CIAL DOS DOIS - FFCH - Universidade Federal da Bahia

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CIAL DOS DOIS - FFCH - Universidade Federal da Bahia
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Universidade Federal da Bahia
COLEÇÃO CIÊNCIA E HOMEM
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A publicação deste livro é parte do programa
editorial estabelecido em convênio firmado entre
a Universidade Federal da Bahia e a Secretaria
de Educação e Cultura do Estado da Bahia.
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Este livro é, na sua forma original, uma dissertação de mestrado apresentada à Coordenação de Pós-Graduação em
Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, tendo
sido aprovada com distinção pela Comissão Examinadora.
Thdice
1.
Introdução Metodológica
5
11.
O Nordeste da Cana-de-Açúcar; Síntese Sociológica
15
III.
IV.
Análise Sociológica do Ciclo da Cana-de-Açúcar ....
Ciclo do Cangaço, Misticismo e Sêca ............
Bibliografia ..................................
25
89
111
Capítulo 1
INTRODUÇÃO METODOLÕGICA
A literatura foi entre nós uma espécie de matriz, de solo comum, que, por mais tempo que em
outros países, alimentou os estudos sôbre a sociedade, dando-lhes viabilidade numa cultura intelectualmente pouco diferenciada. Os brasileiros
que lideram até os nossos dias com as ciências do
homem fizeram -no em grande parte como escritores, com atitude mental, linguagem, métodos
mais adequados à criação Iiterdria (no sentido
amplo) do que ao objeto de estudo que escolhiam"
(ANTÔNIO CÂNDIDO) (1)
A ficção é a fonte onde se alimenta o conhecimento das verdades eternas.
EDMUND HUSSERL (2)
Enciclopédia Delta1 Cândido , Antônio . " A Sociedade no Brasil". In:
Larousse . Rio de Janeiro, Delta, s.d. v. 5, p. 2227.
Paris,
2 Husserl , Edmund. Idées directrices pour une phénomenologie.
p.
227.
1950
.
Gallimard ,
A partir de discussões sôbre a sociologia da arte, devidas a nomes cujos trabalhos hoje já se colocam como pontos de alta relevância para quem se abalance a qualquer abordagem dêsse terreno, entre
os quais estão um Roger Bastide, um Pierre Francastel, um Mendieta
y Nuíïez, a sociologia da literatura encontra-se em momento de
grande germinação, interessando direta ou indiretamente sociólogos e
teóricos da literatura, principalmente.
Albert Memmi, Lucien Goldmann e Robert Escarpit constituem,
na França, a vanguarda de tais estudos.
A obra de teoria da literatura de R. Wellek e A. Warren representa um momento dos mais definitivos tanto para a crítica literária, como para a sociologia da literatura, e, òbviamente, para a própria teoria da literatura, oferecendo subsídios e caminhos dos mais valiosos para uma preocupação teórica que, de Mme. de Staël e Taine
aos atuais teóricos estruturalistas, vem assumindo tratamentos de vária natureza, o mais rigoroso dos quais, e por isso o mais perigosa,
talvez seja mesmo o sociológico (3).
Não vamos discutir aqui os pressupostos teóricos da sociologia
da literatura.
Contudo, vale assinalar alguns aspectos que de logo se apresentam ante a relação sociologia e literatura.
Com Wellek e Warren observamos que três problemas básicos
envolvem o que podemos chamar de sociologia da literatura: a sociologia do escritor, o conteúdo social das obras em si mesmas e a
influência da literatura na sociedade (4).
A sociologia do escritor faz-se possível pela análise da origem
do autor, de sua condição social, dos valores positivos e negativos
3 Wellek, R. & Warren, A. Teoria..., cap. 9 (especialmente) . Sôbre o assunto, cf. também: Meammi, A. "Problèmes..." - Id. Cinq propositions... - Escarpit, R. Sociologie... - Goldmann, L. Pour une...
- Lukacs, G. La théorie... - Franscastel, P. "Problèmes... "
4 Wellek & Warren, op. cit. - Cf. também Bastide, R. Arte...
- Id. Les problèmes...
11
do seu tempo, do contexto sócio-cultural em que êle estava (ou
está) imerso, bem assim sua adesão ou rebeldia em face daqueles valores, e a medida em que tal posição se transplanta ou se apresenta
recriada na obra.
Diante da obra literária, a atitude mais comum por parte daqueles que sôbre ela tentam realizar uma abordagem de algum modo
sociológica é aquela de procurar referi-la como "documento social",
arquivo", "espelho da sociedade", enfim: a busca da adequação,
tanto quanto possível perfeita, entre a obra literária, quase sempre
o romance, mas não raro o conto ou a crônica, e uma dada realidade
sócio-cultural.
Ocorre porém, parece-nos, que tal tipo de trabalho, pelo seu
conteúdo meramente descritivo, carece de maior valia.
O conhecimento da sociedade através de outras fontes, que não
as puramente literárias, faz-se indispensável para a fixação dos elementos básicos da realidade sócio-cultural sôbre a qual repousa a
obra de ficção a ser explorada. Só a partir daí será possível a análise e o levantamento dos componentes ou do conteúdo social subjacente na obra de ficção.
A abordagem do escritor tem, aqui, um sentido relativamente
especial, já que necessitamos situar o objeto de nosso estudo - romances do escritor brasileiro José Lins do Rêgo - no tempo e no
espaço. A vinculação vivencial do escritor ao conteúdo de sua obra
faz imprescindível a colocação dêsse problema, quando menos nas
entrelinhas e nos entretons do tema capital, já que aqui não poderemos realizar o que seria a sociologia do escritor em suas últimas conseqüências. Quando nos ocupamos de sua vinculação social, de suas
origens, tais observações se justificam tão só para a melhor compreensão do romance como meio de análise de uma realidade social, análise apoiada embora em elementos de teor científico, como veremos
mais adiante.
Portanto, objetivando a análise do "conteúdo social das obras
em si mesmas", nosso material empírico serão aqui dois tipos de romance de José Lins do Rêgo,. Além das obras do chamado "ciclo da
cana-de-açúcar", como expressão do Nordeste gordo da zona da
.nata e do massapê, da casa-grande e do engenho, onde a civilização
sedentária, aí instalada desde a colônia, iria criar uma sociedade
tradicional, mais refinada e patriarcal, analisaremos também Cangaceiros e Pedra Bonita como expressões do "outro Nordeste", procurando encontrar no material romanesco do grande memorialista a
síntese, não por literária menos real, mas por isso mesmo muito mais
viva, do Nordeste de Gilberto Freyre e do outro Nordeste de Djacir
Menezes.
José Lins do Rêgo, brasileiro, paraibano, descendente de senhores de engenho e bacharel em Direito, radicou-se inicialmente no
12
Nordeste, onde manteve vínculos estreitos com o movimento de renovação da inteligência que ali ocorreu em moldes que se aproximam,
e em boa medida chegam a se distanciar, do movimento paulista de
22. Sua experiência de promotor público em Minas Gerais durou
relativamente pouco. O nordestino vai, então, para o Rio de Janeiro,
onde fará principalmente literatura de saudades e recordações sempre voltadas para o Nordeste; mas, vivendo a grande cidade, nela
se integrará, escrevendo romances com outros cenários, embora sempre e até o fim esteja apegado à terra que é, talvez, o seu mais autêntico cenário. No Rio, que êle tanto amou, vai morrer com pouco
mais de cinqüenta anos.
Escritor consagrado, José Lins se coloca entre os dez mais importantes romancistas brasileiros modernos. A consagração, quer da
crítica especializada, quer do público leitor, em cêrca de trinta anos
de vigência, põe-nos, ao escolhê-lo e às suas obras, inteiramente fora
do alcance da discussão em tôrno do problema de saber em que medida uma obra de arte medíocre pode constituir para o sociólogo um
material de análise sociológica de alta relevância (5).
A famosa frase de De Bonald "a literatura é uma expressão da
sociedade", bem como as teorias que tentam estabelecer o que se
poderia chamar de uma "relação mecânica e imediata entre o conteúdo de uma realidade social e o da obra nela criada" (s), constituem, ambas, atitudes simplistas e empobrecedoras do fenômeno artístico .
Não é tal o nosso intento. Essa atitude não se justificaria em
face da obra de José Lins, homem umbelicalmente ligado ao Nordeste e ao movimento regionalista ali ocorrido nos anos vinte, e que
representou, de certo modo, a agitação intelectual que o Brasil viveu
no após primeira grande guerra.
Se em São Paulo a agitação suscitada pelo Movimento Modernista de 22 teve, talvez, uma coloração mais aparentemente universalista, no Nordeste o movimento, no que diz respeito especificamente
ao romance, se coloca, dentro de certos têrmos, numa seqüência
iniciada no princípio dêste século, e mesmo antes, por romancistas
até hoje relativamente obscuros.
Lúcia Miguel Pereira (7) observa que a maior parte da nossa
ficção se preocupa com as peculiaridades locais e que há uma constante em nossa literatura: a predominância da observação sôbre a
invenção, fenômeno que ocorre até mesmo entre os românticos.
5 Wellek & Warren , op. cit ., p. 119.
6 Velho, Glberto. " Prefácio ". In: Sociologia da arte . Rio da Janeiro,
Zahar, 1967 . v. 2 (Textos básicos de Ciências Sociais) .
7 Pereira , Lúcia Miguel . História da literatura brasileira . Rio de Janeiro , José Olympio , 1950. v. 12.
13
Sem que se tenha de relacionar, mecânica ou simplificadamente,
sociedade e obra literária, quer-nos parecer que há, como bem viu
Antônio Cândido (8), uma espécie de matriz ou de solo comum na
linguagem literária, que foi, assim, o veículo pelo qual se externaram
todos aquêles que, tocados pela realidade humana e por seus intrincados problemas, talvez não tivessem encontrado de modo adequado
os rigorosos caminhos da ciência e da linguagem científica.
O Movimento Regionalista, que teve como base de operações
o Recife, ali encontra José Lins do Rêgo e o põe em vivo contacto
com o sociólogo Gilberto Freyre, há pouco chegado de Baylor e
Oxford, onde estudara com Boas, Giddings e Seligmann, entre outros.
A sua tese de Columbia, Social Life in Brazil in the Middle of the
19th Century (cuja idéia básica foi posteriormente desenvolvida no
famoso Casa Grande e Senzala), é o estímulo inicial a despertar o
grupo do Recife. O sentido cultural brasileiro aí se destaca no que
há de importante, no mais genuíno, no tradicional, nos hábitos, costumes, ritos e religiões.
Luís Jardim (9) observa a influência em Gilberto Freyre do cultural de Boas_ e do impressionismo de Simmel, associados ao que
êle chama de método introspectivo.
Também es-tilo literário-irá sofrer uma constante "revolução"
sob tais influências; a utilização do falar popular dentro da mais
absoluta autenticidade, livra os romancistas que partem do Movimento Regionalista dos perigos do "caipirismo" grosseiro. O estilo
de José Lins do Rêgo, diz Luís Jardim, vem dessa revolução.
A influência de Gilberto Freyre sôbre José Lins foi flagrante.
E' êste mesmo que afirma: ". . . a minha aprendizagem com o mestre de minha idade se iniciava sem que eu sentisse as lições..." (10),
e ainda: "... de lá para cá minha vida foi outra, foram outras as
minhas preocupações, outros os meus planos, as minhas leituras, os
meus entusiasmos". . . (11) .
Não obstante, José Lins é, acima de tudo, um contador de estórias e um memorialista. Homem da terra, talvez mais do que em
nenhum outro romancista brasileiro o passado entrelaçado ao presente tenha encontrado maior ressonância.
A literatura oral das pretas velhas, remanescentes da escravidão,
as "histórias da carochinha" (seu Histórias da Tia Totonha tem uma
marca indelével dessa influência), as cantorias dos cegos de feira,
dos moleques de bagaceira, marcam-no decisivamente.
A esta sêde de contar aliam-se as idéias do Movimento, a capacidade de observação verdadeiramente sociológica. Tem bem razão
Otto Maria Carpeaux quando nos diz que "a obra de José Lins do
Rêgo é mais, muito mais, do que um documento sociológico; é qualquer coisa de vivo, porque o seu criador lhe deu o próprio sangue" (12).
A intimidade com os romancistas inglêses, principalmente
Lawrence e Hardy, é decisiva para a tonalidade universalizante de
sua obra. Foram justamente tais influências, diz-nos Gilberto Freyre,
"que impediram José Lins do Rêgo de empastar-se numa espécie de
Zola paraibano difuso e demagógico" (13).
A arte telúrica de José Lins, sua reação a todo aspecto nocivo
do transplantacionismo, sua fidelidade de narrador ao mundo que êle
recria e redimensiona, fá-lo um romancista de domínio invulgar da
arte de contar. Nêle, observação e imaginação se juntam admiràvelmente.
Bem observa Lêdo Ivo: " ... aos que, por uma deformação profissional ou desatentos diante da complexidade inventiva de Lins do
Rêgo, se habituaram a ver em sua obra, de preferência a face sociológica, como se êle fôsse apenas o extraordinário executor de um
sistema ecológico, nada mais recomendável do que apreciá-lo numa
posição exatamente inversa, isto é: como um homem dotado de uma
visão criadora, que ensinou a ver em lugar de ser ensinado, autônomo
e soberano na construção de um mundo que funde, num compacto
verbal, a memória e a imaginação e onde tudo que foi vivido e experimentado retorna à luz do dia revitalizado pela metamorfose da
invenção" (14).
Decorre daí o fato de que a utilização da obra de José Lins
do Rêgo numa análise sociológica corra o risco de representar um
ato de violência ou de profanação. A sua capacidade de "ensinar
a ver" é, porém, um atrativo apaixonante para o sociólogo.
Mas essa matéria nobilíssima que é a obra de arte dêsse admirável analista do tempo e dos homens jamais poderia representar tão
só material empírico para a análise sociológica. Ela é bem mais,
muito mais que isto.
12
8
9
10
11
Cândido, op. cit.
Jardim, Luís. "Prefácio". In: Freyre, Gilberto. Artigos de jornal.
Recife, Ed. Mozart, s.d.
Rêgo, José Lins do. "Prefácio". In: Freyre, Gilberto. Região e tradição. Rio de Janeiro, José Olympio, 1941, 1941. p. 10.
Ibid.
14
13
14
Carpeaux , Otto Maria. "O brasileiríssimo José Lins do Rêgo". In:
Rêgo , José Lins do. Fogo morto. 9- ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1969.
O romance
In: Montenegro , Olívio .
Freyre , Gilberto . "Prefácio" .
brasileiro. Rio de Janeiro, José Olympio, 1938 (Coleção documentos
brasileiros) .
Ivo, Lêdo. "O ensaista José Lins do Rêgo". In: Rêgo, José Lins do.
O vulcão e a fonte. Rio de Janeiro, O Cruzeiro, 1958.
15
Como saber do conteúdo social da obra de José Lins (15)?
Far-se-ia indispensável, sem dúvida, a busca de elementos rigorosamente científicos, conceitos apurados na verificação empírica,
sob pena de se cair no simplismo do discreteio e no mero pinçar os
traços assistemática e subjetivamente admitidos como sociológicos.
Um trabalho de análise do conteúdo sociológico de romances
não encontra o apoio relativamente fácil e operacional no nível da
pesquisa empírica, quando, à base de uma hipótese e, sob o contrôle
de rigorosas e apuradas técnicas, se chega a conclusões seguras e aferições quantitativa e/ou qualitativamente tranqüilizadoras para o pesquisador.
Afastada a hipótese do contrôle pela verificação empírica direta
do que se poderia considerar como remanescente ou conseqüência,
no Nordeste de hoje, dos traços tão vivamente lançados por José
Lins nos seus romances, há que se fazer apêlo a outros apoios científicos indiretos.
Daí o recurso de que se lançou mão, como apoio teórico dêste
trabalho: o que se poderia chamar de síntese da elaboração da ciência social brasileira sôbre o Nordeste. Õ da cana-de-açúcar, da casagrande, do engenho e da senzala, do massapê e das grandes chuvas,
do senhor de engenho e do usineiro, do escravo e da clientela, das
famílias extensas e poderosas, e aquêle chamado de "outro Nordeste", expressão cunhada por Djacir Menezes para a zona nordestina
da caatinga, da sêca, do gado, do fanatismo religioso, do cangaço e
da violência (16).
As observações, realizadas com base nos conceitos de estrutura
e organização sociais, terão de utilizá-los sem maiores apelos à problemática teórica que os envolve, antes manejando-os operativamente.
Por outra parte, a própria disciplina do trabalho, talvez menos
esquemático que pròpriamente dissertativo, busca, naturalmente que
dentro de uma síntese pessoal, não destoar do próprio estilo do autor
- não apenas por fidelidade à atmosfera da obra, mas por uma
escolha metodológica - já que se observou que a análise mera-
15 Sôbre os aspectos sociais da obra de José Lins do Rêgo, cf. entre
outros: Castello, José Aderaldo. José Lins do Rêgo; modernismo e
regionalismo . Rio de Janeiro, Edart, 1961 . - Milliet, Sérgio. "A
obra de José Lins do Rêgo". In: Rêgo, José Lins do. Fôgo morto.
4a. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956. - Dantas, Pedro. "Nota
sôbre J. Lins do Rêgo" . In: Rêgo , José Lins do. Menino de engenho.
6a. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956, - Lins, Alvaro. "Um
novo romance dos engenhos". In: Rêgo, José Lins do. Fôgo morto.
4a. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956. - Carpeaux, Otto Maria.
"Prefácio". In: Rêgo, José Lins do. Fôgo morto. Rio de Janeiro,
José Olympio , 1943 . - Monteiro , Adolfo Casais . " Saudação a José
Lins do Rêgo". In: Rêgo, José Lins do. Usina. 4a. ed . Rio de Janeiro, José Olympio, 1956.
16 Menezes , D. O outro...
16
mente esquemática levaria à perda dos detalhes, os quais representam
um aspecto que se verificou ser de grande significação e relevância.
Nosso material de trabalho são romances de José Lins do Rêgo
que compõem, nitidamente, dois aspectos do nordeste brasileiro: o da
cana-de-açúcar - visto através de Menino de Engenho, Doidinho,
Bangüe, Usina, Moleque Ricardo e Fogo Morto, e o "outro Nordeste", visto através de Pedra Bonita e Cangaceiros (17).
Se Menino de Engenho e Doidinho vão possibilitar a compreensão do panorama ainda relativamente tranqüilo da sociedade da casagrande através da visão retrospectiva de Carlos de Melo - nosso
principal "informante" no decorrer de tôda a pesquisa -, Bangüê,
Usina e Fogo Morto - os dois primeiros num encadeamento temporal que conduz mais fàcilmente a análise, o último como visão
totalizante e ao mesmo tempo singular, quando destaca unidades
sociais e grupos em crise - irão oferecer o material mais útil ao
exame do momento transicional. Êsse é o momento em que será
possível detectar as alterações que já começam a surgir na estrutura
econômica e suas decorrências no plano da estratificação social, no
manejo e distribuição do poder, na inserção de novos valores e sua
influência no comportamento individual e grupal.
Moleque Ricardo, embora relativamente desenfocado do plano
específico da análise, colaborará principalmente para a compreensão
do problema das aspirações de ascensão social por parte de um remanescente hereditário da escravidão, vendo na cidade um caminho
de salvação da senzala, mas lá encontrando outros modos de continuar escravo.
De alguma sorte Moleque Ricardo chega a informar, pàlidamente embora, sôbre as primeiras lutas sindicais, a formação dos
primeiros grupos de trabalhadores urbanos lutando por representação, o jôgo político das elites do poder, muitas delas vinculadas ao
prestígio e à fôrça emanadas da propriedade da terra.
17 Usaremos, em todo o decorrer da análise, as edições das obras abaixo
discriminadas. Para facilitar as citações, serão usadas as iniciais das
obras conforme também se vê, juntamente com a indicação da página: Rêgo, José Lins do.
Menino de engenho. Rio de Janeiro, Adersen Ed., 1932 (ME)
Doidinho. Rio de Janeiro, Ariel , 1933 . 4a. ed . Rio de Janeiro, José
Olympio, 1943 (D). Será usada a 4a. edição.
Bangué
Rio de Janeiro, José Olympio, 1934 (B).
O moleque Ricardo. Rio de Janeiro, Jq§é Olympio, 1936 (MR).
Usina. Rio de Janeiro , José Olympio , 1936 . 2a. ed . Rio de Janeiro,
José Olympio, 1940 (U). Será usada a 2a. edição.
Fõgo morto. Rio de Janeiro, José Olympio, 1943 (FM).
Pedra bonita. Rio de Janeiro, José Olympio, 1938 (PB).
Cangaceiros . 2a. ed . Rio de Janeiro , José Olympio, 1956 (C) ,
17
E' através da manipulação de todo êste material que se irá
analisar, em diferentes níveis, os vários aspectos da estrutura e da
organização da sociedade do Nordeste da cana-de-açúcar e seu processo de alteração e recomposição.
Os dois romances de José Lins do Rêgo que pertencem ao chamado "ciclo do cangaço, misticismo e sêca" - Pedra Bonita e Cangaceiros - constituem preciosos elementos para a análise de facêtas
altamente significativas da realidade sócio-cultural do "outro Nordeste".
Homem da várzea, do massapê, da casa-grande, a sensibilidade
de José Lins se vê arrastada ao cenário físico e humano do "outro
Nordeste", àquele mundo que não é bem o seu, mas cuja presença
se faz constante e que êle traz para viver um pouco em Menino de
Engenho, em Fogo Morto, nas passagens do bando de cangaço pela
paisagem decadente do universo de Lula de Holanda, de mestre José
Amaro e do velho José Paulino.
Trata-se de um contexto social rico de problemática humana,
caracterizado pelo entrechoque constante dos padrões de uma cultura de folk com os padrões exógenos e pela derivação, através do
mito e da violência, de tôda uma gama de circunstâncias naturais
(a sêca, a aridez da terra) e de intervenções humanas (o latifúndio,
o mandonismo, a política clientelística), tôdas elas opressoras e desumanizantes, características daquele Nordeste pastoril, seminômade,
clânico, turbulento e místico.
A análise do material referente ao "ciclo da cana-de-açúcar"
será feita dentro de dois planos, que ao mesmo tempo se destacam
e se completam: de um lado, tratar-se-á do que bem se poderá chamar de estrutura ecológico-econômica; de outro, e êste mais detidamente trabalhado, a estrutura e a organização sociais.
Os ângulos de apoio, olhados num sentido, por assim dizer,
estático ou estrutural e dinâmico ou organizacional, serão predominantemente a estratificação social, a ordem político-jurídica, a organização doméstica, os valores sociais em todos os seus aspectos, isto
é: da vida cotidiana ao horizonte escatológico das ultimidades.
O tratamento do material referente ao "ciclo do cangaço, misticismo e sêca", far-se-á de modo mais simplificado, tendo em vista,
principalmente, o fato de que os dois romances não atingem a visão
totalizante e ao mesmo tempo detalhística, tal como ocorre no outro
"ciclo" . Engloba-se então o tratamento, a síntese sociológica fazendo-se concomitantemente com a análise do próprio material, muito
embora se procure, a cada passo, dar o destaque necessário, sempre
com o apoio da base científica fornecida pelos trabalhos teóricos
específicos sôbre o "outro Nordeste" ou que com êle estão relacionados.
18
Capítulo II
O NORDESTE DA CANA - DE A-ÇÚCAR : SÍNTESE SOCIOLÕGICA
As razões da introdução da cultura canavieira na região litorânea do nordeste brasileiro já estão por demais esclarecidas, como
também o estão os motivos que ativaram a sua expansão.
A aplicação da economia portuguêsa ao processo da cultura
extensiva do açúcar e o seu jôgo no ávido mercado consumidor europeu, no pleno desenvolvimento do capitalismo mercantil, vai coincidir com a eficaz produtividade do massapê, do regime de chuvas e
do próprio sistema de águas que, de um modo geral, não difere significativamente nas áreas que se estendem do Rio Grande do Norte
ao Recôncavo baiano.
Na zona pernambucana e paraibana, desde o alvorecer da emprêsa das Capitanias, núcleos se desenvolveram vencendo impasses e
adversidades graças à capacidade econômica e à resistência dos proprietários, quase sempre gente de posses da nobreza reinol ou altos
funcionários, os quais verão, no decorrer dos anos, salvo uma que
outra crise de solução mais difícil, consolidar-se seu domínio sôbre
a terra, sua riqueza incrementada pela escravaria importada, e adaptada à terra e ao trabalho, êsse binômio terra-escravo constituindo
as bases de uma economia que resistirá e se irá metamorfoseando
no decorrer do tempo.
A conquista da terra para a cana não se fará senão dentro da
técnica indígena da coivara. Cai a mata pára que a cana cresça e
para que se abasteçam as fornalhas dos engenhos. As lutas não se
limitarão à conquista, dir-se-á que física da terra. A grande propriedade - o adjetivo aqui se impõe como requisito primeiro vai fazer nascer os sistemas satélites, as formas de aforamento e
assentamento, arrastando tôda uma série de conseqüências políticas,
administrativas e sociais, portanto. A tutela sôbre todos os aspectos
da vida, por parte do grande proprietário, vai fazê-lo o centro em
tôrno do qual gravitará tudo o mais. Tôdas as demais coisas - a
começar pela própria administração - existirão como sua munificência ou sob sua tutela. O domínio de fato do senhor de propriedade
sôbre a terra, os escravos, a família e seus dependentes ou vassalos
21
vai criar uma imagem que confunde a terra com o senhor e com o
próprio poder real, o qual , distante, faz dêle indiretamente seu sucedâneo.
Mas ao que se quer chegar é à observação da convergência dos
elementos humanos com a própria realidade física, para que se possa
atingir as conseqüências por assim dizer mais supra-estruturais.
À queda da mata, à paulatina ocupação da terra se juntam, como
aliados inestimáveis , o rio, os riachos constantes , a água , elemento
que se impõe ao sistema do engenho e propicia o processo de sedentarização, fixação e, talvez, mesmo, a própria organização endogâmica.
Os rios próximos do mar (onde estavam os armazéns do açúcar
estocado para a exportação) são assim também vias de transporte,
com os botes, as canoas e as barcaças; mas também fontes de alimentação graças aos peixes, aos pitus. Quando o rio se confunde
com o mar também se conta com carangueijos e siris , alimentação
que serviu para quebrar a dieta às vêzes rigorosa dos engenhos, ou
para aliviar a fome das populações mais miseráveis dos mocambos
de Recife.
Mas o rio é também o lugar do banho, da distração da criança,
às vêzes do adulto, indicado em muitos casos para a saúde, trazendo
doenças, muitas vêzes, quando êle era também o lugar de despejo.
Amigo nas épocas tranqüilas, o rio é o terrível inimigo nas cheias,
mas é a êle que de alguma sorte se liga grande parte da vida da§
populações do engenho, e, mesmo, depois, das usinas.
A atração pelo mar só começa (õ banho de mar só vai surgir
bem depois) quando êle deixar de ser o lugar do lixo, do excremento,
da podridão; e o brasileiro passa a usá-lo, graças à lição do estrangeiro , o inglês , principalmente , já nos princípios do nosso século.
O animal também é um elemento de importância, como a água,
na relação entre o homem e a terra.
O cavalo será transporte e marca de status social . O senhor,
montado no cavalo de raça ou usando belos animais para puxar seu
cabriolé, fixa a sua distância dos que estão "de baixo", a pé ou montados em burros e éguas desclassificados, baratos. O boi, além de
meio de transporte - o mais recomendável para vencer o massapê puxando o carro cujos gemidos tanto sensibilizaram poetas, moverá
os engenhos, e, já velho, dará a carne, nem sempre tão farta, mesmo
nas mesas mais ricas e poderosas.
O carneiro, confundido na crença popular com a pureza e a
criança - o cordeiro de Deus, o carneirinho de São José - será o
companheiro dos folguedos infantis, o tapête para "engatinhar", e
já mais tarde a nota ingênua dos retratos de sépia dos sinhôzinhos
enfatiotados de marinheiro, de roupa preta e cartola.
22
Há ainda que destacar a importância dos animais de fundo de
quintal, as "criações" de mulher, galinhas principalmente, ajudando
a economia dos "alfinêtes" com a venda dos ovos, dos frangos, e a
própria economia doméstica-na fase da decadência.
O fenômeno que mais relaciona o homem com a terra, talvez
mais que a água, que ó rio, é a sêca, a inclemência do sol, as estiagens, que se não chegam a afetar duramente a região da cana'-de
açúcar, alcançam-na trazendo para as `suas bandas o catingueiro, a
gente do sertão, gente de outro tipo, mais livre e mais altiva, pai
ciente, calada, triste, cantando suas emboladas e desafios, mas pronta
para o trabalho e para a volta às próprias paragens, quando chega
alguma notícia que por lá a chuva já chegou.
Êsse panorama geral dos aspectos que mais de perto se destacam na relação entre a terra e o homem é de grande importância
para a compreensão de todo o contexto sócio-econômico do tema
que aqui será explorado.
Daí que se queira relacionar, ao lado do domínio da grande
propriedade rural, o latifúndio, mais ou menos inalterado no correr
de cêrca de dois séculos e meio, aproximadamente, a monocultura,
aquêle como conseqüência desta.
Realmente, para que se compreenda tôda a variada gama de
coordenadas que interferem no processo de transformação da grande propriedade monocultora, controlada por uma minoria que
partilhava as melhores, as mais ricas e produtivas terras e seus vizinhos menores, os que plantavam de meação com o dono direto da
terra, que moíam o açúcar nos engenhos dos grandes senhores e que
a êles próprios vendiam o produto, para que se compreenda, dizia-se
acima , faz-se mister observar as transformações não só do ângulo
das exigências de um nôvo sistema econômico - o início do capitalismo industrial representado aqui na usina - mas há que se jogar
também com outros elementos dependentes dêsse mesmo sistema.
O engenho faz-se, a partir dos idos da colônia, uma entidade
econômica autárquica, nêle tudo se produzindo para tôda uma comunidade a viver sob a tutela do grande proprietário. A cana e o
engenho forçam a escravidão, e esta representará, talvez bem mais
que a terra, um índice expressivo de riqueza.
Assim é que a grande exploração monocultora vem a fundamentar tôda a estrutura econômica, política e social.
A inserção de um outro elemento oriundo do processo de formação do capitalismo industrial - a usina -- talvez mais que o
próprio aspecto formal da libertação do escravo - a lei áurea -,
aquêle, sim, irá concorrendo para a constante alteração das relações
mais representativas da própria estrutura social.
Mas o fato é que a escravidão foi o expediente que manteve
a monocultura canavieira e o engenho nos séculos da colônia e até,
23
mesmo , na maior parte do século XIX, quando o Brasil cada vez
mais se transforma em fornecedor de uma faixa relativamente grande
de produtos para o mercado internacional, sem se afastar da utilização da mão-de-obra escrava.
Esta situação vai levar a uma contradição que progressivamente
se agravará, já que o crescente processo capitalista de produção e a
própria revolução industrial como que exigem uma adequação racional entre todos os seus fatôres, entre os quais se insere, naturalmente, a mão-de-obra. A transformação do trabalhador escravo em
trabalhador livre seria, assim, uma exigência fundamental naquele
processo de transformação. Tal, porém, não ocorre dentro do rigor
que seria de esperar, se pensássemos tão só em têrmos rigorosamente
teóricos. A rutura do antagonismo, ou melhor, daquela contradição,
não se fará senão dentro de crises que se compreendem dentro do
próprio processo de formação do capitalismo no Brasil.
Na verdade, depois de 88 - não seria de esperar que os fatos
ocorressem de modo diverso - a escravidão de alguma sorte se
manteve, travestida embora, mas presente e responsável pela manutenção de todo um sistema de dependências, de subordinações, de
lealdades enfim. No Nordeste da cana-de-açúcar, ela continuará, de
algum modo, gravitando em tôrno, ainda, das casas-grandes, das famílias dos senhores, dos seus filhos e netos, coronéis e doutôres ainda
rurais, alguns semi-urbanos, ou em processo de urbanização, outros;
decadentes muitos dêles.
E a compreensão dêsse problema é relativamente fácil.
Realmente, o regime de trabalho servil representava apenas uma
parte do sistema nacional de produção. O sistema como tal envolve
uma grande complexidade, e dentro dêle o trabalho escravo era tão
só um aspecto, mas nem por isso é menor sua importância.
Com a abolição formal, legal, da escravidão, restam inalteradas
as condições de produção, a grande propriedade e a grande exploração. Ela tocou apenas um mero ponto de sistema; passou sem
pràticamente nada alterar, na essência, da situação ou do quadro
geral da produção brasileira.
Altera-se formalmente a condição de u'a massa considerável
da população - os antigos escravos -, mas nada, absolutamente
nada, se fêz quanto aos seus rumos, ao seu aproveitamento, à sua
acomodação no organismo social e econômico do país.
As quase invencíveis barreiras que se antepunham ao ex-escravo
levaram-no à permanência nos focos de trabalho onde até então se
tinha mantido, dentro do antigo sistema.
Vão ocorrer, lentamente , ao lado das novas formas de relacionamento que irão surgindo , uma relativa impessoalidade no comando econômico do nôvo sistema da usina (a sociedade anônima, por
exemplo ) e a persistência de relações doméstico -privadas e suas
24
mais diretas decorrências : o sistema de lealdades , a clientela, agora
sofrendo uma série de acomodações ou de reacomodações.
Sem que se venha a entrar diretamente na problemática que
envolve o conceito de estratificação social e tôdas as suas implicações teóricas, acolhe-se o entendimento de uma situação transitiva
vivida pela sociedade que estará sendo analisada , de modo a se ver
configurada, ali, uma estratificação estamental em vias de transformação no sentido de uma sociedade de classes , entendida esta dentro
dos critérios de diferenciação econômica resultante do tipo de ocupação e do contrôle e do domínio , ou não, dos meios de produção.
As pesquenas alterações do sistema de estatificação verificar-seão a partir do momento em que se pode observar a superveniência,
por exemplo , de alguma mobilidade vertical ascendente , a presença
de status sociais adquiridos.
Mas a persistência de outros fatôres leva a concluir pela estratificação transitiva de tipo estamental. O funcionamento , ainda, do
status herdado, malgrado a perda do contrôle ou do domínio econômico, é um refôrço a essa hipótese . A interferência de um outro
valor , êsse de caráter eminentemente ideológico, o qual bem se poderia chamar de "ideologia de branquidade ", isto é: a necessidade
de afirmação do "ser branco " como marca social distintiva, assim
como o funcionamento do respeito social aos elementos das elites
mas ciosas
tradicionais , mesmo quando econômicamertte decadentes ,
bem
como
a
insegurança
",
e exigentes das distâncias com a "plebe
quando
do status do elemento que está ascendendo econômicamente ,
alguma mobilidade já se faz possível , tôdas essas coordenadas até
certa medida confirmam a transitoriedade , a superposição de uma
estratificação em castas , em processo de esvaimento , e o tímido surgimento de u'a mais autêntica estratificação em classes.
De início, fixado o status através do nascimento , a êste se ligavam valores incorporados nos costumes , na tradição , em íntimo relacionamento com o poder político e a riqueza , quase tôda dependente do domínio e da exploração da terra.
Mas, se o nascimento era o principal fator na determinação da
posição social - a mobilidade social pràticamente inexistindo - a
partir do momento em que o sistema começa a sofrer algumas transformações econômicas , o fator determinante básico também começa
a sentir alterações , ocorrendo , ao mesmo tempo, estímulos diretos e
indiretos à mobilidade social , que será, no entanto , muito lenta, quase
episódica.
Quando o nascimento e a tradição começam a perder seu influxo
como critérios fixadores do prestígio , do poder , verifica-se que, de
algum modo , o regime tradicional começa a ser rompido.
25
A inserção de novos fatôres vai demandar novas exigências sociais, surgem novos papéis a serem preenchidos, resultantes das próprias exigências da infra-estrutura que, embora levemente, de alguma
sorte, está sendo tocada por elementos que vêm de alterar o seu
ritmo, o seu processo de organização.
Assim é que se abordará a organização e o funcionamento da
família, compreendendo-a ainda integrada, vivendo sua fôrça centrípeta, abarcante, totalizante, todos os seus componentes agindo em
função de sua manutenção e inteireza ; e, mais além , seu processo de
mudança.
O eixo controlador do chefe da família e do chefe ou líder do
clã, sua atuação no comando de tôdas as atividades, por mais íntimas que sejam , seu poder que se estende do aconselhamento às decisões e mesmo à distribuição da justiça - tribunal em última instância que afinal êle é - será analisado em função principalmente
dos seus dependentes, dos seus satélites. Assim é que se examinará
o papel do homem e da mulher, do senhor, do servo (ou escravo?)
e da clientela, do adulto e da criança, do velho e do jovem, do membro do grupo e da "gente de fora", todos êles de algum modo direta
ou indiretamente vinculados ao chefe, ao senhor, ao dono.
A compreensão do grupo familial, neste caso, só se faz plenamente possível se vinculada à figura do chefe do grupo doméstico,
ao patriarca e senhor. Ver-se-á ainda o processo de desintegração,
senão do poder, pelo menos do contrôle do pater-familias dentro
do próprio grupo familial, quando a aproximação com o meio
urbano vem de influir nas relações entre pais e filhos, entre a mulher
e o homem, e surgem novas formas de comportamento, novos costumes decorrentes do contacto com novos valores e horizontes.
De outra parte, vale ainda observar a estruturação e o funcionamento dos vários grupos naqueles aspectos que interferem ou estão
relacionados com a família e seus processos de manutenção e transformação.
Dêsse modo é que se verificarão no grupo feminino, no comportamento da mulher, relações de aproximação e um relativo desaparecimento das barreiras ou das distâncias sociais quando se trata
de constatar sua relativa inferioridade em relação ao outro sexo,
além da resignação e do sofrimento resultante das infidelidades dos
homens. Ao mesmo tempo não se deixa de atentar para os processos mediante os quais as barreiras automàticamente se levantam
para distinguir as senhoras das "cabras", das negras, das "camumbembes", distanciando-as socialmente.
Há que se observar, ainda, as alterações por que passa o comportamento feminino das camadas mais altas, graças ao contacto ou
à passagem para o meio urbano, e a quebra, leve embora, mas gradativa, de sua subserviência, entre outros aspectos, no que toca, por
26
exemplo, à escolha do homem para o casamento , ao vestir, ao falar,
ao próprio modo de tratar ou entrar em relação com o homem.
Quanto ao comportamento feminino ainda se poderá ver a diferença entre a mulher mais jovem e a velha, os relativos direitos e,
mesmo, os podêres que esta desfruta, bem como a moral sexual nos
diferentes estratos sociais, os valores femininos , e uma certa aceitação fatalista principalmente nas camadas mais altas, do comportamento quase promíscuo dos homens.
Por sua vez, o homem merecerá atenção naquilo que se refere
aos valores masculinos, à composição e ao desempenho do "machismo" como exteriorização dos valores patriarcais, como fórmula estereotipada de demonstração de fôrça, de poder, de prestígio.
O comportamento sexual do homem concorre, ainda, para a
própria ampliação do clã, através dos filhos naturais e adulterinos,
às vêzes admitidos no grupo doméstico, ou pelo menos identificados
e reconhecidos, e, de algum modo, vinculados ao processo de dependência e às relações de lealdades.
A relativamente complexa sistemática da introdução do elemento
masculino na vida sexual configura verdadeiros ritos de iniciação da
puberdade, e os valores sexuais masculinos conformam tôda uma simbologia da virilidade , cujos estereótipos chegam a exigir as doenças
"secretas" - mas de divulgação obrigatória para que se configure o
status masculino -, os filhos fora do casamento e tidos, muitas
vêzes, em idade avançada, a freqüência a certos lugares, as "casasmontadas", a própria exigência quanto ao comportamento das mulheres da família, etc.
O grupo infantil, realizando todo um processo de aproximação
dos indivíduos das diferentes camadas, igualados nos brinquedos, nas
descobertas , nas experiências , será observado nas suas relações internas de aproximação e afastamento, no treinamento dos componentes
("les années d'apprentissage"), nas relações das crianças com os mais
velhos, com os animais , com as lendas e os mitos, com as coisas e
com o mundo.
Ainda em diversos níveis de análise tratar-se-á de aspectos e
valores mais específicos, mas nem por isso menos significativos. Tal
é o caso da vida e dos valores políticos , sua estruturação e seus
processos de composição, os modos de manifestação do poder e do
prestígio, a política de clientela, de tutoria, de apaniguamento ou de
afilhadismo. manifestada como tradução, por vêzes avant la lettre,
da chamada política coronelística, do protetorado do senhor sôbre
seus bens - coisas e pessoas -, nos tempos anteriores à República.
Notar-se-á, então, a superposição ou a coexistência de formas
e processos feudais ou feudalizantes com outros tantos decorrentes
de uma estrutura política que envolve representação e sufrágio universal.
27
O voto "de cabresto" e o "curral eleitoral" serão, assim, resultados do contrôle do senhor sôbre seus fâmulos, formas bem expeditas que se adaptam às exigências do próprio sistema, expedientes
a atuarem no sentido da manutenção da própria estrutura sócioeconômica, criando e mantendo elites governantes que se constituem
principalmente nos potentados rurais, e na massa de dependentes no
sentido mais amplo da expressão.
Vinculados estreitamente aos aspectos da vida política estão
aquêles que dizem respeito ao manejo da vida jurídica da sociedade
como um todo e dos grupos específicos. Sôbre êsse aspecto se pretende identificar a coexistência de duas ordens jurídicas: a institucionalizada e formal, e uma outra que a esta direta ou indiretamente
se liga, discrepando e muitas vêzes se sobrepondo: o poder privado,
a justiça privada exercida com vigor inexcedível pelos donos do poder
político e econômico.
O privatismo, a justiça doméstico-patriarcal desenvolvida pelos
grandes senhores, suas sentenças, as penas e castigos que êles impõem,
bem como a justiça privada do cangaceiro são aspectos que conformam a disposição privatística do poder e vão ser observados como
traços denunciadores do contrôle do mando e da luta pela preservação do status quo por parte dos senhores. Observar-se-á, ainda,
uma lenta mas constante quebra dêsse rígido contrôle, quando as
relações econômicas se alteram e a estrutura se defronta com novos
e diferentes valores, exigentes de um tratamento mais formalístico,
menos pessoalizado; quando a eficácia dos mecanismos arcaicos
começa aqui e ali a ser brechada, ou, quando menos, começa a
caducar.
Como as manifestações da vida político-jurídica , a religião se
encontra em estreita ligação com o grupo doméstico, seus modos
de realização fazendo-se, mesmo, dentro dêle, ou desenvolvendo-se
mediante expedientes sincréticos, idealizações e representações sob
a forma, por exemplo, dos "sacerdotes leigos- e das benzedeiras,
dos ritos, penitências, exorcismos, benzeduras, culto de imagens e
dos antepassados. A vida religiosa relaciona-se ainda com o comportamento do homem e da mulher, exigindo preceitos e censuras,
acompanhando tanto o cotidiano como até, mesmo, as manifestações da natureza.
Ainda em relação íntima com a religião estão os problemas
referentes à morte, quer do adulto, quer da criança, aos quais se
ligam alguns mitos e crenças, inundando a vida diária, principalmente da criança, de imagens, de "bichos", de mêdos. E como!
a morte, a doença, os resguardos, os remédios , as "meizinhas", o
mêdo das doenças "incuráveis " e contagiosas.
Dêsse modo é que serão observados os aspectos mais destacados da vida diária até o horizonte escatológico das ultimidades.
28
Capitulo III
ANALISE SOCIOLOGICA DO
CICLO DA CANA - DE -ACt7CAR
1. A VÁRZEA: "DAS ÁGUAS, DOS ARES,
DOS LUGARES"
Na várzea do Paraíba estão os engenhos dos Melo e de seus
parentes. As terras, em geral de boa qualidade, massapê dos melhores, estendem-se das margens do rio e das matas, onde estão
as casas-grandes, até os tabuleiros e as caatingas, terras imprestáveis para os partidos de cana, mas pertencentes aos grandes
senhores, que, além da cana-de-açúcar, plantam algodão e criam
gado.
O Santa Rosa, cabeça do império do coronel José Paulino "terras que êle para correr gastaria semanas" (B - p. 18), tem sua casa-grande nas bordas do Paraíba, onde, de quando em
vez, chegam as sêcas terríveis, trazendo a gente das caatingas, perseguida pela fome, e cujas enchentes magníficas enchem também
de alegria os pobres e os ricos, os senhores, seus servos e sua
clientela.
Vez por outra, a enchente traz problemas, forçando retiradas
como aquela que ocorreu nos tempos de Carlos de Melo ainda menino. Todos saíam às pressas, em carros-de-bois, para a caatinga,
e o nosso melhor "informante" lembra: "nós, os da casa-grande,
estávamos reunidos no mesmo mêdo, com aquela gente pobre do
cito" (ME - p. 47) .
Mesmo assim, com a água entrando, devastando as roças, a
população das margens do rio correndo para o engenho, o velho José
Paulino temia mais as sêcas; e dizia: "gosto mais de perder com a
água do que com o sol" (ME - p. 45) . E mandava atender os
flagelados que se abrigam como podem , na casa-de-farinha, o coronel fazendo distribuir comida, abrindo barricas de bacalhau para
o povo.
Os céus cinzentos, os anúncios de cheia nas cabeceiras, de
crescimento do rio aqui e ali, tudo isso prepara os espíritos para q
acontecimento, "O Paraíba inchava de cheio, roncando. As suas
31
águas cresciam. Falavam de açude arrombado no sertão . O bicho
já andava pelas várzeas, repetindo a façanha de setenta e cinco e
de vinte e três" (U - p. 344) . Nesta última, o velho senhor do
Santa Rosa fizera sair o neto, a filha, as negras da cozinha, todos
de carro-de-boi. Passados os anos, seu filho Juca sai com a mulher,
a filha e as negras, algumas dessas, as mesmas de vinte e três, de
carro-de-boi, ainda uma vez para a caatinga. E, assim, o Paraíba
vincula-se estreitamente à vida do engenho Santa Rosa e à da sua
sucessora, a usina Bom Jesus.
Nos tempos do engenho, os preparos começavam quando se
sabia dos relâmpagos nas cabeceiras e quando as chuvas não paravam. Temia-se, então, pelos caixões de açúcar, pelos tanques de
mel-de-furo, e tomavam-se as providências necessárias . E quando
as águas "comiam as ribanceiras" e atingiam as casas dos mora-^
dores, as terras mais baixas, chegando, logo depois, à casa-grande,
lá se iam as touceiras de coentro, de couve, dos leirões da velha
Sinhàzinha.
Sabia-se então que as ruas da vila do Pilar já não tinham mais
casas em pé; e as cheias levavam velas aos santuários, homens e
mulheres apavorados com o rio tão bom, que nas baixas deixava
crescer a batata-doce para matar a fome do povo, que dava peixe
para melhorar a dieta do bacalhau e da carne do Ceará, e que na
cheia chegava a arrancar árvores enormes. Nos momentos normais,
nos açudes cheios, as maracanãs gritavam e as curimatãs espanavam
a água. Cheio o rio, as comunicações ficavam impedidas e se utilizava o búzio para tocar o aviso de que havia gente ilhada, precisando de socorro, pois naqueles momentos "não havia canoeiro que
tivesse coragem de meter uma canoa n'água" (U - p. 344).
Quando o rio baixava, nas estiagens de verão, quem não tinha
água nas proximidades vinha buscá-la nas cacimbas do rio, dos
afluentes que acompanhavam seu regime, rios e riachos de nomes
tão sonoros: Crumataú, Gurinhém.
Nas águas do rio e nos seus poços, brincavam os meninos da
casa-grande com os filhos dos moradores e dos servos da casa, o
banho de rio sendo folguedo favorito e até mesmo ponto de descoberta do sexo, quando os moleques avistavam os peitos das lavadeiras batendo roupa nas pedras.
As águas do Paraíba, como a mata do Rôlo, mata fechada nas
terras do Santa Rosa, serviram, ainda, para o menino Carlos de
Melo nelas identificar os rios e as florestas das estórias da velha
Totonha.
Nas águas do Paraíba, a "cabra" Margarida irá pescar e mariscar de facho, dizendo ao povo, depois que vira um lobisomem,
o qual será "identificado" com o seleiro José Amaro, a estória correndo de bôca em bôca. Ali também se banhará o moleque Ricardo;
32
quando fugira "para o Recife levara no couro a lama do Paraíba"
(U - p. 112 ). O "moleque ensinado " do Coronel José Paulino,
já homem, recordará os banhos do poço com os outros meninos, os
banhos dos bexiguentos que quando escapavam "deixavam na água
a doença, os últimos restos da bexiga" (U - p. 113).
A negra Generosa, viva ainda , quando os partidos de cana da
usina cobriam tôdas as terras do antigo Santa Rosa, teme tudo isto,
e Ricardo comenta significativamente: "O Dr. Juca não tomaria do
povo as vasantes, aonde só crescia o gerimum e a batata dôce. O rio
era do povo, ninguém mandava nêle. Nunca ninguém pudera com o
Paraíba, cheio de vontades, entrando pelas várzeas , subindo pelos
altos, matando cana, cobrindo tudo de lama" (U - p. 113). Ricardo
achava que o rio tinha "uma fôrça que vinha de Deus. Ninguém
podia parar as suas correntes, êle comia a terra que bem queria. O
coronel José Paulino ' para êle era igual a João Rouco. O rio era
dos pobres . Não acreditava que tomassem a vasante dos pobres"
(U - p. 114).
Com a usina se altera a relação do homem com o rio, agora¡
imprestável para lavar roupa - a água suja cortava o sabão - e
temia-se beber a água cheia de imundícies.
"A usina despojara o Paraíba de suas bondades, mijando aquela
calda fedorenta... as arribações sertanejas corriam dêle, procurando outros bebedouros para suas sedes . Pássaro que ali pousava,
só aquêle bicho de andar banzeiro , como de negro cambado" (U
- p. 195).
A usina logo depois utilizará o riacho Vertente, "que se perdia
ãtoa, cantando manso pelas matas escuras , dando de beber com sua
água doce o povo do Pilar, e que vinha agora, à fôrça de instrumentos, para a serventia da Bom Jesus " (U - p. 184) .
No engenho do Dr. Lourenço, a situação era diferente. "As
terras dali já eram outras, que as da Várzea ... os riachos corriam,
de inverno a verão . Terras de águas perenes" (B - p. 146) ..
Contudo, os rios não davam peixes e os atoleiros, mesmo no verão,
davam sezões.
No colégio de Itabaiana, interno, Carlos de Melo, apelidado
Doidinho, encontra num outro rio o lugar dos folguedos dos meninos. Nos banhos êles conversavam, longe dos olhares do censor
e do diretor, sôbre as coisas "proibidas", o banho representando um
dos raros momentos de liberdade dentro do tratamento cruel do
colégio.
Quanto às terras, se no Santa Rosa do coronel José Paulino
muitos "partidos de cana" eram famosos pela alta qualidade de
suas terras, a "flor-de-cuba" não passando do massapê mais produtivo, com a usina e a extensão dos partidos; caem as matas, os
tabuleiros , as várzeas dos rios pequenos onde os moradores plan33
N
tavam seus roçados de banana comprida, de abacaxis, laranjas, as
frutas famosas da feira da vila.
Cairão também aos poucos as árvores seculares, de beira de
estrada e das matas; jequitibás, arueiras, cajàzeiras, pitombeiras,
jaboticabeiras, cajueiros, nas quais se enramavam flôres nativas:
açafroas, orquídeas e bugaris. A tão falada "fome de cana" das
usinas espalhará os "partidos" até as beiras das caatingas.
Também os animais cumprem papéis de destaque na vida da
várzea. Os bois, peças de importância no trabalho dos engenhos,
sobreviverão na usina, o massapê exigindo sua presença. Os que
puxavam os carros, batizados com nomes sonoros, constituíam a
elite dos animais do engenho e da casa-grande.
De carro-de-boi fugiram as famílias do coronel José Paulino
e do Dr. Juca nos momentos das enchentes. De carro-de-boi ia
Maria Menina do engenho Santa Rosa visitar, com suas servas e
as crianças, os parentes e as famílias dos foreiros mais amigos, os
moradores mais importantes, às vêzes compadres da gente do engenho. No carro-de-boi podiam viajar juntos, quando era necessário, os senhores e os servos, numa espécie de democracia do transporte. Nos carros-de-boi são levadas as canas dos "partidos" para
as moendas, quando para tal fim não se usam burros e jumentos
armados de cambitos.
As vacas serviam à casa, e logo ao nascer do dia vinham "os
meninos que tinham mães paridas, com as garrafas para a ração
de leite que lhes dava o senhor de engenho.... Chegavam portadores
do Pilar com vasilhas de flandre. O velho José Paulino nunca
vendeu uma gôta de leite de seu cercado. Tudo de graça. Criara
assim filhos de juízes, de promotores, de todos que lá mandassem
pedir" (B - p. 60/61).
O costume do coronel não era comum, ao que parece. Sabese que há muito gado no Santa Rosa e que quando êle morria "bêbedo com manipueira, era que o povo gostava. Estraçalhavam o
boi num instante, como urubús, levando até as tripas e os pés. . . "Por um pedaço de carne verde aquela gente arriscava a vida"
(B - p. 114). Mas se acaso o boi morria de picada de cobra,
logo se tratava de enterrar: temia-se que o povo fôsse buscar a
carne.
Importantes nas terras da várzea eram, talvez mais que nenhum outro animal, os cavalos. Êles chegam a marcar os status
sociais. José Paulino passa pela porta do mestre José Amaro esquipando no seu belo cavalo ruço. Vitorino Papa-Rabo se arrasta
em sua velha égua rudada, cheia de feridas. Os cavalos brancos,
fortes e bonitos do cabriolé de Lula de Holanda serão substituídos,
na época da pobreza e da decadência, por éguas insignificantes,
compradas com as economias de D. Amélia. Nas conversas dos
34
senhores "um assunto absorvente eram os cavalos de sela, Passavam um tempão nas disputas" (B - p. 153) .
Além dos cavalos, também os arreios e as selas demonstravam
riqueza e importância. O seleiro José Amaro se orgulhava dos arreios e da sela que o pai fizera, a pedido do barão de Goiana, para
o Imperador, e se sentia diminuído por não trabalhar com peças de
alta qualidade para pessoas importantes, reduzido a bater sola para
fazer alpargatas de gente pobre e a consertar os arreios podres e
velhos do cabriolé do engenho de "seu" Lula.
José Marreira, quando começou a ficar rico, tratou logo de
destacar sua montaria. Ainda foreiro do Santa Rosa, se sabia que
"o melhor cavalo de sela do engenho comia na sua estrebaria" (B
- p. 199) ; era "um belo cavalo ruço de arreios reluzentes" (13.
p. 225).
Na infância, a montaria é o carneiro. Ele carrega os filhos e
os netos dos senhores, é o companheiro de brinquedos, objeto de
grande estimação. O carneirinho branco de Carlos de Melo, já
grande e bem gordo, vai morrer para ser comido no casamento de
Maria Menina. Muitas lágrimas o menino derramará pelo amigo,
que foi tão invejado pelos moleques que com êle também brincavam,
mas não eram seus donos.
Mais tarde, na usina, os filhos do Dr. Juca, primos de Carlos
de Melo, passando as férias, passearão nas estradas de bicicleta,
presente de festas do pai, e não conhecerão os carneiros para brincar e correr, imitando os homens nos cavalos.
Quando a estrada de ferro chega até o Pilar, o trem será o
transporte para ir à cidade. E, mais uma vez, o transporte marcará
as distâncias sociais. Os senhores, de botina e chapéu largo, estarão aboletados na primeira classe; no percurso travarão conversas
sôbre política e sôbre as safras, as moagens e o preço do açúcar.
E quando Marreira começa, um dia, a viajar na primeira classe,
espantará seus antigos senhores e os outros potentados, causando
inveja e irritação nos seus antigos iguais.
As estradas lamacentas e poeirantes da várzea do Paraíba irão
conhecer, a partir do surgimento da usina, um novo elemento de
transporte , ainda mais eficiente na marcação das distâncias sociais:
o automóvel.
Juca será, nesse assunto, um pioneiro. Ainda senhor de engenho, êle comprará o seu automóvel, que passa levantando poeira
pelas estradas, causando inveja ao sobrinho do Santa Rosa. E êste,
nos momentos em que sonha com o soerguimento dos negócios
abalados, pensa logo no carro, no automóvel, como meio de mostrar a prosperidade, de se igualar aos verdadeiramente ricos.
As "baratinhas" de Clarisse, filha de Juca, e da americana,
mulher do químico da usina, também causarão espanto a tôda gente,
35
influindo na composição de um perfil de mulher ousada, montada
em automóvel, correndo pelas estradas.
Na vida da várzea há ainda que se observar a casa, a habitação.
A casa-grande do Santa Rosa não tem os luxos característicos
das grandes casas das famílias senhoriais. Dela dizia Carlos de
Meio: "só tinha tamanho . Tudo muito pobre: nem uma cadeira
bonita" (B - p. 18) . E os detalhes ajudam a confirmar: a cama
do velho José Paulino era de couro ( mas, dizia-se, a mesa era farta),
e só na época do casamento de Maria Menina, depois de muitos
anos, o coronel manda pintar a casa e - a grande novidade manda instalar banheiro com água encanada.
O Santa Rosa não tinha capela, - o coronel achava que o
engenho estava perto da vila, onde havia igreja, e onde todo mundo
podia ir rezar -, mas tinha o quarto dos santos.
Na "rua", antiga senzala, moravam os servos da casa. Os
vãos eram escuros, sujos, e todos daí sairão quando o engenho se
transforma em usina . A "rua" será então demolida.
Com a usina, a casa-grande também sofrerá grandes modificações: "o Dr. Juca cuidara de dar- lhe uma cara mais decente"
(U - p. 60) . "Queria que a casa-grande da usina não fôsse aquêle
casarão do pai, de telha vã, de chão de tijôlo , com aquelas meias
águas de taipa na frente, dando uma péssima impressão" (U - p.
66) . A cozinha perde as suas antigas "donas", as negras, e ganha
grades em suas portas, chaves nas fechaduras, despensa bem guardada. O usineiro dizia "que era preciso acabar com aquêle povão,
entrando pela cozinha a dentro" (U - p. 67) .
A casa-grande do engenho Santa Fé, cheia de tapêtes e espelhos nos dias de grandeza, tratada com requintes mais urbanos por
Lula de Holanda, homem da cidade, está inteiramente transformada no dia da morte do seu dono. E mais uma vez nosso "observador" será Carlos de Melo, que naquele dia foi ver o que êle chamou de "um quadro impressionante: seu Lula estendido na sala
de visitas, numa cama de vento, com uma vela acêsa e um crucifixo
de braços abertos, na parede ... e os tapetes velhos e aquêle cheiro
de morte, rescendendo" (B - p. 206). Ele observará ainda a casa
do engenho, o boeiro, coberto de melão de São Caetano e o matapasto crescendo até na beira do alpendre. Tudo acabado, morrendo.
A casa da usina São Félix será mais urbana, com varanda diferente das casas-grandes, com jardim mais urbano. Seu dono, presidente da emprêsa , construiu perto da usina uma capela : "não queria que os seus homens perdessem tempo com as festas de Santa
Rita. Ali mesmo perto da sua esteira havia Nossa Senhora e São
Sebastião para o povo rezar, pagar promessas, soltar fogos do ar"
(U - p. 316) . Destacava- se, além da capela , da varanda e do
jardim da casa , a pintura "a óleo" desta . Sabe-se que Marreira
36
pintou, também a óleo, a casa do Santa Fé, que êle reformou quando
comprou o engenho da viúva do coronel Lula. A tinta a óleo, ao
que parece, representou, nos momentos de ascensão social do usineiro originário da caatinga e do antigo servo do coronel José Paulino, a marca da riqueza em suas casas.
Das casas mais urbanas , só um destaque se faz : o sobrado do
comerciante Quinca Napoleão, do Pilar, e que depois será também
de Marreira, quando êste vende o engenho ao compadre Juca e se
transforma em comerciante.
As demais habitações se perdem na pequenez da taipa e da
palha, ou das casinhas de tijolo e telha que a usina fêz para os
"burgueses " - os operários , gente estranha que vem trabalhar nos
ofícios e nos misteres mais especializados da usina - e elas servirão
também para distingui-los da massa dos servos, moradores de casas
de vão, perdidas em pedacinhos de terra imprestável para a cana.
2. OS SENHORES, OS SERVOS E A CLIENTELA.
A ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL
Branco dorme na sala
Mulato no corredô
Caboclo na cosinha,
Negro no cagadô.
Carlos de Melo voltava bacharel do Recife para o engenho
Santa Rosa , a cabeça do império de oito grandes engenhos , o mundo
sob o domínio do velho José Paulino : "Era bonito , era grande a
sucessão do meu avô" ( B - p. 10 ). A grandeza do senhoriato
tinha chegado ao nível da consciência do então estudante de Direito
na Capital ; já ali se teorizava um pouco sôbre a aristocracia do
açúcar , os grandes senhores , a honra de pertencer às velhas famílias, a missão das novas gerações.
Com a "mudança dos tempos", a República e a fôrça crescente da cidade , os grandes da terra "levaram o tempo votando em
bacharéis , a servir de encôsto a prestígios de fora. E êles, os brancos,
eram mandados por mulatos mais hábeis ... que valia então a terra,
o latifúndio dominando mais de dois municípios?" (B - p. 12).
A bacharelice dos "novos tempos" alcançara o engenho ("queria
que fôsse bacharel. Fui bacharel" ( B - p. 66 ), e o neto do coronel
senhor de engenho teria a missão de "corrigir" o problema que começava a se apresentar tão grave : aquêle dos bacharéis-mulatos,
urbanos, subindo na política nos ombros dos brancos latifundiários.
O jovem doutor , cheio de idéias novas , se prepara para restaurar¡
a grandeza do Santa Rosa , para substituir o avô Ç 'via sua caminhada para a morte, sentindo que todo o Santa Rosa desaparecia
com êle" , ( B p. 13 ), "para empunhar o seu cacete de mando"
(B - p. 14).
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A carta de um amigo do Recife deixa mostrar as "teorizações"
e, mesmo, o que se entendia por "missão restauradora" das novas
gerações de senhores de engenho: "Pelo que você falava na Academia, o seu avô é o grande tipo do senhor de engenho" (B - p.
13) ; e vem até o incitamento ao colega para escrever um livro sôbre
"os homens do Norte", observando ainda : "Você, Carlos, é um
homem de sorte. Pode olhar para trás e ver avós brancos, os homens que fizeram a grandeza de sua família, a cavar a terra, a mandar
em negros" (B - p. 42) . A ideologia do poder junto à da "branquidade , e ao domínio da terra é ainda enfàticamente, retdricamente
dita e apregoada.
Mas o que Carlos de Melo via, realmente, era, ao lado da riqueza que existia (nove engenhos, terras a perder de vista, várzea,
matas e caatingas, imensos partidos de cana, segurança econômica,
prestígio político, respeitabilidade de um verdadeiro senhor), a relativa pobreza da casa, embora de mesa farta, os hábitos simples,
rudes, do avô; e neste, a certeza de que falhara nos seus descendentes que não pareciam levar adiante seu trabalho de dezenas e
dezenas de anos.
A grandeza do Santa Rosa não começava, porém, muito longe:
o avô do velho José Paulino viera de outras bandas, com um irmão
pobre, para São Miguel (uma vila perto do Santa Rosa) . Não ostentava títulos nobiliárquicos, mas "espalhará sangue de branco por
entre os caboclos daquelas redondezas" (B - p. 94).
O menino Carlos de Melo, nosso arguto observador, sente o
poderio dos seus, da família, no trato com aquela gente da qual êles
eram donos: a gentalha, os servos, os "camumbembes": "Eles nasceram assim porque Deus quisera, e porque Deus quisera nós éramos
brancos e mandávamos nêles. Mandávamos também nos bois, nos
burros, nos matos" (ME - p. 135) .
Senhor de muitas terras e escravos, o velho "gostava de percorrer a sua propriedade, de andá-la canto por canto, entrar pelas
suas matas, olhar as suas nascentes, saber das precisões do seu povo,
dar os seus gritos de chefe, ouvir queixas e implantar a ordem" (B
-- p. 57/58) .
As audiências, dadas quase sempre na sala e na varanda da casa,
iam desde as pequenas querelas, rixas, bate-bôcas, cachaçadas, até
as mais graves questões. A tudo se atinha com o ôlho acostumado
de juiz à sua moda . As brigas mais graves dentro de suas terras,
os problemas de honra de mulher, mereciam sentenças que eram
aplicadas dentro de uma velha tradição: o tronco funciona, então,
como antes de 88. E todos acatavam. As sentenças iam até a obrigação do casamento quando necessário.
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A gravidade de alguns casos levava a soluções estreitamente
ligadas à situação política: quando se está "de baixo" na política,
os cuidados, sob certo ângulo, aumentam.
Um homem havia matado por questão de mulher e há um per
dido de proteção: "Vá se entregar ao delegado. Eu não acoito criminoso. Se matou com razão vai para a rua. Aqui não quero que
fique. No júri, protejo. Entregue-se à justiça. Conte a sua história
ao juiz. No meu engenho nunca protegi criminoso. Quando a gente
está de cima muito bem. Caiu, lá vem a polícia cercando a propriedade" (ME - p. 94).
Nas audiências vinham os pedidos : gente doente que quer remédio (o senhor pessoalmente preparava remédios para dor-de-barriga e "puxado" de menino, vermes, entre outros; curava assim os
negros, os netos e os trabalhadores), pessoas que pedem carta "para
botar gente" em hospital na cidade (muitas vêzes trata-se de pedido
de internamento no hospício da Tamarineira, no Recife), que pede
terra para "botar roçado", lugar para fazer casa, carro-de-boi para
ajudar mudança, proteção na delegacia, no juiz. Assim êle atende
às "precisões" do seu povo, o patriarca cuidando, assim, do seu rebanho.
Quando a cheia do Paraíba arrasa as casas do povo que vive
nas margens, faz distribuir farinha e bacalhau.
"Tinha para mais de quatro mil almas sob a sua proteção" (ME
- p. 116) e não podia faltar ao seu povo, aos homens cheios de
andrajos, aos meninos barrigudos, aos seus servos, à sua gente.
As queixas também eram feitas nas audiências: eram brigas
sobre animais que entravam e comiam roçados, as implicâncias.
Também vinham os convites para as moças batizarem meninos; o
compadrio era um elo a mais nas relações entre "os de cima" e "os
de baixo".
O que o senhor não tolerava, a suprema traição, era trabalhador
seu "dando dia" em outros engenhos. Nestes momentos falava bem
alto o senhorio: "boto pra fora ... toco fogo na casa . . . " (ME p. 58).
O sentido da dominação, do poder, está bem simbolizado no
coronel José Paulino, com seu bastão de mando batendo nas lajes
da varanda da casa-grande; no coronel Lula de Holanda do Santa
Fé, em seu cabriolé passando nas estradas e veredas, sacudindo os
guizos dos cavalos; cavalos que, com a decadência, a pobreza, se
transformaram em mulas sem grande valor.
Mais tarde, o carro do doutor Juca, o filho usineiro do velho
José Paulino, ainda vai despertar, de algum modo, o respeito, o
temor e, até certo ponto, a admiração da "canalha", da gente das
estradas e da vila.
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O grito e o palavrão de José Paulino, o "cacête" que sempre
trazia à mão , são suas fórmulas de ostentação do mando, como a
empáfia, o desprêzo pela gentinha o serão em Lula de Holanda.
Descendente de gente importante na cidade - seu pai morrera nas lutas de 48 -, Luiz Cesar de Holanda Chacon pertencia
a família de tradição liberal e casara com a filha do capitão Tomaz
Cabral de Melo do engenho Santa Fé, seu parente, homem que
chegou à várzea antes de 1848, trazendo gado, escravos, família e
"aderentes". As terras eram vizinhas do Santa Rosa e foram ampliadas depois. Além daquelas coisas, o capitão trouxe moedas de
ouro, o que vai valer mais tarde sua filha e seu genro, na hora da
decadência, quando o Santa Fé ficou de "fogo morto".
O capitão educou a filha na cidade, com as freiras, no Recife,
onde ela aprendeu a falar francês, tocar piano e bordar. "Não queria
mulher dentro de casa, fumando cachimbo, sem saber assinar o nome, como tantas senhoras ricas que conhecia" (FM - p. 177). Êle
que nada sabia de açúcar (entendia antes do Santa Fé, de algodão e
gado), foi labutando a terra, às vêzes com as próprias mãos; sua fama
de econômico corria por tôda parte. Mas êle cresceu, inclusive na
política - era liberal, seus parentes morreram em 48, na revolta em
que morrera Nunes Machado. Quando os liberais estavam de cima,
êle mandava na vila, presidia a Câmara. Os do Santa Rosa eram
conservadores. Mas, a vizinhança dos engenhos fê-los, aos do Santa
Fé e do Santa Rosa, malgrado as divergências partidárias, amigos,
senão íntimos, mas sempre solidários.
O capitão Tomaz Cabral de Melo, "senhor do engenho Santa
Fé, chefe do partido liberal, pai de filha educada no Recife, com
piano em casa, que falava francês, que bordava com mãos de anjo"
(FM - p. 179), legou uma fortuna sólida à família. O genro apàticamente deixa que o engenho decaia.
A solidariedade dos donos da terra se comprova: malgrado as
diferenças políticas, o senhor do Santa Rosa compra um engenho,
até então de algum "catingueiro" que estava em questão com o Santa
Fé, a fim de que houvesse paz na várzea. De outra vez, oferece a
presidência da Câmara e dá uma patente a Lula de Holanda, que,
por sua vez, já que não se interessa pela política, oferece sua gente
para votar com José Paulino.
A tradição liberal do Santa Fé se apaga inclusive na apatia
política de Lula, deixando-ao vizinho e igual, branco e importante
como êle, o contrôle político da região.
Quando um grupo de cangaço invade o Santa Fé, a gente do
Santa Rosa toma a frente na defesa dos seus iguais . E Antônio
Silvino, o cangaceiro, que, quando no engenho de José Paulino em
"visita de cortesia', parecera humilde e sem importância ao menino
Carlos de Melo ("para mim tinha perdido um bocado de prestígio.
40
Eu o fazia outro, arrogante e impetuoso, e aquela fala bamba viera
desmanchar em mim a figura de heroi" (M - p. 33), chega ao
engenho de fogo morto quebrando tudo, arrombando o piano, gritando para o senhor do engenho desmoralizado, pobre e ridículo,
mas lutando pela aparência, com as jóias, o cabriolé , a fala gritando.
José Paulino intervém dizendo que Lula não tem o ouro que o
cangaceiro viera buscar , mas "se é dinheiro que quer, eu tenho
pouco, mas posso servir " (FM - p. 324).
A Abolição não alterara muito a situação do povo do Santa
Rosa. "A Senzala do Santa Rosa não desaparecera com a abolição.
Ela continuava pregada à Casa- Grande com as suas negras parindo
as boas amas de leite e os bons cabras do eito" (ME - p. 92) .
O velho conta a estória do dia da Abolição : "quando veio o 13
de maio fizeram um côco no terreiro até alta noite. Ninguém
dormiu no engenho, com a zabumba batendo .
Levantei-me de
madrugada para ver o gado sair para o pastoreador e me encontrei
com a negrada, de enxada no ombro; iam para o eito e aqui ficaram
comigo . Não me saiu do engenho um só negro. Para esta gente
pobre a abolição não serviu de nada" (ME - p. 137) .
No Santa Fé, já decadente - o coronel Lula vendera muitas
das boas "peças", os negros fortes que herdara do sogro - os
poucos que restavam se foram ; até as negras da cozinha; só ficou
o boleeiro do cabriolé.
Os que ficaram no engenho, negros e mulatos, os "cabras",
muitos talvez descendentes , parentes dos senhores e de seus filhos,
compunham tôda uma hierarquia : eram os "cabras" do eito e da
bagaceira , os alugados , a ralé do engenho; os "oficiais": carpinteiros, tanoeiros, mestres -de-açúcar, foguistas; os que sabiam escrever
e faziam compras na cidade, dos quais muito dependia a qualidade
e o rendimento do açúcar, gozando de certas regalias e respeitos.
Tocada de certo conformismo ante a vida que leva, aceitando
a situação em que se encontra ante seus "donos", com uma certa
dose de fatalismo (o "sempre foi assim" ), a massa da população
que transita no ambiente que ora se analisa tem níveis mínimos de
aspirações , está como que amortecida na faina diária , na mera sobrevivência quase animal . A admiração, durante a infância, pelos
"oficiais" e até mesmo pelos carreiros não é estímulo suficiente para
a luta por um status relativamente mais alto . A vala comum é o
eito e a bagaceira , aquêle exigindo três dias por semana nos tempos
mais recuados do engenho, seis, no tempo da usina . Os três dias
de folga, que seriam dedicados às suas plantações , talvez não cheguem para o cansaço e a bebida , e, assim, a família , a mulher e os
filhos, toma conta dos pequenos roçados, e se vive na mais completa dependência dos mil e duzentos réis do engenho.
41
Maria Alice, mulher do primo da gente do Santa Rosa que
é funcionário público na Capital , admirada ante a miséria do povo
do engenho, quer animar Carlos de Melo a um estudo sôbre o trabalho do eito e da bagaceira. "Seria - diz êle - uma campanha
admirável levantada por um neto de senhor de engenho. Seria
bonito: levantar-me a favor dos meus servos. Insistia para que
escrevesse o primeiro artigo. Os dados estavam em minhas mãos.
Uma vez perguntei-lhe se era comunista. Deu uma risada das suas
e me respondeu que era sòmente humana" (B - p. 107/108).
Para os "cabras" do eito, os "alugados", os horizontes iam até
os limites das terras do engenho. Traçado estava prèviamente o
destino: cambiteiro não passaria de cambiteiro, cortador de cana
não podia passar de cortador de cana, raros os casos como o de
Ricardo que um dia sonhou encontrar na cidade um meio de se
livrar de tudo aquilo.
Para a ralé dos alugados, os servos da casa-grande constituíam
uma espécie de privilegiados, gozando a proteção direta da família
do senhor, menos sujeitos, talvez, às agruras da doença e da fome,
alguns presos afetivamente aos seus donos. E se alguma ascensão
é possível esta será feita, como veremos com mais detalhes adiante,
através das filhas que caem nas graças dos senhores e dos seus
descendentes, tendo filhos dêstes, ganhando "casa montada", o que
constitui rara honra e distinção.
Um outro caminho, até certo ponto deplorado, mas, de qualquer modo, capaz de alterar a situação social da "arraia-miúda" do
engenho é a prostituição. A mulher daquelas camadas se já prostituída "faz a vida" nas feiras e nas pontas de rua da vila. Observa-se
que diante dos seus iguais ela adquire um certo grau de prestígio principalmente entre as mulheres, suas parentas e amigas das terras
do engenho - motivado talvez pela liberdade adquirida, pela capacidade de tentar outro caminho para se realizar, enfim, pela ousadia
do gesto. As "raparigas" que passavam na estrada, de chinela no
pé e flôr no cabelo, a caminho da feira do Pilar, estão um pouco
acima, socialmente, das mulheres dos "cabras" da bagaceira e do
eito.
O caso do moleque Ricardo é um caso isolado, raro. Ele fôra
"moleque ensinado" do senhor, montara na garupa do seu dono,
brincara com o neto do coronel e seu primeiro contacto com o
mundo urbano se fêz quando ia à estação buscar os jornais do velho
José Paulino. O fato de saber ler (segundo Carlos de Melo: sabia
as lições e aprendia mais depressa que êle) e de ter merecido as
atenções da família do senhor, decorrência de ser filho de negra da
cozinha do Santa Rosa, talvez tenham influído no seu sonho de
outra vida na cidade. E, quando volta, mesmo batido pelas experiências , à sua posição de privilegiado por ser gente da antiga casa42
-grande, se junta o saber ler e o ter vivido na cidade. Isto, de certo
modo, lhe garante um pôsto de algum destaque no barracão da
usina, ante os olhos dos "cabras" comuns das plantações da fábrica.
Na pirâmide social da sociedade dos engenhos, um pouco acima dos párias da bagaceira e do eito estão os rendeiros, que não
estavam obrigados aos "dias". Quem era assim "pagava fôro e
ficava livre da servidão da bagaceira" (ME - p. 60). Os rendeiros
mantinham, porém, tôda uma relação de lealdades com o senhor,
informando-o sôbre os problemas que surgiam nas suas bandas,
obrigando-se a vender a cana e o algodão que plantavam ao senhor
de engenho. Nas horas de emergência, foreiros e lavradores eram
chamados para o eito. Eles eram, por assim dizer, ". . . os pequenos
burguêses do engenho, desciam de suas ordens para (naquelas horas
de necessidade) êste contacto ombro a ombro com os párias. E não
recebiam nada pelo dia que davam. Queriam assim fugir da indignidade do eito, trabalhando de graça" (ME - p. 134).
Os "oficais": carpinteiros, tanoeiros, mestres-de-açúcar, podiam
comer na mesa do engenho ("ficavam na outra extremidade comendo calados" (ME - p. 21). Os mecânicos, mais livres, corriam
de engenho para engenho: não tinham dono.
Como já se disse, outro status tinham os que sabiam ler: "No
engenho de meu avô só quem sabia ler era êle, José Ludovina e
João Miguel. E porque soubessem ler conseguiam regalias, não
pegavam no cabo da enxada, botavam gravata nas eleições, iam à
cidade receber dinheiro, vender açúcar, fazendo os mandados do
senhor" (B - p. 167) .
As negras da cozinha, algumas saídas da escravidão, tinham,
dentro daquele mundo, também uma hierarquia, tinham seus status.
A que fôra ama de braço do senhor de engenho merecia trato especial, pedido de bênção, era tratada de vovó pelas crianças, livrava-as
dos castigos pedindo por elas, chorando por elas, e era respeitada
por todos. A ama-de-leite das filhas do senhor reinava como dona
da cozinha e era chamada de tia, seus filhos brincavam com os netos
do coronel. De qualquer modo, eram filhas e netas sucedendo na
servidão: "não conhecí marido de nenhuma - ainda é Carlos de
Melo quem informa - e no entanto viviam de barriga enorme perpetuando a espécie sem previdência e sem mêdo" (ME - p. 86).
Regalia tinha também o velho João Rouco, que merecia tratamento de "seu" João e que gritava com o coronel José Paulino:
foram companheiros, brincaram juntos, estavam velhos, todos dois.
Aliás, vale desde já assinalar que a velhice, de um modo geral,
contribui para despertar nos mais jovens certo respeito, a posição,
mesmo dos párias, se alterando quer em relação aos seus companheiros de estrato, quer em relação aos seus superiores.
43
Fora do engenho, a gente dos pequenos sítios, homens livres,
"brancos" talvez pelo parentesco mesmo que longínquo com as
famílias dos engenhos, eram tratados em têrmos de certa igualdade
pelos grandes; mereciam visitas e o compadrio funcionava como
refôrço da lealdade que se externava, principalmente, no voto
durante as eleições.
Às gentes da vila, os artesãos de lá ou das beiras de estradas
próximas , a elas não fugiam também dos laços de compadrio, de
amizade com os senhores dos engenhos próximos. O mestre seleiro
José Amaro, embora se comporte dentro de um quadro diverso,
insurgindo-se contra os senhores, gritando altivamente sua liberdade , esperando a salvação que viria pelas mãos do cangaceiro
Antonio Silvino , vai depender indiretamente dos grandes do Santa
Rosa para internar a filha doente no hospício da cidade . E o meio
usado é, ainda, o compadrio : a comadre aparentada com os senhores
de engenho vai conseguir a carta que abre o caminho para o internamento.
Sua altaneiria de artesão livre é, no entanto, sempre proclamada: "É verdade que senhor de engenho nunca me botou canga.
Vivo nesta casa como se fosse o dono" (FM - p. 20 ); e ainda:
"aqui nesta tenda só faço o que quero" (FM - p. 18) . E diz
que se fôsse delegado "senhor de engenho na minha unha não falava
de cima para baixo " (FM - p. 25), "não sou cabra de bagaceira
de ninguém" (FM - p. 26 ) ... "sou um oficial e não me entrego
aos mandões ... sou eleitor, dou meu voto a quem quero. Não
voto em govêrno" ( FM - p. 26).
Contudo, no fundo êle sabe que com sua "tenda" numa beira
de estrada , encravado nas terras do engenho decadente do coronel
Lula, êle não vale grande coisa. E diz triste ao mestre pintor, habitante da vila, sentindo que êste é um homem mais livre que êle:
"Você mora na vila, soube valorizar seu ofício " ( FM - p. 20).
Vitorino Carneiro da Cunha, esta figura singular , talvez o mais
bem traçado personagem dos romances de José Lins, e - quem
sabe? - de todos os romances regionalistas brasileiros, oscila fantasticamente entre a "branquidade " enfàticamente proclamada, seu
parentesco com os grandes da terra, e a pobreza que o aproxima
dos "camumbembes ", da "gentalha". Ele precisa gritar a todo instante : "Sou branco como José Paulino. É meu primo... não esteja
pensando que sou um camumbembe"... (FM - p. 34/35).
Os vínculos de família são ostentados para impor o respeito,
para enfatizar a distância social entre o 'branco " e a gente sem
tradição, "sem ' família" .
Malgrado o respeito e a afeição que tinha pelo seleiro José
Amaro , seu compadre , Vitorino não se pode furtar à observação
44
de que o mestre "não era de família como a sua : mas era branco"
(FM - p. 37).
A "branquidade " é, assim, um traço que distingue, mesmo
entre as camadas mais pobres. José Amaro para Vitorino não pode
ser comparado ao negro Passarinho , ou mesmo ao pintor Laurentino , que era homem livre e senhor de sua vida . Esses não eram
brancos. Contudo, Vitorino verificava que o seu compadre de certa
maneira era um inferior : "ora, um seleiro, um mestre de ofício..."
(FM - p. 37), diz êle. Já êle, se não tinha engenho, tinha, porém.
sua profissão política. E Vitorino Carneiro da Cunha, o Papa-Rabo,
observa a situação social do mestre seleiro : branco, livre, mas sem
terra, sem mando, batendo sola. Enquanto êle tinha parentes ricos,
gente grande na várzea do Paraíba, era "parente de barão". Sua
oposição à política dos parentes, seu voto livre , quase desaparece
quando aqui e ali a proteção da família surge para tirá-lo das entaladelas com a polícia, com os delegados, nos bate-bôcas , nos desaforos.
Vitorino casara com gente corrida do sertão; sua mulher viera
com a família , para a várzea, numa grande sêca e vivia de pequenos
trabalhos, criando galinhas e castrando frangos para sustentar a
família, já que o marido , com sua "profissão política", não ganhava
nada senão presentes , agrados dos poderosos, quando fazia favores
políticos . Se sua liberdade era ostentada ante os parentes importantes, inclusive através do gesto dêsse casamento com gente de
fora, do sertão, geralmente tida como gente suspeita e perigosa,
"camumbembe", enfim , daqueles êle precisará , por exemplo, para
"botar o filho na marinha".
Quando sua mulher escolheu mestre José Amaro , cuja independência êle tanto louvava, para padrinho do filho, êle aceitou;
mas por êle mesmo o padrinho do menino seria José Paulino, seu
parente, senhor de engenho.
Inconformado com sua situação de branco, de ôlho azul, mas
pobre, Vitorino extravasa sua rebeldia numa campanha contínua
pelo voto, 'pelas eleições, pelos liberais que estão no poder (os parentes eram conservadores) , pelo governador que vai, segundo êle,
obrigar senhor de engenho a pagar impôsto.
Contudo, José Paulino não pagará impôsto, os aguardenteiros
continuarão levando suas cargas para o sertão, independentemente
de selos, e os brados do voto livre de Vitorino perdem-se, como
sempre, nas estradas, nas veredas e nas ruas da vila.
Quando o seleiro apela para a saída pelo cangaço - Antônio
Silvino viria salvar os pobres da miséria - Vitorino se opõe.
Neste ponto , êle está com os parentes, contra o cangaceiro, pois
afinal de contas êle não é um "camumbembe". Os parentes são
senhores e o apoio dêstes não lhe falta nas horas necessárias. Sua
45
solidariedade com "os de baixo" é uma espécie de solidariedade
retórica ; aproxima-os a pobreza, é verdade. Mas êle sente que o
filho na marinha como que trará de volta, por outros caminhos, o
seu status cotidianamente abalado e necessitado de apregoamento
contínuo.
1
bu
A solidariedade dos senhores entre si não evitava, naturalmente,
as críticas , as pequenas queixas e diferenças . Aquêles que de algum
modo mantinham contacto urbano , pautando seus comportamentos
dentro de normas mais refinadas, não se cansavam de criticar os
modos dos parentes mais apegados à vida dos engenhos e à gente
das camadas mais baixas.
Tal é o caso, por exemplo, do velho Lourenço do Gameleira,
irmão de José Paulino. Mais importante que os outros, era doutor,
juiz de grande prestígio na cidade e chefe político do clã - "temia
pelo destino dos seus, entregues a erros de matrimônio, com camumbembes na família " (B - p. 154). Os irmãos tinham filhos
naturais, bastardos. O velho Joca do engenho Maravalha, irmão
de Lourenço e José Paulino, "perto dos oitenta ainda tinha filhos
em tudo que era cabrocha ... Nana da Ponte todo ano aparecia com
gente nova de testa larga e ôlho azul" ... (B - p. 154).
Doutor Lourenço , que "fêz carreira de juiz , fora quase sempre
das tentações da bagaceira " ( B - p. 154) era respeitado por todos
os parentes e pelos senhores de engenho que mantinham com êle
relações políticas, ouvindo-o , acolhendo suas opiniões; embora mais
refinado que os irmãos, deixava escapar as marcas da tradição familiar gritando e dizendo seus palavrões , contido em grande parte
pela espôsa que não tolerava aquêle tipo de comportamento. Nas
reuniões com os seus súditos - os outros senhores seus amigos políticos - a conversa era sempre a "gentalha": "Queixavam -se sempre dos trabalhadores. Nisto estavam de acôrdo , em reconhecer
nos seus cabras qualidades péssimas. Eram para éles uma gente
ruim, preguiçosa, trapaceira, que só prestava mesmo no relho".
(B-p. 153).
A mulher do velho Lourenço , D. Marotas , que vivera na cidade, não compartilhava dos modos de vida dos parentes e pal entas . "Dava remédio aos moradores, mas não passava i dia
na cozinha como as primas, da várzea. Nunca lhe vi - diz o sobrinho Carlos de Melo negra catando piolho ou em conserva contando enredadas" (B - p. 159). Era severa, "mas pagava aluguel,
tendo-as como empregadas a tanto por mês";. . . "a negra Josefina
que engomava no Gameleira tinha dinheiro na caixa" (B - p. 159) .
O comportamento de D. Marocas , inclusive no que se refere
ao tratamento com as servas e servos em muito se assemelha
ao de D. Amélia, mulher de Lula de Holanda, que andava de ca-
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briolé e que nas visitas ao Santa Rosa tanto espanta o menino neto
do senhor de engenho , pelos ares finos, pelas jóias.
As parentas do Recife , filhas de outro irmão do Coronel José
Paulino , quando vinham ao engenho - é ainda o nosso informante
Carlos de Melo quem lembra - falavam de ópera e revolucionavam
os hábitos da gente da casa . "Só viviam trancadas nos banhos mornos, dando trabalho às negras, lendo romances nas cadeiras de balanço. Punham esteiras de peri-peri para cima dos quartos delas,
porque tinham mêdo da telha-vã. Os moleques passavam o dia inteiro espantando os sapos da calçada. Corriam das baratas, com
gritos . E até em nós esta influência se exercitava : não tirávamos
os sapatos dos pés, por causa da gente do Recife" ... (ME - p.
140). Nestas ocasiões os moleques pequenos eram obrigados a
vestir calça, as negras conversavam baixo na cozinha, a tia Maria,
a filha mais môça do senhor de engenho, botava vestido de passeio,
e o velho não gritava.
Contudo , "uma delas dissera em carta a uma amiga da cidade
que o povo do Santa Rosa só tinha de gente os olhos" (ME - p.
140/141).
"Mamãe conta -- diz uma das primas - que morando aqui
a gente vira bicho. Ela quer que eu toque piano e fale francês"
(ME - p. 144) .
Os modos da gente do engenho apavoravam os parentes urbanos que os achavam igualados aos pobres, aos "cabras" ignorantes,
à gente miúda do engenho.
Quando Juca, filho do velho José Paulino, já é usineiro, com
filhos estudando no Recife, freqüentando as altas rodas da cidade,
D. Dondon, sua mulher, também filha de senhor de engenho, não
se agrada da vida da cidade ("O palacete da Paraíba ficara-lhe
sendo uma espécie de degrêdo" (U - p. 69).
Na usina, o marido quer impor uma nova disciplina , alterando
os hábitos da cozinha, evitando dar leite de graça aos moradores.
Mas ela prefere ainda as conversas simples com as negras antigas
do engenho . Não se acostuma com a obrigação de ser mulher de
usineiro.
Muito embora tão marcadas, por um lado, as distâncias sociais,
os estratos imobilizados pela tradição e pela rotina , não há negar
que, de outro, êles , aqui e ali , se aproximam ainda por laços nascidos da tradição , numa espécie de solidariedade decorrente do próprio marasmo e isolamento.
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3. O PROCESSO DE MUDANÇA - MOBILIDADE ASCENSÃO DA USINA - NOVOS PAPÉIS SOCIAIS
o lê lê vira a moenda
o lê lê moenda varou
o lê lê moenda findou
Dentro dêsse quadro geral em que se apresenta a sociedade
da várzea, dos engenhos e das vilas do Pilar e de São Miguel, não
há lugar para maiores mudanças.
Os engenhos de bangüês e o sistema de plantar e colhêr cana
obedecem aos modos criados desde o alvorecer da colônia, e a mãode-obra é recrutada dentro dos mesmos padrões, muito embora tenha ocorrido a abolição. Os filhos dos escravos são os servos dos
engenhos, não se apartam do quadro natural em que nasceram,
vão vivendo e irão morrer. Os senhores continuam senhores como
dantes, dominando as terras dos seus pais e avós, casando com os
seus parentes, tendo filhos com as servas, conversando as mesmas
conversas, aguardando o preço do açúcar que em geral não sofre
grandes alterações, colhendo algodão nas entre-safras, vivendo sem
as grandezas pintadas nos quadros típico-ideais.
A pirâmide social se arma dentro de limites relativamente estáveis, a comunicação ocorrendo, mas se fazendo dentro de linhas
demarcadas pela tradição e acatadas pelos elementos de cada um
dos estratos.
O processo de crescimento de um sistema como a usina será
feito concomitantemente com a absorção dos bangüês, e para êle
concorrerão outros elementos, alguns dos quais por êle mesmo provocados quer direta, quer indiretamente.
A política dêsse nôvo poder, a usina, será orientada no sentido de absorver, tanto quanto possível, os bangüês, que com ela
não poderão realmente concorrer, ou transformá-los em meros fornecedores de cana para suas esteiras. Por outro lado, ela tenta incentivar os foreiros, pequenos plantadores que forneciam cana para
os engenhos e que, por laços de compadrio e de outros sistemas de
lealdades, se ligavam às grandes famílias, a entregar-lhe, por melhor
preço, a cana plantada.
No caso em tela, tomado, objetivamente, a morte de um potentado como o coronel José Paulino e as desavenças familiares juntadas à incapacidade do neto de gerir o complexo empreendimento
que era o engenho vão concorrer para que o Santa Rosa entre numa
disputa que envolve, de um lado, elementos estranhos à várzea que,
sob a forma de uma sociedade anônima, se estabelecem com uma
usina dentro dos moldes mais modernos, capazes de dar outra produtividade, e de outro, os próprios descendentes do senhor de en-
genho, que tentam, dentro do nôvo sistema, continuar dispondo das
terras e das gentes da região.
A observação da produtividade que representa o investimento
da usina faz com que Juca, filho de José Paulino, tome as rédeas
do negócio, antes convencendo outros parentes a se associarem a
êle. Inicia-se então o processo de transfiguração: do típico engenho
em usina, do senhor de engenho em usineiro, com novos papéis
sociais a serem representados, novos níveis de aspirações, outro
comportamento relativamente à massa de servos agora a caminho
de outro estilo de servidão - o trabalhador de usina, o homem
de esteira de usina.
Quanto ao Santa Rosa, nosso mais expressivo ponto de referência, já intuíra Carlos de Melo - nosso mais eficiente "informante" - que o engenho acabaria com o avô ("não fôra o engenho
que fizera grande o meu avô. Êle é que fizera grande o engenho"
(B - p. 26), quando nas suas divagações se via impotente de levar
avante o que lhe caberia de herança: "Não era da espécie que êle
(José Paulino) admirava, daqueles que soubessem fazer uso da carta,
que botassem as coisas para a frente" (B - p . 66) .
As duas pessoas mais diretamente vinculadas ao engenho Juca, filho do velho senhor, e a velha Sinhàzinha, senhora da casa
por muitos anos, - temiam o fim do Santa Rosa quando mãos
inábeis como a do bacharel frustrado e neto predileto viessem a ter
de dirigi-lo.
O engenho continuava moendo, mas "as usinas, bem perto,
pagavam três mil réis" ... "o velho gritava, mas havia terra no
Santa Rosa para êles (os seus servos) criarem a sua cabeça de boi,
o seu bacorinho, tirar lenha de que precisassem para o gasto e botar
roça de fava e de algodão" (B - p. 105).
Começavam alguns dos rendeiros a "subir de posição". O caso
mais típico é o mulato José Marreira. Êle traça, no decorrer de
Bangüê e Usina, todo um caminho de ascensão social, chocando as
velhas famílias, os velhos senhores que ainda reinam na várzea do
Paraíba e nas terras da Goiana. Seu papel no processo de crescimento e de absorção econômica da usina é, nesse ponto, de análise
inestimável.
Rendeiro, e como tal, parte da clientela do Santa Rosa, Marreira fôra antes "cabra" do engenho, carregando aguardente, submnisso aos seus senhores. Como rendeiro, êle vai ter inicialmente
gado, cavalo e dinheiro na caixa, e a pouco e pouco será daqueles
raros servos que, segundo Carlos de Melo, ... "chegavam a ter
servos também" (B - p. 106) .
Com a evidente incapacidade do neto do seu antigo senhor no
manejo dos negócios do engenho, êle passará a fornecer cana à
usina S. Félix, ao que parece a primeira a ser implantada na região.
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Já então. . . "andava de botas e vivia de trem, comendo em restaurante . Tinha até patente de capitão ( observe-se a hierarquia,
neste caso) na bôca do , povo. Não era mais o seu José, subia. . .
(B - p. 199).
O processo de ascensão social de Marreira é observado pelo
povo nos mínimos detalhes. Dizia-se que em sua casa "só se comia
bolacha marca Maria e manteiga do estrangeiro. Diziam que as
filhas dêle só se acordavam com o sol alto. As negrinhas tinham
até uma empregada para lavar os pés, e que a velha andava de
chapéu, no trem" (B - p. 202).
Os antigos iguais do nóvel capitão não perdoam a visível ascensão : "saíra o outro do nível dêles, para mandar e oprimir" .. .
"e odiavam aquêle que fôra seu igual" (B - p. 231).
A primeira investida dos estranhos, donos da usina S. Félix,
no Santa Rosa - deixar passar os trilhos da estrada nas terras dos
Melo - foi dirigida ao próprio José Paulino. Ele resistiu. Mas,
já se sabia àquela altura que "a chaminé da usina não se sentia
bem, com um boeiro de engenho por perto" (B - p. 240). "Engolia tudo. Os boeiros ficavam de fora, tristes como catacumbas"
(B - p. 241).
O Santa Rosa, porém, não resistirá por muito tempo. O espólio do coronel José Paulino cria uma série de problemas na família. Fala-se de ouro, de libras esterlinas escondidas, de muito
gado, de dinheiro na caixa. O filho, Juca, disputa com o sobrinho
sôbre a herança. A filha, Maria Menina, fica com o sobrinho. E,
malgrado a presença, ou talvez melhor dizer, a presidência do velho
patriarca, o tio Lourenço do engenho Gameleira ("estou aqui diz êle - para que o inventário de Zé Paulino não termine em
cachorrada") (B - p. 179), a luta vai até os jornais da cidade
("fizeram até uma versalhada para o caso" (B - p. 179), e a
"solicitada" contra o juiz, na qual se dizia (o autor da "solicitada"
era Carlos de Melo) "que as sentenças na Comarca estavam sendo
compradas a peru" (B - p. 179) .
A figura de chefe do clã do velho Lourenço não fôra suficiente
para impedir que as desavenças domésticas chegassem ao extremo,
e chegarão ainda mais, com o tio mancomunando-se com o antigo
servo Marreira contra o sobrinho.
Ao lado da inépcia do nôvo senhor do Santa Rosa, cresciam
as usinas e o José Marreira, "que fôra cambiteiro, andara montado
em cargas de aguardente em viagens longas, até os confins do sertão" (B - p. 188), e que agora " ... era rico. Era um potentado" (B - p. 188), tendo aprendido na proximidade do velho
José Paulino - quem sabe? - como enricar, como fazer trabalhador obedecer, cana crescer, como ir para a frente.
As lutas de família não eram novidade na região. Em' outro
5c,
engenho de outra família, "processaram o inventário. Os filhos
brigavam, os genros exigiam, e a usina, de longe, como um uruburei, esperando pelo pedaço melhor" (B - p. 242).
Dessa maneira, caíram em mãos da usina outros engenhos, vizinhos do Santa Rosa: o Bogari, o Santo Antônio, o Boa Sorte, o
Santo André, o Pitombeira, o Roncador. "O engenho do Meio não
fez barulho, entregou-se como rapariga" (B - p. 241).
Vendo crescer em suas terras úm vice-rei - o ex-cambiteiro
do avô - Carlos de Melo quer indenizar e tomar de volta a terra
arrendada a Marreira, e não pode. A usina encampa a dívida, e o
nôvo-rico filosofa: "brancos que brigassem com brancos" (B - p.
237). A usina está agora pràticamente com o Santa Rosa na mão.
"O usineiro me dizia - o neto de José Paulino informa que nós
perdíamos quarenta por cento, botando fora uma riqueza" (B - p.
247).
Lula de Holanda, do Santa Fé, morrera deixando o engenho
aos pedaços, mas sem dever um tostão. O engenho há muito ficara
de fogo morto. A mulher vendia ovos e galinhas. Isto seria bonito
se fôsse como distração, como acontecia com aquela senhora de
engenho que fazia cocada. Mas, em verdade, era para sustentar a
família. Vendiam também verduras, coentro e pimenta. A casa
estava quase caindo, os tapêtes velhos, os lençóis em trapos, as mulheres sem as jóias, os trancelins de outros tempos. O entêrro de
Luiz César de Holanda Chacon foi feito e pago por José Ludovina
do Santa Rosa, seu afilhado; José Marreira vai comprar o Santa
Fé por vinte contos.
A filha do coronel Lula, que tocava piano e que estudou no
Recife, não casou. O pai não queria que fôssem candidatos à mão
de Neném os homens da várzea, mal educados e rudes. Quando
se fala no namôro da môça com o promotor do Pilar, filho de um
alfaiate da Paraíba, meio mulato, seu Lula vai logo dizendo que
"Nenem não era criatura para ligar-se a qualquer camumbembe
formado" (FM - p. 222). E a filha fica solteira, sujeita ao "serraa-velha" das quartas-feiras santas, crítica feita às solteironas.
Dono do Santa Fé, o "camumbembe" serviçal do coronel José
Paulino, dêle dirá Carlos de Melo, comparando-o com seu Lula: "o
verdadeiro senhor de engenho era o outro, o que saíra do eito, que
se fizera por si" (B - p. 248) . E agora "o quarto de seu Lula,
o chão que seu Lula pisava, a casa dos avós de seu Lula, teriam
aquêle dono, um moleque, um camumbembe. Um pé rapado qualquer andaria por aquêles corredores. E os retratos de Marreira e
da mulher dependurados nos mesmos lugares onde estiveram por
tantos anos os avós de seu Lula" (B - p. 250) .
Depois de marchas e contramarchas e de muitos acertos e cochichos com Marreira, Juca, filho de José Paulino, salda as dívidas
51
do Santa Rosa e compra-o ao sobrinho. Antes, este tentou acordos
com o gerente da usina, quando vê as letras vencidas, mas obtém a
seguinte resposta : "O senhor doutor sabe . Eu aqui apenas sou um
diretor-gerente . Sou membro de sociedade anônima" (B - p. 269) .
E sociedade anônima será o Santa Rosa, transformado em usina
Bom Jesus. Juca organiza-a: para tanto, conta com alguns parentes
menos conservadores . Um cunhado e o tio Lourenço não tomam
parte, preferem continuar nos seus bangüês.
Começam a dispersar os antigos servos da casa-grande e a
transformá-la numa casa de usineiro . As imagens do santuário vão
para o engenho de Maria Menina , de carro-de-boi. Alguns dos
agregados mais importantes , João Rouco, por exemplo, companheiro
de infância do velho José Paulino, dizia, quando Juca ;á começava
a assumir o poder: "Seu dotô, nasci e me criei por aqui. Estou um
caco de velho. Vou para o Gameleira do doutor Lourenço. Esteira
de usina não me pega" (B - p. 273).
Inicia-se a marcha dos mais conservadores para os recantos em
que o sistema mais tradicional ainda perdura.
Derruba-se a "rua", pedaço da antiga senzala onde se alojavam
s negras da cozinha e seus filhos. Devem fazer suas casas cm terrenos "lá no alto". A mulher do nôvo usineiro não se conforma, e
arranjam uma casa velha, tida como mal assombrada, para os mais
diretos servos da antiga casa-grande.
Os moradores antigos deveriam também se arranjar. Até a
gente da caatinga , (que "vivia com mais liberdade . Eram sempre
foreiros , criados longe dos gritos e do eito" ... " gente mais senhora
de si, mais atrevida") (B - p. 287), até esta deveria ser empurrada para mais longe . A usina não queria "casa de morador pelo
meio da várzea, tomando o lugar dos partidos de cana . A usina
não permitia que o povo ocupasse um pedaço de terra que fôsse
boa de cana" (U - p. 72).
A horta do engenho também não pode continuar ; vai se plantar
cana até junto da casa . "Aquêle povo devia saber que o tempo do
velho José Paulino havia passado". . . "O pai consentia naquilo
porque se viciara com aquela vida" (U - p. 67), dizia o Dr. Juca.
Logo após o início da usina, começam a aparecer pessoas de
fora, gente mais livre, que "vivia mais ou menos". Vieram maqui-.
nistas para a fábrica, peças para a usina ("aquela maquinaria não
tinha nada da mansidão do bangüê") (U - p. 75) .
Os operários e os mecânicos da usina estão livres do "vale".
Para os trabalhadores do plantio, do eito, "dinheiro não corria na
usina, mas uns vales de metal" (U - p. 117 ). Os sertanejos, que
chegavam das caatingas nos períodos de safra, "não se sujeitavam
a isto. Queriam o dinheiro corrente" ... (U - p. 117) . "Depois
da safra, corriam para as terras dêles , que eram livres ... " (U p. 117).
Os trabalhadores da usina, "não se conformando com as casas
de palha dos moradores" (U - p. 132 ), exigiam, mostravam que
tinham direitos . Era gente que vinha de outras usinas, eram os
"operários ", e "não aguentavam a menor repreensão" (U - p.
133) . Para êsses fêz-se um arruado de casas de tijolo e telha. Suas
famílias tinham modos diferentes e não se misturavam com os antigos servos . As filhas "falavam das matutas com um desprêzo superior. . . Eram filhas de operário, não estavam sujeitas à esteira"
(U - p. 158). E todos, homens, mulheres e crianças, " faziam sua
sociedade à parte. As filhas, os filhos, que se metessem com a cabroeira, sofriam castigo. O povo do mato , aquêles moleques que
andavam roubando pelas estradas , só podiam botar os seus filhos a
perder" (U - p. 157) .
Os operários, os mecânicos , que moravam em casa com chão
de tijolo, às vêzes eram protestantes: "liam livros de reza" (U p. 179) .
Das crianças, diziam os antigos moradores do engenho que elas
viviam "como príncipes". Os operários eram "marceneiros, ferreiros, maquinistas , turbineiros, que sabiam seu ofício e que haviam
subido um palmo acima dos outros. Mas êste palmo marcava uma
distância , uma separação de muitos metros" (U - p. 157) .
O povo dizia que "o pessoal da rua Nova era uns privilegiados,
como as negras da senzala . . ." (U - p. M). "O povo olhava
a rua da usina como se aquilo fôsse também casa-grande" (U p. 179), e os seus moradores " como se fôssem estrangeiros, gente
de outras terras, de outro sangue. Pretos e cabras como êles e no
entanto tão separados , tão diferentes" (U - p. 179) .
"Lá em cima - diziam dos `privilegiados' - estava uma
gente que se chama operário, um povo que não queria ligar com
êles" (U - p. 180). Os sertanejos que desciam para o trabalho
não tinham "bondade": "vinham para o meio dêles, pegavam no
cabo da enxada , namoravam as suas filhas, iam às suas festas, aos
seus cocos, embora depois se sumissem , se danassem atrás dos resertanejo só se lembrava da várzeae
nos tempos
llâmpagos"r
âmpagos".
de sêca" (U - p. 180). "Trabalhavam sem feitor, comendo na
hora que bem queriam , terminando quando bem entendiam" (U p. 181), e seu trabalho era mais rápido e mais bem pago que o
dos "alugados ". Para aquela gente , "grito de feitor, grito de usineiro não prevaleciam" ... "Ganhavam por tarefa. O trabalho de
um dia de um alugado da usina valia menos três vêzes que o dêles"
(U - p. 181).
As queixas dos antigos habitantes do Santa Rosa são muito
grandes : lamentam-se dos novos tempos.
52
53
Quando Ricardo volta de suas aventuras urbanas ouve das velhas do antigo Santa Rosa: "Acabou-se o bom tempo menino, desde
que o velho fechou os olhos que a gente pena. Mandaram até buscar cozinheira da cidade. Eu até penso muita vez que o Dr. Juca
não é do sangue da família. Vi aquêle menino nos cueiros , fiz muita
papa para êle (quem está falando é a velha Generosa, da velha estirpe das negras da casa-grande)". . . . "Pergunte a Avelina o que
sucedeu com Salomé? Tu pensas que pegaram o negro para casar?
A gente ficou igual ao povo do Pinheiro. Nem parecia que Salomé
era cria da casa. Podiam pegar o cabra e casar. A tua irmã está
feita rapariga, como as outras" ... "Trancaram a despensa" ...
"E a gente o jeito que tem é ir para a Areia morrer por longe,
igual ao povo do eito. Tudo agora é igual..." (U - p. 110).
Os antigos "privilegiados" da cozinha e da "rua" do Santa Rosa
estão igualados à "gentalha" do eito, aos moradores comuns. A justiça doméstica já não funcionava como nos velhos tempos do velho
José Paulino obrigando casamento às crias da casa, que, por tal,
deviam ter certos cuidados e maiores atenções.
Mas quando o usineiro pega alguém chupando cana, o castigo
é "tombar cana" ou o tronco. Nesse ponto, o velho sistema das penas
sobrevive intacto para a camada que sobrenada como pode nas transformações por que passa a sociedade dos engenhos da várzea, agora
já se enchendo de usinas.
Também já não se poderá mais caçar nem pegar passarinho.
Também a usina não fornece mel ao povo, como antes fazia o engenho. E para tudo havia vigias.
Embora para a maioria dos componentes das camadas mais
baixas todos os usineiros fôssem iguais - todos não tinham coração
-, as usinas entre si empreendem uma luta desenfreada: a São Félix,
de gente estranha à várzea e a Bom Jesus, dos Melo e seus parentes,
os antigos donos e senhores das melhores terras da várzea, capitaneados pelo Dr. Juca.
As primeiras vitórias são da Bom Jesus . Na luta de "branco
com branco", "José Marreira entrega o engenho Santa Fé, que comprara da família de Lula de Holanda, ao compadre Juca. Afinal,
embora êle achasse que aquilo era "um taco de terra que só dava
mesmo para um camumbembe como êle viver" (U - p. 147),
o fato é que tornara-se importante para os dois grandes usineiros.
E com a compra feita por Juca, "era uma segunda pessoa da família
do coronel José Paulino que assinava documento para o cabra que
fôra da bagaceira do Santa Rosa" (U - p. 161).
Ao lado do próprio interêsse, no jôgo, pesa para Marreira a
figura de senhor do Dr. Juca, diferente do seu outro compadre, Dr.
Carlos, que perdera para o tio as terras do velho Joé Paulino. Juca
aparece para Marreira como dono e senhor e as lealdades ainda
54
funcionam para êle preferir entregar seu engenho ao compadre e
não ao estranho da São Félix.
Embora sentindo os progressos da usina, os parentes, sócios
de Juca, não se sentem satisfeitos de ter que fazer negócio com
Marreira, pois malgrado êste andasse de botina e em 1 ." classe de
trem, era, afinal, um "camumbembe".
Mas não podem negar é que o parente, cabeça do empório
econômico da família , tinha facilitado uma série de coisas para êles,
e os tinha livrado dos perigos de ter de trabalhar para estranhos,
fornecendo cana, ou mesmo do perigo ainda maior: entregar de vez
seus engenhos. No fim das contas, agora todos têm automóvel
("carro-de-boi passava a ser uma condição humilhante") (U - p.
165), mobílias novas, piano, e podiam ir à Paraíba e voltar logo,
sem viagem planejada. E veja-se que senhores havia, como o parente
Baltazar do engenho Beleza que "falava de uma viagem sua ao Recife
como se tivesse ido ao fim do mundo" (U - p. 166) .
Os que não se conformam com as coisas que consideram extravagâncias e exageros dizem, como D. Neném do Maravalha, que
"automóvel só prestava para os maridos ficaram mais vadios e as
mulheres mais gastadeiras" (U -- p. 227) .
Cogita-se até de fazer Juca deputado, o deputado da família.
Amplia-se a maquinaria da usina, para fazê-la ainda mais produtiva. Os partidos estão cheios, as chaminés estão fumegando e as
locomotivas da Bom Jesus estão entrando pela várzea. Na última
safra, a usina dera mais de oitocentos contos de lucro. "Aquilo
que o velho José Paulino levara 80 anos juntando, o seu filho ganhava numa safra, sem abrir os peitos no trabalho" (U - p. 94) .
Contrata-se um químico americano para que a usina possa alcançar um produto ainda melhor e em quantidade ainda maior.
Todos se assombram com o ordenado do químico : quatro contos
por mês, com casa, criados e contrato, e ainda mais: uma mulher
também americana, que enche a casa de festas, que guia automóvel
e fuma cigarro, e que logo faz amizade com as filhas do usineiro.
Juca e sua família freqüentam as altas rodas, têm casa de veraneio na praia, têm "carro igual ao do governador": um Packard
último modêlo que vive correndo pelas estradas. A filha mais velha
tem uma "baratinha".
O usineiro está certo de que com o seu trabalho está ajudando
os parentes, com êle, a subir. Na Paraíba, na "pensão Mimi", a
mais elegante, quartel general dos usineiros ricos, êle espouca champagne com as francesas, e tem amante certa.
O preço do açúcar começa a baixar; a maquinaria do engenho,
montada por uma firma americana que garantia alta produtividade,
começa a apresentar sérios defeitos. Três safras ruins e, como conseqüência, maiores exigências do fornecedor, ao lado dos gastos re-
55
Dr. Juca, doente da espinha, anda com dificuldade , apoiado
em Rafael , filho mais môço da negra Avelina, irmão de Ricardo-
sultantes do alto padrão de vida levado pela família Melo se combinam para deflagrar uma grande crise que arrastará a Bom Jesus
por algum tempo, até que uma grande enchente vem de dar, pràticamente , o tiro de misericórdia.
Levas e levas de sertanejos começam a emigrar da caatinga
para a várzea, já começando a sentir as repercussões da sêca.
A fome é grande, e o Govêrno manda carne e farinha. Muito
para a São Félix, pouco para a Bom Jesus . Na São Félix, só tinha
a ração a família que desse um ou dois homens para o eito.
A crise e suas conseqüências são relacionadas, implicitamente,
pelo povo, as ocorrências do Alto da Areia, quando o velho Feliciano morrera queimado e os seus santos - dizia-se - desapareceram correndo para o céu ou foram encontrados intatos no meio
das cinzas.
Os primeiros efeitos da crise repercutem na própria família.
Juca vê que é impossível manter os filhos - que êle desejava um
dia mandar estudar coisas práticas na América do Norte a fim de
fazê-los úteis à usina, afastando-os, dêsse modo, do caminho que
os levaria a um diploma de bacharel - estudando no Recife. Para
agüentar as dívidas com o fornecedor, empenha -lhe o palacete na
Paraíba; mesmo assim , para continuar fornecendo para o barracão
Vergara põe o caixeiro-chefe dali como seu vigia na usina.
Como conseqüência, são suspensos os "vales" e há racionamento dos produtos vendidos no barracão.
Por outro lado, a própria família passa constrangimentos, vendo
que suas contas estão atrasadas nas lojas elegantes da Paraíba, e
Juca chega a apelar para Marreira , já então dono da loja importante da vila do Pilar, capacitado a fazer empréstimos . Mas êste
alega não poder emprestar ao compadre.
D. Dondon humilha- se ao ponto de pedir empréstimo ao
cunhado do marido , Cazuza Trombone, parente que não entrou no
negócio da usina, e que vive a criticá-los ao ponto de se tornar um
verdadeiro inimigo; e êste também nega.
E a mulher do usineiro chega, então, das rezas e promessas
até o apêlõ a uma curandeira famosa, já que à crise econômica junta-se a doença do marido, cada dia mais agravada.
Um dos parentes , sócio e fornecedor da usina, resolve então
vender sua parte à usina São Félix, temendo talvez a derrocada da
Bom Jesus e do parente diretor que a esta altura está com "mais
de mil e quinhentos contos presos" nas mãos do fornecedor Vergara.
Para o casamento da filha mais velha de Juca e D. Dondon
não se fará a festa sonhada-. A mãe tem de vender o gado que possuía no engenho da família e o enxoval é preparado pelas costureiras e rendeiras do velho Santa Rosa. D. Dondon lança mão do
linho que tem guardado e nada se pode fazer na Paraíba.
As negras do Santa Rosa começam a voltar, agora para a
usina cheia de dívidas e problemas. Vão voltando pouco a pouco
para a cozinha onde sempre viveram e ajudarão no casamento de
Clarisse, que, mesmo assim , será feito com festas.
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Quando o povo invade as terras da Bom Jesus para apanhar
lenha e água, dá-se um crime. Marreira, delegado de polícia do
Pilar, procura Dr. Juca com ordens do chefe de polícia para prender o criminoso . Mas há criminosos na São Félix, conhecidos de
todos, e ninguém prende: o chefe de polícia é amigo do Dr. Luiz,
presidente da São Félix.
Um filho de Juca "ofende" a filha de um sertanejo; o usineiro
vê-se forçado a dar quinhentos contos ao pai da môça e a mandar
o filho para o engenho do avô.
As máquinas da Bom Jesus tinham sido compradas a uma
companhia americana com garantia de hipoteca de engenhos dos
sócios da usina . Com a falta de pagamento, vão executar a hipoteca. Começa, então, uma luta entre os americanos e seu testa-deferro, o fornecedor Vergara, e a usina São Félix, todos dispostos a
pegar a Bom Jesus.
"Um dia apareceu o Dr. Pontual ( testa-de-ferro da companhia
americana que equipou a usina com máquinas modernas) na Bom
Jesus de automóvel , conversou com o Dr. Juca, falou da crise, do
açúcar, de Cuba, que estava também passando por grandes dificuldades, dos prejuízos da sua firma no Brasil, de tôda a sua boa
vontade para salvar as usinas que montara . E falou franco com o
Dr. Juca: êle ia executar as hipotecas, podendo o amigo ficar certo
de que não era por maldade . Era sòmente para se defender. Sabia
que a firma Vergara pretendia prejudicar os interêsses dos seus clientes. Ële era brasileiro , mas acima de tudo a sua honra. . . . Qualquer um, que estivesse no seu lugar, faria o que êle estava fazendo.
Os seus amigos da América confiaram nêle" (U - p. 315/316).
O fornecedor deixa de mandar mercadorias para o barracão
quando a fome é maior e uma epidemia assola as terras da Bom
Jesus , matando muita gente, a ponto de o povo da vila do Pilar ter
mêdo da usina e do prefeito ordenar que os mortos sejam enterrados lá mesmo. Temia-se que as pragas e invejas que atingiram
a usina se alastrassem até a vila.
Na luta pela Bom Jesus , a São Félix leva a melhor , comprando-a através o embôlso dos americanos e de Vergara.
O jeito , para os antigos sócios da usina que conseguiram se
agüentar, era fornecer para a São Félix. Joca do Maravalha fica
1
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indignado: "De senhores passariam a escravos, a fornecedores de
uma esteira que engolia a cana e chupava o sangue" (U - p. 342) .
E o velho senhor de engenho deixa o Maravalha para viver num
engenho do irmão Lourenço, que sempre estêve contra o negócio da
usina dos parentes.
O presidente da São Félix procura o Dr. Juca para oferecer o
que êle quisesse. D. Dondon reage dizendo que não estão às esmolas.
Maria Augusta, a filha mais môça do casal, começa a namorar
um rapaz, caixeiro de unia loja na Encruzilhada, no Recife. Quando
uma irmã de D. Dondon namorou um empregado de loja nos
tempos da riqueza da família, esta tinha ficado indignada. Do namorado de Maria Augusta sabe-se que é pobre, mas filho de gente
conhecida do Dr. Lourenço do Gameleira.
Quando uma grande cheia atinge a Bom Jesus, já nos momentos em que a usina deveria ser entregue aos seus novos donos,
o usineiro, o filho do coronel José Paulino, faz sua retirada às carreiras, com a família e as velhas negras do Santa Rosa, carregado
nos braços dos netos dos escravos de seu pai para um carro de boi
que os levará para viver nos engenhos dos parentes que sobreviveram à derrocada da usina.
O Paraíba, que as máquinas da Bom Jesus enchera de podridão
fazendo-o imprestável para o povo, estava numa grande cheia, suas
águas chegando aos batentes da casa-grande...
4. PODER, JUSTIÇA E IDEOLOGIA
Sob o aspecto ideológico e político-jurídico, os dados que nos
são oferecidos no "ciclo da cana-de-açúcar" apresentam, com boa
nitidez, o funcionamento das oligarquias no contrôle do mando, do
prestígio e do domínio sôbre uma vasta clientela que gravita em
seu redor.
Quando esboçamos uma análise da estratificação social naquela
sociedade se pôde ver como o poder do senhor, do patriarca, se
exercitava. Do prestígio do tamborete de palhinha especial para o
neto do coronel senhor de engenho, na escola em que os outros
meninos sentavam em caixotes de gás ("Havia para mim um regime de exceção. Não brigavam comigo. Existia um copo separado para eu beber água ... nas sabatinas nunca levei um bôlo,
mas quando acertava mandavam que desse nos meus competidores ... ") (ME - p. 54) chega-se à não menor importância do
menino no internato de Itabaiana (" ... o avô dêle tem nove engenhos. Meu pai vota com êle nas eleições") (D - p. 12) . E já
aí a própria criança começa a conceber, e aceitar, um mundo em
que uns existem para mandar e outros para obedecer.
5
te)
Carlos de Meio, em criança, pôde observar tôda a discriminação da qual êle é beneficiário, ouvindo as estórias contadas pelos
mais velhos sôbre senhores e escravos; aquêles castigando, ordenando; êstes sofrendo no tronco, nos bolos, nos gritos. Ele vê o
avô mandando em todo aquêle povo, decidindo a vida de tanta
gente, aplicando e mandando aplicar os castigos; mesmo assim, para
o neto o avô é diferente dos demais senhores, pois é bom e simples,
e êle acha que os servos de alguma sorte amavam o velho José
Paulino. Rememorando, êle diz: "O costume de ver todo dia esta
gente na sua degradação me habituava com a sua desgraça. Nunca,
menino, tive pena dêles" (ME - p. 134). E ainda: "Eles nasceram assim porque Deus quisera, e porque Deus quisera nós éramos
brancos e mandávamos nêles. Mandávamos também nos bois, nos
burros, nos matos" (ME - p. 135).
Na visão do menino há como que uma espécie de "direito natural" dos brancos e senhores sôbre os negros e servos. Talvez seja
êste o ponto básico sôbre o qual repousa tôda a idelogia das camadas
superiores da sociedade da cana-de-açúcar.
As oligarquias se estruturam dentro de padrões que destacam,
entre outros elementos mais relacionados com a riqueza e a tradição,
a idade e a importância social derivada da cultura e da freqüência
a outros círculos sociais.
Assim, por exemplo, o velho Lourenço do engenho Gameleira,
irmão do coronel José Paulino, encabeça aquela espécie de "grande
câmara" dos senhores de engenho da várzea.
Juiz de Direito de larga experiência, relacionado com a Capital
e com os círculos políticos mais importantes da Paraíba, o Dr.
Lourenço lidera a família e o círculo dos senhores que, gozando de
sua amizade, estão politicamente ligados a êle, usufruindo dos seus
conselhos e, naturalmente, de sua proteção. O tom verdadeiramente
presidencial com que êle trata com os demais lhe dá o poder de
articular, coordenar e, afinal, decidir os problemas, quer da família,
quer da vida política da várzea.
O próprio José Paulino, seu irmão , achando-o mais esclarecido,
para êle apela nos momentos necessários, incumbindo-o de dar soluções para as situações e problemas mais difíceis. Sua fama de
homem forte, de "coração duro", de homem de decisão, fazia-o
imprescindível na luta pela manutenção do poder e do prestígio da
família e do grupo de parentes e aderentes.
Conservador dos mais ortodoxos, Dr. Lourenço sabia odiar os
inimigos, e êstes o eram também do irmão do Santa Rosa, A compostura do velho Lourenço, "de óculos dourados e barbas aparadas" (B - p. 148), presidindo a grande mesa do Gameleira, rodeado de correligionários e parentes, talvez bem ajudasse a compor
a sua figura de comandante: "todos se calavam quando meu tio
1
59
falava" (B - p. 150), informa Carlos de Melo. E ainda : "Havia
os que tratavam por chefe, os mais chegados na bajulação" (B p. 152). Muitos almejavam "casar filho ou filha com gente do
Gameleira. Todos submissos ao doutor" (B - p. 152).
Além da assistência mútua, na família, quando os homens mais
velhos e experientes decidiam os problemas de tôda espécie, reservando-se a mulher para os raros momentos em que podia influir
e opinar, de um modo geral os senhores assistem também seus
dependentes e sua clientela, constituída, na sua grande maioria
de seus foreiros, compadres e eleitores, além de não apenas assistir,
mas muito mais decidir, sob várias aspectos, a vida e os problemas
dos seus servos.
Nas autênticas audiências ouvem-se queixas, exigem-se testemunhas, atendem-se partes, e também distribuem-se sanções e aplicam-se castigos.
O "tronco" funciona no Santa Rosa do coronel José Paulino
para os ladrões, para os que "fazem mal" a môças, a confissão sendo
retirada, muitas vêzes, à custa de muito castigo. E funcionará na
usina do Dr. Juca, talvez o mesmo "tronco" que castigou os servos
do seu pai e os escravos do seu avô. Mas, êsses castigos estão reservados aos servos, aos descendentes dos velhos escravos do engenho, à gente do eito, aos moradores, nunca aos sertanejos, aquela
"gente mais livre", que aparece nas sêcas ou nas épocas de colheita,
para logo mais correr para as terras mais livres da caatinga. E não
funcionará jamais para os mestres de ofício do engenho, nem para
os operários, os chamados "burgueses" da usina.
Quando Carlos de Melo é senhor do Santa Rosa, os que roubavam àlgodão, no pêso, ou lenha, nas matas do engenho, iam para
o "tronco". E o peão muitas vêzes concedido talvez tenha influído
para que êle fôsse tomado por um fraco, um senhor mole e sem
vontade, muito diferente do avô, dos tios e dos parentes, muitos dos
quais se tornaram famosos pela dureza e crueldade nas sanções
aplicadas aos seus servos.
A justiça privada dos senhores obedece, porém, a normas traçadas pelo bom senso e pela situação política dos mesmos. Quando
a filha de um trabalhador do Santa Rosa se diz "ofendida" por um
cambiteiro, o velho José Paulino manda botar o homem no "tronco"
para confessar o "mal feito". E êste logo grita: "vou para a cadeia,
crio bicho na peia mas não vivo com a descarada daquela quenga.
Eu não tapo buraco dos outros" (ME - p. 67). Mas a môça
confessa e jura que quem a ofendeu foi o Dr. Juca. E Carlos de
Melo recorda: "o meu avô não deu uma palavra. Só fêz dizer: soltem o cabra" (ME - p. 70) . E irá lamentar pouco depois o
fato do filho ter freqüentado academia para voltar fazendo coisas
daquelas, como êle e os antigos como êle.
Quando um criminoso de morte lhe pede proteção, o comportamento de José Paulino está orientado também em função do contrôle político. E diz: "quando a gente está de cima, muito bem.
Caiu, lá vem a polícia cercando a propriedade" (ME - p. 94).
E se isso, parece, nunca ocorreu nas terras e nos mandos da
gente do Santa Rosa, do Gameleira, bem se pode ver que, mesmo
quando se vive a situação da "queda", do "estar por baixo", a respeitabilidade de cada um e do próprio grupo representativo do estrato superior impede, ou, pelo menos, dificulta o gesto de violência
e desmoralização.
É ainda o respeito de José Paulino às origens dos seus iguais,
ao status herdado e laboriosamente conservado de Lula de Holanda,
por exemplo, que leva o senhor do Santa Rosa a convidar o velho
vizinho para presidir à câmara do Pilar, malgrado as teóricas divergências partidárias - era conservador o primeiro, teòricamente liberal, o segundo, liberal por fôrça de laços sentimentais e familísticos. Delineia-se, assim, num aspecto como êsse, a solidariedade
grupal que, embora bruxoleante naquele então, persistirá, com algumas nuances, quando fatôres estranhos começam a interferir na
integridade do domínio econômico e político das velhas famílias
da várzea.
Mesmo em plena decadência, o coronel Lula não esquece de
mandar avisar ao mestre José Amaro, morador de suas terras, para
tomar cuidado com os pedidos de Vitorino, pois êste estava contra
o parente do Santa Rosa, o vizinho poderoso do Santa Fé. E o seleiro logo observa: "êstes senhores de engenho têm uma maçonaria"
(FM - p. 307/308).
A atitude paternalista decorrente, inicialmente, da disposição
da propriedade sôbre a escravaria e da dependência da clientela em
face dos senhores vai, até certo ponto, formar um perfil de poder
e prestígio dos mesmos ante seus clientes e servos.
O poder e o prestígio de uni José Paulino ficam intactos até
a sua morte. Mesmo quando êle se diz "por baixo" na política, não
deixa de avisar que dará a necessária atenção a um homem morador de suas terras, mesmo em se tratando de um criminoso de morte
que êle acha que deve pagar pelo crime cometido. José Paulino é
acatado e respeitado por todos os seus; não deve um tostão a ninguém; as cêrcas marcam as propriedades que são inquestionàvel
mente suas; êle manda e todos obedecem e seus gritos são temidos:
fiscais do Govêrno não rondam sua casa e sua balança; a aguardente de seus alambiques viaja sem precisar de sêlo do govêrno.
Quando um homem matou outro na feira da vila logo se disse:
"encontrou homem para livrar êle'' (FM - p. 23); se fôsse no Santa
Fé do coronel Lula de Holanda, "morria de pôdre na cadeia" (FM
- p. 23) . Senhor realmente importante é aquêle cujos "cabras"
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não sofrem desfeitas; entenda-se por desfeita a cadeia, o júri sem
proteção, ou, em alguns casos, o júri mesmo, coisas que, se ocorrem,
demonstram que o homem é de ninguém, não tem protetor.
No quadro geral dos prestígios, do mando político e da justiça bem como da solidariedade grupal e familística, vale ressaltar
as posições de Vitorino e José Amaro, principalmente naquilo que
importa para a melhor compreensão da sociedade da várzea, já que
ambos interferem, direta ou indiretamente, no comportamento das
elites dos senhores e de seus clientes.
Se à primeira vista êles parecem quebrar a geometria dos que
mandam e dos que obedecem, cada qual apelando para saídas que
não se ajustam ao equilíbrio das fôrças postas na mesa do jogo
político, olhando com mais apuro, ver-se-á que, ao seu modo, um
e outro cumprem, no próprio jogo, as regras traçadas por aquêles
que realmente controlam o poder - o político pròpriamente dito,
e como conseqüência, a justiça, institucionalizada ou privada.
A saída de mestre José Amaro, na esperança constante de salvação por obra do cangaço, se representa, de um lado, a rebeldia
contra os poderosos, os senhores da várzea e da vila do Pilar, por
outro, representa a busca de outro poder, que êle julga representativo da verdadeira justiça, para nêle se apoiar . . . e dêle depender.
E veja-se que se trata de um poder ao qual se anexam outros elementos, inclusive o mito (do cangaceiro diz o aguardenteiro Alípio
a mestre José Amaro: "É reza que êle tem, mestre Zé, é reza, e
da forte") (FM - p. 97), a atitude heróica, o desassombro, a capacidade de enfrentar os donos da terra. O seleiro crê na redenção
que se fará pelas mãos do cangaceiro: "homem para endireitar êste
mundo só mesmo um capitão Antônio Silvino" (FM - p. 168)
e vibra quando sabe que Cazuza Trombone, senhor de engenho,
fugiu de Antônio Silvino, que na casa de José Paulino, quando o
bando lá estêve, "disseram até que a filha do grande servira a mesa,
como se fôsse ama dos cangaceiros" (FM - p. 99) .
José Amaro sente uma imensa alegria por ter de providenciar
farnel para o bando, por mandar sua mulher preparar comida para
os cangaceiros, por ter ajudado a dar comida ao "maior homem do
Estado", por ter feito alpargatas para os homens de Antônio Silvino.
Mas atente-se bem para o fato de José Amaro sentir sua ponta
de orgulho pelo cabriolé do Santa Fé, que êle lamenta ver aos pedaços, recordando os tempos de glória do engenho onde morava,
quando era senhor o sogro do coronel Lula. Embora com raiva,
êle conserta os arreios do cabriolé, obrigação que tem por morar
nas terras do engenho que para êle está perdido, com o senhor sem
coragem de trabalhar e que só vive de reza, comendo de gravata
numa mesa para a qual êle não era chamado quando está na casagrande, embora êle fôsse um oficial, um homem de profissão. O
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seleiro lamenta ter de viver num engenho que é "um ovo", mas
cujo dono não tem poder e prestígio , do qual êle gozaria, certamente, de modo indireto, como morador daquelas terras.
A oposição de Vitorino aos parentes é, de algum modo, uma
oposição retórica, como já se disse . O sentido de sua solidariedade
para com os parentes é evidente, bem como sua ideologia de "branquidade". Suas atitudes contra "os grandes " estão marcadas por
constantes contradições. Ele diz que os parentes estão com "governos podres", e sente constante necessidade de apregoar sua liberdade e independência - "sou homem livre ... Vitorino Carneiro da Cunha não se vende" ( FM - p. 106) - e de defender
uma peculiar concepção sôbre o voto e as eleições junto ao seu
compadre José Amaro : "um voto é uma opinião. É uma ordem
que o senhor dá aos que estão de cima . O senhor está na sua tenda
e está mandando num deputado , num governador" ( FM - p. 78).
Mas, José Amaro observa , nas idas e vindas do compadre nos
engenhos, tratando de política, de votos, com os senhores , muitos
dos quais êle diz que são de "boa política" e seus amigos , uma atitude de "chaleirismo", de pobre que vive "atrás dos grandes, como
cachorro sem dono".
E Vitorino, muito embora acuse os parentes , dizendo que o
padre e o juiz da vila do Pilar fazem o que aquêles querem, incitando o seleiro, que para êle é "homem livre", a votar contra os
poderosos , não deixa , aqui e ali, de , criticando embora, atenuar a
culpa dos que são do seu sangue. Os senhores de engenho vistos
como uma categoria , são os culpados de tudo, mas um José Paufino, por exemplo, não deixa de ter o seu valor . E diz: "Vitorino
Carneiro da Cunha não vai com esta história de senhor de engenho
querer fazer de terra como o Pilar, bagaceira . José Paulino é homem de bem , mas não se compreende que deixe um Quinca Napoleão na Casa da Câmara" (FM - p. 169).
Dói-lhe ver um Quinca Napoleão, que não é igual a êle e os
seus parentes , que não tem barões e coronéis na família , que vive
de loja na vila, gozando do prestígio dado pelo parente dêle, Vitorino. Por outro lado, êle se revolta contra o mando do senhor de
engenho na vila, que para êle é lugar livre , diferente da bagaceira,
onde estão os negros que hão que ser mandados pelos senhores.
José Amaro não entende, também, como é que os parentes importantes de Vitorino deixam-no entregue ao enxovalhamento das
críticas, dos apelidos e da chicana do "povinho", dos "cabras" e
negros de beira de estrada, que gritam a tôda hora para um homem
branco e de família o célebre "Papa-Rabo"!
Quando o bando de cangaço invade o engenho Santa Fé, Vitorino não se furta de defender , como pode, o mesmo Lula de Holanda, do qual êle diz tanta coisa: "êste Lula de Holanda vivia dando
1
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irmão depois da morte dêste, influíram na quebra gradativa do prestígio do engenho, cujo senhor, por incapacidade pessoal e doença,
passará a viver. situações nunca antes vividas por qualquer membro
da família.
em negro e pensa que a escravidão não se acabou" (FM - p. 283)
avisando logo ao senhor de engenho que com êle "ninguém grita.
Sou tão branco quanto você, seu Coronel" (FM - p. 281) .
E quando a tropa desfeiteia o Carneiro da Cunha, imediatamente os parentes vêm em socorro; José Paulino toma providências,
embora se diga que êle não está "de cima" com o govêrno e talvez
não agüente briga. O juiz, que é gente do senhor do Santa Rosa,
protesta, juntamente com outros senhores, contra a prisão de Vitorino, igualado com os "camumbembes" que êle tentava defender.
Os senhores do Santa Rosa telegrafam pedindo medidas urgentes ao
chefe de polícia, na Capital. E para lá viaja Vitorino, acompanhado
pelo Dr. Juca, seu primo. Os jornais criticam a prisão do "eminente
político", e êste não perde ocasião, quando dá uma entrevista, de
dizer que "êle e todo o seu eleitorado iriam às urnas para salvar a
Paraíba dos oligarcas" (FM - p. 290). E entenda-se por "oligarcas" os seus parentes, inclusive, dos quais êle dizia que "pensam que
os parentes pobres estão de esmolas" (FM - p. 281) e os quais
êle acusará diante do próprio José Paulino de serem os culpados pelos
atos do cangaceiro Antônio Silvino na casa de um homem de bem
- Lula de Holanda: "vocês dão proteção a êstes bandidás e é
isto o que êles fazem com os homens de bem" (FM - p. 325).
Aparecem, no Santa Rosa, cobradores de impostos: antes "nunca botaram os pés ali. O meu avô nunca soube o que era sêlo" (B
p. 197), diz Carlos de Melo. Ëste se vê na contingência de oferecer um carneiro ao cobrador; por motivos que não informa, "comprara uma vez um tenente de polícia com um boi" (B - p. 197),
e ao cobrador, depois do carneiro, diz, "mandei-lhe uns perus" (B
p . 197). De outra vez, pedem-lhe (êle informa que o pedido parte
do chefe (?) do Pilar) voto, dêle e de José Ludovina, um dos poucos
"letrados" do engenho. E êle dá. Como dera também, no júri, o
voto para livrar um criminoso de morte, recebendo logo após os
agradecimentos dos protetores daquele: "quando tiver o seu, seu dotô,
fale comigo" (B - p. 198) .
Meditando sôbre sua própria decadência, o neto do grande senhor observa: "o meu avô mandava no povo do Pilar. E juiz nenhum
tivera o topete de sorteá-lo para servir em juri" (B - p. 198) .
Com o lento crescimento de Marreira dentro de suas próprias
terras, já então devedor do antigo "cabra" do engenho do avô, Carlos de Melo cerca-se de vigias, temendo ser atacado pelo inimigo que
êle mesmo criara, e é procurado pelo delegado, dentro de sua casa,
a fim de que dê conta de um seu trabalhador que tinha assassinado
um homem do nôvo-rico.
Por seu turno o delegado da vila se queixa de ter de aturar
parentes de chefes políticos, como o impertinente e boquirroto Vitorino; e José Paulinó ante as ofensas feitas ao parente e ao juiz,
seu protegido, não titubeia em enviar o filho à Capital para entregar
sua chefia política ao presidente (provàvelmente o chefe do partido)
Carlos de Melo verá ainda o crescimento do seu antigo servo,
observando que êste deve ter já "a seu favor o juiz, o escrivão, tôda
a canalha do Pilar. Agradava mais do que eu - êle pensa - a
esta gente de rua, que vivia atrás de perus e garrafas de leite" (B p . 229). E êle diz que tomou então as providências : "peguei então
um carneiro gordo, que andava por dentro de casa, de tão manso,
comendo milho nas mãos das negras e mandei Nicoláu levar de
presente ao juiz. Preparava assim as minhas razões, caso fôsse à
questão. Um peru valia mais para aquela gente do que um bom
direito defendido" (B - p. 229) .
Mas, mesmo assim, Vitorino observa que se fôsse chefe, como
o parente, "não teria as besteiras de José Paulino, aquela tolerância
para com sujeitos safados, que só queriam comer no cocho da municipalidade" (FM - p. 357). Seus princípios de quixote oscilam
entre aquilo que êle considera bondade e honradez de José Paulino,
que é "homem de bem", e a complacência dêste - elemento ou
traço que se tem de contar naquele tipo de jôgo político - aceitando
proteger gente que êle julga desonesta, ajudando a eleger outros que
êle julga safados. A irritação de Vitorino, e mesmo sua insurreição
são frutos de tôda uma ideologia que êle esposa: "a verdade", "a
justiça" haveriam um dia de vencer.
A solidariedade familial começa a aparecer ante o fato de um
membro da família estar desfeiteado e ofendido por um "camumbembe". Os parentes do engenho Maravalha, indignados, chegam
a pensar em liquidar o ex-servo do coronel José Paulino. O velho
Joca dizia: "por mim, êste negro já tinha levado um ensino" (B
Com a decadência do engenho Santa Rosa nas mãos de Carlos
de Melo, neto do poderoso coronel José Paulino e sobrinho do Dr.
Lourenço do engenho Gameleira, se inicia um processo de decadência do prestígio do outrora influente centro de poder.
Observa-se que o afastamento do tio Juca, já então mais vinculado à família da mulher, e o certo distanciamento do próprio Dr.
Lourenço, talvez temeroso das desavenças havidas na família do
64
p. 286). Um morador do Santa Rosa chega a se oferecer para fazer
o serviço: "Se o senhor quizer, seu dotô, faço um servícinho no
negro" (B - p. 232)
A má vontade das autoridades da vila com o engenho que fôra
do velho José Paulino já é evidente. Só porque um carro do Santa
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Rosa "passara cantando por dentro da vila , intimaram o carreiro a
se entender com o major" (B - p. 293 ) . Agora as autoridade$
mandam tomar as facas dos homens do Santa Rosa quando estão
na vila, e chegam a prender alguns dêles.
No engenho decadente, os foreiros se recusam a pagar o fôro.
Sabedores de que o Santa Rosa estava "na mão" da usina, dizem
que "senhor de engenho não mandava mais ali. Fôsse para o inferno, porque só davam conta à usina" (B - p. 289). E quando
o neto de José Paulino queixa-se da invasão de suas cêrcas ao chefe
do Pilar, êste se recusa a tomar qualquer providência. Pela primeira
vez, o Santa Rosa recorria a delegado para assegurar o que é seu.
O seu senhor vendo-se desfeiteado acusa a polícia de "chaleirar" a
usina. "E um jornal da capital - diz ainda Carlos de Melo -,
do partido de baixo, publicava uma notícia onde dizia que a minha
propriedade fôra invadida pela polícia e me chamava de amigo e
correligionário" (B - p. 293).
Já agora a inimizade com o delegado era aberta. Antes, embora declaradamente "do outro lado o delegado ainda se mantinha
fingindo neutralidade" (B - p. 293).
O antigo prestígio da família de José Paulino e do Santa Rosa
volta à medida em que o dinheiro correr farto da usina Bom Jesus
para as obras da igreja, para os luxos da família, para os automóveis
e para as amantes do usineiro . Com Juca, restaura-se ainda a própria postura do senhor, ordenando aos servos, distribuindo castigos,
fazendo crescer o prestígio político da família. Ele podia dizer que
"fiscal na sua balança, ôlho de estranho nos seus negócios, não permitia em absoluto" (U - p. 85).
Antes do domínio de Juca no engenho que fôra de seu pai e que
êle transformara em usina sabia-se que, pela inépcia do seu sobrinho,
a família ali perdera seu comando nos júris, nas eleições. A usina
São Félix crescia e açambarcava o poder: "procurassem saber de
jurados, de eleitores que não fôssem crias da grande fábrica e encontrariam poucos. Os juris, as eleições, os padres, os juizes, obedeciam à vontade do usineiro" (U - p. 59).
Agora já se pensa em fazer Juca deputado, e se o velho comandante mais esclarecido do clã, Dr. Lourenço do Gameleira, nada
diz, não concordando com o nôvo empreendimento da família, outros
parentes, como o velho Trombone, já agora brigado com os parentes
e em constantes alianças com os estranhos da São Félix, "não se conformava com o Juca, um rapaz de ontem, chefiando a família, resolvendo por todos, manobrando com o dinheiro dos outros com
aquêle sucesso" (U - p. 94) .
"O velho (Trombone) se embriagava com a política. Tudo para
êle, no mundo, não se comparava com a sua deputação estadual.
Desde a Monarquia que alimentava sua vaidade com a posição po66
lítica. O Dr. Juca lhe arrancara o prestígio da família. Podia ser
que quizesse mesmo fazer-se deputado. E o Coronel via a ascensão
do parente, pensando na sua queda" (U - p. 163/164).
E o melhor partido da desavença tirava o usineiro da São Félix,
entregando a Trombone seus eleitores (dizia que "em política quem
mandava nêle era o velho do Massangana" (U - p. 164), e moendo em suas esteiras a produção do engenho do velho político, ajudando ainda mais a açodar os ânimos dos membros da família Melo,
já que o Dr. Luiz da São Félix esperava, um dia, mandar de vila
a vila: de Santa Rita ao Pilar.
Na disputa das terras do antigo engenho do coronel Lula, já
então de Marreira, pode-se observar o funcionamento do sistema de
lealdades. Quando o usineiro da São Félix faz proposta de compra
ao antigo servo do Santa Rosa, embora jogando pelo melhor preço,
Marreira não esquece de dizer: "Dr. Luiz o engenho é do senhor
com a condição. Se o meu compadre Dr. Juca não quizer. Fui
criado com aquêle povo e para que dizer não tenho queixa não
senhor. O meu compadre, o Dr. Juca não dando o preço que o senhor
chegar o engenho é do Dr." (U - p. 146).
Embora pensando que, na luta, o "Santa Fé seria de quem melhor oferecesse" (U - p. 149), Marreira não esquece que "a mulher lhe dissera que não devia contrariar o compadre" (U - p. 161).
O prestígio do Dr. Juca com o govêrno é admirado por todos,
Ele "conseguira do govêrno isenção de impostos para as suas máquinas, e dez anos sem pagar taxas de exportação" (U - p. 143) ;
D. Dondon, sua mulher queria "botar escola na usina para ensinar
os moleques pequenos. Já havia falado sôbre isto com o Governador. No ano que vinha chegaria uma professôra, paga pelo Estado"
(U - p. 191).
Embora o tratamento de Juca para com a gente da usina, principalmente os homens do eito, os que não eram operários, fôsse sempre duro, êle achava que o seu vizinho dispensava aos seus trabalhadores um tratamento tirânico. Mas, mesmo assim, não podia
deixar de constatar que o povo, inclusive o seu, vivia cheio de admiração pelo homem que veio de outras paragens competir com os
donos da várzea.
Logo que a usina São Félix começou a crescer, Juca já observava o contrôle do seu rival crescendo também: "procurassem saber
de jurados, de eleitores que não fôssem crias da grande fábrica e
encontrariam poucos. Os juris, as eleições, os padres, os juizes, obedeciam às vontades do usineiro" (U - p. 59).
E Juca trata, imediatamente, de retomar o prestígio do antigo
Santa Rosa, não se furtando a colaborar com quantias altas para as
obras da igreja, insinuando-se na vida política, aproximando-se das
autoridades do Estado para obter vantagens, desenvolvendo todo um
67
5
comportamento de senhor , embora em moldes diferentes daqueles do
velho José Paulino e, mesmo, do seu tio Lourenço.
Uma figura de importância no desenvolvimento dessa política
de contrôle absoluto sôbre as terras e as gentes da usina é o gerente
de campo, uma espécie de feitor numa versão mais moderna, incumbido de descobrir as melhores terras para ampliar as plantações, formando novos "partidos", de afastar os moradores das terras úteis
àquela ampliação.
Quando os moradores de uma região denominada Vertente se
vêem empurrados para os tabuleiros, tirados, assim, das terras em
que nasceram, onde nasceram seus pais e avós - e "estavam certos
de que as terras lhes pertenciam" (U - 199) - repete-se, dentro
de outro contexto, uma situação semelhante àquela do mestre seleiro
José Amaro, morador do engenho Santa Fé e o coronel Lula de
Holanda.
Ali, o senhor de engenho dizia ao seu morador: "Quem é que
manda neste engenho?" (FM - p. 157); e exige a saída do seleiro
que chegou menino naquelas bandas. E é significativa a expressão
do caçador amigo de José Amaro quando sabe do problema do
mestre, sendo expulso da terra que tem como sua: "Deve haver um
direito" (FM - p. 161). José Amaro acha "duro ir morrer fora
daquela casa que fôra de sua gente, que sentia como verdadeiramente sua" (FM - p. 161) ; e verifica que "não podia haver direito de pobre" (FM - p. 263), dizendo então: "Leva um homem
a vida inteira numa propriedade , cria raiz na terra, e chega uma
ordem para botar para fora, como se corta um pé de pau. Isto não
é direito" (FM - p. 268).
O mestre espera que venha a funcionar em seu favor o "outro"
direito, o direito que é feito pelas mãos do cangaceiro, que deve ser
o verdadeiro direito.
O poder e o prestígio de Juca e da usina Bom Jesus irão perdurar até o momento em que começam a surgir e a se desenvolver
outros pïestígios, outros podêres que estão fora de, alcance da tradição, do parentesco e das lealdades, isto é: quando começam a
crescer os podêres que emanam do dinheiro, das hipotecas, das firmas americanas, dos fornecedores e de potências novas que se querem igualar aos senhores da várzea.
Já agora a fôrça da tradição não é suficiente para manter o
status de senhor; e o próprio fracionamento do poder e do seu contrôle , na família Melo, resultantes das desavenças havidas e do despeito pelo empreendimento da usina, colaborou para agravar a crise
que arrastará a Bom Jesus e o Dr. Juca.
A verificação da situação crítica em que se encontra a emprêsa,
motivada , inclusive, pelos gastos de ampliação da usina , leva os
parentes e sócios de Juca a julgarem que o empreendimento fôra
6,8
grande demais e a temerem os resultados , já que se dizia que estavam,
quase todos , "no fogo". Chegavam êles, então, à conclusão de que
a Bom Jesus cairia, inclusive porque havia "os americanos ria frente.
E negócio com estrangeiro não era assim tão fácil não, porque vinha
o cônsul e o govêrno entrava na dansa " (U - p. 315).
Observe-se que a própria solidariedade familial, dentro do grupo
que se associou ao negócio , começa a ficar abalada : um dos parentes, temeroso do fracasso e do perigo de perder dinheiro, vende suas
ações ao grande concorrente da Bom Jesus, a usina São Félix. A
proporção que se constatam os abalos econômicos da usina, com
a divulgação e os conseqüentes comentários sôbre as hipotecas que
seriam executadas e o crescimento da dívida da emprêsa para com
o seu fornecedor e financiador , entra de imediato em evidente declínio o poder e, como decorrência, o prestígio do usineiro que tinha,
em alguns anos, restaurado o mando político da família, ameaçado e
posteriormente quebrado pela incapacidade do sobrinho em gerir
os negócios do grande engenho.
Agora, porém, a fôrça da tradição não será suficiente para
manter o prestígio. E se a evidente doença de Carlos de Melo funcionou para atenuar qualquer investida que representasse um abalo
de proporções tais que arrastasse tôda a família de roldão, agora
quase todo o grupo família] está comprometido no processo e elementos estranhos hão que ser incluídos no jogo , sem que se possa
contar com qualquer possibilidade de interferência de um membro
da família capaz de retomar o comando dos negócios, como antes
acontecera com Juca em relação ao sobrinho.
Dois dados podem ser apresentados como denunciadores da
quebra do prestígio do usineiro, o primeiro relativamente ao próprio
povo, o segundo em relação ao govêrno e aos órgãos de imprensa da
Capital.
Tendo corrido a notícia de que "a usina não era mais do Dr.
Juca, que só estava lá esperando o dia da saída" (U - p. 313),
o povo invade as terras da usina para buscar água. O vigia da Bom
Jesus mata um homem, "... e os jornais da Paraíba noticiam: na
usina Bom Jesus mataram um homem por causa de uma carga d'água.
O govêrno devia providenciar" (U - p. 313). A notícia é lida
em voz alta pelo gerente do barracão da própria usina, homem de
confiança e espia do fornecedor , e êle fará de logo a seguinte observação: "Já se fôrã o tempo de usineiro esfolar e matar e ficar esgaravatando os dentes. O govêrno mandava soldados, o govêrno era
de homem, não era de fêmea" (U - p. 313).
José Marreira, comerciante no Pilar e delegado, vai à procura
do Dr. Juca, seu compadre , dizendo ter recebido ordem do chefe
de polícia para êle dar conta do criminoso ; o ex-servo do Santa Rosa
pede desculpas ao filho do seu antigo senhor: está cumprindo ordens.
69
Juca lê a ordem e diz: "- Pode levar o homem. Eu é que não
sou capitão do mato para caçar gente" (U - p. 314) . Mas trata
logo de perguntar porque êle não vai pegar os criminosos da São
Félix, que anda cheia de bandidos, "gente com trinta anos nas costas" (U - p. 314) . Juca sabia que o chefe de policia vivia em
almoços na São Félix.
Com a sêca e a fome, os retirantes vindos da caatinga para a
mata, dá-se uma grande epidemia que mata muita gente na usina.
Quando Juca pede auxílio ao major, prefeito da terra, solicitando
remédios , "a resposta fôra aquela : que êle enterrasse os seus defuntos nas suas terras" (U - p. 323) .
Os retirantes vão pedir auxílio ao usineiro, e êste, "de pernas
bambas, pelo braço de Rafael, chegou ao alpendre para falar com
o povo: êle não tinha o que fazer, não tinha mais nada que dar.
Não era mais dono..." (U - p. 328) .
O barracão, cheio de carne e farinha, está fortemente guardado
pelo gerente e por um homem que tinha cometido um crime e que
fôra sôlto pelo Dr. Luiz da usina São Félix.
Quando o povo invade o barracão para buscar ali a comida,
Ricardo tenta abrir a porta- empregado que era do mesmo barracão - e morrerá com o tiro dado pelo "cabra" de confiança do gerente. Morre, assim, o moleque Ricardo, o que fizera greve no Recife, que pensara que o "líder popular" Dr. Pestana - o que "pregava revolução sem ser incomodado pela polícia" (MR - p. 70)
- salvaria o povo, como pensava mestre José Amaro do cangaceiro
Antônio Silvino; Ricardo, que saira do Santa Rosa para não ser
homem do eito, destilador ou carreiro, que tomou parte em meetings
na grande cidade, que vira gente morando em cima do mangue,
comendo carangueijo e "cuspindo sangue"; Ricardo, que foi operário, que foi prêso para Fernando de Noronha, o "moleque ensinado"
do velho Paulino e companheiro de infância de Carlos de Melo, vai
morrer abrindo as portas do barracão para os retirantes.
Com isto, o Dr. Juca está com a polícia dentro de casa. Além
de Ricardo, morreram o gerente do barracão e o "cabra" do rifle.
"Um jornal da Paraíba afirmara que o caso da Bom Jesus
fôra instigado pelo usineiro, por questões de dívidas" (U - p. 331) .
Com a realização de um acôrdo, a São Félix encampou as dívidas da Bom Jesus, "... e tudo entrava na paz de Deus entre a
Bom Jesus e a São Felix" (U - p. 333).
Agora, "a várzea do Paraíba nas mãos de um só dono" (U
- p. 334).
Dos sócios de Juca, aquêles que conseguiram se agüentar vão
para mais longe, arranjar terras para plantar cana. O velho Dr.
Lourenço, que não entrara na sociedade, abriga o irmão que fôra
dono do engenho Maravalha. O dono da São Félix pretende, am-
70
pliando os negócios, anexar o engenho de Cazuza Trombone, o
parente dos Meio que se tornou inimigo da família e que fornece
cana para a São Félix.
Na várzea , mandam outros donos, que farão sua justiça, com
seus delegados, seus prefeitos e seus deputados, talvez.
Se as lealdades, antes , se desenvolviam à base de uma servidão
e de uma clientela feita e mantida à base do compadrio, da tradição,
do parentesco, elas agora sobreviverão sob outras formas e expedientes que se organizam principalmente em função da maquinaria da
usina.
De senhores , muitos passam a fornecedores , presos à esteira
da usina, vinculados, até mesmo, pelo compadrio, ao diretor da usina. Este, porém, agirá sempre como membro de uma sociedade anônima, e os vínculos daquele tipo servirão, quando muito, para garantir a venda da cana plantada nas roças dos antigos bangüês.
Como a clientela, sobrevive a servidão, organizada em estratos
bem nítidos: a servidão da usina propriamente dita - os operários
que lidam com as máquinas - gozando de alguns privilégios decorrentes do tipo de trabalho que realizam, e o trabalhador do eito,
figura que permanece quase inalterada , já que a usina também implica num complexo que exige o latifúndio e a monocultura.
5. O HOMEM E A MULHER
As relações entre o homem e a mulher , bem como os status
masculino e feminino, tal como se apresentam em nosso material de
análise , não fogem muito aos esquemas apresentados nas construções
teóricas elaboradas sôbre a sociedade tradicional do Nordeste da
cana-de-açúcar.
A superioridade masculina, característica do patriarcalismo, dá
vazão a tôda uma ideologia sempre externada em fórmulas que a
tradição foi sedimentando e que só muito lentamente vão sendo
alteradas.
Tal superioridade está bem condicionada a um fator que constitui um dado que não se pode deixar de levar em conta.
Sem que se venha trazer à consideração as raízes ibéricas e
coloniais do fenômeno cuja importância é indiscutível , há que se
ponderar o fato de que o contrôle do poder e da riqueza estêve
sempre nas mãos do homem, e que êste contrôle veio funcionando
assim como um fator relevante no relacionamento daquele com a
mulher.
A ocorrência do patriarcalismo , do domínio masculino nas camadas superiores, irá influir, talvez por um mecanismo de imitação,
nas camadas inferiores , de modo a formar um modêlo social que se
impõe e que será extravasado mediante atitudes, comportamentos,
71
estereótipos imprescindíveis à configuração do próprio status masculino.
Ao homem das camadas superiores se vincula imediatamente a
categoria de senhor, de dono. A idade, a disposição do poder e o
seu acatamento pelos demais são reforços para compor o perfil do
patriarca, exigindo-se ainda um comportamento, uma postura, entre
outras notas características.
. Nas camadas mais baixas a idade também concorrerá para a
formação de um status especial, quer para o homem quer para a
mulher. Verifica-se então o funcionamento de uma estratificação
tanto sexual quanto etária.
Na sociedade tradicional da cana-de-açúcar, se o senhor é superior ao servo e o homem é superior à mulher, o homem e a mu,
lher mais velhos se colocam numa situação de superioridade diante
das pessoas mais jovens nos estratos a que pertencem. E conforme
funcionem outros elementos, entre os quais se destacam, por exemplo, os laços afetivos, as pessoas mais velhas de uma camada mais
baixa poderão merecer certas distinções e acatamentos dos indivíduos mais jovens da camada superior.
Assim é que as velhas "amas-de-leite" ou "amas-de-braço" são
tratadas com afeto e respeito pelos senhores que ajudaram a criar,
a elas sendo concedido até mesmo o direito de criticar-lhes o comportamento, como fazia a velha Generosa com o coronel José Paulino quando êste, lamentando as aventuras do filho, esquece o seu
passado de môço também cheio de aventuras com as "cabras" e negras do engenho .
O velho José Paulino, como seus irmãos Dr. Lourenço do Gameleira e Joca do Maravalha, seu filho Juca e mesmo seu neto
Carlos - para só ficarmos nas figuras masculinas de destaque na
família Melo - atuam todo o tempo como homens, como machos,
como sêres superiores, diante de suas mulheres, suas filhas e suas
servas.
Os gritos e palavrões do coronel José Paulino, por exemplo,
garantem, como exteriorização, não apenas o seu prestígio de senhor,
mas também de homem, diante dos filhos, netos, servos, das muilheres da casa, sejam parentes, sejam as negras de sua cozinha.
Para a configuração do status masculino nas camadas superiores, exigem-se vários atributos: a coragem, o poder e seu uso, e o
"machismo", quem sabe, um dos traços mais importantes.
Um outro traço relevante é aquêle que se refere ao tratamento
com as coisas da religião. Se a magnanimidade nas doações às igrejas e festas religiosas é exigida aos senhores ricos e poderosos, exige-se, poroutro lado, um apartamento dos atos pròpriamente litúrgicos, sob pena de graves censuras, já que tais atos são considerados
"coisas de mulher". Mestre José Amaro dizia: "não acredito em
72
homem que vive em pé de padre" (FM - p. 43) . "Lula atrazou-se
diziam os outros - foi por estas coisas. Só quer viver na igreja
(D - p. 196).
Pobre, decadente, embora não devesse um tostão a ninguém,
Lula de Holanda, que não é homem mulherengo e vive só para a
família, está constantemente na igreja confessando e comungando,
e tem capela dentro de casa, suas rezas atingindo um certo nível de
sofisticação. Sabe-se, e se diz, que no Santa Fé, nas rezas, o coronel
Lula, ajudado pelo seu negro de confiança, Floripes, "toca sino e
queima incenso". E fala-se do "pegadio" do senhor de engenho com
o negro.
A iniciação do homem na vida sexual é feita bem cedo, na
infância. A Carlos de Melo, bem menino, eram apontadas as mulatinhas que o Dr. Juca, seu tio, "mandava". E o menino tomou parte
na mais democrática fraternidade com os filhos dos "cabras" do eito
e dos moradores em sessões de intercurso sexual com animais.
Os "casos" do Dr. Juca apareciam e a êles eram dadas soluções
dentro dos esquemas já convencionais. Sabia-se das aventuras do
filho do coronel com filhas dos moradores e mesmo de gente da
caatinga. E quando o velho pai resmunga e lamenta o filho doutor
vivendo às voltas com "raparigas", a negra Generosa, testemunha
da mocidade do velho trata logo de dizer: "Quem fala! Quando era
mais moço parecia um pai-d'égua atrás das negras. O seu Juca teve
a quem puxar" (ME - p. 174).
E' no quarto do tio Juca que o menino Carlos de Melo encontrará uma espécie de santuário masculino. Lá estavam as revistas
"proibidas", os livros "para homens", divertimentos que não existiram para os velhos, "os quais exteriorizaram, e quase se poderia dizer
que disciplinaram sua masculinidade, principalmente nas "doenças
do mundo", curadas pelas "meizinhas" especiais tomadas às escondidas. Mas, dessas doenças, aparentemente vergonhosas, corria a
notícia, chegando mesmo a envaidecer seus portadores, os quais, se
mais jovens, com elas já podiam ser considerados homens.
Os filhos tidos com as negras, as "cabras", eram o testemunho
mais veemente da masculinidade e da superioridade social. Os oitenta
anos ainda prolíferos do velho Joca, espalhando "testas largas e olhos
azuis" pela várzea são constantemente lembrados. Dr. Lourenço do
Gameleira, que fugia à regra, talvez porque mais urbano, lamentava
quando via os irmãos cheios de filhos naturais e bastardos. Sua mulher, D. Marocas, que viveu na cidade, lugar onde os maridos adulteravam debaixo de sete capas, não se conforma com o comportamento dos homens da família, sempre às voltas com as cabrochas. Ela
sabia das proezas do filho Jorge, batia-se contra tudo aquilo, mas
criava um filho espúrio de um parente e "botara até nos estudos.
O negro chamava-a de mamãe branca" (B - p, 158).
1
73
"A severidade de um tio Lourenço era raríssima - observa
Carlos de Melo sôbre os homens da sua família e sôbre os demais
senhores -. A maioria dêles estava do outro lado, trocando os leitos
de colchão de suas mulheres pelas camas de varas das raparigas"
(B - p. 163) . E ainda: "êles tinham êste preconceito contra a
castidade. Atribuiam à abstinência uma porção de males" (D p. 192).
Aos senhores e seus filhos pertenciam, quase que por direito,
as mõças mais bonitas, nos folguedos e bailes; as filhas dos servos
e foreiros , agradando os senhores , ajudaram muitos pais a conseguirem alguma ascensão social, como veremos mais adiante.
Mesmo com todos os problemas sentimentais que o prendiam
à mulher de um primo, branca, bonita, inteligente, acostumada à vida
da cidade, Carlos de Melo acompanhou com boa exatidão as exigências sociais que ajudariam a compor o seu papel e a situação de
senhor de engenho e de homem, tendo filhos com a lavadeira do
engenho e "negociando", quase, a filha de um morador sem importância.
A atitude masculina em face dos filhos havidos com as "cabras",
as negras, as servas, enfim, nem sempre é a mesma. Como não será
a mesma aquela das mulheres diante dos constantes adultérios dos
seus maridos, e mesmo dos frutos daqueles.
Se alguns reconheciam e ajudavam, até mesmo educando, os
filhos de suas aventuras, outros, como o próprio Carlos de Melo,
não chegam a distinguir os produtos de seus amôres momentâneos
com as mulheres das camadas inferiores, os quais caminharão para
a vala comum do eito, da moenda e das tachas de açúcar, aumentando dêsse modo a massa dos servos dos seus próprios pais e avós.
D. Neném, mulher do velho Joca do Maravalha, pai tantas
vêzes até os oitenta anos, observa, criticando certos homens da família: "Nem isto vocês fazem. Têm coragem de deixar os filhos
soltos no mundo. Que os antigos façam isto, vá lá. Mas os moços
que alisaram os bancos da academia?" (B - p. 285).
Vemos então o funcionamento de uma espécie de espectativa
de comportamento quanto aos mais moços , mais instruídos , doutôres, que deveriam assim fugir ao modêlo dos mais velhos, que se
acostumaram àquela vida de ter os filhos e largá-los pelo mundo.
Mas, quanto a êsse aspecto, os moços não se distinguiram dos
velhos, seguindo à risca o modêlo tradicional. E se Carlos de Melo
acompanhou o avô e o tio nas demonstrações de "machidão", o filho
de Juca, estudante do Recife, em épocas bem mais próximas trará
problemas para a família , enredando- se com moradores e "obrigando" a família, num momento de graves problemas econômicos, a
"pagar o mal feito" ( quinhentos contos foram dados ao pai da môça),
expediente também tradicionalmente utilizado quando a parte "ofen-
74
dida" reclamava direitos - e isto acontecia sempre que se tratava
de gente do sertão -, e que naquele momento de descalabro reflete também a impotência da família, já àquela altura com o seu
prestígio econômico e social abalado.
Em numerosos momentos, pode-se observar as notas específicas
do comportamento e dos valores masculinos, a atitude do homem em
relação a mulher. E se pode verificar com clareza o uso de expedientes
que podem variar conforme as exigências sociais, conforme o que ditavam as normas controladoras da demonstração de masculinidade, de
"machismo", atributo que, associado ao poder e à riqueza, compõem
o perfil do homem das camadas superiores.
Enquanto os mais velhos exibem seus atributos de senhor no
reconhecimento público das "cabras" em que "mandavam", nos filhos
com as servas e moradoras tidos em idade avançada, os mais moços
poderão demonstrar o poder e a virilidade, por exigência de um outro
contexto, utilizando outros expedientes.
E o Dr. Juca, neste caso, é um bom exemplo. Se na mocidade
se sabia das mulheres nas quais êle "mandava", colaborando muitas
vêzes para alterar o status de alguns moradores , pais de suas "protegidas ", já usineiro êle encontrará, com o contacto urbano, outras formulas de demonstração.
No Santa Rosa, quando mais uma era "passada nos peitos" pelo
Dr. Juca, corria entre o povo: "o Dr. Juca vai ficar com mais esta
nas costas" (ME - p. 70) . E entenda-se por "costas" não só o
ajudar a manter a "ofendida" e talvez sua família, se tal lhe é de
algum modo exigido, mas também o débito que êle acrescentará
como crédito na sua conta-corrente de senhor e de macho.
A fama de femeeiro do filho do coronel José Paulino corre
longe. As tias velhas, de outros engenhos, falam, criticam, e o velho
pai também lamenta, pensando: "não sei para que servem os estudos.
A gente gasta um dinheirão e êles voltam para fazer besteiras desta
ordem" (ME - p. 71). A "besteira" em questão era mais uma
..cabra" que- Juca "desencaminhou", e que fêz um escândalo na porta
do engenho.
Já usineiro, êle associará a demonstração de virilidade, de
"machidão", à exibição do prestígio de rico, de proprietário de usina,
de dono de automóvel e de palacete na cidade, freqüentando "pensões" grã-finas, cheias de francesas e de polacas.
Juca passa a considerar indispensável manter uma postura, na
usina, diferente daquela que os seus parentes e êle próprio mantinham
nos engenhos. Afinal, pensava, "agora não ficava bem para êle estar
metido com cabrochas, perdendo o respeito. Todo o respeito era
pouco para sustentar o prestígio, fazendo-se respeitar" (U - p. 190).
Na cidade, da "pensão" Peixe-Boi, cujos clientes eram estudantes, caixeiros, senhores de engenho, coronéis donos de bangüês, gente
1
75
menor ou sem muita imaginação e ambição, onde corria cerveja e
cuja dona, grotesca e mal educada , porém " sentimental ', trata os
fregueses com intimidade e as "meninas " com amor quase materno,
da Peixe-Boi Juca passará à "pensão" Mimi, da francesa Jaqueline,
cujos clientes eram usineiros importantes e figuras de prestígio na
política e nos negócios, onde a champanhe corre como rio e cuja
dona, francesa e elegante, sabia da situação de todos. " Ir à pensão
Mimi era sinal de boa situação financeira" (U - p. 78).
Com outros usineiros, o filho do coronel José Paulino - que,
no depoimento da velha Generosa, em môço andava atrás das negras
-, passará noites regadas a champanhe, preferindo a "nacional" Clarinda às sabidas estrangeiras , àquela oferecendo um anel de brilhante
que ficará famoso na Paraíba, e uma viagem ao Rio de Janeiro.
"Açúcar dava anel de brilhante, felicidade a Clarinda solidez a Jaqueline" (U - p. 86), e Juca vê que "a Bom Jesus lhe daria mulheres e mulheres como Clarinda" (U - p. 87).
A dona da Peixe-Boi, enciumada com a perda do freguês, o
Dr. Juca, agora da usina Bom Jesus, não pode deixar de comentar:
"o Dr. Juca crescera a barriga. Porém as francêsas vingariam as suas
máguas. Deixasse o açúcar cair. Já vira em Recife usineiro tomando
bênção a cachorro" (U - p. 91).
Quando o açúcar caiu e Clarinda começou a ficar devendo à
pensão Mimi e passou para a Peixe-Boi, se dizia que "a amante do
Juca da Bom Jesus estava recebendo" (U - p. 287); falava-se
mesmo "que rapariga de usineiro estava dando até para fornecedor"
(U - p. 288).
Os homens das camadas mais baixas desenvolvem atitudes,
cumprem tarefas também configuradoras do status masculino.
A tradição da tão apregoada e demonstrada superioridade do
homem, a visão do comportamento dos senhores arrastarão os "cabras", os negros, os foreiros, os oficiais, pelos caminhos semelhantes
àqueles dos seus senhores, compadres, parentes e patrões.
Sabia-se de "cabras" mulherengos e corria por tôda a parte
que "homem válido ali na Várzea, não havia um que não fôsse raparigueiro" (U - p. 190), não importa a que camada pertencesse.
Carlos de Melo quando pequeno pôde observar a respeito das
negras da cozinha do Santa Rosa: "não conheci marido de nenhuma
e no entanto viviam de barriga enorme, perpetuando a espécie" (ME
- p. 86).
Mais tarde, êle saberá que os filhos da negra Avelina eram
filhos de fulano e beltrano, mas as ligações, fortuitas ou demoradas
eram mais discretas que as dos senhores, - mais discretas, ou
melhor dizer: menos importantes -, a discrição sendo quebrada
quando o pai da môça "ofendida" podia gritar, apelando para o
senhor , e êste, apurando o caso, usando o tronco se necessário,
obrigava o "ofensor " a casar . Nas missões, aproveitava-se a ocasião
para casar de graça os amancebados.
Sabia-se, outrossim, de crimes praticados por questões de mulher. As "cabras" que tiveram, algumas delas, seus dias de glória,
vivendo com homens das casas-grandes, sendo "protegidas", quando
abandonadas, velhas e feias, sabia -se que passavam para os "cabras",
nas beiras de estrada , nas pontas de rua da vila.
Assim, de um modo geral , todos, ricos e pobres, senhores e
servos, brancos e "cabras", mas homens, defendem sua superioridade diante do outro sexo , exteriorizando-a tanto quanto possível.
Um outro aspecto que vale ainda constatar é aquêle do tratamento dos homens para com suas próprias mulheres.
A rudeza mesmo dos mais ilustrados senhores para com tôda
a família, tratando-a sempre aos gritos, não faz exceção para espôsas e filhas . Daí que se destaque e comente o tratamento do coronel Lula de Holanda relativamente a D. Amélia, inclusive no
que diz respeito à própria vida conjugal. Não se fala de aventuras
do senhor do Santa Fé, que por isso mesmo é alvo de críticas e até,
mesmo , de certas suspeitas por parte da gente mais intrigante.
Vitorino e José Amaro , por exemplo , tratam suas mulheres a
todo instante de "vaca velha", mandando -as calar a bôca; Dr. Lourenço do Gameleira , embora como os irmãos menos ilustrados que
êle, vivia dando gritos em todos, trata sua mulher D. Marocas
como a verdadeira dona da casa, ouvindo-a e deixando-a opinar
sôbre vários assuntos.
E se Vitorino tem fama de debochado, fazendo gracejos e,
mesmo, dizendo obscenidades às "cabras " que passam e brincam
com êle, sempre gritando , como que a compensar sua pobreza, o
célebre refrão: "sou branco", "sou homem ", e "vaca velha" que êle
diz à velha Adriana, de quando em vez é abrandado para o carinhoso "minha velha".
Mas o Papa-Rabo não dispensa as estórias em que alardeia sua
virilidade , onde êle aparece como homem disputado pelas mulheres,
"fazendo figura " em festas , nas danças, sobressaindo-se mais que os
moços. "Cavalo velho, capim nôvo" (FM - p. 38 ), diz êle. E
desenvolve certas "teorias " sôbre mulher: "mulher só anda mesmo
no chicote. Isto de tratar a vela de libra, não é comigo. A minha
me adivinha os pensamentos " ( FM - p. 272 ). Vitorino exalta e
louva o senhor do Engenho Nôvo que "pegou a dêle, amarrou num
carro de boi e mandou largar a bicha na bagaceira do sogro" (FM
- p. 273 ). Mas reconhece na sua, a velha Adriana, uma "mulher
teimosa, de vontade, de opinião" (FM - p. 36), dizendo isto
cheio de orgulho.
77
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Já o seleiro José Amaro, amargurado e doente, não dispensa a
mínima palavra de afeto à velha Sinhá, embora nas suas divagações
dela se apiade e mesmo admire a sua fibra, respeitando-a sempre.
esteiras se admiram do comportamento dos operários, brigando, desfeiteando , por causa de honra de filha. E diziam: "só aos que subiam de condição a honra da família dava trabalho" (U - p. 44).
Nas camadas superiores , e como conseqüência dos brios masculinos, a fidelidade feminina está sempre posta em questão como
condição indispensável para a manutenção da honra masculina.
De um modo geral, as senhoras e suas filhas estão fora de
quelquer suspeita e de qualquer observação menos abonadora. Os
senhores, os homens, podiam dormir tranqüilos quanto ao comportamento de suas espôsas (e filhas), mesmo quando o fizessem em
outros leitos.
Também as suas raparigas, as suas "cabras" certas, que com
êles tinham filhos, estavam longe de pensar em traí-los, de se passarem para outros. Algumas das amantes certas de senhores chegam a adquirir respeito e importância não só dentro do grupo a
que originàriamente pertencem mas até mesmo dentro das grandes
famílias. Um irmão do velho José Paulino, nunca tendo casado,
teve uma rapariga com quem viveu quase tôda a vida; a mulher,
pela importância que tinha, merecia o tratamento de "sinhá" fulana, e todos a respeitavam.
Quando Juca, com a usina em decadência, tem notícia que a
amante da "pensão" Mimi está "recebendo", seus sofrimentos físicos
talvez sejam menores que os sofrimentos morais, vendo a sua honra
de homem ferida, os comentários da traição servindo para diminuí-lo
ainda mais.
Os homens das camadas mais baixas, da "gentalha", não podiam se dar ao luxo de maiores exigências quanto ao acatamento
de sua honra masculina. Como já se viu, muito trabalhador do eito,
muito "cabra", se viu importante tendo a filha nas mãos dos seus
senhores. E certa resignação chega a aparecer quando a filha "cai
na vida"; e da resignação chega-se mesmo a certa esperança de melhores dias, quando a filha, saindo do mundo da bagaceira, poderia
fazer seu "pé-de-meia" na "vida", vindo a ajudá-los, talvez.
Já no momento da usina, além da resignação, muitos pais podiam dizer que "as filhas entregavam o que tinham a quem quisesse,
que êles não se apaixonavam pela coisa" (U - p. 44) . Quando
a usina exigia-lhes, mais que o bangüê, trabalho de sol a sol todos
os dias, "quem era que podia se incomodar com a honra de filha,
quem dispunha de tempo para brigar pela virgindade das filhas?"
(U - p. 244). E se antes, de algum modo, o senhor de engenho
tomava a "paternidade" pelos casos ocorridos, principalmente
quando se tratava de gente mais ligada à casa-grande, afilhadas das
môças da casa ou mesmo dos senhores, chamando o "ofensor" para
casar e, mesmo, obrigando-o, com a usina tal paternalismo caminha
para o desaparecimento, e os trabalhadores comuns do eito e das
78
Quase tôdas igualadas no pouco caso e nas traições dos maridos, dos companheiros e até dos amantes, as mulheres da sociedade sob análise nem sempre se enquadram nos modelos teóricamente descritos.
As figuras quase diáfanas de quase-princesas das senhoras de
engenho, baronesas e viscondessas de vida suntuosa, ou aquelas outras de senhoras boçais e analfabetas, vestidas de camisolões no lazer
diário dos cafunés , às voltas com as escravas e servas , ambas as
figuras não chegam a corresponder às mulheres da sociedade da várzea do Paraíba , conforme nos é descrita.
As mulheres da casa-grande do Santa Rosa não assumem a
postura de grandes senhoras , mas conservam a seu modo as características da conduta exigida pelos seus status sociais.
Clarisse, mãe de Carlos de Melo, estudou "com as freiras" na
cidade, casou, tudo indica, com um parente urbano e morreu assassinada por êle; um homem "nervoso" que acabará seus dias num
hospício. A lembrança de Clarisse transforma sua figura num mito,
na casa-grande do Santa Rosa; ela é constantemente lembrada, e
a sua beleza e bondade, acrescentadas à morte violenta, fazem-na
para todos, "uma santa".
Maria Menina, que embalou a infância do órfão Carlos de Melo,
não estudou como a irmã, mas plantava suas flôres no jardim do
engenho, conversava sem "bondade" com as negras da cozinha e
com as mulheres dos moradores, criava porcos "de meia" com as
filhas do velho Lucindo, antigo morador das terras do engenho, e
casou com senhor de engenho como o pai. O sobrinho diz que ela
vestia vestidos de passeio quando as parentas da cidade vinham para
oengenho, e que estas criticavam os parentes "tabaréus".
Outra figura feminina do Santa Rosa que merece destaque é a
velha Sinhàzinha, de quem disse o sobrinho: "esta velha seria o tormento de minha meninice" (ME - p. 26) ; e quando êle volta, já
bacharel, às terras do avô, aquela será o seu grande algoz, não compreendendo a sua doença, chamando-o de "lezeira", não aceitando
um homem se comportando de modo diferente dos padrões de altivez, coragem e capacidade de trabalho, traços indispensáveis para
caracterizar o que ela entende por um homem.
Irmã da mulher, já falecida, de José Paulino, a velha Sinhàzinha governava tirânicamente o Santa Rosa e todos achavam que
só o cunhado "tivera fôlego de lhe suportar às impertinências" (B
- p. 25) . Temida por todos, pelo que se pode verificar da análise feita, teria sido Sinhàzinha a mulher do senhor do Engenho
Nôvo, amarrada por êste num carro de boi e levada ao engenho
1
79
do pai, conforme comentava Vitorino. Sabe-se que ela vivia separada do marido "há muitos anos" e que criara os sobrinhos, tendo
dado os seus engenhos, de um a um, aos filhos.
Além de governar o Santa Rosa, a velha Sinhàzinha tem certas "propriedades" dentro do engenho: leirões no quintal, intocáveis, e, sempre, uma negrinha em quem dava beliscões e surras.
De uma delas se sabe que foi "dada", e a própria menina dizia:
- "Mãe me deu aqui porque estava morrendo de fome" (B p.
27) ; comentava-se que "os cachorros da velha eram mais bem
tratados" (B - p. 27) que a cria. Quando o sobrinho, um homem,
se apieda da negrinha, a velha suspeita que êle queira "fazer mal"
à menina e começa a tecer tôda uma rêde de intrigas. E é ainda
aquêle quem observa: "impressionava-me a fôrça daquela mulher
no Santa Rosa. E curioso, enquanto o velho José Paulino perdia
suas autoridades de chefe, com a idade, ela ficava mais forte, mais
ranzinza, mais implicante" (B - p. 52).
Na casa-grande do Santa Fé, "que cheirava a rosa murcha, a
coisa passada" (B - p. 53), murchavam também as mulheres, que
não conversavam com as negras da cozinha, mantendo com todos
certa distância, que tocavam piano e sabiam falar francês. D. Amélia levará às últimas conseqüências e manutenção das aparências,
vendendo ovos, galinhas, verduras, sem perder a postura de senhora
fina que estudou na cidade. Os anéis e trancelins já não existem
mais, e a filha D. Neném ficou solteira, pois o pai não admitia
casá-la com os homens rudes da várzea ou com um pretendente bacharel, filho de um alfaiate da Capital. E como a filha do mestre
José Amaro, a filha de Lula de Holanda ouvirá nas quarta-feiras
santas os deboches do povo, nos "serra-a-velha" dirigidos às solteironas.
As mulheres da clientela, ou de camadas que não se ajustam
exatamente aos estratos alto e baixo, como Adriana de Vitorino e,
mesmo, Sinhá de mestre José Amaro, comportam- se, em alguma
medida, dentro dos cânones semelhantes aos exigidos pelas camadas
superiores. No mesmo caso estão as filhas do velho Lucindo, que
eram amigas de Maria Menina e famosas por suas costuras. Tôdas
elas não se igualam às negras e às "cabras" da gente da bagaceira
ou das pontas de rua.
Nada impede Adriana ou Sinhá de caminharem pelas estradas
e pela vila, e elas ajudam na manutenção da família, criando galinhas, plantando seus quintais. São respeitadas e acatadas pelas famílias dos engenhos, tratadas dentro de um nível que as distingue
da "cabroeira", da gente comum.
A atitude feminina em face do comportamento dos homens e
dos adultérios dêstes é sempre de conformismo, salvo exceções, como
D. Marocas. Seu marido Dr. Lourenço fugia à tradição femeeira
80
da família, e ela critica as parentas por agüentarem, como.as :avós,
as infidelidades dos maridos . Enquanto isto D. Neném, mulher de
Joca do Maravalha, vai indulgentemente perdoando as constantes infidelidades dêste, e como ela D. Dondon, mulher do Dr. Juca .
Esta, porém, almeja para as filhas maridos diferentes do seu. Ela
sabe da vida alegre que Juca leva nas pensões, esbanjando dinheiro
e saúde, e toma tudo isto como uma provação , sofrendo calada, louvando a operosidade do marido , não admitindo qualquer crítica a
êle, defendendo-o, lutando por êle„ quando o vê desprezado e pobre,
humilhando-se até, quando se trata de salvá-lo.
D. Dondon, filha também ela de senhor de engenho , não estudou na cidade e, quando casada, prefere a vida singela do engenho
ao palacete da Paraíba que é para ela "uma espécie de degrêdo"
(U. - p. 69). Ela diz que "ali nos engenhos os maridos tinham
direitos que elas mulheres respeitavam" (U - é. 96) ; e' quando
alguém, alcovitando, conta a sua filha mais velha as proezas paternas e ela se revolta, D. Dondon vai logo explicando que "todos
os homens da família eram assim " (U - p . 97) ; ela dizia que
"Juca podia fazer o que bem quizesse. Desde que respeitasse a
ela e aos filhos" (U - p.98).
D. Dondon teme pelo destino das filhas: "não pensava em
casar nenhuma delas com gente do engenho" ... "então, botaria
as filhas em colégios no Recife para aprender tanta coisa e depois
entregava as pobres aos filhos de Mané Gomes, de Alvaro do Aurora,
de José do Jardim? Só mesmo um castigo. Casaria as meninas com
quem elas bem quizessem " (U - p. 98).
O contacto com a vida urbana e a possibilidade que teve` D.
Dondon de constatar o rigor do contrôle exercido pelos parentes,
principalmente os mais velhos, sôbre as novas formas de comportamento adquiridas por suas filhas, fazem com que ela assuma uma
posição de defesa de Maria Augusta e Clarisse, principalmente desta
última, numa luta contra os padrões impostos pela sociedade tradicional representada, nesse caso , mais destacadamente, pelas tias
velhas e pelas primas solteironas.
As filhas de Juca e Dondon sofrerão grandes censuras dos
parentes dos engenhos quando êstes sabem das festas que elas freqüentam e dos banhos de mar no veraneio. Tôda uma teia de intrigas se fêz, e as estórias chegam "aos ouvidos da velha Marocas, que
pegou da pena e fêz a sua carta à sobrinha. Aquela carta fôra um
golpe para D. Dondon" (U p. 241), e ela teme que as filhas
fiquem "faladas", tidas como fáceis e namoradeiras.
As intrigas começaram, aliás, com o aparecimento- da americana, mulher do químico da usina, que andava a cavalo,-dirigia
automóvel e, como se dizia, andava sòzinha com homens que ;não
eram o marido. A alegria de Mrs Richard e- sua amizade com
1
81
as filhas do usineiro perturbam os membros femininos da família,
que não aceitam "mulher escanchada em cavalos, andando de manhã
e de tarde pelos campos, passando de baratinha, fumando cigarro"
(U p. 222)
jeito, os pais "pediam carta para deixá-las no -hospital". (B.. p. 163).
Com o abandono dos senhores, ou as "doenças do mundo",
ou a velhice,, degradam-se as mulheres em verdadeiras prostitutas,
sobrando, no engenho, para os "cabras" do eito, para os homens
mais humildes. As abandonadas pelos senhores passavam por várias
desfeitas: "o feitor se vingava, os companheiros tiravam debiques''..'
(B - p. 164). "Maria Chica, que tivera filho do Dr. Carlos,
que era rapariga mas que vivia como Deus permitia, os cabras tinham
desgraçado a pobre de moléstia" (U - p. 119).
As primas do Maravalha comentam a imprudência'de Dondon
deixando as filhas andarem com a "galega consentindo aquela
mulher doida morar em sua própria casa; e temem que Juca se
passe para ela, mulherengo como ele é.
Todo o "tribunal familiar" está de pé para defender a honra
das meninas , censurando os pais que consentem naquele . absurdo.
Juca a principio fica temeroso, mas depois consente na amizade, já
que tinha outros problemas para se preocupar.
Mas a americana o que queria "era levar, como marido, os
seus dias de trabalho forçado da melhor. maneira possível" (U, p..222).
Observando a reação das mulheres do povo quanto ao comportamento feminino , verifica-se que de um modo geral não se faz
maiores distinções entre as casadas e as não casadas, mesmo em se
tratando de mulheres prostituídas. "As prostitutas do engenho. viviam
em pé de igualdade com as casadas. Eram do mesmo nível, da
mesma sociedade. As moças não viram a cara e nem os pais proibiam, as suas visitas. Vinham às festas de família , às novenas . e não
ligavam" (B - p.164) .
Como já foi verificado, quando da análise do comportamento
masculino, a prostituição chega mesmo a constituir um canal de
ascensão social -- dos raros ali - pelo que representa de relativa
libertação da mulher dos duros trabalhos que ela realiza no regime
de servidão do engenho, e pelo que pode representar, ainda, de
ajuda na subsistência da família.
As "protegidas" dos senhores, quando caíam em suas boas
graças, podiam conseguir a dispensa do pagamento do fôro para os
seus pais, dispensa do eito para êstes e para os irmãos. E "comiam
mais. Vinha açúcar do engenho, o barracão mandava as coisas de
graça... A menina, na cama de varas, garantia êsses luxos" (B p. 164).
Quando a prostituição se tornava um fato consumado, "os pais
não brigavam por isto. Só não perdoavam que voltassem para casa
de mãos abanando, caindo-lhes nas costas com ` doenças. Viessem,
porém, arrumadas, com presentes para os seus e teriam porta aberta,
e consideração" . . . "As caboclas que triunfavam na vida, voltavam de sapatos finos, com cortes de sêdas para as irmãs, Passavam
dias, enchiam de inveja as amigas de pés no chão, falando mal da
bagaceira" (B - p. 163). Quando algumas voltavam cheias de
doenças, tentava-se a cura pelas garrafadas, e quando não havia
82
Pelo que se pode ver , as marcas do patriarcalismo na sociedade da várzea pràticamente se estendem por tôdas as . camadas
sociais, tomando nuances mais fortes à medida em que se chega ao
estrato mais alto, e sobrevivem quase intactas às repercussões na
organização social resultantes das alterações tecnológicas que a usina
traz, substituindo. o bangüê.
E se, com a usina, os pais das camadas mais inferiores nada
mais podem fazer pela honra das filhas, os operários resistirão defendendo-a. Nas camadas mais altas, o comportamento tradicional, numa
atitude de autêntica resistência à mudança, defenderá acirradam. ente
seus padrões de comportamento masculino e feminino, :quer criticando
e ao mesmo tempo aceitando e, até, mesmo, justificando o "machismo", pagando a honra da môça do estrato inferior tirada por um; dos
seus membros, , quer lutando por afastar a influência estranha junto
aos membros femininos mais jovens do seu grupo.
Vale ainda observar os aspectos que dizem respeito à criança na
sociedade da várzea; o processo de socialização e de enculturação, o
relacionamento da criança com o adulto e com a própria criança; -as
diferenças mantidas pela estratificação social. .
Igualadas aos anjos, quando loiros e doentes , como a prima Lili
de Carlos de Melo, as crianças transformam-se em capetas quando
pretas,. filhas de gente do eito, dos moradores, dos servos, principalmente os moleques que roubam laranja e fazem gaitadas.
Do próprio neto do coronel do Santa Rosa se apiedam todos,
parentes , negras da cozinha , moradores , por ser êle frágil, por ter
perdido a. mãe em circunstâncias tão dolorosas. E todos ficam atentos para os remédios e os resguardos do menino doente. A negra que
criou Clarisse, mãe do menino, chora por aquêle que era para ela
uma espécie de neto; mais adiante, irá defendê-lo dos castigos.
Mais "taludo", menos doente, Carlos de Melo irá aprender a
vida, os adultos e o sexo, na convivência quase fraterna -com- os moleques da bagaceira, nos banhos de - rio, nas caçadas de passarinho,
nas brincadeiras de "bando de cangaceiros" uma das preferidas -,
nas precoces iniciações no sexo, com os animais,, bem como nas estó-
1
83
rias obscenas de Zé Guedes, a quem êle chama de seu "mestre da
vida".
As "teorias pedagógicas" da velha Sinhàzinha atingem-no, como
atingiram a negrinha Josefa , objeto dos beliscões e das surras; mas,
de um modo geral, havia displicência na educação da criança, principalmente dos meninos "machos", deixados a aprender na própria
experimentação e observação da vida diária e através das conversas
dos mais velhos sôbre tudo e sôbre todos.
O "moleque ensinado" do coronel José Paulino que aprendeu a ver as horas e a escrever mais depressa que o neto do senhor-,
assim como seus irmãos testemunharão , no vão comum em que dormem, na "rua" da casa-grande, a negra Avelina, sua mãe, deitando-se com os homens; nas dores do parto; nas conversas com as
outras negras.
O terror das estórias de assombração embala os meninos, tanto
das casas-grandes como dos vãos e das casas de taipa.
O terror das escolas, a dura pedagogia da palmatória e das
discriminações, trará, por exemplo, para Carlos de Meio - cujas
vivências estão tão nítidas na escola de Itabaiana o horror do
colégio, do professor, do livro, da lição.
As "primeiras letras", aprendidas pelo neto do senhor do Santa
Rosa na casa de "um doutor" que viera passar uns tempos no Pilar,
serão continuadas numa escola freqüentada pelos meninos da gente
pobre. E êle lembra: "havia para mim um regime de exceção. Não
brigavam comigo. Existia um copo separado para eu beber água,
e um tamborete de palhinha para o neto do Coronel José Paulino.
Os outros meninos sentavam-se em caixões de gás " (ME - p. 53).
E se o "sinhôzinho" não levava bolos, tinha porém o direito de
dá-los nos competidores, quando acertava. E êle via que suas "vítimas" não lhe tinham raiva.
A passagem dolorosa do "Doidinho" pelo Instituto Nossa Senhora do Carmo de Itabaiana, cujo diretor era o professor Maciel,
sobrinho do poeta Maciel Monteiro, é tôda marcada por uma experiência que êle nunca esquecerá. Na escola, logo que chegam os
alunos, o diretor vai dizendo: "aqui êles endireitam, saem feitos
" (D - p
gente
. 7)
Carlos de Meio tinha então doze anos, estava no segundo livro
de Felisberto de Carvalho e na tabuada de multiplicar. A importáncia e a riqueza do avô e a 'hipocrisia do diretor não foram suficientes para livrá-lo de duras provas e terríveis testemunhos. As
injustiças, a "carícia indiferente, sem calor, uma carícia profissional
de mulher de diretor" (D - p. 16), a falsa aparência de tudo, a
sujeira: os percevejos, os piolhos, os lençóis imundos, a visão das
experiências homossexuais dos meninos, as iniciações de muitos dêlês com a cozinheira da escola e a proteção desta para com os "pre-
84
feridos", os castigos, as prisões e o próprio apelido - Doidinho são vivências que o menino de engenho ganha na escola triste e
sombria da cidadezinha do interior.
6. OS VALORES SOCIAIS:
DO COTIDIANO ÀS ULTIMIDADES
A tradição, bem como os mecanismos que se armam para salvaguardar o status quo são os principais responsáveis pela relativa
estabilidade de todos os valores, a inserção de outros ingredientes
no contexto sócio-cultural não chegando mesmo a alterá-lo em profundidade, influindo tão-só na medida em que se consegue absorvêlos ou readaptá -los convenientemente àquilo que se poderia chamar
de valores profundos ou fundamentais.
Tais valores, no que se referem, por exemplo, aos indivíduos
e aos grupos, vão criar estereótipos ou categorias as mais importantes, com respeito à posição ocupada pelo indivíduo ou pelo grupo
no comando da vida econômica, política e jurídica, bem como às
origens sociais, à raça, à idade, ao sexo.
Quando analisamos os aspectos que mais de perto se referem
à estratificação social e ao leve processo de mobilidade impelido
pelo surgimento da usina, observamos o funcionamento de alguns
valores sociais sôbre os quais repousavam, entre outros, os conceitos de senhor, de servo, de "camumbembe", de "operário", de
gente do eito, de homem, de mulher e de criança, de velho e de
môço, de letrado e analfabeto, todos, afinal, sintetizáveis no que bem
se pode chamar de valor-pessoa.
Importa agora verificar o que estamos chamando de valores
do cotidiano, assim compreendidos todos aquêles aspectos que se
vinculam aos modos de fazer o dia-a-dia, às soluções para os problemas da vida e da saúde, às crenças e mitos, à vida religiosa institucionalizada ou diluída na mítica e na magia , ao lazer, à alimentação e bem assim aos problemas escatológicos da morte e da sobrevivência.
A existência da capela ao lado da casa-grande, da senzala ou da
"rua" e do engenho prôpriamente dito, e da casa dos santos dentro
mesmo da casa-grande não faz com que se possa dizer que a religiosidade, dentro dos modelos institucionais, constitua elemento marcante na vida da sociedade analisada.
Já se teve ocasião de mostrar, em momentos anteriores, que
tanto no engenho como na usina a presença da capela no conjunto
arquitetônico daquele tipo de comunidade não exprime uma maior
adequação da sociedade aos valores religiosos canônicamente constituídos.
1
85
ciosa: "as,. negras ficavam pela cozinha, sentadas, conversando em
cochicho sôbre o dia. Não se tomava banho de rio para não se ficar
nu na frente um do outro Ï Não se judiava com os animais. Não
se chamava nome a ninguém" (ME - p. 66).
Se José Paulino' justifica a falta de capela no Santa Rosa no
fato do 'engenho ficar perto da vila, o usineiro da São Félix ostenta a riqueza da usina construindo a capela dentro dos seus domínios, assim evitando que os seus trabalhadores percam tempo indo
rezar na vila.
De um modo geral, tôda a vida religiosa está mesclada de elementos constituídos pela cultura folk; assim, por exemplo, a história
sagrada é reinterpretada dentro das sugestões do meio, a religião
iuanife3tando-se mui.o mais através sentimentos de mêdo e dor que
alegria, esperança e salvação.
O culto doméstico assume uma importância tôda especial, principalmente na Semana Santa, nas horas de perigo das enchentes, das
doenças.e dos negócios.
O oratório do Santa Rosa apresentava-se às crianças como um
lugar de mistério, dos santos traspassados de setas, de rostos sofridos
de santos, matando diabos de asas de morcêgo. As únicas alegrias
nesse recanto de sofrimento ("o quarto dos santos vivia fechado")
(ME - p. 64) eram um São João com seu carneirinho manso que o menino Carlos de Melo associava ao seu carneiro Jasmim e "um menino Jesus que era um encanto, um menino bonito com
olhos azuis da prima Lili e um sorriso bonzinho na bôca. Trazia
numa das mãos um longo bastão de ouro e na outra a bola do mundo.
Se aquela bola caisse o mundo se acabava Mas o nosso menino,
vestido de manto azul estrelado, trazia por debaixo de suas vestes
uma rolinha bicuda de criança. E nós levantávamos o seu manto
de quando em vez, espantados que a gente do céu também precisasse daquelas ' coisas " (ME - p. 63) .
Do que os adultos falavam compreendiam as crianças que
Jesus Cristo era alguém diferente de Deus. Para elas, Deus era um
homem de barba grande, Jesus, um rapaz, e se Deus não nascera,
Jesus; como todo mundo, teve uma mãe, aprendeu a ler, levou carão
dos mais velhos e foi menino.
Na Semana Santa, as narrativas do sofrimento de Jesus, a coroa
de espinhos, ás lanças, sangue e feridas, todo o martírio contado
cria um clima especial de espanto nas crianças e de associação daquele sofrimento com os castigos do tronco, das palmatórias. Também nessa época, "os moradores vinham então pedir o jejum, em
bando .. Davam-lhes bacalhau e farinha. Bles saíam com a mulher
e os filhos rôtos, de saco nas costas, como se estivessem fazendo
um número da Via-Sacra" (ME - p. 65/66).
Para aSexta-Feira Santa o engenho recebia "peixe fresco da
cidade e parentes: de outros engenhos para jejuar conosco" (ME p. -- 65). Segundo, ainda, o depoimento de Carlos de Melo, comiase uma só vez, mas "muito mais do que nos outros dias" (ME
p. 65). Naquele dia, as proibições eram grandes: tentava-se lavar
os pecados de uma só vez, assumindo uma postura discreta, silen-
86
Na casa-grande, durante a Semana Santa, mantinha-se "o santuário coberto de prêto e as estampas viradas tôdas para a parede.
Os santos estavam com vergonha de olhar para o mundo" (ME
67
F À. Paixão eram acrescentados outros elementos interpretativos.
Dizia-se que "se o padre na missa do sábado não achasse a Aleluia,
o mundo se acabaria de uma vez" (ME - p. 65).
Além do verdadeiro cerimonial da Semana Santa, a religião
doméstica do Santa Rosa admite as promessas e novenas, as contribuições. para as festas da igreja do Pilar. Do coronel José Paulno, diz o neto que "não era um devoto. A religião dêle não conhecia a penitência e esquecia alguns mandamentos da lei de Deus"
(ME -- p; 62). De um modo geral, não iam à missa, salvo no
Natal, não confessavam nem comungavam. "0 povo pobre do eito
só se confessava mesmo na hora da morte, quando, à revelia dêles,
mandavam chamar o padre às carreiras" (ME - p. 64). Maria
Menina ensinava o Padre Nosso às crianças; o coronel, embora não
rezasse, não tirava da bôca os "se-Deus-quiser" e os "tenho-fé-emNossa Senhora".
.. Ir 1 Como já se teve ocasião de destacar, a atitude religiosa - no
sentido mais estrito de freqüência à igreja e aos sacramentos - era
para o homem, um traço pouco masculino. O homem "em pé de
padre" era criticado; não se "acreditava" nêle. A religiosidade da
família do Santa Fé e, especialmente, do próprio coronel Lula causava estranheza a, todos; os detalhes do incenso, do sacristão e do
sino nas orações domésticas ajudando a aumentar o clima de relativa suspeita em tôrno da família que, nos assuntos de religião, agia
de modo diferente.
Nas terras do Santa Rosa, e, mais tarde, da Bom Jesus, as novenas e as promessas só surgiam nas horas de grandes dificuldades.
Nas casas dos pobres, quando havia novena, as portas ficavam abertas para todos, inclusive para as "raparigas" que vinham rezar com
as casadas e as môças.
Num monumento de Nossa Senhora da Conceição, colocado
num alto perto da vila do Pilar (não se indica quem construiu nem
porquê), apareciam peregrinos para pagar promessas, para "soltar
os seus fogos do ar, acender as suas velas e agradecer a N. S. pelo
filho curado, pelo marido são, pelos roçados colhidos" (U - p. 295).
Na crise da Bom Jesus, D. Dondon também faz suas promessas pela. saúde do marido e pela melhoria dos negócios, indo ao alto
rezar com as suas negras, como antes vinha fazendo dentro de casa,
1
87
no seu oratório. Era' "quase uma légua a pé, mas só valia mesmo
subir ao Alto da Conceição com os pés descalços, sofrendo com a
subida, deixar que as pedrinhas da caatinga furassem os pés dos
pedintes . D. Dondon tirava os sapatos, tirava as meias, e as negras,
pela primeira vez, viam aquêles pés brancos, pisando na terra que
elas pisavam" (U - p. 294/295) E "o povo das proximidades
vinha ver a usineira" (U p 295). Os moradores do Alto gozavam "dos privilégios da vizinhança, como se fôsse um serviço sagrado.: Até lá nunca foram os feitores do banguê e nem os vigias
da usina" (U _ p. 295) .
Um negro velho, morador do Alto da Conceição, " andava de
opa pelas estradas " (U p. 295), recolhendo esmolas .
Sabia-se
que fôra. escravo e que tinha "coisas" com os meninos que "papavam" as esmolas recolhidas. E Ricardo observa: "no entanto, na
frente do negro velho ninguém ousava uma palavra, um dito safado ... Entre os pequenos, Manuel Pereira era quase tido como
um padre. Aquela opa até os joelhos, aquela coroa de santa dentro
do prato com rosas davam ao sodomita um prestígio de sacerdote.
Tomavam-lhe a bênção" (U p. 17).
Outro sacerdote leigo nas terras dos Melo é o negro Feliciano
que aconselhava, desempatava brigas e "era o único homem que tirava reza, que acompanhava a devoção" (U - p . 155). É ainda
Ricardo quem informa: "feiticeiro não existia naquelas bandas. O
Deus dos negros era a mesmo dos brancos. Ninguém sabia de xangô,
das latomias dos catimbós" (U - p. 151) .
Contudo,, D. Dondon, nas horas difíceis, apelará para uma
curandeira da vila de Santa Rita, da qual se dizia que era capaz
de, prodígios. A família, quando soube, começou a criticar. D.
Neném dizia: "como era que Dondon saía de seus cuidados para
consultar uma negra atrevida e pedir conselhos a uma filha de Romana, negra cativa"? (U - p. 297) .
Ainda sôbre o velho Feliciano se sabe que , nos tempos de coronel José Paulino, êle "era tido na conta de gente, respeitado pelos
feitores. A casa do negro era a igreja do povo. E o pastor mei ecia
tôdas as regalias" (U p. 151) .
No tempo do Dr. Juca, com a expansão dos "partidos" da
usina, o velho é obrigado a se mudar para os altos. Faz-se procissão, os santos cobertos com as toalhas de labirinto trazidas pelas
mulheres que cantavam ladainhas. Sabe-se de pragas rogadas pelo
velho sacerdote leigo ao usineiro. Depois, aquelas se atribui a derrocada da usina.- Em tôrno do velho Feliciano são tecidas estórias
fantásticas: êle teria prendido os santos no oratório e o povo só
queria rezar no seu São Sebastião, na sua Santa Luzia. E comentava-se que "o negro prendera os santos para poder melhor se encontrar com o demônio. Os santos estavam escravos, trancados no san-
tuário" (U - p. 154). Quando o casebre do velho se incendeia,
logo são feitas interpretações, ingressando Feliciano no mundo fantástico do povo da várzea.
O mundo das crenças e dos mitos dos homens, mulheres e
crianças da várzea, principalmente das camadas mais baixas, sem
excluir de todo os membros das famílias dominantes, movia-se dentro do fantástico, construído não apenas com as reinterpretações
dos mistérios e da liturgia da Igreja, mas através da imaginação
ajudada pelos incitamentos do próprio ambiente.
A igreja católica, figurada para muitos no padre politiqueiro,
subalterno aos "grandes", sempre pedindo dinheiro para as obras da
igreja, não corresponde suficientemente ao apêlo do sobrenatural
que a ambiência excita e que a tradição acumulou e se encarregou
de oferecer, muitas vêzes como solução necessária para preencher
a monotonia do cotidiano, assim ajudando ou favorecendo o conformismo como um verdadeiro fator de resistência à mudança.
Aos podêres dos sacerdotes leigos e tôda a aura de mistério
e sacralidade que os envolve, juntam-se outras crenças associadas
a fenômenos mágicos nas lendas dos bichos-papões, das mulas-semcabeça, dos bichos-carrapatus, motivos de conversas nas cozinhas,
nas beiras de estrada, nas visitas das comadres.
Os bichos terríveis, identificados, pessoalizados, algumas vêzes,
funcionavam cotidianamente na pedagogia do sono das crianças, das
fugas dos peraltas, dos "mal-feitos" dos meninos.
Lobisomens eram José Cotia, comprador de ovos, muito pálido, evitando o sol e por isso só andando de noite; e o mestre José
Amaro. Seus "encantamentos" foram "vistos" por muita gente. A
palidez do primeiro, a inchação e a epilepsia do segundo, o andar
pelas estradas de noite de ambos eram indícios seguros: lobisomens.
E se dizia que a "fôrça" que tinham "não era dêles". Os "papafigos" - assim também chamados - comiam fígado de menino,
tomavam banho com sangue de criança de peito, chupavam os cavalos no pescoço. Quando um padre encontrou um lobisomem na
estrada - contava-se - tirou a caixinha que levava com a hóstia
consagrada para uma extrema-unção e apontou para o "bicho":
"ouviu o baque de um corpo todo e um gemido comprido de moribundo ... No outro dia encontraram José Cotia estendido na estrada" (ME - p. 75) .
José Amaro, além dos problemas da doença da filha, da pobreza, de morador do Santa Rosa à beira da expulsão, arrasta a
fama de lobisomem; o assunto corria por tôda a parte, comentavam
seus passeios noturnos, e os ataques de que era acometido ajudavam
a aumentar o mêdo que êle despertava, mêdo que chegava a afetar
sua própria mulher.
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Os detalhes das estórias de lobisomem faziam com que o "menino de engenho" acreditasse "nêle com mais convicção do que
acreditava em Deus" (ME - p. 76). "Pintavam o lobisomem com
uma realidade tão da terra que era mesmo que eu ter visto. De
Deus, tinha-se uma idéia vaga de sua pessoa" (ME - p, 77) .
Mas outros "bichos" "existiam" para assustar as crianças, para
"chamar" seus sonos. Nas matas estavam o bicho-carrapatu, a cabra
cabriola e o caipora, encontrados pelos caçadores. "A burra de
padre andava tinindo as correntes de suas patas pelas porteiras distantes" (ME - p. 77) ; os zumbis andavam "encarnando" nos
porcos e nos bois. Por isso, quando boi morria não se enterrava,
jogava-se para os urubus, para que êles não se transformassem em
zumbis,
Ao fantástico dos sêres sobrenaturais típicos das matas, das
estradas, das terras do engenho juntavam-se as figuras extraordinárias das "estórias de trancoso" das pretas velhas; as estórias de palácios, de reis e rainhas, de florestas e rios, associados pelas crianças às casas-grandes, aos senhores de engenho, à mata do Rôlo,
ao Paraíba. Daí que Carlos de Melo recorde: a velha contadeira
de estórias do seu tempo de menino no Santa Rosa, a velha Totonha,
dava "côr local... nos seus descritivos" (ME - p. 80).
As adivinhações e associações também concorrem para encher
o cotidiano da gente dos engenhos, das casas-grandes e dos casebres.
As nuvens "carneirinhos de Deus" indicam chuva; "judiar" de bichos, principalmente de passarinhos, "bota" as pessoas para o inferno. Meninos pequenos quando morriam os "anjos" - eram
enterrados, se "pagãos", nas porteiras. Os "doidos" eram tratados
como sêres especiais, quase sagrados e se dizia que "ofensa de doido
não doía em ninguém" (FM -- p. 152). Um "preceito" muito seguido era aquêle que mandava as "bem-casadas" prepararem os ramos das noivas.
Grandes eram as proibições, os resguardos, nas doenças. E a
medicina caseira dos engenhos resolvia todos os problemas.
No Santa Rosa, o senhor de engenho dava os remédios e prescrevia os cuidados. Ali as moléstias "tinham o seu diagnóstico e a
medicina certa: sarampo, bexiga-doida, papeira, sangue nôvo; saindo
dali era febre. O velho José Paulino tratava de tudo, fazia sinapismos de mostarda, dava banhos quentes, óleo de rícino, jaracatiá
para vermes, quinino para sezões. Curava assim os negros, os netos,
os trabalhadores. E lancetava furúnculos" (ME - p. 123/124).
Tudo isto fazia parte da sua grande e complexa tarefa de dono do
engenho e senhor de sua gente.
Para os "puxados", tomava-se vomitório de cebola cem-cem,
e as benzeduras eram encomendadas às rezadeiras de fama; os chás
''0
e as purgas também faziam os seus efeitos e eram quase sempre exaltados e prescritos pelos que já tinham positivado seus resultados .
Quando as bexigas atacavam , isolavam os que caíam, bem
longe de todos , e havia um mêdo geral. Os que sobreviviam "lavavam" as mazelas nos banhos de rio. Os banhos de poço eram recomendados para os que queriam ter saúde; e os remédios para "o
sangue", as beberagens , eram postas a dormir no sereno e tomadas
em jejum, antes do banho.
Também as comidas tinham suas indicações e seus perigos.
Assim : carne de preá "é comida carregada . Para quem tem ferida
é mesmo que veneno" ( FM - p. 42). Para convalescentes, a comida indicada é "criação nova para doente " ( FM - p. 122).
Com a usina , os doentes da terra ainda vão ser tratados pela
casa- grande. D. Dondon , vendo o sofrimento do povo, pede ao
marido uma "caixa de homeopatia do Dr . Sabino com o livro que
ensinava a aplicação dos remédios ... moradores vinham de muito
longe para consultar as mulheres e os filhos que ficavam em casa.
Falavam sempre de morrinha pelo corpo , de dores nas pernas, de
barriga dura, de dor de cadeiras . Muitos chegavam aflitos para que
ela desse um jeito às mulheres, que estavam aperreadas sem que
pudessem se aliviar dos filhos " (U - p. 68).
É ainda de observar que se tinha, ali, um vago entendimento
a respeito da salubridade ou insalubridade das terras. As da várzea,
sabia-se, tinham "melhores ares " que as do engenho Gameleira e
da Goiana : " dava impaludismo nos que moravam por perto dos alagadiços" ( B - p. 151 ), e, com a usina, dizia-se que o Paraíba
ficara infestado de doenças trazidas pela sujeira.
O mêdo e ao mesmo tempo um certo interêsse ou atração
exercida pela doença e pela morte , parece, ocupavam talvez mais
que as festas - os cocos, as danças, as festas domésticas e religiosas
-- a atenção e os comentários das pessoas de tôdas as camadas
sociais.
As comemorações das "botadas " nos engenhos , as inaugurações
nas usinas , os casamentos nas casas - grandes, as festas tradicionais
de São João são hiatos no cotidiano do eito , da moenda , dos tachos
de açúcar , das caldeiras , dos armazéns. E a festa da Semana Santa,
pelo modo como se coloca , exerce um fascínio especial, a morte e
o sofrimento do Cristo como que aliviando o pêso do sofrimento, da
pobreza , da doença.
A morte entra no cotidiano para ser tratada de modo a preencher a monotonia , agitando um pouco o compasso lento da vida
rural.
A prima Lili de Carlos de Melo, loira e branca como um anjo
("esta menina não se cria , diziam as negras" ( ME - p. 27), foi
1
91
enterrada num "caixão branquinho, cheio de rosas" (ME - p. 28)
e se dizia que foi para o céu, para onde iam as crianças, os inocentes.
- Lula de Holanda, tão devoto e tão soberano, sempre pensando
na vida passageira na "ínfima terra que pisava" (FM p. 221),
sempre demonstrando sua superioridade diante dos homens e, por
certo, sua qualificação diante de Deus, foi enterrado como pobre.
E ninguém se lembrou de dizer para onde êle iria, talvez admitindo
que as orações de tôda uma vida garantissem ao velho um lugar
entre os justos.
O velho José Paulino, chorado pelos trabalhadores, pelos que
receberam seus gritos, seus xingamentos, seu bacalhau e sua farinha,
"iria para o céu. Ursulino não. O que dava nos negros, o diabo
viera buscá-lo" (B - p. 174).
A rudeza daquela vida não permitia maiores escatologias.
Vendo cair o caixão do coronel senhor do engenho Santa Rosa
na terra molhada pela mesma chuva que fazia crescer os canaviais,
o seu neto, malgrado bacharel, não teve outro comentário senão a
metáfora agrícola: "tinham plantado meu avô" (B - p. 175).
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Capítulo IV
CICLO DO CANGAÇO,
MISTICISMO E SÊCA
Continua a correr neste CANGACEIROS o rio
de vida que te n as suas nascentes em meu anterior romance PEDRA BONITA.
E o sertão dos santos e dos cangaceiros, dos
que matam e rezam com a mesma crueza e a mesma humanidade.
JOSÉ LINS DO RÊGO
O fanatismo religioso e o cangaço são fenômenos típicos de
uma sociedade formada à base de atividades econômicas esporádicas,
constantemente abalada pela sêca e pelas lutas políticas miúdas,
-oprimida pelo latifúndio, arraigada a um tipo muito característico de
esprit de corps responsável por um peculiar conceito de honra e de
justiça.
A vila em que se desenrola a primeira parte de Pedra Bonita
a vila do Assu - é o típico lugarejo de beira de caatinga. Ali
não há atividade econômica regular. A feira semanal atrai os produtos básicos da alimentação do Nordeste sêco: farinha, rapadura,
carne sêca, além da aguardente.
O único homem "rico" da terra compra, para descaroçar, o
algodão produzido pelas pequenas lavouras das áreas rurais circunvizinhas.
Afora a feira semanal, o centro econômico da vila é a "venda"
e a loja do coronel, dono da descaroçadeira de algodão e prefeito
da vila, proprietário da única habitação digna de destaque: o sobrado
de janelas de vidro que, com a igreja, formam as duas únicas "coisas
grandes" da vila. No mais, tudo é pequeno, a terra e a gente:
"a vila do Assu não opunha os homens uns contra os outros pela
riqueza" (PB - p. 14) .
A solidão e a tristeza do lugar, segundo a imaginação popular,
era decorrente do episódio da Pedra Bonita, fantasma constante a
aterrar a gente do Assu: "Há caveira de burro enterrada por aqui"
... ,o sangue dos meninos, o inocentes que êles mataram deram
nisso" (PB - p. 132) .
.95
A manifestação de fanatismo religioso ocorrido nas proximidades
da vila do Assu , na Pedra Bonita , teria sido desbaratada por fôrça
que saiu da vila, e como tal o povo e a terra ficaram estigmatizados, marcados pelo atraso e pela tristeza , pelo marasmo e pela
penúria.
Tôdas as tentativas de salvação tinham sido baldadas, se dizia;
outros lugares floresciam, prosperavam; a vila do Assu continuava
a mesma, "penando seu destino " de responsável pelo "sangue de
inocentes " derramado cem anos antes na Pedra Bonita.
A grande oportunidade chegou um dia com os engenheiros da
estrada de ferro: seria a prosperidade, a alegria; a vila do Assu teria
trem, seria conhecida. Um grupo de cangaço ataca o acampamento
dos engenheiros que faziam os estudos para a localização da estrada,
e êles deixam a vila . O Assu continuaria o mesmo, a pagar a "sua
sina" de obscuridade, de fim de mundo.
O estigma que marca a vila talvez concorra para que os homens
não se oponham pela riqueza e as barreiras sociais quase inexistam.
O coronel local é um chefe político sem grandes pretensões.
Enriquecendo, ao que parece, no pequeno comércio, trata de descaroçar o algodão e fazer dinheiro na loja e na venda. Não manipula
o mando de maneira a caracterizar-se como "o coronel" todo-poderoso, dispondo da vida da gente do lugar. Se detém as preferências
e simpatias de uma facção do povo da vila, isto é decorrência de
uma velha briga com o coletor a respeito de uma festa da padroeira.
Há vinte anos eram inimigos ; cada qual cuidava de si: o coronel
enriquecendo, o major cuidando do seu trabalho e dos seus pássaros.
Não havia nesses inimigos ódio profundo.
Interessa ao coronel enriquecer o mais rápido possível e sair
daquele "ôco do mundo". Ele já tem fazenda nas proximidades,
algum gado, filhos estudando na cidade ...
As outras pessoas que, com o coronel, poderiam estar nos estratos mais altos daquela sociedade estão ali colocadas em função do
papel social que representam: o padre e o juiz.
O padre, vocacionado desde a infância para o sacerdócio, tem
origens nas camadas médias da sociedade (o pai fôra juiz municipal
na zona canavieira e o queria advogado no fôro ), mas a freguesia
paupérrima, o desinterêsse do povo mesmo para as coisas da religião, sua fidelidade aos princípios ético-religiosos fazem-no um pobre
vigário sem prestígio político, sem poder. Poderia ser bispo, diz dêle
a irmã quando o visita, mas prefere apascentar as suas raras e obedientes ovelhas : menos de dez mulheres, as únicas freqüentadoras assíduas da igreja . Ele imprime respeito pela extremada bondade, raramente tomando conhecimento dos pequenos acontecimentos da vila.
Prefere o silêncio da velha igreja de imagens grandes e belas que ninguém sabe quando e como vieram parar ali.
9C
Contudo não se lhe pode negar a coragem , criando um menino
dos Vieira , família também ela estigmatizada , responsável pelo massacre da Pedra Bonita - um dos seus antepassados teria chamado .os
soldados para dizimar os beatos e penitentes da Pedra -, odiada
pelo povo do Assu, para quem aquela gente trazia agouro e infelicidade.
Tôda a vila reprova a atitude do padre que tem em sua casa
"uma cobra", um membro da família maldita. Ninguém ousa , porém,
tomar uma posição frontal , limitando - se a temer os perigos da preponto de encontro
sença do menino . Os "homens da tamarineira "
de certa parte da população masculina - maledicentes , não poupam
o padre de calúnias, difamando-o com a zeladora . O tempo, as atitudes e o comportamento do vigário incumbem-se de apagar os comentários.
O juiz, porém, logo chegado ao Assu vai se envolvendo nos
pequenos problemas da vida cotidiana da vila, tomando partido ao
sabor dos seus interêsses . Intolerante e arbitrário, ridículo e debochado, é "um homem formado, de chinelas , em manga de camisa
pela rua com a barriga branca aparecendo" ( PB - p. 45).
Embora casado e pai de muitos filhos, namora uma môça de
"maus antecedentes ", filha do fiscal da Recebedoria . Ninguém levava
a sério o magistrado ; por isso, por ser quem era, diziam, estava ali
no Assu . "Se prestasse , não o mandariam para aquêle ôco do mundo"
(PB - p. 45).
O juiz acerca- se do coronel-prefeito pretendendo a sombra protetora do poder; distribui boletins infamantes e promove manifestações de hostilidade ao padre, que externou seu ponto -de-vista contrário às atitudes do magistrado.
O comportamento individual e da própria família do juiz não os
coloca como elementos do que seria um estrato social mais alto.
Também aí a mesquinhez da vida nivela os homens ; e quando da
luta com o padre , formando-se os naturais partidos : do juiz e do
vigário, os ânimos não se exaltam como seria de esperar , e um fato
inesperado - o ataque de um bando de cangaço , a coragem do
padre, a tibieza do juiz - concorre para diluir a luta . O posterior
afastamento do juiz para outro têrmo traz ao cotidiano da vila a
vidinha de sempre, os mexericos sem exaltação e sem partidos
definidos.
A maior parte da população da vila dissolve -se no que poderíamos chamar de estrato médio de funcionários ( o coletor , o escrivão, o delegado ), de pessoas que vivem de pequenas rendas (as
velhas moradoras de uma casa grande que vivem dos juros de algum
dinheiro na Caixa ), e numa camada mais baixa numerosa , constituída pelos pequenos artesãos , soldados, prostitutas , cantadores de
feira, - e por quê não?! --- a nassa da plebe rural, pequenos lavra-
97
dores, vaqueiros de pobres fazendas, tangerinos, moradores de beira
de estrada, trabalhadores de eito, cangaceiros, "santos" e as levas
de penitentes saídas dêsses mesmos grupos. Verificam-se, todavia,
como se verá a seguir, diferenciações dentro dêsses grandes estratos.
A grande maioria dessa camada, levando uma vida de economia
de consumo, castigada pelas doenças, pela sêca, pelo tacão do poder
dos poucos donos da terra, está apta a acorrer aos chamados de
taumaturgos e "santos", às promessas de abundância, prosperidade,
paz e tranqüi'idade.
A família Vieira, de onde irradia tôda a trama de Pedra Bonita
e Cangaceiros, é característica de um tipo de camada social que foge
à estruturação convencional, mas que é bem representativa das áreas
de pastoreio da caatinga e dos pé-de-serra do Nordeste árido.
É o clã das médias e pequenas fazendas de gado cujos membros
executam, êles próprios, tôdas as tarefas necessárias, vivendo uma
vida pobre e obscura em casas paupérrimas, consumindo a farinha,
a rapadura, a carne sêca e mesmo o azeite de luz que produzem ou
trocam entre si; usando os arreios, os gibões, as alpargatas que êles
mesmos fazem.
Naquelas fazendas e roças de casas velhas e sujas, de copiar
onde se guarda os mantimentos , os animais , e, mesmo, onde se
dorme, quase nada se recebe de fora, salvo o sal para os animais
e a comida da gente, e o madapolão que se veste na vida e com
que se amortalha os defuntos.
Esse tipo de clã, malgrado o conhecimento de suas origens
num passado remoto, das lutas pela terra, da bravura de avós e
bisavós, não se apega às tradições familiares, salvo no que diz respeito ao sentido de honra, às atitudes e ao comportamento masculino
e feminino.
A distância das vilas e povoados faz a família bastar-se a si
mesma, ao tempo em que o contacto diuturno com a terra espinhosa e hostil concorre para desenvolver no grupo uma acentuada
agressividade e uma atitude de disponibilidade em face de uma mítica fie salvação que bem pode desembocar no cangaço e na adesão
às manifestações e movimentos de fanatismo religioso.
É bem difícil enquadrar êsse estrato social em têrmos da estratificação convencionalmente aceita. Se por um lado detém a terra,
não a utilizando convenientemente - seja pela aridez, seja pela visão antecipadora das sêcas - marginaliza-se, não participando do
jôgo político do mando, limitando-se, quando muito, à sombra protetora de proprietários mais ricos, senhores de latifúndios, de terras
talvez mais férteis, donos do poder político e econômico.
A família Vieira nem desta sombra desfrutava. "O velho só
saía de casa para vigiar o gado. Não ia a eleição, não fazia parte
do júri". . . "Bento Vieira não tinha partido, não recebia ordens de
ninguém, não devia favores" (PB - p. 162).
Confinados na solidão da fazenda do Araticum, marcados pela
desgraça da Pedra Bonita, "povo e terra viviam ali há um século
numa intimidade profunda . Mas sem se quererem , inimigos íntimos"
(PB - p. 161).
Esse tipo de clã , relativamente comum nas áreas da caatinga,
desenvolve relações familiares baseadas num tipo de patriarcalismo
diverso daquele da casa-grande dos engenhos dos potentados, coronéis e barões, cujas senzalas muitas vêzes subsistiram ao 13 de maio.
As lutas originárias pela conquista da terra, a aridez, o isolamento, a própria atividade da criação de gado contribuem para fazer
desse grupo um elemento instável, em intimidade com a terra, mas
sem que ela o detenha por inteiro, com um arraigado e muito específico sentido de honra e de justiça. Justiça que êle faz em geral
pelas próprias mãos, seja devido à confinação em que se encontra,
longe da administração e das autoridades, seja por desacreditar na
eficácia do que êle- chama de "justiça do govêrno", quase sempre
joguête poderoso nas mãos dos senhores do mando, funcionando ao
sabor das oligarquias armadas. O verso popular é bem ilustrativo:
No fuzil eu encontrei
lei que decide a questão,
processo muito, mais justo
que o de qualquer escrivão
Nesse patriarcalismo, onde o trabalho do negro escravo quase
não estêve presente, o duro trabalho do campo teve que ser dividido
em família, nascendo daí vínculos de dependência muito mais estreitos entre os seus diversos membros, tudo isso concorrendo para
uma colocação da mulher no contexto familial em têrmos diferentes
daqueles das senhoras de engenho e de casa-grande.
Embora sem o direito de escolher o homem para casar ("mulher
de sertanejo não tinha direito de escolher, de amar quem quizesse")
(PB - p. 163), obrigada às vêzes a casamentos de conveniência,
ela é bem mais a companheira, uma espécie de voz aconselhadora
na família, muito mais que a sinhá da casa-grande, em geral afastada
das deliberações familiares - privativas dos homens -,ocupada
quase tão- sômente com as tarefas domésticas.
Obrigada, por fôrça das necessidades, aos penosos trabalhos da
casa, à pequena lavoura de subsistência, e, às vêzes, mesmo, a tarefas de ajuda ao homem, fenecendo na juventude, a mulher da caatinga, mesmo a da fazenda, está presente no momento de pegar no
clavinote em defesa das terras e da família contra as volantes, os
grupos de cangaço, os "cabras" dos inimigos.
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Nas deliberações masculinas , consegue fazer-se ouvir, representando em geral para o homem um ponto de reflexão, a necessidade
de "pensar na vida". "Tu tem mulher - diz o cantador de feira ao
rapaz que se quer afastar do quadro violento das lutas de cangaço
- e mulher dá tenção nas coisas" (C - p. 324).
Não é de estranhar que em alguns momentos, também por fôrça
da necessidade, a mulher venha a substituir o homem no comando
da família, dirigindo o clã, os negócios, criando-se muitas vêzes uma
espécie de matriarcado em casos famosos, na realidade, e que a ficção soube tão bem aproveitar no Dona Guidinha do Poço, de Manuel
de Oliveira Paiva.
A Sinhá Josefina de Pedra Bonita e Cangaceiros também se vê
na contingência de polarizar o comando da família quando se agrava
a crise de ensinamento e de desleixo do velho Bentão , quando a
família inicia o seu processo de desintegração e ela busca a salvação
nas promessas do nôvo "santo" que aparece na Pedra.
Daí por diante ela - malgrado as circunstâncias - quem
esteia o grupo familial, chegando ao ponto de proporcionar o nascimento do mito de sua fôrça sobrenatural sôbre o filho cangaceiro,
imune das balas dos inimigos e das volantes, graças às suas rezas,
ao seu poder misterioso.
No Cangaceiros, seguindo o veio lançado em Pedra Bonita, a
estória se desenvolve tendo como ponto de confluência a família
Vieira, representando o grupo já agora disperso e retirado da terra.
não pela sêca mas por outros flagelos não menos dispersantes : o
fanatismo religioso e o cangaço.
Ali também, nas áreas em que se desenrola a estória de Cangaceiros, encontramos uma estratificação social com definições difíceis, o que se poderia chamar de camadas médias e baixas estão aproximadas pelo gênero de vida, por suas crenças e mitos, pelos comportamentos e atitudes e, algumas vêzes, pelos mesmos anseios e
angústias.
Aqui, porém, o estrato mais alto chega a se definir, e mais se
configura o "tipo ideal" do coronel latifundiário e chefe político de
prestígio capaz de dizer: "Aqui em Jatobá mando eu" (C - p.
315), e de quem se diz: "Jatobá e Paracatu é o mesmo que fazenda
dêle" (C - p. 34).
Esse coronel Cazuza Leutério, senhor de vastas terras e de muitas vidas, não se confia, como ò coronel Clarimundo do Assu, nos
seus negócios. Talvez que as suas origens latifundiárias, a riqueza
e a tradição do meando familial nêle despertassem e imprimissem i
necessidade de deter o mando, ao contrário do outro, empenhado
ainda na elaboração da fortuna feita à base do comércio e, o que é
importante: interessado em sair daquilo que êle chama de "ôco do
mundo" o mais rápido possível.
O Leutério de Cangaceiros tem acesso às fontes do poder, tem
filho formado e deputado, põe e dispõe ao sabor de suas conveniências, tem seu próprio exército armado e é respeitado mesmo pelo
grupo de cangaço que o quer destruir. Ninguém melhor que êle configura "o coronel" sertanejo, senhor do seu status, gerindo seu curral
político com o mesmo tacão com que gere seu curral de fazenda.
E êle não divide o seu munus com ninguém. Seu poder, sua
disposição de mando êle quer usar sòzinho, mesmo quando seus interêsses são idênticos àqueles de outra fôrça que não a prõpriamente
sua. Quando um tenente de volante quer "exemplar" um seu inimigo na sede do seu reduto político, o coronel Leutério o impede
pois "isto de oficial de volante mandar é para os outros e não para
mim" (C-p. 315).
Pequeno agricultor com engenhoca de rapadura, o capitão
Custódio da Roqueira aproxima-se dos Vieira do Araticum pela
falta de prestígio político, pela pobreza. Como os Vieira, êle está
comprimido entre a elite poderosa dos donos de vastas terras e a
plebe rural que o cerca e da qual está bem mais aproximado. Como
a gente do Araticum, êle não tira da terra - que no dizer de alguém é "um ôvo de gema pura" - aquilo que ela poderia lhe dar.
Esse tipo de agricultura de cana-de-açúcar desenvolvida em
áreas mais "caatinga a dentro" e destinada ao fabrico de rapadura
- produto de grande consumo em todo o Nordeste - é feito quase
sempre em pequenas fazendas de pouco gado e poucos partidos de
cana, safrejando para a rapadura que é levada para as feiras mais
próximas.
Sem depender de muitos braços, a engenhoca de rapadura exige
um "mestre" competente para "dar o ponto" no caldo e poucos homens para o plantio e o corte.
Dificilmente, salvo casos esporádicos de pertinácia, ali se pode
enriquecer e desenvolver um gênero de vida semelhante ao dos engenhos de açúcar. A sêca em geral atinge a plantação, a falta de
chuvas faz a cana quase sempre "mofina", prestando-a apenas para
a rapadura e o mel.
O capitão Custódio da Roqueira em quase nada se diferencia
dos moradores de suas terras. A casa é pobre e êle também. As
relações que êle desenvolve com êsses moradores estão longe de
ser aquelas pertinentes ao proprietário de vastas terras, com seu
mando político organizado, respeitado e temido.
O próprio título que ostenta - capitão - representa, na hierarquia dos prestígios, uma posição baixa. Apenas uma vez alguém
lembrou-se - quando o prenderam como coiteiro de bando de cangaço - que êle era "homem de propriedade".
A sua luta com o coronel Leutério - nascida da morte do filho
feita por um homem do coronel - vai aos poucos transformando o
100
101
Ar,
C
ir1 a
Neste quadro social, como colocar o cangaceiro, o cantador, o
"santo" e o beato?
As suas próprias atividades afastam-lhes de um estrato definido.
Estão marginalizados pelo tipo de atividade que exercem: próximos
da variada plebe rural, mas não dentro dela, executam seus papéis
sociais que só podem ser compreendidos dentro daquele específico
contexto econômico e sócio-cultural.
capitão numa espécie de Quixote. Os padrões de comportamento
do contexto social induzem-no a "lavar a honra" ferida, pagando na
mesma moeda, fazendo justiça privada, revidando a morte do filho.
A sua carência de prestígio juntando-se à incapacidade individual
de matar vão fazendo do capitão um homem "sem honra", olhado
com lástima e desdém por todos, mesmo por aquêles que lhe são
mais próximos. As frases repetidas e repisadas - que lembram, no
romance, lamentos de côro de tragédia grega - recordando o momento da chegada do corpo do filho envolto numa rêde, as palavras
da mulher e as suas próprias, são o mais vivo atestado da paranóia
que o consumirá e o argumento que todos usam para caracterizá-lo
como um "velho doido" e covarde.
A sua cõvafdia faz com que êle se lance à justiça privada organizada - o bando do cangaço - que "lavar-lhe-á a honra e o
peito", empreitando a destruição do coronel Leutério.
Mas a sua luta é inglória e mesquinha. O cangaceiro dá-lhe
ordens, trata-o como um coiteiro qualquer. O capitão Custódio não
era um potentado e muito pouco pode dar ou proporcionar ao bando.
E . êste capitão Custódio, que vai morrer sem descendentes,
sem que lhe herde a pouca terra, que vai morrer só, abre - quem
sabe?! - a possibilidade, pelos meios fáceis das falsificações, de
ajudar a crescer o latifúndio do coronel Leutério que fàcilmente
poderá engolir as terras da Roqueira.
O estrato social mais baixo sedïl'unde em tipos numerosos, alguns com atividades definidas - artesãos e trabalhadores da terra
a grande maioria dissolvida numa plebe rural, vivendo uma típica
economia de consumo: os "moradores", os trabalhadores esporádicos.
Entre os artesãos, define-se bem o mestre da engenhoca de
rapadura, mestre Jerônimo, consciente do seu valor no ofício, com
um vivo sentido da sua decadência profissional - fôra mestre de
açúcar em engenho na zona fértil do brejo - vendõ -se agora trabalhando para um proprietário desprestigiado e doido numa engenhoca pobre. Ble que foi a dois júris no brejo, de ambos saindo
livre graças ao senhor do engenho onde trabalhava!
Dissolvidos na plebe rural que vive em tôrno das terras do
capitão Custódio estão os "cabras" que ajudam na engenhoca, estão os dois Vieira - Bentinho, o menino que fôra criado pelo padre
do Assu, e a velha Josefina, sua mãe e mãe dos cangaceiros, êle
trabalhando para o capitão, ela plantando na beirada da casa ervas
de "meizinhas" e o feijão que come com o filho.
Também nessa plebe estão as mulheres moradoras que lavam
roupa no riacho, estão os cargueiros de rapadura e farinha, os tangerias, os espias, os coiteiros de cotovelo de estrada, êsses muitas
vêzes nômades por fôrça do ofício.
Cada um dêles representa uma forma desorganizada de reação,
São tipos representativos no quadro dos fenômenos de epidemia
social cujo objetivo intrínseco , ainda que inconsciente, é a remoção
das condições que perturbam a paz e a existência em si mesma.
A instabilidade das atividades econômicas das populações nordestinas, motivada pelas lutas das oligarquias na disputa do poder,
a disparidade entre a realidade social e a engrenagem do poder e
da justiça, as sêcas mais ou menos periódicas, ao lado do problema
da repartição da terra , do latifúndio e das minorias despóticas, são
fatôres que, com a sobrevivência das crenças e dos padrões de comportamento típicos das culturas de folk, conformam os fenômenos
sócio-psicológicos do cangaço e do fanatismo religioso.
Daí que se possa colocar o problema do cangaço, veículo de
"justiça privada", como um complexo característico das áreas de
conflito social incrementado pelo desajuste entre a realidade social
e a ordem jurídica estabelecida.
Ao tempo em que representa um fator de resistência à mudança, principalmente no que se refere à questão da justiça, o cangaço diagnostica a latente contradição entre o poder político e econômico de minorias e a marginalização da massa da população rural
oprimida por um sem número de fôrças, das quais , para ela, a mais
visível é o poder dos grandes proprietários que atuam como seus
"donos"; a exploração do seu trabalho, e ainda a falta do trabalho
que lhe garantiria, de certo modo, a sobrevivência e o funcionamento
da máquina do poder em favor dos interêsses dos grupos dominantes.
Uma legislação de características eminentemente urbanas, como
a nossa, elaborada por bacharéis citadinos vivamente influenciados
por modelos estrangeiros, não pode , efetivamente , atender à realidade de grupos societários ainda apegados às atitudes e aos padrões
de comportamento de características semitribais, a populações clãnicas fechadas nos seus mores, distanciadas do litoral urbano onde,
em verdade, o Brasil acontecia. Acontecia e legislava.
A realidade sócio-cultural do Interior brasileiro entra, assim,
em dissonância com os padrões jurídicos que a metrópole europeizada importou e estendeu a todo o Brasil . Realidade e ordem jurídica entrechocam-se.
Na impossibilidade de uma tomada de consciência de classe que, evidentemente, não se poderia esperar por uma impossibilidade
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histórica e circunstancial - a plebe rural apega -se às explosões de
caráter de certo modo anárquico : o fanatismo religioso apelando
para o mito de salvação , e o cangaço desembocando na violência.
A tradição nós fala de um tipo de cangaço esporádico , levado
a cabo, em épocas de sêca e de penúria , por pequenos lavradores e
moradores de fazendas , homens pacíficos que voltam a trabalhar a
terra tão logo as condições sejam favoráveis.
Tratando o tema do cangaço em artigos de rara acuidade sociológica, Graciliano Ramos - romancista também êle voltado para o
meio e o homem do Nordeste observa as mudanças sofridas pelo
cangaço, apontando as transformações por que passou o cangaceirismo a partir do momento em que saiu das mãos do cangaceiroherói, autêntico condottiere, pelejando em nome da honra familial
e dá integridade da terra conquistada pelos antepassados, para cair
nos grupos de bandidos profissionais destituídos de heroísmo e de
grandeza.
Aquêle, o cangaceiro-herói, vai se transformar em poesia do
povo nas loas , nos abecês dos cantadores. O profissional que mata
por dinheiro , que mata ricos e pobres , como que envilece o mito,
deixando sôbre o povo o seu rastro de terror.
Nos bandoleiros
. de um passado mais remoto , os Jesuíno Brilhante, os Antônio Silvino, saídos de camadas mais altas, filhos e
parentes de famílias tradicionais de fazendeiros , Graciliano encontra
certas virtualidades éticas que não vê nos cangaceiros mais novos,
nos, por assim dizer, "profissionais", dos quais êle toma como padrão 'o célebre Lampião que caracteriza como "mulato, almocreve,
analfabeto".
Do ponto-de-vista do autor de Vidas Secas, o cangaço teria passado por um processo de "democratização"; daí que êle fale de dois
cangaços : o do bandoleiro-herói e o do cangaceiro profissional. O
primeiro vivido pelas figuras de Brilhante e Antônio Silvino, êste
Antônio Silvino que José Lins faz aparecer em Fogo Morto atacando
a casa do rico Quinca Napoleão , presente também em Menino de
Engenho, visitando o engenho do avô e , pela "fala bamba ", decepcionando o menino que o fazia arrogante e impetuoso ; o segundo
sintetizado nos Lampião e, como tal, nos Aparício de Cangaceiros,
profissïonalizados , matando de empreitada.
Mas, os Antônio Silvino e os Brilhante não agem muito diferentemente dos Aparício de Cangaceiros . Todos êles representam o
entrechoque da realidade sócio -cultural com a ordem jurídica estabelecida, 'todos êles põem em funcionamento o dispositivo da "justiça privada em contraposição à "justiça do govêrno ", controlada
pelas oligarquias dominantes . Algumas vêzes , porém , por paradoxo,
essas duas "justiças" estão unidas, a depender das injunções políticas
do momento.
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De um modo geral, a descrença na "justiça do govêrno", quando
não se conta com ela, concorre para o apêlo à justiça privada. O
homem comum, a plebe rural , necessita da sombra do poder que
livra no júri e garante, assim, o exercício do sagrado "dever" de
lavar a honra ferida, possibilitando, dêste modo , responder à expectativa de comportamento que o costume consagrou. Quando esta
proteção não existe , o cangaço faz-se veículo da "justiça".
Em Cangaceiros, tem-se um excelente material para a compreensão da formação e do funcionamento do cangaço como dispositivo
hipertrofiado na máquina da justiça sertaneja.
O cangaço traz para seu recesso elementos oriundos de variadas
camadas da população sertaneja , notadamente aquelas das zonas
atingidas pelas sêcas, das áreas de criação de gado , dos latifúndios
improdutivos.
As razões da entrada no bando obedecem a decisões nascidas
em geral da própria violência.
Aparício , o chefe do bando, cai no cangaço por ter praticado
um crime. Êle foge da justiça , pois esta não poderia protegê-lo.
Sua família não tem prestígio , êle e os irmãos não são eleitores, o
pai "não faz parte do júri", não são protegidos da política.
Do ponto-de-vista individual (psicológico ), Aparício é um temperamento violento e aventureiro . Criado na agressividade do ambiente estigmatizado do Araticum, ali para êle só havia de grande
a estória das façanhas do avô que foi bandoleiro e que morreu na
violência. Desde cedo admirou as armas, as arruaças e as brigas.
Ao contrário do irmão Domício, temperamento mais sonhador e
místico, Aparício é inquieto , despreza as cantorias e a viola do irmão,
as estórias dos santos e dos beatos, coisas que êle não considera
dignas de homem.
Como Aparício , o filho do mestre da engenhoca caiu no cangaço por falta de proteção política . O desprestígio do capitão
Custódio é que concorre para a ida do menino que fêz uma "bobagem", ferindo um homem . E mestre Jerônimo, que saiu de dois
júris graças à "fôrça " de seu proprietário, rebela-se ante a fraqueza
do dono da terra em que vivia: " Se êle tivesse tido um protetor não
ia correr para o cangaço. Fazia o crime como êle fêz, uma coisa
bôba e tinha amparo. Entrava no júri e saía livre" (C - p. 291).
Agora o menino está perdido "sòmente porque não contou com
proprietário capaz de mandar no júri e soltar seus homens" (C p. 291).
E o próprio menino, o já cangaceiro Bem-te-Vi, desabafa: "se
estou no cangaço é para não aguentar a cadeia sem ter homem que
me proteja" (C - p. 255) .
O caboclo Germano que trabalha na engenhoca, tem, porém,
uma história diferente. Este vai para o cangaço para fazer sua jus105
tiça privada, para vingar a morte do pai e a desonra das irmãs. Durante anos, êle pensou e meditou sua vingança contra a fôrça volante que arrasou sua família; e decide aderir ao bando.
O fenômeno do cangaço repercute diretamente sôbre os membros da família do cangaceiro, independente da atitude que a respeito êles tomem.
O prêto Vicente, lugar-tenente do chefe do grupo, exprobado
por sua condição de côr numa população mestiça com traços predominantemente indígenas e brancos, o "negro" Vicente inicia sua
carreira nas tocaias empreitadas pelo proprietário da terra em que
vivia, nas lutas de grupos por questões de política e de terra. Aos
poucos, êle vai se "profissionalizando", empreitado por uns e por
outros, até juntar-se ao bando onde encontrará a comunidade de
vingadores e desamparados da "justiça do govêrno", daqueles que
estão dispostos a matar ... e morrer "com a mesma crueza e a
mesma humanidade".
Engrossam-se, assim, por êsses caminhos e por muitos outros,
as fileiras dos bandos de cangaço. O sentido da vingança e da morte
dá ao cangaceiro uma atitude de cruento fatalismo - "a gente se
faz para morrer no fogo" (C - p. 198) ; "morrer é mesmo o trabaio da gente" (C - 204) - ao tempo em que desenvolve uma
mítica do sangue como fonte de energia e vida: "tu precisa sangrar
gente, menino. Ver sangue correr das goelas dos outros dá força
no corpo" (C - p. 250).
Mas o que mais importa é "lavar a honra" e "fazer justiça", a
justiça individual e a dos que estão sob a "proteção" do bando, contra a "justiça do govêrno" que pode vir - não pelos meios pacíficos do júri -- mas, pelas fôrças volantes, pelas mãos dos tenentes
sedentos de subir de pôsto, dos soldados encourados como os cangaceiros, muitos dêles saídos dos próprios bandos.
Ambas as justiças são oscilantes, pendentes das condições de
momento, das injunções e dos interêsses pessoais.
O binômio assim se completa; o território da justiça é repartido:
cangaceiro e coronel.
O "coronel" protege seus eleitores nas delegacias e no júri; o
cangaceiro "protege" seus espias, os políticos que estão "de baixo"
e que pagam seus serviços, os coiteiros enquanto lhe são fiéis, pois
"coiteiro que trabalha comigo - diz Aparício - tem que ser como
mulher. É só de um homem" (,C - p. 254) .
Como o coronel que está com o poder, o cangaceiro destrói
seus inimigos, "garante" propriedade da sanha das volantes, protege
moradores das "injustiças" dos proprietários, quando não está "de
bem" com êstes, e, até mesmo "manobra autoridades".
A massa da plebe rural e dos sem prestígio fica, assim , ao sabor
das "proteções".
Como o coronel, o cangaceiro faz paternalismo ao seu modo.
A família Vieira de Pedra Bonita e Cangaceiro, estigmatizada
desde o episódio da Pedra, cem anos antes , vê-se a braços , depois,
com outro estigma não menos terrível : família de cangaceiros.
A própria contingência e a figura violenta e autoritária do irmão impelem Domício à vida do cangaço. Antes, fôra o mito do
"santo"; agora, é o mito do irmão cangaceiro.
Restam a velha Josefina e o filho mais moço que fôra criado
pelo padre, saído de um contexto social mais urbano - a vila e lançado no redemoinho da vida da família.
Ao estigma da traição, da denúncia, do sangue dos inocentes
que traziam dos antepassados, junta-se, agora, o do cangaço: "a sina
da nossa gente é essa mesma, Domício. É morrer e matar" (C p. 71).
Os sobreviventes, mãe e filho, têm de viver escondidos, anônimos, para escapar das volantes e do mêdo e suspeição do povo.
Porque Aparício não suscita no povo - salvo exceções, naturalmente - aquela admiração que se tributa a um verdadeiro herói.
Ele serve a muitos senhores; e o povo, que fala na bôca dos moradores, da gente de feira ; dos tangerinos, não se inclui entre aquêles.
Para o mestre da engenhoca que "saiu livre pelo juri" em
bandas talvez mais pacatas, que tem uma profissão mais sedentária,
o cangaceiro, como o cantador, nômades por necessidade de seus
ofícios, não merecem acatamento e respeito: "cangaço para mim diz êle - não é coisa de homem sério" (C - p. 185).
Por outro lado, o cangaço exercido nos moldes do bando de
Aparício, violando donzelas, fere um dos pontos em que a honra
masculina no sertanejo mais se exalta. A civilização do couro e da
caatinga, prezando a castidade e a pureza femininas, vê-se atacada
pelo cangaço violador e não o pode perdoar, como não pode perdoar
a tropa volante que age do mesmo modo: "as mães daquelas terras
infelizes temiam pelas suas filhas donzelas" (C - p. 144).
E é o cantador, esta figura que também faz parte do quadro
do Nordeste da sêca, do gado, das feiras, esta espécie de aedo às vêzes cego como o grego Homero - cego pelas doenças endêmicas e pelo sol causticante, transformando em poesia a rudeza e a
grandeza da terra e da gente, é êle, marginalizado por uma profissão
vagabunda, carregando a tradição de uma expressão poética que
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Depois de Aparício, segue Domício para o cangaço . O ataque
da tropa volante aos novos penitentes de um nôvo "santo" abala o
temperamento místico de Domício, àquela altura elevado da condição de penitente à de beato, estreitamente vinculado ao "santo" que
os soldados vão, logo após, matar.
tomou, na terra árida do sertão, características singulares, é o cantador, a voz que se levanta para expressar o drama da mulher naquelas terras : "o sertão não está bom para mulher de honra , não". . .
"quando não é cangaceiro é soldado" (C - p. 332) .
É o poeta, o cantador Dioclécio, que José Lins criou, pensando, talvez, naquele inigualado Inácio da Catingueira, quem vê
realisticamente o impasse da vida do sertanejo, da mulher sertaneja
que êle canta nas suas trovas e com quem êle sonha na sua rêde
suja, coberto apenas pelo luar da caatinga.
Ante o cangaço de Aparício, ante a verdade sôbre as violências
e a mesquinhez do cangaceiro , êle não esconde o seu desencanto.
Soubera das aventuras e da valentia do cangaceiro e fizera um abecê;
mas a verdade era outra. Aparício não estava vingando as irmãs
violadas pelos soldados da volante, não estava tirando dos ricos para
dar aos pobres. O cantador não identifica o cangaceiro como o seu
herói, com o herói que êle criou no abecê e entregou ao povo.
O cantador tem credenciais para esta espécie de julgamento. Mas o
abecê foi feito e já corria as feiras , cantado por outros cantadores,
tocado em outras violas. E o mito continua assim o seu ciclo.
É também o cantador Dioclécio quem vai expressar numa frase
o significado da terra ingrata, da circunstância ingrata da terra que
expulsa o homem que, contudo, a ela está ligado por laços bem profundos, amando -a dramàticamente , mesmo nos momentos em que
ela o expulsa, abandonando-a, mas , sempre disposto a voltar.
"Rapaz, terra desgraçada é êste sertão . Vem volante e vêm
os cangaceiros e o pobre sertanejo é quem aguenta tudo no lombo.
O diabo da terra se gruda na gente e doi sair assim. É um fato"
(C - p. 344).
A figura do cantador, daquele jornal vivo da terra sertaneja
"que andava pelo mundo vencendo até a brabeza dos cangaceiros",
se empresta a visão mais realística dos problemas da terra, dos ódios
c das vinganças , dos podêres em choque , da morte e da vida.
As suas armas são os versos que lhe dão o pão de cada dia.
Por isso, êle preza as letras, a instrução. Por isso, êle diz enfàticamente a Bentinho , o menino que foi coroinha de igreja, que viveu
na vila do Assu e seria padre não fôsse a pobreza do padrinho:
"tu tem instrução e pode dar jeito na vida. Deixa essa desgraça
de sertão para mim". . . "logo que fôr tempo embarca com os corumbas para o sul..." (C - p. 305/306).
Sente-se já aí, então , a mítica do "outro" Brasil; o Sul, para
onde deveria ir o menino "instruído ", fugindo das conseqüências de
ser irmão de cangaceiro , de não ter terra nem protetor.
Ele, porém , o cantador , não pode sair . Cangaceiro não o molesta: a sua gesta pode exaltá-lo, fazê-lo até chorar. Coronel e
proprietário rico também não lhe fazem mal: comprazem-se em
ouvi-lo, pagam para êle tocar nas festas. E o povo, ah! que seria
do povo sem as suas trovas exaltando tanta alegria e tanto sofrer.
Os homens , às vêzes, o temem porque as mulheres podem por êle
se apaixonar, mas, de um modo geral, gostam de escutar as cantigas
que contam as façanhas dos cangaceiros e o milagres dos santos,
"porque história que a gente canta - diz Dioclécio - não tem
nada de mentira"! "É isto, menino , eu sei tocar no coração do povo"
(C - p. 284).
A problemática do sertão, do "outro" Nordeste , não está ainda
completa . Resta o fanatismo religioso , o messianismo, os mitos de
salvação surgidos no Brasil desde os primeiros momentos da colonização, mesclando as crenças nativas com os mitos de origem
portuguêsa sob as mais diversas formas sincréticas.
As crenças e mitos têm dado lugar a uma série de manifestações e movimentos dos mais diversos tipos, e vêm ocorrendo,
desde o século XVI, em variados pontos do Brasil.
No Nordeste, porém, os movimentos messiânicos, quer baseados num sincretismo católico-indígena, quer os de caráter sebastianista, quer os decorrentes de crenças cristãs, ou mesmo, os conseqüentes da crença nos "santos" brasileiros, têm encontrado uma
larga vigência e não se pode afirmar que, mesmo agora, estejam de
todo desaparecidos.
Nas áreas rurais mais subdesenvolvidas, graças ao isolamento
cultural e aos diversos fatôres que afetam a própria existência - a
pressão dos grupos de mando, a exploração do trabalho, a situação
ecológica, as doenças, a fome - o homem faz extravasar no mito,
na crença de salvação, os apelos para uma vida na qual aquêles
instrumentos de opressão não existam.
As disponibilidades místicas e míticas das populações das áreas
mais atacadas pelo subdesenvolvimento têm como principais fatôres
concorrentes, além dos acima mencionados, o rico folk que o isolamento permitiu subsistir e que o contacto, por sua vez, a todo instante põe à prova nas mais variadas situações de conflito e em originais mecanismos de assimilação.
O movimento de fanatismo religioso da Pedra Bonita ocorreu
nas proximidades de Flôres, na serra do Catolé, em Pernambuco,
na primeira metade do século XIX e teve um caráter eminentemente
sebastianista.
A manifestação se inicia com um "santo" que, do santuário natural da Pedra Bonita - rochedos altos dispostos de modo singular
- pregava o "desencantamento" do rei D. Sebastião. Para tanto,
tornava-se necessário sangue para abrir as entranhas da terra de
onde sairia triunfante o legendário rei português. Entre os sacrifí109
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cios, estava o jus primae noctis que o " santo" exigia das môças que
êle próprio casava em rito solene.
A pregação estende-se, a seguir , à família do "santo" e, depois,
vai dar lugar a uma espécie de monarquia com autoridades e funções definidas.
Começa o deslocamento , para a Pedra , de grupos oriundos dos
lugarejos, inclusive famílias de pequenos fazendeiros das áreas próximas. Lentamente forma-se uma comunidade religiosa que se instala em tôrno das rochas para ouvir as prédicas do "rei ", nas quais
se anunciava que, lavada a terra com o sangue de inocentes, chegaria o fim dos sofrimentos dos homens : os pobres ficariam ricos,
os pretos ficariam brancos , os velhos ficariam moços.
O ritual obrigava os "fiéis" a beberem jurema e manacá. Embriagados , iniciam a matança de homens , mulheres e crianças e
cães. Durante três dias corre sangue e, em poucas horas, os catolèzeiros e as pedras eram quase as únicas testemunhas do ocorrido.
Um vaqueiro atemorizado ante as cenas de filhos matando pais,
mães entregando filhos à morte , foge e vai avisar o povo. Em breve,
fazendeiros e a fôrça policial atacam e prendem os sobreviventes.
Segundo depoimentos da época - e há comprovação e documentação histórica a respeito - não houve violência contra os fanáticos
que restaram.
O fascínio de um tema que tem como centro e cenário o sertão
trágico de pedras e espinhos , as figuras angulosas torturadas pelo
sol e pela fome, o sertão dramático e místico dos apelos ao sobrenatural e dos ritos de salvação também atraem José Lins do Rêgo;
e êle constrói o seu Pedra Bonita. A 6a edição de Pedra Bonita (conjunta em volume com Pureza e Riacho Doce ) traz a seguinte advertência: "A narrativa dêste romance quase nada tem de ver com a
geografia e os fatos históricos desenrolados em Pernambuco nos
princípios do século '.
A ficção incumbe-se de alterar os acontecimentos e urde-se
uma estória em que o problema do fanatismo religioso aparece com
tôdas as suas implicações sócio-culturais.
A dizimação dos penitentes da Pedra, "cem anos antes", teve
como responsável um antepassado dos Vieira. E o sangue dos inocentes trouxe à família a sina de "penar ", de arrastar vida afora
a marca da covardia e da delação. Daí que se diga que a família
"cria. e a criação Pão cresce, •aplanta e não enriquece" (PB p. 200).
O estigma , porém , poderá desaparecer , diz um velho vidente
aos filhos mais moços dos Vieira: "quando uma donzela , quando
uma virgem sair das carnes dos Vieira e entregar o corpo ao padre
da Pedra. Porque ela precisa parir um homem que seja filho do
sangue que correu , que embebeu a caatinga " ( PB - p. 200).
A profecia está feita. Outro "santo" aparecerá na Pedra para
fazer a salvação do mundo que os Vieira antes impediram, quando
o "santo" anunciava que "os pretos ficavam brancos, os doentes
com saúde , as mulheres maninhas paririam meninos gêmeos, os
assassinos veriam os ofendidos satisfeitos , os ladrões entregavam os
roubos, os cangaceiros as suas armas" (PB - p. 197) .
E outro "santo" aparece na Pedra: um homem de barbas e
cajado, de fala mansa e olhar distante. Com êle chegam moradores,
lavradores dos arredores, gente trazendo cegos e aleijados. E êle
começa a falar do alto da Pedra: "Deus me disse no dia 20 de janeiro : Sebastião , é o teu dia . Vai salvar o mundo que se perde"
(PB - p. 341).
Era preciso desencantar a lagoa de onde sairia o ouro, e realizar com sangue o grande milagre : "no dia do milagre grande não
haveria mais ricos nem mais pobres. Tudo ficaria igual: os Dantas
de Teixeira, os Leites do Piancó, os Carneiros de Pombal. Tudo
ficaria igual a êles ... " (PB - p. 301) . Rios de leite correriam
para os famintos, o sertão seria verde de inverno a verão depois do
grande milagre, quando corresse o sangue das donzelas e dos inocentes.
Levas e mais levas de penitentes vão chegando. Mulheres desgrenhadas carregando filhos doentes começam a arrumar os trastes
que trazem para debaixo das latadas junto da Pedra. Entoam-se
benditos. As notícias correm longe. Dizia-se que o santo levantava
aleijados, curava cegos. "O homem só come comida de herva e tem
um cavalo branco que ninguém monta nêle. O cavalo tudo que
deita prá fora, com licença da palavra - diz um romeiro - serve
de meizinha para o povo" (PB - p. 313).
O padre do Assu vai ver de perto os acontecimentos da Pedra.
Os fanáticos olham-no desesperados: êle veio para levar o "santo",
pensam, e por pouco não o atacam. Uma volante se aproxima do
local e os fanáticos atacam os soldados com pedradas.
A vegetação espinhosa dos cactos, dos mandacarus e dos xiquexiques, ferindo e cegando os que dêles se aproximam; o conteúdo
sanguinolento e trágico das passagens da história sagrada; a dimensão característica que as curas, os milagres e a própria morte de
Cristo, narrados pelos missionários de tempos em tempos tomam nas
populações sertanejas; os milagres e profecias transformados em narrativas passadas de geração a geração, todos êstes ingredientes concorrem para a sedimentação das crenças de salvação partindo de holocaustos, de sacrifícios, de sangue, de sofrimento.
As evidentes diferenças econômicas, o sentimento de que a
opressão parte dos mais ricos, emprestam o conteúdo igualitário da
pregação dos "santos" e da aspiração dos penitentes. Todos fica-
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riam iguais: os Dantas de Teixeira, os Leite de Piancó ... todos
ficariam iguais a êles.
Na terra ingrata e sêca correriam rios de leite e o sertão far-se-ia
verde; como na antiga Palestina , o sertão seria a terra da promissão.
Dali sairia a salvação do mundo.
Os Vieira, espancados pela volante na procura do filho cangaceiro, extenuados pela anátema que lhes traz tanto sofrimento,
acompanham os penitentes e também vão para a Pedra.
O filho Domício tinha visto o "santo" e os milagres, tinha visto
as promessas e também se tinha curado na "leseira" que o consumia;
esquecera as visões que há muito tempo tiravam-lhe o sono: o simples olhar do "santo" tinha tirado de sua cabeça os seus antigos
sonhos com a "cabocla das furnas". Éle era agora outro homem.
Domício irá agora, com os seus, "adorar o santo".
A velha Josefina, murcha de sofrimentos e de trabalho, com
um filho no cangaço, outro "sumido" na terra da borracha - era
o tempo da corrida ao eldorado do Amazonas - o marido fechado
em suas cismas, fica com os casos que ouve a respeito do "santo"
lhe "aperreando os ouvidos". E com o filho e o marido caminha
para a Pedra: "tinham vindo para salvar-se da desgraça da família,
para limpar o sangue de Judas dos Veira. Deixaram tudo, o Araticum vazio, o gado morrendo de fome, a casa triste como uma casa
de bexiguento. E estavam todos esperando de Deus, do santo, de
qualquer coisa" (PB - p. 340).
Domício agora era "beato", passara do mito da "cabocla das
furnas" para a adoração do "santo".
E Bentinho, o menino criado no Assu, o afilhado do padre, vê
os seus entre os famintos e desgrenhados, entre os doentes, os aleijados. Vê seu padrinho fracassado: não tirara aquela gente da heresia. Quem teria razão: os penitentes, o irmão, a mãe, o padrinho?
Bentinho vê, porém, uma verdade: "irmão de cangaceiro e beato,
os dois irmãos dêle desgraçavam o sertão" (PB - p. 355).
Mas mesmo assim, quando se sabe que a volante armada vai
acabar com o "santo" e os penitentes, Bentinho sai do Assu para
ir avisar os seus.
Contudo, a volante ataca e mata. Domício depois confessa à
mãe: "eu vi, mãe, a cara da morte do Santo. Eu vi a cabeça de
barba, de cabelos grandes, no chão como os outros romeiros. Não
era Santo, mãe. Era homem assim como eu e Bentinho. Lá estava
êle de bôca aberta, defunto como os outros" (C - p. 58).
Morto um mito, busca Domício outro mito, talvez mais forte:
o irmão cangaceiro: "fui vendo - diz êle a Bentinho - que o nosso
mano não é homem como nós" (C - p. 61).
O velho Bentão, que "queria só para comer e vestir, e o mais
que a sêca comesse, que a chuva levasse" (PB - p. 174), morrerá.
112
Josefina continuará sua sina escondida com o filho mais môço
na Roqueira do capitão Custódio. Na grande sêca, dera o filho mais
môço ao padre do Assu para que o menino não morresse de fome.
Vagara com o marido e os outros filhos até que dias melhores chegassem. E os Vieira voltaram ao Araticum.
Agora já não tem os três primeiros filhos: um sumido, dois
cangaceiros. Josefina vê em Aparício um castigo, ela "parira um
monstro de Deus", "tinha sido uma mulher emprenhada pelo cão"
(C - p. 79) .
A vida dos filhos no cangaço, o ter que viver negando os próprios filhos, tudo isso vai levando a velha à loucura.
Aparício por sua vez vai se convencendo e concorrendo para
transformar em mito os podêres da mãe. A mãe dos cangaceiros
tem rezas que "fecham o corpo" do filho. Ela é o único poder que
o cangaceiro respeita.
É o mito das rezas, das visões e alucinações de mães e avós
sertanejas, mulheres místicas, de corpo gretado e de ossos duros, de
bôca poderosa que todos temem e respeitam.
O tempo em que estêve no Assu dera a Bentinho uma outra
dimensão da vida. O cantador Dioclécio que êle conhecera antes,
que falava de amores, de festas, de cantigas, de terras, de felicidade,
voltara. Aparecera quando Bentinho perdia a mãe e quando o amor
ingênuo da filha do mestre da engenhoca chamava-o para a vida.
Dioclécio lhe acena com o sul. Agora êle tem mulher, e mulher
"da tenção nas coisas". O sertão, diz o cantador - "vive assim
nesta peitiça: quando sai de cangaceiro é para ficar com os soldados"
(C - p. 345). O melhor era embarcar com os corumbas. E Bentinho, que tinha "instrução", poderia viver longe daquelas terras.
E êle foge.
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Este livro terminou-se de imprimir, nas oficinas da S. A.
Artes Gráficas, Salvador, Bahia, Brasil. A supervisão dos
trabalhos tipográficos estêve a
cargo de Antônio Lôbo. Foto
da capa e frontispício de Sílvio
Robatto. Planejamento gráfico
de Jacyra Oswald. Supervisão
editorial de Nélson de Araújo.
Diretor do Departamento Cultural, Valentin Calderón, Reitor, Roberto Figueira Santos.
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