primitiva em sua obra de teologia fundamental, Salvador Pié-Ninot não menciona a domus ecclesiae. Cf. PIE-NINOT, S. La teologia fondamentale. Biblioteca di Teologia Contemporanea, BTC 121, Brescia: Queriniana, 2002, p. 514-515. 27 Cf. TILLARD, J.-M. Comunhão. In: LACOSTE, J.-Y. (Dir.) Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Paulinas-Loyola, 2004, p. 400-405. Ver também PIE-NINOT, S. op. cit., p. 514-515. 28 O termo “casa” também é empregado na reflexão das cinco urgências no documento da CNBB, Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora no Brasil – (2011-2015). Brasília: Edições da CNBB, 2011. Cf. n 29; 37. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 139 139 17/10/2013 15:09:20 Família como comunidade e comunidade eclesial como família paróquia como “comunidade de comunidades”, ela também é designada como “casa” e, por conseguinte, como família.29 Por isso, não se hesita em assumir tal imagem, rica de significados que sugerem desenvolvimentos pastorais consequentes. A paróquia como casa ou a casa-comunidade30 torna-se, então, objeto de reflexão teológica e de ação pastoral.31 A justificativa da escolha da imagem é dada nos n. 74 e 75: A ideia de paróquia como casa [...] pretende fornecer o conceito de lar, ambiente de vida, referência e aconchego de todos que transitam pelas estradas da vida. Recuperar a ideia de casa não significa fixar um território ou lugar, mas garantir o referencial para o cristão peregrino encontrar-se no lar. É uma estação, uma parada no caminho para a pátria definitiva. Uma “estação” para prosseguir na estrada de Jesus e com ele nos deter na casa dos amigos, como ele fazia em Betânia, na casa de Marta, Maria e Lázaro. Atualmente, há uma situação social de desamparo, de falta de pertença e até de deserto espiritual, que reclama uma casa de acolhida em meio às dificuldades. A paróquia pode e deve ser essa casa.32 Note-se, no texto citado, o carácter ambivalente do vocábulo “casa” empregado para a comunidade eclesial: ele assume ao mesmo tempo uma acepção dinâmica e estática. É necessário recordar que o texto de estudo já havia anteriormente trabalhando esta circularidade entre os aspectos dinâmico e estático da experiência eclesial, ao retomar a etimologia das palavras gregas paroikía, paroikein, pároikos.33 Há, portanto, uma referência a um topos, ou “localização” da ressurreição, que, segundo Zulehner, é uma determinação teológica34 tipificando a própria experiência cristã. 140 29 CC, n. 69. 30 Ibid., n. 73. 31 Cf. Veja-se, por exemplo, ALMEIDA, A. J. Ser comunidade hoje: à luz da experiência das primeiras comunidades. In: CNBB. Igreja, Comunidade de comunidades: Experiências e avanços. Projeto Nacional de Evangelização O Brasil na Missão Continental. Brasília: Edições da CNBB, 2009, p. 48-51. 32 O documento desenvolve, em seguida, sua reflexão a partir da trilogia: casa da Palavra, casa do pão e casa da caridade. Cf. n. 76-82. Ver também a interessante trilogia da comunidade, proposta por Dom Dadeus Grings. Cf. GRINGS, D. As Comunidades Paroquiais. Cartilha da Nova Paróquia. Porto Alegre: Padre Reus, 2013. 33 Cf. CC, n. 44-45. 34 Cf. ZULEHNER, P. M., op. cit., p. 101. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 140 17/10/2013 15:09:20 Rafael Cerqueira Fornasier III A fraternidade como conditio sine qua non da comunidade eclesial Ao se estudar o tema da comunidade eclesial como família, deparase quase que naturalmente com a noção de fraternidade, estreitamente ligado à teologia da filiação divina. A comunidade eclesial tem aí um grande escopo. Ela deve ser fraterna, a ponto de se intercambiar o apelativo de irmão, já que todos se sentem coparticipantes do mesmo itinerário de fé: a fé em Cristo Messias e Senhor e a consolante certeza de possuir o Espírito de Jesus; que é espírito de filiação em relação ao Pai e espírito de fraternidade em relação ao Filho.35 É notória a insistência de alguns autores na necessidade de se fomentar, gerar, desenvolver e alimentar a comunhão vivida no seio das comunidades paroquiais através da fraternidade,36 como forma adequada da existência da Igreja-comunidade ou das comunidades domésticas.37 Com efeito, “uma Igreja sólida como instituição, mas vazia de vida comunitária real, como casa ou família, não está de acordo com a inspiração do Novo Testamento.”38 O tema da fraternidade pode ser assumido como uma das grandes características do ethos próprio da comunidade eclesial, como elemento comum e estrutural necessário à indissociável interação entre domus ecclesiae e ecclesia domestica. Ademais, sua concepção antropológica e teológica39 pode receber importante aporte da experiência familiar. Pois, “graças à caridade da família, a Igreja pode e deve assumir uma dimensão mais doméstica, isto é, mais familiar, adotando um estilo de relações mais humano e fraterno.”40 A fraternidade começa geralmente no seio da família, onde se aprende e se ensina, incondicionalmente, a acolher e ser acolhido, a ouvir 35 RUCCIA, A. Parrocchia e Comunità. Bologna: EDB, 2007, p. 89. 36 Cf. PEREIRA, J. C. Paróquia Missionária à luz do Documento de Aparecida. Procedimentos fundamentais. Brasília: Edições da CNBB, 2012, p. 31-32. 37 Cf. HUBBELING, H.G. Emil Brunner. In: GUCHT, R. V.; VORGRIMLER, H. Bilan de la théologie du XXe Siècle. T. 2, Les disciplines théologiques – portraits de théologiens – l’avenir de la théologie, Tournai-Paris: Casterman, p. 742. 38 CC, n. 71. 39 A este respeito, ver RATZINGER, J. Fraternité. In: Dictionnaire de Spiritualité, T. 5, Colonne 1141, Beauchesne Editeur. Disponível em: http://www.dictionnairedespiritualite.com/. Acesso em: 02 mar. 2013. 40 JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica Familiaris consortio, n. 64. Grifo nosso. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 141 141 17/10/2013 15:09:20 Família como comunidade e comunidade eclesial como família e ser ouvido, a cuidar e ser cuidado, a se doar e a receber, a amar e ser amado. Contudo, a família se abre igualmente para além de si mesma, para dar e receber, e por isso se torna como que o seminário para a vida comunitária em nível social e eclesial. De fato, ela não somente é Igreja doméstica, mas também é célula da sociedade.41 Por isso, alguns importantes traços da fraternidade cristã são deduzidos da família e podem ser, mutatis mutandis, transpostos para a comunidade eclesial, chamada a viver uma grande fraternidade. Aqui nós devemos voltar ao original significado cristão de ekklesia, o qual, antes de tudo, significa a atual realização da Igreja no seio de particular comunidade local. A fraternidade só pode ser realizada no seio da comunidade local – no seio de particular paróquia. Heinz Schürmann observou que a questão do tamanho da comunidade paroquial deve ser organizada nessa perspectiva. Deveria ser possível para todos se conhecerem entre si. “Pois não se pode viver em fraternidade com alguém que nem mesmo se conhece”.42 As relações humanas vividas no seio da família, que caracterizam a fraternidade, são, por um lado, paradigmáticas das relações vividas em comunidade e, por outro, complementares tanto numa perspectiva antropológica quanto teológica. Neste sentido, mereceria maior atenção a relação entre a ideia de comunhão de pessoas (communio personarum), desenvolvida por uma antropologia personalista, notadamente por João Paulo II,43 e a mesma ideia aplicada à comunhão dos cristãos membros da comunidade eclesial. Y. Congar afirma: A paróquia é o ambiente para a geração e formação do ser cristão. Assim como a família é o ambiente formador do homem, não conforme esta ou aquela qualificação, tal especialidade, mas simplesmente na qualidade básica de homem, a paróquia engendra e forma homens simplesmente conforme esta nova existência e esta qualidade de membro do Segundo Adão: sem qualificação especial.44 142 41 Cícero afirma que o matrimônio – ou a família – “est principium urbis et quasi seminarium rei publicae” (Cic. off. 1.17.53 s.) apud LOBRANO, G., A teoria da respublica (fundada sobre a “sociedade” e não sobre a “pessoa jurídica”) no Corpus Juris Civilis de Justiniano (Digesto 1.2-4). Revista Seqüência, no 59, p. 13, dez. 2009. 42 RATZINGER, J. The meaning of Christian Brotherhood (Title of the German original: Die christliche Brüderlichkeit, Munich, Kösel-Verlag, 1960), San Francisco: Ignatius Press, p. 67. 43 JOÃO PAULO II, Homem e mulher o criou. São Paulo: Edusc, 2005. 44 CONGAR, Y. apud GRINGS, D. op. cit, p. 42. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 142 17/10/2013 15:09:21 Rafael Cerqueira Fornasier Por conseguinte, a família acaba se tornando para a comunidadefamília o acesso para o horizonte de todas as famílias que a compõem e, por isso mesmo, para o horizonte da vida quotidiana e para a sociedade em geral. Quanto mais o caráter social da família for levado em conta pela comunidade eclesial, mais esta contará com a importante mediação da família entre o público e o privado,45 a fim de se evitar a privatização da família e a divagação pública da comunidade. Segundo P. C. Cipolini, “É interessante notar que a família como espaço primeiro da comunidade, capaz de transformar a realidade para melhor, não é somente uma aspiração da Igreja”. E prossegue citando M. Castells: “Na verdade, acredito que a reconstrução das famílias sob formas igualitárias seja o alicerce necessário para a reconstrução da sociedade pela base”.46 A sociedade urbana cada vez mais “líquida”, para usar a expressão de Z. Bauman, não é favorável nem à comunidade nem à família.47 A fraternidade emerge como categoria relacional que garante os vínculos não só de relações essencialmente humanas, mas igualmente, de modo sempre novo – pois sempre aberta a crescer através da missão – eclesiológicos e sociais.48 A comunidade eclesial, como família de famílias, tem a vocação de realizar um intercâmbio mútuo de presença e solidariedade entre todas as famílias, cada uma pondo ao serviço das outras a própria experiência humana, como também os dons da fé e da graça.49 Não obstante as dificuldades que podem ser encontradas no dia a dia da família, da sociedade e da comunidade eclesial, a fraternidade aparece no horizonte daqueles e daquelas que desejam algo mais do que simplesmente ter “êxito” pessoal e satisfação imediata a todo custo. A exigência de fidelidade para com o outro, busca sua energia na própria fidelidade de Deus, e não é uma aposta no vazio, mas a condição para reconhecer o outro e ser reconhecido. A fraternidade cristã, portanto, depende desta fidelidade de todo homem para o bem de todos. Em sua primeira saudação à Igreja e ao mundo, após sua eleição no dia 13 de 45 Cf. DONATI, P. Perché “la” famiglia? Le risposte della sociologia relazionale. Cantagalli, p. 35-42. 46 CIPOLINI, P. C. op. cit., p. 847-848. 47 Cf. CNBB – INP. Pastoral urbana. Categorias de análise e interpretação pastorais. Brasília: Edições da CNBB, 2010. 48 Cf. BRIGHENTI, A. Evangelização inculturada e mundo urbano. In: CNBB – INP, op. cit., p. 17. 49 Cf. JOÃO PAULO II, Familiaris consortio, n. 69. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 143 143 17/10/2013 15:09:21 Família como comunidade e comunidade eclesial como família março de 2013, o Papa Francisco desejou que a Igreja, em seu caminho, seja presidida na caridade. E completou: “Um caminho de fraternidade, de amor, de confiança entre nós.” Colocar a caminhada da Igreja na perspectiva da fraternidade significa redescobrir o sentido profundo da mesma. Desta redescoberta da fraternidade e da sua vivência depende a tão almejada renovação de nossas comunidades paroquiais. Faz-se necessário: abrir ainda mais as portas da grande família que é a Igreja, concretizada na família diocesana e paroquial, nas comunidades eclesiais de base ou nos movimentos apostólicos. Ninguém está privado da família neste mundo: a Igreja é casa e família para todos, especialmente para quantos estão “cansados e oprimidos”.50 Em guisa de conclusão A experiência cristã se inicia, cresce e se aprofunda na experiência eclesial, vivida tanto no âmbito da grande assembleia quanto no âmbito da família, numa sinergia que garante o equilíbrio da vida pessoal, familiar, eclesial e social. Porém, as pequenas comunidades devem ser irrenunciáveis interfaces, permitindo a abertura da família à experiência eclesial comunitária e evitando a privatização51 da experiência de fé e o anonimato eclesial. À família como Igreja doméstica compete, em primeiro lugar, a necessária transmissão da fé, da vida e do amor em estreita relação com a Igreja doméstica, comunidade paroquial, chamada a ser família dos cristãos, presente no meio das casas e agregando todas as famílias, sobretudo as mais frágeis e desestruturadas.52 Nesta interação entre família, como igreja, e comunidade, como família, “trata se de garantir comunidades onde se encontram relações interpessoais, a comunhão de fé e a participação de todos.”53 Endereço do autor S/ESul Quadra 801 – Conjunto “B” 70200-014 Brasília, DF 144 50 Ibid., n. 85. 51 A este respeito, ver ZULEHNER, P. M. op. cit., p. 105. 52 JOÃO PAULO II, Christifideles laici, n. 26. 53 CC, n. 47. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 144 17/10/2013 15:09:21 Resumo: O breve período de pontificado do papa Francisco está mostrando um novo modo de exercício do ministério petrino. Sua presença na 28ª Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro, é uma expressão dessa novidade. Ela caracteriza-se, sobretudo, pela proximidade, acolhida, ternura, simplicidade. Não são estratégias, mas um modo de ser e de agir do papa Francisco. É de se esperar que a Igreja seja sempre mais fiel à sua natureza e missão. Abstract: The initial period of the pontificate of Pope Francis I is already quite relevant because it is showing forth a new mode of exercising his papal ministry. His active involvement during the 28th World Journey of Youth in Rio de Janeiro evidences this novelty. It stresses no doubt his proximity, forthcoming, tenderness, and simplicity. They are not to be interpreted as mere strategies but as his personal trait and procedures of Pope Francis. It is to be expected that the Church as a whole will be faithful to his nature and mission. A nudez de Francisco, o Papa Elias Wolff* * O autor, doutor em Teologia e Presbítero da diocese de Lages/SC, é professor na FACASC/Fpolis e na PUC/PR. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013, p. 145-155. Encontros Teologicos 65.indb 145 17/10/2013 15:09:21 A nudez de Francisco, o Papa A JMJ foi um fato eclesial e social, simultaneamente, impactando a Igreja e a sociedade no âmbito nacional e internacional, sobretudo através do incansável empenho dos profissionais e ativistas das redes sociais que procuravam transmitir, quase em tempo real, as imagens, os gestos e as palavras que captavam tanto do papa Francisco como da juventude que o perseguia onde quer que ele fosse pela cidade do Rio de Janeiro. Distintas expressões de fé e de culturas, de vida cristã e modelos de igreja, conseguiram uma convergência quase identitária no uníssono que ecoava, com sotaques globais e regionais, em toda a orla de Copacabana: “somos a juventude do papa”. Os jovens do papa Francisco e o papa dos jovens se encontraram sem saber quem procurava quem. A juventude foi ver o papa e o papa foi encontrar-se com a juventude. Uma mútua procura que fundia anseios, expectativas, motivações. A imagem popular de Francisco se confundia e se confirmava na imagem da multidão concentrada na praia. A grandiosidade de uma confirmava a magnitude de outra. A multidão de jovens não formava apenas um cenário para a atuação do papa (o que era desnecessário, considerando a moldura construída pela paisagem natural onde estavam), a juventude era o motivo da sua presença. Não era apenas um destinatário da sua mensagem, mas interlocutor e, de certo modo, também o conteúdo. Essa 28ª. edição da JMJ pode até se parecer com as anteriores: o papa, os jovens, emoção e fé. Mas há algo muito diferente. E não apenas por ser no Rio de Janeiro – o que já é uma tremenda peculiaridade. A novidade está na conduta do pastor. Não apenas ensina, tem vontade de aprender; não se expressa com frieza de intelectual, partilha sentimentos e emoções; não se distancia dos ouvintes, aproxima-se, toca, abençoa; não usa gestos medidos, calculados, tensos, mas espontâneos, naturais, livres; nenhuma aura de poder, e sim uma simplicidade quase desconcertante para o uso do seu cargo. Sem a distância de uma autoridade magisterial, burocrática, curial, mas desejoso de um encontro direto com as pessoas: “Queria bater em cada porta, dizer “bom dia”, pedir um copo de água fresca, beber um “cafezinho”, falar como a amigos da casa, ouvir o coração de cada um, dos pais, dos filhos, dos avós...”1. Na verdade, o papa Francisco despiu-se diante da multidão. Não vestiu as formas tradicionalmente utilizadas para o exercício do seu ofício. E em sua nudez transparece um modo de ser Igreja, cujo conteúdo se expressa 1 146 Visita à comunidade da Varginha, dia 25. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 146 17/10/2013 15:09:21 Elias Wolff na sintonia dos seus gestos com os 19 pronunciamentos que fez em apenas 8 dias, entre discursos, homilias, ângelus e entrevistas: 1 – Despojado de si mesmo: o papa é do povo, não é papa para si mesmo, não se pertence. Como discípulo de Cristo, sabe que “o discípulo não ocupa uma posição de centro”; “Não admite a auto-referencialidade: ou refere-se a Jesus Cristo ou refere-se às pessoas a quem deve levar o anúncio dele”2. E para isso é necessário a humildade, que está no DNA de Deus3. Despoja-se de si próprio doando-se a quem encontra. Na verdade, o papa não entrega a si mesmo às pessoas, mas o que recebeu como herança, a fé em Jesus Cristo. Entende que “para transmitir a herança é preciso entregá-la pessoalmente, tocar a pessoa para quem você quer doar”4. E não espera pelo outro, toma a iniciativa de ir em sua direção, com os longos braços abertos que enlaça as pessoas antes que elas possam ter qualquer reação. Sempre espontaneamente, sorridente, olho no olho. 2 – Despojado do próprio tempo: O despojamento de si, a autoentrega aos outros, a relação com a multidão, exige despojar-se também do próprio tempo. Francisco precisa percorrer da Praia do Forte até o Leme, atravessar toda a praia de Copacabana, e chegar no horário marcado para iniciar a cerimônia. Mas entre um ponto e outro, ao longo do trajeto, estão as pessoas. Se o papa é delas, o seu tempo é delas. Então os papéis se invertem: não são elas que foram encontrar o papa, é o papa que as busca. O veículo que o conduz pára quantas vezes for necessário para dedicar tempo e atenção a uma criança, um idoso, um doente. Valoriza os símbolos que lhe alcançam. Há tempo para um chimarrão. Estar com o outro, na proximidade existencial, caminhar com ele, no seu próprio ritmo, é o jeito de ser líder. “Recuperemos, queridos irmãos, a calma de saber sintonizar o passo com as possibilidades dos peregrinos, com os seus ritmos de caminhada, recuperemos a capacidade de estar-lhes sempre perto para permitir a eles abrirem uma brecha no desencanto que existe nos corações, para que possam entrar”5. O papa e o seu tempo pertencem a quem ele encontrar no caminho. 3 – Despojado de programações rígidas: E assim é com a agenda, sem formalismo rígido, inflexível, próprio dos aristocratas. Na agenda 2 Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28. 3 Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27. 4 Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27. 5 Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 147 147 17/10/2013 15:09:21 A nudez de Francisco, o Papa do papa há como incluir uma viagem a Aparecida, um encontro com os peregrinos patrícios, uma entrevista ao repórter, Tem flexibilidade para tirar proveito dos imprevistos, como a mudança do lugar da vigília: “Não quererá porventura o Senhor dizer-nos que o verdadeiro “Campus Fidei”, o verdadeiro Campo da Fé, não é um lugar geográfico, mas somos nós mesmos?”6. Muitos outros encontros, ainda que fortuitos, foram desejados – Pudera ter conseguido incluir também um encontro específico com líderes de Igrejas e Religiões.... Seria uma oportunidade privilegiada para manifestar ainda mais a abertura e renovação do ministério do papa Francisco. A brevíssima saudação feita no santuário de Aparecida e no teatro municipal do Rio de Janeiro deixaram a desejar. 4 – Despojado de temores: Para despojar-se, entregar-se ao outro, é preciso vencer todos os temores, de ordem física e espiritual. Francisco anda pelas ruas em carro aberto, expondo seu rosto sereno e seu largo sorriso para todos, sem qualquer receio de que as pessoas sejam más ou possam fazer-lhe algum mal. É do bem, veio na paz. Impossível não lembrar do filho de Pietro di Bernardone dei Moriconi e Pica Bourlemont, na medieval cidade de Assis. E à pergunta se não tem medo, responde tranquilamente ao repórter: “vim visitar gente e os trato como gente”, com o olhar, o toque, o abraço, o carinho. Por isso não pode “fechar-se em uma caixa de vidro”, impedindo a relação física, condição para uma verdadeira relação humana, afetiva e espiritual. Sente-se em casa onde chega, respeita o lugar do outro e pede licença: “que nesta hora eu possa bater delicadamente a esta porta”7. Vai aonde quer e brinca bem humorado, “sou inconsciente, não tenho medo”8. Na verdade, tem consciência de que só há relação humana por uma auto-entrega sincera, “é tudo ou nada”, conclui ao repórter. O despojamento dos temores de males físicos possibilita profunda liberdade interior para falar o que quiser e na forma que quiser. Não porque entende que como papa fala de tudo com autoridade infalível. É exatamente sobre as falhas que quer falar. Não teme abordar temas complexos, sobretudo problemas eclesiásticos que em outros tempos e por outros tantos seriam tratados a portas fechadas. E os trata como quem se propõe a tratá-los, do cardeal mais próximo ao repórter que encontra pela primeira vez. Não há aqui nenhuma inconsequência. O que há é 148 6 Homilia na Vigília, Copacabana, dia 27. 7 Acolhida no Palácio da Guanabara, dia 22. 8 Entrevista ao repórter da Globo. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 148 17/10/2013 15:09:21 Elias Wolff coragem, transparência e sinceridade de quem conta com a colaboração de todos na busca de resposta às questões que dizem respeito a todos. 5 – Despojado de títulos: Não se ouvia referências ao papa Francisco com o uso das expressões medievais costumeiramente utilizadas por seus antecessores: “sucessor de Pedro” e “Pontifex Maximus” (Leão I, séc. V), “Vicarius Christi“ (Inocêncio III, séc. XIII), “Vicarius Dei” (Inocêncio IV, séc. XIII), “sua santidade”, “santo padre”.... É, simplesmente, o papa Francisco, papa do povo, papa dos pobres. Títulos que não ostentam posses ou status, não tem a “psicologia de príncipes”9. Representante de Deus? Certamente, mas não mais do que qualquer outro ser humano, também imagem e semelhança do Criador. Mesmo o termo “papa” é desmitificado, deixando de indicar um ser quase mitológico, que toca os céus com as mãos e tem uma chave que o abre ou fecha quando quiser. Sua autoridade é despretenciosa, o verdadeiro líder da Igreja sabe que “é nisso que se exerce e mostra a autoridade: na capacidade de serviço”10. “Pappas” em Francisco recupera o significado etimológico do termo grego que designa pai venerável e amoroso, no Oriente denominava todos os bispos e não um em particular. É o jeito humano e afetivo de acolher, abraçar, beijar, cuidar, estar próximo. O que se realça não é o valor teológico ou magisterial do título, mas a dimensão existencial, ministerial, pastoral. Os gestos o confirmam. Eis o que convence, a razão da comoção de quem dele se aproxima, ou apenas o vê a centenas de metros de distância. Não buscam uma bênção como se fosse um dom extraordinário “do papa”. É de Francisco, o bispo de Roma que sabe ser Pappas, que esperam por um sorriso, um carinho, um aceno de mão, um simples olhar, uma palavra. Afeto humano que expressa a bênção divina. Isso o faz popular, mostrando um Deus povoado. O papa é pop mas não é “pop star” como os cantores da missa – aproximam-se estes do povo...? 6 – Despojado de insígnias: O despojamento dos títulos papais leva ao despojamento também das insígnias, indumentárias imperiais e corte herdadas do imperador desde o papa Silvestre (séc. V). Uma simples batina branca, uma cruz e um anel de prata, sapatos pretos, um solidéu que pode ser trocado pelo boné de um jovem peregrino. É o suficiente para um líder da Igreja: “Não tenho ouro nem prata, mas trago o que Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28. 10 Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28. 9 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 149 149 17/10/2013 15:09:21 A nudez de Francisco, o Papa de mais precioso me foi dado: Jesus Cristo!”11. O espírito de Francisco nada lembra o fausto, o luxo, a ostentação. Aceita um simples quarto residencial para hospedagem. Já alguns auxiliares, cantores sacros e populares... Chega ser constrangedor estar diante do papa utilizando cruz e anel dourados, batinas e túnicas de tecidos finos – ou caríssimos celulares, computadores e outros meios alheios às motivações pastorais. E o que dizer do uso do dinheiro dos fiéis para sustentar o supérfluo em cúrias, casas paroquiais e automóveis? O papa é claro: “ofende o coração do povo”. Revela que está a caminho uma política financeira transparente para toda a Igreja. Para revestir a Igreja O despojamento do papa Francisco tem uma finalidade: dar nova roupagem à Igreja, revesti-la, reconstruí-la. Em sua nudez, a transparência da Igreja. Não mais a roupagem da eclesiologia triunfalista, arrogante, exclusivista, sustentada na plenitudo potestatis, mais magistra do que mater, mais caput do que communio. Não a Igreja da supercomplexidade dogmática, do casuísmo moralista, do legalismo disciplinar. Essa Igreja “De servidora’ se transforma em ‘controladora’”12, mais ensina do que aprende, mais fala do que ouve, não dialoga e não convive com as diferenças. Não a Igreja auto-referenciada, burocrática, que se entende “mais como organização” do que como “Povo de Deus na sua totalidade”13. Esta Igreja transforma-se em uma ONG14. Qual é a Igreja do papa Francisco? Uma Igreja disposta a uma profunda reforma interior por um processo de conversão pastoral, em perspectiva de missão. Uma Igreja excêntrica, descentralizada, profeticamente aberta para o mundo. É preferível uma Igreja que vive nas ruas mesmo com o risco de sofrer algum acidente, do que uma Igreja adoentada por estar fechada em casa, recolhida no templo: “É nas favelas, nos cantegriles, nas villas miseria, que nós devemos ir procurar e servir a Cristo [...] Não podemos ficar encerrados na paróquia, nas nossas comunidades [...] Não se trata simplesmente de abrir a porta para acolher, 11 150 Acolhida no Palácio da Guanabara, dia 22. 12 Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28. 13 Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28. 14 Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 150 17/10/2013 15:09:21 Elias Wolff mas de sair pela porta fora para procurar e encontrar15. E aos jovens esparramados na praia a exigência é clara: “Peço que vocês também sejam protagonistas, superando a apatia e oferecendo uma resposta cristã às questões políticas que se colocam em diversas questões do mundo. Envolvam-se num mundo melhor. Não sejam covardes, metam-se, saiam para a vida. Jesus não ficou preso dentro de um casulo. Saiam às ruas como fez Jesus”16. A Igreja que não é auto-referenciada tem referências claras. Primeiro, Cristo e seu Evangelho, a razão e o caminho da Igreja. Segundo, os pés no chão, no contexto sócio-cultural em que vivem os fiéis. Terceiro, o Vaticano II, que ainda precisa ser recebido. E para a Igreja da América Latina, o Documento de Aparecida “continua animando os trabalhos do CELAM para a anelada renovação das Igrejas particulares”, assumindo a conversão pastoral. E urge reconhecer que “estamos um pouco atrasados no que a Conversão Pastoral indica” 17. As notas principais dessa Igreja são: 1) Maternidade, “a mãe não se conhece por correspondência”, toca, abraça, beija, dá carinho, cuida. “’Pastoral’ nada mais é que o exercício da maternidade da Igreja. Ela gera, amamenta, faz crescer, corrige, alimenta, conduz pela mão...”18; 2) Proximidade, igreja sempre disponível para o outro, de forma samaritana. Ela se faz próxima para “fazer companhia ... acompanha o caminho pondo-se em viagem com as pessoas ... que se dê conta de como as razões, pelas quais há quem se afaste, contém já em si mesmas também as razões para um possível retorno”19. 3) Solidária: Estar próximo é ajudar a carregar a cruz tocando a cruz de Cristo: “Ninguém pode tocar a Cruz de Jesus sem deixar algo de si mesmo nela e sem trazer algo da Cruz de Jesus para sua própria vida”20. 4) Misericórdia, a Igreja não coloca a lei e a disciplina como primeiros critérios para a pertença à comunidade de fé, mas o amor e o perdão. Para os tempos atuais, “serve uma Igreja capaz de redescobrir as entranhas maternas da misericórdia”21; 5) Diálogo, a Igreja promove a “cultura do encontro”; se relaciona com a 15 Missa na Catedral do Rio de Janeiro, 27/0. 16 Homilia na vigília, Copacabana, dia 27. 17 Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28. 18 Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27. 19 Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27. 20 Homilia na Via Sacra, Cobacabana, dia 26. 21 Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 151 151 17/10/2013 15:09:21 A nudez de Francisco, o Papa sociedade, com as outras igrejas e as religiões para, a partir da própria fé, encontrar-se num projeto comum de cooperação para o bem de toda a humanidade. Seus ministros são “servidores da comunhão e da cultura do encontro”, pessoas de diálogo: “Entre a indiferença egoísta e o protesto violento, há uma opção sempre possível: o diálogo”22. “Diálogo, diálogo, diálogo...” sabendo que “Não queremos ser presunçosos, impondo as ‘nossas verdades’”23, com todos buscamos “estabelecer um diálogo de amigos”24. 6) Inclusiva: a) Igreja que acolhe a todos, independente de condição social, cultural, religiosa: “O Evangelho é para todos, e não apenas para alguns. Não é apenas para aqueles que parecem a nós mais próximos, mais abertos, mais acolhedores. É para todas as pessoas”25. b) Abre-se para a ministerialidade de todos os batizados, sobretudo o ministério laical “sem manipulação ou indevida submissão”, servindo-se dos Conselhos. E pergunta: “Tanto estes (Conselhos Diocesanos) como os Conselhos paroquiais de Pastoral e de Assuntos Econômicos são espaços reais para a participação laical na consulta, organização e planejamento pastoral?” Pergunta crucial para os tempos de concentração clerical da pastoral. E constata com pesar: “Acho que estamos muito atrasados nisso”26. c) Que valoriza a mulher. As mulheres “constituem uma força quotidiana que faz evoluir” a sociedade e a Igreja27. “ Não reduzamos o empenho das mulheres na Igreja; antes, pelo contrário, promovamos o seu papel ativo na comunidade eclesial. Se a Igreja perde as mulheres, na sua dimensão global e real, ela corre o risco da esterilidade.... Tende isso em séria consideração!”28. Ir ao Santuário de Aparecida foi como rezar para a Igreja mulher. Como o papa teria se alegrado se tivesse visto alguma mulher como principal condutora de “ao menos um” dos eventos centrais da JMJ em Copacabana... 7) Missionária: a missão da Igreja é recuperar e fortalecer o sentido da vida das pessoas orientando-as para que “bote Fé”, “bote esperança”, “bote amor”, “bote Cristo em suas vidas”29. É encorajar as pessoas para que “não deixem que lhes roubem a 152 22 Aos políticos, diplomáticos, empresários..., 27/07. 23 Homilia na missa na Catedral do Rio de Janeiro, dia 27. 24 Cerimônia de boas-vindas, Palácio da Guanabara, dia 22. 25 Homilia na missa de envio, Copacabana, dia 28. 26 Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28. 27 Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27. 28 Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27. 29 Saudação do papa na acolhida aos jovens, Copacabana, dia 25. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 152 17/10/2013 15:09:21 Elias Wolff esperança”30, conservando-a, com abertura às surpresas de Deus e vivendo na alegria31. É uma igreja que “sai para fora de si mesma”, existe para o testemunhar o evangelho no mundo, vai além da “pastoral da conservação”. Urge fortalecer a Missão Continental, a qual é programática (atos de índole missionária) e paradigmática (colocar em chave missionária as atividades habituais das igrejas particulares). “Decididamente pensemos a pastoral a partir da periferia, daqueles que estão mais afastados, daqueles que habitualmente não frequentam a paróquia. Também eles são convidados para a Mesa do Senhor”32. 8) Atenta aos pobres: Na ação da Igreja tem preferência o pobre, injustiçado e descartado: Por isso a missão contribui para a transformação do mundo: “Não se cansem de trabalhar por um mundo mais justo e mais solidário! Ninguém pode permanecer insensível às desigualdades que ainda existem no mundo!”33. Essas notae ecclesiae franciscanas ajudam a Igreja a vencer as tentações da ideologização da mensagem evangélica, da ideologização psicológica, a proposta gnóstica, a proposta pelagiana, o funcionalismo, o clericalismo34. Então a Igreja se entende como o campo onde Deus semeia, onde se treina o seguimento de Cristo, e um canteiro de obras onde Deus constrói35. O resultado da sua ação pastoral depende da “criatividade do amor”, não é “expansão de um aparato governamental ou de uma empresa”. Francisco acusa: “existem pastorais ‘distantes’, pastorais disciplinares que privilegiam os princípios, as condutas, os procedimentos organizacionais… obviamente sem proximidade, sem ternura, nem carinho. Ignora-se a ‘revolução da ternura’, que provocou a encarnação do Verbo”36. É preciso perguntar: “somos ainda capazes de aquecer o coração?”37. Pois “Evangelizar significa testemunhar pessoalmente o amor de Deus, significa superar os nossos egoísmos, significa servir, inclinando-nos para lavar os pés dos nossos irmãos, tal como fez Jesus”38. Atenta aos sinais dos tempos, a Igreja se pergunta continuamente, “Para onde Jesus nos manda? Não há fronteiras, não há limites” é preciso “levar 30 Visita no Hospital São Francisco de Assis, dia 24. 31 Homilia no Santuário Nacional de Aparecida, dia 24. 32 Homilia na missa na Catedral do Rio de Janeiro, 27. 33 Visita à Comunidade da Varginha, dia 25. 34 Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28. 35 Homilia da Vigília, Copacabana, dia 27. 36 Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28. 37 Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27. 38 Homilia na missa do envio, Copacabana, dia 28. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 153 153 17/10/2013 15:09:22 A nudez de Francisco, o Papa Cristo para todos os ambientes, até as periferias existenciais, incluindo quem parece mais distante, mais indiferente”39. Conseguirá o papa Francisco dar essa nova roupagem à Igreja? Deixa claro que não se satisfaz com remendos, as mudanças não deverão ser superficiais, mas estruturais. Sim, tem consciência dos muitos obstáculos e resistências que deverá enfrentar. Sobretudo da parte de quem não compreende “o caminho que Deus quer para ‘hoje’”, e fechase em posições “restauracionistas” de linguagens, ritos e instituições anacrônicas ao tempo em que vivemos. Isso “não é do bom espírito. Deus é real e se manifesta no ‘hoje’”40. Mas renovar a Igreja é próprio do espírito de Francisco, é sua missão: “A ‘mudança de estruturas’ (de caducas a novas) não é fruto de um estudo de organização do organograma funcional eclesiástico, de que resultaria uma reorganização estática, mas é consequência da dinâmica da missão. O que derruba as estruturas caducas ... é justamente a missionariedade”41. Conseguirá o ser de Francisco, o papa, fazer que se torne o modus essendi e o modus operandi da Igreja? Conseguirá o espírito de Francisco penetrar nas estruturas eclesiásticas? Difícil responder, mas uma coisa é certa: o papa soube por onde iniciar a renovação eclesial, por si mesmo. Num instante, o papa Francisco parece responder ao clamor pela reforma do papado que atravessa os séculos na história da Igreja. Mais que um novo “pontífice”, personifica a renovação do pontificado. Entende-se papa porque é, primeiramente, bispo. Não se posiciona como bispo de todas as dioceses do mundo, não obstante as prerrogativas jurídicas do seu ministério. É bispo de Roma. Casou com sua Igreja local e critica a “poligamia episcopal”. Não tem preocupação em mostrar que a Igreja de Roma é mater, caput et magistra de todas as Igrejas particulares. Não quer romanizar o catolicismo, nem uniformizar a vivência da fé. Não intimida pela onipresença, onisciência, onipotência de quem se considera “Deus mesmo na terra”. Recorda a todos que o papa é um bispo e fala de “bispo para bispo, de igual para igual”. E compreende-se necessitado dos outros – “rezem por mim”; precisa ouvi-los – prefere os rumores da convivência na Casa Santa Marta do que o silêncio da solidão dos aposentos privados; pede perdão se a 154 39 Homilia na missa de envio, Copacabana, dia 28. 40 Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28. 41 Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 154 17/10/2013 15:09:22 Elias Wolff fala ofende alguém. Para ser líder na Igreja “não é suficiente a burocracia central, mas é preciso fazer crescer a colegialidade e a solidariedade”. Por isso não é papa solus, trabalha em equipe e pede aos ministros da Igreja que valorizem as parcerias e os/as cooperadores/as. Deve-se trabalhar pela comunhão eclesial, como “uma teia que deve ser tecida com paciência e perseverança”42. Comunhão que se constrói por “uma rede de testemunhos regionais que, falando a mesma linguagem, assegurem em todos os lugares, não a unanimidade, mas a verdadeira unidade na riqueza da diversidade”43. É um novo jeito de ser líder na comunidade, ser bispo na Igreja, com “a atitude mais do pastor do que de quem comanda”, que não ameaça, não amedronta, não exclui, “não manipula”. Aponta para uma renovação da Igreja por uma “conversão pastoral”, e vice-versa, de relação humana, teológica e pastoral acima do legalismo. Conseguirá o papa Francisco revestir com o seu próprio hábito a Igreja dos nossos tempos...? Endereço do Autor: Paróquia N.S.de Lourdes e São Luiz Rua Padre Schrader, 01 – Agronômica 88025-090 Florianópolis, SC 42 Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27. 43 Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 155 155 17/10/2013 15:09:22 Encontros Teologicos 65.indb 156 17/10/2013 15:09:22 Resumo: Este artigo abre um debate sobre a questão da prática musical nas assembleias litúrgicas buscando compreender a música na Igreja em relação à produção musical. Olhando o horizonte histórico, busca-se elencar os motivos que desencadearam as mudanças significativas da vivência musical contemporânea. Passando pelo discurso filosófico, fundamenta-se na indústria cultural um fenômeno geral que atingiu a prática musical universal. Posteriormente apresenta-se o pensamento conciliar e o ensinamento da Igreja, sobre a música como elemento unificador da assembleia. Conclui-se com a urgente necessidade de fomentar iniciativas de cunho formativo, pastoral ou acadêmico, para suprir as lacunas musicais e litúrgicas da vivência cristã, para que a música ritual seja sempre um canto novo, não como uma novidade passageira e descartável, mas seja emanação de nosso próprio ser. Palavras chave: Produção musical; Música Ritual Cristã; Indústria Cultural; Formação. Abstract: This article opens a debate on the question of musical practice in liturgical assemblies, seeking to understand music in the Church in relation to music production. Looking at the historical horizon, we try to list the reasons that triggered significant changes in contemporary musical experience. Passing by the philosophical discourse, it envisages the cultural industry as large as a general phenomenon that influenced musical practice universal. Later it shows the Conciliar thought and Church teaching on ritual music as the assembly unifying element. It concludes with the urgent need to promote initiatives aiming at formation, pastoral or academic, to address the shortcomings of musical and liturgical Christian living, so that the ritual music be always a new song, not as a fad and disposable novelty, but as emanation of our own being. Keywords: Music Production; Christian Ritual Music; Cultural Industry; Training. A produção musical cristã contemporânea e a música ritual cristã pós-conciliar: história, questões e desafios Murilo Guesser* * Graduando em Teologia pela Faculdade Católica de Santa Catarina (FACASC). Seminarista da Arquidiocese de Florianópolis. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013, p. 157-175. Encontros Teologicos 65.indb 157 17/10/2013 15:09:22 A produção musical cristã contemporânea e a música ritual cristã pós-conciliar Uma realidade que se apresenta fortemente em nossas assembleias litúrgicas é a inserção/adaptação de um estilo musical decorrente das novas práticas litúrgico-musicais que atingem o Brasil em sua grande maioria, fruto de uma nova fase de produção e gravação musical. Como compreender a música na Igreja hoje em relação à produção musical? Não está ela também como um simples adereço, simples ocupação do tempo livre? Existe um estilo musical próprio para o culto? Quanto à questão dos estilos, a Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium, ao mencionar as normas para a adaptação à índole e tradições dos povos, diz: A Igreja não deseja impor na Liturgia uma rígida uniformidade para aquelas coisas que não dizem respeito à fé ou ao bem de toda a comunidade; mas respeita e procura desenvolver as qualidades e dotes de espírito das várias raças e povos (SC 37).1 Esse respeito ao espírito das raças e povos, pode ser inculturado na Liturgia sempre que favoreça o verdadeiro e autêntico espírito litúrgico, segundo as necessidades dos lugares, desde que tal adaptação seja regida por alguns limites fixados (Cf. SC 37, 38 e 39). Diz ainda o Concílio que em alguns lugares e circunstâncias especiais são necessárias adaptações mais profundas (Cf. SC 40). Ainda que o termo inculturação não esteja empregado no documento conciliar, essa “adaptação” demonstra abertura, com o objetivo de que todos possam assim participar da liturgia de forma “plena, consciente, ativa e frutuosa.” (Cf. SC 14, 19 e 21). A Música Ritual, como parte integrante da liturgia, deve também se inculturar, buscando sempre expressar os mistérios celebrados com uma linguagem musical específica. Isto pelo fato de que a Igreja “aprova e admite no culto divino todas as formas de verdadeira arte, dotadas das qualidades devidas” (SC 112). Destarte, “a música sacra será tanto mais santa, quanto mais intimamente estiver ligada à ação litúrgica” (SC 112). Esse impulso de renovação e agregação cultural na liturgia só chegará a bom termo do ponto de vista da música sacra, quando atingir o principal objetivo: “a glória de Deus e a santificação dos fieis” (SC 112). Esta foi de fato a grande arrancada Conciliar. 1 158 BECKHÄUSER, Alberto. Sacrosanctum Concilium: texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2012. p. 60. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 158 17/10/2013 15:09:22 Murilo Guesser A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II foi feita numa dupla preocupação: de aggiornamento cultural e de enraizamento bíblico e eclesial. Isto quer dizer, para a música, de um lado, uma abertura às músicas que podem favorecer a participação das assembleias celebrantes e, de outro lado, o renascimento de formas inscritas na tradição do canto cristão, como a salmodia, as aclamações, as litanias etc. Se avaliarmos a partir do impulso criador que esta reforma provocou nas diversas partes do mundo, o balanço já será positivo.2 Contudo, a reforma litúrgica, bem como o próprio Concílio, buscou refletir e dar respostas às questões emergentes na crise que permeava a sociedade. Que crise? Quando se iniciou? Vejamos, pois, uma possível vertente histórica. Como teórico relevante para dialogar nesse sentido temos Theodor Wiesengrund Adorno, filósofo da Escola de Frankfurt, que visibilizou ideias interessantes sobre essa grande temática da crise da modernidade. A crise da modernidade é fortemente marcada por um contexto técnico científico, onde a ciência moderna, com sua ânsia de traduzir o maior número possível de eventos naturais em “relações numéricas, lógicas, acabou movimentando mais ainda esse processo de abstração entre aquilo que se pensa e a realidade vivida pelos homens.”3 Essa ideia foi teorizada a partir de Descartes e se caracteriza pela dominação e controle. Em síntese, conhecendo a natureza, se pode dominá-la. Tal conhecimento, todavia, permeia apenas o elemento racional, pois os sentidos, segundo o filósofo, são fonte de enganos e erros no processo do conhecimento objetivo da natureza. “O sujeito adequado é aquele que será, de início, “pura consciência de si” reflexivo, puro cógito.”4 Com esses princípios se fundamentou uma série de fenômenos e pesquisas que buscavam apenas progresso, progresso esse que se transformou em poderoso instrumento usado pela Indústria Cultural para conter o desenvolvimento da consciência crítica das massas, impedindo a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e decidir conscientemente.5 2 GELINEAU, Joseph. O caminho da música. Concilium. Petrópolis, v. 222, 1989/2. p. 145. 3 FREITAS, V. Adorno e a arte contemporânea. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 15. 4 MATOS, Olgária C. F. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993. (Coleção Logos). p. 41. 5 Cf. ZILLES, Urbano. A escola da teoria crítica e a religião. Porto Alegre: EST, 2006. (série Pensar). p. 8. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 159 159 17/10/2013 15:09:22 A produção musical cristã contemporânea e a música ritual cristã pós-conciliar Segundo o conceito de Indústria Cultural, o ser humano, ao buscar entender todos os fenômenos pelas vias da razão, acabou por reproduzir o isolamento e a dessensibilização.6 Atrelando isso aos interesses do capital, compactua-se a produção da barbárie estilizada, arraigada nos mecanismos da Indústria Cultural.7 Essa ideia já está alegoricamente tratada na Odisséia de Homero, onde Ulisses e sua tripulação tentam a todo custo domesticar a própria natureza interna para dominar a natureza externa.8 O astuto Ulisses ordena que os remadores selem os ouvidos com cera para que continuem remando com todas as forças e escapem do encanto das sereias. Para não escutar o canto das sereias, Ulisses pede que seja atado ao mastro do navio, a fim de vencer o encanto do canoro. Mediante o sofrimento, ele emancipa-se. Mas é uma emancipação totalmente alienante, pois quanto mais era seduzido pelo canto, mais amarrado se encontrava. Na Modernidade, Immanuel Kant buscou apresentar o real sentido do esclarecimento, qual seja: “a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado.”9 Em Kant, o sujeito autônomo, livre, não pensa em voz baixa. A autonomia é justamente o ato de manifestar-se publicamente. Para Adorno, o esclarecimento verdadeiro é, antes de tudo, sobre si mesmo. Todavia, segundo Adorno, baseado em Kant, o homem da modernidade vive um falso esclarecimento, considerando que a emancipação através da técnica atingiu toda a humanidade, gerando nela a dependência, como que narcótica, enfeitiçada, da verdade científica. Só tem valor de verdade tudo que pode ser logicamente demonstrado. O que foge a esses padrões de logicidade não se fundamenta. Com isso, há um desvio da razão em direção à geração de riquezas e à produção de tecnologias, afundando os seres humanos em um enorme estado de barbárie. A esse processo, Adorno chamou de “Indústria Cultural”. Dentro da análise desse conceito, Adorno tenta compreender a relação entre produção e reprodução social, mercadorização da cultura e sua reificação. Juntamente com Horkheimer, Adorno empregou pela primeira 160 6 Cf. PUCCI, Bruno; OLIVEIRA, Newton Ramos de; ZUIN, Antônio Álvaro Soares. Adorno: o poder educativo do pensamento crítico. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 52. 7 Cf. JAY, Martin. La imaginación dialéctica: una historia de la escuela de Frankfurt. Madrid: Taurus, 1989. p. 354. 8 Cf. ADORNO; HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 44. 9 KANT, Imamnuel. Resposta à pergunta: que é Esclarecimento? In: KANT, Immanuel. Textos seletos. Tradução Floriano de Sousa Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1974. p. 100. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 160 17/10/2013 15:09:22 Murilo Guesser vez a expressão ‘Indústria Cultural’ cerca dos anos 1940. O mundo nesse período, ardendo em meio à guerra, despontava para uma realidade que mudaria o rumo das relações humanas com a evolução dos meios de comunicação social. Existe ainda uma questão importante, que foi a divisão do tempo, entre tempo de trabalho e tempo livre, e as atividades que a cada período competem. A Indústria Cultural tem sua raiz primeira nessa evolução, como uma proposta para dar subsídios ao ser humano de como bem viver seus momentos de tempo livre. Segundo a moral do trabalho vigente, o tempo em que se está livre do trabalho tem por função restaurar a força de trabalho [...] Por um lado, deve-se estar concentrado no trabalho, não se distrair, não cometer disparates [...]. Por outro lado, deve o tempo livre, provavelmente para que depois se possa trabalhar melhor, não lembrar em nada o trabalho. Esta é a razão da imbecilidade de muitas ocupações do tempo livre.10 Com a Revolução Industrial desenvolve-se um novo modo de produção capitalista, concentrando exclusivamente a atividade operária nos muros da fábrica. Passa-se a uma produção por meio de maquinário pesado, dividindo a produção em turnos previamente estabelecidos. Outro aspecto é que, embora esteja submerso à produção, o operário passa a ser assalariado e, com isso, afirma-se a necessidade do trabalho para a subsistência física do mesmo e o surgimento de um novo contexto de vivência social: o tempo livre, e com ele o entretenimento, como atividade para essa nova ordem de vida. Cria-se um dualismo acentuado entre a fábrica, como espaço de trabalho, e a vida do pós-trabalho, o tempo de lazer e descanso. Essa distinção resultou também em liberdade. O autor não discute a questão da religião, mas levantamos a questão: não seria esta também uma ocupação para o tempo livre? O uso e fruto do lazer propriamente dito era privilégio de poucos trabalhadores. A grande maioria dos trabalhadores, por causa de seus salários, mal conseguiam sobreviver. Então surgem os movimentos operários. Com o surgimento dos movimentos operários e a redução da carga horária de trabalho, a situação econômica obteve certa melhora, e isso desencadeou uma ascensão das massas que buscavam desfrutar seu 10 ADORNO. Indústria cultural e sociedade. Tradução Julia Elizabeth Levy. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 106-107. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 161 161 17/10/2013 15:09:22 A produção musical cristã contemporânea e a música ritual cristã pós-conciliar momento livre. Cria-se a máquina a vapor, que deu maior mobilidade aos destinos de entretenimento. Com isso, surgem os primeiros estabelecimentos de divertimento, os music halls, na Alemanha e Inglaterra. Locais amplos, onde os trabalhadores comiam e bebiam, assistindo a shows de variedades musicais e artes circenses.11 Essa gênese do entretenimento moderno culmina com as invenções científicas, especialmente o rádio, as gravações sonoras e o cinema. Fonógrafo e gramofone foram os primeiros aparelhos de comunicação que eram usados preferencialmente no entretenimento privado. Eles transformaram a música numa mercadoria tecnicamente produzida e individualmente consumível ao bel prazer.12 Conforme Rodrigo Duarte, a partir do século XVII, a ciência europeia adquiriu os meios teóricos para intervir em processos do mundo físico e, quase duzentos anos depois, com a revolução industrial, o conhecimento se traduziu em tecnologia: com objetivos econômicos bem definidos a alcançar.13 É como uma nova revolução industrial dentro do negócio do entretenimento. Como diversão, a Indústria Cultural “ocupa os sentidos dos homens da saída da fábrica, à noitinha, até a chegada ao relógio do ponto na manhã seguinte.”14 Por isso, a crítica de Adorno se dirige a tal indústria, atribuindo a esta um caráter ideológico como instrumento manipulador das consciências, transformando tudo em mercadoria, substituindo dessa forma a própria consciência. “Os próprios seres humanos se tornaram parte desse mundo reificado, e sua subordinação à lógica da dominação é realçada pela mercantilização da força de trabalho dentro do capitalismo.”15 O consumidor é apenas objeto de lucro para o sistema. O imperativo da sociedade tecnológica é que o homem deve adaptar-se, sem especificar a que coisa; adaptar-se àquilo que, sem a reflexão, como reflexo da potência e onipresença do existente, constitui 11 162 DUARTE, Rodrigo. Indústria cultural: uma introdução. Rio de Janeiro: FGV, 2010. p. 19. 12 DUARTE, 2010, p. 24. 13 Cf. FREITAS, Verlaine. Kathársis: reflexões de um conceito estético. Belo Horizonte: Arte, 2002. p. 29. 14 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 123. 15 THOMPSON, John. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na área dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 131. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 162 17/10/2013 15:09:23 Murilo Guesser a mentalidade comum. Mediante a ideologia da Indústria Cultural, a adaptação toma o lugar da consciência. Na Indústria Cultural, tudo se torna mercadoria. Tudo isso é eloqüentemente [sic] exemplificado por fenômenos-chaves como o cinema, o entretenimento, a publicidade, a arte, a Educação.16 Todo esse processo gera, no ser humano, uma mentalidade fortemente consumista, rompendo com a subjetividade e a própria autenticidade. O indivíduo inserido é aquele que acompanha o último gesto da moda, da publicidade, da propaganda, da mídia e da própria cultura. Toda essa realidade é denominada, por Adorno, como fetiche, conceito de cunho marxista,17 que atribui à mercadoria laços de relações sociais, de exploração do trabalho pelo capital, que de fato, a produz.18 Cai-se prontamente em estado de êxtase diante do belíssimo som convenientemente anunciado pela propaganda de um Estradivarius ou de um Amati; no entanto, só podem ser distinguidos de um violino moderno razoavelmente bom por um ouvido especializado, esquecendose de prestar atenção à composição ou à execução, da qual sempre se poderia ainda tirar algo de valor. Quanto mais progride a moderna técnica de fabricação de violinos, tanto maior é o valor que se atribui aos instrumentos antigos. De vez que os atrativos dos sentidos, da voz e do instrumento são fetichizados e destituídos de suas funções únicas que lhes poderiam conferir sentido, em idêntico isolamento lhes respondem – igualmente distanciadas e alheias ao significado de conjunto e igualmente determinadas pela lei do sucesso – as emoções cegas e irracionais, como as relações com a música na qual entram carentes de relações. Na realidade, as relações são as mesmas que se verificam entre as músicas de sucesso e os seus consumidores. Parece-lhes próximo o totalmente estranho: são estranhos, alienados da consciência das massas por um espesso véu, como alguém que tenta falar aos mudos. Se estes 16 ADORNO; HORKHEIMER, op. cit., p. 133. 17 Segundo Marx, na sociedade capitalista, os objetos materiais possuem certas características que são conferidas pelas relações sociais dominantes, mas que aparecem como se lhes pertencessem naturalmente. Essa síndrome impregna a produção capitalista, e por isso se lhe atribui também o nome de ‘fetichismo da mercadoria’. O valor dos objetos torna-se como que real e natural. [Cf. FETICHISMO. In: BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Tradução Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 149.] 18 Cf. DUARTE, 2010, p. 61. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 163 163 17/10/2013 15:09:23 A produção musical cristã contemporânea e a música ritual cristã pós-conciliar por ventura ainda reagirem, já não fará diferença alguma se se tratar da sétima sinfonia ou do short de banho.19 Observa-se que também a música, enquanto produção artística, transformou-se num simples meio para o divertimento. Entretendo-se em meio aos fones, o indivíduo gera dentro de si uma ilusão homérica de realização que é justamente usufruir de um prazer momentâneo. A música passa a ser, então, um elemento determinante no tempo livre. Isso retira dela seu real valor de apreciação autêntica. Essa é uma das faces da barbárie estética. Que implicâncias teriam essas colocações na Brasil? Ao que nos parece, os filhos desta pátria mais garrida estão, em sua maioria, embebidos dessa realidade fetichizada. De um modo geral, a cultura brasileira considera a música como uma atividade de lazer despreocupado: algo para ouvir e relaxar, seja show popular, seja ópera, seja concerto. Diversas outras importantes funções que a música possui (educativa, científica, religiosa, reflexiva) simplesmente não são consideradas pela cultura contemporânea. Isso é algo que o compositor de música sacra precisa compreender muito bem, pois certamente a função da música na liturgia não é a de conceder um lazer superficial.20 Mentes economicamente ilustres souberam integrar os padrões da indústria cultural às necessidades espirituais. Em algumas igrejas cristãs é evidente essa mercantilização do sagrado. Pessoas que atuam num determinado rito litúrgico, nesse contexto, facilmente caem numa armadilha onde “uma fusão da aura midiática com a religiosa, ressignifica as aspirações do divino, expressas culturalmente nos fiéis transformados em fãs”.21 Retomando a temática do aggiornamento conciliar, mencionado no início deste artigo, unido à crise que atingia o mundo no século XX, especialmente na década do Concílio, e tendo explanado ideias chaves da literatura filosófica do mesmo século, adentramos num tema abrangente 164 19 ADORNO, Theodor W. O fetichismo na música. Tradução Zéljko Loparié. São Paulo: Nova Cultural, 1975. (Os Pensadores). p. 180. 20 MOJOLA, Celso. A música brasileira e suas implicações na composição de musica ritual cristã. In: MOLINARI, Paula (org). Música brasileira na liturgia 2. São Paulo: Paulus, 2009. (coleção Liturgia e música). p. 41. 21 CARRANZA, Brenda. “Católicos midiáticos”. In: TEIXEIRA, Faustino e MENEZES, Renata. (org.). As Religiões no Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 79. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 164 17/10/2013 15:09:23 Murilo Guesser e de complexidade. Que exista uma dificuldade na vida musical da Igreja Romana, a prática nos revela que sim. A questão é entender de fato, se tal dificuldade não seria já anterior ao Concílio, quando na vida social houve o que Adorno intitulou de regressão da audição. Esse fenômeno atingiu também as abóbadas cristãs? Nos primeiros anos da aplicação das reformas conciliares, essa questão desenvolve-se em duas perspectivas: uma, tradicional e outra, progressista. Apontam-se questionamentos de investigação em torno do avançar dos processos de secularização e da fragmentação dos equilíbrios tradicionais da fé católica sujeita ao processo de modernização. Ainda que essa crise não se limite ao canto no culto cristão, ela chegou inclusive a este, pois, a música, segundo Gelineau, “foi a que constituiu a parte mais dinâmica das formas rituais, na história do culto cristão. Isso porque ela sempre foi a mais atingida, de imediato, pelas mudanças culturais.”22 A vertente progressista pressiona para que o Vaticano II fosse além da forma como o próprio Concílio tinha sido aplicado; e o segundo reagrupamento, o tradicionalista, se opõe a certos princípios da reforma litúrgica, apontando o próprio Concílio como responsável por ser condescendente e complacente com os rumos desviantes da secularização.23 Unindo a divisão interna na vida eclesial à força midiática, que logo desponta como a grande sensação, inicia-se nova fase musical na Igreja. De um lado, um grupo que prossegue a prática tradicional de um canto para especialistas e, de outro, a efervescência pastoralista. Esse fenômeno não se circunscreveu aos muros eclesiásticos, mas abriu-se a um contexto mundial, como uma grande reação ao mal estar frente à conduta mecanicista do progresso. Encontramos essa reação nas artes em geral, não só na música. Sabe-se que no mesmo momento começavam a aparecer, no mundo ocidental, em reação contra a sociedade industrial e tecnológica, diversas correntes como a investigação das raízes étnicas, a revalorização da arte e do sentimento, um recrudescimento da religiosidade, traduzindo-se de múltiplas maneiras, desde a renovação carismática até o sucesso das seitas e dos esoterismos. É claro que esses fenômenos teriam repercussões na liturgia e principalmente na música.24 22 GELINEAU, 1989, p. 143. 23 Cf. MENOZZI, Daniele. La Chiesa Cattolica e la secolarizzazione. Torino: Einaudi, 1993. p. 232. 24 GELINEAU, op. cit., p. 145. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 165 165 17/10/2013 15:09:23 A produção musical cristã contemporânea e a música ritual cristã pós-conciliar Com a reforma litúrgica e consequentemente uma nova configuração litúrgico musical, surgem nas comissões episcopais setores ou secretarias específicas para coordenar esse trabalho. Todavia, ao passo que se organizava uma renovação tão almejada, surgia também uma movimentação que introduzia elementos musicais norteamericanos, inicialmente nas igrejas pentecostais, advindas dos Estados Unidos em missão ao Brasil, e que na década de setenta, com o impulso renovador da Renovação Carismática Católica, vai agregando esses elementos na dinâmica musical também dentro da igreja católica. A essa música importada convencionou-se chamá-la de “gospel”, termo abrangente, que aqui é parcialmente entendido como a produção musical paralela à hinódia oficial do protestantismo tradicional, que em sua composição estrutural agrega valores seculares, litúrgicos e de mercado, incorporando nas apresentações musicais performances até então seculares usadas em acampamentos, avivamentos, cuja única finalidade era evangelizar através de uma música inserida na realidade do jovem, uma música comum que fala de Deus ou, pelo menos, das coisas de Deus. No culto propriamente dito, esse estilo, no começo, não era bem vindo. Em nome da evangelização e da interação com o mundo, a música gospel foi aos poucos sendo colocada nas rádios, e adentrou no culto também. Não é questão aqui julgar os métodos, eficazes ou não, de evangelizar. O fato é que, com isso, a música gospel passa a ser apreciada nas rádios e afins. Inaugura-se uma nova forma de pregar o Evangelho. Acontece então uma explosão do mercado musical fonográfico cristão. Com essa virada cultural, num mundo pós-guerra, estabeleceuse uma nova etapa histórica, a pós-modernidade, “mudança em uma esfera cultural mais ampla ao envolver modos de produção, consumo e circulação de bens simbólicos.”25 A música cristã, como bem simbólico, acabou sendo submetida aos interesses e desejos de seus “consumidores”, oferecendo-lhes um tipo de religiosidade capaz de satisfazê-los. Essa é justamente a marca do ser humano pós-moderno, é ele que decide “o que fazer com seu tempo, seu lar, seu corpo e seus deuses.”26 Tudo isso contribuiu para a consolidação da música gospel e de um mercado espe- 166 25 FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura: Globalização, pós-modernismo e identidade. São Paulo: Studio Nobel, 1995. p. 29-30. 26 FEATHERSTONE, 1995, p. 158. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 166 17/10/2013 15:09:23 Murilo Guesser cífico para ela. Esse comércio de bens simbólicos não é algo novo. Já no templo de Jerusalém Jesus expulsa os vendilhões (Mc 11,15-19). No contexto pós-moderno, a música gospel encontra respaldo na identidade religiosa “mais intensa e sensorial”.27 A própria religião entra no mundo do valor econômico dos símbolos e do valor simbólico dos bens econômicos, uma religião para o consumo, para satisfazer as próprias emoções. Padres-cantores celebram “showmissas” para milhares de pessoas; líderes evangélicos estufam seus templos e suas contas bancárias; centros espíritas, terreiros e outros espaços sagrados abrem com frequência [sic]; revistas laicas dedicam páginas às possibilidades da utilização de Deus como agente de negócios e lojas faturam vendendo florais de Bach, runas e duendes.28 Tudo isso pelo fato de que os princípios que norteavam a conduta humana caíram por terra, e, em nome de um falso esclarecimento se busca viver uma falsa liberdade, sem compromissos éticos, morais e até mesmo religiosos. Assim como posso dar uma passada no McDonald’s e fazer um lanche, em qualquer bairro encontro um templo religioso disposto a dar uma reposta – mais ou menos lógica, mas a lógica é o que menos importa nesse tipo de ação – aos problemas do universo. [...] Assim sendo, diante da diversidade de ofertas, as soluções efetivamente religiosas que ofereçam um serviço rápido, fácil e com resultados comprováveis, adaptados, portanto, à realidade de uma sociedade em transformação contínua... Em outras palavras, é uma religião fast-food.29 Todavia, o gospel enquanto música em si, não é o maior problema, mas o que dificulta é o fato de que, por vezes, tal música se toma para o uso litúrgico. A demasiada mudança de repertório, por conta de uma superficial mania de novidade ou concessão à onda de consumismo, faz com que o povo não aprenda bem nenhum canto, ficando impedido de 27 FREDDI, Sérgio. Música cristã contemporânea: renovação ou sobrevivência? São Paulo: Editorial Press, 2002. p. 78. 28 SOUZA, A. Secularização em declínio e potencialidade transformadora do sagrado. In: Religião e sociedade. Rio de Janeiro: ISER, 1986. p. 3. 29 MARTINO, Luís Mauro Sá. Mídia e poder simbólico: um ensaio sobre comunicação e campo religioso. São Paulo: Paulus, 2003. p. 53. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 167 167 17/10/2013 15:09:23 participar dele com gosto e prazer.30 Ainda que com certa radicalidade, faz sentido o que Safatle afirma: Ficamos muito inebriados com a ideia de que o Brasil é um país musical, e não conseguimos perceber que isso não é verdade. O Brasil tem uma produção musical muito limitada. Desenvolvemos uma ideologia cultural que coloca nossa experiência sensorial como muito elevada, então nossa produção cultural tem que ser igualmente espontânea. Por essa ideia, tudo aquilo que nasce de maneira espontânea do ponto de vista musical é a prova maior da peculiaridade da vida brasileira. Mas você pode espontaneamente compor uma canção, mas dificilmente irá compor espontaneamente uma sinfonia. É como se você tivesse uma produção literária de um país que se reduzisse a crônicas. O compositor Gilberto Mendes falou uma coisa que sintetiza muito bem a situação brasileira. Se você chegar para uma pessoa da classe média, letrada, e perguntar que tipo de filme gosta, ela vai falar em Fellini, Antonioni e tal; na literatura, Virginia Woolf, Thomas Mann; já na música, Caetano Veloso e Chico Buarque... Nada contra os dois, mas se percebe que há um descompasso. Não há mais pianos nas casas e as pessoas simplesmente não conhecem as obras, não sabem quem são os compositores. Estamos criando uma situação histórica muito peculiar, de uma época que não conhece sua própria música.31 Surgem situações preocupantes: celebrações promovidas por movimentos religiosos, congregando frequentemente grande número de participantes, aqui e acolá, com ampla divulgação da mídia, pouco levando em conta os textos litúrgicos, substituindo-os facilmente por letras intimistas de grande pobreza existencial, poética e teológica.32 O nosso gosto musical foi formado pelo que pode ser mais corretamente denominado como uma música popular industrializada, ou seja, uma música que se tornou produto fonográfico e, a partir desse fato, encontrou as condições para sua divulgação e distribuição. O processo de escolhas que levou a essas decisões de investimento por parte de diferentes em30 Cf. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. A música litúrgica no Brasil. São Paulo: Paulus, 1999. (Estudos da CNBB, 79). n. 30. 31 SAFATLE, Vladmir. Minha música. Revista Concerto. Guia mensal de música clássica. São Paulo. Ano XVIII 189, nov. 2012. p. 80. 32 Cf. Estudos da CNBB 79, n. 43. Encontros Teologicos 65.indb 168 17/10/2013 15:09:23 Murilo Guesser presas não é evidentemente, inocente. Passa por questões econômicas, culturais, étnicas, religiosas e políticas.33 Nem a religião escapa do espetáculo da sociedade de consumo. Troca-se o silêncio pela histeria, a meditação pela emoção, a liturgia pela aeróbica. Uma igreja mais voltada ao “louvor”, com padres-artistas muito à vontade transitando entre o púlpito e o palco, não como meros pregadores, mas artistas. E no Brasil agregam-se outros fenômenos: Num país de tanta riqueza musical como o Brasil, mas onde quase ninguém sabe ler música, a gravação dos cantos é sobretudo para que os cantos sejam conhecidos e aprendidos. Música gravada significa música difundida e aprendida; música não gravada significa música desconhecida. E houve muita música boa que não foi gravada, e música medíocre que foi gravada. A mídia é uma força, mas também pode ser um perigo. As músicas, as celebrações e missas que aparecem nela tornamse critério de verdade que todos querem copiar e reproduzir, sejam elas boas ou ruins, litúrgicas ou não. Portanto, é grande a responsabilidade de quem usa esses meios de comunicação social.34 Desponta uma curiosidade: as iniciativas de estúdios e mecanismos de gravação católicos que existem no Brasil são iniciativas da Comissão Episcopal ou iniciativas particulares? Independente disso, resta saber qual a motivação ou ideologia que rege esses meios. Eis o que nos diz Gelineau, ao falar das tentações do músico cristão: A terceira tentação é a do prestígio mundano. Os agentes do som ritual encontram nele um meio de dominação social. Os cantores-vedetes, já vilipendiados por Jerônimo, sempre existem. A embriaguez das descobertas sonoras feitas pelos polifonistas da Ars Nova, ou pelos inventores de novas possibilidades instrumentais, pode ser encontrada mais que nunca em certas pesquisas de linguagem musical e de sons eletrônicos. Enfim as suntuosas músicas sacras das cortes principescas da época barroca não deixam de ter uma certa relação com os contemporâneos shows mediáticos na própria liturgia.35 33 VICENTE, Eduardo. Por onde anda a canção? os impasses da indústria na era do MP3. In.: SANTOS, Roberto Elisio dos et al (Orgs.). Mutações da cultura midiática. São Paulo: Paulinas, 2009. p. 148-149. 34 WEBER, José. A CNBB e a renovação do canto litúrgico no Brasil: recuperação da memória histórica. In: MOLINARI, Paula (org). Música brasileira na liturgia 2. São Paulo: Paulus, 2009. (coleção Liturgia e música). p.21- 22. 35 GELINEAU, 1989, p. 144. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 169 169 17/10/2013 15:09:23 A produção musical cristã contemporânea e a música ritual cristã pós-conciliar E o canto na celebração litúrgica? Algumas práticas nos geram inquietação. Nosso canto é celebração da fé ou diversão religiosa? Que modelo de Igreja alguns cantos nos levam a vivenciar? Que tipo de compromisso cristão está motivando? Parece-nos por vezes um canto de exagerado individualismo, intimista e sentimentalista, desvirtuando a dimensão comunitária da fé, numa busca de emoções que reduz a relação com Deus a mero jogo de sentimentos.36 Não ignoramos que nestes últimos anos alguns artistas, com grave ofensa da piedade cristã, ousaram introduzir nas Igrejas obras destituídas de qualquer inspiração religiosa, e em pleno contraste até mesmo com as justas regras da arte. Procuram eles justificar esse deplorável modo de agir com argumentos especiosos, que eles pretendem fazer derivar da natureza e da própria índole da arte. Afinal, dizem eles que a inspiração artística é livre, que não é lícito subordiná-la a leis e normas estranhas à arte, sejam elas morais ou religiosas, porque desse modo se viria a lesar gravemente a dignidade da arte e a criar, com vínculos e ligames, óbices ao livre curso da ação do artista sob a sagrada influência do estro.37 Entrementes, “a música contemporânea pode ser um lugar privilegiado para a experiência espiritual e abrir novos caminhos para Deus, inclusive para pessoas que não sentem gosto pela liturgia atual.”38 Essa coincidência dos problemas postos pela liturgia e pela arte não é gratuita nem deve ser inútil: deve-se antes ver nela um sinal dos tempos, um Kairós. A liturgia irá aprender da arte e de sua poética a aprofundar a urgência e a natureza do gesto expressivo; a seguir, realizá-lo-á, pois disso é capaz; uma vez realizado, ela o proporá à arte como exemplo de comunicação social, de linguagem. Será uma contribuição e não desprezível, para a edificação da sociedade humana.39 Traduzindo o pensamento conciliar e o ensinamento da Igreja, na liturgia, não se canta por cantar. Também não se canta por ser o canto bonito ou divertido. A Instrução Geral da Liturgia das Horas apresenta o sentido verdadeiro do canto no culto cristão: 170 36 Cf. Estudos da CNBB 79, n. 44. 37 JOÃO PAULO II. Carta aos artistas. Disponível em: http://www.meloteca.com/pdfsacra/ magisterio-joao-paulo-ii_carta-aos-artistas.pdf. Acesso em 13 de janeiro de 2013. n. 9. 38 GELINEAU, 1989, p. 148. 39 Cf. STEFANI, G. A aclamação de todo um povo: as diversas expressões vocais e corais da celebração litúrgica. Petrópolis: Vozes, 1969. (Musica Sacra n. 4). p. 10. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 170 17/10/2013 15:09:23 Murilo Guesser O canto não deve ser considerado como mero ornamento que se acrescenta à oração, como algo extrínseco, mas antes como algo que emana do profundo do espírito daquele que trabalha e louva a Deus, e mostra de maneira plena e perfeita a índole comunitária do culto cristão. (IGLH 270). Por isso, o canto deve servir à assembleia como elemento unificador. “Servir” não quer dizer satisfazer quaisquer desejos da comunidade. O canto antes de tudo deve introduzir, pela fé, toda a assembleia no mistério de Cristo. Então não se pode compreender a assembleia como a soma de indivíduos isolados que se justapõem, ou, pior que isso, plateia. São pessoas em comunhão, Igreja, onde Cristo está presente e agindo. Para continuar sendo o canto da Esposa, a música da Igreja deve prevenir-se permanentemente de múltiplas tentações, mais perigosas ainda por deitarem raízes nas profundezas pré-lógicas do homem. Antigos demônios sempre estão à espreita para desviar o ato sonoro de seu fim exato.40 O canto deve estar pleno do mistério de Deus, deve comunicar esse mistério. Antes de qualquer coisa, a música ritual cristã deve ser teológica, litúrgica, pastoral e estética. Por meio dela, pode-se dar as razões de nossa esperança, de nossa fé, como São Pedro apresenta em sua epístola (1Pd 3,15). Também na Patrística essa dimensão torna-se ainda mais evidente, como nos atesta Stefani: Os padres da Igreja elaboraram toda uma teologia do canto litúrgico, partindo do pressuposto que cantar é uma ação agradável. O prazer de cantar parece algo aceito como uma lei natural, embora interpretado como uma benigna concessão da Providência à fraqueza humana, doçura desposada com a austeridade salutar da Palavra de Deus; poética, em suma, que sabe unir o útil ao agradável; estética que sabe “temperar a verdade com suaves versos”.41 “Temperar a verdade com suaves versos” é manifestar sonoramente as razões da fé pelo cantar. E quais são essas razões? Cantar a ação de Deus em nossa vida, unidos ao Mistério Pascal do Senhor, e no Espírito, render graças a Deus, por aquilo que ele opera no seu povo eleito e redimido. 40 GELINEAU, 1989, p. 144. 41 STEFANI, 1969, p. 72. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 171 171 17/10/2013 15:09:23 A produção musical cristã contemporânea e a música ritual cristã pós-conciliar Quantas composições sacras foram elaboradas, ao longo dos séculos, por pessoas profundamente imbuídas pelo sentido do mistério! Crentes sem número alimentaram a sua fé com as melodias nascidas do coração de outros crentes, que se tornaram parte da Liturgia ou pelo menos uma ajuda muito válida para a sua decorosa realização. No cântico, a fé é sentida como uma exuberância de alegria, de amor, de segura esperança da intervenção salvífica de Deus.42 Bem haja aos que se debruçam sobre a necessidade de a música litúrgica voltar constantemente àqueles princípios de inspiração conciliar, para promover, em conformidade com as exigências da reforma litúrgica, um desenvolvimento que esteja, também neste campo, à altura da tradição litúrgico musical da Igreja.43 Urge cada vez mais fomentar iniciativas de cunho formativo, pastoral ou acadêmico, para suprir as lacunas musicais e litúrgicas de nossa vivência cristã, fazendo-nos sair desse estado de uma música pura e simplesmente comercial. Nossa Faculdade (FACASC), atenta ao que a Constituição Sacrosanctum Concilium tão sabiamente ensina: “É desejo ardente na mãe Igreja que todos os fiéis cheguem àquela plena, consciente e ativa participação nas celebrações litúrgicas que a própria natureza da Liturgia exige e que é, por força do Batismo, um direito e um dever do povo cristão [...] (SC 14.),44 elaborou um curso de extensão em Música e Canto Litúrgico que oferece formação litúrgica e musical para os agentes de pastoral litúrgica, para que estes possam, em suas comunidades, desempenhar o seu ministério litúrgico-musical, nos mais diversos níveis/âmbito de atuação, com qualidade teológica, litúrgica, estética e pastoral. A partir de uma perspectiva antropológica se poderia observar que uma verdadeira educação musical significa uma verdadeira educação para o religioso. Talvez seja necessário subtrair o próprio rito à cultura do momento e, igualmente, subtrair o fato musical ritual às modas musicais, pelo menos àquelas que não têm conteúdo “religioso”; em outras palavras, não façam referência à “totalidade do viver” e ao sentido global que todo homem tenta atribuir à própria existência..45 172 42 JOÃO PAULO II. Acesso em 13 de janeiro de 2013. n. 12. 43 Quirógrafo do Sumo Pontífice João Paulo II no Centenário do Motu Proprio “Tra Le Sollicitudini”: Sobre A Música Sacra. In.: Documentos sobre a música litúrgica. São Paulo: Paulus, 2005. n. 2. 44 BECKHÄUSER, 2012. p. 34-35. 45 TERRIN, Aldo Natale. O rito: antropologia e fenomenologia da ritualidade. Tradução de José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2004. (Coleção estudos antropológicos) p. 313. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 172 17/10/2013 15:09:23 Murilo Guesser Cantar é preciso, também na liturgia. Mas não basta cantar. É preciso saborear espiritualmente aquilo que se canta. É preciso que a música, na liturgia, seja vivida como um diálogo, uma comunhão, com Deus, de altíssima qualidade, uma participação no “mistério” do próprio Deus, revelado em Jesus, cuja memória celebramos na liturgia.46 Cantar “com inteligência”, fazendo com que nossa mente compreenda e acompanhe aquilo que nossa voz canta.”47 Se o canto serve para polarizar e liberar profundos sentimentos vitais – e comumente inibidos – a liturgia renovada não pode deixar de encorajar o canto. Enquanto ação simbólica do homem libertado da morte, enquanto acontecimento que compromete o homem todo, para ser sinal verdadeiro a liturgia requer que o homem possa manifestar, do modo mais intenso e completo possível, sua necessidade de salvação, e sua alegria na ação de graças.48 Que nosso canto seja sempre novo, não como uma novidade passageira e descartável, mas seja emanação de nosso próprio ser que, ao entoar cânticos, cante a novidade da graça de Deus, fonte de alegria e paz. Sim, “cantai com a voz, cantai com o coração, cantai com os lábios, cantai com a vida: Cantai ao Senhor Deus um canto novo.”49 Resta desejar que este artigo também não se torne um mero produto! Referências ADORNO, Theodor W. O fetichismo na música. Tradução Zéljko Loparié. São Paulo: Nova Cultural, 1975. (Os Pensadores). _____. Indústria cultural e sociedade. Tradução Julia Elizsabeth Levy. São Paulo: Paz e Terra, 2002. _____. HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. 46 Cf. BUYST, Ione; FONSECA, Joaquim. Música ritual e mistagogia. São Paulo: Paulus, 2008. (coleção Liturgia e música). p. 7. 47 BUYST; FONSECA, 2008, p. 15. 48 STEFANI, G. O canto. In GELINEAU, J. Em vossas assembleias: sentido e prática da celebração litúrgica. São Paulo: Paulinas, 1973. p. 223. 49 SANTO AGOSTINHO. Homilia 34,1-3.5-6: CCL 41,424-426. Apud MELO, José Raimundo de. A missa e suas partes: para celebrar e viver a Eucaristia. São Paulo: Paulinas, 2011. (Coleção Jesus Mestre). p. 142. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 173 173 17/10/2013 15:09:23 A produção musical cristã contemporânea e a música ritual cristã pós-conciliar BECKHÄUSER, Alberto. Sacrosanctum Concilium: texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2012. BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Tradução Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BUYST, Ione; FONSECA, Joaquim. 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Ainda jovem, nos seus 30 anos, Pe. Gelineau percebeu, na tradução dos salmos do hebraico para o francês, o fenômeno da repetição mais ou menos regular do acento das palavras. Nessa tradução ele trabalhou, com a colaboração de R. Schwab, para a Bíblia de Jerusalém, publicada primeiro em fascículos, até o lançamento integral em 1955. Ao cantarolar os versículos traduzidos, descobriu a possibilidade de cantá-los com fórmulas melódicas, que facilitariam enormemente o canto dos salmos em francês e, em conseqüência, nas outras línguas modernas. Essa intuição lhe ocorreu, como biblista e como músico, cerca de dez anos antes do Concílio Vaticano II, cujo primeiro documento, a Sacrosanctum Concilium, deslanchou a grande reforma litúrgica cujos frutos continuamos colhendo. Nós, os que vivemos aqueles anos anteriores ao Concílio, não podemos esquecer a sensação de sadia novidade e abertura que representaram os primeiros salmos de Gelineau traduzidos aqui no Brasil, a partir da equipe de Música Sacra do Rio de Janeiro. Ainda hoje está na memória a melodia do Magníficat, com sua antífona: “O Senhor fez em mim maravilhas”... o Sl 99, também com sua antífona: “Cantemos ao Senhor”... o Sl 23, igualmente com a antífona: “O Senhor é o meu pastor, nada me há de faltar”... A propósito, penso que Frei Joaquim Fonseca, na excelente apresentação do livro em epígrafe, se equivoca levemente nas datas, ao escrever que “os conhecidos ‘Salmos e Cânticos’, compostos por Gelineau no final da década de 1950, na França, foram publicados * O autor é presbítero da arquidiocese de Florianópolis, Mestre em Ciências bíblicas e, como músico, compositor e regente do Coral da Catedral. Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 177 177 17/10/2013 15:09:24 Recensões no Brasil no início dos anos 60...” A meu ver, a composição é anterior a 1955, porque eu me lembro de ter cantado alguns desses salmos em português, com os seminaristas de Azambuja, já antes dos anos 60. Mas gostaria de começar minha recensão com o primeiro parágrafo do citado Frei Joaquim Fonseca, na sua apresentação do volume: “A coleção ‘Liturgia e Música’ se orgulha de ter entre seus títulos uma obra de Joseph Gelineau. Este renomado músico e liturgista francês descobriu, desde cedo, o valor incomensurável do canto e da música no culto cristão. Como bom jesuíta, obteve uma sólida formação teológica e bíblica. Investiu todo o seu potencial de músico e teólogo a partir da fonte geradora que emerge da experiência do mistério celebrado e vivenciado na ação litúrgica” (p. 7). Frei Joaquim termina sua apresentação, dizendo: “Aqui, o leitor encontrará uma conceituação precisa dos diversos gêneros que constituem o canto dos cristãos que se reúnem, sobretudo para celebrar a Eucaristia, como: os cantos processionais, as aclamações, as cantilações, as ladainhas etc. Enfim, este livro de Gelineau, em boa hora, vem complementar o primeiro da coleção, que trata da função ministerial dos cantos da Missa e do Ofício Divino das Comunidades” (p. 8). O livro, escrito em 2001, quando o autor contava já seus 81 anos de idade, é fruto de mais de 50 anos dedicados ao movimento litúrgico pré e pós-conciliar. É dividido em 10 pequenos capítulos, precedidos, musicalmente, de um “Prelúdio” e um “Poslúdio”. No “Prelúdio”, após explicar o que se entende por “cantos da missa”, Gelineau lembra a grande “intenção do Vaticano II”: a participação ativa e consciente da assembleia celebrante (SC 14). Lembra as “rupturas que marcaram a história do culto cristão na esfera da liturgia romana” (p. 12), rupturas superadas com a reforma do Concílio: a assembleia volta a ser o primeiro sujeito da celebração; a Palavra volta a ser anunciada em vernáculo; o canto se torna “forma privilegiada de participação do povo nos ritos” (p. 13). Além de aprofundar-se a relação texto-música, percebeu-se a necessidade de atender à relação rito-assembleia. Como fazê-lo, porém, pergunta G., isto é, “como retomar a pesquisa e a criação, em matéria de canto litúrgico, recorrendo, ao mesmo tempo, à tradição e ao impulso pós-conciliar?” (p. 14) Numa avaliação do que foi feito, G. afirma que “ficamos muito na periferia da ação litúrgica. O perigo é de ‘ocupar-se em cantar’, sem se preocupar com o rito em questão” e sem “colocar em relevo o papel específico do canto litúrgico”. Por isso, terminando seu “Prelúdio”, G. 178 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 178 17/10/2013 15:09:24 Recensões declara a finalidade do seu livro: “não somente estudar a forma musical de cada um dos cantos da missa”, mas, “antes, entender como a liturgia adota ou gerencia diversas formas melódicas segundo os ritos, as palavras, os lugares, os ministros e as assembleias” (p. 16). O 1º capítulo estuda “o universo sonoro do culto cristão”, no qual o anúncio da Palavra, característico da revelação bíblica, ocupa um lugar especial. Numa síntese gráfica, inspirada na paleta (melhor do que “palheta”) das tintas do pintor, G. apresenta, na p. 16, a “paletaouvido” da voz ritual, na qual se distinguem dois níveis de palavras; na parte inferior, as maneiras de dizer que denominamos palavras “faladas”, contrapondo-se às palavras “cantadas” da parte superior. Entre as palavras “faladas”, abaixo do limiar do tom, podemos distinguir: o murmúrio, a meia-voz, por toda a assembleia; a palavra espontânea; e a palavra em público. Quanto aos “tons” nas palavras, podemos distinguir os brados, as proclamações, e as cantilações (pp. 20-21). O “verbo-melodismo” é uma expressão que designa o mais específico do culto cristão: a simbiose mais profunda entre o lógos, palavra, e o melos, melodia. Nesta simbiose, a melodia não pode mais separar-se da palavra que a viu nascer. Melodia, às vezes, silábica, às vezes, mais lírica. “Nos dois casos, a música esposa as palavras para manifestar o conteúdo inteligível e para descobrir nelas o sabor espiritual” (p. 24). A seguir, G. discorre sobre “refrãos sálmicos e responsos breves”, “antífonas processionais ou estacionais” e o “hinário antigo em prosa lírica”. Estuda também o “hino estrófico”, dando como exemplo os hinos de Santo Ambrósio, e o “cântico com refrão”. Sobre os hinos e cânticos, G. observa: “constituem uma fonte inesgotável para a participação das assembleias na celebração litúrgica, mas sua exuberância e facilidade não devem eclipsar as outras formas de canto ritual que a liturgia requer” (p. 30). Quanto ao imenso repertório de “música sacra”, em latim, que a partir de meados da Idade Média desenvolveu-se nas igrejas que tinham mais recursos musicais, percebe-se hoje que ela continua a ter valor em si, como música, bastando-se a si mesma, nos concertos, mas dificilmente se integra na ação ritual litúrgica. Concluindo esse tema, assim escreve G.: “Face ao ‘thesaurus’ da música sacra, fruto da cultura ocidental e testemunha de sua fé, um discernimento deve, necessariamente, intervir para de novo ser utilizado na liturgia atual. Evitaremos tanto o ostracismo como o esteticismo. Devemos julgar, em cada caso, o que é bom para tal assembleia em tal circunstância” (p. 32). Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 179 179 17/10/2013 15:09:24 Recensões O capítulo 2º aborda os “processionais”, isto é, os cantos rituais que acompanham, ou podem acompanhar, cinco momentos da missa. O primeiro é o canto “de Entrada”, que é ao mesmo tempo abertura da missa e início dos “ritos de abertura”, que vão do canto de entrada até a oração do dia. Comentário de G.: “É o canto de entrada que constitui ritualmente a assembleia como tal [...]. É um privilégio do canto coletivo assinalar a unidade, fusionando as vozes, quando os corpos já estão justapostos” (cf. p. 36). Quanto à procissão de entrada, G. observa que seu “símbolo mais importante é a cruz da procissão: o Senhor entra no meio do seu povo e o atrai para segui-lo. A cruz, sinal da vitória pascal, é assim plantada ante o altar, face a toda a assembleia. É ela que dá o sentido – orientação e significado – à procissão e à reunião dos batizados” (37). Sobre o canto processional, G. faz observações e propostas detalhadas, começando por dizer que “entre as formas de canto que se utilizam no início da missa, nem todas são igualmente processionais” (p.38). Explica as formas litânicas, os tropários com seus três elementos, os cânticos com refrão, e os cantos estróficos (pp. 38-40). Quanto à procissão do Livro, G. observa que “nos ritos orientais, a liturgia da Palavra se abre por uma entrada processional do Livro da Escritura acompanhada de cantos”, diferente da procissão de entrada, e que valeria a pena adotar (pp. 40-41). Diferente dessa procissão do Livro, temos a procissão do Evangeliário, acompanhada da aclamação, normalmente o canto do Aleluia com seus versículos demorando o tempo suficiente. O processional das oferendas é naturalmente diferente de um canto de entrada. A Instrução Geral do Missal Romano (IGMR) nada diz sobre o conteúdo dos textos desse momento ritual. Segundo G., musicalmente há várias formas possíveis, a mais rica das quais seria o modelo do “tropário”, com as estrofes cantadas pelo coro, o refrão por todos, e os versículos por solistas. E observa: “O valor espiritual e litúrgico da procissão das oferendas, para que toda a assembleia ‘entre’ em eucaristia, fica ainda por descobrir para a grande maioria dos grupos celebrantes, grandes ou pequenos”. E continua, belamente: “Mas aqueles que já fizeram experiência, de modo consistente e por vários anos, podem testemunhar o benefício pastoral que se tem da ‘grande entrada’: a oração eucarística, cume da liturgia, torna-se mais comunitária, mais densa, mais aberta ao Espírito. Assim, o primeiro dos gestos do Senhor na Ceia, que retomamos em memória dEle, alcança todo o seu sentido e todo o seu valor místico. Esse rito costitui um limiar: entrada no mistério, abertura ao louvor, oferenda de toda a Igreja” (p. 45-46). 180 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 180 17/10/2013 15:09:24 Recensões O processional da comunhão é o canto mais documentado desde a antiguidade. Para cada missa, o Missal oferece um texto próprio, que pode ser cantado de forma responsorial. Entretanto, segundo observa G., como nem todos desejam cantar durante o percurso muito pessoal até o ministro que distribui a comunhão e, especialmente, no momento em que comungam, pode-se, de acordo com a sugestão da IGMR (cf. p. 47), valorizar o “hino” de toda a assembleia, após o silêncio que segue a comunhão. Esse hino tornaria tanto mais desnecessário o “canto de saída”, “vestígio da antiga missa cantada em latim, na qual só havia canto popular após a missa” (p. 48). O capítulo 3º trata das aclamações, proclamações, diálogos, “momentos intensos de participação da assembleia” (p. 49). Aqui, além dos “amém” e “aleluia”, que não deveriam ser apenas sussurrados (!)... valorize-se, cantando em resposta ao ministro, o “Glória a vós, Senhor”, antes e depois do Evangelho. Da mesma forma, o “Vosso é o Reino”, após o embolismo do Pai-nosso. Entre os diálogos, o mais breve e mais frequente é “O Senhor esteja convosco”, cuja resposta literal, de origem bíblica (1Cor 2,10), “E com o teu espírito”, não significa um banal “e contigo também”, mas o desejo da assembleia de que o Senhor, com o dom do seu Espírito esteja com o presidente no exercício da sua função. “Não é coisa sem importância”, diz G. (p. 53). Infelizmente, no Brasil, a resposta “Ele está no meio de nós” tem um belo sentido, sem dúvida, mas não é o que a fórmula litúrgica exprime. O capítulo 4º tem por título: “As cantilações”, que se distinguem dos cantos propriamente ditos. Nas cantilações, diz G., a conduta rítmica e melódica depende das palavras e de sua justa dicção; nos cantos, é o ritmo e a melodia que conduzem o texto (cf. p.55). Normalmente, a cantilação cabe a um solista, ministro de um rito: leitura de uma passagem da Escritura, especialmente do Evangelho, prefácio, oração... mas há também a cantilação coletiva, p. ex. da salmodia, ou do Pai-nosso. Quanto aos salmos, é interessante a evolução do seu emprego: do canto ou forma responsorial, o salmo reduziu-se a um versículo musicalmente elaborado, chamado “Gradual”, confiado a um cantor, até retornar à forma responsorial com o Vaticano II. É interessante a opinião de G. na p. 57, em cima, quanto ao uso dos folhetos, normalmente criticados pelos liturgistas: para G., eles ajudam a saborear a Palavra inspirada... Ainda quanto aos salmos na missa, G., que é autor de um “Tratado de Salmodia” (cf. nota de rodapé na p. 58), faz várias sugestões muito úteis (pp. 58-59). Pessoalmente, noto a tendência de alguns salmistas a ornarem Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 181 181 17/10/2013 15:09:24 Recensões e florearem demasiado os versículos e o próprio refrão, dificultando a compreensão e participação da assembleia. Quanto às leituras bíblicas, G. reflete sobre “os tons da palavra pública”, chamando a atenção para a mudança ocorrida com o uso do microfone. Observa, por exemplo, que “num prefácio dito num tom banal de conversa individual, há uma distorção entre o ato da palavra e sua condição ritual” (p. 61). Em todo caso, quanto à leitura dos textos bíblicos, eles “são proclamados para serem ouvidos como Palavra de Deus”: nesse ponto, quanta deficiência de leitor e de microfone em nossas assembleias! Quanto à cantilação das leituras, usual na tradição judaica e, também, latina, G. pergunta: tem ainda razão de ser essa cantilação em língua vernácula, a não ser em circunstâncias muito especiais, como Vigília Pascal, noite de Natal etc?” (cf. p. 62). Do Prefácio, G. diz que nele se encontra “o cume lírico da missa”, e que “uma sua cantilação bem feita sinaliza melhor a entrada na Eucaristia como louvor” (p. 63). A seguir, depois de tratar do Pai-nosso (p. 64), G. reflete sobre a Profissão de Fé, o “Creio”, que era uma das peças principais do repertório coral. Com a reforma litúrgica do Vaticano II, passou a ser normalmente rezado, embora a IGMR diga que ele é “cantado pelo padre com o povo” (p. 65). G. faz uma série de questionamentos a respeito, e lembra que “o único texto de origem propriamente litúrgica é o Símbolo batismal, transmitido sob forma de pergunta-resposta na vigília pascal e na celebração do batismo” (p. 65). O capítulo 5º é dedicado às Litanias, ou seja, as “Ladainhas”, palavra que vem do gr. litê, “oração”. Depois de expor a forma da Ladainha dos Santos, com as seis secções que a constituem, G. lembra que, na missa, três cantos podem ser relacionados à forma litânica: o “Senhor”, o “Cordeiro de Deus” e a “Oração dos fiéis” (p. 68). Quanto às invocações do Senhor, no Kyrie, diz G. que “não são feitas para apagar nossos pecados, mas para dizer ao Cristo nossa confiança na sua misericórdia” (p. 70). O fato, porém, é que esse momento está sendo chamado de “ato penitencial”... e certas novas composições, de letra discutível, estão encompridando desnecessariamente esse momento, ao qual logo segue outro canto, o “Hino de louvor”. Quanto à “Oração universal”, que conserva esse nome na sexta-feira santa, e que chamamos de “Preces da comunidade”, é uma das mais bem acolhidas restaurações da reforma litúrgica: G. a comenta nas pp. 71-72. 182 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 182 17/10/2013 15:09:24 Recensões Quanto ao “Cordeiro”, que acompanha o gesto da “fração” do pão, G. aventa a hipótese (pois o “sans doute” do francês não significa “sem dúvida”, mas “provavelmente”!) de que o “dai-nos a paz” seria uma introdução ao ósculo da paz, que sabidamente está mal colocado nesse momento da celebração (p. 72). E lamenta que a “fração” do pão, termo que ele sugere seja substituído por “partilha” do pão, esteja tão apagado ante o “acúmulo de textos e ritos”. É nesse sentido que ele sugere um “canto para a partilha do pão” (pp. 73-74). A Oração Eucarística, “ponto culminante da missa”, é tratada no capítulo 6º. Quanto ao “Hino seráfico”, o “Santo”, é preciso lembrar a sua origem em Is 6,3. Certas melodias saltitantes que temos por aí não correspondem a essa proclamação da “santidade”, ou seja, da transcendência divina, através desse que “é o mais sagrado dos cantos da missa” (p. 79). É expressivo, na sua sóbria solenidade, o modelo do Sanctus 18 do Kyriale, que G. reproduz na p. 77. Seguem várias considerações sobre a aclamação da anamnese, logo após as palavras da consagração (p. 79), e as outras aclamações, inclusive a Doxologia final (pp. 81-82). Os Hinos e os Cânticos são tratados no capítulo 7º. Depois de breve síntese sobre a história dos Hinos na liturgia cristã, G. trata do “Glória”, introduzido na liturgia romana no séc. VI, “tesouro da oração cristã, que tem sua origem nos primeiros séculos” (p. 85). É um hino em prosa lírica, com três estrofes desiguais, após a aclamação inicial. Das três estrofes, a primeira é dirigida ao Pai, a segunda ao Filho, e a terceira ainda ao Filho, mas com conclusão trinitária. Os modos de cantá-lo variaram no decorrer dos séculos, destacando-se a abundância de polifonias e músicas concertantes compostas sobre o texto latino. Hoje, em vernáculo, há propostas em forma responsorial e também na forma estrófica. G. observa a “carga ritual” de três cantos para o único rito de entrada (p. 87), sendo, pois, preferível reservá-lo para grandes festas. Quanto ao “Canto da Palavra”, é uma sugestão, não prevista pela IGMR, entre a homilia, após um tempo de silêncio, e a Oração da comunidade, com o objetivo de aprofundar e aplicar a mensagem bíblica do dia. G. fala em experiências na França, praticamente inexistentes entre nós (pp. 88-90). Quanto ao Hino após a Comunhão, previsto na “Instrução”, G. lembra o “grande número de Hinos, de valor incontestável, feitos para a Liturgia das Horas”, e que poderiam ser aproveitados. Considerações semelhantes ele as faz sobre os Cânticos com refrão, que poderiam ser designados “cantos rituais”, com várias formas, para Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 183 183 17/10/2013 15:09:24 Recensões os quais poderíamos/deveríamos aproveitar “o tesouro das melodias religiosas populares (antigas)” (pp.91-92). O breve capítulo 8º fala sobre Precisão e ritmo, “duas palavras familiares aos músicos”, que se traduzem “no tom justo afinado e no tempo certo” (p. 93). São conceitos relativos a uma cultura e às várias situações, p. ex. a diferença entre um dia de Natal e um domingo comum. Em parágrafos curtos, G. alerta para certas tendências e contraposições: “um único gênero de canto”; “muito ou pouquíssimo canto”; “cantos muito longos ou muito curtos”; “muita ênfase ou acento banal”; “muita música ou música insuficiente”; “o festivo e o ordinário”... (pp. 94-96) O capítulo termina observando que “não há outra regra senão a graça do dia, da assembleia, do momento, que é preciso discernir... ao sopro do Espírito” (p. 96). No capítulo 9º, G. aborda a questão das “Assembleias do Domingo”, nas comunidades onde não se pode celebrar a Eucaristia, fenômeno cada vez mais frequente, inclusive na Europa. Ele começa advertindo que, apesar de faltar o “coroamento”, que é a partilha do Pão eucarístico, essas assembleias são “imagens autênticas de uma igreja local”, gozando também da presença do Senhor Ressuscitado (cf. Mt 18,20). Elas, porém, não deveriam ficar esparsas, mas estabelecer laços com as comunidades vizinhas. E seu canto deve ter características próprias, diferentes de uma assembleia eucarística (pp. 97-98). Nesse caso, o modelo alternativo seria uma Hora de Ofício? Qual o “modelo de base”, que destaque os “três momentos fundamentais” da oração, da Palavra, e da intercessão e ação de graças? (p. 99) Na p. 100 há um interessante quadro de comparação dos três esquemas: assembleias, lit. das horas, missa. Quanto às “assembleias ecumênicas”, não entendi bem por que, segundo G., “não se pode, sem hipocrisia, cantar juntos, se não somos concordes” (p. 101)... Pelo contrário, respondo positivamente à sua pergunta final: “Utilizar, nas nossas assembleias locais, os tesouros dos irmãos separados, não é abrir um caminho para esta unidade desejada?” (ibid.) O capítulo 10º, tratando da “necessária inculturação”, começa observando que esse conceito “progrediu muito” depois do Concílio, e que “não há culto sem cultura, e toda cultura tem seus ritos” (p. 103). Afirma também que “este início do séc. XXI está bem longe da cultura religiosa de onde viemos”... Comenta ainda o fato da diversidade das assembleias: pequenos grupos, grandes assembleias festivas, a assembleia da igreja local (às vezes reduzida, em grandes espaços). Quanto 184 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 184 17/10/2013 15:09:24 Recensões aos sacramentos, p.ex., a inculturação hoje deveria espelhar-se no que fizeram, no final do séc. IV, Crisóstomo em grego e Ambrósio em latim (p. 105). Quanto ao canto do povo na liturgia, reconquistado após séculos de canto em latim apropriado por elites, continua a tarefa de “um verdadeiro trabalho de inculturação, partindo do rito” (p. 106). G. comenta a difícil depuração do repertório que está sendo composto, cujo critério deveria ser “o que nos introduz ou não no mistério”. A propósito, lembra o fato de apenas cinco sequências terem sido conservadas, entre as milhares compostas na Idade Média! (p. 107). Quanto ao que chama de “autoinculturação”, G. fala com a experiência do trabalho realizado como pároco (!) em cinco paróquias (pp. 107-108). Comenta o problema de “tantos cantos diferentes na missa” e se pergunta “se não seria melhor cantos mais longos, criando um verdadeiro clima de oração” (p. 109). “É preciso tempo”, diz G., “para entrar no jogo ritual e chegar, graças a ele, à adoração, á súplica, ao louvor e ao silêncio, onde o Espírito fala ao coração” (p. 110). Das belas duas páginas do “Póslúdio”, com o subtítulo “o que o ouvido não escutou”, destaco apenas esta alínea: “É próprio da liturgia que o invisível não se manifeste senão no visível, que o além não venha senão no ‘aqui e agora’ dos símbolos, da postura, da palavra e também... dos sons! É preciso um reencontro entre a ascensão do desejo e a descida da graça oferecida” (p. 111). Antes de concluir a recensão, na qual procurei dar uma ideia, muito incompleta, do precioso conteúdo dessa obra escrita por um “jovem” de 83 anos (!), algumas poucas observações de revisão: 1) na p. 12, na primeira alínea, o vocábulo “maestrias” mereceria, em nota, a menção do original francês “manécanterie”, escola de meninos cantores; 2) na p. 36, na 4ª alínea, se fala do “celebrante” quando deveria ser “presidente”, como aliás se diz na nota do rodapé; 3) na p. 38, valeria a pena traduzir o que está citado em francês na nota 3 do rodapé; 4) na p. 40, 3ª alínea, em vez de “portanto”, leia-se “porém”, traduzindo o fr. pourtant; 5) na p. 47, 2ª alínea: “uma antífona ou refrão com os versículos”, não “como os...”; 6) na p. 57, pelo final da 4ª alínea, o vocábulo “stique” em português é “estíquio”; 7) na p.58, última alínea, “frequência semanária” deve ser “semanal”; 8) na p. 66, 2ª alínea, omitir a preposição “de” na referência ao “símbolo niceno-constantinopolitano”; 9) na p. 72, última alínea, o “sem dúvida”, do fr. sans doute, deve ser traduzido por “provavelmente”; 10) na p. 76, no meio da 5ª alínea, em vez de “um contorno melódico” deve ser “um torneio”...; 11) na p. 86, na penúltima alínea, em vez de Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 185 185 17/10/2013 15:09:25 Recensões “cantochão musical”, o que é óbvio, deve ser “cantochão tonal”; 12) na p. 100, na 5ª alínea, em vez de “da cruz que louva a assembleia”, deve ser “da cruz que a assembleia está louvando” (verificar o original fr.). E termino, para não me alongar mais, subscrevendo a última afirmação da contracapa: “A ampla documentação, a apresentação concisa, a abertura à liturgia, à teologia, à musicologia, à história, fazem deste livro uma obra de referência.” Endereço do Recensor: Caixa postal 5041 – ITESC 88040-970 Florianópolis, SC E-mail: [email protected] 186 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 186 17/10/2013 15:09:25 Crônicas Tríduo Bíblico 2013 As palestras do Tríduo Bíblico de 2013, ocorridas na Faculdade Católica de Santa Catarina entre os dias 27 e 29 de maio, trouxeram grande oportunidade de crescimento intelectual e espiritual aos alunos e professores da instituição, bem como às demais pessoas presentes no evento, que tratou da Hermenêutica Bíblica a partir do Evangelho de Lucas. Da parte da assembleia, atenção, participação, escuta, muito interesse; da parte do assessor, conhecimento exposto de maneira acessível e bem humorada, sem deixar de lado a profundidade e a seriedade exigida pelo estudo. A temática trabalhada pelo Prof. Dr. Francisco Orofino esteve inserida na proposta bíblico-pastoral da CNBB de estudos acerca do Evangelho de Lucas, em 2013, vinculada ao tema da hermenêutica, extremamente atual e pertinente. Vale ressaltar, também, a busca da animação bíblica de toda a pastoral, a partir das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil. Ainda: a oportunidade de celebrar o cinquentenário do Concílio Vaticano II, a partir da releitura e aprofundamento de seus documentos, dentre os quais sobressai a Dei Verbum – a partir da qual outros documentos foram escritos, com destaque para A interpretação da Bíblia na Igreja (1993) e a Verbum Domini (2010). Desde o início dos trabalhos, o professor propôs a análise do “Livro de Lucas” como um todo – considerando suas duas partes, separadas, na Bíblia, entre Evangelho e Atos dos Apóstolos. O objetivo a ser alcançado pela visão unitária do escrito lucano foi perceber tanto o destinatário do livro de Lucas – a emblematicidade do termo ‘teófilo’, que o professor uniu à figura do neófito na Igreja primitiva – bem como as intenções do autor, que, diferentemente dos demais evangelistas presentes no cânon, dirige-se às comunidades greco-romanas situadas no mundo urbano do final do século I – muito diferente do espaço de surgimento do Evangelho de Jesus Cristo e das comunidades da Palestina, na sua maioria rurais. Lucas, nesse sentido, encontra diante de si um novo interlocutor, semelhante àquele encontrado pela equipe missionária de Paulo, no intento de anunciar a boa notícia nas regiões da Grécia e de Roma – podendo até Lucas ter participado da equipe missionária, questão que pode ser posta partindo-se das possibilidades interpretativas da “seção nós” dos Atos dos Apóstolos. Nesse pano de fundo, a cidade, emerge a necessidade da catequese para os neoconvertidos – tanto o anúncio querigmático como a catequese continuada, sempre vinculando fé e vida, com todas as imEncontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 187 187 17/10/2013 15:09:25 Crônicas plicações da acolhida da fé cristã por uma pessoa do contexto no qual Lucas está inserido, ou seja, tanto o universo da religião judaica como o universo político do Império Romano. A tentativa de Lucas aproxima-se dos ideais de uma pastoral urbana, atualizando, pela hermenêutica, as motivações de Jesus, dadas em espaço diverso. O que pode ser mudado no espaço cultural? Quais os temas dos quais não se pode abrir mão? É possível viver no mundo urbano a proposta da solidariedade rural, firmada no Batismo e concretizada na Eucaristia, como base da comunidade? O professor Orofino levou as discussões por esse caminho, valendo-se, principalmente, da ideia-chave do livro de Lucas, que caracteriza um “caminho do Espírito” até os confins do mundo. O fundamento para que se entenda a obra de Lucas num todo é a contraposição de duas propostas oponentes: dois senhores, com suas respectivas palavras e espíritos. O primeiro parte de Roma, o centro do mundo conhecido, pronunciando uma palavra que, por meio de um maquinário de comunicação potente (espírito), alcança o “fim do mundo”, Nazaré. O outro Senhor, partindo de Nazaré – o lugar escondido que se torna o centro do mundo –, também pronuncia uma Palavra, que se desloca por meio do Espírito, chegando a ser anunciada até o “fim do mundo”, Roma. A oposição entre essas duas forças, o Império Romano e o Evangelho de Jesus, dão o fio condutor para uma análise da obra como um todo, desde a Anunciação e a Encarnação até a pregação apostólica de Pedro e Paulo, que ocupam, cada um, metade dos relatos dos Atos dos Apóstolos, no qual a palavra chega à capital do Império. Por aqui se percebe a unidade do livro, de Nazaré, passando por Jerusalém (Evangelho/vida de Jesus) e Antioquia, até alcançar Roma (Atos dos Apóstolos/missão e martírio de Pedro e Paulo). Perceber o fato de que a morte dos apóstolos não é narrada, porque a finalidade do livro de Lucas é narrar o deslocamento da Palavra até o fim do mundo, o que ocorre com a chegada dos apóstolos a Roma. O professor ressaltou, por meio de um esquema breve, o importante momento do choque entre os espíritos, marcado pelo símbolo forte da cruz, que determina a força de um senhor em detrimento do outro. É uma leitura positiva da palavra, de modo ascendente e uniforme (por vezes contrário à realidade das perseguições aos cristãos), como aparece no Magnificat. Francisco Orofino enfatizou o caráter catequético do contraste e sua importância no processo pedagógico da catequese em meio urbano, para se atingir o efeito desejado, ou seja, a clareza daquilo que se queria comunicar, o modo de agir dos seguidores de Jesus. A apresentação desse contraste é presente em diversas parábolas de Jesus, bem como nos exemplos postos por Lucas em seu livro: Zacarias e Maria; Barnabé e Ananias e Safira. 188 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 188 17/10/2013 15:09:25 Crônicas O escrito em forma metafórica (parábola) sempre é limitado pela linguagem utilizada e vale-se da linguagem para enfatizar os aspectos mais importantes. As parábolas do capítulo quinze – abordadas pelo professor na primeira noite do evento, com grande público presente – mostram Deus voltado àquilo – àqueles – que Ele “perdeu” – os pagãos. O Prof. Orofino enfatizou o modo como as parábolas se fazem entender tanto no ambiente masculino como no feminino, sempre por meio de duas histórias que relacionam aspectos do cotidiano – o tema do pastor, por um lado, e o da moeda perdida na casa, por outro. O caráter hiperbólico das narrativas acentua o fato de que não se está contando um fato, simplesmente, mas, por meio dele, quer-se chegar a um ensinamento espiritual e moral, segundo a ótica das comunidades em formação. Impressionou o modo como o assessor uniu a realidade vivida ao ensinamento cristão dado na parábola. Na explicação de Lc 15,11-32, foi ressaltado não tanto a prodigalidade do filho que tornou à casa, mas a atitude do irmão que permaneceu com o pai. Numa interpretação que privilegiou o ambiente cultural das cidades e a acolhida de pagãos neoconvertidos por judeus que abraçaram a proposta de Jesus, o professor enfatizou a necessidade da abertura do coração e da casa para a acolhida do diferente, que quer celebrar na comunidade cristã. A comunhão exige abertura frente à tradição, com ponto fundante na comunhão de mesa (tendo em conta toda a questão alimentar judaica e os problemas com a impureza, torna-se mais enfática a mudança que significava a conversão dos judeus). Esse processo difícil de assimilação levou à pergunta central: depois que o filho mais novo – o “filho perdido”, na proposta do professor, numa sequência com a ovelha e a dracma perdidas – entrou para o banquete e foi recebido pelo pai como “filho”, desde a restituição da herança à comunhão de mesa, como se comportou o filho mais velho, entrou ou não na casa para compartilhar da alegria do pai e do irmão que fez o processo de conversão? O pai revela a liberdade da relação entre ele e o filho que esteve sempre em casa – os judeus deveriam ter liberdade nas relações com Deus, de modo a poderem se “apossar” de tudo o que é do pai. Uma religião que não promove a liberdade, como pode levar à conclusão a parábola do filho perdido, e que não comunica mais Deus de maneira eficaz, como mostra a manifestação de Deus a Zacarias no Templo, revela-se obsoleta. Jesus não descarta a escolha de Israel, povo do qual ele mesmo faz parte, mas aprofunda o significado da Aliança como estabelecida no início: “No início, não era assim...”. Ao longo do Tríduo, o professor abordou as temáticas centrais para a acolhida do Evangelho no meio urbano. Evidenciou, também, a necessidade de maleabilidade no modo como a fé cristã foi se desenvolvendo, com o processo de abertura, por um lado, mas também com clareza daquilo que, Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 189 189 17/10/2013 15:09:25 Crônicas em qualquer ambiente, não poderia ser tolerado entre os irmãos: fatores tanto sociais – o aborto, o infanticídio, o divórcio, que não concordam com a proposta cristã de igualdade e complementaridade entre os casais – quanto da vivência da espiritualidade na comunidade e individualmente – a acolhida ao próximo, o fazer-se próximo, o processo de conversão, a atitude de acolhida, etc. Esses aspectos, dentre outros, ficaram evidenciados na parábola do bom samaritano, bem como em Lc 15, descrito acima. No contexto do Ano da Fé, o assessor propôs a figura de Lídia como emblemática para o entendimento da missão de Paulo, mas também para o modo de vivenciar a missionariedade hoje. Lídia é a única personagem bíblica citada na Porta Fidei, de Bento XVI, para a convocação do Ano da Fé, na comemoração do cinquentenário do Concílio Vaticano II. De At 16 o professor ressaltou a importância da atividade missionária como decorrência do Batismo, feita sempre em nome da Igreja. Discernindo o apelo do Espírito, a equipe missionária se dirige à Macedônia, onde encontra Lídia e é por ela acolhida em casa. O Espírito envia a equipe a um destinatário claro, Lídia, que, após o recebimento do Batismo (abertura de coração), acolhe a Igreja em sua casa (abertura da porta da casa). Daqui vêm admoestações sérias para o processo catecumenal de ontem e de agora. Para o professor, o fato de o papa ter escolhido Lídia como único rosto de seu escrito chama a atenção da Igreja para a missão e o processo catequético que transforme as atitudes dos participantes. Na terça-feira à noite o tema da quarta conferência foi dedicado ao uso do dinheiro pela comunidade cristã, tema bastante relevante para a vida na cidade e donde brota para a comunidade cristã a exortação à coerência de vida. O professor distinguiu e contrapôs a ótica do acúmulo (casa do acúmulo) à ótica da partilha (casa da partilha/Igreja). Lucas caracteriza o fariseu como amigo do dinheiro (filárguros = amigo da prata). É o representante da ótica do acúmulo e de todos os que não se abrem à partilha para a construção da casa-Igreja. Na cidade, que faz conviver muito próximos ricos e pobres, o dinheiro pode ser instrumento de exclusão, mas pode, por outro lado, ajudar a promover a partilha, da qual é retrato ideal At 2,42-47. Em contrapartida, o professor ressaltou a postura mentirosa de Ananias e Safira que, ao reterem parte do dinheiro consigo e mentirem para a comunidade, traem o espírito cristão, não porque não colocam tudo o que possuem à disposição, mas porque não se portam de maneira autêntica. A distribuição igualitária é vista na ótica da necessidade de cada um. A Igreja não interfere nas disposições dos fiéis sobre seus bens. Por sua vez, o fiel não pode mentir para a comunidade, matando o seu Batismo. O contexto urbano cada vez mais é ampliado no sentido da globalização. Por outro lado, a tecnologia que proporciona esse desenvolvimento 190 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 190 17/10/2013 15:09:25 Crônicas traz no seu rastro o problema do individualismo que se estabelece entre as pessoas. A pastoral da Igreja nas cidades trabalha – deve trabalhar – nesses dois sentidos, para garantir e enfatizar os aspectos da catolicidade da fé e também do ambiente íntimo no qual a mesma deve ser vivenciada. A proposta da Igreja como “casa da partilha”, ao mesmo tempo em que ilumina a ação, coloca novos desafios para a evangelização real, ampla e eficaz. Numa sociedade extremamente dependente do sistema econômico, urge pensar a relação da fé com o modo de utilização dos bens materiais, não vistos de maneira negativa, mas buscando sua contribuição para a comunidade, espaço sem o qual não pode existir verdadeiro cristianismo. O tema do Tríduo Bíblico foi desenvolvido em duas partes: primeiramente, o professor destacou passagens do livro de Lucas que serviam para uma compreensão global do texto, a partir de temas centrais para a evangelização em meio urbano, espaço de evangelização para o qual o Evangelho de Lucas foi pensado. Uma segunda parte ficou implícita durante todo o processo, que, justamente, permeou todas as conferências, porque imprescindível para a leitura bíblica: a escolha de uma chave de leitura hermenêutica. No último dia do Tríduo, o Prof. Orofino enfatizou esses princípios, com base em A interpretação da Bíblia na Igreja (1993), além de tomar duas contribuições de textos dos papas Paulo VI e João Paulo II. Esses pontos formaram a contribuição da Igreja no Brasil para o sínodo da Palavra, ocorrido em 2008: 1. Crer e acolher a Bíblia como Palavra de Deus, na comunidade de fé; 2. A Bíblia é Palavra de Deus com linguagem humana – a leitura exige métodos de compreensão da linguagem humana, a partir das ciências; 3. A Palavra é o instrumento de Deus para revelar a si mesmo – o homem é chamado a fazer a experiência de Deus; 4. Jesus é a chave principal de leitura da Bíblia – mostra como fazer a experiência de Deus/do nome de Deus (como presença); 5. Aceitar a lista canônica e inter-relacionar os livros, aceitandoos por igual; 6. A Bíblia é o livro da Igreja – ler com e na Igreja, que diz que a Bíblia é a Palavra de Deus – o ambiente de fé é o contexto hermenêutico (valorização dos ambientes de leitura popular); 7. Levar em conta os critérios da fé – unidade da Escritura; Tradição; analogia da fé (DV 12); 8. Levar em conta os critérios da realidade – da época do escrito e da atualidade; Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 191 191 17/10/2013 15:09:25 Crônicas 9. Complementariedade entre Bíblia (proposta) e oração (resposta) – o processo hermenêutico se conclui com a resposta do homem a Deus; 10. A interpretação bíblica deve estar a serviço da evangelização. Finalizando os trabalhos do evento, o professor escolheu o texto dos discípulos de Emaús (Lc 24), que encerra a primeira parte do livro de Lucas, apontando o caminho de Emaús como caminho da desobediência e da conversão, a partir da cegueira dos discípulos – ao que parece um casal –, que percebem a presença de Jesus no pão partilhado, quando abrem sua casa para acolhê-lo, sem saber que era ele o Senhor ressuscitado. A passagem revela um processo de reencantamento por Jesus, dentro da dinâmica da própria liturgia da Igreja, da Palavra anunciada e explicada ao pão partido, revelando a ótica da partilha. Em tempos de nova evangelização, faz-se necessário ter em conta a dinâmica da celebração eucarística como lugar propício para o reencantamento com a pessoa de Jesus. O mundo urbano é marcado pela diversidade. A aceitação da diversidade na Igreja passa pelos indivíduos e pela não-tentativa de padronização, que acaba por ser excludente. Na atualidade, abre-se ainda mais o leque da diversidade. O desafio fica na pergunta: “Quem e por que eu excluo determinadas pessoas que se aproximam da casaIgreja?”. Há necessidade de buscar o Espírito que renova e dá equilíbrio a todas as coisas. Paulo Stippe Schmitt (Acadêmico do 1º ano de Teologia da FACASC) 192 Encontros Teológicos nº 65 Ano 28 / número 2 / 2013 Encontros Teologicos 65.indb 192 17/10/2013 15:09:25