Fausto e o nascimento do homem moderno

Transcrição

Fausto e o nascimento do homem moderno
Estados e Formas da Cultura na Modernidade
Professor Martin Grossmann
Eduardo Rodrigues
Nº USP 6804074
Fausto e o nascimento do homem moderno
Fausto, do diretor russo Aleksandr Sokúrov, se inicia com uma clara referência à
obra do pintor alemão Albrecht Altdorfer, intitulada A batalha de Alexandre em Isso (1529,
Figura 1). Suprimindo a multidão em confronto, o diretor destaca a cidade medieval envolta a
muros, comprimida entre as montanhas. A referência, obviamente, não é por acaso: trata-se do
nascimento do homem moderno, ao final da Idade Média, época na qual surgiram os
primeiros relatos conhecidos a respeito da lenda de Fausto.
O personagem incorpora o ideal cartesiano do Cogito, ergo sum: racionalidade e o
consequente domínio do homem moderno sobre a natureza. Por mais de uma vez, ao longo do
filme, essa temática é abordada de forma recorrente, seja na quimera de Fausto quando da
concepção de seu homúnculo, um arremedo humanoide criado in vitro, seja no momento em
que, surpreendido por um gêiser, o personagem passa a racionalizar, de modo a demonstrar
sua capacidade de compreensão sobre as manifestações da natureza.
Mas o drama de Fausto reside justamente da dicotomia do homem moderno: se
por um lado é capaz de dominar a natureza – seja por sua interferência na paisagem, seja por
sua capacidade de racionalizar e explicar fenômenos antes concebidos como manifestações
míticas aquém da compreensão humana – a ele falta a capacidade de compreender e
consequentemente dominar a si próprio.
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche, ao tratar da condição do indivíduo na
modernidade, afirmou que o homem moderno não mais sabia a que se voltar e que a
modernidade falhou em dar um significado à vida, pois nossa dimensão divina morreu com
nossas falsas expectativas, com nossa “busca pela verdade”.
Fausto é retratado como um homem oprimido seja pelas infectas e intransitáveis
vielas medievais de sua cidade na qual a miséria, a desordem e a peste contrastam com seus
ideais universalistas, seja por sua paixão pela jovem Margarida. A angústia vivenciada por
Fausto o faz recorrer à insólita figura do Diabo, retratado como um agiota sem escrúpulos,
talvez referência às expectativas de satisfação na sociedade capitalista por meio da
mercantilização de nossos objetos de desejo, questão abordada em sala de aula por meio da
discussão da obra do pensador Jean Baudrillard.
Muito mais que uma narrativa de amor ou um dilema metafísico, Fausto é antes
de tudo um constante jogo de poder. Não por coincidência, é a última obra da intitulada
“tetralogia do poder” de Sokúrov, as demais obras são: Moloch, de 1999, sofre Adolf Hitler;
Taurus, de 2001, sobre Lênin e O Sol, de 2005, sobre o imperador Hirohito. Diferentemente
dos demais filmes, Fausto diz respeito ao poder exercido por meio do saber, temática
recorrente nas obras de pensadores como Foucault, também discutido em sala de aula.
Além da crítica ao cientificismo, Sokúrov aborda de igual maneira outra questão
ética relevante: a adesão do homem moderno ao que lhe for conveniente, consoante ao
processo de servidão voluntária descrito pelo filósofo francês Étienne de La Boétie. Segundo
o cineasta: “Muitos milhões sobreviveram à Segunda Guerra somente porque se eximiram de
responsabilidades, seja delegando pelo voto a sua vontade a Hitler, seja tolerando Josef Stálin.
Milhões de pessoas nada fizeram para impedir a Revolução Cultural na China. E agora
mesmo a maioria de nós se recusa a refletir sobre o conflito entre muçulmanos e cristãos”.
Tal abordagem inspirada na obra de Fausto foi feita pelo escritor alemão Klaus
Mann no livro O Mefisto, ao discorrer sobre a colaboração / “pacto” por conveniência do
personagem principal Hendrik Höfgen com o regime nazista. A redenção do Fausto de
Aleksandr Sokúrov se dá em outro plano de existência, nos domínios de Mefistófeles, menos
por seu amor à Margarida que por sua crença no homem livre.
O cenário escolhido, mais uma vez, é uma referência pictórica a uma obra
emblemática do Romantismo, “O caminhante sobre o mar de névoa”, de Caspar David
Friedrich (1818, figura 2). É nesta inóspita paisagem que Fausto desafia o Diabo, o apedreja e
prossegue de forma determinada, como se para onde tivesse, tal qual a figura de Caspar David
Friedrich, altivo e desafiador, diante da paisagem de incertezas.
FIGURAS
1 - Albrecht Altdorfer, A batalha de Alexandre em Isso (1529)
2 - Caspar David Friedrich, “O caminhante sobre o mar de névoa”. (1818)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Alexander Sokúrov: Entrevista por José Sarmiento. <laquimera.wordpress.com/alexandersokurov-entrevista-por-jose-sarmiento/>. Acesso em 23 de junho de 2013.
FAUSTO, Aleksandr Sokurov, Rússia, 2011, 140'
JANSON, H. W. Iniciação à História da Arte. – 2ª Ed. – São Paulo : Martins Fontes, 1996.
MANN, Klaus. Mefisto: romance de uma carreira. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
MERLEAU-PONTY, Maurice. “A dúvida de Cézanne”. In: O olho e o espírito. São Paulo:
Cosac Naify, 2004.
Sokúrov revela seu pacto com Fausto. < http://pipocamoderna.com.br/sokurov-revela-seupacto-com-fausto/124317>. Acesso em de 23 de junho de 2013.

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