CIAL DOS DOIS - FFCH - Universidade Federal da Bahia
Transcrição
CIAL DOS DOIS - FFCH - Universidade Federal da Bahia
IAS Universidade Federal da Bahia COLEÇÃO CIÊNCIA E HOMEM Zahidé Machado Neto ESTRU TURA SQ C IAL D OS DO IS NOR DESTES NA O BRA LIT E Rà RIA DE JOS É LIN S DO REG O BAHIA 1971 UNIVER SIDDA c. Lr`'. :adi?T1 1,—`A TULDADE DE í TL SOFIA BtBLtOT- CA No da Tombo 2 ,11 A publicação deste livro é parte do programa editorial estabelecido em convênio firmado entre a Universidade Federal da Bahia e a Secretaria de Educação e Cultura do Estado da Bahia. L Este livro é, na sua forma original, uma dissertação de mestrado apresentada à Coordenação de Pós-Graduação em Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, tendo sido aprovada com distinção pela Comissão Examinadora. Thdice 1. Introdução Metodológica 5 11. O Nordeste da Cana-de-Açúcar; Síntese Sociológica 15 III. IV. Análise Sociológica do Ciclo da Cana-de-Açúcar .... Ciclo do Cangaço, Misticismo e Sêca ............ Bibliografia .................................. 25 89 111 Capítulo 1 INTRODUÇÃO METODOLÕGICA A literatura foi entre nós uma espécie de matriz, de solo comum, que, por mais tempo que em outros países, alimentou os estudos sôbre a sociedade, dando-lhes viabilidade numa cultura intelectualmente pouco diferenciada. Os brasileiros que lideram até os nossos dias com as ciências do homem fizeram -no em grande parte como escritores, com atitude mental, linguagem, métodos mais adequados à criação Iiterdria (no sentido amplo) do que ao objeto de estudo que escolhiam" (ANTÔNIO CÂNDIDO) (1) A ficção é a fonte onde se alimenta o conhecimento das verdades eternas. EDMUND HUSSERL (2) Enciclopédia Delta1 Cândido , Antônio . " A Sociedade no Brasil". In: Larousse . Rio de Janeiro, Delta, s.d. v. 5, p. 2227. Paris, 2 Husserl , Edmund. Idées directrices pour une phénomenologie. p. 227. 1950 . Gallimard , A partir de discussões sôbre a sociologia da arte, devidas a nomes cujos trabalhos hoje já se colocam como pontos de alta relevância para quem se abalance a qualquer abordagem dêsse terreno, entre os quais estão um Roger Bastide, um Pierre Francastel, um Mendieta y Nuíïez, a sociologia da literatura encontra-se em momento de grande germinação, interessando direta ou indiretamente sociólogos e teóricos da literatura, principalmente. Albert Memmi, Lucien Goldmann e Robert Escarpit constituem, na França, a vanguarda de tais estudos. A obra de teoria da literatura de R. Wellek e A. Warren representa um momento dos mais definitivos tanto para a crítica literária, como para a sociologia da literatura, e, òbviamente, para a própria teoria da literatura, oferecendo subsídios e caminhos dos mais valiosos para uma preocupação teórica que, de Mme. de Staël e Taine aos atuais teóricos estruturalistas, vem assumindo tratamentos de vária natureza, o mais rigoroso dos quais, e por isso o mais perigosa, talvez seja mesmo o sociológico (3). Não vamos discutir aqui os pressupostos teóricos da sociologia da literatura. Contudo, vale assinalar alguns aspectos que de logo se apresentam ante a relação sociologia e literatura. Com Wellek e Warren observamos que três problemas básicos envolvem o que podemos chamar de sociologia da literatura: a sociologia do escritor, o conteúdo social das obras em si mesmas e a influência da literatura na sociedade (4). A sociologia do escritor faz-se possível pela análise da origem do autor, de sua condição social, dos valores positivos e negativos 3 Wellek, R. & Warren, A. Teoria..., cap. 9 (especialmente) . Sôbre o assunto, cf. também: Meammi, A. "Problèmes..." - Id. Cinq propositions... - Escarpit, R. Sociologie... - Goldmann, L. Pour une... - Lukacs, G. La théorie... - Franscastel, P. "Problèmes... " 4 Wellek & Warren, op. cit. - Cf. também Bastide, R. Arte... - Id. Les problèmes... 11 do seu tempo, do contexto sócio-cultural em que êle estava (ou está) imerso, bem assim sua adesão ou rebeldia em face daqueles valores, e a medida em que tal posição se transplanta ou se apresenta recriada na obra. Diante da obra literária, a atitude mais comum por parte daqueles que sôbre ela tentam realizar uma abordagem de algum modo sociológica é aquela de procurar referi-la como "documento social", arquivo", "espelho da sociedade", enfim: a busca da adequação, tanto quanto possível perfeita, entre a obra literária, quase sempre o romance, mas não raro o conto ou a crônica, e uma dada realidade sócio-cultural. Ocorre porém, parece-nos, que tal tipo de trabalho, pelo seu conteúdo meramente descritivo, carece de maior valia. O conhecimento da sociedade através de outras fontes, que não as puramente literárias, faz-se indispensável para a fixação dos elementos básicos da realidade sócio-cultural sôbre a qual repousa a obra de ficção a ser explorada. Só a partir daí será possível a análise e o levantamento dos componentes ou do conteúdo social subjacente na obra de ficção. A abordagem do escritor tem, aqui, um sentido relativamente especial, já que necessitamos situar o objeto de nosso estudo - romances do escritor brasileiro José Lins do Rêgo - no tempo e no espaço. A vinculação vivencial do escritor ao conteúdo de sua obra faz imprescindível a colocação dêsse problema, quando menos nas entrelinhas e nos entretons do tema capital, já que aqui não poderemos realizar o que seria a sociologia do escritor em suas últimas conseqüências. Quando nos ocupamos de sua vinculação social, de suas origens, tais observações se justificam tão só para a melhor compreensão do romance como meio de análise de uma realidade social, análise apoiada embora em elementos de teor científico, como veremos mais adiante. Portanto, objetivando a análise do "conteúdo social das obras em si mesmas", nosso material empírico serão aqui dois tipos de romance de José Lins do Rêgo,. Além das obras do chamado "ciclo da cana-de-açúcar", como expressão do Nordeste gordo da zona da .nata e do massapê, da casa-grande e do engenho, onde a civilização sedentária, aí instalada desde a colônia, iria criar uma sociedade tradicional, mais refinada e patriarcal, analisaremos também Cangaceiros e Pedra Bonita como expressões do "outro Nordeste", procurando encontrar no material romanesco do grande memorialista a síntese, não por literária menos real, mas por isso mesmo muito mais viva, do Nordeste de Gilberto Freyre e do outro Nordeste de Djacir Menezes. José Lins do Rêgo, brasileiro, paraibano, descendente de senhores de engenho e bacharel em Direito, radicou-se inicialmente no 12 Nordeste, onde manteve vínculos estreitos com o movimento de renovação da inteligência que ali ocorreu em moldes que se aproximam, e em boa medida chegam a se distanciar, do movimento paulista de 22. Sua experiência de promotor público em Minas Gerais durou relativamente pouco. O nordestino vai, então, para o Rio de Janeiro, onde fará principalmente literatura de saudades e recordações sempre voltadas para o Nordeste; mas, vivendo a grande cidade, nela se integrará, escrevendo romances com outros cenários, embora sempre e até o fim esteja apegado à terra que é, talvez, o seu mais autêntico cenário. No Rio, que êle tanto amou, vai morrer com pouco mais de cinqüenta anos. Escritor consagrado, José Lins se coloca entre os dez mais importantes romancistas brasileiros modernos. A consagração, quer da crítica especializada, quer do público leitor, em cêrca de trinta anos de vigência, põe-nos, ao escolhê-lo e às suas obras, inteiramente fora do alcance da discussão em tôrno do problema de saber em que medida uma obra de arte medíocre pode constituir para o sociólogo um material de análise sociológica de alta relevância (5). A famosa frase de De Bonald "a literatura é uma expressão da sociedade", bem como as teorias que tentam estabelecer o que se poderia chamar de uma "relação mecânica e imediata entre o conteúdo de uma realidade social e o da obra nela criada" (s), constituem, ambas, atitudes simplistas e empobrecedoras do fenômeno artístico . Não é tal o nosso intento. Essa atitude não se justificaria em face da obra de José Lins, homem umbelicalmente ligado ao Nordeste e ao movimento regionalista ali ocorrido nos anos vinte, e que representou, de certo modo, a agitação intelectual que o Brasil viveu no após primeira grande guerra. Se em São Paulo a agitação suscitada pelo Movimento Modernista de 22 teve, talvez, uma coloração mais aparentemente universalista, no Nordeste o movimento, no que diz respeito especificamente ao romance, se coloca, dentro de certos têrmos, numa seqüência iniciada no princípio dêste século, e mesmo antes, por romancistas até hoje relativamente obscuros. Lúcia Miguel Pereira (7) observa que a maior parte da nossa ficção se preocupa com as peculiaridades locais e que há uma constante em nossa literatura: a predominância da observação sôbre a invenção, fenômeno que ocorre até mesmo entre os românticos. 5 Wellek & Warren , op. cit ., p. 119. 6 Velho, Glberto. " Prefácio ". In: Sociologia da arte . Rio da Janeiro, Zahar, 1967 . v. 2 (Textos básicos de Ciências Sociais) . 7 Pereira , Lúcia Miguel . História da literatura brasileira . Rio de Janeiro , José Olympio , 1950. v. 12. 13 Sem que se tenha de relacionar, mecânica ou simplificadamente, sociedade e obra literária, quer-nos parecer que há, como bem viu Antônio Cândido (8), uma espécie de matriz ou de solo comum na linguagem literária, que foi, assim, o veículo pelo qual se externaram todos aquêles que, tocados pela realidade humana e por seus intrincados problemas, talvez não tivessem encontrado de modo adequado os rigorosos caminhos da ciência e da linguagem científica. O Movimento Regionalista, que teve como base de operações o Recife, ali encontra José Lins do Rêgo e o põe em vivo contacto com o sociólogo Gilberto Freyre, há pouco chegado de Baylor e Oxford, onde estudara com Boas, Giddings e Seligmann, entre outros. A sua tese de Columbia, Social Life in Brazil in the Middle of the 19th Century (cuja idéia básica foi posteriormente desenvolvida no famoso Casa Grande e Senzala), é o estímulo inicial a despertar o grupo do Recife. O sentido cultural brasileiro aí se destaca no que há de importante, no mais genuíno, no tradicional, nos hábitos, costumes, ritos e religiões. Luís Jardim (9) observa a influência em Gilberto Freyre do cultural de Boas_ e do impressionismo de Simmel, associados ao que êle chama de método introspectivo. Também es-tilo literário-irá sofrer uma constante "revolução" sob tais influências; a utilização do falar popular dentro da mais absoluta autenticidade, livra os romancistas que partem do Movimento Regionalista dos perigos do "caipirismo" grosseiro. O estilo de José Lins do Rêgo, diz Luís Jardim, vem dessa revolução. A influência de Gilberto Freyre sôbre José Lins foi flagrante. E' êste mesmo que afirma: ". . . a minha aprendizagem com o mestre de minha idade se iniciava sem que eu sentisse as lições..." (10), e ainda: "... de lá para cá minha vida foi outra, foram outras as minhas preocupações, outros os meus planos, as minhas leituras, os meus entusiasmos". . . (11) . Não obstante, José Lins é, acima de tudo, um contador de estórias e um memorialista. Homem da terra, talvez mais do que em nenhum outro romancista brasileiro o passado entrelaçado ao presente tenha encontrado maior ressonância. A literatura oral das pretas velhas, remanescentes da escravidão, as "histórias da carochinha" (seu Histórias da Tia Totonha tem uma marca indelével dessa influência), as cantorias dos cegos de feira, dos moleques de bagaceira, marcam-no decisivamente. A esta sêde de contar aliam-se as idéias do Movimento, a capacidade de observação verdadeiramente sociológica. Tem bem razão Otto Maria Carpeaux quando nos diz que "a obra de José Lins do Rêgo é mais, muito mais, do que um documento sociológico; é qualquer coisa de vivo, porque o seu criador lhe deu o próprio sangue" (12). A intimidade com os romancistas inglêses, principalmente Lawrence e Hardy, é decisiva para a tonalidade universalizante de sua obra. Foram justamente tais influências, diz-nos Gilberto Freyre, "que impediram José Lins do Rêgo de empastar-se numa espécie de Zola paraibano difuso e demagógico" (13). A arte telúrica de José Lins, sua reação a todo aspecto nocivo do transplantacionismo, sua fidelidade de narrador ao mundo que êle recria e redimensiona, fá-lo um romancista de domínio invulgar da arte de contar. Nêle, observação e imaginação se juntam admiràvelmente. Bem observa Lêdo Ivo: " ... aos que, por uma deformação profissional ou desatentos diante da complexidade inventiva de Lins do Rêgo, se habituaram a ver em sua obra, de preferência a face sociológica, como se êle fôsse apenas o extraordinário executor de um sistema ecológico, nada mais recomendável do que apreciá-lo numa posição exatamente inversa, isto é: como um homem dotado de uma visão criadora, que ensinou a ver em lugar de ser ensinado, autônomo e soberano na construção de um mundo que funde, num compacto verbal, a memória e a imaginação e onde tudo que foi vivido e experimentado retorna à luz do dia revitalizado pela metamorfose da invenção" (14). Decorre daí o fato de que a utilização da obra de José Lins do Rêgo numa análise sociológica corra o risco de representar um ato de violência ou de profanação. A sua capacidade de "ensinar a ver" é, porém, um atrativo apaixonante para o sociólogo. Mas essa matéria nobilíssima que é a obra de arte dêsse admirável analista do tempo e dos homens jamais poderia representar tão só material empírico para a análise sociológica. Ela é bem mais, muito mais que isto. 12 8 9 10 11 Cândido, op. cit. Jardim, Luís. "Prefácio". In: Freyre, Gilberto. Artigos de jornal. Recife, Ed. Mozart, s.d. Rêgo, José Lins do. "Prefácio". In: Freyre, Gilberto. Região e tradição. Rio de Janeiro, José Olympio, 1941, 1941. p. 10. Ibid. 14 13 14 Carpeaux , Otto Maria. "O brasileiríssimo José Lins do Rêgo". In: Rêgo , José Lins do. Fogo morto. 9- ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1969. O romance In: Montenegro , Olívio . Freyre , Gilberto . "Prefácio" . brasileiro. Rio de Janeiro, José Olympio, 1938 (Coleção documentos brasileiros) . Ivo, Lêdo. "O ensaista José Lins do Rêgo". In: Rêgo, José Lins do. O vulcão e a fonte. Rio de Janeiro, O Cruzeiro, 1958. 15 Como saber do conteúdo social da obra de José Lins (15)? Far-se-ia indispensável, sem dúvida, a busca de elementos rigorosamente científicos, conceitos apurados na verificação empírica, sob pena de se cair no simplismo do discreteio e no mero pinçar os traços assistemática e subjetivamente admitidos como sociológicos. Um trabalho de análise do conteúdo sociológico de romances não encontra o apoio relativamente fácil e operacional no nível da pesquisa empírica, quando, à base de uma hipótese e, sob o contrôle de rigorosas e apuradas técnicas, se chega a conclusões seguras e aferições quantitativa e/ou qualitativamente tranqüilizadoras para o pesquisador. Afastada a hipótese do contrôle pela verificação empírica direta do que se poderia considerar como remanescente ou conseqüência, no Nordeste de hoje, dos traços tão vivamente lançados por José Lins nos seus romances, há que se fazer apêlo a outros apoios científicos indiretos. Daí o recurso de que se lançou mão, como apoio teórico dêste trabalho: o que se poderia chamar de síntese da elaboração da ciência social brasileira sôbre o Nordeste. Õ da cana-de-açúcar, da casagrande, do engenho e da senzala, do massapê e das grandes chuvas, do senhor de engenho e do usineiro, do escravo e da clientela, das famílias extensas e poderosas, e aquêle chamado de "outro Nordeste", expressão cunhada por Djacir Menezes para a zona nordestina da caatinga, da sêca, do gado, do fanatismo religioso, do cangaço e da violência (16). As observações, realizadas com base nos conceitos de estrutura e organização sociais, terão de utilizá-los sem maiores apelos à problemática teórica que os envolve, antes manejando-os operativamente. Por outra parte, a própria disciplina do trabalho, talvez menos esquemático que pròpriamente dissertativo, busca, naturalmente que dentro de uma síntese pessoal, não destoar do próprio estilo do autor - não apenas por fidelidade à atmosfera da obra, mas por uma escolha metodológica - já que se observou que a análise mera- 15 Sôbre os aspectos sociais da obra de José Lins do Rêgo, cf. entre outros: Castello, José Aderaldo. José Lins do Rêgo; modernismo e regionalismo . Rio de Janeiro, Edart, 1961 . - Milliet, Sérgio. "A obra de José Lins do Rêgo". In: Rêgo, José Lins do. Fôgo morto. 4a. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956. - Dantas, Pedro. "Nota sôbre J. Lins do Rêgo" . In: Rêgo , José Lins do. Menino de engenho. 6a. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956, - Lins, Alvaro. "Um novo romance dos engenhos". In: Rêgo, José Lins do. Fôgo morto. 4a. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956. - Carpeaux, Otto Maria. "Prefácio". In: Rêgo, José Lins do. Fôgo morto. Rio de Janeiro, José Olympio , 1943 . - Monteiro , Adolfo Casais . " Saudação a José Lins do Rêgo". In: Rêgo, José Lins do. Usina. 4a. ed . Rio de Janeiro, José Olympio, 1956. 16 Menezes , D. O outro... 16 mente esquemática levaria à perda dos detalhes, os quais representam um aspecto que se verificou ser de grande significação e relevância. Nosso material de trabalho são romances de José Lins do Rêgo que compõem, nitidamente, dois aspectos do nordeste brasileiro: o da cana-de-açúcar - visto através de Menino de Engenho, Doidinho, Bangüe, Usina, Moleque Ricardo e Fogo Morto, e o "outro Nordeste", visto através de Pedra Bonita e Cangaceiros (17). Se Menino de Engenho e Doidinho vão possibilitar a compreensão do panorama ainda relativamente tranqüilo da sociedade da casagrande através da visão retrospectiva de Carlos de Melo - nosso principal "informante" no decorrer de tôda a pesquisa -, Bangüê, Usina e Fogo Morto - os dois primeiros num encadeamento temporal que conduz mais fàcilmente a análise, o último como visão totalizante e ao mesmo tempo singular, quando destaca unidades sociais e grupos em crise - irão oferecer o material mais útil ao exame do momento transicional. Êsse é o momento em que será possível detectar as alterações que já começam a surgir na estrutura econômica e suas decorrências no plano da estratificação social, no manejo e distribuição do poder, na inserção de novos valores e sua influência no comportamento individual e grupal. Moleque Ricardo, embora relativamente desenfocado do plano específico da análise, colaborará principalmente para a compreensão do problema das aspirações de ascensão social por parte de um remanescente hereditário da escravidão, vendo na cidade um caminho de salvação da senzala, mas lá encontrando outros modos de continuar escravo. De alguma sorte Moleque Ricardo chega a informar, pàlidamente embora, sôbre as primeiras lutas sindicais, a formação dos primeiros grupos de trabalhadores urbanos lutando por representação, o jôgo político das elites do poder, muitas delas vinculadas ao prestígio e à fôrça emanadas da propriedade da terra. 17 Usaremos, em todo o decorrer da análise, as edições das obras abaixo discriminadas. Para facilitar as citações, serão usadas as iniciais das obras conforme também se vê, juntamente com a indicação da página: Rêgo, José Lins do. Menino de engenho. Rio de Janeiro, Adersen Ed., 1932 (ME) Doidinho. Rio de Janeiro, Ariel , 1933 . 4a. ed . Rio de Janeiro, José Olympio, 1943 (D). Será usada a 4a. edição. Bangué Rio de Janeiro, José Olympio, 1934 (B). O moleque Ricardo. Rio de Janeiro, Jq§é Olympio, 1936 (MR). Usina. Rio de Janeiro , José Olympio , 1936 . 2a. ed . Rio de Janeiro, José Olympio, 1940 (U). Será usada a 2a. edição. Fõgo morto. Rio de Janeiro, José Olympio, 1943 (FM). Pedra bonita. Rio de Janeiro, José Olympio, 1938 (PB). Cangaceiros . 2a. ed . Rio de Janeiro , José Olympio, 1956 (C) , 17 E' através da manipulação de todo êste material que se irá analisar, em diferentes níveis, os vários aspectos da estrutura e da organização da sociedade do Nordeste da cana-de-açúcar e seu processo de alteração e recomposição. Os dois romances de José Lins do Rêgo que pertencem ao chamado "ciclo do cangaço, misticismo e sêca" - Pedra Bonita e Cangaceiros - constituem preciosos elementos para a análise de facêtas altamente significativas da realidade sócio-cultural do "outro Nordeste". Homem da várzea, do massapê, da casa-grande, a sensibilidade de José Lins se vê arrastada ao cenário físico e humano do "outro Nordeste", àquele mundo que não é bem o seu, mas cuja presença se faz constante e que êle traz para viver um pouco em Menino de Engenho, em Fogo Morto, nas passagens do bando de cangaço pela paisagem decadente do universo de Lula de Holanda, de mestre José Amaro e do velho José Paulino. Trata-se de um contexto social rico de problemática humana, caracterizado pelo entrechoque constante dos padrões de uma cultura de folk com os padrões exógenos e pela derivação, através do mito e da violência, de tôda uma gama de circunstâncias naturais (a sêca, a aridez da terra) e de intervenções humanas (o latifúndio, o mandonismo, a política clientelística), tôdas elas opressoras e desumanizantes, características daquele Nordeste pastoril, seminômade, clânico, turbulento e místico. A análise do material referente ao "ciclo da cana-de-açúcar" será feita dentro de dois planos, que ao mesmo tempo se destacam e se completam: de um lado, tratar-se-á do que bem se poderá chamar de estrutura ecológico-econômica; de outro, e êste mais detidamente trabalhado, a estrutura e a organização sociais. Os ângulos de apoio, olhados num sentido, por assim dizer, estático ou estrutural e dinâmico ou organizacional, serão predominantemente a estratificação social, a ordem político-jurídica, a organização doméstica, os valores sociais em todos os seus aspectos, isto é: da vida cotidiana ao horizonte escatológico das ultimidades. O tratamento do material referente ao "ciclo do cangaço, misticismo e sêca", far-se-á de modo mais simplificado, tendo em vista, principalmente, o fato de que os dois romances não atingem a visão totalizante e ao mesmo tempo detalhística, tal como ocorre no outro "ciclo" . Engloba-se então o tratamento, a síntese sociológica fazendo-se concomitantemente com a análise do próprio material, muito embora se procure, a cada passo, dar o destaque necessário, sempre com o apoio da base científica fornecida pelos trabalhos teóricos específicos sôbre o "outro Nordeste" ou que com êle estão relacionados. 18 Capítulo II O NORDESTE DA CANA - DE A-ÇÚCAR : SÍNTESE SOCIOLÕGICA As razões da introdução da cultura canavieira na região litorânea do nordeste brasileiro já estão por demais esclarecidas, como também o estão os motivos que ativaram a sua expansão. A aplicação da economia portuguêsa ao processo da cultura extensiva do açúcar e o seu jôgo no ávido mercado consumidor europeu, no pleno desenvolvimento do capitalismo mercantil, vai coincidir com a eficaz produtividade do massapê, do regime de chuvas e do próprio sistema de águas que, de um modo geral, não difere significativamente nas áreas que se estendem do Rio Grande do Norte ao Recôncavo baiano. Na zona pernambucana e paraibana, desde o alvorecer da emprêsa das Capitanias, núcleos se desenvolveram vencendo impasses e adversidades graças à capacidade econômica e à resistência dos proprietários, quase sempre gente de posses da nobreza reinol ou altos funcionários, os quais verão, no decorrer dos anos, salvo uma que outra crise de solução mais difícil, consolidar-se seu domínio sôbre a terra, sua riqueza incrementada pela escravaria importada, e adaptada à terra e ao trabalho, êsse binômio terra-escravo constituindo as bases de uma economia que resistirá e se irá metamorfoseando no decorrer do tempo. A conquista da terra para a cana não se fará senão dentro da técnica indígena da coivara. Cai a mata pára que a cana cresça e para que se abasteçam as fornalhas dos engenhos. As lutas não se limitarão à conquista, dir-se-á que física da terra. A grande propriedade - o adjetivo aqui se impõe como requisito primeiro vai fazer nascer os sistemas satélites, as formas de aforamento e assentamento, arrastando tôda uma série de conseqüências políticas, administrativas e sociais, portanto. A tutela sôbre todos os aspectos da vida, por parte do grande proprietário, vai fazê-lo o centro em tôrno do qual gravitará tudo o mais. Tôdas as demais coisas - a começar pela própria administração - existirão como sua munificência ou sob sua tutela. O domínio de fato do senhor de propriedade sôbre a terra, os escravos, a família e seus dependentes ou vassalos 21 vai criar uma imagem que confunde a terra com o senhor e com o próprio poder real, o qual , distante, faz dêle indiretamente seu sucedâneo. Mas ao que se quer chegar é à observação da convergência dos elementos humanos com a própria realidade física, para que se possa atingir as conseqüências por assim dizer mais supra-estruturais. À queda da mata, à paulatina ocupação da terra se juntam, como aliados inestimáveis , o rio, os riachos constantes , a água , elemento que se impõe ao sistema do engenho e propicia o processo de sedentarização, fixação e, talvez, mesmo, a própria organização endogâmica. Os rios próximos do mar (onde estavam os armazéns do açúcar estocado para a exportação) são assim também vias de transporte, com os botes, as canoas e as barcaças; mas também fontes de alimentação graças aos peixes, aos pitus. Quando o rio se confunde com o mar também se conta com carangueijos e siris , alimentação que serviu para quebrar a dieta às vêzes rigorosa dos engenhos, ou para aliviar a fome das populações mais miseráveis dos mocambos de Recife. Mas o rio é também o lugar do banho, da distração da criança, às vêzes do adulto, indicado em muitos casos para a saúde, trazendo doenças, muitas vêzes, quando êle era também o lugar de despejo. Amigo nas épocas tranqüilas, o rio é o terrível inimigo nas cheias, mas é a êle que de alguma sorte se liga grande parte da vida da§ populações do engenho, e, mesmo, depois, das usinas. A atração pelo mar só começa (õ banho de mar só vai surgir bem depois) quando êle deixar de ser o lugar do lixo, do excremento, da podridão; e o brasileiro passa a usá-lo, graças à lição do estrangeiro , o inglês , principalmente , já nos princípios do nosso século. O animal também é um elemento de importância, como a água, na relação entre o homem e a terra. O cavalo será transporte e marca de status social . O senhor, montado no cavalo de raça ou usando belos animais para puxar seu cabriolé, fixa a sua distância dos que estão "de baixo", a pé ou montados em burros e éguas desclassificados, baratos. O boi, além de meio de transporte - o mais recomendável para vencer o massapê puxando o carro cujos gemidos tanto sensibilizaram poetas, moverá os engenhos, e, já velho, dará a carne, nem sempre tão farta, mesmo nas mesas mais ricas e poderosas. O carneiro, confundido na crença popular com a pureza e a criança - o cordeiro de Deus, o carneirinho de São José - será o companheiro dos folguedos infantis, o tapête para "engatinhar", e já mais tarde a nota ingênua dos retratos de sépia dos sinhôzinhos enfatiotados de marinheiro, de roupa preta e cartola. 22 Há ainda que destacar a importância dos animais de fundo de quintal, as "criações" de mulher, galinhas principalmente, ajudando a economia dos "alfinêtes" com a venda dos ovos, dos frangos, e a própria economia doméstica-na fase da decadência. O fenômeno que mais relaciona o homem com a terra, talvez mais que a água, que ó rio, é a sêca, a inclemência do sol, as estiagens, que se não chegam a afetar duramente a região da cana'-de açúcar, alcançam-na trazendo para as `suas bandas o catingueiro, a gente do sertão, gente de outro tipo, mais livre e mais altiva, pai ciente, calada, triste, cantando suas emboladas e desafios, mas pronta para o trabalho e para a volta às próprias paragens, quando chega alguma notícia que por lá a chuva já chegou. Êsse panorama geral dos aspectos que mais de perto se destacam na relação entre a terra e o homem é de grande importância para a compreensão de todo o contexto sócio-econômico do tema que aqui será explorado. Daí que se queira relacionar, ao lado do domínio da grande propriedade rural, o latifúndio, mais ou menos inalterado no correr de cêrca de dois séculos e meio, aproximadamente, a monocultura, aquêle como conseqüência desta. Realmente, para que se compreenda tôda a variada gama de coordenadas que interferem no processo de transformação da grande propriedade monocultora, controlada por uma minoria que partilhava as melhores, as mais ricas e produtivas terras e seus vizinhos menores, os que plantavam de meação com o dono direto da terra, que moíam o açúcar nos engenhos dos grandes senhores e que a êles próprios vendiam o produto, para que se compreenda, dizia-se acima , faz-se mister observar as transformações não só do ângulo das exigências de um nôvo sistema econômico - o início do capitalismo industrial representado aqui na usina - mas há que se jogar também com outros elementos dependentes dêsse mesmo sistema. O engenho faz-se, a partir dos idos da colônia, uma entidade econômica autárquica, nêle tudo se produzindo para tôda uma comunidade a viver sob a tutela do grande proprietário. A cana e o engenho forçam a escravidão, e esta representará, talvez bem mais que a terra, um índice expressivo de riqueza. Assim é que a grande exploração monocultora vem a fundamentar tôda a estrutura econômica, política e social. A inserção de um outro elemento oriundo do processo de formação do capitalismo industrial - a usina -- talvez mais que o próprio aspecto formal da libertação do escravo - a lei áurea -, aquêle, sim, irá concorrendo para a constante alteração das relações mais representativas da própria estrutura social. Mas o fato é que a escravidão foi o expediente que manteve a monocultura canavieira e o engenho nos séculos da colônia e até, 23 mesmo , na maior parte do século XIX, quando o Brasil cada vez mais se transforma em fornecedor de uma faixa relativamente grande de produtos para o mercado internacional, sem se afastar da utilização da mão-de-obra escrava. Esta situação vai levar a uma contradição que progressivamente se agravará, já que o crescente processo capitalista de produção e a própria revolução industrial como que exigem uma adequação racional entre todos os seus fatôres, entre os quais se insere, naturalmente, a mão-de-obra. A transformação do trabalhador escravo em trabalhador livre seria, assim, uma exigência fundamental naquele processo de transformação. Tal, porém, não ocorre dentro do rigor que seria de esperar, se pensássemos tão só em têrmos rigorosamente teóricos. A rutura do antagonismo, ou melhor, daquela contradição, não se fará senão dentro de crises que se compreendem dentro do próprio processo de formação do capitalismo no Brasil. Na verdade, depois de 88 - não seria de esperar que os fatos ocorressem de modo diverso - a escravidão de alguma sorte se manteve, travestida embora, mas presente e responsável pela manutenção de todo um sistema de dependências, de subordinações, de lealdades enfim. No Nordeste da cana-de-açúcar, ela continuará, de algum modo, gravitando em tôrno, ainda, das casas-grandes, das famílias dos senhores, dos seus filhos e netos, coronéis e doutôres ainda rurais, alguns semi-urbanos, ou em processo de urbanização, outros; decadentes muitos dêles. E a compreensão dêsse problema é relativamente fácil. Realmente, o regime de trabalho servil representava apenas uma parte do sistema nacional de produção. O sistema como tal envolve uma grande complexidade, e dentro dêle o trabalho escravo era tão só um aspecto, mas nem por isso é menor sua importância. Com a abolição formal, legal, da escravidão, restam inalteradas as condições de produção, a grande propriedade e a grande exploração. Ela tocou apenas um mero ponto de sistema; passou sem pràticamente nada alterar, na essência, da situação ou do quadro geral da produção brasileira. Altera-se formalmente a condição de u'a massa considerável da população - os antigos escravos -, mas nada, absolutamente nada, se fêz quanto aos seus rumos, ao seu aproveitamento, à sua acomodação no organismo social e econômico do país. As quase invencíveis barreiras que se antepunham ao ex-escravo levaram-no à permanência nos focos de trabalho onde até então se tinha mantido, dentro do antigo sistema. Vão ocorrer, lentamente , ao lado das novas formas de relacionamento que irão surgindo , uma relativa impessoalidade no comando econômico do nôvo sistema da usina (a sociedade anônima, por exemplo ) e a persistência de relações doméstico -privadas e suas 24 mais diretas decorrências : o sistema de lealdades , a clientela, agora sofrendo uma série de acomodações ou de reacomodações. Sem que se venha a entrar diretamente na problemática que envolve o conceito de estratificação social e tôdas as suas implicações teóricas, acolhe-se o entendimento de uma situação transitiva vivida pela sociedade que estará sendo analisada , de modo a se ver configurada, ali, uma estratificação estamental em vias de transformação no sentido de uma sociedade de classes , entendida esta dentro dos critérios de diferenciação econômica resultante do tipo de ocupação e do contrôle e do domínio , ou não, dos meios de produção. As pesquenas alterações do sistema de estatificação verificar-seão a partir do momento em que se pode observar a superveniência, por exemplo , de alguma mobilidade vertical ascendente , a presença de status sociais adquiridos. Mas a persistência de outros fatôres leva a concluir pela estratificação transitiva de tipo estamental. O funcionamento , ainda, do status herdado, malgrado a perda do contrôle ou do domínio econômico, é um refôrço a essa hipótese . A interferência de um outro valor , êsse de caráter eminentemente ideológico, o qual bem se poderia chamar de "ideologia de branquidade ", isto é: a necessidade de afirmação do "ser branco " como marca social distintiva, assim como o funcionamento do respeito social aos elementos das elites mas ciosas tradicionais , mesmo quando econômicamertte decadentes , bem como a insegurança ", e exigentes das distâncias com a "plebe quando do status do elemento que está ascendendo econômicamente , alguma mobilidade já se faz possível , tôdas essas coordenadas até certa medida confirmam a transitoriedade , a superposição de uma estratificação em castas , em processo de esvaimento , e o tímido surgimento de u'a mais autêntica estratificação em classes. De início, fixado o status através do nascimento , a êste se ligavam valores incorporados nos costumes , na tradição , em íntimo relacionamento com o poder político e a riqueza , quase tôda dependente do domínio e da exploração da terra. Mas, se o nascimento era o principal fator na determinação da posição social - a mobilidade social pràticamente inexistindo - a partir do momento em que o sistema começa a sofrer algumas transformações econômicas , o fator determinante básico também começa a sentir alterações , ocorrendo , ao mesmo tempo, estímulos diretos e indiretos à mobilidade social , que será, no entanto , muito lenta, quase episódica. Quando o nascimento e a tradição começam a perder seu influxo como critérios fixadores do prestígio , do poder , verifica-se que, de algum modo , o regime tradicional começa a ser rompido. 25 A inserção de novos fatôres vai demandar novas exigências sociais, surgem novos papéis a serem preenchidos, resultantes das próprias exigências da infra-estrutura que, embora levemente, de alguma sorte, está sendo tocada por elementos que vêm de alterar o seu ritmo, o seu processo de organização. Assim é que se abordará a organização e o funcionamento da família, compreendendo-a ainda integrada, vivendo sua fôrça centrípeta, abarcante, totalizante, todos os seus componentes agindo em função de sua manutenção e inteireza ; e, mais além , seu processo de mudança. O eixo controlador do chefe da família e do chefe ou líder do clã, sua atuação no comando de tôdas as atividades, por mais íntimas que sejam , seu poder que se estende do aconselhamento às decisões e mesmo à distribuição da justiça - tribunal em última instância que afinal êle é - será analisado em função principalmente dos seus dependentes, dos seus satélites. Assim é que se examinará o papel do homem e da mulher, do senhor, do servo (ou escravo?) e da clientela, do adulto e da criança, do velho e do jovem, do membro do grupo e da "gente de fora", todos êles de algum modo direta ou indiretamente vinculados ao chefe, ao senhor, ao dono. A compreensão do grupo familial, neste caso, só se faz plenamente possível se vinculada à figura do chefe do grupo doméstico, ao patriarca e senhor. Ver-se-á ainda o processo de desintegração, senão do poder, pelo menos do contrôle do pater-familias dentro do próprio grupo familial, quando a aproximação com o meio urbano vem de influir nas relações entre pais e filhos, entre a mulher e o homem, e surgem novas formas de comportamento, novos costumes decorrentes do contacto com novos valores e horizontes. De outra parte, vale ainda observar a estruturação e o funcionamento dos vários grupos naqueles aspectos que interferem ou estão relacionados com a família e seus processos de manutenção e transformação. Dêsse modo é que se verificarão no grupo feminino, no comportamento da mulher, relações de aproximação e um relativo desaparecimento das barreiras ou das distâncias sociais quando se trata de constatar sua relativa inferioridade em relação ao outro sexo, além da resignação e do sofrimento resultante das infidelidades dos homens. Ao mesmo tempo não se deixa de atentar para os processos mediante os quais as barreiras automàticamente se levantam para distinguir as senhoras das "cabras", das negras, das "camumbembes", distanciando-as socialmente. Há que se observar, ainda, as alterações por que passa o comportamento feminino das camadas mais altas, graças ao contacto ou à passagem para o meio urbano, e a quebra, leve embora, mas gradativa, de sua subserviência, entre outros aspectos, no que toca, por 26 exemplo, à escolha do homem para o casamento , ao vestir, ao falar, ao próprio modo de tratar ou entrar em relação com o homem. Quanto ao comportamento feminino ainda se poderá ver a diferença entre a mulher mais jovem e a velha, os relativos direitos e, mesmo, os podêres que esta desfruta, bem como a moral sexual nos diferentes estratos sociais, os valores femininos , e uma certa aceitação fatalista principalmente nas camadas mais altas, do comportamento quase promíscuo dos homens. Por sua vez, o homem merecerá atenção naquilo que se refere aos valores masculinos, à composição e ao desempenho do "machismo" como exteriorização dos valores patriarcais, como fórmula estereotipada de demonstração de fôrça, de poder, de prestígio. O comportamento sexual do homem concorre, ainda, para a própria ampliação do clã, através dos filhos naturais e adulterinos, às vêzes admitidos no grupo doméstico, ou pelo menos identificados e reconhecidos, e, de algum modo, vinculados ao processo de dependência e às relações de lealdades. A relativamente complexa sistemática da introdução do elemento masculino na vida sexual configura verdadeiros ritos de iniciação da puberdade, e os valores sexuais masculinos conformam tôda uma simbologia da virilidade , cujos estereótipos chegam a exigir as doenças "secretas" - mas de divulgação obrigatória para que se configure o status masculino -, os filhos fora do casamento e tidos, muitas vêzes, em idade avançada, a freqüência a certos lugares, as "casasmontadas", a própria exigência quanto ao comportamento das mulheres da família, etc. O grupo infantil, realizando todo um processo de aproximação dos indivíduos das diferentes camadas, igualados nos brinquedos, nas descobertas , nas experiências , será observado nas suas relações internas de aproximação e afastamento, no treinamento dos componentes ("les années d'apprentissage"), nas relações das crianças com os mais velhos, com os animais , com as lendas e os mitos, com as coisas e com o mundo. Ainda em diversos níveis de análise tratar-se-á de aspectos e valores mais específicos, mas nem por isso menos significativos. Tal é o caso da vida e dos valores políticos , sua estruturação e seus processos de composição, os modos de manifestação do poder e do prestígio, a política de clientela, de tutoria, de apaniguamento ou de afilhadismo. manifestada como tradução, por vêzes avant la lettre, da chamada política coronelística, do protetorado do senhor sôbre seus bens - coisas e pessoas -, nos tempos anteriores à República. Notar-se-á, então, a superposição ou a coexistência de formas e processos feudais ou feudalizantes com outros tantos decorrentes de uma estrutura política que envolve representação e sufrágio universal. 27 O voto "de cabresto" e o "curral eleitoral" serão, assim, resultados do contrôle do senhor sôbre seus fâmulos, formas bem expeditas que se adaptam às exigências do próprio sistema, expedientes a atuarem no sentido da manutenção da própria estrutura sócioeconômica, criando e mantendo elites governantes que se constituem principalmente nos potentados rurais, e na massa de dependentes no sentido mais amplo da expressão. Vinculados estreitamente aos aspectos da vida política estão aquêles que dizem respeito ao manejo da vida jurídica da sociedade como um todo e dos grupos específicos. Sôbre êsse aspecto se pretende identificar a coexistência de duas ordens jurídicas: a institucionalizada e formal, e uma outra que a esta direta ou indiretamente se liga, discrepando e muitas vêzes se sobrepondo: o poder privado, a justiça privada exercida com vigor inexcedível pelos donos do poder político e econômico. O privatismo, a justiça doméstico-patriarcal desenvolvida pelos grandes senhores, suas sentenças, as penas e castigos que êles impõem, bem como a justiça privada do cangaceiro são aspectos que conformam a disposição privatística do poder e vão ser observados como traços denunciadores do contrôle do mando e da luta pela preservação do status quo por parte dos senhores. Observar-se-á, ainda, uma lenta mas constante quebra dêsse rígido contrôle, quando as relações econômicas se alteram e a estrutura se defronta com novos e diferentes valores, exigentes de um tratamento mais formalístico, menos pessoalizado; quando a eficácia dos mecanismos arcaicos começa aqui e ali a ser brechada, ou, quando menos, começa a caducar. Como as manifestações da vida político-jurídica , a religião se encontra em estreita ligação com o grupo doméstico, seus modos de realização fazendo-se, mesmo, dentro dêle, ou desenvolvendo-se mediante expedientes sincréticos, idealizações e representações sob a forma, por exemplo, dos "sacerdotes leigos- e das benzedeiras, dos ritos, penitências, exorcismos, benzeduras, culto de imagens e dos antepassados. A vida religiosa relaciona-se ainda com o comportamento do homem e da mulher, exigindo preceitos e censuras, acompanhando tanto o cotidiano como até, mesmo, as manifestações da natureza. Ainda em relação íntima com a religião estão os problemas referentes à morte, quer do adulto, quer da criança, aos quais se ligam alguns mitos e crenças, inundando a vida diária, principalmente da criança, de imagens, de "bichos", de mêdos. E como! a morte, a doença, os resguardos, os remédios , as "meizinhas", o mêdo das doenças "incuráveis " e contagiosas. Dêsse modo é que serão observados os aspectos mais destacados da vida diária até o horizonte escatológico das ultimidades. 28 Capitulo III ANALISE SOCIOLOGICA DO CICLO DA CANA - DE -ACt7CAR 1. A VÁRZEA: "DAS ÁGUAS, DOS ARES, DOS LUGARES" Na várzea do Paraíba estão os engenhos dos Melo e de seus parentes. As terras, em geral de boa qualidade, massapê dos melhores, estendem-se das margens do rio e das matas, onde estão as casas-grandes, até os tabuleiros e as caatingas, terras imprestáveis para os partidos de cana, mas pertencentes aos grandes senhores, que, além da cana-de-açúcar, plantam algodão e criam gado. O Santa Rosa, cabeça do império do coronel José Paulino "terras que êle para correr gastaria semanas" (B - p. 18), tem sua casa-grande nas bordas do Paraíba, onde, de quando em vez, chegam as sêcas terríveis, trazendo a gente das caatingas, perseguida pela fome, e cujas enchentes magníficas enchem também de alegria os pobres e os ricos, os senhores, seus servos e sua clientela. Vez por outra, a enchente traz problemas, forçando retiradas como aquela que ocorreu nos tempos de Carlos de Melo ainda menino. Todos saíam às pressas, em carros-de-bois, para a caatinga, e o nosso melhor "informante" lembra: "nós, os da casa-grande, estávamos reunidos no mesmo mêdo, com aquela gente pobre do cito" (ME - p. 47) . Mesmo assim, com a água entrando, devastando as roças, a população das margens do rio correndo para o engenho, o velho José Paulino temia mais as sêcas; e dizia: "gosto mais de perder com a água do que com o sol" (ME - p. 45) . E mandava atender os flagelados que se abrigam como podem , na casa-de-farinha, o coronel fazendo distribuir comida, abrindo barricas de bacalhau para o povo. Os céus cinzentos, os anúncios de cheia nas cabeceiras, de crescimento do rio aqui e ali, tudo isso prepara os espíritos para q acontecimento, "O Paraíba inchava de cheio, roncando. As suas 31 águas cresciam. Falavam de açude arrombado no sertão . O bicho já andava pelas várzeas, repetindo a façanha de setenta e cinco e de vinte e três" (U - p. 344) . Nesta última, o velho senhor do Santa Rosa fizera sair o neto, a filha, as negras da cozinha, todos de carro-de-boi. Passados os anos, seu filho Juca sai com a mulher, a filha e as negras, algumas dessas, as mesmas de vinte e três, de carro-de-boi, ainda uma vez para a caatinga. E, assim, o Paraíba vincula-se estreitamente à vida do engenho Santa Rosa e à da sua sucessora, a usina Bom Jesus. Nos tempos do engenho, os preparos começavam quando se sabia dos relâmpagos nas cabeceiras e quando as chuvas não paravam. Temia-se, então, pelos caixões de açúcar, pelos tanques de mel-de-furo, e tomavam-se as providências necessárias . E quando as águas "comiam as ribanceiras" e atingiam as casas dos mora-^ dores, as terras mais baixas, chegando, logo depois, à casa-grande, lá se iam as touceiras de coentro, de couve, dos leirões da velha Sinhàzinha. Sabia-se então que as ruas da vila do Pilar já não tinham mais casas em pé; e as cheias levavam velas aos santuários, homens e mulheres apavorados com o rio tão bom, que nas baixas deixava crescer a batata-doce para matar a fome do povo, que dava peixe para melhorar a dieta do bacalhau e da carne do Ceará, e que na cheia chegava a arrancar árvores enormes. Nos momentos normais, nos açudes cheios, as maracanãs gritavam e as curimatãs espanavam a água. Cheio o rio, as comunicações ficavam impedidas e se utilizava o búzio para tocar o aviso de que havia gente ilhada, precisando de socorro, pois naqueles momentos "não havia canoeiro que tivesse coragem de meter uma canoa n'água" (U - p. 344). Quando o rio baixava, nas estiagens de verão, quem não tinha água nas proximidades vinha buscá-la nas cacimbas do rio, dos afluentes que acompanhavam seu regime, rios e riachos de nomes tão sonoros: Crumataú, Gurinhém. Nas águas do rio e nos seus poços, brincavam os meninos da casa-grande com os filhos dos moradores e dos servos da casa, o banho de rio sendo folguedo favorito e até mesmo ponto de descoberta do sexo, quando os moleques avistavam os peitos das lavadeiras batendo roupa nas pedras. As águas do Paraíba, como a mata do Rôlo, mata fechada nas terras do Santa Rosa, serviram, ainda, para o menino Carlos de Melo nelas identificar os rios e as florestas das estórias da velha Totonha. Nas águas do Paraíba, a "cabra" Margarida irá pescar e mariscar de facho, dizendo ao povo, depois que vira um lobisomem, o qual será "identificado" com o seleiro José Amaro, a estória correndo de bôca em bôca. Ali também se banhará o moleque Ricardo; 32 quando fugira "para o Recife levara no couro a lama do Paraíba" (U - p. 112 ). O "moleque ensinado " do Coronel José Paulino, já homem, recordará os banhos do poço com os outros meninos, os banhos dos bexiguentos que quando escapavam "deixavam na água a doença, os últimos restos da bexiga" (U - p. 113). A negra Generosa, viva ainda , quando os partidos de cana da usina cobriam tôdas as terras do antigo Santa Rosa, teme tudo isto, e Ricardo comenta significativamente: "O Dr. Juca não tomaria do povo as vasantes, aonde só crescia o gerimum e a batata dôce. O rio era do povo, ninguém mandava nêle. Nunca ninguém pudera com o Paraíba, cheio de vontades, entrando pelas várzeas , subindo pelos altos, matando cana, cobrindo tudo de lama" (U - p. 113). Ricardo achava que o rio tinha "uma fôrça que vinha de Deus. Ninguém podia parar as suas correntes, êle comia a terra que bem queria. O coronel José Paulino ' para êle era igual a João Rouco. O rio era dos pobres . Não acreditava que tomassem a vasante dos pobres" (U - p. 114). Com a usina se altera a relação do homem com o rio, agora¡ imprestável para lavar roupa - a água suja cortava o sabão - e temia-se beber a água cheia de imundícies. "A usina despojara o Paraíba de suas bondades, mijando aquela calda fedorenta... as arribações sertanejas corriam dêle, procurando outros bebedouros para suas sedes . Pássaro que ali pousava, só aquêle bicho de andar banzeiro , como de negro cambado" (U - p. 195). A usina logo depois utilizará o riacho Vertente, "que se perdia ãtoa, cantando manso pelas matas escuras , dando de beber com sua água doce o povo do Pilar, e que vinha agora, à fôrça de instrumentos, para a serventia da Bom Jesus " (U - p. 184) . No engenho do Dr. Lourenço, a situação era diferente. "As terras dali já eram outras, que as da Várzea ... os riachos corriam, de inverno a verão . Terras de águas perenes" (B - p. 146) .. Contudo, os rios não davam peixes e os atoleiros, mesmo no verão, davam sezões. No colégio de Itabaiana, interno, Carlos de Melo, apelidado Doidinho, encontra num outro rio o lugar dos folguedos dos meninos. Nos banhos êles conversavam, longe dos olhares do censor e do diretor, sôbre as coisas "proibidas", o banho representando um dos raros momentos de liberdade dentro do tratamento cruel do colégio. Quanto às terras, se no Santa Rosa do coronel José Paulino muitos "partidos de cana" eram famosos pela alta qualidade de suas terras, a "flor-de-cuba" não passando do massapê mais produtivo, com a usina e a extensão dos partidos; caem as matas, os tabuleiros , as várzeas dos rios pequenos onde os moradores plan33 N tavam seus roçados de banana comprida, de abacaxis, laranjas, as frutas famosas da feira da vila. Cairão também aos poucos as árvores seculares, de beira de estrada e das matas; jequitibás, arueiras, cajàzeiras, pitombeiras, jaboticabeiras, cajueiros, nas quais se enramavam flôres nativas: açafroas, orquídeas e bugaris. A tão falada "fome de cana" das usinas espalhará os "partidos" até as beiras das caatingas. Também os animais cumprem papéis de destaque na vida da várzea. Os bois, peças de importância no trabalho dos engenhos, sobreviverão na usina, o massapê exigindo sua presença. Os que puxavam os carros, batizados com nomes sonoros, constituíam a elite dos animais do engenho e da casa-grande. De carro-de-boi fugiram as famílias do coronel José Paulino e do Dr. Juca nos momentos das enchentes. De carro-de-boi ia Maria Menina do engenho Santa Rosa visitar, com suas servas e as crianças, os parentes e as famílias dos foreiros mais amigos, os moradores mais importantes, às vêzes compadres da gente do engenho. No carro-de-boi podiam viajar juntos, quando era necessário, os senhores e os servos, numa espécie de democracia do transporte. Nos carros-de-boi são levadas as canas dos "partidos" para as moendas, quando para tal fim não se usam burros e jumentos armados de cambitos. As vacas serviam à casa, e logo ao nascer do dia vinham "os meninos que tinham mães paridas, com as garrafas para a ração de leite que lhes dava o senhor de engenho.... Chegavam portadores do Pilar com vasilhas de flandre. O velho José Paulino nunca vendeu uma gôta de leite de seu cercado. Tudo de graça. Criara assim filhos de juízes, de promotores, de todos que lá mandassem pedir" (B - p. 60/61). O costume do coronel não era comum, ao que parece. Sabese que há muito gado no Santa Rosa e que quando êle morria "bêbedo com manipueira, era que o povo gostava. Estraçalhavam o boi num instante, como urubús, levando até as tripas e os pés. . . "Por um pedaço de carne verde aquela gente arriscava a vida" (B - p. 114). Mas se acaso o boi morria de picada de cobra, logo se tratava de enterrar: temia-se que o povo fôsse buscar a carne. Importantes nas terras da várzea eram, talvez mais que nenhum outro animal, os cavalos. Êles chegam a marcar os status sociais. José Paulino passa pela porta do mestre José Amaro esquipando no seu belo cavalo ruço. Vitorino Papa-Rabo se arrasta em sua velha égua rudada, cheia de feridas. Os cavalos brancos, fortes e bonitos do cabriolé de Lula de Holanda serão substituídos, na época da pobreza e da decadência, por éguas insignificantes, compradas com as economias de D. Amélia. Nas conversas dos 34 senhores "um assunto absorvente eram os cavalos de sela, Passavam um tempão nas disputas" (B - p. 153) . Além dos cavalos, também os arreios e as selas demonstravam riqueza e importância. O seleiro José Amaro se orgulhava dos arreios e da sela que o pai fizera, a pedido do barão de Goiana, para o Imperador, e se sentia diminuído por não trabalhar com peças de alta qualidade para pessoas importantes, reduzido a bater sola para fazer alpargatas de gente pobre e a consertar os arreios podres e velhos do cabriolé do engenho de "seu" Lula. José Marreira, quando começou a ficar rico, tratou logo de destacar sua montaria. Ainda foreiro do Santa Rosa, se sabia que "o melhor cavalo de sela do engenho comia na sua estrebaria" (B - p. 199) ; era "um belo cavalo ruço de arreios reluzentes" (13. p. 225). Na infância, a montaria é o carneiro. Ele carrega os filhos e os netos dos senhores, é o companheiro de brinquedos, objeto de grande estimação. O carneirinho branco de Carlos de Melo, já grande e bem gordo, vai morrer para ser comido no casamento de Maria Menina. Muitas lágrimas o menino derramará pelo amigo, que foi tão invejado pelos moleques que com êle também brincavam, mas não eram seus donos. Mais tarde, na usina, os filhos do Dr. Juca, primos de Carlos de Melo, passando as férias, passearão nas estradas de bicicleta, presente de festas do pai, e não conhecerão os carneiros para brincar e correr, imitando os homens nos cavalos. Quando a estrada de ferro chega até o Pilar, o trem será o transporte para ir à cidade. E, mais uma vez, o transporte marcará as distâncias sociais. Os senhores, de botina e chapéu largo, estarão aboletados na primeira classe; no percurso travarão conversas sôbre política e sôbre as safras, as moagens e o preço do açúcar. E quando Marreira começa, um dia, a viajar na primeira classe, espantará seus antigos senhores e os outros potentados, causando inveja e irritação nos seus antigos iguais. As estradas lamacentas e poeirantes da várzea do Paraíba irão conhecer, a partir do surgimento da usina, um novo elemento de transporte , ainda mais eficiente na marcação das distâncias sociais: o automóvel. Juca será, nesse assunto, um pioneiro. Ainda senhor de engenho, êle comprará o seu automóvel, que passa levantando poeira pelas estradas, causando inveja ao sobrinho do Santa Rosa. E êste, nos momentos em que sonha com o soerguimento dos negócios abalados, pensa logo no carro, no automóvel, como meio de mostrar a prosperidade, de se igualar aos verdadeiramente ricos. As "baratinhas" de Clarisse, filha de Juca, e da americana, mulher do químico da usina, também causarão espanto a tôda gente, 35 influindo na composição de um perfil de mulher ousada, montada em automóvel, correndo pelas estradas. Na vida da várzea há ainda que se observar a casa, a habitação. A casa-grande do Santa Rosa não tem os luxos característicos das grandes casas das famílias senhoriais. Dela dizia Carlos de Meio: "só tinha tamanho . Tudo muito pobre: nem uma cadeira bonita" (B - p. 18) . E os detalhes ajudam a confirmar: a cama do velho José Paulino era de couro ( mas, dizia-se, a mesa era farta), e só na época do casamento de Maria Menina, depois de muitos anos, o coronel manda pintar a casa e - a grande novidade manda instalar banheiro com água encanada. O Santa Rosa não tinha capela, - o coronel achava que o engenho estava perto da vila, onde havia igreja, e onde todo mundo podia ir rezar -, mas tinha o quarto dos santos. Na "rua", antiga senzala, moravam os servos da casa. Os vãos eram escuros, sujos, e todos daí sairão quando o engenho se transforma em usina . A "rua" será então demolida. Com a usina, a casa-grande também sofrerá grandes modificações: "o Dr. Juca cuidara de dar- lhe uma cara mais decente" (U - p. 60) . "Queria que a casa-grande da usina não fôsse aquêle casarão do pai, de telha vã, de chão de tijôlo , com aquelas meias águas de taipa na frente, dando uma péssima impressão" (U - p. 66) . A cozinha perde as suas antigas "donas", as negras, e ganha grades em suas portas, chaves nas fechaduras, despensa bem guardada. O usineiro dizia "que era preciso acabar com aquêle povão, entrando pela cozinha a dentro" (U - p. 67) . A casa-grande do engenho Santa Fé, cheia de tapêtes e espelhos nos dias de grandeza, tratada com requintes mais urbanos por Lula de Holanda, homem da cidade, está inteiramente transformada no dia da morte do seu dono. E mais uma vez nosso "observador" será Carlos de Melo, que naquele dia foi ver o que êle chamou de "um quadro impressionante: seu Lula estendido na sala de visitas, numa cama de vento, com uma vela acêsa e um crucifixo de braços abertos, na parede ... e os tapetes velhos e aquêle cheiro de morte, rescendendo" (B - p. 206). Ele observará ainda a casa do engenho, o boeiro, coberto de melão de São Caetano e o matapasto crescendo até na beira do alpendre. Tudo acabado, morrendo. A casa da usina São Félix será mais urbana, com varanda diferente das casas-grandes, com jardim mais urbano. Seu dono, presidente da emprêsa , construiu perto da usina uma capela : "não queria que os seus homens perdessem tempo com as festas de Santa Rita. Ali mesmo perto da sua esteira havia Nossa Senhora e São Sebastião para o povo rezar, pagar promessas, soltar fogos do ar" (U - p. 316) . Destacava- se, além da capela , da varanda e do jardim da casa , a pintura "a óleo" desta . Sabe-se que Marreira 36 pintou, também a óleo, a casa do Santa Fé, que êle reformou quando comprou o engenho da viúva do coronel Lula. A tinta a óleo, ao que parece, representou, nos momentos de ascensão social do usineiro originário da caatinga e do antigo servo do coronel José Paulino, a marca da riqueza em suas casas. Das casas mais urbanas , só um destaque se faz : o sobrado do comerciante Quinca Napoleão, do Pilar, e que depois será também de Marreira, quando êste vende o engenho ao compadre Juca e se transforma em comerciante. As demais habitações se perdem na pequenez da taipa e da palha, ou das casinhas de tijolo e telha que a usina fêz para os "burgueses " - os operários , gente estranha que vem trabalhar nos ofícios e nos misteres mais especializados da usina - e elas servirão também para distingui-los da massa dos servos, moradores de casas de vão, perdidas em pedacinhos de terra imprestável para a cana. 2. OS SENHORES, OS SERVOS E A CLIENTELA. A ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL Branco dorme na sala Mulato no corredô Caboclo na cosinha, Negro no cagadô. Carlos de Melo voltava bacharel do Recife para o engenho Santa Rosa , a cabeça do império de oito grandes engenhos , o mundo sob o domínio do velho José Paulino : "Era bonito , era grande a sucessão do meu avô" ( B - p. 10 ). A grandeza do senhoriato tinha chegado ao nível da consciência do então estudante de Direito na Capital ; já ali se teorizava um pouco sôbre a aristocracia do açúcar , os grandes senhores , a honra de pertencer às velhas famílias, a missão das novas gerações. Com a "mudança dos tempos", a República e a fôrça crescente da cidade , os grandes da terra "levaram o tempo votando em bacharéis , a servir de encôsto a prestígios de fora. E êles, os brancos, eram mandados por mulatos mais hábeis ... que valia então a terra, o latifúndio dominando mais de dois municípios?" (B - p. 12). A bacharelice dos "novos tempos" alcançara o engenho ("queria que fôsse bacharel. Fui bacharel" ( B - p. 66 ), e o neto do coronel senhor de engenho teria a missão de "corrigir" o problema que começava a se apresentar tão grave : aquêle dos bacharéis-mulatos, urbanos, subindo na política nos ombros dos brancos latifundiários. O jovem doutor , cheio de idéias novas , se prepara para restaurar¡ a grandeza do Santa Rosa , para substituir o avô Ç 'via sua caminhada para a morte, sentindo que todo o Santa Rosa desaparecia com êle" , ( B p. 13 ), "para empunhar o seu cacete de mando" (B - p. 14). 37 A carta de um amigo do Recife deixa mostrar as "teorizações" e, mesmo, o que se entendia por "missão restauradora" das novas gerações de senhores de engenho: "Pelo que você falava na Academia, o seu avô é o grande tipo do senhor de engenho" (B - p. 13) ; e vem até o incitamento ao colega para escrever um livro sôbre "os homens do Norte", observando ainda : "Você, Carlos, é um homem de sorte. Pode olhar para trás e ver avós brancos, os homens que fizeram a grandeza de sua família, a cavar a terra, a mandar em negros" (B - p. 42) . A ideologia do poder junto à da "branquidade , e ao domínio da terra é ainda enfàticamente, retdricamente dita e apregoada. Mas o que Carlos de Melo via, realmente, era, ao lado da riqueza que existia (nove engenhos, terras a perder de vista, várzea, matas e caatingas, imensos partidos de cana, segurança econômica, prestígio político, respeitabilidade de um verdadeiro senhor), a relativa pobreza da casa, embora de mesa farta, os hábitos simples, rudes, do avô; e neste, a certeza de que falhara nos seus descendentes que não pareciam levar adiante seu trabalho de dezenas e dezenas de anos. A grandeza do Santa Rosa não começava, porém, muito longe: o avô do velho José Paulino viera de outras bandas, com um irmão pobre, para São Miguel (uma vila perto do Santa Rosa) . Não ostentava títulos nobiliárquicos, mas "espalhará sangue de branco por entre os caboclos daquelas redondezas" (B - p. 94). O menino Carlos de Melo, nosso arguto observador, sente o poderio dos seus, da família, no trato com aquela gente da qual êles eram donos: a gentalha, os servos, os "camumbembes": "Eles nasceram assim porque Deus quisera, e porque Deus quisera nós éramos brancos e mandávamos nêles. Mandávamos também nos bois, nos burros, nos matos" (ME - p. 135) . Senhor de muitas terras e escravos, o velho "gostava de percorrer a sua propriedade, de andá-la canto por canto, entrar pelas suas matas, olhar as suas nascentes, saber das precisões do seu povo, dar os seus gritos de chefe, ouvir queixas e implantar a ordem" (B -- p. 57/58) . As audiências, dadas quase sempre na sala e na varanda da casa, iam desde as pequenas querelas, rixas, bate-bôcas, cachaçadas, até as mais graves questões. A tudo se atinha com o ôlho acostumado de juiz à sua moda . As brigas mais graves dentro de suas terras, os problemas de honra de mulher, mereciam sentenças que eram aplicadas dentro de uma velha tradição: o tronco funciona, então, como antes de 88. E todos acatavam. As sentenças iam até a obrigação do casamento quando necessário. 38 A gravidade de alguns casos levava a soluções estreitamente ligadas à situação política: quando se está "de baixo" na política, os cuidados, sob certo ângulo, aumentam. Um homem havia matado por questão de mulher e há um per dido de proteção: "Vá se entregar ao delegado. Eu não acoito criminoso. Se matou com razão vai para a rua. Aqui não quero que fique. No júri, protejo. Entregue-se à justiça. Conte a sua história ao juiz. No meu engenho nunca protegi criminoso. Quando a gente está de cima muito bem. Caiu, lá vem a polícia cercando a propriedade" (ME - p. 94). Nas audiências vinham os pedidos : gente doente que quer remédio (o senhor pessoalmente preparava remédios para dor-de-barriga e "puxado" de menino, vermes, entre outros; curava assim os negros, os netos e os trabalhadores), pessoas que pedem carta "para botar gente" em hospital na cidade (muitas vêzes trata-se de pedido de internamento no hospício da Tamarineira, no Recife), que pede terra para "botar roçado", lugar para fazer casa, carro-de-boi para ajudar mudança, proteção na delegacia, no juiz. Assim êle atende às "precisões" do seu povo, o patriarca cuidando, assim, do seu rebanho. Quando a cheia do Paraíba arrasa as casas do povo que vive nas margens, faz distribuir farinha e bacalhau. "Tinha para mais de quatro mil almas sob a sua proteção" (ME - p. 116) e não podia faltar ao seu povo, aos homens cheios de andrajos, aos meninos barrigudos, aos seus servos, à sua gente. As queixas também eram feitas nas audiências: eram brigas sobre animais que entravam e comiam roçados, as implicâncias. Também vinham os convites para as moças batizarem meninos; o compadrio era um elo a mais nas relações entre "os de cima" e "os de baixo". O que o senhor não tolerava, a suprema traição, era trabalhador seu "dando dia" em outros engenhos. Nestes momentos falava bem alto o senhorio: "boto pra fora ... toco fogo na casa . . . " (ME p. 58). O sentido da dominação, do poder, está bem simbolizado no coronel José Paulino, com seu bastão de mando batendo nas lajes da varanda da casa-grande; no coronel Lula de Holanda do Santa Fé, em seu cabriolé passando nas estradas e veredas, sacudindo os guizos dos cavalos; cavalos que, com a decadência, a pobreza, se transformaram em mulas sem grande valor. Mais tarde, o carro do doutor Juca, o filho usineiro do velho José Paulino, ainda vai despertar, de algum modo, o respeito, o temor e, até certo ponto, a admiração da "canalha", da gente das estradas e da vila. 39 O grito e o palavrão de José Paulino, o "cacête" que sempre trazia à mão , são suas fórmulas de ostentação do mando, como a empáfia, o desprêzo pela gentinha o serão em Lula de Holanda. Descendente de gente importante na cidade - seu pai morrera nas lutas de 48 -, Luiz Cesar de Holanda Chacon pertencia a família de tradição liberal e casara com a filha do capitão Tomaz Cabral de Melo do engenho Santa Fé, seu parente, homem que chegou à várzea antes de 1848, trazendo gado, escravos, família e "aderentes". As terras eram vizinhas do Santa Rosa e foram ampliadas depois. Além daquelas coisas, o capitão trouxe moedas de ouro, o que vai valer mais tarde sua filha e seu genro, na hora da decadência, quando o Santa Fé ficou de "fogo morto". O capitão educou a filha na cidade, com as freiras, no Recife, onde ela aprendeu a falar francês, tocar piano e bordar. "Não queria mulher dentro de casa, fumando cachimbo, sem saber assinar o nome, como tantas senhoras ricas que conhecia" (FM - p. 177). Êle que nada sabia de açúcar (entendia antes do Santa Fé, de algodão e gado), foi labutando a terra, às vêzes com as próprias mãos; sua fama de econômico corria por tôda parte. Mas êle cresceu, inclusive na política - era liberal, seus parentes morreram em 48, na revolta em que morrera Nunes Machado. Quando os liberais estavam de cima, êle mandava na vila, presidia a Câmara. Os do Santa Rosa eram conservadores. Mas, a vizinhança dos engenhos fê-los, aos do Santa Fé e do Santa Rosa, malgrado as divergências partidárias, amigos, senão íntimos, mas sempre solidários. O capitão Tomaz Cabral de Melo, "senhor do engenho Santa Fé, chefe do partido liberal, pai de filha educada no Recife, com piano em casa, que falava francês, que bordava com mãos de anjo" (FM - p. 179), legou uma fortuna sólida à família. O genro apàticamente deixa que o engenho decaia. A solidariedade dos donos da terra se comprova: malgrado as diferenças políticas, o senhor do Santa Rosa compra um engenho, até então de algum "catingueiro" que estava em questão com o Santa Fé, a fim de que houvesse paz na várzea. De outra vez, oferece a presidência da Câmara e dá uma patente a Lula de Holanda, que, por sua vez, já que não se interessa pela política, oferece sua gente para votar com José Paulino. A tradição liberal do Santa Fé se apaga inclusive na apatia política de Lula, deixando-ao vizinho e igual, branco e importante como êle, o contrôle político da região. Quando um grupo de cangaço invade o Santa Fé, a gente do Santa Rosa toma a frente na defesa dos seus iguais . E Antônio Silvino, o cangaceiro, que, quando no engenho de José Paulino em "visita de cortesia', parecera humilde e sem importância ao menino Carlos de Melo ("para mim tinha perdido um bocado de prestígio. 40 Eu o fazia outro, arrogante e impetuoso, e aquela fala bamba viera desmanchar em mim a figura de heroi" (M - p. 33), chega ao engenho de fogo morto quebrando tudo, arrombando o piano, gritando para o senhor do engenho desmoralizado, pobre e ridículo, mas lutando pela aparência, com as jóias, o cabriolé , a fala gritando. José Paulino intervém dizendo que Lula não tem o ouro que o cangaceiro viera buscar , mas "se é dinheiro que quer, eu tenho pouco, mas posso servir " (FM - p. 324). A Abolição não alterara muito a situação do povo do Santa Rosa. "A Senzala do Santa Rosa não desaparecera com a abolição. Ela continuava pregada à Casa- Grande com as suas negras parindo as boas amas de leite e os bons cabras do eito" (ME - p. 92) . O velho conta a estória do dia da Abolição : "quando veio o 13 de maio fizeram um côco no terreiro até alta noite. Ninguém dormiu no engenho, com a zabumba batendo . Levantei-me de madrugada para ver o gado sair para o pastoreador e me encontrei com a negrada, de enxada no ombro; iam para o eito e aqui ficaram comigo . Não me saiu do engenho um só negro. Para esta gente pobre a abolição não serviu de nada" (ME - p. 137) . No Santa Fé, já decadente - o coronel Lula vendera muitas das boas "peças", os negros fortes que herdara do sogro - os poucos que restavam se foram ; até as negras da cozinha; só ficou o boleeiro do cabriolé. Os que ficaram no engenho, negros e mulatos, os "cabras", muitos talvez descendentes , parentes dos senhores e de seus filhos, compunham tôda uma hierarquia : eram os "cabras" do eito e da bagaceira , os alugados , a ralé do engenho; os "oficiais": carpinteiros, tanoeiros, mestres -de-açúcar, foguistas; os que sabiam escrever e faziam compras na cidade, dos quais muito dependia a qualidade e o rendimento do açúcar, gozando de certas regalias e respeitos. Tocada de certo conformismo ante a vida que leva, aceitando a situação em que se encontra ante seus "donos", com uma certa dose de fatalismo (o "sempre foi assim" ), a massa da população que transita no ambiente que ora se analisa tem níveis mínimos de aspirações , está como que amortecida na faina diária , na mera sobrevivência quase animal . A admiração, durante a infância, pelos "oficiais" e até mesmo pelos carreiros não é estímulo suficiente para a luta por um status relativamente mais alto . A vala comum é o eito e a bagaceira , aquêle exigindo três dias por semana nos tempos mais recuados do engenho, seis, no tempo da usina . Os três dias de folga, que seriam dedicados às suas plantações , talvez não cheguem para o cansaço e a bebida , e, assim, a família , a mulher e os filhos, toma conta dos pequenos roçados, e se vive na mais completa dependência dos mil e duzentos réis do engenho. 41 Maria Alice, mulher do primo da gente do Santa Rosa que é funcionário público na Capital , admirada ante a miséria do povo do engenho, quer animar Carlos de Melo a um estudo sôbre o trabalho do eito e da bagaceira. "Seria - diz êle - uma campanha admirável levantada por um neto de senhor de engenho. Seria bonito: levantar-me a favor dos meus servos. Insistia para que escrevesse o primeiro artigo. Os dados estavam em minhas mãos. Uma vez perguntei-lhe se era comunista. Deu uma risada das suas e me respondeu que era sòmente humana" (B - p. 107/108). Para os "cabras" do eito, os "alugados", os horizontes iam até os limites das terras do engenho. Traçado estava prèviamente o destino: cambiteiro não passaria de cambiteiro, cortador de cana não podia passar de cortador de cana, raros os casos como o de Ricardo que um dia sonhou encontrar na cidade um meio de se livrar de tudo aquilo. Para a ralé dos alugados, os servos da casa-grande constituíam uma espécie de privilegiados, gozando a proteção direta da família do senhor, menos sujeitos, talvez, às agruras da doença e da fome, alguns presos afetivamente aos seus donos. E se alguma ascensão é possível esta será feita, como veremos com mais detalhes adiante, através das filhas que caem nas graças dos senhores e dos seus descendentes, tendo filhos dêstes, ganhando "casa montada", o que constitui rara honra e distinção. Um outro caminho, até certo ponto deplorado, mas, de qualquer modo, capaz de alterar a situação social da "arraia-miúda" do engenho é a prostituição. A mulher daquelas camadas se já prostituída "faz a vida" nas feiras e nas pontas de rua da vila. Observa-se que diante dos seus iguais ela adquire um certo grau de prestígio principalmente entre as mulheres, suas parentas e amigas das terras do engenho - motivado talvez pela liberdade adquirida, pela capacidade de tentar outro caminho para se realizar, enfim, pela ousadia do gesto. As "raparigas" que passavam na estrada, de chinela no pé e flôr no cabelo, a caminho da feira do Pilar, estão um pouco acima, socialmente, das mulheres dos "cabras" da bagaceira e do eito. O caso do moleque Ricardo é um caso isolado, raro. Ele fôra "moleque ensinado" do senhor, montara na garupa do seu dono, brincara com o neto do coronel e seu primeiro contacto com o mundo urbano se fêz quando ia à estação buscar os jornais do velho José Paulino. O fato de saber ler (segundo Carlos de Melo: sabia as lições e aprendia mais depressa que êle) e de ter merecido as atenções da família do senhor, decorrência de ser filho de negra da cozinha do Santa Rosa, talvez tenham influído no seu sonho de outra vida na cidade. E, quando volta, mesmo batido pelas experiências , à sua posição de privilegiado por ser gente da antiga casa42 -grande, se junta o saber ler e o ter vivido na cidade. Isto, de certo modo, lhe garante um pôsto de algum destaque no barracão da usina, ante os olhos dos "cabras" comuns das plantações da fábrica. Na pirâmide social da sociedade dos engenhos, um pouco acima dos párias da bagaceira e do eito estão os rendeiros, que não estavam obrigados aos "dias". Quem era assim "pagava fôro e ficava livre da servidão da bagaceira" (ME - p. 60). Os rendeiros mantinham, porém, tôda uma relação de lealdades com o senhor, informando-o sôbre os problemas que surgiam nas suas bandas, obrigando-se a vender a cana e o algodão que plantavam ao senhor de engenho. Nas horas de emergência, foreiros e lavradores eram chamados para o eito. Eles eram, por assim dizer, ". . . os pequenos burguêses do engenho, desciam de suas ordens para (naquelas horas de necessidade) êste contacto ombro a ombro com os párias. E não recebiam nada pelo dia que davam. Queriam assim fugir da indignidade do eito, trabalhando de graça" (ME - p. 134). Os "oficais": carpinteiros, tanoeiros, mestres-de-açúcar, podiam comer na mesa do engenho ("ficavam na outra extremidade comendo calados" (ME - p. 21). Os mecânicos, mais livres, corriam de engenho para engenho: não tinham dono. Como já se disse, outro status tinham os que sabiam ler: "No engenho de meu avô só quem sabia ler era êle, José Ludovina e João Miguel. E porque soubessem ler conseguiam regalias, não pegavam no cabo da enxada, botavam gravata nas eleições, iam à cidade receber dinheiro, vender açúcar, fazendo os mandados do senhor" (B - p. 167) . As negras da cozinha, algumas saídas da escravidão, tinham, dentro daquele mundo, também uma hierarquia, tinham seus status. A que fôra ama de braço do senhor de engenho merecia trato especial, pedido de bênção, era tratada de vovó pelas crianças, livrava-as dos castigos pedindo por elas, chorando por elas, e era respeitada por todos. A ama-de-leite das filhas do senhor reinava como dona da cozinha e era chamada de tia, seus filhos brincavam com os netos do coronel. De qualquer modo, eram filhas e netas sucedendo na servidão: "não conhecí marido de nenhuma - ainda é Carlos de Melo quem informa - e no entanto viviam de barriga enorme perpetuando a espécie sem previdência e sem mêdo" (ME - p. 86). Regalia tinha também o velho João Rouco, que merecia tratamento de "seu" João e que gritava com o coronel José Paulino: foram companheiros, brincaram juntos, estavam velhos, todos dois. Aliás, vale desde já assinalar que a velhice, de um modo geral, contribui para despertar nos mais jovens certo respeito, a posição, mesmo dos párias, se alterando quer em relação aos seus companheiros de estrato, quer em relação aos seus superiores. 43 Fora do engenho, a gente dos pequenos sítios, homens livres, "brancos" talvez pelo parentesco mesmo que longínquo com as famílias dos engenhos, eram tratados em têrmos de certa igualdade pelos grandes; mereciam visitas e o compadrio funcionava como refôrço da lealdade que se externava, principalmente, no voto durante as eleições. Às gentes da vila, os artesãos de lá ou das beiras de estradas próximas , a elas não fugiam também dos laços de compadrio, de amizade com os senhores dos engenhos próximos. O mestre seleiro José Amaro, embora se comporte dentro de um quadro diverso, insurgindo-se contra os senhores, gritando altivamente sua liberdade , esperando a salvação que viria pelas mãos do cangaceiro Antonio Silvino , vai depender indiretamente dos grandes do Santa Rosa para internar a filha doente no hospício da cidade . E o meio usado é, ainda, o compadrio : a comadre aparentada com os senhores de engenho vai conseguir a carta que abre o caminho para o internamento. Sua altaneiria de artesão livre é, no entanto, sempre proclamada: "É verdade que senhor de engenho nunca me botou canga. Vivo nesta casa como se fosse o dono" (FM - p. 20 ); e ainda: "aqui nesta tenda só faço o que quero" (FM - p. 18) . E diz que se fôsse delegado "senhor de engenho na minha unha não falava de cima para baixo " (FM - p. 25), "não sou cabra de bagaceira de ninguém" (FM - p. 26 ) ... "sou um oficial e não me entrego aos mandões ... sou eleitor, dou meu voto a quem quero. Não voto em govêrno" ( FM - p. 26). Contudo, no fundo êle sabe que com sua "tenda" numa beira de estrada , encravado nas terras do engenho decadente do coronel Lula, êle não vale grande coisa. E diz triste ao mestre pintor, habitante da vila, sentindo que êste é um homem mais livre que êle: "Você mora na vila, soube valorizar seu ofício " ( FM - p. 20). Vitorino Carneiro da Cunha, esta figura singular , talvez o mais bem traçado personagem dos romances de José Lins, e - quem sabe? - de todos os romances regionalistas brasileiros, oscila fantasticamente entre a "branquidade " enfàticamente proclamada, seu parentesco com os grandes da terra, e a pobreza que o aproxima dos "camumbembes ", da "gentalha". Ele precisa gritar a todo instante : "Sou branco como José Paulino. É meu primo... não esteja pensando que sou um camumbembe"... (FM - p. 34/35). Os vínculos de família são ostentados para impor o respeito, para enfatizar a distância social entre o 'branco " e a gente sem tradição, "sem ' família" . Malgrado o respeito e a afeição que tinha pelo seleiro José Amaro , seu compadre , Vitorino não se pode furtar à observação 44 de que o mestre "não era de família como a sua : mas era branco" (FM - p. 37). A "branquidade " é, assim, um traço que distingue, mesmo entre as camadas mais pobres. José Amaro para Vitorino não pode ser comparado ao negro Passarinho , ou mesmo ao pintor Laurentino , que era homem livre e senhor de sua vida . Esses não eram brancos. Contudo, Vitorino verificava que o seu compadre de certa maneira era um inferior : "ora, um seleiro, um mestre de ofício..." (FM - p. 37), diz êle. Já êle, se não tinha engenho, tinha, porém. sua profissão política. E Vitorino Carneiro da Cunha, o Papa-Rabo, observa a situação social do mestre seleiro : branco, livre, mas sem terra, sem mando, batendo sola. Enquanto êle tinha parentes ricos, gente grande na várzea do Paraíba, era "parente de barão". Sua oposição à política dos parentes, seu voto livre , quase desaparece quando aqui e ali a proteção da família surge para tirá-lo das entaladelas com a polícia, com os delegados, nos bate-bôcas , nos desaforos. Vitorino casara com gente corrida do sertão; sua mulher viera com a família , para a várzea, numa grande sêca e vivia de pequenos trabalhos, criando galinhas e castrando frangos para sustentar a família, já que o marido , com sua "profissão política", não ganhava nada senão presentes , agrados dos poderosos, quando fazia favores políticos . Se sua liberdade era ostentada ante os parentes importantes, inclusive através do gesto dêsse casamento com gente de fora, do sertão, geralmente tida como gente suspeita e perigosa, "camumbembe", enfim , daqueles êle precisará , por exemplo, para "botar o filho na marinha". Quando sua mulher escolheu mestre José Amaro , cuja independência êle tanto louvava, para padrinho do filho, êle aceitou; mas por êle mesmo o padrinho do menino seria José Paulino, seu parente, senhor de engenho. Inconformado com sua situação de branco, de ôlho azul, mas pobre, Vitorino extravasa sua rebeldia numa campanha contínua pelo voto, 'pelas eleições, pelos liberais que estão no poder (os parentes eram conservadores) , pelo governador que vai, segundo êle, obrigar senhor de engenho a pagar impôsto. Contudo, José Paulino não pagará impôsto, os aguardenteiros continuarão levando suas cargas para o sertão, independentemente de selos, e os brados do voto livre de Vitorino perdem-se, como sempre, nas estradas, nas veredas e nas ruas da vila. Quando o seleiro apela para a saída pelo cangaço - Antônio Silvino viria salvar os pobres da miséria - Vitorino se opõe. Neste ponto , êle está com os parentes, contra o cangaceiro, pois afinal de contas êle não é um "camumbembe". Os parentes são senhores e o apoio dêstes não lhe falta nas horas necessárias. Sua 45 solidariedade com "os de baixo" é uma espécie de solidariedade retórica ; aproxima-os a pobreza, é verdade. Mas êle sente que o filho na marinha como que trará de volta, por outros caminhos, o seu status cotidianamente abalado e necessitado de apregoamento contínuo. 1 bu A solidariedade dos senhores entre si não evitava, naturalmente, as críticas , as pequenas queixas e diferenças . Aquêles que de algum modo mantinham contacto urbano , pautando seus comportamentos dentro de normas mais refinadas, não se cansavam de criticar os modos dos parentes mais apegados à vida dos engenhos e à gente das camadas mais baixas. Tal é o caso, por exemplo, do velho Lourenço do Gameleira, irmão de José Paulino. Mais importante que os outros, era doutor, juiz de grande prestígio na cidade e chefe político do clã - "temia pelo destino dos seus, entregues a erros de matrimônio, com camumbembes na família " (B - p. 154). Os irmãos tinham filhos naturais, bastardos. O velho Joca do engenho Maravalha, irmão de Lourenço e José Paulino, "perto dos oitenta ainda tinha filhos em tudo que era cabrocha ... Nana da Ponte todo ano aparecia com gente nova de testa larga e ôlho azul" ... (B - p. 154). Doutor Lourenço , que "fêz carreira de juiz , fora quase sempre das tentações da bagaceira " ( B - p. 154) era respeitado por todos os parentes e pelos senhores de engenho que mantinham com êle relações políticas, ouvindo-o , acolhendo suas opiniões; embora mais refinado que os irmãos, deixava escapar as marcas da tradição familiar gritando e dizendo seus palavrões , contido em grande parte pela espôsa que não tolerava aquêle tipo de comportamento. Nas reuniões com os seus súditos - os outros senhores seus amigos políticos - a conversa era sempre a "gentalha": "Queixavam -se sempre dos trabalhadores. Nisto estavam de acôrdo , em reconhecer nos seus cabras qualidades péssimas. Eram para éles uma gente ruim, preguiçosa, trapaceira, que só prestava mesmo no relho". (B-p. 153). A mulher do velho Lourenço , D. Marotas , que vivera na cidade, não compartilhava dos modos de vida dos parentes e pal entas . "Dava remédio aos moradores, mas não passava i dia na cozinha como as primas, da várzea. Nunca lhe vi - diz o sobrinho Carlos de Melo negra catando piolho ou em conserva contando enredadas" (B - p. 159). Era severa, "mas pagava aluguel, tendo-as como empregadas a tanto por mês";. . . "a negra Josefina que engomava no Gameleira tinha dinheiro na caixa" (B - p. 159) . O comportamento de D. Marocas , inclusive no que se refere ao tratamento com as servas e servos em muito se assemelha ao de D. Amélia, mulher de Lula de Holanda, que andava de ca- 46 briolé e que nas visitas ao Santa Rosa tanto espanta o menino neto do senhor de engenho , pelos ares finos, pelas jóias. As parentas do Recife , filhas de outro irmão do Coronel José Paulino , quando vinham ao engenho - é ainda o nosso informante Carlos de Melo quem lembra - falavam de ópera e revolucionavam os hábitos da gente da casa . "Só viviam trancadas nos banhos mornos, dando trabalho às negras, lendo romances nas cadeiras de balanço. Punham esteiras de peri-peri para cima dos quartos delas, porque tinham mêdo da telha-vã. Os moleques passavam o dia inteiro espantando os sapos da calçada. Corriam das baratas, com gritos . E até em nós esta influência se exercitava : não tirávamos os sapatos dos pés, por causa da gente do Recife" ... (ME - p. 140). Nestas ocasiões os moleques pequenos eram obrigados a vestir calça, as negras conversavam baixo na cozinha, a tia Maria, a filha mais môça do senhor de engenho, botava vestido de passeio, e o velho não gritava. Contudo , "uma delas dissera em carta a uma amiga da cidade que o povo do Santa Rosa só tinha de gente os olhos" (ME - p. 140/141). "Mamãe conta -- diz uma das primas - que morando aqui a gente vira bicho. Ela quer que eu toque piano e fale francês" (ME - p. 144) . Os modos da gente do engenho apavoravam os parentes urbanos que os achavam igualados aos pobres, aos "cabras" ignorantes, à gente miúda do engenho. Quando Juca, filho do velho José Paulino, já é usineiro, com filhos estudando no Recife, freqüentando as altas rodas da cidade, D. Dondon, sua mulher, também filha de senhor de engenho, não se agrada da vida da cidade ("O palacete da Paraíba ficara-lhe sendo uma espécie de degrêdo" (U - p. 69). Na usina, o marido quer impor uma nova disciplina , alterando os hábitos da cozinha, evitando dar leite de graça aos moradores. Mas ela prefere ainda as conversas simples com as negras antigas do engenho . Não se acostuma com a obrigação de ser mulher de usineiro. Muito embora tão marcadas, por um lado, as distâncias sociais, os estratos imobilizados pela tradição e pela rotina , não há negar que, de outro, êles , aqui e ali , se aproximam ainda por laços nascidos da tradição , numa espécie de solidariedade decorrente do próprio marasmo e isolamento. 47 3. O PROCESSO DE MUDANÇA - MOBILIDADE ASCENSÃO DA USINA - NOVOS PAPÉIS SOCIAIS o lê lê vira a moenda o lê lê moenda varou o lê lê moenda findou Dentro dêsse quadro geral em que se apresenta a sociedade da várzea, dos engenhos e das vilas do Pilar e de São Miguel, não há lugar para maiores mudanças. Os engenhos de bangüês e o sistema de plantar e colhêr cana obedecem aos modos criados desde o alvorecer da colônia, e a mãode-obra é recrutada dentro dos mesmos padrões, muito embora tenha ocorrido a abolição. Os filhos dos escravos são os servos dos engenhos, não se apartam do quadro natural em que nasceram, vão vivendo e irão morrer. Os senhores continuam senhores como dantes, dominando as terras dos seus pais e avós, casando com os seus parentes, tendo filhos com as servas, conversando as mesmas conversas, aguardando o preço do açúcar que em geral não sofre grandes alterações, colhendo algodão nas entre-safras, vivendo sem as grandezas pintadas nos quadros típico-ideais. A pirâmide social se arma dentro de limites relativamente estáveis, a comunicação ocorrendo, mas se fazendo dentro de linhas demarcadas pela tradição e acatadas pelos elementos de cada um dos estratos. O processo de crescimento de um sistema como a usina será feito concomitantemente com a absorção dos bangüês, e para êle concorrerão outros elementos, alguns dos quais por êle mesmo provocados quer direta, quer indiretamente. A política dêsse nôvo poder, a usina, será orientada no sentido de absorver, tanto quanto possível, os bangüês, que com ela não poderão realmente concorrer, ou transformá-los em meros fornecedores de cana para suas esteiras. Por outro lado, ela tenta incentivar os foreiros, pequenos plantadores que forneciam cana para os engenhos e que, por laços de compadrio e de outros sistemas de lealdades, se ligavam às grandes famílias, a entregar-lhe, por melhor preço, a cana plantada. No caso em tela, tomado, objetivamente, a morte de um potentado como o coronel José Paulino e as desavenças familiares juntadas à incapacidade do neto de gerir o complexo empreendimento que era o engenho vão concorrer para que o Santa Rosa entre numa disputa que envolve, de um lado, elementos estranhos à várzea que, sob a forma de uma sociedade anônima, se estabelecem com uma usina dentro dos moldes mais modernos, capazes de dar outra produtividade, e de outro, os próprios descendentes do senhor de en- genho, que tentam, dentro do nôvo sistema, continuar dispondo das terras e das gentes da região. A observação da produtividade que representa o investimento da usina faz com que Juca, filho de José Paulino, tome as rédeas do negócio, antes convencendo outros parentes a se associarem a êle. Inicia-se então o processo de transfiguração: do típico engenho em usina, do senhor de engenho em usineiro, com novos papéis sociais a serem representados, novos níveis de aspirações, outro comportamento relativamente à massa de servos agora a caminho de outro estilo de servidão - o trabalhador de usina, o homem de esteira de usina. Quanto ao Santa Rosa, nosso mais expressivo ponto de referência, já intuíra Carlos de Melo - nosso mais eficiente "informante" - que o engenho acabaria com o avô ("não fôra o engenho que fizera grande o meu avô. Êle é que fizera grande o engenho" (B - p. 26), quando nas suas divagações se via impotente de levar avante o que lhe caberia de herança: "Não era da espécie que êle (José Paulino) admirava, daqueles que soubessem fazer uso da carta, que botassem as coisas para a frente" (B - p . 66) . As duas pessoas mais diretamente vinculadas ao engenho Juca, filho do velho senhor, e a velha Sinhàzinha, senhora da casa por muitos anos, - temiam o fim do Santa Rosa quando mãos inábeis como a do bacharel frustrado e neto predileto viessem a ter de dirigi-lo. O engenho continuava moendo, mas "as usinas, bem perto, pagavam três mil réis" ... "o velho gritava, mas havia terra no Santa Rosa para êles (os seus servos) criarem a sua cabeça de boi, o seu bacorinho, tirar lenha de que precisassem para o gasto e botar roça de fava e de algodão" (B - p. 105). Começavam alguns dos rendeiros a "subir de posição". O caso mais típico é o mulato José Marreira. Êle traça, no decorrer de Bangüê e Usina, todo um caminho de ascensão social, chocando as velhas famílias, os velhos senhores que ainda reinam na várzea do Paraíba e nas terras da Goiana. Seu papel no processo de crescimento e de absorção econômica da usina é, nesse ponto, de análise inestimável. Rendeiro, e como tal, parte da clientela do Santa Rosa, Marreira fôra antes "cabra" do engenho, carregando aguardente, submnisso aos seus senhores. Como rendeiro, êle vai ter inicialmente gado, cavalo e dinheiro na caixa, e a pouco e pouco será daqueles raros servos que, segundo Carlos de Melo, ... "chegavam a ter servos também" (B - p. 106) . Com a evidente incapacidade do neto do seu antigo senhor no manejo dos negócios do engenho, êle passará a fornecer cana à usina S. Félix, ao que parece a primeira a ser implantada na região. 49 48 Já então. . . "andava de botas e vivia de trem, comendo em restaurante . Tinha até patente de capitão ( observe-se a hierarquia, neste caso) na bôca do , povo. Não era mais o seu José, subia. . . (B - p. 199). O processo de ascensão social de Marreira é observado pelo povo nos mínimos detalhes. Dizia-se que em sua casa "só se comia bolacha marca Maria e manteiga do estrangeiro. Diziam que as filhas dêle só se acordavam com o sol alto. As negrinhas tinham até uma empregada para lavar os pés, e que a velha andava de chapéu, no trem" (B - p. 202). Os antigos iguais do nóvel capitão não perdoam a visível ascensão : "saíra o outro do nível dêles, para mandar e oprimir" .. . "e odiavam aquêle que fôra seu igual" (B - p. 231). A primeira investida dos estranhos, donos da usina S. Félix, no Santa Rosa - deixar passar os trilhos da estrada nas terras dos Melo - foi dirigida ao próprio José Paulino. Ele resistiu. Mas, já se sabia àquela altura que "a chaminé da usina não se sentia bem, com um boeiro de engenho por perto" (B - p. 240). "Engolia tudo. Os boeiros ficavam de fora, tristes como catacumbas" (B - p. 241). O Santa Rosa, porém, não resistirá por muito tempo. O espólio do coronel José Paulino cria uma série de problemas na família. Fala-se de ouro, de libras esterlinas escondidas, de muito gado, de dinheiro na caixa. O filho, Juca, disputa com o sobrinho sôbre a herança. A filha, Maria Menina, fica com o sobrinho. E, malgrado a presença, ou talvez melhor dizer, a presidência do velho patriarca, o tio Lourenço do engenho Gameleira ("estou aqui diz êle - para que o inventário de Zé Paulino não termine em cachorrada") (B - p. 179), a luta vai até os jornais da cidade ("fizeram até uma versalhada para o caso" (B - p. 179), e a "solicitada" contra o juiz, na qual se dizia (o autor da "solicitada" era Carlos de Melo) "que as sentenças na Comarca estavam sendo compradas a peru" (B - p. 179) . A figura de chefe do clã do velho Lourenço não fôra suficiente para impedir que as desavenças domésticas chegassem ao extremo, e chegarão ainda mais, com o tio mancomunando-se com o antigo servo Marreira contra o sobrinho. Ao lado da inépcia do nôvo senhor do Santa Rosa, cresciam as usinas e o José Marreira, "que fôra cambiteiro, andara montado em cargas de aguardente em viagens longas, até os confins do sertão" (B - p. 188), e que agora " ... era rico. Era um potentado" (B - p. 188), tendo aprendido na proximidade do velho José Paulino - quem sabe? - como enricar, como fazer trabalhador obedecer, cana crescer, como ir para a frente. As lutas de família não eram novidade na região. Em' outro 5c, engenho de outra família, "processaram o inventário. Os filhos brigavam, os genros exigiam, e a usina, de longe, como um uruburei, esperando pelo pedaço melhor" (B - p. 242). Dessa maneira, caíram em mãos da usina outros engenhos, vizinhos do Santa Rosa: o Bogari, o Santo Antônio, o Boa Sorte, o Santo André, o Pitombeira, o Roncador. "O engenho do Meio não fez barulho, entregou-se como rapariga" (B - p. 241). Vendo crescer em suas terras úm vice-rei - o ex-cambiteiro do avô - Carlos de Melo quer indenizar e tomar de volta a terra arrendada a Marreira, e não pode. A usina encampa a dívida, e o nôvo-rico filosofa: "brancos que brigassem com brancos" (B - p. 237). A usina está agora pràticamente com o Santa Rosa na mão. "O usineiro me dizia - o neto de José Paulino informa que nós perdíamos quarenta por cento, botando fora uma riqueza" (B - p. 247). Lula de Holanda, do Santa Fé, morrera deixando o engenho aos pedaços, mas sem dever um tostão. O engenho há muito ficara de fogo morto. A mulher vendia ovos e galinhas. Isto seria bonito se fôsse como distração, como acontecia com aquela senhora de engenho que fazia cocada. Mas, em verdade, era para sustentar a família. Vendiam também verduras, coentro e pimenta. A casa estava quase caindo, os tapêtes velhos, os lençóis em trapos, as mulheres sem as jóias, os trancelins de outros tempos. O entêrro de Luiz César de Holanda Chacon foi feito e pago por José Ludovina do Santa Rosa, seu afilhado; José Marreira vai comprar o Santa Fé por vinte contos. A filha do coronel Lula, que tocava piano e que estudou no Recife, não casou. O pai não queria que fôssem candidatos à mão de Neném os homens da várzea, mal educados e rudes. Quando se fala no namôro da môça com o promotor do Pilar, filho de um alfaiate da Paraíba, meio mulato, seu Lula vai logo dizendo que "Nenem não era criatura para ligar-se a qualquer camumbembe formado" (FM - p. 222). E a filha fica solteira, sujeita ao "serraa-velha" das quartas-feiras santas, crítica feita às solteironas. Dono do Santa Fé, o "camumbembe" serviçal do coronel José Paulino, dêle dirá Carlos de Melo, comparando-o com seu Lula: "o verdadeiro senhor de engenho era o outro, o que saíra do eito, que se fizera por si" (B - p. 248) . E agora "o quarto de seu Lula, o chão que seu Lula pisava, a casa dos avós de seu Lula, teriam aquêle dono, um moleque, um camumbembe. Um pé rapado qualquer andaria por aquêles corredores. E os retratos de Marreira e da mulher dependurados nos mesmos lugares onde estiveram por tantos anos os avós de seu Lula" (B - p. 250) . Depois de marchas e contramarchas e de muitos acertos e cochichos com Marreira, Juca, filho de José Paulino, salda as dívidas 51 do Santa Rosa e compra-o ao sobrinho. Antes, este tentou acordos com o gerente da usina, quando vê as letras vencidas, mas obtém a seguinte resposta : "O senhor doutor sabe . Eu aqui apenas sou um diretor-gerente . Sou membro de sociedade anônima" (B - p. 269) . E sociedade anônima será o Santa Rosa, transformado em usina Bom Jesus. Juca organiza-a: para tanto, conta com alguns parentes menos conservadores . Um cunhado e o tio Lourenço não tomam parte, preferem continuar nos seus bangüês. Começam a dispersar os antigos servos da casa-grande e a transformá-la numa casa de usineiro . As imagens do santuário vão para o engenho de Maria Menina , de carro-de-boi. Alguns dos agregados mais importantes , João Rouco, por exemplo, companheiro de infância do velho José Paulino, dizia, quando Juca ;á começava a assumir o poder: "Seu dotô, nasci e me criei por aqui. Estou um caco de velho. Vou para o Gameleira do doutor Lourenço. Esteira de usina não me pega" (B - p. 273). Inicia-se a marcha dos mais conservadores para os recantos em que o sistema mais tradicional ainda perdura. Derruba-se a "rua", pedaço da antiga senzala onde se alojavam s negras da cozinha e seus filhos. Devem fazer suas casas cm terrenos "lá no alto". A mulher do nôvo usineiro não se conforma, e arranjam uma casa velha, tida como mal assombrada, para os mais diretos servos da antiga casa-grande. Os moradores antigos deveriam também se arranjar. Até a gente da caatinga , (que "vivia com mais liberdade . Eram sempre foreiros , criados longe dos gritos e do eito" ... " gente mais senhora de si, mais atrevida") (B - p. 287), até esta deveria ser empurrada para mais longe . A usina não queria "casa de morador pelo meio da várzea, tomando o lugar dos partidos de cana . A usina não permitia que o povo ocupasse um pedaço de terra que fôsse boa de cana" (U - p. 72). A horta do engenho também não pode continuar ; vai se plantar cana até junto da casa . "Aquêle povo devia saber que o tempo do velho José Paulino havia passado". . . "O pai consentia naquilo porque se viciara com aquela vida" (U - p. 67), dizia o Dr. Juca. Logo após o início da usina, começam a aparecer pessoas de fora, gente mais livre, que "vivia mais ou menos". Vieram maqui-. nistas para a fábrica, peças para a usina ("aquela maquinaria não tinha nada da mansidão do bangüê") (U - p. 75) . Os operários e os mecânicos da usina estão livres do "vale". Para os trabalhadores do plantio, do eito, "dinheiro não corria na usina, mas uns vales de metal" (U - p. 117 ). Os sertanejos, que chegavam das caatingas nos períodos de safra, "não se sujeitavam a isto. Queriam o dinheiro corrente" ... (U - p. 117) . "Depois da safra, corriam para as terras dêles , que eram livres ... " (U p. 117). Os trabalhadores da usina, "não se conformando com as casas de palha dos moradores" (U - p. 132 ), exigiam, mostravam que tinham direitos . Era gente que vinha de outras usinas, eram os "operários ", e "não aguentavam a menor repreensão" (U - p. 133) . Para êsses fêz-se um arruado de casas de tijolo e telha. Suas famílias tinham modos diferentes e não se misturavam com os antigos servos . As filhas "falavam das matutas com um desprêzo superior. . . Eram filhas de operário, não estavam sujeitas à esteira" (U - p. 158). E todos, homens, mulheres e crianças, " faziam sua sociedade à parte. As filhas, os filhos, que se metessem com a cabroeira, sofriam castigo. O povo do mato , aquêles moleques que andavam roubando pelas estradas , só podiam botar os seus filhos a perder" (U - p. 157) . Os operários, os mecânicos , que moravam em casa com chão de tijolo, às vêzes eram protestantes: "liam livros de reza" (U p. 179) . Das crianças, diziam os antigos moradores do engenho que elas viviam "como príncipes". Os operários eram "marceneiros, ferreiros, maquinistas , turbineiros, que sabiam seu ofício e que haviam subido um palmo acima dos outros. Mas êste palmo marcava uma distância , uma separação de muitos metros" (U - p. 157) . O povo dizia que "o pessoal da rua Nova era uns privilegiados, como as negras da senzala . . ." (U - p. M). "O povo olhava a rua da usina como se aquilo fôsse também casa-grande" (U p. 179), e os seus moradores " como se fôssem estrangeiros, gente de outras terras, de outro sangue. Pretos e cabras como êles e no entanto tão separados , tão diferentes" (U - p. 179) . "Lá em cima - diziam dos `privilegiados' - estava uma gente que se chama operário, um povo que não queria ligar com êles" (U - p. 180). Os sertanejos que desciam para o trabalho não tinham "bondade": "vinham para o meio dêles, pegavam no cabo da enxada , namoravam as suas filhas, iam às suas festas, aos seus cocos, embora depois se sumissem , se danassem atrás dos resertanejo só se lembrava da várzeae nos tempos llâmpagos"r âmpagos". de sêca" (U - p. 180). "Trabalhavam sem feitor, comendo na hora que bem queriam , terminando quando bem entendiam" (U p. 181), e seu trabalho era mais rápido e mais bem pago que o dos "alugados ". Para aquela gente , "grito de feitor, grito de usineiro não prevaleciam" ... "Ganhavam por tarefa. O trabalho de um dia de um alugado da usina valia menos três vêzes que o dêles" (U - p. 181). As queixas dos antigos habitantes do Santa Rosa são muito grandes : lamentam-se dos novos tempos. 52 53 Quando Ricardo volta de suas aventuras urbanas ouve das velhas do antigo Santa Rosa: "Acabou-se o bom tempo menino, desde que o velho fechou os olhos que a gente pena. Mandaram até buscar cozinheira da cidade. Eu até penso muita vez que o Dr. Juca não é do sangue da família. Vi aquêle menino nos cueiros , fiz muita papa para êle (quem está falando é a velha Generosa, da velha estirpe das negras da casa-grande)". . . . "Pergunte a Avelina o que sucedeu com Salomé? Tu pensas que pegaram o negro para casar? A gente ficou igual ao povo do Pinheiro. Nem parecia que Salomé era cria da casa. Podiam pegar o cabra e casar. A tua irmã está feita rapariga, como as outras" ... "Trancaram a despensa" ... "E a gente o jeito que tem é ir para a Areia morrer por longe, igual ao povo do eito. Tudo agora é igual..." (U - p. 110). Os antigos "privilegiados" da cozinha e da "rua" do Santa Rosa estão igualados à "gentalha" do eito, aos moradores comuns. A justiça doméstica já não funcionava como nos velhos tempos do velho José Paulino obrigando casamento às crias da casa, que, por tal, deviam ter certos cuidados e maiores atenções. Mas quando o usineiro pega alguém chupando cana, o castigo é "tombar cana" ou o tronco. Nesse ponto, o velho sistema das penas sobrevive intacto para a camada que sobrenada como pode nas transformações por que passa a sociedade dos engenhos da várzea, agora já se enchendo de usinas. Também já não se poderá mais caçar nem pegar passarinho. Também a usina não fornece mel ao povo, como antes fazia o engenho. E para tudo havia vigias. Embora para a maioria dos componentes das camadas mais baixas todos os usineiros fôssem iguais - todos não tinham coração -, as usinas entre si empreendem uma luta desenfreada: a São Félix, de gente estranha à várzea e a Bom Jesus, dos Melo e seus parentes, os antigos donos e senhores das melhores terras da várzea, capitaneados pelo Dr. Juca. As primeiras vitórias são da Bom Jesus . Na luta de "branco com branco", "José Marreira entrega o engenho Santa Fé, que comprara da família de Lula de Holanda, ao compadre Juca. Afinal, embora êle achasse que aquilo era "um taco de terra que só dava mesmo para um camumbembe como êle viver" (U - p. 147), o fato é que tornara-se importante para os dois grandes usineiros. E com a compra feita por Juca, "era uma segunda pessoa da família do coronel José Paulino que assinava documento para o cabra que fôra da bagaceira do Santa Rosa" (U - p. 161). Ao lado do próprio interêsse, no jôgo, pesa para Marreira a figura de senhor do Dr. Juca, diferente do seu outro compadre, Dr. Carlos, que perdera para o tio as terras do velho Joé Paulino. Juca aparece para Marreira como dono e senhor e as lealdades ainda 54 funcionam para êle preferir entregar seu engenho ao compadre e não ao estranho da São Félix. Embora sentindo os progressos da usina, os parentes, sócios de Juca, não se sentem satisfeitos de ter que fazer negócio com Marreira, pois malgrado êste andasse de botina e em 1 ." classe de trem, era, afinal, um "camumbembe". Mas não podem negar é que o parente, cabeça do empório econômico da família , tinha facilitado uma série de coisas para êles, e os tinha livrado dos perigos de ter de trabalhar para estranhos, fornecendo cana, ou mesmo do perigo ainda maior: entregar de vez seus engenhos. No fim das contas, agora todos têm automóvel ("carro-de-boi passava a ser uma condição humilhante") (U - p. 165), mobílias novas, piano, e podiam ir à Paraíba e voltar logo, sem viagem planejada. E veja-se que senhores havia, como o parente Baltazar do engenho Beleza que "falava de uma viagem sua ao Recife como se tivesse ido ao fim do mundo" (U - p. 166) . Os que não se conformam com as coisas que consideram extravagâncias e exageros dizem, como D. Neném do Maravalha, que "automóvel só prestava para os maridos ficaram mais vadios e as mulheres mais gastadeiras" (U -- p. 227) . Cogita-se até de fazer Juca deputado, o deputado da família. Amplia-se a maquinaria da usina, para fazê-la ainda mais produtiva. Os partidos estão cheios, as chaminés estão fumegando e as locomotivas da Bom Jesus estão entrando pela várzea. Na última safra, a usina dera mais de oitocentos contos de lucro. "Aquilo que o velho José Paulino levara 80 anos juntando, o seu filho ganhava numa safra, sem abrir os peitos no trabalho" (U - p. 94) . Contrata-se um químico americano para que a usina possa alcançar um produto ainda melhor e em quantidade ainda maior. Todos se assombram com o ordenado do químico : quatro contos por mês, com casa, criados e contrato, e ainda mais: uma mulher também americana, que enche a casa de festas, que guia automóvel e fuma cigarro, e que logo faz amizade com as filhas do usineiro. Juca e sua família freqüentam as altas rodas, têm casa de veraneio na praia, têm "carro igual ao do governador": um Packard último modêlo que vive correndo pelas estradas. A filha mais velha tem uma "baratinha". O usineiro está certo de que com o seu trabalho está ajudando os parentes, com êle, a subir. Na Paraíba, na "pensão Mimi", a mais elegante, quartel general dos usineiros ricos, êle espouca champagne com as francesas, e tem amante certa. O preço do açúcar começa a baixar; a maquinaria do engenho, montada por uma firma americana que garantia alta produtividade, começa a apresentar sérios defeitos. Três safras ruins e, como conseqüência, maiores exigências do fornecedor, ao lado dos gastos re- 55 Dr. Juca, doente da espinha, anda com dificuldade , apoiado em Rafael , filho mais môço da negra Avelina, irmão de Ricardo- sultantes do alto padrão de vida levado pela família Melo se combinam para deflagrar uma grande crise que arrastará a Bom Jesus por algum tempo, até que uma grande enchente vem de dar, pràticamente , o tiro de misericórdia. Levas e levas de sertanejos começam a emigrar da caatinga para a várzea, já começando a sentir as repercussões da sêca. A fome é grande, e o Govêrno manda carne e farinha. Muito para a São Félix, pouco para a Bom Jesus . Na São Félix, só tinha a ração a família que desse um ou dois homens para o eito. A crise e suas conseqüências são relacionadas, implicitamente, pelo povo, as ocorrências do Alto da Areia, quando o velho Feliciano morrera queimado e os seus santos - dizia-se - desapareceram correndo para o céu ou foram encontrados intatos no meio das cinzas. Os primeiros efeitos da crise repercutem na própria família. Juca vê que é impossível manter os filhos - que êle desejava um dia mandar estudar coisas práticas na América do Norte a fim de fazê-los úteis à usina, afastando-os, dêsse modo, do caminho que os levaria a um diploma de bacharel - estudando no Recife. Para agüentar as dívidas com o fornecedor, empenha -lhe o palacete na Paraíba; mesmo assim , para continuar fornecendo para o barracão Vergara põe o caixeiro-chefe dali como seu vigia na usina. Como conseqüência, são suspensos os "vales" e há racionamento dos produtos vendidos no barracão. Por outro lado, a própria família passa constrangimentos, vendo que suas contas estão atrasadas nas lojas elegantes da Paraíba, e Juca chega a apelar para Marreira , já então dono da loja importante da vila do Pilar, capacitado a fazer empréstimos . Mas êste alega não poder emprestar ao compadre. D. Dondon humilha- se ao ponto de pedir empréstimo ao cunhado do marido , Cazuza Trombone, parente que não entrou no negócio da usina, e que vive a criticá-los ao ponto de se tornar um verdadeiro inimigo; e êste também nega. E a mulher do usineiro chega, então, das rezas e promessas até o apêlõ a uma curandeira famosa, já que à crise econômica junta-se a doença do marido, cada dia mais agravada. Um dos parentes , sócio e fornecedor da usina, resolve então vender sua parte à usina São Félix, temendo talvez a derrocada da Bom Jesus e do parente diretor que a esta altura está com "mais de mil e quinhentos contos presos" nas mãos do fornecedor Vergara. Para o casamento da filha mais velha de Juca e D. Dondon não se fará a festa sonhada-. A mãe tem de vender o gado que possuía no engenho da família e o enxoval é preparado pelas costureiras e rendeiras do velho Santa Rosa. D. Dondon lança mão do linho que tem guardado e nada se pode fazer na Paraíba. As negras do Santa Rosa começam a voltar, agora para a usina cheia de dívidas e problemas. Vão voltando pouco a pouco para a cozinha onde sempre viveram e ajudarão no casamento de Clarisse, que, mesmo assim , será feito com festas. 56 Quando o povo invade as terras da Bom Jesus para apanhar lenha e água, dá-se um crime. Marreira, delegado de polícia do Pilar, procura Dr. Juca com ordens do chefe de polícia para prender o criminoso . Mas há criminosos na São Félix, conhecidos de todos, e ninguém prende: o chefe de polícia é amigo do Dr. Luiz, presidente da São Félix. Um filho de Juca "ofende" a filha de um sertanejo; o usineiro vê-se forçado a dar quinhentos contos ao pai da môça e a mandar o filho para o engenho do avô. As máquinas da Bom Jesus tinham sido compradas a uma companhia americana com garantia de hipoteca de engenhos dos sócios da usina . Com a falta de pagamento, vão executar a hipoteca. Começa, então, uma luta entre os americanos e seu testa-deferro, o fornecedor Vergara, e a usina São Félix, todos dispostos a pegar a Bom Jesus. "Um dia apareceu o Dr. Pontual ( testa-de-ferro da companhia americana que equipou a usina com máquinas modernas) na Bom Jesus de automóvel , conversou com o Dr. Juca, falou da crise, do açúcar, de Cuba, que estava também passando por grandes dificuldades, dos prejuízos da sua firma no Brasil, de tôda a sua boa vontade para salvar as usinas que montara . E falou franco com o Dr. Juca: êle ia executar as hipotecas, podendo o amigo ficar certo de que não era por maldade . Era sòmente para se defender. Sabia que a firma Vergara pretendia prejudicar os interêsses dos seus clientes. Ële era brasileiro , mas acima de tudo a sua honra. . . . Qualquer um, que estivesse no seu lugar, faria o que êle estava fazendo. Os seus amigos da América confiaram nêle" (U - p. 315/316). O fornecedor deixa de mandar mercadorias para o barracão quando a fome é maior e uma epidemia assola as terras da Bom Jesus , matando muita gente, a ponto de o povo da vila do Pilar ter mêdo da usina e do prefeito ordenar que os mortos sejam enterrados lá mesmo. Temia-se que as pragas e invejas que atingiram a usina se alastrassem até a vila. Na luta pela Bom Jesus , a São Félix leva a melhor , comprando-a através o embôlso dos americanos e de Vergara. O jeito , para os antigos sócios da usina que conseguiram se agüentar, era fornecer para a São Félix. Joca do Maravalha fica 1 57 indignado: "De senhores passariam a escravos, a fornecedores de uma esteira que engolia a cana e chupava o sangue" (U - p. 342) . E o velho senhor de engenho deixa o Maravalha para viver num engenho do irmão Lourenço, que sempre estêve contra o negócio da usina dos parentes. O presidente da São Félix procura o Dr. Juca para oferecer o que êle quisesse. D. Dondon reage dizendo que não estão às esmolas. Maria Augusta, a filha mais môça do casal, começa a namorar um rapaz, caixeiro de unia loja na Encruzilhada, no Recife. Quando uma irmã de D. Dondon namorou um empregado de loja nos tempos da riqueza da família, esta tinha ficado indignada. Do namorado de Maria Augusta sabe-se que é pobre, mas filho de gente conhecida do Dr. Lourenço do Gameleira. Quando uma grande cheia atinge a Bom Jesus, já nos momentos em que a usina deveria ser entregue aos seus novos donos, o usineiro, o filho do coronel José Paulino, faz sua retirada às carreiras, com a família e as velhas negras do Santa Rosa, carregado nos braços dos netos dos escravos de seu pai para um carro de boi que os levará para viver nos engenhos dos parentes que sobreviveram à derrocada da usina. O Paraíba, que as máquinas da Bom Jesus enchera de podridão fazendo-o imprestável para o povo, estava numa grande cheia, suas águas chegando aos batentes da casa-grande... 4. PODER, JUSTIÇA E IDEOLOGIA Sob o aspecto ideológico e político-jurídico, os dados que nos são oferecidos no "ciclo da cana-de-açúcar" apresentam, com boa nitidez, o funcionamento das oligarquias no contrôle do mando, do prestígio e do domínio sôbre uma vasta clientela que gravita em seu redor. Quando esboçamos uma análise da estratificação social naquela sociedade se pôde ver como o poder do senhor, do patriarca, se exercitava. Do prestígio do tamborete de palhinha especial para o neto do coronel senhor de engenho, na escola em que os outros meninos sentavam em caixotes de gás ("Havia para mim um regime de exceção. Não brigavam comigo. Existia um copo separado para eu beber água ... nas sabatinas nunca levei um bôlo, mas quando acertava mandavam que desse nos meus competidores ... ") (ME - p. 54) chega-se à não menor importância do menino no internato de Itabaiana (" ... o avô dêle tem nove engenhos. Meu pai vota com êle nas eleições") (D - p. 12) . E já aí a própria criança começa a conceber, e aceitar, um mundo em que uns existem para mandar e outros para obedecer. 5 te) Carlos de Meio, em criança, pôde observar tôda a discriminação da qual êle é beneficiário, ouvindo as estórias contadas pelos mais velhos sôbre senhores e escravos; aquêles castigando, ordenando; êstes sofrendo no tronco, nos bolos, nos gritos. Ele vê o avô mandando em todo aquêle povo, decidindo a vida de tanta gente, aplicando e mandando aplicar os castigos; mesmo assim, para o neto o avô é diferente dos demais senhores, pois é bom e simples, e êle acha que os servos de alguma sorte amavam o velho José Paulino. Rememorando, êle diz: "O costume de ver todo dia esta gente na sua degradação me habituava com a sua desgraça. Nunca, menino, tive pena dêles" (ME - p. 134). E ainda: "Eles nasceram assim porque Deus quisera, e porque Deus quisera nós éramos brancos e mandávamos nêles. Mandávamos também nos bois, nos burros, nos matos" (ME - p. 135). Na visão do menino há como que uma espécie de "direito natural" dos brancos e senhores sôbre os negros e servos. Talvez seja êste o ponto básico sôbre o qual repousa tôda a idelogia das camadas superiores da sociedade da cana-de-açúcar. As oligarquias se estruturam dentro de padrões que destacam, entre outros elementos mais relacionados com a riqueza e a tradição, a idade e a importância social derivada da cultura e da freqüência a outros círculos sociais. Assim, por exemplo, o velho Lourenço do engenho Gameleira, irmão do coronel José Paulino, encabeça aquela espécie de "grande câmara" dos senhores de engenho da várzea. Juiz de Direito de larga experiência, relacionado com a Capital e com os círculos políticos mais importantes da Paraíba, o Dr. Lourenço lidera a família e o círculo dos senhores que, gozando de sua amizade, estão politicamente ligados a êle, usufruindo dos seus conselhos e, naturalmente, de sua proteção. O tom verdadeiramente presidencial com que êle trata com os demais lhe dá o poder de articular, coordenar e, afinal, decidir os problemas, quer da família, quer da vida política da várzea. O próprio José Paulino, seu irmão , achando-o mais esclarecido, para êle apela nos momentos necessários, incumbindo-o de dar soluções para as situações e problemas mais difíceis. Sua fama de homem forte, de "coração duro", de homem de decisão, fazia-o imprescindível na luta pela manutenção do poder e do prestígio da família e do grupo de parentes e aderentes. Conservador dos mais ortodoxos, Dr. Lourenço sabia odiar os inimigos, e êstes o eram também do irmão do Santa Rosa, A compostura do velho Lourenço, "de óculos dourados e barbas aparadas" (B - p. 148), presidindo a grande mesa do Gameleira, rodeado de correligionários e parentes, talvez bem ajudasse a compor a sua figura de comandante: "todos se calavam quando meu tio 1 59 falava" (B - p. 150), informa Carlos de Melo. E ainda : "Havia os que tratavam por chefe, os mais chegados na bajulação" (B p. 152). Muitos almejavam "casar filho ou filha com gente do Gameleira. Todos submissos ao doutor" (B - p. 152). Além da assistência mútua, na família, quando os homens mais velhos e experientes decidiam os problemas de tôda espécie, reservando-se a mulher para os raros momentos em que podia influir e opinar, de um modo geral os senhores assistem também seus dependentes e sua clientela, constituída, na sua grande maioria de seus foreiros, compadres e eleitores, além de não apenas assistir, mas muito mais decidir, sob várias aspectos, a vida e os problemas dos seus servos. Nas autênticas audiências ouvem-se queixas, exigem-se testemunhas, atendem-se partes, e também distribuem-se sanções e aplicam-se castigos. O "tronco" funciona no Santa Rosa do coronel José Paulino para os ladrões, para os que "fazem mal" a môças, a confissão sendo retirada, muitas vêzes, à custa de muito castigo. E funcionará na usina do Dr. Juca, talvez o mesmo "tronco" que castigou os servos do seu pai e os escravos do seu avô. Mas, êsses castigos estão reservados aos servos, aos descendentes dos velhos escravos do engenho, à gente do eito, aos moradores, nunca aos sertanejos, aquela "gente mais livre", que aparece nas sêcas ou nas épocas de colheita, para logo mais correr para as terras mais livres da caatinga. E não funcionará jamais para os mestres de ofício do engenho, nem para os operários, os chamados "burgueses" da usina. Quando Carlos de Melo é senhor do Santa Rosa, os que roubavam àlgodão, no pêso, ou lenha, nas matas do engenho, iam para o "tronco". E o peão muitas vêzes concedido talvez tenha influído para que êle fôsse tomado por um fraco, um senhor mole e sem vontade, muito diferente do avô, dos tios e dos parentes, muitos dos quais se tornaram famosos pela dureza e crueldade nas sanções aplicadas aos seus servos. A justiça privada dos senhores obedece, porém, a normas traçadas pelo bom senso e pela situação política dos mesmos. Quando a filha de um trabalhador do Santa Rosa se diz "ofendida" por um cambiteiro, o velho José Paulino manda botar o homem no "tronco" para confessar o "mal feito". E êste logo grita: "vou para a cadeia, crio bicho na peia mas não vivo com a descarada daquela quenga. Eu não tapo buraco dos outros" (ME - p. 67). Mas a môça confessa e jura que quem a ofendeu foi o Dr. Juca. E Carlos de Melo recorda: "o meu avô não deu uma palavra. Só fêz dizer: soltem o cabra" (ME - p. 70) . E irá lamentar pouco depois o fato do filho ter freqüentado academia para voltar fazendo coisas daquelas, como êle e os antigos como êle. Quando um criminoso de morte lhe pede proteção, o comportamento de José Paulino está orientado também em função do contrôle político. E diz: "quando a gente está de cima, muito bem. Caiu, lá vem a polícia cercando a propriedade" (ME - p. 94). E se isso, parece, nunca ocorreu nas terras e nos mandos da gente do Santa Rosa, do Gameleira, bem se pode ver que, mesmo quando se vive a situação da "queda", do "estar por baixo", a respeitabilidade de cada um e do próprio grupo representativo do estrato superior impede, ou, pelo menos, dificulta o gesto de violência e desmoralização. É ainda o respeito de José Paulino às origens dos seus iguais, ao status herdado e laboriosamente conservado de Lula de Holanda, por exemplo, que leva o senhor do Santa Rosa a convidar o velho vizinho para presidir à câmara do Pilar, malgrado as teóricas divergências partidárias - era conservador o primeiro, teòricamente liberal, o segundo, liberal por fôrça de laços sentimentais e familísticos. Delineia-se, assim, num aspecto como êsse, a solidariedade grupal que, embora bruxoleante naquele então, persistirá, com algumas nuances, quando fatôres estranhos começam a interferir na integridade do domínio econômico e político das velhas famílias da várzea. Mesmo em plena decadência, o coronel Lula não esquece de mandar avisar ao mestre José Amaro, morador de suas terras, para tomar cuidado com os pedidos de Vitorino, pois êste estava contra o parente do Santa Rosa, o vizinho poderoso do Santa Fé. E o seleiro logo observa: "êstes senhores de engenho têm uma maçonaria" (FM - p. 307/308). A atitude paternalista decorrente, inicialmente, da disposição da propriedade sôbre a escravaria e da dependência da clientela em face dos senhores vai, até certo ponto, formar um perfil de poder e prestígio dos mesmos ante seus clientes e servos. O poder e o prestígio de uni José Paulino ficam intactos até a sua morte. Mesmo quando êle se diz "por baixo" na política, não deixa de avisar que dará a necessária atenção a um homem morador de suas terras, mesmo em se tratando de um criminoso de morte que êle acha que deve pagar pelo crime cometido. José Paulino é acatado e respeitado por todos os seus; não deve um tostão a ninguém; as cêrcas marcam as propriedades que são inquestionàvel mente suas; êle manda e todos obedecem e seus gritos são temidos: fiscais do Govêrno não rondam sua casa e sua balança; a aguardente de seus alambiques viaja sem precisar de sêlo do govêrno. Quando um homem matou outro na feira da vila logo se disse: "encontrou homem para livrar êle'' (FM - p. 23); se fôsse no Santa Fé do coronel Lula de Holanda, "morria de pôdre na cadeia" (FM - p. 23) . Senhor realmente importante é aquêle cujos "cabras" 61 60 não sofrem desfeitas; entenda-se por desfeita a cadeia, o júri sem proteção, ou, em alguns casos, o júri mesmo, coisas que, se ocorrem, demonstram que o homem é de ninguém, não tem protetor. No quadro geral dos prestígios, do mando político e da justiça bem como da solidariedade grupal e familística, vale ressaltar as posições de Vitorino e José Amaro, principalmente naquilo que importa para a melhor compreensão da sociedade da várzea, já que ambos interferem, direta ou indiretamente, no comportamento das elites dos senhores e de seus clientes. Se à primeira vista êles parecem quebrar a geometria dos que mandam e dos que obedecem, cada qual apelando para saídas que não se ajustam ao equilíbrio das fôrças postas na mesa do jogo político, olhando com mais apuro, ver-se-á que, ao seu modo, um e outro cumprem, no próprio jogo, as regras traçadas por aquêles que realmente controlam o poder - o político pròpriamente dito, e como conseqüência, a justiça, institucionalizada ou privada. A saída de mestre José Amaro, na esperança constante de salvação por obra do cangaço, se representa, de um lado, a rebeldia contra os poderosos, os senhores da várzea e da vila do Pilar, por outro, representa a busca de outro poder, que êle julga representativo da verdadeira justiça, para nêle se apoiar . . . e dêle depender. E veja-se que se trata de um poder ao qual se anexam outros elementos, inclusive o mito (do cangaceiro diz o aguardenteiro Alípio a mestre José Amaro: "É reza que êle tem, mestre Zé, é reza, e da forte") (FM - p. 97), a atitude heróica, o desassombro, a capacidade de enfrentar os donos da terra. O seleiro crê na redenção que se fará pelas mãos do cangaceiro: "homem para endireitar êste mundo só mesmo um capitão Antônio Silvino" (FM - p. 168) e vibra quando sabe que Cazuza Trombone, senhor de engenho, fugiu de Antônio Silvino, que na casa de José Paulino, quando o bando lá estêve, "disseram até que a filha do grande servira a mesa, como se fôsse ama dos cangaceiros" (FM - p. 99) . José Amaro sente uma imensa alegria por ter de providenciar farnel para o bando, por mandar sua mulher preparar comida para os cangaceiros, por ter ajudado a dar comida ao "maior homem do Estado", por ter feito alpargatas para os homens de Antônio Silvino. Mas atente-se bem para o fato de José Amaro sentir sua ponta de orgulho pelo cabriolé do Santa Fé, que êle lamenta ver aos pedaços, recordando os tempos de glória do engenho onde morava, quando era senhor o sogro do coronel Lula. Embora com raiva, êle conserta os arreios do cabriolé, obrigação que tem por morar nas terras do engenho que para êle está perdido, com o senhor sem coragem de trabalhar e que só vive de reza, comendo de gravata numa mesa para a qual êle não era chamado quando está na casagrande, embora êle fôsse um oficial, um homem de profissão. O 62 seleiro lamenta ter de viver num engenho que é "um ovo", mas cujo dono não tem poder e prestígio , do qual êle gozaria, certamente, de modo indireto, como morador daquelas terras. A oposição de Vitorino aos parentes é, de algum modo, uma oposição retórica, como já se disse . O sentido de sua solidariedade para com os parentes é evidente, bem como sua ideologia de "branquidade". Suas atitudes contra "os grandes " estão marcadas por constantes contradições. Ele diz que os parentes estão com "governos podres", e sente constante necessidade de apregoar sua liberdade e independência - "sou homem livre ... Vitorino Carneiro da Cunha não se vende" ( FM - p. 106) - e de defender uma peculiar concepção sôbre o voto e as eleições junto ao seu compadre José Amaro : "um voto é uma opinião. É uma ordem que o senhor dá aos que estão de cima . O senhor está na sua tenda e está mandando num deputado , num governador" ( FM - p. 78). Mas, José Amaro observa , nas idas e vindas do compadre nos engenhos, tratando de política, de votos, com os senhores , muitos dos quais êle diz que são de "boa política" e seus amigos , uma atitude de "chaleirismo", de pobre que vive "atrás dos grandes, como cachorro sem dono". E Vitorino, muito embora acuse os parentes , dizendo que o padre e o juiz da vila do Pilar fazem o que aquêles querem, incitando o seleiro, que para êle é "homem livre", a votar contra os poderosos , não deixa , aqui e ali, de , criticando embora, atenuar a culpa dos que são do seu sangue. Os senhores de engenho vistos como uma categoria , são os culpados de tudo, mas um José Paufino, por exemplo, não deixa de ter o seu valor . E diz: "Vitorino Carneiro da Cunha não vai com esta história de senhor de engenho querer fazer de terra como o Pilar, bagaceira . José Paulino é homem de bem , mas não se compreende que deixe um Quinca Napoleão na Casa da Câmara" (FM - p. 169). Dói-lhe ver um Quinca Napoleão, que não é igual a êle e os seus parentes , que não tem barões e coronéis na família , que vive de loja na vila, gozando do prestígio dado pelo parente dêle, Vitorino. Por outro lado, êle se revolta contra o mando do senhor de engenho na vila, que para êle é lugar livre , diferente da bagaceira, onde estão os negros que hão que ser mandados pelos senhores. José Amaro não entende, também, como é que os parentes importantes de Vitorino deixam-no entregue ao enxovalhamento das críticas, dos apelidos e da chicana do "povinho", dos "cabras" e negros de beira de estrada, que gritam a tôda hora para um homem branco e de família o célebre "Papa-Rabo"! Quando o bando de cangaço invade o engenho Santa Fé, Vitorino não se furta de defender , como pode, o mesmo Lula de Holanda, do qual êle diz tanta coisa: "êste Lula de Holanda vivia dando 1 63 irmão depois da morte dêste, influíram na quebra gradativa do prestígio do engenho, cujo senhor, por incapacidade pessoal e doença, passará a viver. situações nunca antes vividas por qualquer membro da família. em negro e pensa que a escravidão não se acabou" (FM - p. 283) avisando logo ao senhor de engenho que com êle "ninguém grita. Sou tão branco quanto você, seu Coronel" (FM - p. 281) . E quando a tropa desfeiteia o Carneiro da Cunha, imediatamente os parentes vêm em socorro; José Paulino toma providências, embora se diga que êle não está "de cima" com o govêrno e talvez não agüente briga. O juiz, que é gente do senhor do Santa Rosa, protesta, juntamente com outros senhores, contra a prisão de Vitorino, igualado com os "camumbembes" que êle tentava defender. Os senhores do Santa Rosa telegrafam pedindo medidas urgentes ao chefe de polícia, na Capital. E para lá viaja Vitorino, acompanhado pelo Dr. Juca, seu primo. Os jornais criticam a prisão do "eminente político", e êste não perde ocasião, quando dá uma entrevista, de dizer que "êle e todo o seu eleitorado iriam às urnas para salvar a Paraíba dos oligarcas" (FM - p. 290). E entenda-se por "oligarcas" os seus parentes, inclusive, dos quais êle dizia que "pensam que os parentes pobres estão de esmolas" (FM - p. 281) e os quais êle acusará diante do próprio José Paulino de serem os culpados pelos atos do cangaceiro Antônio Silvino na casa de um homem de bem - Lula de Holanda: "vocês dão proteção a êstes bandidás e é isto o que êles fazem com os homens de bem" (FM - p. 325). Aparecem, no Santa Rosa, cobradores de impostos: antes "nunca botaram os pés ali. O meu avô nunca soube o que era sêlo" (B p. 197), diz Carlos de Melo. Ëste se vê na contingência de oferecer um carneiro ao cobrador; por motivos que não informa, "comprara uma vez um tenente de polícia com um boi" (B - p. 197), e ao cobrador, depois do carneiro, diz, "mandei-lhe uns perus" (B p . 197). De outra vez, pedem-lhe (êle informa que o pedido parte do chefe (?) do Pilar) voto, dêle e de José Ludovina, um dos poucos "letrados" do engenho. E êle dá. Como dera também, no júri, o voto para livrar um criminoso de morte, recebendo logo após os agradecimentos dos protetores daquele: "quando tiver o seu, seu dotô, fale comigo" (B - p. 198) . Meditando sôbre sua própria decadência, o neto do grande senhor observa: "o meu avô mandava no povo do Pilar. E juiz nenhum tivera o topete de sorteá-lo para servir em juri" (B - p. 198) . Com o lento crescimento de Marreira dentro de suas próprias terras, já então devedor do antigo "cabra" do engenho do avô, Carlos de Melo cerca-se de vigias, temendo ser atacado pelo inimigo que êle mesmo criara, e é procurado pelo delegado, dentro de sua casa, a fim de que dê conta de um seu trabalhador que tinha assassinado um homem do nôvo-rico. Por seu turno o delegado da vila se queixa de ter de aturar parentes de chefes políticos, como o impertinente e boquirroto Vitorino; e José Paulinó ante as ofensas feitas ao parente e ao juiz, seu protegido, não titubeia em enviar o filho à Capital para entregar sua chefia política ao presidente (provàvelmente o chefe do partido) Carlos de Melo verá ainda o crescimento do seu antigo servo, observando que êste deve ter já "a seu favor o juiz, o escrivão, tôda a canalha do Pilar. Agradava mais do que eu - êle pensa - a esta gente de rua, que vivia atrás de perus e garrafas de leite" (B p . 229). E êle diz que tomou então as providências : "peguei então um carneiro gordo, que andava por dentro de casa, de tão manso, comendo milho nas mãos das negras e mandei Nicoláu levar de presente ao juiz. Preparava assim as minhas razões, caso fôsse à questão. Um peru valia mais para aquela gente do que um bom direito defendido" (B - p. 229) . Mas, mesmo assim, Vitorino observa que se fôsse chefe, como o parente, "não teria as besteiras de José Paulino, aquela tolerância para com sujeitos safados, que só queriam comer no cocho da municipalidade" (FM - p. 357). Seus princípios de quixote oscilam entre aquilo que êle considera bondade e honradez de José Paulino, que é "homem de bem", e a complacência dêste - elemento ou traço que se tem de contar naquele tipo de jôgo político - aceitando proteger gente que êle julga desonesta, ajudando a eleger outros que êle julga safados. A irritação de Vitorino, e mesmo sua insurreição são frutos de tôda uma ideologia que êle esposa: "a verdade", "a justiça" haveriam um dia de vencer. A solidariedade familial começa a aparecer ante o fato de um membro da família estar desfeiteado e ofendido por um "camumbembe". Os parentes do engenho Maravalha, indignados, chegam a pensar em liquidar o ex-servo do coronel José Paulino. O velho Joca dizia: "por mim, êste negro já tinha levado um ensino" (B Com a decadência do engenho Santa Rosa nas mãos de Carlos de Melo, neto do poderoso coronel José Paulino e sobrinho do Dr. Lourenço do engenho Gameleira, se inicia um processo de decadência do prestígio do outrora influente centro de poder. Observa-se que o afastamento do tio Juca, já então mais vinculado à família da mulher, e o certo distanciamento do próprio Dr. Lourenço, talvez temeroso das desavenças havidas na família do 64 p. 286). Um morador do Santa Rosa chega a se oferecer para fazer o serviço: "Se o senhor quizer, seu dotô, faço um servícinho no negro" (B - p. 232) A má vontade das autoridades da vila com o engenho que fôra do velho José Paulino já é evidente. Só porque um carro do Santa 1 65 Rosa "passara cantando por dentro da vila , intimaram o carreiro a se entender com o major" (B - p. 293 ) . Agora as autoridade$ mandam tomar as facas dos homens do Santa Rosa quando estão na vila, e chegam a prender alguns dêles. No engenho decadente, os foreiros se recusam a pagar o fôro. Sabedores de que o Santa Rosa estava "na mão" da usina, dizem que "senhor de engenho não mandava mais ali. Fôsse para o inferno, porque só davam conta à usina" (B - p. 289). E quando o neto de José Paulino queixa-se da invasão de suas cêrcas ao chefe do Pilar, êste se recusa a tomar qualquer providência. Pela primeira vez, o Santa Rosa recorria a delegado para assegurar o que é seu. O seu senhor vendo-se desfeiteado acusa a polícia de "chaleirar" a usina. "E um jornal da capital - diz ainda Carlos de Melo -, do partido de baixo, publicava uma notícia onde dizia que a minha propriedade fôra invadida pela polícia e me chamava de amigo e correligionário" (B - p. 293). Já agora a inimizade com o delegado era aberta. Antes, embora declaradamente "do outro lado o delegado ainda se mantinha fingindo neutralidade" (B - p. 293). O antigo prestígio da família de José Paulino e do Santa Rosa volta à medida em que o dinheiro correr farto da usina Bom Jesus para as obras da igreja, para os luxos da família, para os automóveis e para as amantes do usineiro . Com Juca, restaura-se ainda a própria postura do senhor, ordenando aos servos, distribuindo castigos, fazendo crescer o prestígio político da família. Ele podia dizer que "fiscal na sua balança, ôlho de estranho nos seus negócios, não permitia em absoluto" (U - p. 85). Antes do domínio de Juca no engenho que fôra de seu pai e que êle transformara em usina sabia-se que, pela inépcia do seu sobrinho, a família ali perdera seu comando nos júris, nas eleições. A usina São Félix crescia e açambarcava o poder: "procurassem saber de jurados, de eleitores que não fôssem crias da grande fábrica e encontrariam poucos. Os juris, as eleições, os padres, os juizes, obedeciam à vontade do usineiro" (U - p. 59). Agora já se pensa em fazer Juca deputado, e se o velho comandante mais esclarecido do clã, Dr. Lourenço do Gameleira, nada diz, não concordando com o nôvo empreendimento da família, outros parentes, como o velho Trombone, já agora brigado com os parentes e em constantes alianças com os estranhos da São Félix, "não se conformava com o Juca, um rapaz de ontem, chefiando a família, resolvendo por todos, manobrando com o dinheiro dos outros com aquêle sucesso" (U - p. 94) . "O velho (Trombone) se embriagava com a política. Tudo para êle, no mundo, não se comparava com a sua deputação estadual. Desde a Monarquia que alimentava sua vaidade com a posição po66 lítica. O Dr. Juca lhe arrancara o prestígio da família. Podia ser que quizesse mesmo fazer-se deputado. E o Coronel via a ascensão do parente, pensando na sua queda" (U - p. 163/164). E o melhor partido da desavença tirava o usineiro da São Félix, entregando a Trombone seus eleitores (dizia que "em política quem mandava nêle era o velho do Massangana" (U - p. 164), e moendo em suas esteiras a produção do engenho do velho político, ajudando ainda mais a açodar os ânimos dos membros da família Melo, já que o Dr. Luiz da São Félix esperava, um dia, mandar de vila a vila: de Santa Rita ao Pilar. Na disputa das terras do antigo engenho do coronel Lula, já então de Marreira, pode-se observar o funcionamento do sistema de lealdades. Quando o usineiro da São Félix faz proposta de compra ao antigo servo do Santa Rosa, embora jogando pelo melhor preço, Marreira não esquece de dizer: "Dr. Luiz o engenho é do senhor com a condição. Se o meu compadre Dr. Juca não quizer. Fui criado com aquêle povo e para que dizer não tenho queixa não senhor. O meu compadre, o Dr. Juca não dando o preço que o senhor chegar o engenho é do Dr." (U - p. 146). Embora pensando que, na luta, o "Santa Fé seria de quem melhor oferecesse" (U - p. 149), Marreira não esquece que "a mulher lhe dissera que não devia contrariar o compadre" (U - p. 161). O prestígio do Dr. Juca com o govêrno é admirado por todos, Ele "conseguira do govêrno isenção de impostos para as suas máquinas, e dez anos sem pagar taxas de exportação" (U - p. 143) ; D. Dondon, sua mulher queria "botar escola na usina para ensinar os moleques pequenos. Já havia falado sôbre isto com o Governador. No ano que vinha chegaria uma professôra, paga pelo Estado" (U - p. 191). Embora o tratamento de Juca para com a gente da usina, principalmente os homens do eito, os que não eram operários, fôsse sempre duro, êle achava que o seu vizinho dispensava aos seus trabalhadores um tratamento tirânico. Mas, mesmo assim, não podia deixar de constatar que o povo, inclusive o seu, vivia cheio de admiração pelo homem que veio de outras paragens competir com os donos da várzea. Logo que a usina São Félix começou a crescer, Juca já observava o contrôle do seu rival crescendo também: "procurassem saber de jurados, de eleitores que não fôssem crias da grande fábrica e encontrariam poucos. Os juris, as eleições, os padres, os juizes, obedeciam às vontades do usineiro" (U - p. 59). E Juca trata, imediatamente, de retomar o prestígio do antigo Santa Rosa, não se furtando a colaborar com quantias altas para as obras da igreja, insinuando-se na vida política, aproximando-se das autoridades do Estado para obter vantagens, desenvolvendo todo um 67 5 comportamento de senhor , embora em moldes diferentes daqueles do velho José Paulino e, mesmo, do seu tio Lourenço. Uma figura de importância no desenvolvimento dessa política de contrôle absoluto sôbre as terras e as gentes da usina é o gerente de campo, uma espécie de feitor numa versão mais moderna, incumbido de descobrir as melhores terras para ampliar as plantações, formando novos "partidos", de afastar os moradores das terras úteis àquela ampliação. Quando os moradores de uma região denominada Vertente se vêem empurrados para os tabuleiros, tirados, assim, das terras em que nasceram, onde nasceram seus pais e avós - e "estavam certos de que as terras lhes pertenciam" (U - 199) - repete-se, dentro de outro contexto, uma situação semelhante àquela do mestre seleiro José Amaro, morador do engenho Santa Fé e o coronel Lula de Holanda. Ali, o senhor de engenho dizia ao seu morador: "Quem é que manda neste engenho?" (FM - p. 157); e exige a saída do seleiro que chegou menino naquelas bandas. E é significativa a expressão do caçador amigo de José Amaro quando sabe do problema do mestre, sendo expulso da terra que tem como sua: "Deve haver um direito" (FM - p. 161). José Amaro acha "duro ir morrer fora daquela casa que fôra de sua gente, que sentia como verdadeiramente sua" (FM - p. 161) ; e verifica que "não podia haver direito de pobre" (FM - p. 263), dizendo então: "Leva um homem a vida inteira numa propriedade , cria raiz na terra, e chega uma ordem para botar para fora, como se corta um pé de pau. Isto não é direito" (FM - p. 268). O mestre espera que venha a funcionar em seu favor o "outro" direito, o direito que é feito pelas mãos do cangaceiro, que deve ser o verdadeiro direito. O poder e o prestígio de Juca e da usina Bom Jesus irão perdurar até o momento em que começam a surgir e a se desenvolver outros pïestígios, outros podêres que estão fora de, alcance da tradição, do parentesco e das lealdades, isto é: quando começam a crescer os podêres que emanam do dinheiro, das hipotecas, das firmas americanas, dos fornecedores e de potências novas que se querem igualar aos senhores da várzea. Já agora a fôrça da tradição não é suficiente para manter o status de senhor; e o próprio fracionamento do poder e do seu contrôle , na família Melo, resultantes das desavenças havidas e do despeito pelo empreendimento da usina, colaborou para agravar a crise que arrastará a Bom Jesus e o Dr. Juca. A verificação da situação crítica em que se encontra a emprêsa, motivada , inclusive, pelos gastos de ampliação da usina , leva os parentes e sócios de Juca a julgarem que o empreendimento fôra 6,8 grande demais e a temerem os resultados , já que se dizia que estavam, quase todos , "no fogo". Chegavam êles, então, à conclusão de que a Bom Jesus cairia, inclusive porque havia "os americanos ria frente. E negócio com estrangeiro não era assim tão fácil não, porque vinha o cônsul e o govêrno entrava na dansa " (U - p. 315). Observe-se que a própria solidariedade familial, dentro do grupo que se associou ao negócio , começa a ficar abalada : um dos parentes, temeroso do fracasso e do perigo de perder dinheiro, vende suas ações ao grande concorrente da Bom Jesus, a usina São Félix. A proporção que se constatam os abalos econômicos da usina, com a divulgação e os conseqüentes comentários sôbre as hipotecas que seriam executadas e o crescimento da dívida da emprêsa para com o seu fornecedor e financiador , entra de imediato em evidente declínio o poder e, como decorrência, o prestígio do usineiro que tinha, em alguns anos, restaurado o mando político da família, ameaçado e posteriormente quebrado pela incapacidade do sobrinho em gerir os negócios do grande engenho. Agora, porém, a fôrça da tradição não será suficiente para manter o prestígio. E se a evidente doença de Carlos de Melo funcionou para atenuar qualquer investida que representasse um abalo de proporções tais que arrastasse tôda a família de roldão, agora quase todo o grupo família] está comprometido no processo e elementos estranhos hão que ser incluídos no jogo , sem que se possa contar com qualquer possibilidade de interferência de um membro da família capaz de retomar o comando dos negócios, como antes acontecera com Juca em relação ao sobrinho. Dois dados podem ser apresentados como denunciadores da quebra do prestígio do usineiro, o primeiro relativamente ao próprio povo, o segundo em relação ao govêrno e aos órgãos de imprensa da Capital. Tendo corrido a notícia de que "a usina não era mais do Dr. Juca, que só estava lá esperando o dia da saída" (U - p. 313), o povo invade as terras da usina para buscar água. O vigia da Bom Jesus mata um homem, "... e os jornais da Paraíba noticiam: na usina Bom Jesus mataram um homem por causa de uma carga d'água. O govêrno devia providenciar" (U - p. 313). A notícia é lida em voz alta pelo gerente do barracão da própria usina, homem de confiança e espia do fornecedor , e êle fará de logo a seguinte observação: "Já se fôrã o tempo de usineiro esfolar e matar e ficar esgaravatando os dentes. O govêrno mandava soldados, o govêrno era de homem, não era de fêmea" (U - p. 313). José Marreira, comerciante no Pilar e delegado, vai à procura do Dr. Juca, seu compadre , dizendo ter recebido ordem do chefe de polícia para êle dar conta do criminoso ; o ex-servo do Santa Rosa pede desculpas ao filho do seu antigo senhor: está cumprindo ordens. 69 Juca lê a ordem e diz: "- Pode levar o homem. Eu é que não sou capitão do mato para caçar gente" (U - p. 314) . Mas trata logo de perguntar porque êle não vai pegar os criminosos da São Félix, que anda cheia de bandidos, "gente com trinta anos nas costas" (U - p. 314) . Juca sabia que o chefe de policia vivia em almoços na São Félix. Com a sêca e a fome, os retirantes vindos da caatinga para a mata, dá-se uma grande epidemia que mata muita gente na usina. Quando Juca pede auxílio ao major, prefeito da terra, solicitando remédios , "a resposta fôra aquela : que êle enterrasse os seus defuntos nas suas terras" (U - p. 323) . Os retirantes vão pedir auxílio ao usineiro, e êste, "de pernas bambas, pelo braço de Rafael, chegou ao alpendre para falar com o povo: êle não tinha o que fazer, não tinha mais nada que dar. Não era mais dono..." (U - p. 328) . O barracão, cheio de carne e farinha, está fortemente guardado pelo gerente e por um homem que tinha cometido um crime e que fôra sôlto pelo Dr. Luiz da usina São Félix. Quando o povo invade o barracão para buscar ali a comida, Ricardo tenta abrir a porta- empregado que era do mesmo barracão - e morrerá com o tiro dado pelo "cabra" de confiança do gerente. Morre, assim, o moleque Ricardo, o que fizera greve no Recife, que pensara que o "líder popular" Dr. Pestana - o que "pregava revolução sem ser incomodado pela polícia" (MR - p. 70) - salvaria o povo, como pensava mestre José Amaro do cangaceiro Antônio Silvino; Ricardo, que saira do Santa Rosa para não ser homem do eito, destilador ou carreiro, que tomou parte em meetings na grande cidade, que vira gente morando em cima do mangue, comendo carangueijo e "cuspindo sangue"; Ricardo, que foi operário, que foi prêso para Fernando de Noronha, o "moleque ensinado" do velho Paulino e companheiro de infância de Carlos de Melo, vai morrer abrindo as portas do barracão para os retirantes. Com isto, o Dr. Juca está com a polícia dentro de casa. Além de Ricardo, morreram o gerente do barracão e o "cabra" do rifle. "Um jornal da Paraíba afirmara que o caso da Bom Jesus fôra instigado pelo usineiro, por questões de dívidas" (U - p. 331) . Com a realização de um acôrdo, a São Félix encampou as dívidas da Bom Jesus, "... e tudo entrava na paz de Deus entre a Bom Jesus e a São Felix" (U - p. 333). Agora, "a várzea do Paraíba nas mãos de um só dono" (U - p. 334). Dos sócios de Juca, aquêles que conseguiram se agüentar vão para mais longe, arranjar terras para plantar cana. O velho Dr. Lourenço, que não entrara na sociedade, abriga o irmão que fôra dono do engenho Maravalha. O dono da São Félix pretende, am- 70 pliando os negócios, anexar o engenho de Cazuza Trombone, o parente dos Meio que se tornou inimigo da família e que fornece cana para a São Félix. Na várzea , mandam outros donos, que farão sua justiça, com seus delegados, seus prefeitos e seus deputados, talvez. Se as lealdades, antes , se desenvolviam à base de uma servidão e de uma clientela feita e mantida à base do compadrio, da tradição, do parentesco, elas agora sobreviverão sob outras formas e expedientes que se organizam principalmente em função da maquinaria da usina. De senhores , muitos passam a fornecedores , presos à esteira da usina, vinculados, até mesmo, pelo compadrio, ao diretor da usina. Este, porém, agirá sempre como membro de uma sociedade anônima, e os vínculos daquele tipo servirão, quando muito, para garantir a venda da cana plantada nas roças dos antigos bangüês. Como a clientela, sobrevive a servidão, organizada em estratos bem nítidos: a servidão da usina propriamente dita - os operários que lidam com as máquinas - gozando de alguns privilégios decorrentes do tipo de trabalho que realizam, e o trabalhador do eito, figura que permanece quase inalterada , já que a usina também implica num complexo que exige o latifúndio e a monocultura. 5. O HOMEM E A MULHER As relações entre o homem e a mulher , bem como os status masculino e feminino, tal como se apresentam em nosso material de análise , não fogem muito aos esquemas apresentados nas construções teóricas elaboradas sôbre a sociedade tradicional do Nordeste da cana-de-açúcar. A superioridade masculina, característica do patriarcalismo, dá vazão a tôda uma ideologia sempre externada em fórmulas que a tradição foi sedimentando e que só muito lentamente vão sendo alteradas. Tal superioridade está bem condicionada a um fator que constitui um dado que não se pode deixar de levar em conta. Sem que se venha trazer à consideração as raízes ibéricas e coloniais do fenômeno cuja importância é indiscutível , há que se ponderar o fato de que o contrôle do poder e da riqueza estêve sempre nas mãos do homem, e que êste contrôle veio funcionando assim como um fator relevante no relacionamento daquele com a mulher. A ocorrência do patriarcalismo , do domínio masculino nas camadas superiores, irá influir, talvez por um mecanismo de imitação, nas camadas inferiores , de modo a formar um modêlo social que se impõe e que será extravasado mediante atitudes, comportamentos, 71 estereótipos imprescindíveis à configuração do próprio status masculino. Ao homem das camadas superiores se vincula imediatamente a categoria de senhor, de dono. A idade, a disposição do poder e o seu acatamento pelos demais são reforços para compor o perfil do patriarca, exigindo-se ainda um comportamento, uma postura, entre outras notas características. . Nas camadas mais baixas a idade também concorrerá para a formação de um status especial, quer para o homem quer para a mulher. Verifica-se então o funcionamento de uma estratificação tanto sexual quanto etária. Na sociedade tradicional da cana-de-açúcar, se o senhor é superior ao servo e o homem é superior à mulher, o homem e a mu, lher mais velhos se colocam numa situação de superioridade diante das pessoas mais jovens nos estratos a que pertencem. E conforme funcionem outros elementos, entre os quais se destacam, por exemplo, os laços afetivos, as pessoas mais velhas de uma camada mais baixa poderão merecer certas distinções e acatamentos dos indivíduos mais jovens da camada superior. Assim é que as velhas "amas-de-leite" ou "amas-de-braço" são tratadas com afeto e respeito pelos senhores que ajudaram a criar, a elas sendo concedido até mesmo o direito de criticar-lhes o comportamento, como fazia a velha Generosa com o coronel José Paulino quando êste, lamentando as aventuras do filho, esquece o seu passado de môço também cheio de aventuras com as "cabras" e negras do engenho . O velho José Paulino, como seus irmãos Dr. Lourenço do Gameleira e Joca do Maravalha, seu filho Juca e mesmo seu neto Carlos - para só ficarmos nas figuras masculinas de destaque na família Melo - atuam todo o tempo como homens, como machos, como sêres superiores, diante de suas mulheres, suas filhas e suas servas. Os gritos e palavrões do coronel José Paulino, por exemplo, garantem, como exteriorização, não apenas o seu prestígio de senhor, mas também de homem, diante dos filhos, netos, servos, das muilheres da casa, sejam parentes, sejam as negras de sua cozinha. Para a configuração do status masculino nas camadas superiores, exigem-se vários atributos: a coragem, o poder e seu uso, e o "machismo", quem sabe, um dos traços mais importantes. Um outro traço relevante é aquêle que se refere ao tratamento com as coisas da religião. Se a magnanimidade nas doações às igrejas e festas religiosas é exigida aos senhores ricos e poderosos, exige-se, poroutro lado, um apartamento dos atos pròpriamente litúrgicos, sob pena de graves censuras, já que tais atos são considerados "coisas de mulher". Mestre José Amaro dizia: "não acredito em 72 homem que vive em pé de padre" (FM - p. 43) . "Lula atrazou-se diziam os outros - foi por estas coisas. Só quer viver na igreja (D - p. 196). Pobre, decadente, embora não devesse um tostão a ninguém, Lula de Holanda, que não é homem mulherengo e vive só para a família, está constantemente na igreja confessando e comungando, e tem capela dentro de casa, suas rezas atingindo um certo nível de sofisticação. Sabe-se, e se diz, que no Santa Fé, nas rezas, o coronel Lula, ajudado pelo seu negro de confiança, Floripes, "toca sino e queima incenso". E fala-se do "pegadio" do senhor de engenho com o negro. A iniciação do homem na vida sexual é feita bem cedo, na infância. A Carlos de Melo, bem menino, eram apontadas as mulatinhas que o Dr. Juca, seu tio, "mandava". E o menino tomou parte na mais democrática fraternidade com os filhos dos "cabras" do eito e dos moradores em sessões de intercurso sexual com animais. Os "casos" do Dr. Juca apareciam e a êles eram dadas soluções dentro dos esquemas já convencionais. Sabia-se das aventuras do filho do coronel com filhas dos moradores e mesmo de gente da caatinga. E quando o velho pai resmunga e lamenta o filho doutor vivendo às voltas com "raparigas", a negra Generosa, testemunha da mocidade do velho trata logo de dizer: "Quem fala! Quando era mais moço parecia um pai-d'égua atrás das negras. O seu Juca teve a quem puxar" (ME - p. 174). E' no quarto do tio Juca que o menino Carlos de Melo encontrará uma espécie de santuário masculino. Lá estavam as revistas "proibidas", os livros "para homens", divertimentos que não existiram para os velhos, "os quais exteriorizaram, e quase se poderia dizer que disciplinaram sua masculinidade, principalmente nas "doenças do mundo", curadas pelas "meizinhas" especiais tomadas às escondidas. Mas, dessas doenças, aparentemente vergonhosas, corria a notícia, chegando mesmo a envaidecer seus portadores, os quais, se mais jovens, com elas já podiam ser considerados homens. Os filhos tidos com as negras, as "cabras", eram o testemunho mais veemente da masculinidade e da superioridade social. Os oitenta anos ainda prolíferos do velho Joca, espalhando "testas largas e olhos azuis" pela várzea são constantemente lembrados. Dr. Lourenço do Gameleira, que fugia à regra, talvez porque mais urbano, lamentava quando via os irmãos cheios de filhos naturais e bastardos. Sua mulher, D. Marocas, que viveu na cidade, lugar onde os maridos adulteravam debaixo de sete capas, não se conforma com o comportamento dos homens da família, sempre às voltas com as cabrochas. Ela sabia das proezas do filho Jorge, batia-se contra tudo aquilo, mas criava um filho espúrio de um parente e "botara até nos estudos. O negro chamava-a de mamãe branca" (B - p, 158). 1 73 "A severidade de um tio Lourenço era raríssima - observa Carlos de Melo sôbre os homens da sua família e sôbre os demais senhores -. A maioria dêles estava do outro lado, trocando os leitos de colchão de suas mulheres pelas camas de varas das raparigas" (B - p. 163) . E ainda: "êles tinham êste preconceito contra a castidade. Atribuiam à abstinência uma porção de males" (D p. 192). Aos senhores e seus filhos pertenciam, quase que por direito, as mõças mais bonitas, nos folguedos e bailes; as filhas dos servos e foreiros , agradando os senhores , ajudaram muitos pais a conseguirem alguma ascensão social, como veremos mais adiante. Mesmo com todos os problemas sentimentais que o prendiam à mulher de um primo, branca, bonita, inteligente, acostumada à vida da cidade, Carlos de Melo acompanhou com boa exatidão as exigências sociais que ajudariam a compor o seu papel e a situação de senhor de engenho e de homem, tendo filhos com a lavadeira do engenho e "negociando", quase, a filha de um morador sem importância. A atitude masculina em face dos filhos havidos com as "cabras", as negras, as servas, enfim, nem sempre é a mesma. Como não será a mesma aquela das mulheres diante dos constantes adultérios dos seus maridos, e mesmo dos frutos daqueles. Se alguns reconheciam e ajudavam, até mesmo educando, os filhos de suas aventuras, outros, como o próprio Carlos de Melo, não chegam a distinguir os produtos de seus amôres momentâneos com as mulheres das camadas inferiores, os quais caminharão para a vala comum do eito, da moenda e das tachas de açúcar, aumentando dêsse modo a massa dos servos dos seus próprios pais e avós. D. Neném, mulher do velho Joca do Maravalha, pai tantas vêzes até os oitenta anos, observa, criticando certos homens da família: "Nem isto vocês fazem. Têm coragem de deixar os filhos soltos no mundo. Que os antigos façam isto, vá lá. Mas os moços que alisaram os bancos da academia?" (B - p. 285). Vemos então o funcionamento de uma espécie de espectativa de comportamento quanto aos mais moços , mais instruídos , doutôres, que deveriam assim fugir ao modêlo dos mais velhos, que se acostumaram àquela vida de ter os filhos e largá-los pelo mundo. Mas, quanto a êsse aspecto, os moços não se distinguiram dos velhos, seguindo à risca o modêlo tradicional. E se Carlos de Melo acompanhou o avô e o tio nas demonstrações de "machidão", o filho de Juca, estudante do Recife, em épocas bem mais próximas trará problemas para a família , enredando- se com moradores e "obrigando" a família, num momento de graves problemas econômicos, a "pagar o mal feito" ( quinhentos contos foram dados ao pai da môça), expediente também tradicionalmente utilizado quando a parte "ofen- 74 dida" reclamava direitos - e isto acontecia sempre que se tratava de gente do sertão -, e que naquele momento de descalabro reflete também a impotência da família, já àquela altura com o seu prestígio econômico e social abalado. Em numerosos momentos, pode-se observar as notas específicas do comportamento e dos valores masculinos, a atitude do homem em relação a mulher. E se pode verificar com clareza o uso de expedientes que podem variar conforme as exigências sociais, conforme o que ditavam as normas controladoras da demonstração de masculinidade, de "machismo", atributo que, associado ao poder e à riqueza, compõem o perfil do homem das camadas superiores. Enquanto os mais velhos exibem seus atributos de senhor no reconhecimento público das "cabras" em que "mandavam", nos filhos com as servas e moradoras tidos em idade avançada, os mais moços poderão demonstrar o poder e a virilidade, por exigência de um outro contexto, utilizando outros expedientes. E o Dr. Juca, neste caso, é um bom exemplo. Se na mocidade se sabia das mulheres nas quais êle "mandava", colaborando muitas vêzes para alterar o status de alguns moradores , pais de suas "protegidas ", já usineiro êle encontrará, com o contacto urbano, outras formulas de demonstração. No Santa Rosa, quando mais uma era "passada nos peitos" pelo Dr. Juca, corria entre o povo: "o Dr. Juca vai ficar com mais esta nas costas" (ME - p. 70) . E entenda-se por "costas" não só o ajudar a manter a "ofendida" e talvez sua família, se tal lhe é de algum modo exigido, mas também o débito que êle acrescentará como crédito na sua conta-corrente de senhor e de macho. A fama de femeeiro do filho do coronel José Paulino corre longe. As tias velhas, de outros engenhos, falam, criticam, e o velho pai também lamenta, pensando: "não sei para que servem os estudos. A gente gasta um dinheirão e êles voltam para fazer besteiras desta ordem" (ME - p. 71). A "besteira" em questão era mais uma ..cabra" que- Juca "desencaminhou", e que fêz um escândalo na porta do engenho. Já usineiro, êle associará a demonstração de virilidade, de "machidão", à exibição do prestígio de rico, de proprietário de usina, de dono de automóvel e de palacete na cidade, freqüentando "pensões" grã-finas, cheias de francesas e de polacas. Juca passa a considerar indispensável manter uma postura, na usina, diferente daquela que os seus parentes e êle próprio mantinham nos engenhos. Afinal, pensava, "agora não ficava bem para êle estar metido com cabrochas, perdendo o respeito. Todo o respeito era pouco para sustentar o prestígio, fazendo-se respeitar" (U - p. 190). Na cidade, da "pensão" Peixe-Boi, cujos clientes eram estudantes, caixeiros, senhores de engenho, coronéis donos de bangüês, gente 1 75 menor ou sem muita imaginação e ambição, onde corria cerveja e cuja dona, grotesca e mal educada , porém " sentimental ', trata os fregueses com intimidade e as "meninas " com amor quase materno, da Peixe-Boi Juca passará à "pensão" Mimi, da francesa Jaqueline, cujos clientes eram usineiros importantes e figuras de prestígio na política e nos negócios, onde a champanhe corre como rio e cuja dona, francesa e elegante, sabia da situação de todos. " Ir à pensão Mimi era sinal de boa situação financeira" (U - p. 78). Com outros usineiros, o filho do coronel José Paulino - que, no depoimento da velha Generosa, em môço andava atrás das negras -, passará noites regadas a champanhe, preferindo a "nacional" Clarinda às sabidas estrangeiras , àquela oferecendo um anel de brilhante que ficará famoso na Paraíba, e uma viagem ao Rio de Janeiro. "Açúcar dava anel de brilhante, felicidade a Clarinda solidez a Jaqueline" (U - p. 86), e Juca vê que "a Bom Jesus lhe daria mulheres e mulheres como Clarinda" (U - p. 87). A dona da Peixe-Boi, enciumada com a perda do freguês, o Dr. Juca, agora da usina Bom Jesus, não pode deixar de comentar: "o Dr. Juca crescera a barriga. Porém as francêsas vingariam as suas máguas. Deixasse o açúcar cair. Já vira em Recife usineiro tomando bênção a cachorro" (U - p. 91). Quando o açúcar caiu e Clarinda começou a ficar devendo à pensão Mimi e passou para a Peixe-Boi, se dizia que "a amante do Juca da Bom Jesus estava recebendo" (U - p. 287); falava-se mesmo "que rapariga de usineiro estava dando até para fornecedor" (U - p. 288). Os homens das camadas mais baixas desenvolvem atitudes, cumprem tarefas também configuradoras do status masculino. A tradição da tão apregoada e demonstrada superioridade do homem, a visão do comportamento dos senhores arrastarão os "cabras", os negros, os foreiros, os oficiais, pelos caminhos semelhantes àqueles dos seus senhores, compadres, parentes e patrões. Sabia-se de "cabras" mulherengos e corria por tôda a parte que "homem válido ali na Várzea, não havia um que não fôsse raparigueiro" (U - p. 190), não importa a que camada pertencesse. Carlos de Melo quando pequeno pôde observar a respeito das negras da cozinha do Santa Rosa: "não conheci marido de nenhuma e no entanto viviam de barriga enorme, perpetuando a espécie" (ME - p. 86). Mais tarde, êle saberá que os filhos da negra Avelina eram filhos de fulano e beltrano, mas as ligações, fortuitas ou demoradas eram mais discretas que as dos senhores, - mais discretas, ou melhor dizer: menos importantes -, a discrição sendo quebrada quando o pai da môça "ofendida" podia gritar, apelando para o senhor , e êste, apurando o caso, usando o tronco se necessário, obrigava o "ofensor " a casar . Nas missões, aproveitava-se a ocasião para casar de graça os amancebados. Sabia-se, outrossim, de crimes praticados por questões de mulher. As "cabras" que tiveram, algumas delas, seus dias de glória, vivendo com homens das casas-grandes, sendo "protegidas", quando abandonadas, velhas e feias, sabia -se que passavam para os "cabras", nas beiras de estrada , nas pontas de rua da vila. Assim, de um modo geral , todos, ricos e pobres, senhores e servos, brancos e "cabras", mas homens, defendem sua superioridade diante do outro sexo , exteriorizando-a tanto quanto possível. Um outro aspecto que vale ainda constatar é aquêle do tratamento dos homens para com suas próprias mulheres. A rudeza mesmo dos mais ilustrados senhores para com tôda a família, tratando-a sempre aos gritos, não faz exceção para espôsas e filhas . Daí que se destaque e comente o tratamento do coronel Lula de Holanda relativamente a D. Amélia, inclusive no que diz respeito à própria vida conjugal. Não se fala de aventuras do senhor do Santa Fé, que por isso mesmo é alvo de críticas e até, mesmo , de certas suspeitas por parte da gente mais intrigante. Vitorino e José Amaro , por exemplo , tratam suas mulheres a todo instante de "vaca velha", mandando -as calar a bôca; Dr. Lourenço do Gameleira , embora como os irmãos menos ilustrados que êle, vivia dando gritos em todos, trata sua mulher D. Marocas como a verdadeira dona da casa, ouvindo-a e deixando-a opinar sôbre vários assuntos. E se Vitorino tem fama de debochado, fazendo gracejos e, mesmo, dizendo obscenidades às "cabras " que passam e brincam com êle, sempre gritando , como que a compensar sua pobreza, o célebre refrão: "sou branco", "sou homem ", e "vaca velha" que êle diz à velha Adriana, de quando em vez é abrandado para o carinhoso "minha velha". Mas o Papa-Rabo não dispensa as estórias em que alardeia sua virilidade , onde êle aparece como homem disputado pelas mulheres, "fazendo figura " em festas , nas danças, sobressaindo-se mais que os moços. "Cavalo velho, capim nôvo" (FM - p. 38 ), diz êle. E desenvolve certas "teorias " sôbre mulher: "mulher só anda mesmo no chicote. Isto de tratar a vela de libra, não é comigo. A minha me adivinha os pensamentos " ( FM - p. 272 ). Vitorino exalta e louva o senhor do Engenho Nôvo que "pegou a dêle, amarrou num carro de boi e mandou largar a bicha na bagaceira do sogro" (FM - p. 273 ). Mas reconhece na sua, a velha Adriana, uma "mulher teimosa, de vontade, de opinião" (FM - p. 36), dizendo isto cheio de orgulho. 77 76 Já o seleiro José Amaro, amargurado e doente, não dispensa a mínima palavra de afeto à velha Sinhá, embora nas suas divagações dela se apiade e mesmo admire a sua fibra, respeitando-a sempre. esteiras se admiram do comportamento dos operários, brigando, desfeiteando , por causa de honra de filha. E diziam: "só aos que subiam de condição a honra da família dava trabalho" (U - p. 44). Nas camadas superiores , e como conseqüência dos brios masculinos, a fidelidade feminina está sempre posta em questão como condição indispensável para a manutenção da honra masculina. De um modo geral, as senhoras e suas filhas estão fora de quelquer suspeita e de qualquer observação menos abonadora. Os senhores, os homens, podiam dormir tranqüilos quanto ao comportamento de suas espôsas (e filhas), mesmo quando o fizessem em outros leitos. Também as suas raparigas, as suas "cabras" certas, que com êles tinham filhos, estavam longe de pensar em traí-los, de se passarem para outros. Algumas das amantes certas de senhores chegam a adquirir respeito e importância não só dentro do grupo a que originàriamente pertencem mas até mesmo dentro das grandes famílias. Um irmão do velho José Paulino, nunca tendo casado, teve uma rapariga com quem viveu quase tôda a vida; a mulher, pela importância que tinha, merecia o tratamento de "sinhá" fulana, e todos a respeitavam. Quando Juca, com a usina em decadência, tem notícia que a amante da "pensão" Mimi está "recebendo", seus sofrimentos físicos talvez sejam menores que os sofrimentos morais, vendo a sua honra de homem ferida, os comentários da traição servindo para diminuí-lo ainda mais. Os homens das camadas mais baixas, da "gentalha", não podiam se dar ao luxo de maiores exigências quanto ao acatamento de sua honra masculina. Como já se viu, muito trabalhador do eito, muito "cabra", se viu importante tendo a filha nas mãos dos seus senhores. E certa resignação chega a aparecer quando a filha "cai na vida"; e da resignação chega-se mesmo a certa esperança de melhores dias, quando a filha, saindo do mundo da bagaceira, poderia fazer seu "pé-de-meia" na "vida", vindo a ajudá-los, talvez. Já no momento da usina, além da resignação, muitos pais podiam dizer que "as filhas entregavam o que tinham a quem quisesse, que êles não se apaixonavam pela coisa" (U - p. 44) . Quando a usina exigia-lhes, mais que o bangüê, trabalho de sol a sol todos os dias, "quem era que podia se incomodar com a honra de filha, quem dispunha de tempo para brigar pela virgindade das filhas?" (U - p. 244). E se antes, de algum modo, o senhor de engenho tomava a "paternidade" pelos casos ocorridos, principalmente quando se tratava de gente mais ligada à casa-grande, afilhadas das môças da casa ou mesmo dos senhores, chamando o "ofensor" para casar e, mesmo, obrigando-o, com a usina tal paternalismo caminha para o desaparecimento, e os trabalhadores comuns do eito e das 78 Quase tôdas igualadas no pouco caso e nas traições dos maridos, dos companheiros e até dos amantes, as mulheres da sociedade sob análise nem sempre se enquadram nos modelos teóricamente descritos. As figuras quase diáfanas de quase-princesas das senhoras de engenho, baronesas e viscondessas de vida suntuosa, ou aquelas outras de senhoras boçais e analfabetas, vestidas de camisolões no lazer diário dos cafunés , às voltas com as escravas e servas , ambas as figuras não chegam a corresponder às mulheres da sociedade da várzea do Paraíba , conforme nos é descrita. As mulheres da casa-grande do Santa Rosa não assumem a postura de grandes senhoras , mas conservam a seu modo as características da conduta exigida pelos seus status sociais. Clarisse, mãe de Carlos de Melo, estudou "com as freiras" na cidade, casou, tudo indica, com um parente urbano e morreu assassinada por êle; um homem "nervoso" que acabará seus dias num hospício. A lembrança de Clarisse transforma sua figura num mito, na casa-grande do Santa Rosa; ela é constantemente lembrada, e a sua beleza e bondade, acrescentadas à morte violenta, fazem-na para todos, "uma santa". Maria Menina, que embalou a infância do órfão Carlos de Melo, não estudou como a irmã, mas plantava suas flôres no jardim do engenho, conversava sem "bondade" com as negras da cozinha e com as mulheres dos moradores, criava porcos "de meia" com as filhas do velho Lucindo, antigo morador das terras do engenho, e casou com senhor de engenho como o pai. O sobrinho diz que ela vestia vestidos de passeio quando as parentas da cidade vinham para oengenho, e que estas criticavam os parentes "tabaréus". Outra figura feminina do Santa Rosa que merece destaque é a velha Sinhàzinha, de quem disse o sobrinho: "esta velha seria o tormento de minha meninice" (ME - p. 26) ; e quando êle volta, já bacharel, às terras do avô, aquela será o seu grande algoz, não compreendendo a sua doença, chamando-o de "lezeira", não aceitando um homem se comportando de modo diferente dos padrões de altivez, coragem e capacidade de trabalho, traços indispensáveis para caracterizar o que ela entende por um homem. Irmã da mulher, já falecida, de José Paulino, a velha Sinhàzinha governava tirânicamente o Santa Rosa e todos achavam que só o cunhado "tivera fôlego de lhe suportar às impertinências" (B - p. 25) . Temida por todos, pelo que se pode verificar da análise feita, teria sido Sinhàzinha a mulher do senhor do Engenho Nôvo, amarrada por êste num carro de boi e levada ao engenho 1 79 do pai, conforme comentava Vitorino. Sabe-se que ela vivia separada do marido "há muitos anos" e que criara os sobrinhos, tendo dado os seus engenhos, de um a um, aos filhos. Além de governar o Santa Rosa, a velha Sinhàzinha tem certas "propriedades" dentro do engenho: leirões no quintal, intocáveis, e, sempre, uma negrinha em quem dava beliscões e surras. De uma delas se sabe que foi "dada", e a própria menina dizia: - "Mãe me deu aqui porque estava morrendo de fome" (B p. 27) ; comentava-se que "os cachorros da velha eram mais bem tratados" (B - p. 27) que a cria. Quando o sobrinho, um homem, se apieda da negrinha, a velha suspeita que êle queira "fazer mal" à menina e começa a tecer tôda uma rêde de intrigas. E é ainda aquêle quem observa: "impressionava-me a fôrça daquela mulher no Santa Rosa. E curioso, enquanto o velho José Paulino perdia suas autoridades de chefe, com a idade, ela ficava mais forte, mais ranzinza, mais implicante" (B - p. 52). Na casa-grande do Santa Fé, "que cheirava a rosa murcha, a coisa passada" (B - p. 53), murchavam também as mulheres, que não conversavam com as negras da cozinha, mantendo com todos certa distância, que tocavam piano e sabiam falar francês. D. Amélia levará às últimas conseqüências e manutenção das aparências, vendendo ovos, galinhas, verduras, sem perder a postura de senhora fina que estudou na cidade. Os anéis e trancelins já não existem mais, e a filha D. Neném ficou solteira, pois o pai não admitia casá-la com os homens rudes da várzea ou com um pretendente bacharel, filho de um alfaiate da Capital. E como a filha do mestre José Amaro, a filha de Lula de Holanda ouvirá nas quarta-feiras santas os deboches do povo, nos "serra-a-velha" dirigidos às solteironas. As mulheres da clientela, ou de camadas que não se ajustam exatamente aos estratos alto e baixo, como Adriana de Vitorino e, mesmo, Sinhá de mestre José Amaro, comportam- se, em alguma medida, dentro dos cânones semelhantes aos exigidos pelas camadas superiores. No mesmo caso estão as filhas do velho Lucindo, que eram amigas de Maria Menina e famosas por suas costuras. Tôdas elas não se igualam às negras e às "cabras" da gente da bagaceira ou das pontas de rua. Nada impede Adriana ou Sinhá de caminharem pelas estradas e pela vila, e elas ajudam na manutenção da família, criando galinhas, plantando seus quintais. São respeitadas e acatadas pelas famílias dos engenhos, tratadas dentro de um nível que as distingue da "cabroeira", da gente comum. A atitude feminina em face do comportamento dos homens e dos adultérios dêstes é sempre de conformismo, salvo exceções, como D. Marocas. Seu marido Dr. Lourenço fugia à tradição femeeira 80 da família, e ela critica as parentas por agüentarem, como.as :avós, as infidelidades dos maridos . Enquanto isto D. Neném, mulher de Joca do Maravalha, vai indulgentemente perdoando as constantes infidelidades dêste, e como ela D. Dondon, mulher do Dr. Juca . Esta, porém, almeja para as filhas maridos diferentes do seu. Ela sabe da vida alegre que Juca leva nas pensões, esbanjando dinheiro e saúde, e toma tudo isto como uma provação , sofrendo calada, louvando a operosidade do marido , não admitindo qualquer crítica a êle, defendendo-o, lutando por êle„ quando o vê desprezado e pobre, humilhando-se até, quando se trata de salvá-lo. D. Dondon, filha também ela de senhor de engenho , não estudou na cidade e, quando casada, prefere a vida singela do engenho ao palacete da Paraíba que é para ela "uma espécie de degrêdo" (U. - p. 69). Ela diz que "ali nos engenhos os maridos tinham direitos que elas mulheres respeitavam" (U - é. 96) ; e' quando alguém, alcovitando, conta a sua filha mais velha as proezas paternas e ela se revolta, D. Dondon vai logo explicando que "todos os homens da família eram assim " (U - p . 97) ; ela dizia que "Juca podia fazer o que bem quizesse. Desde que respeitasse a ela e aos filhos" (U - p.98). D. Dondon teme pelo destino das filhas: "não pensava em casar nenhuma delas com gente do engenho" ... "então, botaria as filhas em colégios no Recife para aprender tanta coisa e depois entregava as pobres aos filhos de Mané Gomes, de Alvaro do Aurora, de José do Jardim? Só mesmo um castigo. Casaria as meninas com quem elas bem quizessem " (U - p. 98). O contacto com a vida urbana e a possibilidade que teve` D. Dondon de constatar o rigor do contrôle exercido pelos parentes, principalmente os mais velhos, sôbre as novas formas de comportamento adquiridas por suas filhas, fazem com que ela assuma uma posição de defesa de Maria Augusta e Clarisse, principalmente desta última, numa luta contra os padrões impostos pela sociedade tradicional representada, nesse caso , mais destacadamente, pelas tias velhas e pelas primas solteironas. As filhas de Juca e Dondon sofrerão grandes censuras dos parentes dos engenhos quando êstes sabem das festas que elas freqüentam e dos banhos de mar no veraneio. Tôda uma teia de intrigas se fêz, e as estórias chegam "aos ouvidos da velha Marocas, que pegou da pena e fêz a sua carta à sobrinha. Aquela carta fôra um golpe para D. Dondon" (U p. 241), e ela teme que as filhas fiquem "faladas", tidas como fáceis e namoradeiras. As intrigas começaram, aliás, com o aparecimento- da americana, mulher do químico da usina, que andava a cavalo,-dirigia automóvel e, como se dizia, andava sòzinha com homens que ;não eram o marido. A alegria de Mrs Richard e- sua amizade com 1 81 as filhas do usineiro perturbam os membros femininos da família, que não aceitam "mulher escanchada em cavalos, andando de manhã e de tarde pelos campos, passando de baratinha, fumando cigarro" (U p. 222) jeito, os pais "pediam carta para deixá-las no -hospital". (B.. p. 163). Com o abandono dos senhores, ou as "doenças do mundo", ou a velhice,, degradam-se as mulheres em verdadeiras prostitutas, sobrando, no engenho, para os "cabras" do eito, para os homens mais humildes. As abandonadas pelos senhores passavam por várias desfeitas: "o feitor se vingava, os companheiros tiravam debiques''..' (B - p. 164). "Maria Chica, que tivera filho do Dr. Carlos, que era rapariga mas que vivia como Deus permitia, os cabras tinham desgraçado a pobre de moléstia" (U - p. 119). As primas do Maravalha comentam a imprudência'de Dondon deixando as filhas andarem com a "galega consentindo aquela mulher doida morar em sua própria casa; e temem que Juca se passe para ela, mulherengo como ele é. Todo o "tribunal familiar" está de pé para defender a honra das meninas , censurando os pais que consentem naquele . absurdo. Juca a principio fica temeroso, mas depois consente na amizade, já que tinha outros problemas para se preocupar. Mas a americana o que queria "era levar, como marido, os seus dias de trabalho forçado da melhor. maneira possível" (U, p..222). Observando a reação das mulheres do povo quanto ao comportamento feminino , verifica-se que de um modo geral não se faz maiores distinções entre as casadas e as não casadas, mesmo em se tratando de mulheres prostituídas. "As prostitutas do engenho. viviam em pé de igualdade com as casadas. Eram do mesmo nível, da mesma sociedade. As moças não viram a cara e nem os pais proibiam, as suas visitas. Vinham às festas de família , às novenas . e não ligavam" (B - p.164) . Como já foi verificado, quando da análise do comportamento masculino, a prostituição chega mesmo a constituir um canal de ascensão social -- dos raros ali - pelo que representa de relativa libertação da mulher dos duros trabalhos que ela realiza no regime de servidão do engenho, e pelo que pode representar, ainda, de ajuda na subsistência da família. As "protegidas" dos senhores, quando caíam em suas boas graças, podiam conseguir a dispensa do pagamento do fôro para os seus pais, dispensa do eito para êstes e para os irmãos. E "comiam mais. Vinha açúcar do engenho, o barracão mandava as coisas de graça... A menina, na cama de varas, garantia êsses luxos" (B p. 164). Quando a prostituição se tornava um fato consumado, "os pais não brigavam por isto. Só não perdoavam que voltassem para casa de mãos abanando, caindo-lhes nas costas com ` doenças. Viessem, porém, arrumadas, com presentes para os seus e teriam porta aberta, e consideração" . . . "As caboclas que triunfavam na vida, voltavam de sapatos finos, com cortes de sêdas para as irmãs, Passavam dias, enchiam de inveja as amigas de pés no chão, falando mal da bagaceira" (B - p. 163). Quando algumas voltavam cheias de doenças, tentava-se a cura pelas garrafadas, e quando não havia 82 Pelo que se pode ver , as marcas do patriarcalismo na sociedade da várzea pràticamente se estendem por tôdas as . camadas sociais, tomando nuances mais fortes à medida em que se chega ao estrato mais alto, e sobrevivem quase intactas às repercussões na organização social resultantes das alterações tecnológicas que a usina traz, substituindo. o bangüê. E se, com a usina, os pais das camadas mais inferiores nada mais podem fazer pela honra das filhas, os operários resistirão defendendo-a. Nas camadas mais altas, o comportamento tradicional, numa atitude de autêntica resistência à mudança, defenderá acirradam. ente seus padrões de comportamento masculino e feminino, :quer criticando e ao mesmo tempo aceitando e, até, mesmo, justificando o "machismo", pagando a honra da môça do estrato inferior tirada por um; dos seus membros, , quer lutando por afastar a influência estranha junto aos membros femininos mais jovens do seu grupo. Vale ainda observar os aspectos que dizem respeito à criança na sociedade da várzea; o processo de socialização e de enculturação, o relacionamento da criança com o adulto e com a própria criança; -as diferenças mantidas pela estratificação social. . Igualadas aos anjos, quando loiros e doentes , como a prima Lili de Carlos de Melo, as crianças transformam-se em capetas quando pretas,. filhas de gente do eito, dos moradores, dos servos, principalmente os moleques que roubam laranja e fazem gaitadas. Do próprio neto do coronel do Santa Rosa se apiedam todos, parentes , negras da cozinha , moradores , por ser êle frágil, por ter perdido a. mãe em circunstâncias tão dolorosas. E todos ficam atentos para os remédios e os resguardos do menino doente. A negra que criou Clarisse, mãe do menino, chora por aquêle que era para ela uma espécie de neto; mais adiante, irá defendê-lo dos castigos. Mais "taludo", menos doente, Carlos de Melo irá aprender a vida, os adultos e o sexo, na convivência quase fraterna -com- os moleques da bagaceira, nos banhos de - rio, nas caçadas de passarinho, nas brincadeiras de "bando de cangaceiros" uma das preferidas -, nas precoces iniciações no sexo, com os animais,, bem como nas estó- 1 83 rias obscenas de Zé Guedes, a quem êle chama de seu "mestre da vida". As "teorias pedagógicas" da velha Sinhàzinha atingem-no, como atingiram a negrinha Josefa , objeto dos beliscões e das surras; mas, de um modo geral, havia displicência na educação da criança, principalmente dos meninos "machos", deixados a aprender na própria experimentação e observação da vida diária e através das conversas dos mais velhos sôbre tudo e sôbre todos. O "moleque ensinado" do coronel José Paulino que aprendeu a ver as horas e a escrever mais depressa que o neto do senhor-, assim como seus irmãos testemunharão , no vão comum em que dormem, na "rua" da casa-grande, a negra Avelina, sua mãe, deitando-se com os homens; nas dores do parto; nas conversas com as outras negras. O terror das estórias de assombração embala os meninos, tanto das casas-grandes como dos vãos e das casas de taipa. O terror das escolas, a dura pedagogia da palmatória e das discriminações, trará, por exemplo, para Carlos de Meio - cujas vivências estão tão nítidas na escola de Itabaiana o horror do colégio, do professor, do livro, da lição. As "primeiras letras", aprendidas pelo neto do senhor do Santa Rosa na casa de "um doutor" que viera passar uns tempos no Pilar, serão continuadas numa escola freqüentada pelos meninos da gente pobre. E êle lembra: "havia para mim um regime de exceção. Não brigavam comigo. Existia um copo separado para eu beber água, e um tamborete de palhinha para o neto do Coronel José Paulino. Os outros meninos sentavam-se em caixões de gás " (ME - p. 53). E se o "sinhôzinho" não levava bolos, tinha porém o direito de dá-los nos competidores, quando acertava. E êle via que suas "vítimas" não lhe tinham raiva. A passagem dolorosa do "Doidinho" pelo Instituto Nossa Senhora do Carmo de Itabaiana, cujo diretor era o professor Maciel, sobrinho do poeta Maciel Monteiro, é tôda marcada por uma experiência que êle nunca esquecerá. Na escola, logo que chegam os alunos, o diretor vai dizendo: "aqui êles endireitam, saem feitos " (D - p gente . 7) Carlos de Meio tinha então doze anos, estava no segundo livro de Felisberto de Carvalho e na tabuada de multiplicar. A importáncia e a riqueza do avô e a 'hipocrisia do diretor não foram suficientes para livrá-lo de duras provas e terríveis testemunhos. As injustiças, a "carícia indiferente, sem calor, uma carícia profissional de mulher de diretor" (D - p. 16), a falsa aparência de tudo, a sujeira: os percevejos, os piolhos, os lençóis imundos, a visão das experiências homossexuais dos meninos, as iniciações de muitos dêlês com a cozinheira da escola e a proteção desta para com os "pre- 84 feridos", os castigos, as prisões e o próprio apelido - Doidinho são vivências que o menino de engenho ganha na escola triste e sombria da cidadezinha do interior. 6. OS VALORES SOCIAIS: DO COTIDIANO ÀS ULTIMIDADES A tradição, bem como os mecanismos que se armam para salvaguardar o status quo são os principais responsáveis pela relativa estabilidade de todos os valores, a inserção de outros ingredientes no contexto sócio-cultural não chegando mesmo a alterá-lo em profundidade, influindo tão-só na medida em que se consegue absorvêlos ou readaptá -los convenientemente àquilo que se poderia chamar de valores profundos ou fundamentais. Tais valores, no que se referem, por exemplo, aos indivíduos e aos grupos, vão criar estereótipos ou categorias as mais importantes, com respeito à posição ocupada pelo indivíduo ou pelo grupo no comando da vida econômica, política e jurídica, bem como às origens sociais, à raça, à idade, ao sexo. Quando analisamos os aspectos que mais de perto se referem à estratificação social e ao leve processo de mobilidade impelido pelo surgimento da usina, observamos o funcionamento de alguns valores sociais sôbre os quais repousavam, entre outros, os conceitos de senhor, de servo, de "camumbembe", de "operário", de gente do eito, de homem, de mulher e de criança, de velho e de môço, de letrado e analfabeto, todos, afinal, sintetizáveis no que bem se pode chamar de valor-pessoa. Importa agora verificar o que estamos chamando de valores do cotidiano, assim compreendidos todos aquêles aspectos que se vinculam aos modos de fazer o dia-a-dia, às soluções para os problemas da vida e da saúde, às crenças e mitos, à vida religiosa institucionalizada ou diluída na mítica e na magia , ao lazer, à alimentação e bem assim aos problemas escatológicos da morte e da sobrevivência. A existência da capela ao lado da casa-grande, da senzala ou da "rua" e do engenho prôpriamente dito, e da casa dos santos dentro mesmo da casa-grande não faz com que se possa dizer que a religiosidade, dentro dos modelos institucionais, constitua elemento marcante na vida da sociedade analisada. Já se teve ocasião de mostrar, em momentos anteriores, que tanto no engenho como na usina a presença da capela no conjunto arquitetônico daquele tipo de comunidade não exprime uma maior adequação da sociedade aos valores religiosos canônicamente constituídos. 1 85 ciosa: "as,. negras ficavam pela cozinha, sentadas, conversando em cochicho sôbre o dia. Não se tomava banho de rio para não se ficar nu na frente um do outro Ï Não se judiava com os animais. Não se chamava nome a ninguém" (ME - p. 66). Se José Paulino' justifica a falta de capela no Santa Rosa no fato do 'engenho ficar perto da vila, o usineiro da São Félix ostenta a riqueza da usina construindo a capela dentro dos seus domínios, assim evitando que os seus trabalhadores percam tempo indo rezar na vila. De um modo geral, tôda a vida religiosa está mesclada de elementos constituídos pela cultura folk; assim, por exemplo, a história sagrada é reinterpretada dentro das sugestões do meio, a religião iuanife3tando-se mui.o mais através sentimentos de mêdo e dor que alegria, esperança e salvação. O culto doméstico assume uma importância tôda especial, principalmente na Semana Santa, nas horas de perigo das enchentes, das doenças.e dos negócios. O oratório do Santa Rosa apresentava-se às crianças como um lugar de mistério, dos santos traspassados de setas, de rostos sofridos de santos, matando diabos de asas de morcêgo. As únicas alegrias nesse recanto de sofrimento ("o quarto dos santos vivia fechado") (ME - p. 64) eram um São João com seu carneirinho manso que o menino Carlos de Melo associava ao seu carneiro Jasmim e "um menino Jesus que era um encanto, um menino bonito com olhos azuis da prima Lili e um sorriso bonzinho na bôca. Trazia numa das mãos um longo bastão de ouro e na outra a bola do mundo. Se aquela bola caisse o mundo se acabava Mas o nosso menino, vestido de manto azul estrelado, trazia por debaixo de suas vestes uma rolinha bicuda de criança. E nós levantávamos o seu manto de quando em vez, espantados que a gente do céu também precisasse daquelas ' coisas " (ME - p. 63) . Do que os adultos falavam compreendiam as crianças que Jesus Cristo era alguém diferente de Deus. Para elas, Deus era um homem de barba grande, Jesus, um rapaz, e se Deus não nascera, Jesus; como todo mundo, teve uma mãe, aprendeu a ler, levou carão dos mais velhos e foi menino. Na Semana Santa, as narrativas do sofrimento de Jesus, a coroa de espinhos, ás lanças, sangue e feridas, todo o martírio contado cria um clima especial de espanto nas crianças e de associação daquele sofrimento com os castigos do tronco, das palmatórias. Também nessa época, "os moradores vinham então pedir o jejum, em bando .. Davam-lhes bacalhau e farinha. Bles saíam com a mulher e os filhos rôtos, de saco nas costas, como se estivessem fazendo um número da Via-Sacra" (ME - p. 65/66). Para aSexta-Feira Santa o engenho recebia "peixe fresco da cidade e parentes: de outros engenhos para jejuar conosco" (ME p. -- 65). Segundo, ainda, o depoimento de Carlos de Melo, comiase uma só vez, mas "muito mais do que nos outros dias" (ME p. 65). Naquele dia, as proibições eram grandes: tentava-se lavar os pecados de uma só vez, assumindo uma postura discreta, silen- 86 Na casa-grande, durante a Semana Santa, mantinha-se "o santuário coberto de prêto e as estampas viradas tôdas para a parede. Os santos estavam com vergonha de olhar para o mundo" (ME 67 F À. Paixão eram acrescentados outros elementos interpretativos. Dizia-se que "se o padre na missa do sábado não achasse a Aleluia, o mundo se acabaria de uma vez" (ME - p. 65). Além do verdadeiro cerimonial da Semana Santa, a religião doméstica do Santa Rosa admite as promessas e novenas, as contribuições. para as festas da igreja do Pilar. Do coronel José Paulno, diz o neto que "não era um devoto. A religião dêle não conhecia a penitência e esquecia alguns mandamentos da lei de Deus" (ME -- p; 62). De um modo geral, não iam à missa, salvo no Natal, não confessavam nem comungavam. "0 povo pobre do eito só se confessava mesmo na hora da morte, quando, à revelia dêles, mandavam chamar o padre às carreiras" (ME - p. 64). Maria Menina ensinava o Padre Nosso às crianças; o coronel, embora não rezasse, não tirava da bôca os "se-Deus-quiser" e os "tenho-fé-emNossa Senhora". .. Ir 1 Como já se teve ocasião de destacar, a atitude religiosa - no sentido mais estrito de freqüência à igreja e aos sacramentos - era para o homem, um traço pouco masculino. O homem "em pé de padre" era criticado; não se "acreditava" nêle. A religiosidade da família do Santa Fé e, especialmente, do próprio coronel Lula causava estranheza a, todos; os detalhes do incenso, do sacristão e do sino nas orações domésticas ajudando a aumentar o clima de relativa suspeita em tôrno da família que, nos assuntos de religião, agia de modo diferente. Nas terras do Santa Rosa, e, mais tarde, da Bom Jesus, as novenas e as promessas só surgiam nas horas de grandes dificuldades. Nas casas dos pobres, quando havia novena, as portas ficavam abertas para todos, inclusive para as "raparigas" que vinham rezar com as casadas e as môças. Num monumento de Nossa Senhora da Conceição, colocado num alto perto da vila do Pilar (não se indica quem construiu nem porquê), apareciam peregrinos para pagar promessas, para "soltar os seus fogos do ar, acender as suas velas e agradecer a N. S. pelo filho curado, pelo marido são, pelos roçados colhidos" (U - p. 295). Na crise da Bom Jesus, D. Dondon também faz suas promessas pela. saúde do marido e pela melhoria dos negócios, indo ao alto rezar com as suas negras, como antes vinha fazendo dentro de casa, 1 87 no seu oratório. Era' "quase uma légua a pé, mas só valia mesmo subir ao Alto da Conceição com os pés descalços, sofrendo com a subida, deixar que as pedrinhas da caatinga furassem os pés dos pedintes . D. Dondon tirava os sapatos, tirava as meias, e as negras, pela primeira vez, viam aquêles pés brancos, pisando na terra que elas pisavam" (U - p. 294/295) E "o povo das proximidades vinha ver a usineira" (U p 295). Os moradores do Alto gozavam "dos privilégios da vizinhança, como se fôsse um serviço sagrado.: Até lá nunca foram os feitores do banguê e nem os vigias da usina" (U _ p. 295) . Um negro velho, morador do Alto da Conceição, " andava de opa pelas estradas " (U p. 295), recolhendo esmolas . Sabia-se que fôra. escravo e que tinha "coisas" com os meninos que "papavam" as esmolas recolhidas. E Ricardo observa: "no entanto, na frente do negro velho ninguém ousava uma palavra, um dito safado ... Entre os pequenos, Manuel Pereira era quase tido como um padre. Aquela opa até os joelhos, aquela coroa de santa dentro do prato com rosas davam ao sodomita um prestígio de sacerdote. Tomavam-lhe a bênção" (U p. 17). Outro sacerdote leigo nas terras dos Melo é o negro Feliciano que aconselhava, desempatava brigas e "era o único homem que tirava reza, que acompanhava a devoção" (U - p . 155). É ainda Ricardo quem informa: "feiticeiro não existia naquelas bandas. O Deus dos negros era a mesmo dos brancos. Ninguém sabia de xangô, das latomias dos catimbós" (U - p. 151) . Contudo,, D. Dondon, nas horas difíceis, apelará para uma curandeira da vila de Santa Rita, da qual se dizia que era capaz de, prodígios. A família, quando soube, começou a criticar. D. Neném dizia: "como era que Dondon saía de seus cuidados para consultar uma negra atrevida e pedir conselhos a uma filha de Romana, negra cativa"? (U - p. 297) . Ainda sôbre o velho Feliciano se sabe que , nos tempos de coronel José Paulino, êle "era tido na conta de gente, respeitado pelos feitores. A casa do negro era a igreja do povo. E o pastor mei ecia tôdas as regalias" (U p. 151) . No tempo do Dr. Juca, com a expansão dos "partidos" da usina, o velho é obrigado a se mudar para os altos. Faz-se procissão, os santos cobertos com as toalhas de labirinto trazidas pelas mulheres que cantavam ladainhas. Sabe-se de pragas rogadas pelo velho sacerdote leigo ao usineiro. Depois, aquelas se atribui a derrocada da usina.- Em tôrno do velho Feliciano são tecidas estórias fantásticas: êle teria prendido os santos no oratório e o povo só queria rezar no seu São Sebastião, na sua Santa Luzia. E comentava-se que "o negro prendera os santos para poder melhor se encontrar com o demônio. Os santos estavam escravos, trancados no san- tuário" (U - p. 154). Quando o casebre do velho se incendeia, logo são feitas interpretações, ingressando Feliciano no mundo fantástico do povo da várzea. O mundo das crenças e dos mitos dos homens, mulheres e crianças da várzea, principalmente das camadas mais baixas, sem excluir de todo os membros das famílias dominantes, movia-se dentro do fantástico, construído não apenas com as reinterpretações dos mistérios e da liturgia da Igreja, mas através da imaginação ajudada pelos incitamentos do próprio ambiente. A igreja católica, figurada para muitos no padre politiqueiro, subalterno aos "grandes", sempre pedindo dinheiro para as obras da igreja, não corresponde suficientemente ao apêlo do sobrenatural que a ambiência excita e que a tradição acumulou e se encarregou de oferecer, muitas vêzes como solução necessária para preencher a monotonia do cotidiano, assim ajudando ou favorecendo o conformismo como um verdadeiro fator de resistência à mudança. Aos podêres dos sacerdotes leigos e tôda a aura de mistério e sacralidade que os envolve, juntam-se outras crenças associadas a fenômenos mágicos nas lendas dos bichos-papões, das mulas-semcabeça, dos bichos-carrapatus, motivos de conversas nas cozinhas, nas beiras de estrada, nas visitas das comadres. Os bichos terríveis, identificados, pessoalizados, algumas vêzes, funcionavam cotidianamente na pedagogia do sono das crianças, das fugas dos peraltas, dos "mal-feitos" dos meninos. Lobisomens eram José Cotia, comprador de ovos, muito pálido, evitando o sol e por isso só andando de noite; e o mestre José Amaro. Seus "encantamentos" foram "vistos" por muita gente. A palidez do primeiro, a inchação e a epilepsia do segundo, o andar pelas estradas de noite de ambos eram indícios seguros: lobisomens. E se dizia que a "fôrça" que tinham "não era dêles". Os "papafigos" - assim também chamados - comiam fígado de menino, tomavam banho com sangue de criança de peito, chupavam os cavalos no pescoço. Quando um padre encontrou um lobisomem na estrada - contava-se - tirou a caixinha que levava com a hóstia consagrada para uma extrema-unção e apontou para o "bicho": "ouviu o baque de um corpo todo e um gemido comprido de moribundo ... No outro dia encontraram José Cotia estendido na estrada" (ME - p. 75) . José Amaro, além dos problemas da doença da filha, da pobreza, de morador do Santa Rosa à beira da expulsão, arrasta a fama de lobisomem; o assunto corria por tôda a parte, comentavam seus passeios noturnos, e os ataques de que era acometido ajudavam a aumentar o mêdo que êle despertava, mêdo que chegava a afetar sua própria mulher. 88 89 Os detalhes das estórias de lobisomem faziam com que o "menino de engenho" acreditasse "nêle com mais convicção do que acreditava em Deus" (ME - p. 76). "Pintavam o lobisomem com uma realidade tão da terra que era mesmo que eu ter visto. De Deus, tinha-se uma idéia vaga de sua pessoa" (ME - p, 77) . Mas outros "bichos" "existiam" para assustar as crianças, para "chamar" seus sonos. Nas matas estavam o bicho-carrapatu, a cabra cabriola e o caipora, encontrados pelos caçadores. "A burra de padre andava tinindo as correntes de suas patas pelas porteiras distantes" (ME - p. 77) ; os zumbis andavam "encarnando" nos porcos e nos bois. Por isso, quando boi morria não se enterrava, jogava-se para os urubus, para que êles não se transformassem em zumbis, Ao fantástico dos sêres sobrenaturais típicos das matas, das estradas, das terras do engenho juntavam-se as figuras extraordinárias das "estórias de trancoso" das pretas velhas; as estórias de palácios, de reis e rainhas, de florestas e rios, associados pelas crianças às casas-grandes, aos senhores de engenho, à mata do Rôlo, ao Paraíba. Daí que Carlos de Melo recorde: a velha contadeira de estórias do seu tempo de menino no Santa Rosa, a velha Totonha, dava "côr local... nos seus descritivos" (ME - p. 80). As adivinhações e associações também concorrem para encher o cotidiano da gente dos engenhos, das casas-grandes e dos casebres. As nuvens "carneirinhos de Deus" indicam chuva; "judiar" de bichos, principalmente de passarinhos, "bota" as pessoas para o inferno. Meninos pequenos quando morriam os "anjos" - eram enterrados, se "pagãos", nas porteiras. Os "doidos" eram tratados como sêres especiais, quase sagrados e se dizia que "ofensa de doido não doía em ninguém" (FM -- p. 152). Um "preceito" muito seguido era aquêle que mandava as "bem-casadas" prepararem os ramos das noivas. Grandes eram as proibições, os resguardos, nas doenças. E a medicina caseira dos engenhos resolvia todos os problemas. No Santa Rosa, o senhor de engenho dava os remédios e prescrevia os cuidados. Ali as moléstias "tinham o seu diagnóstico e a medicina certa: sarampo, bexiga-doida, papeira, sangue nôvo; saindo dali era febre. O velho José Paulino tratava de tudo, fazia sinapismos de mostarda, dava banhos quentes, óleo de rícino, jaracatiá para vermes, quinino para sezões. Curava assim os negros, os netos, os trabalhadores. E lancetava furúnculos" (ME - p. 123/124). Tudo isto fazia parte da sua grande e complexa tarefa de dono do engenho e senhor de sua gente. Para os "puxados", tomava-se vomitório de cebola cem-cem, e as benzeduras eram encomendadas às rezadeiras de fama; os chás ''0 e as purgas também faziam os seus efeitos e eram quase sempre exaltados e prescritos pelos que já tinham positivado seus resultados . Quando as bexigas atacavam , isolavam os que caíam, bem longe de todos , e havia um mêdo geral. Os que sobreviviam "lavavam" as mazelas nos banhos de rio. Os banhos de poço eram recomendados para os que queriam ter saúde; e os remédios para "o sangue", as beberagens , eram postas a dormir no sereno e tomadas em jejum, antes do banho. Também as comidas tinham suas indicações e seus perigos. Assim : carne de preá "é comida carregada . Para quem tem ferida é mesmo que veneno" ( FM - p. 42). Para convalescentes, a comida indicada é "criação nova para doente " ( FM - p. 122). Com a usina , os doentes da terra ainda vão ser tratados pela casa- grande. D. Dondon , vendo o sofrimento do povo, pede ao marido uma "caixa de homeopatia do Dr . Sabino com o livro que ensinava a aplicação dos remédios ... moradores vinham de muito longe para consultar as mulheres e os filhos que ficavam em casa. Falavam sempre de morrinha pelo corpo , de dores nas pernas, de barriga dura, de dor de cadeiras . Muitos chegavam aflitos para que ela desse um jeito às mulheres, que estavam aperreadas sem que pudessem se aliviar dos filhos " (U - p. 68). É ainda de observar que se tinha, ali, um vago entendimento a respeito da salubridade ou insalubridade das terras. As da várzea, sabia-se, tinham "melhores ares " que as do engenho Gameleira e da Goiana : " dava impaludismo nos que moravam por perto dos alagadiços" ( B - p. 151 ), e, com a usina, dizia-se que o Paraíba ficara infestado de doenças trazidas pela sujeira. O mêdo e ao mesmo tempo um certo interêsse ou atração exercida pela doença e pela morte , parece, ocupavam talvez mais que as festas - os cocos, as danças, as festas domésticas e religiosas -- a atenção e os comentários das pessoas de tôdas as camadas sociais. As comemorações das "botadas " nos engenhos , as inaugurações nas usinas , os casamentos nas casas - grandes, as festas tradicionais de São João são hiatos no cotidiano do eito , da moenda , dos tachos de açúcar , das caldeiras , dos armazéns. E a festa da Semana Santa, pelo modo como se coloca , exerce um fascínio especial, a morte e o sofrimento do Cristo como que aliviando o pêso do sofrimento, da pobreza , da doença. A morte entra no cotidiano para ser tratada de modo a preencher a monotonia , agitando um pouco o compasso lento da vida rural. A prima Lili de Carlos de Melo, loira e branca como um anjo ("esta menina não se cria , diziam as negras" ( ME - p. 27), foi 1 91 enterrada num "caixão branquinho, cheio de rosas" (ME - p. 28) e se dizia que foi para o céu, para onde iam as crianças, os inocentes. - Lula de Holanda, tão devoto e tão soberano, sempre pensando na vida passageira na "ínfima terra que pisava" (FM p. 221), sempre demonstrando sua superioridade diante dos homens e, por certo, sua qualificação diante de Deus, foi enterrado como pobre. E ninguém se lembrou de dizer para onde êle iria, talvez admitindo que as orações de tôda uma vida garantissem ao velho um lugar entre os justos. O velho José Paulino, chorado pelos trabalhadores, pelos que receberam seus gritos, seus xingamentos, seu bacalhau e sua farinha, "iria para o céu. Ursulino não. O que dava nos negros, o diabo viera buscá-lo" (B - p. 174). A rudeza daquela vida não permitia maiores escatologias. Vendo cair o caixão do coronel senhor do engenho Santa Rosa na terra molhada pela mesma chuva que fazia crescer os canaviais, o seu neto, malgrado bacharel, não teve outro comentário senão a metáfora agrícola: "tinham plantado meu avô" (B - p. 175). 92 Capítulo IV CICLO DO CANGAÇO, MISTICISMO E SÊCA Continua a correr neste CANGACEIROS o rio de vida que te n as suas nascentes em meu anterior romance PEDRA BONITA. E o sertão dos santos e dos cangaceiros, dos que matam e rezam com a mesma crueza e a mesma humanidade. JOSÉ LINS DO RÊGO O fanatismo religioso e o cangaço são fenômenos típicos de uma sociedade formada à base de atividades econômicas esporádicas, constantemente abalada pela sêca e pelas lutas políticas miúdas, -oprimida pelo latifúndio, arraigada a um tipo muito característico de esprit de corps responsável por um peculiar conceito de honra e de justiça. A vila em que se desenrola a primeira parte de Pedra Bonita a vila do Assu - é o típico lugarejo de beira de caatinga. Ali não há atividade econômica regular. A feira semanal atrai os produtos básicos da alimentação do Nordeste sêco: farinha, rapadura, carne sêca, além da aguardente. O único homem "rico" da terra compra, para descaroçar, o algodão produzido pelas pequenas lavouras das áreas rurais circunvizinhas. Afora a feira semanal, o centro econômico da vila é a "venda" e a loja do coronel, dono da descaroçadeira de algodão e prefeito da vila, proprietário da única habitação digna de destaque: o sobrado de janelas de vidro que, com a igreja, formam as duas únicas "coisas grandes" da vila. No mais, tudo é pequeno, a terra e a gente: "a vila do Assu não opunha os homens uns contra os outros pela riqueza" (PB - p. 14) . A solidão e a tristeza do lugar, segundo a imaginação popular, era decorrente do episódio da Pedra Bonita, fantasma constante a aterrar a gente do Assu: "Há caveira de burro enterrada por aqui" ... ,o sangue dos meninos, o inocentes que êles mataram deram nisso" (PB - p. 132) . .95 A manifestação de fanatismo religioso ocorrido nas proximidades da vila do Assu , na Pedra Bonita , teria sido desbaratada por fôrça que saiu da vila, e como tal o povo e a terra ficaram estigmatizados, marcados pelo atraso e pela tristeza , pelo marasmo e pela penúria. Tôdas as tentativas de salvação tinham sido baldadas, se dizia; outros lugares floresciam, prosperavam; a vila do Assu continuava a mesma, "penando seu destino " de responsável pelo "sangue de inocentes " derramado cem anos antes na Pedra Bonita. A grande oportunidade chegou um dia com os engenheiros da estrada de ferro: seria a prosperidade, a alegria; a vila do Assu teria trem, seria conhecida. Um grupo de cangaço ataca o acampamento dos engenheiros que faziam os estudos para a localização da estrada, e êles deixam a vila . O Assu continuaria o mesmo, a pagar a "sua sina" de obscuridade, de fim de mundo. O estigma que marca a vila talvez concorra para que os homens não se oponham pela riqueza e as barreiras sociais quase inexistam. O coronel local é um chefe político sem grandes pretensões. Enriquecendo, ao que parece, no pequeno comércio, trata de descaroçar o algodão e fazer dinheiro na loja e na venda. Não manipula o mando de maneira a caracterizar-se como "o coronel" todo-poderoso, dispondo da vida da gente do lugar. Se detém as preferências e simpatias de uma facção do povo da vila, isto é decorrência de uma velha briga com o coletor a respeito de uma festa da padroeira. Há vinte anos eram inimigos ; cada qual cuidava de si: o coronel enriquecendo, o major cuidando do seu trabalho e dos seus pássaros. Não havia nesses inimigos ódio profundo. Interessa ao coronel enriquecer o mais rápido possível e sair daquele "ôco do mundo". Ele já tem fazenda nas proximidades, algum gado, filhos estudando na cidade ... As outras pessoas que, com o coronel, poderiam estar nos estratos mais altos daquela sociedade estão ali colocadas em função do papel social que representam: o padre e o juiz. O padre, vocacionado desde a infância para o sacerdócio, tem origens nas camadas médias da sociedade (o pai fôra juiz municipal na zona canavieira e o queria advogado no fôro ), mas a freguesia paupérrima, o desinterêsse do povo mesmo para as coisas da religião, sua fidelidade aos princípios ético-religiosos fazem-no um pobre vigário sem prestígio político, sem poder. Poderia ser bispo, diz dêle a irmã quando o visita, mas prefere apascentar as suas raras e obedientes ovelhas : menos de dez mulheres, as únicas freqüentadoras assíduas da igreja . Ele imprime respeito pela extremada bondade, raramente tomando conhecimento dos pequenos acontecimentos da vila. Prefere o silêncio da velha igreja de imagens grandes e belas que ninguém sabe quando e como vieram parar ali. 9C Contudo não se lhe pode negar a coragem , criando um menino dos Vieira , família também ela estigmatizada , responsável pelo massacre da Pedra Bonita - um dos seus antepassados teria chamado .os soldados para dizimar os beatos e penitentes da Pedra -, odiada pelo povo do Assu, para quem aquela gente trazia agouro e infelicidade. Tôda a vila reprova a atitude do padre que tem em sua casa "uma cobra", um membro da família maldita. Ninguém ousa , porém, tomar uma posição frontal , limitando - se a temer os perigos da preponto de encontro sença do menino . Os "homens da tamarineira " de certa parte da população masculina - maledicentes , não poupam o padre de calúnias, difamando-o com a zeladora . O tempo, as atitudes e o comportamento do vigário incumbem-se de apagar os comentários. O juiz, porém, logo chegado ao Assu vai se envolvendo nos pequenos problemas da vida cotidiana da vila, tomando partido ao sabor dos seus interêsses . Intolerante e arbitrário, ridículo e debochado, é "um homem formado, de chinelas , em manga de camisa pela rua com a barriga branca aparecendo" ( PB - p. 45). Embora casado e pai de muitos filhos, namora uma môça de "maus antecedentes ", filha do fiscal da Recebedoria . Ninguém levava a sério o magistrado ; por isso, por ser quem era, diziam, estava ali no Assu . "Se prestasse , não o mandariam para aquêle ôco do mundo" (PB - p. 45). O juiz acerca- se do coronel-prefeito pretendendo a sombra protetora do poder; distribui boletins infamantes e promove manifestações de hostilidade ao padre, que externou seu ponto -de-vista contrário às atitudes do magistrado. O comportamento individual e da própria família do juiz não os coloca como elementos do que seria um estrato social mais alto. Também aí a mesquinhez da vida nivela os homens ; e quando da luta com o padre , formando-se os naturais partidos : do juiz e do vigário, os ânimos não se exaltam como seria de esperar , e um fato inesperado - o ataque de um bando de cangaço , a coragem do padre, a tibieza do juiz - concorre para diluir a luta . O posterior afastamento do juiz para outro têrmo traz ao cotidiano da vila a vidinha de sempre, os mexericos sem exaltação e sem partidos definidos. A maior parte da população da vila dissolve -se no que poderíamos chamar de estrato médio de funcionários ( o coletor , o escrivão, o delegado ), de pessoas que vivem de pequenas rendas (as velhas moradoras de uma casa grande que vivem dos juros de algum dinheiro na Caixa ), e numa camada mais baixa numerosa , constituída pelos pequenos artesãos , soldados, prostitutas , cantadores de feira, - e por quê não?! --- a nassa da plebe rural, pequenos lavra- 97 dores, vaqueiros de pobres fazendas, tangerinos, moradores de beira de estrada, trabalhadores de eito, cangaceiros, "santos" e as levas de penitentes saídas dêsses mesmos grupos. Verificam-se, todavia, como se verá a seguir, diferenciações dentro dêsses grandes estratos. A grande maioria dessa camada, levando uma vida de economia de consumo, castigada pelas doenças, pela sêca, pelo tacão do poder dos poucos donos da terra, está apta a acorrer aos chamados de taumaturgos e "santos", às promessas de abundância, prosperidade, paz e tranqüi'idade. A família Vieira, de onde irradia tôda a trama de Pedra Bonita e Cangaceiros, é característica de um tipo de camada social que foge à estruturação convencional, mas que é bem representativa das áreas de pastoreio da caatinga e dos pé-de-serra do Nordeste árido. É o clã das médias e pequenas fazendas de gado cujos membros executam, êles próprios, tôdas as tarefas necessárias, vivendo uma vida pobre e obscura em casas paupérrimas, consumindo a farinha, a rapadura, a carne sêca e mesmo o azeite de luz que produzem ou trocam entre si; usando os arreios, os gibões, as alpargatas que êles mesmos fazem. Naquelas fazendas e roças de casas velhas e sujas, de copiar onde se guarda os mantimentos , os animais , e, mesmo, onde se dorme, quase nada se recebe de fora, salvo o sal para os animais e a comida da gente, e o madapolão que se veste na vida e com que se amortalha os defuntos. Esse tipo de clã, malgrado o conhecimento de suas origens num passado remoto, das lutas pela terra, da bravura de avós e bisavós, não se apega às tradições familiares, salvo no que diz respeito ao sentido de honra, às atitudes e ao comportamento masculino e feminino. A distância das vilas e povoados faz a família bastar-se a si mesma, ao tempo em que o contacto diuturno com a terra espinhosa e hostil concorre para desenvolver no grupo uma acentuada agressividade e uma atitude de disponibilidade em face de uma mítica fie salvação que bem pode desembocar no cangaço e na adesão às manifestações e movimentos de fanatismo religioso. É bem difícil enquadrar êsse estrato social em têrmos da estratificação convencionalmente aceita. Se por um lado detém a terra, não a utilizando convenientemente - seja pela aridez, seja pela visão antecipadora das sêcas - marginaliza-se, não participando do jôgo político do mando, limitando-se, quando muito, à sombra protetora de proprietários mais ricos, senhores de latifúndios, de terras talvez mais férteis, donos do poder político e econômico. A família Vieira nem desta sombra desfrutava. "O velho só saía de casa para vigiar o gado. Não ia a eleição, não fazia parte do júri". . . "Bento Vieira não tinha partido, não recebia ordens de ninguém, não devia favores" (PB - p. 162). Confinados na solidão da fazenda do Araticum, marcados pela desgraça da Pedra Bonita, "povo e terra viviam ali há um século numa intimidade profunda . Mas sem se quererem , inimigos íntimos" (PB - p. 161). Esse tipo de clã , relativamente comum nas áreas da caatinga, desenvolve relações familiares baseadas num tipo de patriarcalismo diverso daquele da casa-grande dos engenhos dos potentados, coronéis e barões, cujas senzalas muitas vêzes subsistiram ao 13 de maio. As lutas originárias pela conquista da terra, a aridez, o isolamento, a própria atividade da criação de gado contribuem para fazer desse grupo um elemento instável, em intimidade com a terra, mas sem que ela o detenha por inteiro, com um arraigado e muito específico sentido de honra e de justiça. Justiça que êle faz em geral pelas próprias mãos, seja devido à confinação em que se encontra, longe da administração e das autoridades, seja por desacreditar na eficácia do que êle- chama de "justiça do govêrno", quase sempre joguête poderoso nas mãos dos senhores do mando, funcionando ao sabor das oligarquias armadas. O verso popular é bem ilustrativo: No fuzil eu encontrei lei que decide a questão, processo muito, mais justo que o de qualquer escrivão Nesse patriarcalismo, onde o trabalho do negro escravo quase não estêve presente, o duro trabalho do campo teve que ser dividido em família, nascendo daí vínculos de dependência muito mais estreitos entre os seus diversos membros, tudo isso concorrendo para uma colocação da mulher no contexto familial em têrmos diferentes daqueles das senhoras de engenho e de casa-grande. Embora sem o direito de escolher o homem para casar ("mulher de sertanejo não tinha direito de escolher, de amar quem quizesse") (PB - p. 163), obrigada às vêzes a casamentos de conveniência, ela é bem mais a companheira, uma espécie de voz aconselhadora na família, muito mais que a sinhá da casa-grande, em geral afastada das deliberações familiares - privativas dos homens -,ocupada quase tão- sômente com as tarefas domésticas. Obrigada, por fôrça das necessidades, aos penosos trabalhos da casa, à pequena lavoura de subsistência, e, às vêzes, mesmo, a tarefas de ajuda ao homem, fenecendo na juventude, a mulher da caatinga, mesmo a da fazenda, está presente no momento de pegar no clavinote em defesa das terras e da família contra as volantes, os grupos de cangaço, os "cabras" dos inimigos. 98 99 Nas deliberações masculinas , consegue fazer-se ouvir, representando em geral para o homem um ponto de reflexão, a necessidade de "pensar na vida". "Tu tem mulher - diz o cantador de feira ao rapaz que se quer afastar do quadro violento das lutas de cangaço - e mulher dá tenção nas coisas" (C - p. 324). Não é de estranhar que em alguns momentos, também por fôrça da necessidade, a mulher venha a substituir o homem no comando da família, dirigindo o clã, os negócios, criando-se muitas vêzes uma espécie de matriarcado em casos famosos, na realidade, e que a ficção soube tão bem aproveitar no Dona Guidinha do Poço, de Manuel de Oliveira Paiva. A Sinhá Josefina de Pedra Bonita e Cangaceiros também se vê na contingência de polarizar o comando da família quando se agrava a crise de ensinamento e de desleixo do velho Bentão , quando a família inicia o seu processo de desintegração e ela busca a salvação nas promessas do nôvo "santo" que aparece na Pedra. Daí por diante ela - malgrado as circunstâncias - quem esteia o grupo familial, chegando ao ponto de proporcionar o nascimento do mito de sua fôrça sobrenatural sôbre o filho cangaceiro, imune das balas dos inimigos e das volantes, graças às suas rezas, ao seu poder misterioso. No Cangaceiros, seguindo o veio lançado em Pedra Bonita, a estória se desenvolve tendo como ponto de confluência a família Vieira, representando o grupo já agora disperso e retirado da terra. não pela sêca mas por outros flagelos não menos dispersantes : o fanatismo religioso e o cangaço. Ali também, nas áreas em que se desenrola a estória de Cangaceiros, encontramos uma estratificação social com definições difíceis, o que se poderia chamar de camadas médias e baixas estão aproximadas pelo gênero de vida, por suas crenças e mitos, pelos comportamentos e atitudes e, algumas vêzes, pelos mesmos anseios e angústias. Aqui, porém, o estrato mais alto chega a se definir, e mais se configura o "tipo ideal" do coronel latifundiário e chefe político de prestígio capaz de dizer: "Aqui em Jatobá mando eu" (C - p. 315), e de quem se diz: "Jatobá e Paracatu é o mesmo que fazenda dêle" (C - p. 34). Esse coronel Cazuza Leutério, senhor de vastas terras e de muitas vidas, não se confia, como ò coronel Clarimundo do Assu, nos seus negócios. Talvez que as suas origens latifundiárias, a riqueza e a tradição do meando familial nêle despertassem e imprimissem i necessidade de deter o mando, ao contrário do outro, empenhado ainda na elaboração da fortuna feita à base do comércio e, o que é importante: interessado em sair daquilo que êle chama de "ôco do mundo" o mais rápido possível. O Leutério de Cangaceiros tem acesso às fontes do poder, tem filho formado e deputado, põe e dispõe ao sabor de suas conveniências, tem seu próprio exército armado e é respeitado mesmo pelo grupo de cangaço que o quer destruir. Ninguém melhor que êle configura "o coronel" sertanejo, senhor do seu status, gerindo seu curral político com o mesmo tacão com que gere seu curral de fazenda. E êle não divide o seu munus com ninguém. Seu poder, sua disposição de mando êle quer usar sòzinho, mesmo quando seus interêsses são idênticos àqueles de outra fôrça que não a prõpriamente sua. Quando um tenente de volante quer "exemplar" um seu inimigo na sede do seu reduto político, o coronel Leutério o impede pois "isto de oficial de volante mandar é para os outros e não para mim" (C-p. 315). Pequeno agricultor com engenhoca de rapadura, o capitão Custódio da Roqueira aproxima-se dos Vieira do Araticum pela falta de prestígio político, pela pobreza. Como os Vieira, êle está comprimido entre a elite poderosa dos donos de vastas terras e a plebe rural que o cerca e da qual está bem mais aproximado. Como a gente do Araticum, êle não tira da terra - que no dizer de alguém é "um ôvo de gema pura" - aquilo que ela poderia lhe dar. Esse tipo de agricultura de cana-de-açúcar desenvolvida em áreas mais "caatinga a dentro" e destinada ao fabrico de rapadura - produto de grande consumo em todo o Nordeste - é feito quase sempre em pequenas fazendas de pouco gado e poucos partidos de cana, safrejando para a rapadura que é levada para as feiras mais próximas. Sem depender de muitos braços, a engenhoca de rapadura exige um "mestre" competente para "dar o ponto" no caldo e poucos homens para o plantio e o corte. Dificilmente, salvo casos esporádicos de pertinácia, ali se pode enriquecer e desenvolver um gênero de vida semelhante ao dos engenhos de açúcar. A sêca em geral atinge a plantação, a falta de chuvas faz a cana quase sempre "mofina", prestando-a apenas para a rapadura e o mel. O capitão Custódio da Roqueira em quase nada se diferencia dos moradores de suas terras. A casa é pobre e êle também. As relações que êle desenvolve com êsses moradores estão longe de ser aquelas pertinentes ao proprietário de vastas terras, com seu mando político organizado, respeitado e temido. O próprio título que ostenta - capitão - representa, na hierarquia dos prestígios, uma posição baixa. Apenas uma vez alguém lembrou-se - quando o prenderam como coiteiro de bando de cangaço - que êle era "homem de propriedade". A sua luta com o coronel Leutério - nascida da morte do filho feita por um homem do coronel - vai aos poucos transformando o 100 101 Ar, C ir1 a Neste quadro social, como colocar o cangaceiro, o cantador, o "santo" e o beato? As suas próprias atividades afastam-lhes de um estrato definido. Estão marginalizados pelo tipo de atividade que exercem: próximos da variada plebe rural, mas não dentro dela, executam seus papéis sociais que só podem ser compreendidos dentro daquele específico contexto econômico e sócio-cultural. capitão numa espécie de Quixote. Os padrões de comportamento do contexto social induzem-no a "lavar a honra" ferida, pagando na mesma moeda, fazendo justiça privada, revidando a morte do filho. A sua carência de prestígio juntando-se à incapacidade individual de matar vão fazendo do capitão um homem "sem honra", olhado com lástima e desdém por todos, mesmo por aquêles que lhe são mais próximos. As frases repetidas e repisadas - que lembram, no romance, lamentos de côro de tragédia grega - recordando o momento da chegada do corpo do filho envolto numa rêde, as palavras da mulher e as suas próprias, são o mais vivo atestado da paranóia que o consumirá e o argumento que todos usam para caracterizá-lo como um "velho doido" e covarde. A sua cõvafdia faz com que êle se lance à justiça privada organizada - o bando do cangaço - que "lavar-lhe-á a honra e o peito", empreitando a destruição do coronel Leutério. Mas a sua luta é inglória e mesquinha. O cangaceiro dá-lhe ordens, trata-o como um coiteiro qualquer. O capitão Custódio não era um potentado e muito pouco pode dar ou proporcionar ao bando. E . êste capitão Custódio, que vai morrer sem descendentes, sem que lhe herde a pouca terra, que vai morrer só, abre - quem sabe?! - a possibilidade, pelos meios fáceis das falsificações, de ajudar a crescer o latifúndio do coronel Leutério que fàcilmente poderá engolir as terras da Roqueira. O estrato social mais baixo sedïl'unde em tipos numerosos, alguns com atividades definidas - artesãos e trabalhadores da terra a grande maioria dissolvida numa plebe rural, vivendo uma típica economia de consumo: os "moradores", os trabalhadores esporádicos. Entre os artesãos, define-se bem o mestre da engenhoca de rapadura, mestre Jerônimo, consciente do seu valor no ofício, com um vivo sentido da sua decadência profissional - fôra mestre de açúcar em engenho na zona fértil do brejo - vendõ -se agora trabalhando para um proprietário desprestigiado e doido numa engenhoca pobre. Ble que foi a dois júris no brejo, de ambos saindo livre graças ao senhor do engenho onde trabalhava! Dissolvidos na plebe rural que vive em tôrno das terras do capitão Custódio estão os "cabras" que ajudam na engenhoca, estão os dois Vieira - Bentinho, o menino que fôra criado pelo padre do Assu, e a velha Josefina, sua mãe e mãe dos cangaceiros, êle trabalhando para o capitão, ela plantando na beirada da casa ervas de "meizinhas" e o feijão que come com o filho. Também nessa plebe estão as mulheres moradoras que lavam roupa no riacho, estão os cargueiros de rapadura e farinha, os tangerias, os espias, os coiteiros de cotovelo de estrada, êsses muitas vêzes nômades por fôrça do ofício. Cada um dêles representa uma forma desorganizada de reação, São tipos representativos no quadro dos fenômenos de epidemia social cujo objetivo intrínseco , ainda que inconsciente, é a remoção das condições que perturbam a paz e a existência em si mesma. A instabilidade das atividades econômicas das populações nordestinas, motivada pelas lutas das oligarquias na disputa do poder, a disparidade entre a realidade social e a engrenagem do poder e da justiça, as sêcas mais ou menos periódicas, ao lado do problema da repartição da terra , do latifúndio e das minorias despóticas, são fatôres que, com a sobrevivência das crenças e dos padrões de comportamento típicos das culturas de folk, conformam os fenômenos sócio-psicológicos do cangaço e do fanatismo religioso. Daí que se possa colocar o problema do cangaço, veículo de "justiça privada", como um complexo característico das áreas de conflito social incrementado pelo desajuste entre a realidade social e a ordem jurídica estabelecida. Ao tempo em que representa um fator de resistência à mudança, principalmente no que se refere à questão da justiça, o cangaço diagnostica a latente contradição entre o poder político e econômico de minorias e a marginalização da massa da população rural oprimida por um sem número de fôrças, das quais , para ela, a mais visível é o poder dos grandes proprietários que atuam como seus "donos"; a exploração do seu trabalho, e ainda a falta do trabalho que lhe garantiria, de certo modo, a sobrevivência e o funcionamento da máquina do poder em favor dos interêsses dos grupos dominantes. Uma legislação de características eminentemente urbanas, como a nossa, elaborada por bacharéis citadinos vivamente influenciados por modelos estrangeiros, não pode , efetivamente , atender à realidade de grupos societários ainda apegados às atitudes e aos padrões de comportamento de características semitribais, a populações clãnicas fechadas nos seus mores, distanciadas do litoral urbano onde, em verdade, o Brasil acontecia. Acontecia e legislava. A realidade sócio-cultural do Interior brasileiro entra, assim, em dissonância com os padrões jurídicos que a metrópole europeizada importou e estendeu a todo o Brasil . Realidade e ordem jurídica entrechocam-se. Na impossibilidade de uma tomada de consciência de classe que, evidentemente, não se poderia esperar por uma impossibilidade 102 103 histórica e circunstancial - a plebe rural apega -se às explosões de caráter de certo modo anárquico : o fanatismo religioso apelando para o mito de salvação , e o cangaço desembocando na violência. A tradição nós fala de um tipo de cangaço esporádico , levado a cabo, em épocas de sêca e de penúria , por pequenos lavradores e moradores de fazendas , homens pacíficos que voltam a trabalhar a terra tão logo as condições sejam favoráveis. Tratando o tema do cangaço em artigos de rara acuidade sociológica, Graciliano Ramos - romancista também êle voltado para o meio e o homem do Nordeste observa as mudanças sofridas pelo cangaço, apontando as transformações por que passou o cangaceirismo a partir do momento em que saiu das mãos do cangaceiroherói, autêntico condottiere, pelejando em nome da honra familial e dá integridade da terra conquistada pelos antepassados, para cair nos grupos de bandidos profissionais destituídos de heroísmo e de grandeza. Aquêle, o cangaceiro-herói, vai se transformar em poesia do povo nas loas , nos abecês dos cantadores. O profissional que mata por dinheiro , que mata ricos e pobres , como que envilece o mito, deixando sôbre o povo o seu rastro de terror. Nos bandoleiros . de um passado mais remoto , os Jesuíno Brilhante, os Antônio Silvino, saídos de camadas mais altas, filhos e parentes de famílias tradicionais de fazendeiros , Graciliano encontra certas virtualidades éticas que não vê nos cangaceiros mais novos, nos, por assim dizer, "profissionais", dos quais êle toma como padrão 'o célebre Lampião que caracteriza como "mulato, almocreve, analfabeto". Do ponto-de-vista do autor de Vidas Secas, o cangaço teria passado por um processo de "democratização"; daí que êle fale de dois cangaços : o do bandoleiro-herói e o do cangaceiro profissional. O primeiro vivido pelas figuras de Brilhante e Antônio Silvino, êste Antônio Silvino que José Lins faz aparecer em Fogo Morto atacando a casa do rico Quinca Napoleão , presente também em Menino de Engenho, visitando o engenho do avô e , pela "fala bamba ", decepcionando o menino que o fazia arrogante e impetuoso ; o segundo sintetizado nos Lampião e, como tal, nos Aparício de Cangaceiros, profissïonalizados , matando de empreitada. Mas, os Antônio Silvino e os Brilhante não agem muito diferentemente dos Aparício de Cangaceiros . Todos êles representam o entrechoque da realidade sócio -cultural com a ordem jurídica estabelecida, 'todos êles põem em funcionamento o dispositivo da "justiça privada em contraposição à "justiça do govêrno ", controlada pelas oligarquias dominantes . Algumas vêzes , porém , por paradoxo, essas duas "justiças" estão unidas, a depender das injunções políticas do momento. 104 De um modo geral, a descrença na "justiça do govêrno", quando não se conta com ela, concorre para o apêlo à justiça privada. O homem comum, a plebe rural , necessita da sombra do poder que livra no júri e garante, assim, o exercício do sagrado "dever" de lavar a honra ferida, possibilitando, dêste modo , responder à expectativa de comportamento que o costume consagrou. Quando esta proteção não existe , o cangaço faz-se veículo da "justiça". Em Cangaceiros, tem-se um excelente material para a compreensão da formação e do funcionamento do cangaço como dispositivo hipertrofiado na máquina da justiça sertaneja. O cangaço traz para seu recesso elementos oriundos de variadas camadas da população sertaneja , notadamente aquelas das zonas atingidas pelas sêcas, das áreas de criação de gado , dos latifúndios improdutivos. As razões da entrada no bando obedecem a decisões nascidas em geral da própria violência. Aparício , o chefe do bando, cai no cangaço por ter praticado um crime. Êle foge da justiça , pois esta não poderia protegê-lo. Sua família não tem prestígio , êle e os irmãos não são eleitores, o pai "não faz parte do júri", não são protegidos da política. Do ponto-de-vista individual (psicológico ), Aparício é um temperamento violento e aventureiro . Criado na agressividade do ambiente estigmatizado do Araticum, ali para êle só havia de grande a estória das façanhas do avô que foi bandoleiro e que morreu na violência. Desde cedo admirou as armas, as arruaças e as brigas. Ao contrário do irmão Domício, temperamento mais sonhador e místico, Aparício é inquieto , despreza as cantorias e a viola do irmão, as estórias dos santos e dos beatos, coisas que êle não considera dignas de homem. Como Aparício , o filho do mestre da engenhoca caiu no cangaço por falta de proteção política . O desprestígio do capitão Custódio é que concorre para a ida do menino que fêz uma "bobagem", ferindo um homem . E mestre Jerônimo, que saiu de dois júris graças à "fôrça " de seu proprietário, rebela-se ante a fraqueza do dono da terra em que vivia: " Se êle tivesse tido um protetor não ia correr para o cangaço. Fazia o crime como êle fêz, uma coisa bôba e tinha amparo. Entrava no júri e saía livre" (C - p. 291). Agora o menino está perdido "sòmente porque não contou com proprietário capaz de mandar no júri e soltar seus homens" (C p. 291). E o próprio menino, o já cangaceiro Bem-te-Vi, desabafa: "se estou no cangaço é para não aguentar a cadeia sem ter homem que me proteja" (C - p. 255) . O caboclo Germano que trabalha na engenhoca, tem, porém, uma história diferente. Este vai para o cangaço para fazer sua jus105 tiça privada, para vingar a morte do pai e a desonra das irmãs. Durante anos, êle pensou e meditou sua vingança contra a fôrça volante que arrasou sua família; e decide aderir ao bando. O fenômeno do cangaço repercute diretamente sôbre os membros da família do cangaceiro, independente da atitude que a respeito êles tomem. O prêto Vicente, lugar-tenente do chefe do grupo, exprobado por sua condição de côr numa população mestiça com traços predominantemente indígenas e brancos, o "negro" Vicente inicia sua carreira nas tocaias empreitadas pelo proprietário da terra em que vivia, nas lutas de grupos por questões de política e de terra. Aos poucos, êle vai se "profissionalizando", empreitado por uns e por outros, até juntar-se ao bando onde encontrará a comunidade de vingadores e desamparados da "justiça do govêrno", daqueles que estão dispostos a matar ... e morrer "com a mesma crueza e a mesma humanidade". Engrossam-se, assim, por êsses caminhos e por muitos outros, as fileiras dos bandos de cangaço. O sentido da vingança e da morte dá ao cangaceiro uma atitude de cruento fatalismo - "a gente se faz para morrer no fogo" (C - p. 198) ; "morrer é mesmo o trabaio da gente" (C - 204) - ao tempo em que desenvolve uma mítica do sangue como fonte de energia e vida: "tu precisa sangrar gente, menino. Ver sangue correr das goelas dos outros dá força no corpo" (C - p. 250). Mas o que mais importa é "lavar a honra" e "fazer justiça", a justiça individual e a dos que estão sob a "proteção" do bando, contra a "justiça do govêrno" que pode vir - não pelos meios pacíficos do júri -- mas, pelas fôrças volantes, pelas mãos dos tenentes sedentos de subir de pôsto, dos soldados encourados como os cangaceiros, muitos dêles saídos dos próprios bandos. Ambas as justiças são oscilantes, pendentes das condições de momento, das injunções e dos interêsses pessoais. O binômio assim se completa; o território da justiça é repartido: cangaceiro e coronel. O "coronel" protege seus eleitores nas delegacias e no júri; o cangaceiro "protege" seus espias, os políticos que estão "de baixo" e que pagam seus serviços, os coiteiros enquanto lhe são fiéis, pois "coiteiro que trabalha comigo - diz Aparício - tem que ser como mulher. É só de um homem" (,C - p. 254) . Como o coronel que está com o poder, o cangaceiro destrói seus inimigos, "garante" propriedade da sanha das volantes, protege moradores das "injustiças" dos proprietários, quando não está "de bem" com êstes, e, até mesmo "manobra autoridades". A massa da plebe rural e dos sem prestígio fica, assim , ao sabor das "proteções". Como o coronel, o cangaceiro faz paternalismo ao seu modo. A família Vieira de Pedra Bonita e Cangaceiro, estigmatizada desde o episódio da Pedra, cem anos antes , vê-se a braços , depois, com outro estigma não menos terrível : família de cangaceiros. A própria contingência e a figura violenta e autoritária do irmão impelem Domício à vida do cangaço. Antes, fôra o mito do "santo"; agora, é o mito do irmão cangaceiro. Restam a velha Josefina e o filho mais moço que fôra criado pelo padre, saído de um contexto social mais urbano - a vila e lançado no redemoinho da vida da família. Ao estigma da traição, da denúncia, do sangue dos inocentes que traziam dos antepassados, junta-se, agora, o do cangaço: "a sina da nossa gente é essa mesma, Domício. É morrer e matar" (C p. 71). Os sobreviventes, mãe e filho, têm de viver escondidos, anônimos, para escapar das volantes e do mêdo e suspeição do povo. Porque Aparício não suscita no povo - salvo exceções, naturalmente - aquela admiração que se tributa a um verdadeiro herói. Ele serve a muitos senhores; e o povo, que fala na bôca dos moradores, da gente de feira ; dos tangerinos, não se inclui entre aquêles. Para o mestre da engenhoca que "saiu livre pelo juri" em bandas talvez mais pacatas, que tem uma profissão mais sedentária, o cangaceiro, como o cantador, nômades por necessidade de seus ofícios, não merecem acatamento e respeito: "cangaço para mim diz êle - não é coisa de homem sério" (C - p. 185). Por outro lado, o cangaço exercido nos moldes do bando de Aparício, violando donzelas, fere um dos pontos em que a honra masculina no sertanejo mais se exalta. A civilização do couro e da caatinga, prezando a castidade e a pureza femininas, vê-se atacada pelo cangaço violador e não o pode perdoar, como não pode perdoar a tropa volante que age do mesmo modo: "as mães daquelas terras infelizes temiam pelas suas filhas donzelas" (C - p. 144). E é o cantador, esta figura que também faz parte do quadro do Nordeste da sêca, do gado, das feiras, esta espécie de aedo às vêzes cego como o grego Homero - cego pelas doenças endêmicas e pelo sol causticante, transformando em poesia a rudeza e a grandeza da terra e da gente, é êle, marginalizado por uma profissão vagabunda, carregando a tradição de uma expressão poética que 106 107 Depois de Aparício, segue Domício para o cangaço . O ataque da tropa volante aos novos penitentes de um nôvo "santo" abala o temperamento místico de Domício, àquela altura elevado da condição de penitente à de beato, estreitamente vinculado ao "santo" que os soldados vão, logo após, matar. tomou, na terra árida do sertão, características singulares, é o cantador, a voz que se levanta para expressar o drama da mulher naquelas terras : "o sertão não está bom para mulher de honra , não". . . "quando não é cangaceiro é soldado" (C - p. 332) . É o poeta, o cantador Dioclécio, que José Lins criou, pensando, talvez, naquele inigualado Inácio da Catingueira, quem vê realisticamente o impasse da vida do sertanejo, da mulher sertaneja que êle canta nas suas trovas e com quem êle sonha na sua rêde suja, coberto apenas pelo luar da caatinga. Ante o cangaço de Aparício, ante a verdade sôbre as violências e a mesquinhez do cangaceiro , êle não esconde o seu desencanto. Soubera das aventuras e da valentia do cangaceiro e fizera um abecê; mas a verdade era outra. Aparício não estava vingando as irmãs violadas pelos soldados da volante, não estava tirando dos ricos para dar aos pobres. O cantador não identifica o cangaceiro como o seu herói, com o herói que êle criou no abecê e entregou ao povo. O cantador tem credenciais para esta espécie de julgamento. Mas o abecê foi feito e já corria as feiras , cantado por outros cantadores, tocado em outras violas. E o mito continua assim o seu ciclo. É também o cantador Dioclécio quem vai expressar numa frase o significado da terra ingrata, da circunstância ingrata da terra que expulsa o homem que, contudo, a ela está ligado por laços bem profundos, amando -a dramàticamente , mesmo nos momentos em que ela o expulsa, abandonando-a, mas , sempre disposto a voltar. "Rapaz, terra desgraçada é êste sertão . Vem volante e vêm os cangaceiros e o pobre sertanejo é quem aguenta tudo no lombo. O diabo da terra se gruda na gente e doi sair assim. É um fato" (C - p. 344). A figura do cantador, daquele jornal vivo da terra sertaneja "que andava pelo mundo vencendo até a brabeza dos cangaceiros", se empresta a visão mais realística dos problemas da terra, dos ódios c das vinganças , dos podêres em choque , da morte e da vida. As suas armas são os versos que lhe dão o pão de cada dia. Por isso, êle preza as letras, a instrução. Por isso, êle diz enfàticamente a Bentinho , o menino que foi coroinha de igreja, que viveu na vila do Assu e seria padre não fôsse a pobreza do padrinho: "tu tem instrução e pode dar jeito na vida. Deixa essa desgraça de sertão para mim". . . "logo que fôr tempo embarca com os corumbas para o sul..." (C - p. 305/306). Sente-se já aí, então , a mítica do "outro" Brasil; o Sul, para onde deveria ir o menino "instruído ", fugindo das conseqüências de ser irmão de cangaceiro , de não ter terra nem protetor. Ele, porém , o cantador , não pode sair . Cangaceiro não o molesta: a sua gesta pode exaltá-lo, fazê-lo até chorar. Coronel e proprietário rico também não lhe fazem mal: comprazem-se em ouvi-lo, pagam para êle tocar nas festas. E o povo, ah! que seria do povo sem as suas trovas exaltando tanta alegria e tanto sofrer. Os homens , às vêzes, o temem porque as mulheres podem por êle se apaixonar, mas, de um modo geral, gostam de escutar as cantigas que contam as façanhas dos cangaceiros e o milagres dos santos, "porque história que a gente canta - diz Dioclécio - não tem nada de mentira"! "É isto, menino , eu sei tocar no coração do povo" (C - p. 284). A problemática do sertão, do "outro" Nordeste , não está ainda completa . Resta o fanatismo religioso , o messianismo, os mitos de salvação surgidos no Brasil desde os primeiros momentos da colonização, mesclando as crenças nativas com os mitos de origem portuguêsa sob as mais diversas formas sincréticas. As crenças e mitos têm dado lugar a uma série de manifestações e movimentos dos mais diversos tipos, e vêm ocorrendo, desde o século XVI, em variados pontos do Brasil. No Nordeste, porém, os movimentos messiânicos, quer baseados num sincretismo católico-indígena, quer os de caráter sebastianista, quer os decorrentes de crenças cristãs, ou mesmo, os conseqüentes da crença nos "santos" brasileiros, têm encontrado uma larga vigência e não se pode afirmar que, mesmo agora, estejam de todo desaparecidos. Nas áreas rurais mais subdesenvolvidas, graças ao isolamento cultural e aos diversos fatôres que afetam a própria existência - a pressão dos grupos de mando, a exploração do trabalho, a situação ecológica, as doenças, a fome - o homem faz extravasar no mito, na crença de salvação, os apelos para uma vida na qual aquêles instrumentos de opressão não existam. As disponibilidades místicas e míticas das populações das áreas mais atacadas pelo subdesenvolvimento têm como principais fatôres concorrentes, além dos acima mencionados, o rico folk que o isolamento permitiu subsistir e que o contacto, por sua vez, a todo instante põe à prova nas mais variadas situações de conflito e em originais mecanismos de assimilação. O movimento de fanatismo religioso da Pedra Bonita ocorreu nas proximidades de Flôres, na serra do Catolé, em Pernambuco, na primeira metade do século XIX e teve um caráter eminentemente sebastianista. A manifestação se inicia com um "santo" que, do santuário natural da Pedra Bonita - rochedos altos dispostos de modo singular - pregava o "desencantamento" do rei D. Sebastião. Para tanto, tornava-se necessário sangue para abrir as entranhas da terra de onde sairia triunfante o legendário rei português. Entre os sacrifí109 108 cios, estava o jus primae noctis que o " santo" exigia das môças que êle próprio casava em rito solene. A pregação estende-se, a seguir , à família do "santo" e, depois, vai dar lugar a uma espécie de monarquia com autoridades e funções definidas. Começa o deslocamento , para a Pedra , de grupos oriundos dos lugarejos, inclusive famílias de pequenos fazendeiros das áreas próximas. Lentamente forma-se uma comunidade religiosa que se instala em tôrno das rochas para ouvir as prédicas do "rei ", nas quais se anunciava que, lavada a terra com o sangue de inocentes, chegaria o fim dos sofrimentos dos homens : os pobres ficariam ricos, os pretos ficariam brancos , os velhos ficariam moços. O ritual obrigava os "fiéis" a beberem jurema e manacá. Embriagados , iniciam a matança de homens , mulheres e crianças e cães. Durante três dias corre sangue e, em poucas horas, os catolèzeiros e as pedras eram quase as únicas testemunhas do ocorrido. Um vaqueiro atemorizado ante as cenas de filhos matando pais, mães entregando filhos à morte , foge e vai avisar o povo. Em breve, fazendeiros e a fôrça policial atacam e prendem os sobreviventes. Segundo depoimentos da época - e há comprovação e documentação histórica a respeito - não houve violência contra os fanáticos que restaram. O fascínio de um tema que tem como centro e cenário o sertão trágico de pedras e espinhos , as figuras angulosas torturadas pelo sol e pela fome, o sertão dramático e místico dos apelos ao sobrenatural e dos ritos de salvação também atraem José Lins do Rêgo; e êle constrói o seu Pedra Bonita. A 6a edição de Pedra Bonita (conjunta em volume com Pureza e Riacho Doce ) traz a seguinte advertência: "A narrativa dêste romance quase nada tem de ver com a geografia e os fatos históricos desenrolados em Pernambuco nos princípios do século '. A ficção incumbe-se de alterar os acontecimentos e urde-se uma estória em que o problema do fanatismo religioso aparece com tôdas as suas implicações sócio-culturais. A dizimação dos penitentes da Pedra, "cem anos antes", teve como responsável um antepassado dos Vieira. E o sangue dos inocentes trouxe à família a sina de "penar ", de arrastar vida afora a marca da covardia e da delação. Daí que se diga que a família "cria. e a criação Pão cresce, •aplanta e não enriquece" (PB p. 200). O estigma , porém , poderá desaparecer , diz um velho vidente aos filhos mais moços dos Vieira: "quando uma donzela , quando uma virgem sair das carnes dos Vieira e entregar o corpo ao padre da Pedra. Porque ela precisa parir um homem que seja filho do sangue que correu , que embebeu a caatinga " ( PB - p. 200). A profecia está feita. Outro "santo" aparecerá na Pedra para fazer a salvação do mundo que os Vieira antes impediram, quando o "santo" anunciava que "os pretos ficavam brancos, os doentes com saúde , as mulheres maninhas paririam meninos gêmeos, os assassinos veriam os ofendidos satisfeitos , os ladrões entregavam os roubos, os cangaceiros as suas armas" (PB - p. 197) . E outro "santo" aparece na Pedra: um homem de barbas e cajado, de fala mansa e olhar distante. Com êle chegam moradores, lavradores dos arredores, gente trazendo cegos e aleijados. E êle começa a falar do alto da Pedra: "Deus me disse no dia 20 de janeiro : Sebastião , é o teu dia . Vai salvar o mundo que se perde" (PB - p. 341). Era preciso desencantar a lagoa de onde sairia o ouro, e realizar com sangue o grande milagre : "no dia do milagre grande não haveria mais ricos nem mais pobres. Tudo ficaria igual: os Dantas de Teixeira, os Leites do Piancó, os Carneiros de Pombal. Tudo ficaria igual a êles ... " (PB - p. 301) . Rios de leite correriam para os famintos, o sertão seria verde de inverno a verão depois do grande milagre, quando corresse o sangue das donzelas e dos inocentes. Levas e mais levas de penitentes vão chegando. Mulheres desgrenhadas carregando filhos doentes começam a arrumar os trastes que trazem para debaixo das latadas junto da Pedra. Entoam-se benditos. As notícias correm longe. Dizia-se que o santo levantava aleijados, curava cegos. "O homem só come comida de herva e tem um cavalo branco que ninguém monta nêle. O cavalo tudo que deita prá fora, com licença da palavra - diz um romeiro - serve de meizinha para o povo" (PB - p. 313). O padre do Assu vai ver de perto os acontecimentos da Pedra. Os fanáticos olham-no desesperados: êle veio para levar o "santo", pensam, e por pouco não o atacam. Uma volante se aproxima do local e os fanáticos atacam os soldados com pedradas. A vegetação espinhosa dos cactos, dos mandacarus e dos xiquexiques, ferindo e cegando os que dêles se aproximam; o conteúdo sanguinolento e trágico das passagens da história sagrada; a dimensão característica que as curas, os milagres e a própria morte de Cristo, narrados pelos missionários de tempos em tempos tomam nas populações sertanejas; os milagres e profecias transformados em narrativas passadas de geração a geração, todos êstes ingredientes concorrem para a sedimentação das crenças de salvação partindo de holocaustos, de sacrifícios, de sangue, de sofrimento. As evidentes diferenças econômicas, o sentimento de que a opressão parte dos mais ricos, emprestam o conteúdo igualitário da pregação dos "santos" e da aspiração dos penitentes. Todos fica- 110 111 riam iguais: os Dantas de Teixeira, os Leite de Piancó ... todos ficariam iguais a êles. Na terra ingrata e sêca correriam rios de leite e o sertão far-se-ia verde; como na antiga Palestina , o sertão seria a terra da promissão. Dali sairia a salvação do mundo. Os Vieira, espancados pela volante na procura do filho cangaceiro, extenuados pela anátema que lhes traz tanto sofrimento, acompanham os penitentes e também vão para a Pedra. O filho Domício tinha visto o "santo" e os milagres, tinha visto as promessas e também se tinha curado na "leseira" que o consumia; esquecera as visões que há muito tempo tiravam-lhe o sono: o simples olhar do "santo" tinha tirado de sua cabeça os seus antigos sonhos com a "cabocla das furnas". Éle era agora outro homem. Domício irá agora, com os seus, "adorar o santo". A velha Josefina, murcha de sofrimentos e de trabalho, com um filho no cangaço, outro "sumido" na terra da borracha - era o tempo da corrida ao eldorado do Amazonas - o marido fechado em suas cismas, fica com os casos que ouve a respeito do "santo" lhe "aperreando os ouvidos". E com o filho e o marido caminha para a Pedra: "tinham vindo para salvar-se da desgraça da família, para limpar o sangue de Judas dos Veira. Deixaram tudo, o Araticum vazio, o gado morrendo de fome, a casa triste como uma casa de bexiguento. E estavam todos esperando de Deus, do santo, de qualquer coisa" (PB - p. 340). Domício agora era "beato", passara do mito da "cabocla das furnas" para a adoração do "santo". E Bentinho, o menino criado no Assu, o afilhado do padre, vê os seus entre os famintos e desgrenhados, entre os doentes, os aleijados. Vê seu padrinho fracassado: não tirara aquela gente da heresia. Quem teria razão: os penitentes, o irmão, a mãe, o padrinho? Bentinho vê, porém, uma verdade: "irmão de cangaceiro e beato, os dois irmãos dêle desgraçavam o sertão" (PB - p. 355). Mas mesmo assim, quando se sabe que a volante armada vai acabar com o "santo" e os penitentes, Bentinho sai do Assu para ir avisar os seus. Contudo, a volante ataca e mata. Domício depois confessa à mãe: "eu vi, mãe, a cara da morte do Santo. Eu vi a cabeça de barba, de cabelos grandes, no chão como os outros romeiros. Não era Santo, mãe. Era homem assim como eu e Bentinho. Lá estava êle de bôca aberta, defunto como os outros" (C - p. 58). Morto um mito, busca Domício outro mito, talvez mais forte: o irmão cangaceiro: "fui vendo - diz êle a Bentinho - que o nosso mano não é homem como nós" (C - p. 61). O velho Bentão, que "queria só para comer e vestir, e o mais que a sêca comesse, que a chuva levasse" (PB - p. 174), morrerá. 112 Josefina continuará sua sina escondida com o filho mais môço na Roqueira do capitão Custódio. Na grande sêca, dera o filho mais môço ao padre do Assu para que o menino não morresse de fome. Vagara com o marido e os outros filhos até que dias melhores chegassem. E os Vieira voltaram ao Araticum. Agora já não tem os três primeiros filhos: um sumido, dois cangaceiros. Josefina vê em Aparício um castigo, ela "parira um monstro de Deus", "tinha sido uma mulher emprenhada pelo cão" (C - p. 79) . A vida dos filhos no cangaço, o ter que viver negando os próprios filhos, tudo isso vai levando a velha à loucura. Aparício por sua vez vai se convencendo e concorrendo para transformar em mito os podêres da mãe. A mãe dos cangaceiros tem rezas que "fecham o corpo" do filho. Ela é o único poder que o cangaceiro respeita. É o mito das rezas, das visões e alucinações de mães e avós sertanejas, mulheres místicas, de corpo gretado e de ossos duros, de bôca poderosa que todos temem e respeitam. O tempo em que estêve no Assu dera a Bentinho uma outra dimensão da vida. O cantador Dioclécio que êle conhecera antes, que falava de amores, de festas, de cantigas, de terras, de felicidade, voltara. Aparecera quando Bentinho perdia a mãe e quando o amor ingênuo da filha do mestre da engenhoca chamava-o para a vida. Dioclécio lhe acena com o sul. Agora êle tem mulher, e mulher "da tenção nas coisas". O sertão, diz o cantador - "vive assim nesta peitiça: quando sai de cangaceiro é para ficar com os soldados" (C - p. 345). O melhor era embarcar com os corumbas. E Bentinho, que tinha "instrução", poderia viver longe daquelas terras. E êle foge. 113 Bibliografia 1. FONTES PRIMARIAS REGO, José Lins do. Bangué. Rio de Janeiro, José Olympio, 1934. Cangaceiros. 21^ ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956. --- Doidinho. Rio de Janeiro, Ariel, 1933. Fogo morto. Rio de de Janeiro, José Olympio, 1943. Menino de engenho. Rio de Janeiro, Adersen Ed., 1932. O moleque Ricardo. Rio de Janeiro, José Olympio, 1936. --- Pedra bonita. Rio de Janeiro, José Olympio, 1938. Usina. Rio de Janeiro, José Olympio, 1936. 2. OBRAS BÁSICAS DE SOCIOLOGIA DA LITERATURA BASTIDE, Roger. Arte e sociedade. São Paulo, Martins, 1945. Les problémes de Ia sociologie de Part. Cahiers internationaux de sociologie. Paris, 4, 1948. Paris, Pressas UniversiESCARPIT, Robert. Sociologie de Ia littèrature. taires de France, 1958. l'art". EL,CPierre. FRANCAST VIT GeorgesI.obTraité de sociologie . Paris, Pr . Univ. de Franca, 1958. v. 2. Paris, Gallimard, 1964. GOLDMANN, Lucien. Pour une sociologie du roman. Paris, Ed. Gonthier, 1963 (BiLa théorie du roman. LUKACS, Gyorgy. bliothèque Mediation) . MEMMI, Albert. Cinq proposition pour une sociologie de Ia littèrature. Cahiers intternationaux de sociologia. Paris, 2, 1964. "Problèmes de Ia sociologie de Ia littèrature". in: GURVITCH, Georges. Traité de sociologie. Paris, Pr. Univ. de France, 1958. v. 2. Lisboa, Pub. Europa WELLEK, R. & WARREN, A. Teoria da literatura. - América, 1962 (Biblioteca Universitária). 3. OBRAS BASICAS SOBRE O NORDESTE E SOBRE INTERPRETAÇAO DO BRASIL São Paulo, ANDRADE, Manoel Correia de. O homem e a terra do nordeste. Liv. Brasiliense, 1963. AZEVEDO, Fernando de. Canaviais e engenhos na vida política do Brasil. Rio de Janeiro, Instituto do Açúcar e do Álcool, 1948. A cultura brasileira. São Paulo, Melhoramentos, 1958. Rio de Janeiro, José BELLO, Júlio. Memórias de um senhor de engenho. Olympio, 1937. São Paulo, Difusão Européia BASTIDE, Roger. Brasil, terra de contrastes. do Livro, 1959. 4a ed. São Paulo, Cia. Ed. CALMON, Pedro. História social do Brasil. Nacional, s.d. Bonito; Rio de Janeiro, José CANDIDO, Antõnio. Os parceiros do Rio Olympio, 1964. 115 CARDOSO, Fernando Henrique, Capitalismo e escravidão. São Paulo, Dif. Eur. do Liv., 1962. CASTALDI, Carlo, RIBEIRO, Eunice & MARTUSCELLI, Carolina. "O demônio no Catulé". In: Estudos de sociologia e história. São Paulo, INEP/Anhembi, 1957. CUNHA, Euclides da. Os sertões. 17ÇL ed. corrigida, de acôrdo com as emendas deixadas pelo autor. Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves, 1944. DIEGUES, Manoel (Jr). O engenho de açúcar do nordeste. Rio de Janeiro, Ministério da Agricultura, Serv. de Inform. Agrícola, 1952. População e açúcar no nordeste do Brasil. Rio de Janeiro, Comissã de o, Nacional Nestor. A ordem privada ee taçorr8 an9ização política nacional. São Paulo, Cia. Ed, Nacional, 1939. FACÕ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1963. FURTADO, Celso. A economia brasileira. Rio de Janeiro, A Noite, 1954. Formação econômica do Brasil. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1959. FREYRE. Gilberto. Casa grande e senzala. 21^ ed. Rio de Janeiro. Ed. Schmidt, 1936. Interpretação do Brasil. Introdução de Olívio Montenegro. Rio de Janeiro, José Olympio, 1947. O nordeste. Rio de Janeiro, José Olympio, 1937. O rdem e progresso. Rio de Janeiro, José Olympio, 1959. 2v. Sobrados e ^zocambos. São Pa u lo, Nacional , Afonso Arinos de Mello. Síntese da história econômica 9Brasil. Salvador, Univ. Fed. da Bahia, 1958. GOMES, Orlando. Raizes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro. Salvador, Univ. Fed. da Bahia, 1958. GOULART, Maurício. Escravidão africana no Brasil; origens à extincão do tráfico. São Paulo, Martins, 1950. História geral do Brasil. Organizada por Sérgio Buarque de Hollanda. São Paulo, Dif. Eur, do Liv., 1960. T 1, 2v. HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raizes do Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956. IANNI, Octavio. As metamorfoses do escravo. São Paulo, Dif. Eur. do Livro, 1962. Raças e classes sociais no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966. LAMBERT, Jacques. Os dois Brasis. Rio de Janeiro, MEC, INEP, 1959 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. Revista forense. Rio de Janeiro, 1948. LEVE-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo, Anhembi, 1957. MENEZES, Djacir. O outro nordeste; formação social do nordeste. Rio de Janeiro, José Olympio, 1937. MORAES, Evaristo de. A escravidão africana no Brasil; das origens à extinção. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1933. MORAES, Walfrido. Jagunços e heróis. Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1963. NORMANO, J. F. Evolução econômica do Brasil. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1945. PRADO, Caio (Jr). Evolução política do Brasil. São Paulo, Liv. Brasiliense, 1947. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Os cangaceiros; bandits brésiliens. Paris, Ed. Julliard, 1968 (Col'. Archives). Classifications des messianismes brésiliens. Archives de sociologie des religions. Paris (5) 1958. La guerre saint au Brésil; le mouvement messianique du Contestado. São Paulo, Universidade, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, 1957. L'in fluente du millieu social interne sur les mouvements messianiques brésiliens. Archives de sociologie des religions. Paris (5) 1958). Ré forme et révolution dans les societés traditionales . Paris, Ed Anthropos, 1968. RAMOS, Arthur. Introdução à antropologia brasileira . Rio de Janeiro, Casa do Estudante do Brasil, 1951. O negro na civilização brasileira . Rio de Janeiro, Casa do Estudante do Brasil, 1959. RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas. São Paulo, Martins, 1961. RANGEL, Inácio. Dualidade básica da economia brasileira . Rio de Janeiro, ISEB, 1957. Introdução ao estudo do desenvolvimento econômico brasileiro. Salvador, Liv. Progresso, 1957. RODRIGUES, Raimundo Nina. As coletividades anormais. Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1939. SIMONSEN, Roberto. História econômica do Brasil, 1500-1820. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1944. SMITH, T. Lynn. Brazil, people and institutions. Rev. ed. Baton Rouge, Louisiana State University Press, 1954. & MARCHANT, Alexander. Brazil, portrait of half a continent. New York, Dryden Press, 1951. SODRE, Nelson Wernek. Formação da sociedade brasileira . Rio de Janeiro, José Olympio, 1944. Panorama do segundo Império. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1939. SOUTHEY, Robert. História do Brasil. Salvador, Liv. Progresso, 1949. 6v. VARNHAGEN, F. A. História geral do Brasil. Notas de Rodolfo Garcia. 0 ed. São Paulo, Melhoramentos, 1948. 5v. VIANNA, Oliveira. Evolução do povo brasileiro. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956. Instituições políticas brasileiras . Rio de Janeiro, José Olympio, 1958. Introdução à história social da economia pré-capitalista no Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio, 1958. WAGLEY, Charles e outros. Races et classes dans le Brésil rural . Paris, Unesco, 1951. 4. OBRAS BÁSICAS DE SOCIOLOGIA BASTIDE, Roger e outros. Sens et usages du terme structure. Paris, Mouton, 1962. DUMONT, Louis. Castes, racisme et stratification. Cahiers internationaux de sociologia. Paris, 29, 1953. FIRTH, Raymond. Elements of social organiza'tion. London, Watts, 1956. GURVITCH, Georges. Le concept de structure sociale. Cahiers internationaux de sociologia. Paris, 19, 1955. El concepto de crases, de Marx a nuestros dias. Buenos Aires, Galatea, 1957. HALBWACHS, M. Las clases sociales. México, Fondo de Cultura Económica, 1950. HERSKOVITS, Melville J. Men and his works. New York, Knopf, 1956. JOUSSAIN, André. Les classes sociales. Paris, Presses Univ. de France, 1949 (Que-sais-je?) . KLUCKHOHN, Clyde & MURRAY, Henry. Personality in nature, socie'ty and culture. London, Jonathan Cape, 1953. KROLBER. A. L. "Cante". In: Encyclopaedia of 'the social sciences New York, Macmillan, 1953. v. 3. LEVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967. Le cru et le cui't. Paris, Plon, 1964. Les structures elementaires de Ia parenté. 2a. ed. Paris, Mouton, 1967. LINTON, Ralph. Estúdio del hombre. México. Fondo de Cultura Económica, 1956. 116 117 MACHADO, A. L. (Neto). "Estratificação social e o direito". In: Teoria do direito e sociologia do conhecimento. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1965. MAC IVER, R. N. & PAGE, Charies H. Sociologia. Madr`_d, Ed. Tednos, 1961. MARIAS, Julian. La estructura social; teoria y método. Madrid, Soc. de Estúdios e Publicaciones, 1955. MANNHEIM, Karl. Sociologia sistemática. São Paulo, Liv. Pioneira, 1962. MENDIETA y Nuflez, L. Las clases sociales. Cuadernos americanos. México, enero/feb. 1944. México, Fondo de Teoria y estructuras sociales. MERTON, Robert K. Cultura Económica, 1964. MILLS, C. Wright. La imaginación sociológica. México, Fondo de Cultura Económica, 1961. SICHES, Recaséns. Sociologie. México, Ed. Porrua, 1956. SUMNER. William Graham. Folkways. México, Fondo de Cultura Econó, mica, 1950. Este livro terminou-se de imprimir, nas oficinas da S. A. Artes Gráficas, Salvador, Bahia, Brasil. A supervisão dos trabalhos tipográficos estêve a cargo de Antônio Lôbo. Foto da capa e frontispício de Sílvio Robatto. Planejamento gráfico de Jacyra Oswald. Supervisão editorial de Nélson de Araújo. Diretor do Departamento Cultural, Valentin Calderón, Reitor, Roberto Figueira Santos. 118