Landowski e os contratos públicos : entre
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Landowski e os contratos públicos : entre
Landowski e os contratos públicos : entre obrigações e oportunidade Autor de numerosos monumentos espalhados por todos os continentes, Landowski aparece como o artista que representa exemplarmente a problemática da criação perante o contrato público. A sua atitude ambígua perante o género merece ser estudada como caso emblemático. Foram muitos os arquivos consultados para tratar deste tema. Em primeiro lugar o Diário de Landowski escrito de 1902 a 1959 e cujas citações foram frequentemente utilizadas. Permitiram detectar melhor as reacções espontâneas do artista na explicação das suas esperanças ou decepções, dificuldades ou satisfações neste domínio em particular. Depois, a leitura da sua correspondência com os donos das obras, os profissionais, os arquitectos, os fornecedores… fez luz sobre a questão da coesão do trabalho em equipa. Finalmente, fotografias antigas de ateliê ajudaram a reconstruir etapas da elaboração da obra1. Perante tudo isso, parece necessário dar um subtítulo a esta intervenção: «Entre obrigações e oportunidade». Como qualquer outro escultor, Landowski esteve sujeito a constrangimentos nos contratos públicos. De facto, o ideal artístico do autor está raramente em sintonia com o orçamento do dono da obra, seus desejos iconográficos e a localização, por vezes ingrata, da instalação da obra. Contudo, o escultor explica no seu Diário como as exigências do dono da obra obriga a reflectir melhor sobre as suas capacidades de artista para ultrapassar um problema plástico e estimulando-o a encontrar soluções apropriadas. Por outro lado, o contrato público permite a Landowski satisfazer o seu gosto pela arte monumental, a única arte que importa, segundo ele. Está convencido de que o artista tem um papel social a desempenhar. No seu Diário insiste sobre a importância de um rito da comemoração no sentido de inspirar uma comunhão de sentimentos. Por esta via, o monumento público torna-se um lugar de cerimónia que permite a coesão de uma sociedade. Como o artista se dirige à colectividade, deve utilizar uma linguagem acessível a todos. Portanto, para Landowski, só pode haver uma linguagem formal, a da figuração. Grand Prix de Rome de escultura em 1900, Landowski bem cedo começa a receber propostas de contratos públicos. Esta bolsa é, na época, uma porta escancarada para iniciar uma carreira oficial. Realizará no total alguns 70 monumentos, no estrangeiro e em França, dos quais uns 30 em Paris. Foi portanto feito uma escolha por entre aqueles que pareciam os problemas mais característicos gerados pela encomenda. 1 1 A maioria das maquetas dos monumentos citados estão conservadas no MA30 de BoulogneBillancourt. A primeira obra comprada pelo Estado não é, paradoxalmente, uma encomenda. Trata-se do último «envio de Roma» de Landowski, concebido livremente enquanto bolseiro na Vila Medicis. Apresentados no Salão dos Artistas Franceses de 1906, os Fils de Caim, foram comprados pelo Estado a fim de serem colocados no jardim Carrousel do Louvre. As críticas são entusiastas e vêm Landowski como o novo Rodin. Os Filhos de Caim são os primeiros homens que inauguram a história de humanidade: Jabel o pastor, Tubalcain o poeta músico e Jubal o ferreiro No projecto de Landowski, eles ocupariam o adro de um templo dedicado à celebração da história da humanidade. Este Templo, que Valéry viria mais tarde a chamar Templo do Homem, está, nessa altura, a ser elaborado por Landowski. Será a «grande obra» da sua vida. Mas já os Filhos de Caim suscitaram uma primeira luta com as autoridades da tutela. O último «envio de Roma» deveria ser executado em mármore. Este material, segundo Landowski, não se adequava ao seu futuro lugar no Templo. Em 21.10.1904, o escultor escreveu no seu Diário: «Começo da batalha para conseguir a execução em bronze». Ser-lhe-á concedida satisfação. Depois de ter estado no pátio Napoleão, o grupo encontra-se, actualmente, na Galeria à beira da água, nos Jardins das Tulherias. A partir daí as encomendas multiplica-se. Em 1906, o Estado encomenda a vários artistas esculturas destinadas a glorificar a arte francesa, com vista à reorganizar o Jardim du Carrousel do Louvre. O tema que cabe à Landowski é a Arquitectura. Na esperança de escapar à banalidade de uma alegoria feminina, muito apreciada na época, escreve: «3 figuras alegóricas deitadas, a pintura, a escultura, a arquitectura. As 3 na pose das estátuas em volta dos lagos de Versalhes. Assustador, que confusão… Fui capaz de encontrar outra coisa: um homem debruçado sobre uma laje de mármore, a reflectir e a gravar a sua cidade futura» (Diário 28.07.1907). A sua escultura pretende romper com a graça amaneirada que então se aprecia. Pelo contrário, a sua escultura mostra-se poderosa, realista, humanista e próxima da vida. Landowski defende a sua causa. Mas o subsecretário de Estado das Belas-Artes, Dujardin-Beaumetz, responde-lhe: «O Senhor entende, eu estou-me na tintas pela humanidade. O que quero é glorificar a arquitectura francesa. Portanto faça-me uma mulher!» (Diário 28.07.1907). Landowski, à força de argumentos, acaba por impor a sua maneira de ver. O destino de um monumento público é frequentemente aleatório. Em 1933 a escultura é atribuída à cidade de Reims enquanto que o gesso original está guardado no museu de Troyes. Em 1909, Landowski faz parte dos escultores a quem o Estado recorre para a decoração do Panteão. Cabe-lhe o grupo intitulado Os artistas cujo nome se perdeu, ou Os guardas do fogo eterno. O artista irá apresentar o seu modelo em gesso no Salão dos Artistas Franceses de 1910. Na consulta dos arquivos fotográficos constata-se que, também ali, o escultor usou de alguma liberdade ao introduzir ligeiras modificações entre o gesso proposto e a sua realização definitiva em pedra. Estas modificações vão no sentido da modernidade, com uma simplificação geométrica da lápide, um rejuvenescimento das figuras dos atlantas. Estas etapas são notórias, comparadas com a primeiríssima maqueta conservada no MA30, em Boulogne-Billancourt, e as imagens tiradas no Salão dos Artistas Franceses de 1910. A maior parte das estátuas encomendas entraram no Panteão em gesso, antes de serem traduzidas para o material definitivo. Ai também se colocou a eventualidade de transferência. Em 1921, o arquitecto Laloux denuncia o congestionamento do Panteão e propõe exclusões e uma comissão resolve «…que as obras não se harmonizavam com a arquitectura». Propõe-se então a escultura de Landowski (e a de Bouchard) à cidade de Lyon. Edouard Herriot recusa sob pretexto dos custos de transporte. Como tal, a escultura continua no Panteão. De seguida vieram os monumentos à glória da aviação nascente, geralmente encomendados por comités. Alguns tinham exigências precisas, nomeadamente Le Mans, com o monumento a Wilbur Wright e aos precursores da aviação. Landowski escreve no seu Diário, em 25.05.1917: «Incomoda-me trabalhar nesse monumento… Obedecendo ao Sr. d’Estournelles de Constant e ao Perfeito de Le Mans: o resultado é de uma grande banalidade. Um obelisco coroado por uma figura alada… Estremeço antecipadamente». Após vários esboços insatisfatórios da figura alada, o escultor acaba por impor a sua iconografia: um homem de pé, com os braços levantados para o céu. Uma informação de actualidade confirma as imprevisibilidades de um monumento público. Devido a uma nova linha de eléctrico em Le Mans, a estátua encontra-se actualmente numa reserva municipal e o seu destino será decidido quando acabarem os trabalhos, em fins de 2014. Na mesma altura surge o triste maná dos monumentos aos mortos. Landowski realiza uns trinta em terras metropolitanas, encomendados o mais das vezes pelos municípios. O tema mais frequente é «o soldado da Grande Guerra» ou a viúva com o órfão. Mas por entre eles, os que foram erigidos em terras então coloniais merecem uma atenção particular porque são sustentados por dois vectores, a comemoração da guerra e a história da colonização. Landowski executa dois monumentos acerca deste duplo tema. O primeiro é o monumento aos mortos de Casablanca (1924) intitulado A Vitória, encomendado pela «Associação dos veteranos de Casablanca». A fim de responder à esta dupla exigência, Landowski recorre a um processo que muitas vezes utiliza: a escultura de vulto que simboliza e a do baixo-relevo que conta. Aqui, o vulto exprime a amizade entre as duas comunidades incarnadas por um cavaleiro francês e um spahi marroquino indo ao encontro um do outro a estender-se a mão. Os baixos-relevos da base evocam, por sua vez, cenas de guerra. A colocação do monumento situado, originalmente na praça pública de Casablanca, foi decidida em parceria com os arquitectos da cidade, Prost e Laprade. A História fez com que grande número destes monumentos coloniais fossem destinados, no melhor dos casos, ao exilio, no pior dos casos à destruição. A Vitória de Landowski foi repatriado para Senlis pela Associação «Le Burnous», em 1961. Quatro anos mais tarde, Landowski ganha o concurso para um monumento aos mortos de Argel, intitulado Le Pavois. Trata-se de uma encomenda da cidade de Argel, feita por subscrição pública para o centenário da colonização. Aqui o problema era de estar em conformidade com o magnífico local dedicado ao monumento, a dominar a baía de Argel. Era necessário dar ao monumento a amplitude e a majestade condizentes com o local. Landowski jubila. Imagina um monumento triunfal, cavalos cobertos com mantas segundo a grande tradição: jacente levado em triunfo por uma vitória ladeada por um cavaleiro metropolitano e um spahi. Realismo e simbolismo reunidos. No seu Diário, escreve: «Isto tem ao mesmo tempo um carácter sumptuoso e heróico que deve ficar bem ao sol africano.» Os baixos-relevos da base foram realizados por Bigonet. Também este monumento foi vítima da História. Le Pavois, na altura da descolonização, foi coberto por uma camada de cimento e novos motivos a evocar a independência da Argélia foram esculpido no pedestal. Em 1928, Landowski é confrontado com a sua primeira restrição real em matéria de encomenda pública. Trata-se da estátua de Santa Genoveva encomendada pelo Estado. A ponte de la Tournelle, em Paris, foi construída em madeira, em 1369. Foi várias vezes destruída, construída de novo em pedra, em 1656, alargada em 1847, sendo a sua reconstrução em betão armado e pedra de Souppes decidida e posta a concurso em 1923. Os laureados são os arquitectos Pierre e Louis Guidetti. Os trabalhos demoraram quatro anos. O programa do concurso exigia que a decoração da ponte tivesse em conta a sua dissimetria. Como tal, os arquitectos decidiram tirar proveito desta anomalia erigindo um pilar do lado esquerdo, encimando-o com uma figura de Santa Genoveva. Os irmãos Guidetti que colaboraram com Landowski no monumento aos mortos de Fargniers, propuseram o nome do escultor a fim de realizar esta estátua. Em dezembro de 1924 é aprovada, pelo Ministério das obras públicas, a convenção entre o Estado e Landowski . O projecto fora anteriormente submetido ao Comité de estética e ao Conselho Geral e ficou decidido que a escultura seria monolítica. A iconografia escolhida pelo escultor representa a santa a defender “a cidadezinha dos parisienses”, personalizada por uma menina segurando nos braços a nave simbólica. Muito rapidamente, Landowski fica preocupado com a maqueta que lhe propõem, acha-a demasiado alta, demasiado bicuda e excessiva a altura do pilar. Aborda também o problema da orientação a montante que considera má (teria preferido que a estátua olhasse para a ilha da Cité). Numa carta dirigida ao ministro Bokanowski, o escultor escreve: “ É bastante desconcertante que a estátua, colocada à entrada da ponte, vire precisamente as costas a esta entrada e se apresente ao contrário… Falo apenas de razões de ordem plástica e técnica, embora o ponto de vista literário e de sentimentos (a orientação para Notre-Dame, a ponta da Cité, o centro de Paris), não deixe de ter, também, uma muito grande importância.” A estes argumentos, o Conselheiro de Estado responde: «Creio que nos devemos ater à intenção dos arquitectos e orientar a estátua na direcção de onde vieram os Bárbaros.» A fim de evocar o problema, Landowski pede, em junho de 1928 e, ao que parece, de acordo com os irmãos Guidetti, uma audiência ao ministro das obras públicas. O ministro em causa não toma posição e remete para o prefeito do Sena. Convencido, este intervém junto dos Giudetti que, contrariamente às expectativas, se retractam, mas, todavia estudam a possibilidade de diminuir a altura do pilar. A imprensa faz largamente eco destas tergiversações. “…Se a estátua olha para Bercy, será mais laica. É a cidade de Paris a proteger os seus filhos…” Por outro lado, as reacções do clero lamentam que, ao inverso da Santa Genoveva de Puvis de Chavannes, no Panteão, a virgem da Ponte de la Tournelle não olha para a Cité e para Notre-Dame. Em 26.6.1928, a estátua é, todavia, colocada de acordo com o projecto inicial por decisão do ministro e do prefeito e na ausência de Landowski que se encontra então em Marrocos para a realização do seu monumento A Vitória. Contudo, a polémica continua e o boletim municipal de Paris dá conta de debates tempestuosos. A inauguração que devia ter tido lugar em 9.7.1928 pelo Presidente Gaston Doumergue, foi adiada. Landowski não se conforma. Em 1943, anota no seu Diário: “ A beleza desta cabeceira de Notre-Dame!... E como eu desespero quando vejo, ao voltar-me, este horrível pilar da minha pobre Santa Genoveva.” Em termos estilísticos, Landowski submete-se aos aspectos arquitectónicos. Sendo excepcional na sua obra, utilizou a geometria como aspecto mais importante da sua escultura. Escreve: “…Esforcei-me por prolongar, com a minha estátua, a linha ascendente do pilar que a suporta. As pregas do manto casam-se com os ângulos do pilar e, na minha obra, nenhum gesto, nenhum movimento rompe este belo movimento em direcção ao céu!” Foram feitas e oferecidas réplicas de 1 metro de altura pelo Instituto das Senhoras de Santa-Genoveva a várias locais de Paris (igreja São-Estêvão-do-Monte, arcebispado de Paris, Prefeitura de Paris). À luz da história da arte, esta estátua monumental com geometrização rígida aparece-nos hoje muito em sintonia com a arte da época. Sucede o mesmo quando olhamos para o Cristo Redentor que, desde 1931, domina a baía do Rio de Janeiro. Aqui, Landowski dá sentido à proeza arquitectónica ao conferir uma modernidade «art-déco» à estátua, em perfeita harmonia com a paisagem natural e urbana que a envolvem. Em 1921, o Círculo católico do Rio de Janeiro adopta a sugestão aprovada pelo Cardeal Arcoverde de erigir um Cristo a dominar a cidade. Escolhe-se um lugar: a cúpula do Corcovado que domina a baía. Artistas locais propõe estudos como, por exemplo, Carlos Oswald que imagina um Cristo carregando a cruz e o globo. Nenhum é aceite. Em 1924, a comissão decide que Hector da Silva Costa, o arquitecto do projecto, viaje para a Europa a fim de encontrar um novo escultor. Escolha-se Landowski, que já realizara um conjunto monumental para o Palácio Piratini, em Porto-Alegre, no Brasil. Estabelece-se, então, uma colaboração entre o arquitecto brasileiro Hector da Silva Costa e o escultor de Boulogne. Landowski esculpe a cabeça em Paris (A: 3,75m) e as mãos (L: 3,20m) da estátua em tamanho e no material definitivos. Os dois homens concordam num revestimento de pedrasabão, que será feito pelas senhoras da sociedade brasileira, em longas tiras de tecido aplicadas na estátua. No local, a execução em cimento armado da escultura monumental (38 m x 38 m) começa em 1926. A cerimónia da bênção do monumento tem lugar em 1931 perante as autoridades militares, civis e religiosas. A iluminação que Marconi tinha planeado para a noite e à que havia de dar início a partir do seu iate, ancorado na baía de Nápoles, falhou e teve de ser veiculada por meio de um cabo telegráfico de emergência. A fim de se realizar este Cristo foram feito peditórios em todo o território brasileiro. Ulteriormente procedeu-se a trabalhos de ordenamento. A estrada foi construída em 1936 e o aumento dos miradouros foi realizada em 1945. O projecto inicial de Landowski previa uma capela no interior da base da estátua e cujos baixos-relevos deviam evocar a história de Cristo. Esta capela não foi feita. Um modelo da estátua, em gesso e com a altura de 2,50m, está instalada numa igreja de Ciry-Salsogne (Aisne). O monumento público incarna, frequentemente, um símbolo político. Assim gera, por vezes, reacções críticas por parte do cidadão. Estes anos estão marcados por dois incidentes. É o caso, em particular, do monumento dedicado a Paul Déroulède, erigido em Paris, na praça Marcel Pagnol. A estátua era, inicialmente, em pedra. Ora, o punho erguido e fechado do homem político, considerado demasiado agressivo, foi mutilado, assim como a cabeça. A escultura de pedra foi substituída por outra em bronze e o punho fechado deu lugar a uma mão aberta e mais pacífica. A base em pedra permaneceu inalterada. Um destino igual coube ao monumento a Emile Combes erigido em Pons. A inauguração foi perturbada pelos manifestantes realistas que mutilaram o busto. O assunto acabou tragicamente porque o autor do atentado foi abatido. A notoriedade de Landowski é, então, mundial. Em 1930, chega uma encomenda da China para realizar uma estátua de Sun Yat-sen, destinada ao seu mausoléu de Nanquim. Sun-Fo, filho de Sun Yat-sen e a delegação chinesa visitaram várias vezes o ateliê do escultor. Houve nomeadamente discussões muito animadas acerca do traje: europeu? chinês tradicional? comprimento da túnica? do colete? Pretendiamse traços realístas... mas não em demasia. Landowski fez valer argumentos plásticos e conseguiu o que pretendia. Monumental, na verdadeira acepção da palavra, já que tem 8 metros de altura, temos o monumento dos Fantasmas erigido na planície de Chalmont (Aisne) a comemorar as batalhas do rio Marne. «Levantarei estes mortos!...» prometera Landowski em 1916, quando foi incorporado, como numerosos colegas artistas, na secção de camuflagem. Landowski enche os cadernos com desenhos, retratos de soldados, esboços de pequenas histórias, trágicas ou cómicas acerca da vida no campo, o rancho, as tarefas, os pés gelados… Como conciliar a ideia da humanidade e a náusea dos campos mortíferos? Como dar um sentido a esta realidade e traduzir a transcendência em pedra, sublimar a morte? Os seus heróis têm botas, um capacete, um capote. Não lhe interessa a trivialidade dos acessórios. A nobreza está alhures. Entre outros, um esboço mostra os soldados carregando em ombros o camarada morto, como se o estivessem a oferecer ao martírio. A imagem é forte. Durante anos fará amadurecer a ideia dos Fantasmas. As festividades da vitória geraram quantidade de projectos de realizações definitivas ou efémeras como as previstas para o Arco do Triunfo. Landowski preocupa-se: «Pobres soldados! O que vos vão fazer!» (Diário, 05.06.1918). Ele já imagina o seu monumento aos soldados: «No centro, um túmulo com as ossadas de um soldado desconhecido. Em volta, um claustro formado por quatro muros esculpidos representando a infantaria, a marinha, a aviação. O quarto muro ficaria reservado às mães e às viúvas. No centro das duas portas: a Vitória crucificada. Do lado de fora um friso mostraria os exércitos em marcha. Nos ângulos da base, quatro grupos de heróis evocariam as etapas da libertação da França: SantaGenoveva, Charles Maertel, Joana d’Arc, Lazare Carnot. Estátuas equestres seriam dedicadas aos grandes militares» (Diário 15.01.1919). De seguida o projecto de um monumento torna-se oficial. O escultor propõe então «uma colunata a suportar um longo friso a perfazer todo o hemiciclo esquerdo da rotunda dos Campos Elísios em direcção à Concórdia. No centro do grupo os mortos levantam-se para ver passar a Vitória.» Pela primeira vez a imagem dos Fantasmas que se levantam ganha corpo. Mas prazos demasiado curtos obrigam Landowski a recusar participar no momento efémero do Arco do Trinfo que será, por fim, entregue a Louis Sue, André Mare, Antoine Sartorio e Gustave Jeaulmes. Em contrapartida, o Estado promete-lhe a realização do seu projecto em pedra, mas mais tarde. Landowski lança-se então no longo prazo: «Pensemos na grandeza e na gravidade que o monumento definitivo deverá ter. Pensemos que no que toca ao acontecimento a comemorar, ainda não podemos prever as suas consequências e a sua imensa fecundidade. » (Diário 25.11.1918). O rumo está marcado. Na realidade, o governo deseja erigir um Túmulo do soldado cuja localização está por decidir. Definem-se pouco a pouco dois projectos na imaginação do escultor. O Morto carregado pelo povo (corpo jazente carregado por homens e mulheres) e novamente Os Fantasmas (grupo de soldados erguendo-se do chão). A sua iconografia merece ser comparada. O Morto carregado pelo povo pertence à mais pura tradição comemorativa. Landowski escreve: «Todas as religiões desaparecerão, evoluirão. O culto dos mortos persistirá sempre. Vai chegar o dia em que será o único culto». De momento, Landowski hesita entre os dois projectos e imagina o local ideal: «A Terceira República deve a si própria erigir, por sua vez, o seu monumento que seria como o Partenon da França. A localização deste monumento já era há muito falado, a ideia teria agradado, era excelente, tratava-se do Mont Valérien. Que símbolo seria erigir ali, no lugar do forte, neste admirável lugar com aquela vista extraordinária que dali se tem sobre Paris, de erigir ali, a céu aberto, o monumento do herói desconhecido, um monumento simultaneamente a todos os nossos mortos, monumento à paz, monumento à França… Mas sei das enormes dificuldades…Então teríamos de recorrer aos Inválidos. O lugar é de recolhimento. Vejo muito bem a transformação da esplanada dos Inválidos numa via triunfal… Vejo muito bem o túmulo do herói na praceta da esquerda, a outra praceta seria consagrada à glória dos outros heróis anónimos da guerra» (Diário 10.11.1920). Parece que os Inválidos o local escolhido e Landowski desenha as duas iconografias in situ: «Apresentar os meus dois grupos, seja os Fantasmas, seja a Morte carregada pelo povo. A ideia de rasgar a praça a fim de se fazer esta espécie de claustro a céu aberto é muito boa. Sobretudo no que toca ao monumento carregado…. Quanto aos Fantasmas (devem) parecer que surgem realmente do chão». Já em novembro de 1919, Landowski ficou encarregado pelo Estado de executar o modelo em gesso de um monumento chamado Os Mortos. O título utilizado por Landowski é banal, embora já tenha escolhido a imagem dos Fantasmas que preferiu à do jazente. Mas «para a encomenda, explica, não se deve assustar ninguém» (Diário 17.10.1919). A escultura ganha a medalha de honra no Salão dos Artistas Francesas, em 1923. Por conseguinte, a sua construção será sucessivamente pensada para Verdun, o ossário de Douaumont, acabando, finalmente, por se decidir por um lugar próximo de Oulchy-le-château, na colina de Chalmont onde que assistiu à segunda batalha do Marne, em particular a jornada de 28 de julho de 1918, durante a qual as tropas alemãs tiveram de bater em retirada para Vesle. A encomenda oficial de um monumento em granito chegou em julho de 1926. A colina de Chalmont, o grupo esculpido , visto de longe, parece um acidente geológico estranho. Uma rocha a emergir deste terreno plano. Pouco a pouco, as silhuetas perfilam-se. Figuras humanas, inclinadas para trás, parecem erguer-se. São sete soldados. O artilheiro, o granadeiro, o metralhador, o aviador, o sapador, o soldado de infantaria, o pequeno lavrador. Têm as pálpebras fechadas. No meio deles ergue-se um homem nu, a figura do jovem herói morto. Mais abaixo, em frente, ergue-se a estátua de França. A cenografia é espectacular. Convida ao recolhimento. Encontramo-nos ali na esfera do sagrado dominada pela ideia da dádiva e da ressurreição. A juventude sacrificou-se, mas os através da memória colectiva. Os soldados libertam-se do campo mortífero para se erguer para o além, levados pela silhueta erguida do jovem mártir, «a figura mais difícil devido ao seu carácter simbólico, escreve Landowski, não é um modelo atlético, mas um adolescente quase frágil de rosto muito belo. A fragilidade, a juventude, a beleza.» (Diário 14.01.1921). Os homens não têm gestos, estão estáticos na sua monumentalidade mineral. Quatro patamares separam a França dos Fantasmas. Simbolizam os quatro anos que duraram os combates. Como num percurso iniciático, eles são uma introdução ao espaço sagrado. Os Fantasmas acolhem os peregrinos que vêm recolher-se no próprio local do sofrimento. A partir de 1928, após a escolha da localização, Landowski tinha «encontrado a apresentação definitiva dos Fantasmas…. Rasgar a colina de onde jorrariam os mortos erguidos… Tantos patamares quanto os anos de guerra, e, perto da estrada, uma grande figura da França em marcha. A paisagem e a escultura intimamente ligadas.» (Diário 29.11.1928). Quanto à França tinha sido objecto de inúmeras reflexões e estudos. Durante um ano, de 1930 a 1931, Landowski multiplica os projectos. Escreve: «Desta vez, creio mesmo ter agarrado a «França 1918» para Chalmont. Avança direitinha e sem um gesto. Um ligeiro vento nos cabelos e o grande manto preso no ombro direito. A única arma que carrega é defensiva. É o escudo com as três deusas que constituem a divisa da França: Liberdade, Igualdade, Fraternidade….» (Diário 01.12.1930). Mas antes desta escolha quantas hesitações, quantos arrependimentos relatados no Diário do escultor. Segundo os arquivos existem não menos de nove versões da estátua. Sucessivamente surge o braço direito erguido, o braço esquerdo a segurar o panejamento. Depois temos o braço direito a segurar um gládio enquanto o esquerdo brande uma vitória. A seguir aparece a mão esquerda aberta e pousada no peito. Seguidamente o punho esquerdo fecha-se. Finalmente ainda temos os dois braços cruzados, o direito a segurar um gládio. Por último põe-se a questão do traje. Fato moderno? Traje antigo? O mais espectacular é uma espécie de casula com baixos-relevos evocando a história nacional, «um amplo manto como o dos reis de França, todo bordado em baixo-relevo, crivado de figuras. História da França. As lendas históricas. Tudo isto deveria ser executado em materiais preciosos. Marfim, ouro, prata». Desde o princípio, Landowski afasta a ideia de uma França guerreira. Quando lhe coloca um gládio é para simbolizar a justiça. Quando lhe quer dar uma arma, escolhe um escudo defensivo. O barrete frígio que aparece durante um curto espaço na cabeça, desaparece para mostrar a cabeleira que ondula ao vento. Landowski aposta manifestamente na simplicidade. Quer uma França próxima: «Não quero que seja mais uma Minerva. Não quero que seja uma ressuscitada da Vitória de Rude, nem uma Samothrace. Tem de ser enérgica e doce. Tem de ter acção. Não pode gesticular. Tem de ser uma força irresistível em marcha.» (Diário 20.05.1931). Também o escudo da França evolui. De uma iconografia histórica que traça as grandes batalhas nacionais, passa à simples evocação das três figuras republicanas. Porque a história deste escudo é antiga. Começa em 1920, aquando de um concurso lançado para a comemoração das festas da vitória e do cinquentenário da Terceira República. O Escudo destina-se ao Panteão ou ao Arco de Triunfo. Landowski concebe então vários projectos. O texto gravado traça as grandes etapas da história nacional. Os baixos-relevos, muito finos, estão repartidos em zonas concêntricas. A sua imagem é capa de L’Illustration de 20 de novembro de 1920. Depois a forma, sucessivamente oval, triangular, redonda, assim como o motivo central mudam. Landowski prefere as três figuras republicanas - que repetirá para a França dos Fantasmas - a um motivo de Vitória guerreira. Com Os Fantasmas, que lamenta não ter feito em tamanho maior («teriam sido necessários mais cinco ou seis metros!» (Diário 22.06.1934). Landowski afirma-se como mestre da escultura monumental comemorativa. O granito serve admiravelmente o intento: eternizar a recordação. E embora por gosto seja mais dado à modelagem, Landowski sente, todavia, «gosto físico em trabalhar a pedra» (Diário 22.07.1930). Multiplica os estude, testa o material, experimenta a técnica e sobe diariamente para o andaime a fim de enfrentar a matéria. São precisos alguns dez anos no total para a realização dos Fantasmas, entra o minúsculo primeiro esboço de seis centímetros em gesso e os oito metros definitivos em granito. O monumento foi solenemente inaugurado em 27 de julho de 1935 pelo Presidente Albert Lebrun. Rapidamente, os Fantasmas se tornaram célebres. A sua imagem espalhou-se pela imprensa internacional. Foi realizado um modelo em mármore. Teria sido oferecido ao Metropolitan de Nova Iorque, por intermédio de Florence Blumenthal. Uma réplica da França e o seu escudo atravessaram várias vezes o Atlântico, primeiro no salão de fumo do Ile-de-France e, depois, no Liberté. Em 1929, o Estado encomenda a Landowski O túmulo do Marechal Foch a ser erigido sob a cúpula dos Inválidos, na capela S. Ambrósio. O orçamento e a ausência de concurso levam a grandes discussões na Câmara. O projecto é submetido ao General Weygand e a André François Poncet, então subsecretário de Estado. As primeiras maquetas são consideradas «demasiado góticas» e demasiado parecidas com o monumento de Argel. Vincent Auriol, então presidente da comissão de finanças da Câmara, defende Landowski. Fazem-se novos esboços onde desaparecem figuras alegóricas (a França, a fé e a coragem). As figuras públicas voltam a desfilar no ateliê. Ensaia-se uma maqueta no local que é aceite. Os soldados carregam com o corpo jacente do Marechal. Nos lados do sarcófago figuram baixo-relevos com cenas de guerra. Finalmente, o projecto é aceite. A realização final desejada pelo escultor dá uma ideia de realismo e simplicidade, de recolhimento solene. Landowski escreve: «É isto que eu chamo ser moderno. Não há alegoria. É uma cena verdadeira, de onde a sua nobreza, sua emoção, sua gravidade » (Diário 17.05.1943). O monumento foi inaugurado em 1937. Um ano mais tarde, em 1929, nova encomenda num estilo muito menos solene, mas muito original, para as Fontes da Porta de Saint-Cloud realizadas por concurso organizado ela Cidade de Paris. Tratava-se da primeira realização do programa de ordenamento das entradas de Paris após a demolição das fortificações. A encomenda começava bem, já que estipulava que as fontes seriam de vidro e luminosas, o que entusiasmou o escultor. Mas teve de se vergar à nova decisão: seriam finalmente executadas em pedra. O seu tema era a representação das cidades banhadas pelo Sena, os trabalhos e os lazeres urbanos e rurais. Landowski escreve no seu Diário que se está a divertir, apesar de tudo, no meio deste rendilhado de pedra numa superfície em vários planos ou num estilo decorativo (que, aliás não aprecia como tal), mistura as suas figuras realistas e alegóricas numa espécie de tapeçaria «mil flores». Numa das fontes figura o único auto-retrato do artista. Os arquitectos são Billard e Pommier. A inauguração teve lugar em 1936. Devido aos estragos da guerra, da água e da poluição, a cidade decidiu fechar o fluxo das águas. Acontece que a encomenda pública, no seu aspecto pecuniário se revela desastrosa para o artista. Foi o caso de Landowski quando o Estado egípcio lhe encomendou, em 1949, um monumento à glória de Méhémet Ali a ser erigido no Cairo. Cabia ao artista realizar a estátua equestre do herói egípcio, no cimo de um monumental pedestal esculpido por Niclausse e Gaumont. A revolução de Nasser acabou com a realização. Landowski escreveu em 1952: «Se o monumento Méhémet não for executado, como é mais que provável, vou beber um belo caldo feito com estas 4 toneladas de bronze que comprei antecipadamente.» Se até aqui nos foi dado constatar a liberdade que os donos das obras frequentemente permitiam a Landowski, não se passa o mesmo no que toca a um monumento comemorativo que lhe foi encomendado em 1956, destinado ao muro de suporte do cemitério de Passy, na praça do Trocadéro, em Paris. Esta encomenda resulta de um antigo projecto datado de 1937, do Comité à glória da infantaria francesa para o qual Bouchard tinha obtido o 1º prémio. A ideia é retomada em 1951, com nova designação de Monumento à glória das forças armadas francesas. O projecto de Bouchard, considerado demasiado ambicioso, é definitivamente abandonado. Por razões económicas é necessário reduzir o programa e, onde Landowski propunha uma «imensa cavalgada» a estender-se numa longa superfície do muro, fica decidido que apenas a parte central deste muro será esculpida. Muito desanimado, Landowski é obrigado a suprimir esta cavalgada e contentar-se com figuras simbólicas. Enfrenta um comité recalcitrante que envolve repetidas apresentações de novas maquetas que são violentamente contestadas nas comissões centrais dos monumentos comemorativos e no conselho municipal de Paris. O resultado final desagrada a muita gente e as críticas são muito duras. Landowski fica muito afectado. Foi o seu último contrato pública. Temos de terminar esta evocação com uma porta, realizada nesses mesmos últimos anos. Trata-se da Porta da nova faculdade de medicina de Paris. A encomenda data de 1938, mas foi interrompida durante a guerra. O programa artístico é garantido a razão de 1.50% para as obras de arte no orçamento das grandes obras. A execução faz-se em boa consonância com os arquitectos Madeline e Debat-Ponsan. Mas o grande interesse desta porta reside na sua origem. Devia, efectivamente, fazer parte do seu famoso Templo do homem e chamava-se, então, a Porta da ciência. A mudança de destino não levou à modificação da iconografia que relatava a evolução física da humanidade através dos mitos e lendas da vida e da morte. A única diferença foi a junção, na versão definitiva, de um tímpano consagrado à Esculápio. Landowski trabalhou durante toda a sua vida nesse templo. Os primeiros desenhos datam de 1902. Em 1925 expõe planos, maquetas e esculturas relacionadas na Exposição das Artes decorativas de Paris. Nenhum interessado sério se manifesta. Depois, ele contacta Bosworth, homem de Rockfeller, para que o seu templo figure como pavilhão francês na exposição de Chicago, em 1933. É um falhanço. Em 1937, por ocasião da exposição internacional, espera receber uma encomenda do Estado e propõe o seu projecto para um Pavilhão do pensamento francês. Será novamente recusado. Em 1950, numa última e vã esperança, propõe o projecto para um centro de estudantes do Próximo-Oriente. Este templo devia retraçar, em vulto e em baixo-relevo, a história da humanidade. Com uma planta quadrada, encimada por uma cúpula, os quatro muros (muro das Lendas, muro das Religiões, muro de Prometeu, muro dos Hinos) simbolizavam a aspiração humanista de Landowski. Os cerca de setenta monumentos públicos que lhe foram pedidos nunca consolariam Landowski de não ter podido realizar o seu templo. Em fins de vida, confiava ao seu Diário: «Isto era o que mais contava». A ironia da sorte quis que este artista com tantas encomendas públicas visse recusada a única que verdadeiramente teria desejado executar. Bibliografia Lefrançois, Michèle, 1983, Paul Landowski, Le Temple de l’Homme, memória de mestrado, Universidade Paris 10-Nanterre. Lefrançois, Michèle, 1993, Paul Landowski, catalogue raisonné de l’œuvre sculpté, tese de doutoramento, Universidade Paris 4-Sorbonne. Lefrançois, Michèle, 1995, Paul Landowski, Musée d’art moderne, Taipei´ Lefrançois, Michèle, 1999, in Michèle Lefrançois, Dominique Boudou (eds.), Paul Landowski, le temple de l’homme, Petit Palais, Paris Musées Lefrançois, Michèle, 2004, in Thomas Compère.Morel, Michèle Lefrançois, Dominique Boudou, Annette Becker (eds.) Paul Landowski, La Pierre d’Eternité, Historial de la Grande Guerre-Somogy. Lefrançois, Michèle, 2009, Landowski, L´œuvre sculpté, Creaphis.
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