O impacto da nutrição nos doentes oncológicos - Biblioteca
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O impacto da nutrição nos doentes oncológicos - Biblioteca
Nº1 - Ano 2006 - 4€ Setembro/Outubro Revista bimestral de ciência e investigação em saúde O impacto da nutrição nos doentes oncológicos Porque é que as emoções controlam a dor? Malformações no desenvolvimento embrionário da coluna vertebral: a importância do relógio molecular editorial Sei que produzir uma revista, em português, na área das ciências da saúde não é tarefa simples. Mas são estes desafios que me cativam. Senti o desejo de derrubar muros e criar uma publicação para os mais diversos profissionais nas áreas de saúde, mesmo a saber que algum conhecimento fica reservado a alguns grupos restritos e que Portugal não é um país com história em investigação neste campo. Um desejo simples de querer editar um meio de divulgação de ciência multidisciplinar em saúde, dar a conhecer estudos, torná-los de fácil leitura, atraentes, sem nunca anular a cientificidade dos trabalhos. Contra os compartimentos da divulgação em saúde, quero criar uma unidade na diversidade de temas, de ideias, de propostas, de conhecimentos, de vida. Consegui dar fundamento a este desejo com o ISAVE – Instituto Superior de Saúde do Alto Ave, e tenho a certeza que, aos poucos, ele será ampliado e reconhecido. Só com muita dedicação e persistência se consegue concretizar sonhos. Está nas vossas mãos a revista número 1. Não quero destacar temas por sentir que todos fazem parte de um conhecimento múltiplo e são, todos eles, a vida, o trabalho dos autores. Será esta primeira imagem que vamos manter, com muitas outras ideias e desejos que vão criar em cada Ser Saúde algo que acreditamos ser inovador e essencial. A Ser Saúde não é grande em tamanho, é de fácil transporte, de fácil manuseamento e encontrará entre as suas preferências um óptimo lugar. Quero a Ser Saúde como referência para pessoas que trabalham de alguma forma neste domínio. Penso que será utilizada como enciclopédia de saber múltiplo e plural, e o caminho que vai percorrer ajudará a clarificar alguns conceitos e a criar uma saúde melhor. Tenho de agradecer a quem tornou este projecto possível, a todos os que nos enviaram e continuam a enviar trabalhos, a quem de perto sempre me apoiou, e eram imensos os nomes que tinha de referir. Agradeço a quem tem a revista neste momento nas mãos e lê estas curtas palavras … mas o coração da revista é o trabalho publicado no interior. Eugénio Pinto 6 Walter Osswald Humanização em Saúde Humanizar é, em resumo, esforçar-se por colocar o doente no centro dos serviços de saúde, que só existem em sua função. Humanizar é servir e respeitar a pessoa doente na sua globalidade biológica, psicológica, sociológica e espiritual, sem estabelecer destrinças entre estas suas facetas, que não passam de manifestações de diversa ordem da mesma realidade única 14 2 Liliana Osório, Isabel Palmeirim Malformações no desenvolvimento embrionário da coluna vertebral: a importância do relógio molecular O tempo em que ocorre o desenvolvimento embrionário é constante e cuidadosamente regulado 22 Livro O Cérebro Analfabeto A influência do conhecimento das regras da leitura e da escrita na função cerebral Resumo do livro de Alexandre Castro-Caldas Director Eugénio Pinto [email protected] [email protected] Editor Rui Castelar Corpo redactorial André Dominguez Patrícia Morais Isabela Vieira Director de arte e grafismo Ângelo Mendes [email protected] 26 Entrevista Regenerar tecidos Entrevista a Rui Reis 32 Colóquio Procurando vencer o cancro: a hora dos tratamentos biol gicos Rui Mota Cardoso, Manuel Sobrinho Simões, Leonor David, Raquel Seruca, José Manuel Lopes, Paula Soares 44 Paula Ravasco, Isabel Monteiro Grillo, Marques-Vidal P, Camilo ME Cancro:doença e nutrição são determinantes chave da Qualidade de Vida dos doentes O impacto da Nutrição nos doentes oncológicos O presente estudo mostra claramente que a QV dos doentes com cancro é multifactorial e que é distintamente influenciada pela doença, intervenções terapêuticas e vários parâmetros nutricionais Fotografia Cláudio Capone Tiragem 5 mil exemplares / Bimestral Publicidade Celmira Dias Contactos Campus Académico do ISAVE - Instituto Superior de Saúde do Alto Ave Quinta de Matos - Geraz do Minho 4830-316 Póvoa de Lanhoso Telefone – 253 639 800 Fax – 253 639 801 www.isave.edu.pt [email protected] [email protected] Propriedade Ensinave Campus Académico do ISAVE - Instituto Superior de Saúde do Alto Ave Quinta de Matos - Geraz do Minho 4830-316 Póvoa de Lanhoso Impressão Orgal impressores Rua do Godim, 272 4300 - 236 Porto Nº de Registo na ERC 124994 ISSN 1646-5229 58 98 Sandra Macedo-Ribeiro Intermediários de agregação da proteína ataxina-3: Novos alvos na terapêutica da doença de Machado-Joseph A doença de Machado-Joseph, também designada ataxia espinocerebelosa tipo 3, é uma doença neurodegenerativa rara, descrita pela primeira vez nos anos 70 em descendentes de açorianos e para a qual não existe ainda nenhum tratamento eficaz 66 Armando Almeida, Hugo Leite-Almeida Porque é que as emoções controlam a dor? A dor não possui apenas uma dimensão sensorial, responsável pela determinação da intensidade, duração, localização e tipo de dor, “é uma experiência sensorial, afectiva e cognitiva desagradável associada a uma lesão do corpo real ou virtual, ou descrita com termos usados numa lesão desse tipo” Margareta I. Correia e Fernando A. Arosa A importância do microambiente hepático para o desenvolvimento dos linfócitos T 102 Gonçalo Castelo-Branco Sinalização por lipoproteínas Wnt no desenvolvimento de neurónios dopaminérgicos do mesencéfalo ventral A terapia por substituição celular constitui uma aproximação terapêutica alternativa para a doença de Parkinson, consistindo na transplantação de células funcionais para a área do cérebro afectada, de modo a que as novas células possam substituir os neurónios em degenerescência 112 82 Gustavo Afonso, Lara Costa, Marta Miranda Maria Arminda Mendes Costa Enfermagem geriátrica: a “arte” de aprender cuidando A explicitação dos fenómenos sociais e humanos, que ocorrem no universo dos cuidados aos idosos, surge como indiciadora de ligações entre os acontecimentos do percurso de vida dos enfermeiros, designadamente os de natureza familiar, e os modos de acção e interacção com os utilizadores idosos dos cuidados Abordagem da ferida crónica: tratamento local Ao efectuar o tratamento local da ferida crónica baseado no conceito de tratamento em meio húmido, atinge-se um elevado nível de eficácia e eficiência relativamente aos recursos materiais e humanos, visto que se consegue diminuir o número de intervenções curativas e, assim, diminuir o tempo de cicatrização 92 120 Fernando Duarte, Carina Ramos Antigénio específico da próstata – PSA – Aplicação forense Paula Espírito Santo A determinação da presença e concentração de PSA em materiais provenientes de amostras de manchas de cenários de crimes sexuais, onde o corpo de delito é o esperma, é de extremo valor Planeamento Cirúrgico e Protético Virtual na Reabilitação de Pacientes Desdentados Totais O conceito de planeamento cirúrgico e protético virtual permite replicar o tratamento planeado em realidade clínica na reabilitação de pacientes parcial ou totalmente desdentados Poster AVC em doente jovem – caso clínico J. M. Macedo, M. Ribeiro, M. J. Sampaio, R. Lopes, C. Fraga, J. A. Freire Soares 3 Biocant Como centro de investigação e desenvolvimento aplicado em Ciências da Vida, o Biocant cria produtos e serviços inovadores em biotecnologia. 4 Unidades de Biologia Celular, Biotecnologia Molecular, Bioinformática, Genómica, Microbiologia e Serviços Avançados, equipadas todas as unidades com as tecnologias mais avançadas, bem como com equipamentos de última geração, o Biocant promove a inovação Ciências da Vida em investigação em consórcio com a indústria e apoia o bioempreendedorismo em Portugal. Instalado no Biocant Park, o primeiro parque de biotecnologia em Portugal, o Biocant tem abertas as portas de um centro de investigação e desenvolvimento em biotecnologia, com quadro próprio de investigadores e alicerçado na forte tradição científica dos centros de investigação de excelência das universidades de Coimbra e Aveiro. Prémio BIAL 2006 Actualidade Com a presença de Sobrinho Simões, presidente do júri do Prémio Bial 2006, Luís Portela, presidente do grupo e da Fundação BIAL, e Nuno Grande, figura emblemática do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, foi apresentado na Casa do Médico, no Porto, a edição 2006 do Prémio Bial. reconhecido mérito, como Armando Porto, Henrique de Barros, João Lobo Antunes, António Rendas e Maria de Sousa. Promovido bianualmente desde 1984, o Prémio Bial é considerado um dos mais importantes prémios europeus da área da Saúde. A edição 2006 do Prémio O galardão contempla as categorias “Grande Bial distinguirá, uma vez Prémio Bial de Medicina” e “Prémio Bial de mais, duas obras nas seguintes modalidades: Medicina Clínica”, e as obras a concurso terão “Grande Prémio Bial de Medicina” – destinado a de ser entregues até 31 de Outubro galardoar obras nacionais ou internacionais, de A Fundação Bial é uma instituição sem fins índole médica, com tema livre que representem lucrativos, considerada de utilidade pública, uma investigação de grande repercussão ou criada em 1994 pelos Laboratórios Bial em que se distingam pela sua qualidade e relevância conjunto com o Conselho de Reitores das científica (150 mil euros) – e “Prémio Bial de Universidades Portuguesas. A Fundação Bial Medicina Clínica”, que visa distinguir um tema tem como missão a promoção do estudo do livre de elevada qualidade dirigido à prática de Homem, distinguindo-se pelo seu papel Clínica Geral (50 mil euros). O galardão da incentivador da investigação médica e científica Fundação Bial premiará ainda algumas obras a nível internacional. Para além do prémio Bial, com Menção Honrosa (5 mil euros cada). a Fundação Bial atribui Bolsas de Investigação Científica e organiza, bianualmente e desde Para além de Sobrinho Simões, fazem parte 1996, o Simpósio Aquém e Além do Cérebro. do júri médicos, cientistas e investigadores de Walter Osswald Professor aposentado da Faculdade de Medicina do Porto, membro do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa 6 Humanizaçã As excepções, por o serem, não fazem a regra; e os cuidados de saúde são muitas vezes prestados em condições e ambientes pouco dignos, por profissionais apressados, arrogantes ou insensíveis às angústias e medos dos doentes, com excesso de burocracia, sem comunicação adequada, de forma descortês, autoritária ou desrespeitosa. Não é esta a primeira vez que partilho a minha reflexão sobre este tema e sempre que procedi a este exercício me surpreendi a questionar-me sobre a justeza da terminologia usada. Se humanização é tornar humano, será apropriado, “justo, racional e salutar” falar de humanização dos cuidados de saúde? Não é a prestação destes cuidados, alta, nobre e virtuosa actividade, na qual seres humanos vão ao encontro de outros seres humanos e põem ao seu serviço os seus conhecimentos e técnicas para os aliviar dos seus achaques, para prevenir o desconforto e a doença, para os ajudar a superar os seus padecimentos e até, eventualmente, para os curar? Não são para tal empenho necessárias nobres e valorosas qualidades humanas, baseadas na solidariedade e na benevolência? Não se orgulham os médicos e os enfermeiros da longa tradição de abnegado serviço em favor dos mais marginalizados, doentes e pobres? Não estão vivos os nomes de tantos que tudo deram para salvar vidas e aliviar padecimentos – dos físicos vitimados pelas pestilências aos voluntários médicos praticando no deserto ou sob as bombas, de Florence Nightingale a Albert Schweitzer? E a Igreja Católica não elevou aos altares figuras como João de Deus, Camilo de Lellis, Ricardo Pampurri, Giuseppe Moscati (preparando-se certamente para o fazer com Raoul Follereau ou Teresa de Calcutá, nossos 7 ão em Saúde contemporâneos), cuja santidade se traduziu na devoção com que se entregaram ao cuidado dos seus doentes? Sim, tudo isto é verdade: sempre floriram as virtudes da caridade, da compaixão, da solidariedade, da oblação em prol dos desfavorecidos e doentes. Mas... às perguntas acima formuladas responderemos com a afirmativa, mas logo se impõe a adversativa, pois isso não significa que sempre e em toda a parte encontremos essas atitudes louváveis, essas pessoas exemplares, as altas virtudes que admiramos. As excepções, por o serem, não fazem a regra; e os cuidados de saúde são muitas vezes prestados em condições e ambientes pouco dignos, por profissionais apressados, arrogantes ou insensíveis às angústias e medos dos doentes, com excesso de burocracia, sem comunicação adequada, de forma descortês, autoritária ou desrespeitosa. Mormente no grande Hospital, o doente sente-se frequentemente perdido, despersonalizado, privado de vontade e até de liberdade. Os nostálgicos dirão: como estamos longe do João Semana! Mas os cínicos responderão: felizmente, porque ele não tinha antibióticos nem TAC. Ora, esta não é a questão correcta, pois não se trata aqui de poder técnico-científico mas sim de relação inter-subjectiva 8 As causas da desumanização Podemos afirmar, sem risco de desmentido, que a evolução das ciências da saúde no último meio século foi, de facto, extraordinária, acelerada (no melhor sentido da palavra), sensacional mesmo. Nesta área, o progresso registado tem sido caudaloso ou torrencial, graças às descobertas das ciências fundamentais (genética, imunologia, bioquímica, patologia, farmacologia...), às inovações tecnológicas (v.g. imagiologia, telemedicina, cirurgia laparoscópica, cardiologia de intervenção) e ao desenvolvimento de equipamentos e medicamentos. Mais: estes progressos verificam-se em todas as áreas da saúde, desde a medicina prénatal até às doenças degenerativas do sistema nervoso central, relacionadas com a idade. Não há dúvida de que a medicina avançou mais nestes 50 anos do que nos 25 séculos que nos separam de Hipócrates de Cós. Perante este risonho panorama, custa introduzir de novo a adversativa: mas o preço pago por estes progressos notáveis foi muito elevado e – o que é mais grave – não era exigido pelo mesmo progresso. É que o aprendiz de feiticeiro se deixou fascinar pela técnica e relegou o doente para um sombrio segundo plano, erguendo à condição de fim o que não passa de um meio para servir o doente (a técnica, as terapias). Mais ainda: retomou uma crença que já demonstrou a sua intrínseca falibilidade, curvando-se reverentemente perante o ídolo do cientismo; para ele, a ciência tudo resolverá e merece todos os sacrifícios, talvez até os humanos. Ainda em ligação umbilical a este culto do cientismo está o apreço pela proeza, pelo recorde médico, pelo sensacionalismo: intervenção pela primeira vez praticada no nosso país, técnica original desenvolvida no nosso grupo, trabalho publicado na prestigiada revista XYZ com o relato de um dos dez casos conhecidos à escala mundial – nada disto está moralmente incorrecto ou é censurável, desde que se mantenha nos limites éticos e deontológicos e não resulte de uma menor atenção, mais apressado atendimento ou menor atenção, ou menor investimento na grande coorte dos doentes “vulgares”, que não sofrem de doenças raras nem dão azo a publicações. A organização dos serviços e sistemas de saúde, provavelmente burocratizada e complexa em excesso, tende a tornar anónimo o paciente, reduzido à condição de utente portador de um cartão ou de beneficiário de uma assistência que lhe é magnanimamente concedida e de cujos serviços se deve aproximar com deferente reverência. Assim, o cidadão que recorre aos serviços de saúde parece dever assumir a atitude de um peticionário e não a de um parceiro cooperante. Também contribui para tornar menos A organização dos serviços e sistemas de saúde, provavelmente burocratizada e complexa em excesso, tende a tornar anónimo o paciente, reduzido à condição de utente portador de um cartão ou de beneficiário de uma assistência que lhe é magnanimamente concedida e de cujos serviços se deve aproximar com deferente reverência. 9 humana a relação médico-doente a crescente tendência para a intervenção de equipas de saúde (frequentemente multidisciplinares), certamente justificada ou até exigida pelo próprio progresso, mas em que o rosto do médico “assistente” se desfoca e dilui na fotografia do grupo; o “meu” médico não pode ser substituído pelos meus médicos, psicólogos, terapeutas, enfermeiros, etc. Entre médico e doente não deveria haver intromissão. Ora, a entrada de terceiros nesta relação privilegiada é hoje uma constante; de forma mais ou menos aparente, aí está a segurança social, a companhia de seguros, o empregador, a direcção geral, etc., a estabelecer regras, a impor procedimentos, a coarctar liberdades, a vigiar atitudes, tornando poligonal uma relação que deveria ser bipolar. A contínua escalada dos preços dos cuidados de saúde (vencimentos dos profissionais, custos do internamento hospitalar, espiral dos preços dos medicamentos mais recentes e, sobretudo, incrementos exponenciais do custo das cada vez mais sofisticadas técnicas de diagnóstico e terapêutica) veio por em causa a sustentabilidade do financiamento dos serviços de saúde públicos. As respostas encontradas em alguns países (selecção de grupos de patologias ou de pacientes elegíveis para comparticipação, escalonamento desta última, estabelecimento de limites de idade para acesso a certos tratamentos, etc.) são de natureza economicista, pura e dura, e têm óbvias consequências discriminatórias e desumanizantes. Finalmente, a mudança de atitudes de natureza cultural no que diz respeito à doença, ao sofrimento e ao papel dos profissionais de saúde (que aqui teremos de nos limitar a registar, sem pretensões de adequada análise) têm também contribuído para dificultar a relação doenteprofissional de saúde. Rejeitado o sofrimento, exigida a saúde como direito, projectado o retrato do profissional de saúde como o do técnico que não tem direito a enganar-se, o cidadão comum não está em boas condições para entrar numa relação humana, confiante e tolerante com o profissional que deve ser competente e compassivo mas não é isento de defeitos, incapaz de errar ou imune a pressões. Uma estratégia humanizante Urge, pois, humanizar os cuidados de saúde e para tal há que traçar uma estratégia e ter em conta a realidade. Antes de mais, identificar os locais prioritários para a intervenção humanizadora, no duplo sentido topográficoinstitucional e fásico-conceptual. Não restam dúvidas de que no sentido dos locais físicos, a prioridade deve atribuir-se aos Centros de 10 Saúde e suas extensões e, a seguir, aos Hospitais de maior dimensão. Já no que respeita às fases do percurso do doente numa instituição, poderse-ia afirmar que todas necessitam, e muito, de sofrer um influxo humanizante; mas parece razoável seleccionar o atendimento, o acolhimento, os cuidados paliativos e os terminais como sendo as áreas que necessitam de maior investimento, em termos de humanização. Limites de espaço não nos permitem esclarecer esta posição nem apresentar a respectiva fundamentação nem sequer introduzir os temas, igualmente importantes, das condições tantas vezes desumanas em que se processa o trabalho dos profissionais e do relacionamento (ou sua ausência) com os familiares dos doentes. Quem e como: os agentes e o modo Se a humanização é urgente, e não apenas necessária, se os locais da sua intervenção saneadora e reabilitante são identificáveis, então está indicado perguntar quais são os seus agentes, ou, por outras palavras, a quem cabe humanizar os cuidados de saúde e como o deve fazer. A resposta que imediatamente ocorre e que certamente é a correcta, ou seja, que se trata de tarefa comum a todos os cidadãos, pode, por demasiado lata, redundar em desculpabilização e inacção: o que é de todos acaba por não ser assumido por ninguém em particular. Já por esse motivo, e mais particularmente ainda pelo facto indiscutível da sua proximidade e responsabilidade em relação ao doente, é natural que seja atribuído especial e proeminente protagonismo aos profissionais de saúde. Sob esta designação se entendem não apenas os médicos e enfermeiros, mas todos os que intervêm na complexa rede da prestação de cuidados, mesmo que de forma indirecta, como por ex. os gestores e administradores, auxiliares, maqueiros, contínuos, seguranças, empregados administrativos, técnicos, analistas, farmacêuticos, ou outros ainda que em conjunto exercem uma profissão que em última análise deriva a sua justificação e tarefa do simples facto da existência de pessoas doentes. A telefonista que atende um pedido de informação ou uma tentativa de marcação de consulta, a recepcionista que do lado de lá do balcão se confronta com o lado de cá da vulnerável vida, o médico que ouve as queixas, o enfermeiro que muda o penso ou presta cuidados higiénicos, a empregada que traz o tabuleiro com a refeição, o capelão que ministra sacramentos, o profissional que comunica aos familiares o falecimento do seu ente querido – todos eles, e muitos mais, têm de ser agentes da humanização. Para o serem, necessitam de reflectir sobre esta sua tarefa – missão, de lhe delimitarem os contornos, de se tornarem convictos adeptos da intervenção humanizadora, de se assumirem como arautos da norma ética Humanizar os cuidados de saúde será, pois, por em prática tudo o que possa contribuir para o respeito maior da dignidade de cada pessoa, tudo o que evite discriminação, humilhação, sensação de vergonha ou de ser desprezado, de ser maltratado ou menosprezado; humanizar será ter em atenção permanente as condições do exercício da liberdade do doente, que na prática desagua na sua autonomia, respeitável até ao limite do absurdo… 11 que subjaz à humanização e de a porem em prática, através da humanização do seu agir. Todos são chamados a esta tarefa, mas ainda aqui a proximidade e a responsabilidade apontam o dedo aos enfermeiros e médicos como agentes de primeira linha da concretização de medidas humanizantes. Mas há, obviamente, outros intervenientes no processo, não podendo ser esquecidos os voluntários, os ministros das diversas religiões, as Comissões de Humanização, que são verdadeiros agentes catalizadores das transformações que é necessário realizar. Não se nega que seja possível humanizar sem aprofundar previamente, através da reflexão, a questão fundamental da filosofia, ou seja, a pergunta acerca do que é o homem, ou melhor, o que é a pessoa humana. A verdade, porém, é que uma humanização consciente e responsável terá de ter como sólida base um conceito de antropologia filosófica – como tornar mais humano sem saber o que é o humano, o próprio da pessoa? Se nos abalançarmos a elucidar esta questão, corremos o risco, dirse-á, de nos perdermos na floresta das interpretações com que as diversas correntes filosóficas têm contribuído para o estudo desta questão. Mas tais reais dificuldades não nos devem demover do nosso propósito inicial, aconselhando-nos apenas a optar pela virtude da prudência, contentando-nos com inquirir acerca do que convém ou não convém ao ser humano, acerca do que lhe é próprio e característico e tem de ser respeitado e fomentado quando a sua condição de doente actual ou potencial o leva a procurar os serviços de saúde. Nesta perspectiva prudencial, já será fácil obter respostas consensuais: são a sua dignidade intrínseca, a sua liberdade, a sua responsabilidade e exigência de alteridade as características essenciais, por assim dizer os traços que fundam o rosto humano, traços esses que se não perdem quando a pessoa se declara ou está doente. Humanizar os cuidados de saúde será, pois, por em prática tudo o que possa contribuir para o respeito maior da dignidade de cada pessoa, tudo o que evite discriminação, humilhação, sensação de vergonha ou de ser desprezado, de ser maltratado ou menosprezado; humanizar será ter em atenção permanente as condições do exercício da liberdade do doente, que na prática desagua na sua autonomia, respeitável até ao limite do absurdo (p. ex., a recusa de se sujeitar a uma terapia que se prevê salvadora da vida); humanizar será ainda confrontar o paciente com a sua responsabilidade pessoal e incentiválo a colaborar nas decisões, sem lhe negar a possibilidade de abdicar desse direito, para confiadamente se entregar ao cuidado dos profissionais de saúde; humanizar será ainda ajudar o doente a entender que o seu caso não é o único nem necessariamente prioritário, por serem muitos os que sofrem e o seu sofrimento O mais urgente é pensar e agir: pensar e agir, para que os cuidados de saúde sejam mais humanos e, assim, tenham melhor qualidade, já que a qualidade técnica é apenas secundante da excelência humana. 12 poder não ser aquele que mais necessita de atenção. Tudo isto, que em teoria se apresenta complicado e eriçado de dificuldades, se torna simples através da postura empática e dialógica. Atender com cortesia, informar com exactidão, mostrar disponibilidade, escutar com atenção e paciência, interessar-se, procurar partilhar as melhores soluções, esclarecer, dizer a verdade (se desejada) com carinho e gradualidade, tentar compreender as queixas dos maçadores ou dos impertinentes, corrigir inverdades, abusos ou falsas acusações a que a condição humana (por nós partilhada com os doentes) não é imune – tudo isto é humanizar. Também o é o cuidar pelas coisas materiais, pelo conforto e amenidade dos ambientes em que o doente tem de passar o seu tempo de espera (da consulta, do tratamento, da alta hospitalar, por fim da morte): aquecimento ou ar condicionado, mobiliário, meios de entretenimento (televisão, jornais, revistas), cor das paredes, limpeza (particularmente dos quartos de banho), música de ambiente, espaços, atenção às necessidades específicas de crianças (jogos, brinquedos), de incapazes ou de velhos com deficiência sensorial. Também é humanizar o prover os Hospitais de serviços a que os doentes possam recorrer, tais como telefones, correios, florista, cabeleireiro/barbeiro, venda de livros e jornais, biblioteca itinerante. É ainda humanizar facilitar as visitas, permitir que um familiar escolhido pelo doente possa estar junto dele durante longos períodos (e eventualmente lhe preste assistência na higiene e na alimentação), promover o contacto do doente com o ministro da sua religião, sempre que o pretenda. Humanizar é, em resumo, esforçar-se por colocar o doente no centro dos serviços de saúde, que só existem em sua função. Humanizar é servir e respeitar a pessoa doente na sua globalidade biológica, psicológica, sociológica e espiritual, sem estabelecer destrinças entre estas suas facetas, que não passam de manifestações de diversa ordem da mesma realidade única. Humanizar: um imperativo Milhões de consultas foram feitas no último ano no nosso país. Centenas de milhares de pessoas estiveram deitadas em leitos hospitalares e cerca de 50.000 neles morreram. Não sabemos quantos encontraram condições e tratamentos condignos com a humanização, mas temos a certeza de que este problema de ética médica afectou incomparavelmente mais pessoas do que as questões relacionadas com a procriação medicamente assistida ou o abortamento. Todavia, existe um grande silêncio branqueador, como se nada se passasse – mas a esmagadora maioria das reclamações constantes dos livros 13 existentes nas instituições diz respeito a faltas de humanidade nas relações com os doentes. É necessário, é urgente humanizar os cuidados de saúde e o primeiro passo consiste na interiorização do problema pelos profissionais de saúde, no estudo da realidade, no planeamento das soluções e na sua concretização prática. Muitos considerarão utópico este projecto, mas quem, como nós, teve a inolvidável experiência de ver centenas de profissionais de saúde reunirem-se única e exclusivamente para debater os problemas da humanização, para encontrar as melhores vias para a sua concretização, realizando-as depois através de actos, intervenções, mudanças de atitude, dentro dos muros das suas instituições, e isto ao longo dos anos – quem teve esta experiência sabe que é possível e desejável travar esta batalha pacífica pela humanização. O mais urgente é pensar e agir: pensar e agir, para que os cuidados de saúde sejam mais humanos e, assim, tenham melhor qualidade, já que a qualidade técnica é apenas secundante da excelência humana. Algumas indicações bibliográficas OSSWALD, W. – A relação enfermeiro-doente e a humanização dos cuidados de saúde. Cad. Bioética, 11 (23): 41-45, 2000 ALVES, L. – Ser voluntário. Humanização em Notícia, 8, Junho de 2001 IMPERATORI, E. – Humanização – vista panorâmica dos nossos hospitais. Humanização em Notícia, 6, Junho de 2000 OSSWALD, W. – A humanização como forma de solidariedade. In Política da Saúde e Solidariedade Cristã, Actas dos XIII e XIV Encontros Nacionais da Pastoral da Saúde. Fátima, 1999, 2000. Paulus Editora, 2001 (pp 247-251). Comissão Nacional para a Humanização dos Serviços de Saúde (Ministério da Saúde) – Programa de acção. Lisboa, 2000 OSSWALD, W. – A urgência da humanização crescente dos serviços de saúde. Nortesaúde 3: 10-11, 2001 MATOS, M.B. – A propósito de (des)humanização. Humanização em Notícia, 7, Dezembro de 2000 OSSWALD, W. – Humanização, ética, solidariedade. Cad. Bioética, 12 (29): 15-20, 2002 MENEZES, R.D. Borges de – Humanização hospitalar: axiologia e ética. Enfer.Oncol., 26-27:31 – 40, 2003 QUINTELA, M.J. – Cuidados continuados, cuidados humanizados. Uma nova relação social com a saúde das pessoas. Humanização em Notícia, 9, Outubro de 2001 OSSWALD, W. – Humanizar a saúde. Notícias Med., nº 2440: 23, 1997 Liliana Osório1 Isabel Palmeirim2 1 Licenciatura em Biologia, ramo científico – Faculdade de Ciências da Universidade do Porto; aluna de Doutoramento da Escola das Ciências da Saúde da Universidade do Minho e da Université Pierre et Marie Curie (Paris VI). 2 Licenciatura em Medicina – Faculdade de Medicina da Universidade Clássica de Lisboa; "Doctorat en Sciences de l'Universite Pierre et Marie Curie (Paris VI)" – área de Biologia do Desenvolvimento. 14 Malformações no da coluna vertebral: Introdução Os vertebrados incluem diversos organismos, tais como: o homem, o ratinho, a galinha, a tartaruga, o peixe, etc. Estes animais são aparentemente muito diferentes quer a nível morfológico, quer a nível fisiológico. No entanto, durante as primeiras etapas do desenvolvimento embrionário, os seus embriões são inacreditavelmente semelhantes (Figura 1). Por este motivo, os conhecimentos acumulados sobre o desenvolvimento embrionário dos animais podem ser, mais ou menos directamente, extrapolados para o embrião humano. Figura 1 15 desenvolvimento embrionário a importância do relógio molecular Figura 1. Desenvolvimento embrionário nos vertebrados. A – Esquema comparativo do desenvolvimento embrionário de diferentes vertebrados, onde é possível observar a semelhança existente entre os diversos embriões nas primeiras etapas de desenvolvimento. B – Fotografia de embrião humano (à esquerda), com 8 semanas de desenvolvimento e embrião de galinha (à direita), com cerca de 3 a 4 dias de desenvolvimento, mostrando a semelhança entre os dois embriões. O tempo que um embrião de vertebrado demora a desenvolver-se é constante e cuidadosamente regulado em todos os orga- nismos. Este controlo de tempo é um fenómeno crucial para o embrião, dado que as várias etapas do seu desenvolvimento só atingirão o efeito desejado se ocorrerem no local e no momento adequados. Segmentação do corpo dos vertebrados Os vertebrados são organismos segmentados e esta segmentação corresponde à repetição de estruturas semelhantes (vértebras, no caso dos vertebrados) ao longo do eixo céfalo-caudal do embrião. Esta segmentação é crucial para a organização espacial embrionária e estabelece- 16 se muito cedo durante o desenvolvimento embrionário, manifestando-se pela formação de umas estruturas chamadas sómitos. Durante os estadios iniciais do desenvolvimento de um embrião de vertebrado podem observar-se o tubo neural e a notocorda, órgãos ditos axiais porque definem o eixo do embrião. Estes órgãos são ladeados pela mesoderme paraxial (PSM) que se divide em dois compartimentos (representados a vermelho na Figura 2): anteriormente, um território já subdividido em sómitos (estruturas esféricas); posteriormente, a mesoderme paraxial presomítica não segmentada. Num processo extraordinariamente bem coordenado e periódico, um grupo de células da parte mais anterior de cada PSM, separa-se desta formando-se assim um par de sómitos. Simultaneamente, na região posterior do embrião, novas células são recrutadas para a PSM, garantindo o alongamento posterior desta estrutura. Figura 2. Embrião de galinha e embrião humano. Fotografia (A) e esquema (B) de embrião de galinha, com cerca de 45 horas de desenvolvimento, apresentando 13 sómitos que flanqueiam o tubo neural localizado axialmente. Os sómitos formam-se, segundo uma direcção antero-posterior a partir da PSM. C – Embrião humano com cerca de 5 semanas de desenvolvimento, apresentando 10 sómitos formados. Os sómitos formam-se e, algumas horas depois, as suas células dissociam-se dando origem a várias estruturas segmentadas do corpo adulto, tais como as vértebras, os discos intervertebrais, as costelas e ainda todos os músculos esqueléticos (com excepção dos da cabeça). Os sómitos são morfologicamente idênticos mas, como sabemos, as vértebras não são todas iguais e as costelas só se formam ao nível das vértebras torácicas. Isto significa que as células que compõem um sómito têm uma noção da sua posição no eixo antero-posterior do embrião. O número total de pares de sómitos, assim como o tempo necessário para formar cada um destes pares, é constante e caracteFigura 2 rístico de uma espécie. Um par de sómitos é formado cada 90 minutos no embrião de galinha (o qual apresenta um Um par de sómitos é formado cada 90 minutos no embrião de galinha (o qual apresenta um número total de 53 pares de sómitos) e cada 150 minutos no homem, até atingir um número total de 42 pares de sómitos. A espantosa periodicidade e simetria deste processo sugere que o embrião tem um relógio interno, que controla o ritmo de formação e o número total de pares de sómitos a formar, de acordo com a sua espécie. número total de 53 pares de sómitos) e cada 150 minutos no homem, até atingir um número total de 42 pares de sómitos. A espantosa periodicidade e simetria deste processo sugere que o embrião tem um relógio interno, que controla o ritmo de formação e o número total de pares de sómitos a formar, de acordo com a sua espécie. Como é que as células contam o tempo? A primeira evidência molecular da existência de um relógio molecular a operar no embrião de um vertebrado surgiu a partir de trabalhos realizados por Palmeirim e colaboradores, em 1997. Estes investigadores descobriram que em cada célula da PSM o gene c-hairy1 era “lido” de uma forma cíclica, com um tempo de ciclo igual ao tempo necessário para formar um par de sómitos. Todas as células do nosso organismo têm os mesmos genes. No entanto, cada célula só “lê” alguns dos seus genes. Este é um processo complexo que engloba diferentes etapas: inicialmente, a célula copia o gene, produzindo uma molécula de RNA dito “mensageiro”, específico do gene em questão. Posteriormente, o RNA mensageiro irá dar origem a uma proteína, responsável por uma determinada função. Experiências de hibridação in situ, que permitem a marcação a azul das células que produzem o RNA mensageiro em estudo mostraram que o gene c-hairy1 é “lido” nas células da PSM, mas de forma muito variável (Figura 3). Posteriormente, utilizando-se diversas técnicas de embriologia experimental, verificouse que esta variação se deve a uma alternância entre o estado “lido” e “não-lido” deste gene e que estas oscilações apresentam uma periodicidade de 90 minutos, o que corresponde ao tempo de formação de um par de sómitos. 17 O tempo em que ocorre o desenvolvimento embrionário é constante e cuidadosamente regulado. 18 “informação temporal” em “informação posicional” ao longo do eixo antero-posterior da PSM do embrião (Andrade et al., 2005, Freitas et al., 2005). Figura 3 Figura 3. “Leitura” dinâmica do gene c-hairy1 na PSM. Fotografias da metade posterior de embriões de galinha com 15 sómitos, apresentando diferentes padrões de “leitura” do gene c-hairy1 ao nível da PSM. As moléculas de RNA mensageiro do gene chairy1 foram identificadas recorrendo à técnica de hibridação in situ, ficando coradas de azul (adaptado de Palmeirim et al., 1997). Os dados disponíveis actualmente sugerem que cada célula da PSM será sujeita a um número predeterminado de oscilações entre o estado de “lido” e “não-lido” de c-hairy1, desde que entra na PSM até à sua incorporação no sómito. Consequentemente, através da “contagem” do número de ciclos de leitura do gene c-hairy1 a que foram submetidas, as células da PSM poderão saber há quanto tempo entraram na PSM, e daí inferirem qual a sua posição no eixo antero-posterior do embrião. Desta forma, o relógio molecular da segmentação poderá ser uma forma de converter Outros genes cíclicos nos vertebrados Outros genes que apresentam um comportamento oscilatório semelhante ao de c-hairy1 foram posteriormente identificados em embriões de outros animais, indicando que o relógio de segmentação é uma característica conservada nos vertebrados (Tabela 1). A maioria dos genes cíclicos identificados até ao momento faz parte de uma família de genes pertencentes à via de sinalização Notch (Andrade et al., 2005; Freitas et al., 2005). Sabe-se hoje que esta via é fundamental para o funcionamento do relógio de segmentação. Tabela 1. Genes cíclicos identificados em diferentes vertebrados (adaptado de Freitas et al., 2005). Todas as células possuem diversas vias de sinalização que utilizam não só para comunicarem entre si, mas também com o ambiente em que se encontram. De uma maneira geral, as vias de sinalização consistem na interacção específica entre moléculas existentes em diferentes células, o que conduz 19 Tabela 1 a uma determinada resposta (ex: a “leitura” de um determinado gene). As vias de sinalização constituem um sistema complexo e altamente especializado de recepção e envio de mensagens utilizado por qualquer célula do organismo. A perturbação do processo de segmentação no homem Em laboratório, a mutação de genes implicados na via de sinalização Notch, conduz a perturbações no processo de segmentação. Em alguns ratinhos mutantes, estas anomalias são comparáveis a determinadas doenças descritas no homem. Esta constatação constituiu um ponto de partida importante para o estudo da base genética destas doenças. O ratinho pudgy (Kusumi et al., 1998) apresenta uma mutação num gene da via de sinalização Notch. Esta mutação conduz a malformações importantes da coluna vertebral, como fusão das vértebras, formação de hemivertebras e fusão das costelas. No homem, a doença displasia espondilocostal (SD; OMIM 277300), também conhecida como síndrome de Jarcho-Levin, manifesta-se por malformações semelhantes (Figura 4). Este facto tornou o gene mutado no ratinho pudgy um potencial candidato para explicar este síndrome, conduzindo Bulman e colaboradores (2000) a analisar este gene nos pacientes afectados por SD. De facto, em diferentes famílias com SD, três diferentes mutações foram identificadas em genes da via de sinalização Notch, reforçando assim o papel fundamental desta via na formação do esqueleto axial. Ao nível do desenvolvimento embrionário, as anomalias observadas no processo de formação de sómitos parecem ocorrer devido à interrupção do relógio de segmentação nas células da PSM (Dunwoodie et al., 2002). Figura 4. Malformações no esqueleto axial. Coloração de azul-ciano e vermelho de Alzarin (que marcam tecido ósseo e cartilaginoso), evidenciando diversas malformações ao nível das vértebras e das costelas em ratinhos pudgy (B), comparativamente a ratinhos normais (A). C - radiografia de um paciente adulto afectado com SD, em que as vértebras não são facilmente distinguíveis, e a coluna vertebral apresenta curvaturas fixas e movimento restrito (adaptado de Kusumi et al., 1998 e Dunwoodie et al., 2002). A síndrome de Alagile (AGS, OMIM 118450) é uma outra doença que se caracteriza por diversas malformações, nomeadamente ao nível de órgãos como o fígado, o coração, os olhos e ainda as vértebras, as quais apresentam O relógio de segmentação parece resultar da comunicação de várias vias de sinalização e este é um mecanismo evolutivamente conservado. O conhecimento das diferentes moléculas envolvidas neste processo constitui um aspecto crucial para a compreensão de diversas anomalias congénitas humanas. 20 resultar da comunicação de várias vias de sinalização e este é um mecanismo evolutivamente conservado. O conhecimento das diferentes moléculas envolvidas neste processo constitui um aspecto crucial para a compreensão de diversas anomalias congénitas humanas. Tabela 4 a forma de borboleta. Uma mutação num outro membro da via de sinalização Notch, foi identificada nos pacientes afectados com este síndrome (Boyer et al., 2005). Todos estes exemplos mostram que os genes envolvidos no processo de segmentação, e em particular estes pertencentes à via de sinalização Notch, serão assim potenciais candidatos para explicar geneticamente diversas anomalias congénitas envolvendo o esqueleto axial. Bibliografia Andrade, R.P., Pascoal, S. and Palmeirim, I. (2005). Thinking clockwise. Brain Research Reviews, 49(2): 114-9. (2005). Expression of mutant JAGGED1 alleles in patients with Alagille syndrome. Hum. Gene.t. 116(6): 445-53. Bulman, M.P., Kusumi, K., Frayling, T.M., McKeown, C., Garret, C., Lander, E.S., Krumlauf, R., Hattersley, A.T., Ellard, S. and Turnpenny, P.D. (2000). Mutations in the human delta homologue, DLL3, cause axial skeletal defects in spondylocostal dysostosis. Nat. Genet. 24: 438-441. Dunwoodie, S.L., Clements, M., Sparrow, D. B., Sa, X., Conlon, R.A. and Beddington, R.S.P. (2002). Axial skeletal defects caused by mutation in the spondylocostal dysplasia/pudgy gene Dll3 are associated wih disruption of the segmentation clock within the presomitic mesoderm. Development 129: 1795-1806. Freitas, C., Rodrigues, S., Saúde, L. and Palmeirim, I. (2005). Running after the clock. Int. J. Dev. Biol. 49: 317-324. Conclusão O tempo em que ocorre o desenvolvimento embrionário é constante e cuidadosamente regulado. Actualmente, o único relógio biológico conhecido a operar durante esta fase é o relógio de segmentação, intimamente ligado ao processo de formação de sómitos nos vertebrados. O relógio de segmentação parece Kusumi, K., Sun, E.S., Kerrebrock, A.W., Bronson, R.T., Chi, D.C., Bulotsy, M.S., Spencer, J.B., Birren, B.W., Frankel, W.N. and Lander, E.S. (1998). The mouse pudgy mutation disrupts Delta homologue Dll3 and initiation of early somite boundaries. Nat. Genet., 19: 274-278. Palmeirim, I., Henrique, D., Ish-Horowicz, D. and Pouquie, O. (1997). Avian hairy gene expression identifies a molecular clock linked to vertebrate segmentation and somitogenesis. Cell 91: 639-648. 22 Livro O Cérebro Analfabeto A influência do conhecimento das regras da leitura e da escrita na função cerebral Resumo por Isabela Vieira Este livro, resulta do desenvolvimento de um projecto com muitos anos e tem o objectivo de «compreender como é que a frequência da escola e a aprendizagem de algumas capacidades pode moldar não só os comportamentos, mas também a estrutura biológica que processa a informação […] Podemos, assim, dizer que o conhecimento da leitura e da escrita corresponde ao aproveitamento de múltiplos recursos existentes no cérebro humano. Aquilo que com simplicidade se pode considerar o saber ler e escrever é um processo neurobiológico de grande complexidade e que modifica radicalmente a forma de funcionar do cérebro». Escolhido o método, tendo em conta os resultados, as questões de dominância hemisférica, estudadas as questões da linguagem oral (estudos sobre a capacidade de nomeação, estudos em que se tomou em atenção a estrutura fonológica, estudos em que se tomou em consideração a estrutura léxico-semântica e estudos em doentes afásicos), conclui-se que «a escolaridade tem implicações fundamentais na capacidade de recepção visual e que isso pode ter importância para a velocidade de processamento de informação […] Consideramos que os aspecto mais significativo deste trabalho, para além da confirmação de resultados expectáveis à priori, como sejam a maior capacidade de memória de trabalho dos letrados, foi o de demonstrar que a aprendizagem da leitura e da escrita influencia aspectos qualitativos do processamento cognitivo, não só na linguagem, mas também noutras funções cognitivas como seja, naturalmente, a memória […] Este estudo contribui, assim, para melhor compreender como organizam os analfabetos, de forma espontânea, o seu pensamento, predominantemente baseado em analogias semânticas». Noutros estudos, ainda sem resultados definitivos, os resultados preliminares fazem prever que «os analfabetos encontram mais utilidades para os objectos podendo, por isso, ser considerados mais criativos». O último capítulo do livro debruça-se sobre o «aprender a ler na idade adulta». Seguem-se os comentários finais e implicações práticas que transcrevemos: «O desenvolvimento deste projecto, que tem mobilizado alguma atenção da comunidade científica internacional, permitiu até agora compreender que existem sinais sensíveis do domínio cognitivo que se podem relacionar com o facto de se ter, ou não, frequentado a escola na idade própria. Ficou até agora demonstrado que é possível descrever dois efeitos. Um que designamos por difuso que se relaciona com a frequência escolar e que mais dificilmente permite fazer previsões no contexto de um modelo orientador; outro que designamos por focal, relacionado com o facto de ter havido a aprendizagem da ortografia e cuja exploração tem vindo a pôr em evidência sinais de pior desempenho cognitivo em áreas alvo e sinais de diferenças de função, mensuráveis com os novos métodos de imagem cerebral. «O domínio da ortografia, obtido através da aprendizagem escolar na idade própria, condiciona modificações biofuncionais que interessam o processamento visual de informação precodificada modificando provavelmente o córtex estriado e peri-estriado, a interface parietal com o sistema motor central e com a função auditiva temporal, a transferência interhemisférica e ainda mecanismos automáticos 23 24 de processamento de informação que corresponde a modos de facilitação e economia do sistema. Por outro lado, a ausência de processos de aculturação organizados, analfabetos, só que na maioria dos casos passando pelo processo de escolarização que vai estimulando outras competências importantes também para o desenvolvimento do cérebro. como acontece no sistema de ensino, não constrange tanto o modo de funcionar sendo mais ideosincrático o processo adaptativo individual. Isso parece ter como resultado uma maior liberdade criativa, no contexto, naturalmente, dos elementos concretos da vida quotidiana. «Finalmente, importa dizer que as Neurociências Cognitivas estão a permitir compreender melhor a natureza humana nas suas múltiplas dimensões e, espera-se, começam a formular hipóteses com implicações no quotidiano dos seres humanos. Ultrapassou-se a dimensão biológica pura e regista-se a confluência dos saberes na pergunta fundamental que respeita a natureza humana tão claramente definida nas palavras de Edgar Morin: Todo o indivíduo é uno, simples e irredutível. E, contudo, ele é ao mesmo tempo duplo, plural, inumerável e diverso. Ele é o indivíduo, o representante da espécie e o membro da sociedade que se move na complexidade dos intervenientes que determina a sua existência. «A identificação das regiões morfo-funcionais do cérebro que estão implicadas nos processos de aquisição das capacidades de ler e de escrever permitiu prolongar as perguntas para uma nova população: a daqueles que aprendem a ler na idade adulta. Na realidade os resultados obtidos na população de analfabetos permitiu elaborar hipóteses que começaram agora a ser confirmadas nos recém escolarizados. Começamos, assim, a compreender melhor as dificuldades encontradas pelos educadores e pelos alunos adultos podendo desta forma propor melhores soluções. «É ainda importante salientar que estes resultados têm encontrado eco nos investigadores interessados na dislexia de desenvolvimento. Na verdade muitos destes achados permitem dizer o que constitui o verdadeiro síndrome de dislexia e o que são os resultados da ausência de leitura. Não há dúvida de que tendo os disléxicos dificuldades em adquirir a função de ler eles vão sofrer as consequências de o não fazer. Por essa razão eles acabam por ser na realidade próximos dos «Acabou a década do cérebro enquanto estandarte de empenho no desenvolvimento dos projectos científicos. Vivemos hoje com as ciências do cérebro no nosso quotidiano, participando na discussão de múltiplos assuntos que preocupam a sociedade. O analfabetismo e a falta de cultura são de facto temas que constituem preocupação importante. É nosso desejo que o presente projecto continue a esclarecer as questões que o seu próprio desenvolvimento vai gerando mas é sobretudo nosso desejo que não exista, num futuro breve, população disponível para realizar estes estudos. Seria sinal de que a sociedade portuguesa tinha finalmente atingido o nível de educação a que todos devemos ter direito». Alexandre Castro-Caldas Grande Prémio Bial da Medicina 2002 Regenerar tecidos 26 humanos Investigações recentes na área da saúde levarão, certamente, no futuro a novas e revolucionárias metodologias terapêuticas. Falar de regenerar tecidos, osso, cartilagem e pele, ou mesmo utilizar regularmente a libertação controlada de determinados fármacos, parece algo que daqui a alguns anos será perfeitamente normal. No departamento de investigação 3B’s (biomaterias, biodagradáveis, biomiméticos) da Universidade do Minho, estes estudos estão avançados. Tudo sob a coordenação de Rui Reis. Entrevista a Rui Reis 3B’s? 3B´s significa biomateriais, materiais biodegradáveis e biomiméticos. Os biomateriais são tudo o que são materiais de implante. Materiais que desenvolvemos para serem implantados no corpo humano e para substituírem ou regenerarem determinado tecido, por exemplo: osso, cartilagem, pele. Biodegradáveis, são materiais propositadamente pensados e desenvolvidos para se degradarem no corpo humano, como nos pontos, as suturas absorvíveis. Aqui estamos a pensar noutro tipo de coisas mais complicadas que também vão fazer a sua função durante determinado tempo e depois vão-se degradar. Biomiméticos são materiais que são capazes, por eles mesmos, de copiarem uma determinada função biológica. Eles são tão inteligentes que são capazes de fazer qualquer coisa que só um sistema vivo, um sistema biológico, Rui Reis é director do Centro de Engenharia de Polímeros da Universidade do Minho e do Grupo de Investigação 3B’s. Licenciatura em Engenharia Metalúrgica e de Materiais, mestrado em Engenharia de Materiais, doutoramento em Engenharia de Polímeros. Os biomateriais são desenvolvidos para utilização no corpo humano. Como? São desenvolvidos propositadamente para serem utilizados no interior do corpo humano como materiais de implante para resolver múltiplas situações, pode ser uma prótese interna para substituir um joelho, uma válvula cardíaca, um material qualquer para substituir uma artéria, um vaso sanguíneo. Em muitas aplicações são degradáveis. Nós trabalhamos sempre com biodegradáveis, desenvolvidos para se degradarem num determinado espaço de tempo. Cumprem a sua função durante x tempo e depois desaparecem, são absorvidos pelo corpo. ser considerado para potencial aplicação pelas empresas com que trabalhamos. Por exemplo nos biomiméticos tivemos projectos com uma das maiores empresas ortopédicas dos Estados Unidos. O que nós fazemos é deles, eles pagam, registam a patente. Somos autores, inventores, simplesmente. Tipicamente eles pagaram o projecto, a propriedade intelectual, fizemos tudo sob contrato para eles. Há muitas outras tecnologias que esperamos ser nós próprios, através de parcerias, ou através de empresas que nós pensamos vir a criar, a vir a desenvolver e a comercializar. Mas há sempre que entender que a ciência é algo mundial, uma aldeia global. Um exemplo… Tenho uma fractura e implanto uma placa metálica com parafusos para fixar essa fractura. Está lá 3/6 meses, mas depois é necessário fazer uma segunda operação, para retirar a placa e os parafusos. Na nossa abordagem pretendemos fazer uma placa biodegradável, com parafusos que também são degradáveis, com a resistência suficiente para aguentar a fractura e consolidála durante x tempo. Ao fim desses meses começa a desaparecer, dissolve-se, não precisa de haver nova operação. O que conseguem fazer crescer no laboratório para aplicação humana? Em termos de biomiméticos somos capazes de fazer crescer num goblet ou num tubinho de ensaio, a temperatura e pH fisiológicos, um fosfato de cálcio que é exactamente igual ao que nós temos no osso humano. Cresce com uma composição quase exactamente igual ao que as células são capazes de formar no interior do corpo, chamamos a isso um revestimento biomimético, um fosfato de cálcio que cresce numa determinada superfície. Mas conseguimos fazer isso fora do corpo, conseguindo exactamente as mesmas características com que o material se formaria numa situação em vivo. E os biomiméticos? São materiais que mimetizam, copiam uma determinada função que só acontece no sistema biológico. Conseguimos que esse material faça qualquer coisa que tipicamente só um sistema biológico consegue fazer. Já fazem tudo isso em laboratório? Em termos laboratoriais já fazemos estas coisas e muitas mais. Muito do que fazemos está a É um processo rápido? Depende das situações. Há casos rápidos mas o mais importante é que sejam, como são, processos controláveis e reprodutíveis. Podemos produzir esse revestimento numa determinada superfície e implantar essa superfície no corpo. Sem nós fazermos este procedimento muitos materiais de implante não seriam capazes de criar por eles mesmos esses revestimentos, não 27 seriam bioactivos e gerariam uma reacção de rejeição, de corpo estranho. Em vez de tomar um medicamento temos qualquer sistema que é suficientemente inteligente para funcionar em determinadas condições. Por exemplo, quando tenho uma inflamação o pH baixa e o sistema liberta o anti-inflamatório, quando estamos ao pH fisiológico, esse sistema nada faz. 28 Algo para ser implantado no interior do corpo? A ideia é, de um modo muito simples, que em vez de se ir ao médico e tomar o medicamento de determinado em determinado tempo é o próprio corpo e a patologia que vão controlar a necessidade de libertação ou não do medicamento. Um exemplo o sistema a 39 graus liberta, a 37 não liberta. O que se introduz dentro do corpo? Temos muitos sistemas, podem ser membranas, partículas, nano partículas que são injectáveis, mesmo na corrente sanguínea, depende muito. Podemos ter sistemas que só respondem a uma dada enzima que só existe num determinado órgão ou local ou que está ligada a uma da patologia. Eles podem passar por tudo o resto e só actuam quando chegam a esse órgão, vão responder àquela necessidade, são os tais materiais inteligentes. E a engenharia de tecidos humanos? É outra área extremamente importante, talvez aquela em que somos mais reconhecidos internacionalmente. Tem a ver com usar, de uma maneira muito simples, suportes poliméricos, os tais plásticos. No nosso caso são sempre plásticos de origem natural à base de amido de milho, de proteína de soja, etc. Somos os únicos no mundo que usamos proteínas de soja e usamos plásticos que existem nos caranguejos, nos camarões, nas lagostas. A partir daí fazemos uma espécie de suporte, uma estrutura tridimensional, porosa. Em alguns casos a estrutura é definida em computador com base em imagens de tomografia e impressa numa impressora, tipo de jacto de tinta mas a 3 dimensões, a que chamamos bioplotter. É nessas estruturas que vamos cultivar as célebres células estaminais, no nosso caso tipicamente células adultas indiferenciadas, que de um modo simplista ainda não são células de nada. Usamos células adultas que obtemos da medula óssea. Semeamos essas células no tal suporte poroso, vamos cultivá-las em determinadas condições, muitas vezes usamos o que se chama um bioreactor, um recipiente com determinado fluxo que nos vai induzir a diferenciação dessas células, que ainda não células de nada, nas células que nós queremos. E podemos também induzir essa diferenciação, colocando determinados agentes activos no meio de cultura, no material poroso (de novo libertação controlada), ou mudando a superfície do material poroso, para dizer àquela célula estaminal tu agora vais ser uma célula de osso ou vais ser uma célula de cartilagem. Claro que estou a explicar isto de uma maneira muito simples. Na nossa abordagem as células da própria pessoa começam a formar osso, ou cartilagem, no exterior do corpo. São cultivadas durante determinado tempo e quando temos um início de formação de osso implantamos no paciente. Ao longo do tempo, esse plástico que é degradável vai desaparecer e as células vão continuar a formar osso até que vão regenerar o defeito existente. Só trabalham com células estaminais da medula óssea? Temos outras fontes de células. Por exemplo em alguns projectos trabalhamos com células de gordura. Conseguimos a partir da lipossucção isolar determinadas células e transformar essas células de gordura em células do que nós queremos, osso, cartilagem, pele. Podemos ter sistemas que só respondem a uma dada enzima que só existe num determinado órgão ou local ou que está ligada a uma da patologia. Na nossa abordagem as células da própria pessoa começam a formar osso, ou cartilagem, no exterior do corpo. Explique-me, podem fazer ossos inteiros para aplicar num paciente? É preciso perceber que ainda não podemos, nem nós nem ninguém no mundo, fazer um osso inteiro ou coisas desse género. Um dia isso pode e deve vir a ser possível. Mas o que conseguimos fazer pode ser clinicamente muito relevante. Hoje em dia a situação normal é ter um acidente, fico com um defeito ósseo e o que me vão fazer é retirar um pedaço por exemplo do meu osso ilíaco e vão-me colocar esse enxerto onde preciso. Obviamente fico com um defeito no local onde retirei esse pedaço de osso e há muitos outros problemas. Outra alternativa é ir buscar ossos a cadáveres ou a bancos de ossos, mas podem trazer doenças, há incompatibilidades, falta de disponibilidade. E material sintético propriamente dito não existe nenhum que realmente ajude a resolver este tipo de situações. O que nós queremos é criar alternativas que funcionem e gerem novas terapias. O que me fala já é aplicado clinicamente? Temos muitas tecnologias aqui no laboratório que estão já a funcionar, embora existam muitas mais coisas que têm de ser testadas, melhoradas. Na ciência cada passo é um passo… 29 30 Mas já testaram em animais? Temos algumas tecnologias que funcionam bem e está tudo testado em animais. O que não posso é chegar, pegar em células e implantar num paciente, mesmo que haja consentimento informado e que tudo funcione. Trabalhamos com protocolos éticos muito rígidos. Qualquer estudo clínico sério custa milhões de euros. Não há nenhuma universidade do mundo, não é problema de Portugal, que tenha peso suficiente para passar estas coisas para a clínica por si mesma. Tem de haver grandes empresas envolvidas. E, neste momento, conseguimos trabalhar com grandes empresas internacionais, temos muitos contactos, muitos projectos comuns com empresas europeias, americanas, japonesas. Mas no estrangeiro já aplicam os vossos conhecimentos em termos práticos? Vamos imaginar que tínhamos todo o financiamento necessário, tudo estivesse a funcionar. É necessário que possa replicar tudo o que faço em laboratório em condições completamente diferentes, e isso são questões infraestruturais. O que tenho aqui é um laboratório no qual trabalhamos que não tem as condições necessárias para depois usar os materiais que produzimos na clínica. Não estou a trabalhar em salas limpas, não estamos vestidos daquela maneira que as pessoas conhecem, não estamos a usar boas práticas de fabrico nem boas práticas de laboratório (embora tenhamos um sistema quase único de qualidade na investigação) nem temos todas as condições necessárias em termos de certificação para passar isto para a clínica. Então? Isto parece uma coisa fácil de resolver, mas num País como o nosso é extremamente difícil, mesmo muito difícil. Temos falta de espaços e condições. Estas coisas que funcionam aqui, neste laboratório, não as podemos transladar para a prática por questões infraestruturais. Por É preciso perceber que ainda não podemos, nem nós nem ninguém no mundo, fazer um osso inteiro ou coisas desse género. Um dia isso pode e deve vir a ser possível. outro lado, em termos médicos, em média, qualquer tecnologia ou material que se desenvolve hoje, que seja apresentado nos congressos, nas publicações científicas, demora 6 a 8 anos até aparecer de facto na prática clínica. É assim com os medicamentos, é assim com próteses, é assim com este tipo de situações, particularmente este tipo de soluções que envolvem simultaneamente materiais e células, os chamados produtos combinatórios. E já há legislação? Nos Estados Unidos já há alguma legislação nesta matéria, na União Europeia está a nascer uma directiva. Os produtos de engenharia de tecidos não são um medicamento, não são um material, não são um produto biológico e não há uma envolvente legal que me diga como é que posso pegar em células de uma pessoa, misturo ali, cultivo, crio um produto e depois implanto. Temos de perceber que o que desenvolvemos hoje se calhar vai aparecer na clínica daqui a 6/8 anos, que é a média normal de qualquer uma destas tecnologias. Não devia ser um processo mais rápido? Isto demora tempo, há procedimentos que têm de ser optimizados e tudo tem que ser feito com cautela. Aparece aqui gente, médicos, dentistas, a quererem usar isto nos hospitais amanhã. Digo sempre: nem pensar. Não estamos nessa fase porque temos que avançar com a certeza não só das tecnologias, mas da esterilidade, da pureza, de um conjunto de coisas que num laboratório de investigação não se replicam da mesma forma. Conseguem a expansão e multiplicação das células estaminais? São situações perfeitamente possíveis. Há grupos, mesmo aqui em Portugal, que trabalham na expansão de células estaminais. Há muitas metodologias que no laboratório já funcionam muito bem. Sabemos que será algo crítico para o futuro desta área, disso ninguém tem dúvidas. A engenharia de tecidos e as terapias celulares com células estaminais podem ser muitíssimo importantes, podem revolucionar totalmente a medicina, mas podem, também, somente vir a resolver um pequeno conjunto de coisas embora extremamente importantes. Depende de como tudo evoluir. Há muitas experiências que se fazem nos laboratórios a nível mundial que ainda não se podem usar directamente na clínica porque há muitos pontos a resolver. Para haver um maior reconhecimento social as vossas investigações têm de ter uma realidade prática. Há uma grande necessidade dos investigadores que trabalham nestas áreas mais médicas de ver, de facto, o seu trabalho aplicado no bem-estar das pessoas, em salvar vidas. Um grande objectivo, de tudo o que fazemos, é passar o nosso trabalho à prática. Há coisas que nunca vão passar à prática clínica, serão apenas mais um degrauzinho para outra pessoa qualquer pegar nisso e transformar aquilo em qualquer tecnologia, mas esperamos que também sejamos nós, em parceria com empresas, a levar uma ou duas coisas para aplicação médica. Em termos futuros o que poderá ser criado? Quando começamos a trabalhar queríamos fazer materiais para substituir tecidos. Com as células estaminais estamos cada vez mais, já estamos nisto há diversos anos, numa prática de regeneração de tecidos. O material é uma ajuda para qualquer coisa de biológico que me vai fazer o meu próprio tecido e resolver determinado problema. É nessa linha que acreditamos. Acreditamos que seremos capazes de regenerar tecidos e queremos resolver por exemplo problemas osteocondrais: quando tenho um problema de cartilagem que penetra até à parte do osso, como os joelhos, temos dois tecidos diferentes em termos biológicos e mecânicos. Se calhar tenho de ter dois suportes diferentes, com dois materiais diferentes, ligados um ao outro, tenho que cultivar células, mas diferenciá-las num caso para cartilagem e noutra para osso. Tenho aqui uma situação muito complicada. Este é um projecto que estamos a desenvolver com empresas belgas, alemãs, com a cruz vermelha austríaca. Chama-se HIPPOCRATES e se os resultados que estamos a obter neste projecto de facto forem tão bons como parecem ser, daqui a 6 anos devemos ter qualquer coisa a funcionar na prática. Onde apresentam tipicamente os vossos trabalhos de investigação mais fortes? Tipicamente nos Estados Unidos e foi aí que começamos a ser reconhecidos. Dos EUA passamos a ser reconhecidos na Europa e da Europa, espero, o sejamos realmente um dia em Portugal. Temos de acreditar muito e quase de abdicar de ter vida própria. Mas no final eu acho sempre que vale a pena e que vamos ganhar muito mais vezes batalhas muito mais difíceis. O que está feito já não conta só interessa o que vamos ser capazes de fazer. Temos de perceber que o que desenvolvemos hoje se calhar vai aparecer na clínica daqui a 6/8 anos, que é a média normal de qualquer uma destas tecnologias. 31 32 Procurando vencer o cancro: a hora dos tratamentos biológicos. Rui Mota Cardoso Introdução O IPATIMUP desenvolve desde 1996 uma extensa actividade na promoção do pensamento e cultura científica. O Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (IPATIMUP) é um instituto de investigação fundado em 1989 sob a égide da Universidade do Porto e que possui desde 2000 o estatuto de Laboratório Associado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. O IPATIMUP desenvolve actualmente actividades nas áreas de: a) Investigação em Oncologia, Genética Populacional e Forense; b) Formação de Recursos Humanos especializados em Oncologia e Oncobiologia; c) Prestação de Serviços de Diagnóstico e Consultadoria; d) Promoção e Divulgação da Ciência para a Sociedade Civil. A actividade do IPATIMUP tem por objectivo optimizar a interface entre a investigação básica e a aplicada, desenvolvendo a formação de recursos humanos especializados e promovendo interacções entre diversos domínios científicos (Medicina, Biologia, Genética, Farmácia, Bioquímica). Através da sua Unidade de Educação Contínua e Difusão Científica (UECDC), o Realizaram-se na Fundação Calouste Gulbenkian e no auditório do museu de Serralves, no Porto, dois colóquios subordinados ao tema Medicina e Cancro, no sentido de divulgar e promover os últimos avanços científicos levados a cabo por alguns dos maiores investigadores do país nesta área. Numa altura em que a terapêutica convencional apresenta ainda resultados muito modestos e, por vezes, efeitos indesejáveis na prevenção e tratamento das doenças cancerosas, a nova vaga de tratamentos biológicos constitui uma auspiciosa tentativa de progresso e esperança. Apesar de terem sido directamente extraídos da conferência, todos os textos foram criteriosamente revistos pelos seus autores. IPATIMUP desenvolve desde 1996 uma extensa actividade na promoção do pensamento e cultura científica. A necessidade de divulgar a Ciência, de forma qualificada e civicamente eficaz, hoje e no próximo futuro, tornou fundamental a existência de um conjunto planificado e contínuo de iniciativas dirigidas à sociedade civil, com particular destaque para a população escolar. Um exemplo destas mesmas iniciativas é o conjunto de colóquios sobre Cancro realizado nos últimos dois anos, em conjunto com a Fundação Calouste Gulbenkian e a Fundação de Serralves. Esta iniciativa, na lógica da transmissão dos conhecimentos actuais sobre a génese, o desenvolvimento e a potencial prevenção das doenças cancerosas, contou com a colaboração de médicos e cientistas das Faculdades de Medicina e de Ciências da Nutrição e Alimentação das Universidades do Porto, Coimbra e Lisboa, assim como dos Centros do Instituto Português de Oncologia do Porto e Lisboa e dos Hospitais Universitários de Coimbra, Lisboa e Porto. Foi com satisfação que no IPATIMUP registamos grande adesão dos professores de todo o país a estas iniciativas, o que julgamos traduzir a associação feliz entre um corpo docente ainda motivado e um Laboratório Associado que conscientemente devolve à comunidade o saber que essa comunidade lhe permite investigar. 33 Introdução ao Tratamento Biológico do Cancro Manuel Sobrinho Simões 34 Não vamos falar de prevenção do cancro, vamos utilizar os conhecimentos que adquirimos o ano passado e outros que vamos tentar explorar, para falar em tratamento. Não no tratamento que tem sido utilizado classicamente, mas num tratamento que começa a ser inteligente, que começa a ser baseado nos conhecimentos da moderna biologia molecular Um dos aspectos mais importantes da ciência é a repetição. No IPATIMUP, no colóquio conferência do equinócio, sobre poesia e ciência, falou-se da Poiesis (Poesia) e da Hematopoiesis, que quer dizer criar sangue. A discussão estabeleceu-se entre quem faz ciência e quem faz poesia. Todas as pessoas gostam de ouvir Bach, acham-no extraordinário. E uma das justificações para isso é a repetição. Ou a redundância da música de Bach. O mais interessante na aprendizagem é a pessoa perceber o que se está a repetir. Perceber, antes de mais nada, o padrão, a organização, até se for preciso a monotonia. Só depois se aprenderá a pensar a diferença, a excepção. Vem tudo isto a propósito da célula cancerosa. O que distingue a célula normal da célula patológica? A célula normal tem ADN, o ADN faz ARN, o ARN faz uma proteína e essa proteína pode ficar no citoplasma, pode ser exportada, ou pode ser um receptor de membrana. A primeira noção a reter é que as células neoplásicas fazem exactamente isto. Do ponto de vista bioquímico as células neoplásicas são praticamente iguais às nossas, a não ser em condições excepcionais. Depois, a célula normal agarra-se às células vizinhas e, assim, constitui um tecido. Esta constituição de um tecido é também muito parecida nos tumores. Os tumores não são um conjunto de células dispersas, mas sim um conjunto de células organizadas na forma de tecido. O cancro é um tecido novo, é uma neoplasia (neo/novo e plasia/tecido). É um tecido novo que invade, que não respeita as fronteiras. Numa cicatriz fazemos um tecido novo. Mas a nossa cicatriz pára no sítio certo. Se a cicatriz epitelial (por exemplo da pele ou, melhor, da epiderme) começar a crescer para além do seu lugar próprio e invadir o tecido conjuntivo subjacente, passamos a ter uma espécie de cancro epitelial (um carcinoma). As cicatrizes hipertróficas e invasoras são uma espécie de tumor, pois perderam a capacidade de parar na fronteira. Esta alteração de comportamento, característica do tecido neoplásico, resulta de variadíssimas alterações celulares. Por exemplo, de modificações, por excesso, da interacção entre as proteínas que estão à superfície das células e os estímulos que elas recebem das células vizinhas, ou que vêm através do sangue. Em alguns cancros há alterações genéticas que levam ao aumento do número de receptores 35 da membrana, tornando as células mais móveis e mais invasoras. Para tratarmos infecções damos drogas, os antibióticos. Os antibióticos são drogas que matam as bactérias, os vírus ou os fungos: são Há truques para impedir que a célula faça citocídas. Há drogas que não matam as células, este percurso, isto é, que a célula utilize o mas impedem que elas proliferem, ficando à excesso de proteínas e/ou que essas proteínas disposição das defesas do organismo: são drogas sigam para a membrana. Estes receptores de citostáticas. Assim, vamos administrar umas membrana são fundamentais para receber drogas cuja acção é matar as células cancerosas estímulos de fora. Às vezes há tumores, como e, outras, cuja acção é impedir que elas prolio tumor da mama, onde existe um destes ferem, ficando quiescentes e podendo ser receptores que recebe estímulos do factor de destruídas pelas nossas defesas. A quimioterapia crescimento epidérmico. e a radioterapia funcionam assim, embora geralmente com pouca especificidade. Há drogas Se tivermos uma que se dão em quimiocélula cancerosa que Do ponto de vista bioquímico as células terapia e que matam as em vez do número neoplásicas são praticamente iguais às células neoplásicas, isto é, normal de recepsão drogas citocídas ou citonossas, a não ser em condições tores tiver uma amtóxicas (alguns medicaexcepcionais. plificação génica e mentos em vez de “matar” forem codificados as células neoplásicas muitos mais receptores, mesmo tendo uma convencem-nas a suicidar-se). Há, por outro quantidade normal de factor de crescimento, lado, outras drogas que são sobretudo ou este mecanismo está activado. Então, qual é o exclusivamente citostáticas. O mesmo se passa tratamento biológico neste caso? Um bom com os chamados tratamentos biológicos tratamento biológico é fazer um anticorpo “inteligentes”, isto é, eles não se distinguem contra este receptor. Um outro tratamento da quimioterapia por serem mais citocidas ou seria fazer uma droga que bloqueasse a sinalização mais citostáticos, mas sim por interferirem espedo receptor para o interior da célula. Vamos cificamente em alterações nas vias moleculares discutir os truques, os tratamentos para fazer e/ou bioquímicas das células neoplásicas. com que este e outros sistemas deixem de funcionar. Bloquear os receptores das células tumorais sem prejudicar as células normais Leonor David 36 Vou usar o exemplo de um medicamento uma renovação celular muito limitada. que está em utilização clínica. O nosso alvo vai ser um receptor de membrana, uma proteína Quando temos uma diarreia hemorrágica, que, como todas as proteínas, são codificadas porque temos uma infecção digestiva, temos por um gene que é transcrito para um uma enorme destruição do nosso tecido epitelial. mensageiro. No caso que vamos mencionar a É este mecanismo que vai permitir que haja proteína fica ancorada à membrana celular onde reconstituição do tecido normal. desempenha uma função fundamental para a sobrevivência das células normais, que depende Na situação patológica tumoral este sistema da ligação de factores de crescimento. Ao de hiper-sinalização vai fazer com que exista ligarem e activarem o receptor, os factores de um crescimento anormal das células, crescimento fazem com que se desencadeiem desorganizado, desordenado, mesmo na ausência cascatas de sinalização intracelular que levam de estímulos exagerados do meio externo. A a célula a dividir-se. célula tumoral difere Neste modelo a célula Um cancro onde este mecanismo de a p e n a s q u a n t i tumoral tem, nalguns amplificação génica (neste caso do gene tativamente da célula cancros, sobretudo no normal. Não estamos a cancro da mama, uma ERBB2) é muito frequente é o cancro procurar algo novo na da mama. alteração genética que célula tumoral. A célula consiste numa amplitumoral raramente faz ficação do gene. O que é que acontece numa uma coisa muito diferente da normal e é aí que amplificação génica: em vez de uma cópia há reside parte da dificuldade em encontrar novos muitas (10 ou 20) cópias do gene. Há uma tratamentos. quantidade muito grande de DNA (ADN) codificante para aquele gene, logo há muitos Um cancro onde o mecanismo de mensageiros que são produzidos, há muita amplificação génica (neste caso do gene ERBB2) proteína e há imensos receptores que aparecem é muito frequente é o cancro da mama. Quando na membrana. Isto vai desencadear uma cascata esta alteração existe, a enorme quantidade de de hiper-sinalização que tem consequências na receptores produzidos é a causa do cancro. fisiologia das células. A célula normal usa este Identificamos as neoplasias mamárias que têm mecanismo para reconstituir um tecido como esta alteração genética usando anti-corpos que acontece todos os dias na nossa pele e no nosso reconhecem a grande quantidade de proteína tubo digestivo, mas que já não acontece em que está presente na superfície das células. órgãos como o cérebro ou o coração, onde há Enganar os receptores que mantém as células tumorais a crescer Raquel Seruca Foi tentado, depois, criar uma droga que interferisse neste sistema. E a droga é um anticorpo que agirá “contra” este receptor e que consiste, portanto, num tratamento que decorre directamente do conhecimento da biologia das células tumorais. Os primeiros resultados da aplicação clínica do medicamento, adicionado ao tratamento quimioterápico clássico, indicavam que o tempo de sobrevida (sem progressão da doença) nos indivíduos aumentava. São resultados muito relevantes, porque modificaram significativamente o percurso da doença. O tratamento “contém” o tumor no estado em que ele está naquele momento. Se considerarmos um cancro da mama com 2 cm, introduzido este tratamento, vai haver um bloqueio dos receptores e do seu crescimento adicional. A quimioterapia clássica é uma medicação que se dirige a células que têm capacidade de divisão celular. Pode ser, quando eficaz, destrutiva das células normais, ao passo que as terapias de que estamos a falar são terapias que limitam o crescimento e que são específicas das células tumorais com determinadas alterações genéticas. É por isso que normalmente se faz uma terapia combinada. Saliento os dois actores principais na minha apresentação: o EGFR, um receptor de membrana para o factor de crescimento epidérmico, e o cancro de pulmão. Há uma série de proteínas que têm um papel activo na renovação celular. Neste processo participam receptores de membrana, como é o caso do EGFR, e factores de crescimento externos à célula, que regulam e controlam a activação destes receptores de membrana. Após activação destes receptores são activadas proteínas intracelulares que fazem a transmissão de sinal a proteínas nucleares que regulam directamente a divisão ou a morte celular. Toda esta dinâmica que passa pela ligação do factor de crescimento externo ao receptor de membrana, sua activação e posterior transmissão de sinal que levam ao controle de processos de regulação nuclear, é um processo bem organizado e controlado na célula normal. O EGFR é uma proteína transmenbranar com três domínios: o domínio extra-celular da proteína, o domínio transmembranar (atravessa a membrana celular) e o domínio citoplasmático que se liga às proteínas intracelulares de transmissão de sinal. O domínio extracelular tem uma zona de ligação ao factor de crescimento e o domínio citoplasmático tem uma zona de activação da proteína. No momento em que o EGFR se liga a um factor de crescimento extra-celular fica activado, a 37 zona de fosforilação da proteína fica activa, e passa a accionar uma cascata de sinalização intracelular. De início pensou-se que todos os doentes que tinham expressão aumentada do EGFR respondessem de uma forma ampla, mas não foi isso que aconteceu. 38 Os EGFR quando activado modifica o estado celular levando a um aumento da divisão celular e, em alguns casos, a um aumento da sobrevida celular. Ambos os processos condicionam o crescimento celular. Em muitos casos esta activação é crucial numa situação absolutamente normal como é o caso de uma lesão de um determinado tecido onde é necessário fazer uma renovação celular. E o que se passa com o EGFR no cancro? Muitas vezes há um aumento dos factores de crescimento que se ligam ao domínio extracelular do receptor e assim a uma maior estimulação do EGFR; noutros casos, o próprio receptor fica permanentemente activo independentemente da existência ou de estimulação pelo factor de crescimento, sendo capaz de induzir permanente sinalização intracelular. Esta situação acontece nos casos de mutação do EGFR, por exemplo. No cancro do pulmão o papel do EGFR já foi demonstrado. O cancro do pulmão ocupa o primeiro lugar em termos de incidência e mortalidade no homem, e é o quarto cancro em termos de incidência e o segundo em termos de mortalidade na mulher. No cancro do pulmão as células tumorais exprimem mais EGFR do que as chamadas células normais de suporte do tumor. A expressão aumentada de EGFR ocorre entre 40% a 80% dos casos de cancro do pulmão (a percentagem depende do tipo de cancro do pulmão). Sendo esta expressão específica das células tumorais e muito frequente, levantou a hipótese do bloqueio do EGFR por uma pequena molécula poder constituir uma nova abordagem terapêutica no tratamento de doentes com cancro do pulmão. E assim desenvolveramse anticorpos e pequenos péptidos que bloqueavam a actividade do EGFR. Este bloqueio da actividade do EGFR pode ser realizado ao nível da ligação entre o factor de crescimento e o receptor (anticorpos), ou ao nível da zona de activação intra-celular da proteína (pequenos péptidos). Foi exactamente a estratégia de bloquear a zona de activação da proteína que foi seguida para desenvolver drogas que interrompem o mecanismo de ligação do domínio citoplasmático de activação do receptor às proteínas que são importantes para transmissão de sinal. Criou-se então um inibidor de EGFR que ocupa a zona activa da proteína (zona de fosforilação) e que impede a transmissão de sinal mediado pelo EGFR. E os doentes com cancro do pulmão resistentes a quimioterapia passaram a ser tratados este péptido anti-EGFR. De início pensou-se que todos os doentes que tinham expressão aumentada do EGFR respondessem de uma forma ampla, mas não foi isso que aconteceu. Apenas 28% dos doentes com cancro no pulmão responderam positivamente. O que há em comum nestes indivíduos que responderam? Os doentes que responderam aos inibidores do EGFR têm uma proteína mutada. E porque é que estes doentes com o EGFR mutado foram os únicos a ter uma boa resposta a este péptido anti-EGFR? Porque nestes doentes o cancro depende totalmente do EGFR para crescer ou sobreviver. Com o EGFR mutado a célula torna-se independente da existência do factor de crescimento extra-celular e passa a activar de uma forma permanente e independente do ambiente extra-celular uma série de proteínas intracelulares que leva ao aumento da divisão celular ou aumento na capacidade da sobrevida celular, levando ao crescimento tumoral. E a resposta dá-se nos doentes porquê? Porque a transmissão de sinal é bloqueada entre o receptor e as proteínas de sinal intracelulares levando à perda de sobrevida celular com consequente regressão tumoral. Esta resposta positiva ao tratamento só ocorre nos doentes com EGFR mutado porque nos outros casos de cancro do pulmão existem provavelmente outras proteínas que sinalizam para vias independentes do EGFR para a manutenção do crescimento tumoral. Vários outros estudos demonstraram a vantagem desta nova terapia anti-EGFR em cancro do pulmão, sobretudo em termos de sobrevida. Nos doentes que apresentavam mutação do EGFR e que eram tratados com péptidos antiEGFR, a taxa de sobrevida era significativamente melhor do que a dos doentes não tratados. Até aqui só existiam boas notícias; no entanto existem casos de resistência à droga por diversos mecanismos, mesmo nos doentes com mutação do EGFR. Ou porque as células adquirem outras mutações que activam a proteína mesmo estando bloqueadas com o péptido, ou por mecanismos que fazem com que a célula seja capaz de bombear a droga para o meio extra-celular. Nestes casos devemos procurar novas formas de vencer a resistência e encontrar drogas que actuem nas proteínas imediatamente abaixo do EGFR. Em casos de resistência ao EGFR, não devemos actuar no próprio receptor, mas nas proteínas que estão na via de sinalização ou no próprio núcleo, ou seja nas proteínas intracelulares sob o controlo do EGFR. O futuro está nas mãos daqueles que investigam o EGFR e o cancro. 39 Inibir enzimas cruciais para a sobrevida das células tumorais José Manuel Lopes 40 Existem drogas que actuam especificamente em CML (Chronic Myeloid Leukemia), um tumor “líquido” com origem na medula óssea, e em GIST (Gastro-Intestinal Stromal Tumour), um tumor “sólido” com origem no tecido conjuntivo do tubo digestivo. Este tipo de estratégia terapêutica, que utiliza alvos moleculares como um princípio básico, abriu uma nova era pioneira no tratamento da Leucemia Mielóide Crónica e do GIST, e está na origem de novas terapêuticas do cancro. Estas drogas actuam em receptores de membrana e em proteínas citoplasmáticas. A droga (o mesilato de imatinib) é um inibidor de cínases das tirosinas, e inibe de forma específica estas duas proteínas que são receptores ou proteínas com actividade tirosina cinásica implicadas nestes tumores. A Leucemia Mielóide Crónica é uma neoplasia maligna que tem origem em células precursoras da medula óssea. Nestas situações o que se verifica é que em vez de células normais o que observamos são células (leucócitos) a mais e anormais. Estas células em grande número podem afectar órgãos, como por exemplo o baço, que pode atingir dimensões muito grandes, tornando-se palpável. Na Leucemia Mielóide Crónica existe uma alteração genética estrutural, que foi baptizada com o nome de cromossoma de Filadélfia e que resulta de uma translocação balanceada e recíproca entre uma parte do gene ABL, que existe no cromossoma 9, e outra parte do gene BCR, que existe no cromossoma 22, dando origem a um novo cromossoma que é anormal, que tem um gene de fusão, que depois de traduzido dá origem a uma proteína que está permanentemente activada. Esta alteração genética foi muito apetitosa para se perceber se era possível desenvolver uma droga, porque é esta alteração genética que explica a Leucemia Mielóide Crónica. Quero deixar bem claro que esta terapêutica não é curativa. Estamos a falar de terapêutica de controlo. A cura de uma Leucemia é possível com transplante de medula óssea. Estamos portanto a tentar criar períodos de sobrevida mais alongados e com melhor qualidade aos doentes usando este tipo de droga. Em situações normais o ATP liga-se ao domínio cinásico e permite a fosforilação de substratos que estão numa cadeia e que vão dar origem à sinalização intracelular. Do ponto de vista molecular, a translocação desse tal cromossoma de Filadélfia não é mais do que a aposição de uma parte do BCR, que tem uma zona de controlo da expressão do seu próprio gene e vai fazer com que o gene ABL seja desregulado e activado permanentemente (Ver figura). O que é que faz a droga? A droga é um péptido que não vai deixar que o ATP encaixe. utilização só é aceite como uma alternativa. Os efeitos esperados muitas vezes não são tão fantásticos porque as lesões já progrediram de tal forma que a massa de células que é necessário destruir ou fazer parar já é muito grande. Depois da falência de um esquema de terapêutica biológica é muito significativo o aumento da sobrevida (superior a 36 meses) nos doentes que foram submetidos à terapêutica com esta droga. Tumores aparentemente muito distintos (Leucemia Mielóide Crónica e GIST) partilham mecanismos celulares muito idênticos e podem ter alternativas terapêuticas semelhantes. Há muitos mecanismos redundantes, isto é, que de formas diferentes regulam processos biológicos semelhantes, seja a morte ou a proliferação celular. O que é que faz a droga? A droga é um péptido que não vai deixar que o ATP encaixe. Não havendo sinalização numa célula que está anormal o que se espera é que deixe de haver estímulos de proliferação e estímulos que mantêm as células sobrevivas (Ver figura). Este conceito provou-se realmente muito eficaz. O problema destas drogas é que a sua As toxicidades deste tipo de tratamento (que é um tratamento oral, tipo comprimido) existem, embora não sendo muito intensas, têm de ser consideradas. Sabe-se que este tipo de tratamento não é eficaz em todos os tipos de tumores e também se sabe que há tumores que respondem inicialmente e, de um momento para o outro, têm um surto de explosão, as chamadas resistências adquiridas. Há portanto que esclarecer quais os mecanismos de fuga ao efeito da droga. 41 Paula Soares 42 Deter os mensageiros intracelulares determinantes do crescimento tumoral Há um gene denominado BRAF que está associado a neoplasias da pele, tiróide e intestino. O gene que está alterado neste tipo de patologias é também chamado de mensageiro secundário, um mensageiro intra-celular. Temos o factor de crescimento que se liga ao seu receptor de membrana, esse receptor vai sofrer mudanças de configuração (vai ser fosforilado, vai receber resíduos de fosfato), entra em contacto com outras proteínas no interior do citoplasma, vai passar pelo BRAF (e o BRAF por sua vez transmite o sinal mais abaixo) até que o sinal entra no núcleo levando à activação de proteínas nucleares. O BRAF é o gene que deve estar no lugar certo na hora certa, ou seja, é imprescindível que a proteína esteja no local onde o sinal está a ser transmitido, senão ocorre uma desregulação. É ainda uma proteína que se encontra no citoplasma de uma forma inactiva. A sua activação dá-se pela troca de resíduos de fosfato. Uma vez activada, a proteína vai mudar a sua forma e vai permitir que outras proteínas do citoplasma se liguem a ela e transmitam o sinal para a proteína seguinte. É importante que logo que este sinal seja transmitido a proteína volte rapidamente à forma inactiva e não transmita mais sinal. Tem de ser um processo altamente controlado. Os melanomas não sendo as formas mais frequentes dos tumores da pele, são os mais agressivos, porque têm maior capacidade para invadir e transferir-se para órgãos distantes. A alteração genética do BRAF é responsável por grande parte dos melanomas, 10% dos cancros do cólon e uma percentagem considerável dos cancros da tiróide. Verificou-se que a alteração da proteína nessas várias patologias era sempre no mesmo local, portanto uma alteração muito específica. O que se passa nestes casos é que a alteração dáse num sítio onde normalmente se dá a adição dos resíduos de fosfato, e esta mutação comporta-se como se a molécula estivesse continuamente activada, ou seja, sem que haja uma activação do receptor, a molécula vai estar sempre de uma forma activa, sem capacidade de voltar à sua posição inactiva. Depois da identificação desta alteração genética estava em causa saber o que é que a mesma provoca nas células. Nestas circunstâncias, colocam-se células normais que estão a crescer em tubos de ensaio, inserimos lá o gene alterado e vemos qual o efeito desta alteração no comportamento daquelas células. Quando isto Esta alteração genética é responsável por grande parte dos melanomas, 10% dos cancros do cólon e uma percentagem considerável dos cancros da tiróide. 43 foi feito verificou-se que as células que passavam a ter o gene BRAF alterado, passaram a dividirse mais, aumentando o número de células. Verificou-se também que essas células se mexiam muito mais do que as outras. Para além disso, quando estas células eram postas sobre matrizes artificiais, verificou-se que elas eram capazes, ao contrário das células sem o gene mutado, de invadir estas matrizes. Verificou-se ainda que nas lesões induzidas por estas células com BRAF mutado se encontravam muito mais vasos do que nos outros tumores. Isto é lógico, porque um tumor precisa de crescer e para isso precisa de uma grande quantidade de oxigénio, nutrientes, como qualquer outra célula. O desafio era criar uma molécula que encaixasse perfeitamente no local muito específico da proteína que estava alterado, o local activo onde o BRAF está mutado, impedindo com isso a ligação às outras proteínas e a transmissão do sinal. Essa molécula foi obtida e está agora a ser testada. Em 2002 foi descoberta a mutação nestes tumores, em 2003 realizaramse os primeiros testes in vitro e ainda hoje se continuam a testar os efeitos desta droga. Na experimentação com ratinhos, verificouse que os que eram tratados com esta droga havia menor formação de tumores e quando eles apareciam eram menos irrigados, possuíam menor número de vasos. Em doentes terminais com melanoma tratados com a droga não se verificou a cura, mas um controlo da doença. No subgrupo de doentes com carcinoma do cólon, houve uma paragem do crescimento do tumor e relativamente aos carcinomas da tiróide ainda não existem resultados visíveis. Resta falar das esperanças para o futuro. É importante aumentar a especificidade do fármaco, é preciso esperar pela comprovação dos ensaios clínicos relativamente à utilização destas moléculas, e está-se a tentar já ensaios clínicos em conjunto com outras terapias. Paula Ravasco1 1Unidade Isabel Monteiro-Grillo1,2 2Serviço de Radioterapia do Hospital de Santa Maria, Avenida Prof. Egas Moniz 1649-035, Lisboa [email protected] [email protected] de Nutrição e Metabolismo - Instituto de Medicina Molecular da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, Avenida Prof. Egas Moniz 1649-028 Lisboa Pedro Marques Vidal1 [email protected] Maria E. Camilo1 [email protected] 44 Cancro: Introdução É possível que a malnutrição em oncologia seja multifactorial, embora a localização do tumor e os sintomas, i.e. anorexia, alterações de paladar, disfagia, náuseas, vómitos, diarreia, possam comprometer ainda mais a capacidade funcional e nutricional dos doentes. A interacção entre o estado nutricional e a ingestão dietética, os sintomas e/ou doença/factores relacionados com o tratamento, é uma combinação complexa que pode determinar a Qualidade de Vida (QV) dos doentes. A Qualidade de Vida é uma dimensão multifactorial subjectiva, que reflecte o estado funcional, a percepção da saúde, da doença/tra- tamento(s) e sintomas. Apesar da associação sugerida entre o agravamento do bem-estar geral/morbilidade e a deterioração nutricional, a interacção entre nutrição e QV permanece subestimada. Embora os cuidados nutricionais em doentes com cancro sejam apontados como auspiciosos, até à data são escassas as demonstrações que suportem a interacção entre a nutrição e a QV. Neste contexto, este estudo transversal efectuado em doentes de cancro da cabeça e pescoço, esófago, estômago e colo-rectal foi desenhado para explorar as potenciais interacções entre vários factores relacionados com a doença e relacionados com a alimentação, factores que 45 doença e nutrição são determinantes chave da Qualidade de Vida dos doentes* é possível que estejam implicados na Qualidade de Vida destes doentes. Os nossos objectivos foram 1) avaliar a Qualidade de Vida, estado nutricional e ingestão dietética tendo em conta o estadio da doença e intervenções terapêuticas, 2) determinar potenciais interrelações, e 3) quantificar o impacto relativo do cancro/tratamentos e/ou factores relacionados com a nutrição, na QV dos doentes. *O presente artigo é uma tradução integral do artigo original publicado em inglês, com a referência bibliográfica: Ravasco P, Monteiro-Grillo I, Marques-Vidal P, Camilo ME. "Cancer: disease and nutrition are key determinants of patients' Quality of Life". Supportive Care in Cancer 2004; 12: 246-252. O impacto da Nutrição nos doentes oncológicos. Paula Ravasco, 2005 Unidade de Nutrição e Metabolismo – Instituto de Medicina Molecular, Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa 46 Doentes e métodos Desenho do Estudo e População de Doentes O presente estudo, aprovado pela Comissão de Ética do Hospital e conduzido de acordo com a Declaração de Helsínquia de 1975, versão revista em 1983, foi estruturado para investigar as interrelações entre cancro/tratamento e factores relacionados com a nutrição, e a QV dos doentes. Entre Julho de 2000 e Setembro de 2002, todos os doentes ambulatórios com cancro de cabeça e pescoço (CP), esófago (ESO), estômago (EST) e colo-rectal (CR) referenciados para Radioterapia, foram considerados elegíveis; apenas os doentes com outras doenças crónicas foram excluídos. Todos os participantes deram o seu Consentimento Informado para participarem do estudo. Antes do planeamento da radioterapia, para cada doente, o pessoal médico registou os seguintes dados: variáveis clínicas, duração da doença, localização do tumor, presença de metástases à distância, e estadio do tumor através da classificação TNM. A duração da doença, esta última confirmada por histologia, foi definida como sendo o intervalo de tempo (em meses) entre as manifestações sintomáticas e a entrada no estudo. Para avaliar as diferenças entre os estadios do tumor, os doentes foram clínica e fisiologicamente agrupados em duas classes: estadios I+II (in situ ou doença local) e estadio III+IV (doença localmente avançada com ou sem invasão ganglionar e/ou metástases à dis- Iniciei a investigação na área da Nutrição e Oncologia há 5 anos atrás, mais concretamente em Junho de 2000. O porquê desta área de investigação: é uma área com imenso por fazer e imenso por saber. A Nutrição é uma área de saber em franca expansão, pedra basilar para a nossa vida. A Oncologia desde sempre foi uma área que me fascinou, pelo desafio que representa em termos científicos, técnicos, profissionais e pessoais. Verifiquei que, independentemente de muito difícil, consegui fazer a diferença e ter um impacto muito positivo na vida de imensos doentes e isso, para mim, é por si só uma vitória. Não é, contudo, fácil conviver diariamente com esta terrível doença. Não é nada fácil gerir a doença, tratamentos, minimizar o sofrimento, a angústia e o stress psicológico de doentes e familiares. Como em tudo, há casos que nos marcam mais que outros, e muitas vezes a distância não se consegue manter, principalmente para alguém como eu, que luto com os doentes. Nos diversos estudo que realizei, os doentes eram ambulatórios, em que a alimentação era adequada ao doente e doença, como recomendado pela Resolução do Conselho da Europa, aprovada em Conselho de Ministros em Novembro de 2003. A minha investigação concluiu que, com aconselhamento e acompa- Os nossos objectivos foram 1) avaliar a Qualidade de Vida, estado nutricional e ingestão dietética tendo em conta o estadio da doença e intervenções terapêuticas, 2) determinar potenciais interrelações, e 3) quantificar o impacto relativo do cancro/tratamentos e/ou factores relacionados com a nutrição, na QV dos doentes. tância). Os dados foram registados em folhas individuais pré-construídas para análise estatística. Parâmetros do Estudo Avaliação Nutricional. O peso foi determinado com uma balança de chão Jofre. O estado nutricional foi avaliado através do cálculo da percentagem de perda de peso comparativamente ao peso habitual do doente, e classificada como grave quando >10% nos últimos 6 meses. doentes com idade ≤60 anos foram estimadas utilizando as fórmulas da Organização Mundial de Saúde, ou pelas fórmula de Owen et al em doentes com idade >60 anos, devido à sua melhor capacidade de prever os gastos energéticos basais. Para estimar as necessidades energéticas diárias (NED) dos doentes, as necessidades basais foram multiplicadas por um factor de actividade de 1.5 ; as necessidades proteicas diárias foram estimadas por comparação com os valores referência estandardizados por idade e sexo, que variam entre 0.8 e 1.0 g/kg por dia. Necessidades Nutricionais e Avaliação Dietética. As necessidades energéticas basais em A ingestão nutricional habitual (antes do diagnóstico) foi determinada pelo método da nhamento nutricionais personalizados, houve uma redução significativa dos sintomas decorrentes dos tratamentos, logo menor sofrimento, melhor Qualidade de Vida, aumento de peso, melhoria da ingestão alimentar, aumento da capacidade funcional e motivação para enfrentar todas as etapas da sua doença. Estes resultados nunca tinham sido demonstrados, sendo por isso estudos pioneiros. rebro. E de facto a receptividade dos doentes às consultas de nutrição não poderia ter sido melhor! A nutrição e a forma como os doentes devem e podem comer são dos aspectos que mais preocupam doentes e familiares. Todos sabemos que para viver temos de comer, por isso os doentes implicitamente sabem que têm de comer bem para passar melhor os tratamentos e para não perderem peso. De resto, não é por acaso que já Hipócrates defendia a nutrição como essencial: "May thy food be thy medicine, and thy medicine be thy food" – "que a comida seja o teu remédio, e que o teu remédio seja a tua comida". Todos estes factos científicos são hoje internacionalmente considerados Evidência, Desde o início da minha investigação avaliei perto de 1000 doentes. A maioria tinham tumores da cabeça e pescoço, esófago, estômago e cólon/recto, mas também acompanhei doentes com tumores da mama, próstata, pulmão ou cé- 47 Em oncologia, ingestão nutricional deficitária e de longa duração não haviam sido anteriormente investigados ou ajustados ao estadio do tumor. Os nossos resultados demonstraram défices marcados de ingestão nutricional nos estadios avançados da doença. 48 história dietética e a ingestão actual foi avaliada pelo questionário alimentar das 24 horas anteriores. O software DIETPLAN na versão 5 para o Windows (Forestfield software Ltd 2003, Horsham, UK) foi utilizado para analisar a composição nutricional dos alimentos e refeições. Método de Avaliação da QV. A versão 3.0 do Questionário de QV da European Organisation for Research and Treatment of Cancer (EORTC-QLQ C30), foi utilizado para avaliar a QV. Este método é específico para doentes oncológicos e que consiste em 30 itens, incluindo 6 escalas de capacidade estando documentados e publicados em revistas científicas de elevado prestígio, como resultado de 5 anos de intensa investigação clínica, tendo como clara demonstração científica a nossa mais recente publicação na revista científica mais importante na área da Oncologia: The Journal of Clinical Oncology. Acresce que a relevância científica e clínica destes trabalhos foi considerada de tal forma importante, que me foi atribuída o prémio internacional Eminent Scientist of the Year 2004 & Millenium Golden International Award. Este prémio teve um impacto muito importante em variadas dimensões pessoais, emocionais e funcional (física, emocional, cognitiva, social, desempenho, estado de saúde global e QV global), 3 escalas de sintomas (fadiga, dor, náuseas/vómitos), e 6 itens individuais que avaliam outros sintomas e o impacto financeiro da doença. Valores mais elevados nas escalas funcionais indicam melhor capacidade funcional, enquanto que valores mais elevados nas escalas de sintomas e itens individuais denotam aumento da sintomatologia ou pior degradação financeira. Os dados numéricos originais colhidos pelo questionário, foram transformados matematicamente por regressão linear de forma a obter valores quantificados no intervalo de 0 a 100; adicionalmente, para uma melhor profissionais. A nível pessoal, a honra e entusiasmo de ser seleccionada, a nível mundial para receber tal prémio, dada a relevância científica do meu trabalho de investigação para a Ciência e para os doentes, são indubitavelmente únicos. Ver o resultado de 5 anos do meu trabalho premiado a tão elevado nível, e ser designada e reconhecida como Cientista de Excelência representa uma enorme alegria e recompensa. Para os doentes a atribuição deste prémio, em tudo o que ele significa, mostra um claro reconhecimento da importância da Nutrição em Oncologia, e do seu papel chave na promoção e manutenção do bem-estar, Qualidade de Vida e melhoria da tolerância aos tratamentos, numa doença tão Tabela 1 Doentes e estadio da doença n Estadio (número de doentes) Base da língua 11 II (3); III (4); IV (4) Glândula salivar 6 II (1); III (5) Amígdala 4 II (4) Nasofaringe 11 II (2); III (9) Orofaringe 22 II (5); IV (17) Laringe 33 I (4); II (3); III (10); IV(16) Localização Cabeça e Pescoço Tracto Gastrintestinal Esófago 14 II (3); III (6); IV (5) Estômago 26 I (2); II (4); III (11); IV(9) Colo-rectal 144 I (15); II (19); III (76);IV (34) n= número de doentes validação em contexto clínico, os valores totais obtidos nas escalas de funções, escalas de sintomas e itens individuais foram calculados com base nas correlações inter-escalas, que têm elevada significância estatística, de acordo com as directivas da EORTC (20). agressiva que a esmagadora maioria das vezes se transforma num “pesado fardo” que os doentes têm de carregar, ao qual têm de se adaptar e com o qual têm de viver. Para os doentes e para o seu tratamento, é sem sombra de dúvida um grande avanço, que poderá impulsionar o reconhecimento do seu direito de receber cuidados nutricionais adequados. O que desejo e espero é que os resultados da minha investigação cheguem até eles. Com este reconhecimento do meu trabalho posso esperar que, para a Ciência, represente o reconhecimento necessário da Investigação Clínica como único meio de aplicar a ciência Análise Estatística A análise estatística foi feita com os softwares SPSS 10.0 (SPSS Inc, Chicago, USA) e o EPI–Info 2000 (CDC, Atalanta, USA). Os dados qualitativos, localização e estadio do tumor foram expressos em números e percentagens; a idade, duração da doença, perda de peso, ingestão nutricional e QV foram expressos como medianas ou médias e desvios padrão. As comparações entre grupos foram feitas por análise de variância (ANOVA) para variáveis contínuas, com ajustamentos de Bonferroni ou Dunn nos casos de múltiplas comparações; as comparações emparelhadas foram feitas com o método de t de Student; as variáveis categóricas foram comparadas pelo teste do Qui-Quadrado. As correlações foram valorizadas pelo método não-paramétrico de Spearman. O modelo multivariado geral linearizado foi utilizado para identificar variáveis com relações significativas com a QV dos doentes. Para todas os resultados, a significância foi estabelecida a um nível de probabilidade de 5%. RESULTADOS Amostra de Doentes. Este estudo incluiu 271 doentes (173H: 98M), com idade média de 5412 (32-87) anos, referenciados para radioterapia (primaria, adjuvante à cirurgia, aos doentes, tornando-a mandatória para a melhoria dos cuidados de saúde prestados aos doentes. Por outro lado, defende a integração da Nutrição na abordagem multidisciplinar do tratamento oncológico. Para mim, tal como para outros profissionais de saúde dedicados ao estudo e prática da Nutrição, é uma esperança de que possa ser um alerta sobre a importância e necessidade de boa nutrição como terapêutica. É sem dúvida mandatória a integração da Nutrição na abordagem multidisciplinar do tratamento do doente oncológico. E repito, para mim, tal como para outros profissionais de saúde dedicados ao estudo e prática da Nutrição, é uma esperança de que possa ser um alerta sobre 49 combinada com quimioterapia ou com intenção paliativa). A Tabela 1 mostra a localização e estadio dos tumores: 65 de estadios I/II e 206 de estadios III/IV. 50 corrente como a habitual foram respectivamente comparadas com as NED e com os valores referência medianos de proteína, tendo em conta a localização da doença, Figura 1. Nos doentes de estadios III/IV, a ingestão proteica A duração da doença era mais longa nos doentes corrente foi significativamente mais baixa que de estadios III/IV (613 meses) vs doentes de o valor de referência (p=0.001) enquanto que estadios I/II (3.65 meses) (p=0.002). a ingestão calórica se manteve dentro das NED; contrariamente, nos doentes de estadios I/II, Ingestão Nutricional. Relativamente a ambas, a ingestão corrente de calorias/proteína era a ingestão calórica e proteica, tanto a ingestão significativamente mais alta do que o valor de referência, p=0.005. Adicionalmente, a ingestão corrente calórica e a proteica foram mais baixas Tabela 2 nos estadios III/IV (p=0.0002 e p=0.001, respectivamente). A Tabela 2 resume a redução Ingestão de energia e proteínas: redução mediana relativamente à ingestão hatitual mediana das ingestões para cada diagnóstico e estadio da doença e mostra que decréscimos na ingestão de energia e proteína seguiram Diagnóstico Energia (kcal/dia) Proteínas (g/dia) padrões similares e tenderam a ser proporcionais (p=0.05). Os maiores decréscimos, tanto na Estadio Estadio ingestão calórica como proteica, registaram-se I / II III / IV I / II III / IV nos doentes com tumores da CP e ESO de estadio III/IV (p=0.02). A análise estratificada n=65 n=206 n=65 n=206 realça ainda mais as diferenças: doentes de estadios III/IV registaram um decréscimo Cabeça-pescoço - 50 - 910 - 0.8 - 89 (n=87) significativo da sua ingestão habitual usual de Esófago - 64 - 1095 -1 - 94 calorias (p=0.001) e proteínas (p=0.0002) ao (n=14) contrário dos doentes de estadio I/II. Estômago (n=26) - 25 - 491 - 0,2 - 64 Colo-rectal (n=144) - 20 - 652 - 0,2 - 68 n= número de doentes a importância e necessidade de boa nutrição como terapêutica. Para além do prémio científico internacional que este trabalho mereceu, também a sociedade portuguesa me seleccionou para receber o Globo de Ouro “Revelação do Ano em Ciência”. Depois da distinção mundial que me foi atribuída para Cientista Eminente do Ano, o Globo de Ouro foi sem dúvida a maior e melhor surpresa que tive este ano. Mas numa ocasião como esta, as palavras são sempre curtas ou insuficientes. Ter o mérito e privilégio de ver o nosso trabalho reconhecido a tão elevado nível, tanto científico como social é de facto único. Estado Nutricional. A mediana da percentagem de perda de peso dos doentes para cada diagnóstico é mostrada na Figura 2; doentes Como qualquer Investigador que trabalhe numa equipa de investigação multiprofissional, esta não foi a única investigação em que estive envolvida. A equipa de investigação da Unidade de Nutrição e Metabolismo do Instituto de Medicina Molecular da Faculdade de Medicina de Lisboa na qual trabalho, tem diversos projectos a decorrer, e eu trabalho em quase todos eles: desde a epidemiologia, doença cardio e cerebrovascular, investigação de alguns mecanismos celulares que podem levar ao desenvolvimento de tumores,... Perante os óptimos resultados da minha investigação em oncologia, a investigação nesta Tabela 3 Dimensões da QV de acordo com a localização e estadio do tumor Parâmetros ESO (n=14) EST (n=26) CR (n=144) I/II CP (n=87) III/IV I/II III/IV I/II III/IV I/II III/IV QV Global 73 50 69 52 70 56 75 68 Física 80 50 65 42 55 40 74 69 Actividade 77 55 68 53 62 42 78 62 Emocional 64 51 63 51 45 36 65 65 Social 86 56 74 48 58 55 69 69 Cognitiva 72 53 65 54 55 41 58 38 Escalas de Funções 51 Escalas de Sintomas Fadiga 52 67 51 64 19 68 26 46 Dor 13 60 22 58 29 52 25 49 Náuseas e vómitos 18 43 25 45 24 78 48 58 Dispneia 18 25 38 56 2 2 5 5 Insónia 23 53 25 45 25 35 19 39 Anorexia 19 73 41 55 19 79 28 68 Prisão de Ventre 2 2 2 2 1 1 4 15 Diarreia 2 2 2 2 0 0 44 79 Impacto Financeiro 38 38 4 4 1 1 8 8 Sintomas e itens individuais Os resultados são expressos como valores medianos; CP: cabeça e pescoço, ESO: esófago, EST: estômago, CR: colo-rectal; valores mais elevados nas escalas de funções indicam melhor capacidade funcional, valores mais elevados nas escalas de sintomas e itens individuais indicam sintomatologia mais acentuada. área vai sem dúvida continuar, na área de intervenção, e também noutras áreas mais aprofundadas de ciência básica, genómica, etc... Quanto ao futuro, no que diz respeito aos doentes e qualidade de cuidados prestados, os resultados existem, a evidência é mais que suficiente, os profissionais estão sensibilizados e interessados, mas essa mudança tem de ser feita a nível político, a nível das administrações hospitalares e das instituições prestadoras de cuidados de saúde. com tumores do ESO e EST apresentaram uma maior percentagem de perda de peso, comparados com doentes com cancros da CP e CR, p=0.04. De uma forma geral, a perda de peso foi significativamente maior nos estadios III/IV, relativamente aos doentes dos estadios I/II, p=0.001. Destes últimos, apenas 7/65 (10%) tinham perdido mais de 10% do seu peso habitual, enquanto que 175/206 (85%) dos doentes de estadios III/IV registaram perdas de peso superiores a 10%. Qualidade de Vida. A mediana dos resultados das dimensões da QV está sumarizada na Tabela 3. Houve um padrão distinto entre diagnósticos Tabela 4 Inter relações e cálculo dos estimates of effect size (pesos relativos) de parâmetros nutricionais e variáveis relativas ao tumor/tratamento(s) e QV: resultados da análise com o modelo geral linearizado Escalas globais funcionais 52 Escalas globais desintomas‡ Variáveis F-test Estimates of effect size* p F-test Estimates of effect size* Estádio 1.6 1% 0.18 56.5 Localização 111.2 30% 0.0001 Ingestão calórica 27.2 10% Ingestão proteica 27.2 Perda de peso Escalas globais deitens individuais‡ p F-test Estimates of effect size* p 22% 0.001 103.7 30% 0.0001 77.2 41% 0.0001 49.2 20% 0.001 0.01 1.0 3% 0.35 3.9 4% 0.07 10% 0.01 1.0 4% 0.25 4.2 5% 0.07 133.7 30% 0.0001 0.05 1% 0.82 1.2 3% 0.10 Duração da doença 1.5 3% 0.14 10.0 7% 0.06 1.2 3% 0.30 Quimioterapia 35.3 10% 0.001 2.1 4% 0.22 1.3 1% 0.25 Cirurgia 6.1 6% 0.01 1.4 1% 0.86 3.0 4% 0.09 Nas colunas indicam-se as variáveis dependentes, e nas linhas as variáveis independentes; todas as escalas foram transformados linearmente e agrupadas para obter resultados globais antes da inclusão no modelo analítico; *a soma das percentagens pode não ser igual a 100% devido ao efeito do erro corrigido; ‡devido a potenciais associações entre sintomas e diagnósticos, as associações foram ajustadas por localização do tumor. 3000 2500 2000 1500 1000 500 0 CP ESO EST CR CP ESO EST CR 150 Figura 1 O Painel A mostra a ingestão de energia e o Painel B a ingestão de proteínas; necessidades medianas estimadas , ingestão habitual medianam e ingestão actual mediana ; CP: cabeçapescoço, ESO: esófago, EST: estômago, CR: colo-rectal. 100 50 0 % perda de peso 20 18 Figura 2 Percentagem de perda de peso nos últimos 6 meses (mediana) nos estadios I/II , e estadios III/IV , de acordo com a localização do tumor; CP: cabeça e pescoço, ESO: esófago, EST: estômago, CR: colo-rectal. 16 14 12 10 8 6 4 2 0 CP ESO EST CR O presente estudo mostra claramente que a QV dos doentes com cancro é multifactorial e que é distintamente influenciada pela doença, intervenções terapêuticas e vários parâmetros nutricionais. (p<0.03) em relação às escalas de função da QV, que eram piores nos doentes com tumores da CP, ESO e EST (p≤0.008). De uma forma geral, as escalas de sintomas foram piores nos estadios III/IV vs estadios I/II, p<0.003; contudo, a fadiga era significativamente mais acentuada em doentes com tumores da CP e ESO de estadio I/II do que em EST ou CR de estadio I/II (p=0.02), enquanto que as náuseas/vómitos foram piores em tumores CR de estadio I/II (p=0.03) e a dor não tinha alterações significativas entre diagnósticos. Em todos os diagnósticos, a dispneia, insónia e anorexia foram piores nos estadios III/IV vs I/II, p=0.002. A diarreia foi mais prevalente no cancro CR, p=0.001 e mais grave nos estadios III/IV, p=0.03. Limitações financeiras associadas a condições sociais /económicas foram prevalentes nos doentes com tumores da CP, p=0.002. A análise dos factores relacionados com a nutrição e a sua associação com a QV, mostrou que a ingestão calórica e de proteínas estavam correlacionados com as escalas de funções: QV global (r=0.53, p=0.001), física (r=0.26, p=0.02) e emocional (r=0.29, p=0.01), bem como com alguns sintomas: anorexia (r=0.52, p=0.001), fadiga (r=0.60, p=0.001), dor (r=0.55, p=0.003), náuseas/vómitos (r=0.51, p=0.003) e diarreia (r=0.60, p=0.001). A malnutrição nestes doentes foi associada a escalas de funções mais pobres: QV global (p=0.05), física (p=0.01), desempenho (p=0.02), cognitiva (p=0.02), emocional (p=0.01) e social (p=0.01) bem como com alguns sintomas: anorexia (p=0.001), aumento da fadiga (p=0.03), dispneia, insónia e diarreia (p=0.04). Dada a forte interacção entre a QV (variável dependente), e o estadio do tumor e nutrição (variáveis independentes), foi efectuada uma análise não-paramétrica de correlação estratificada por diagnóstico. Esta análise mostrou um padrão distinto de QV entre diagnósticos, e identificou quais as variáveis significativamente associadas aos valores globais da QV individual (Figuras 3a, 3b, 3c, 3d, nas quais o eixo vertical indica os valores globais de escalas de funções, sintomas e de itens individuais, obtidos de valores medianos). As Figuras 3a e 3b mostram que a capacidade funcional para todos os diagnósticos foi significativamente influenciada pelo deficit de ingestão nutricional actual e perda de peso recente, mas não foi afectado pelo estadio do tumor; em ambos os casos, os tumores do ESO e EST mostraram piores resultados globais de funções relativamente aos cancros da CP e CR, p=0.02. A Figura 3c mostra que os resultados globais das escalas de sintomas estavam fortemente associados ao estadio do tumor e não foram significativamente diferentes entre diagnósticos ou influenciados por parâmetros nutricionais. A Figura 3d mostra que, tal como no caso dos resultados globais das escalas de sintomas, piores resultados globais de itens individuais estavam apenas associados com os estadios III/IV; embora não 53 houvesse diferenças significativas entre os tumores da CP, CR e ESO, este último mostrou piores resultados de itens isolados por contraste com tumores do EST, p=0.03. 54 A Tabela 4 mostra os resultados de um modelo geral linearizado que inclui resultados globais de QV, parâmetros nutricionais e variáveis relacionadas com o tumor/tratamento(s) de forma a calcular os pesos relativos de cada, e as respectivas estatísticas. A localização do tumor, quimioterapia e cirurgia foram significativamente associados a todos os resultados da QV enquanto que o estadio estava apenas associado com os resultados das escalas de sintomas e resultados de itens individuais. A ingestão nutricional e a perda de peso foram associados apenas com os resultados de funções, embora existisse uma tendência para a associação com resultados de sintomas e itens individuais (p=0.06). De modo a avaliar qual o diagnóstico que estava mais fortemente associado com pior QV, dimensões individuais foram agrupadas e valorizadas de acordo com os seus pesos relativos. Os doentes com tumores do EST tinham a pior QV, embora sem diferenças significativas relativamente ao tumor do ESO; doentes com tumores da CP e CR tinham uma QV global sensivelmente superior (p=0.02), CR>HN (NS). De uma forma geral, o estadio da doença foi identificado como o maior determinante da QV dos doentes (p=0.002), seguido de perto pela deterioração no estado nutricional (p=0.005) e pela ingestão dietética (p=0.007). Discussão Para ser significativa, a avaliação da QV deve incluir o impacto da doença juntamente com as intervenções terapêuticas, expectativas e satisfação pessoais, daí ter sido utilizado no presente estudo o questionário de QV da EORTC como o método mais preciso (20). O presente estudo mostra claramente que a QV dos doentes com cancro é multifactorial e que é distintamente influenciada pela doença, intervenções terapêuticas e vários parâmetros nutricionais. A deterioração nutricional relacionada com o cancro tem sido tradicionalmente atribuída à anorexia e alterações metabólicas (3, 21, 22). Apesar do facto de a deterioração nutricional se associar a alterações funcionais (6), a interacção entre nutrição e QV está ainda por explorar (7). A nutrição artificial em certos doentes com cancro tem sido sugerida como um factor que contribui para melhorar o estado nutricional e a QV (23, 24). Na verdade, a fadiga, anorexia e stress emocional, comuns em doentes oncológicos, podem ser agravados mas também reduzidos por uma deficiente ingestão nutricional e QV (25, 26). Este estudo tem como enfoque a avaliação de parâmetros nutricionais e de variados parâmetros clínicos como potenciais determinantes da QV. Em oncologia, ingestão nutricional deficitária e de longa duração não haviam sido anteriormente investigados ou ajustados ao estadio do tumor. Os nossos resultados demonstraram défices marcados de ingestão nutricional nos estadios avançados da doença. Houve não só um decréscimo significativo da ingestão habitual de energia e proteínas nos estadios III/IV, mas também a ingestão actual de ambos, foi marcadamente inferior do que nos estadios I/II. Verificou-se ainda que os estadios III/IV de tumores da CP e do ESO apresentavam os défices mais marcados de energia e proteínas. Um estadio avançado da doença foi o denominador comum da deterioração nutricional dos doentes. A perda de peso e a ingestão reduzida de energia/proteínas estavam associadas (p=0.06) apesar de não se ter encontrado um padrão consistente. Os nossos resultados corrobam e expandem observações prévias de que o défice progressivo na ingestão nutricional pode estar associado à localização do tumor (3, 4, 27, 28) e pode, eventualmente, ser proporcional à extensão da doença (29). No que diz respeito às dimensões de QV, o Este estudo de 271 doentes com tumores da cabeça e pescoço, esófago, estômago e colo-rectal mostra que o cancro, défices dietéticos, deterioração nutricional e intervenções terapêuticas são determinantes para a QV dos doentes, mas têm pesos relativos diferentes. 55 estadio do tumor influenciou a gravidade das escalas de sintomas e itens individuais, enquanto que os deficits de ingestão de energia/proteínas e a perda de peso influenciaram de forma negativa as escalas de funções da QV. De uma forma geral, a capacidade funcional dos doentes foi afectada pela localização do tumor e factores nutricionais com um contributo relativo similar de 40% cada um, e apenas em 1% pelo estadio da doença; a contribuição relativa atribuída à quimioterapia, cirurgia e duração da doença foi de 10%, 6% e 3%, respectivamente, como já foi previamente sugerido em diferentes grupos de doentes (30-32). As escalas de sintomas tiveram um padrão inverso por comparação com as escalas de funções: 41% foram atribuídos à localização do tumor, 22% ao estadio, 7% à ingestão nutricional, 7% à duração da doença, 4% à cirurgia, 1% à perda de peso e 0.01% à quimioterapia. Da mesma forma, o estadio do tumor e a localização foram os maiores determinantes dos itens individuais de QV, que foram piores nos estadios III/IV. Apesar de o estadio da doença ser o principal determinante da QV dos doentes, em alguns diagnósticos o impacto da deterioração nutricional combinado com ingestão nutricional deficiente pode ser clinicamente mais importante. Este estudo de 271 doentes com tumores da cabeça e pescoço, esófago, estômago e colorectal mostra que o cancro, défices dietéticos, deterioração nutricional e intervenções terapêuticas são determinantes para a QV dos doentes, mas têm pesos relativos diferentes. Enquanto que a quimioterapia/cirurgia eram encaradas pelos doentes como factores de relevância menor, os nossos dados são consistentes com a hipotética relação entre deterioração nutricional e doença progressiva (29). Embora os défices nutricionais e/ou deterioração fossem intrínsecos à localização e estadio da doença, a ingestão reduzida de energia/proteínas e a perda de peso foram determinantes independentes da QV. Os nossos resultados coincidem com o estudo de Keys et al, que mostrou que o semi-jejum afecta negativamente capacidades funcionais e psicológicas (33). É de grande relevância clínica que o aconselhamento e educação nutricionais individualizados, possam contribuir para manter/melhor a ingestão e o estado nutricionais, bem como para melhorar significativamente a QV global dos doentes (34, 35). FIGURA 3a 56 FIGURA 3b 90 90 85 85 80 80 75 75 70 70 65 65 60 60 55 55 50 50 45 45 40 40 35 35 30 30 25 25 % requirements 0 - 24% % weight loss 51 - 75% 25 - 50% 76 - 100% Figura 3a Escalas globais funcionais de acordo com diagnósticos e estratificadas por quartil de ingestão de energia e proteínas; CP: cabeça-pescoço, ESO: esófago, EST: estômago, CR: colo-rectal. 0-24%, p=0.003; 25-50%, p=0.01; 51-75%, p=0.04; 76-100%, p=0.05. > 5 - 10 % Figura 3b Escalas globais funcionais de acordo com diagnósticos e estratificadas por categorias de % significativa de perda de peso; CP: cabeça-pescoço, ESO: esófago, EST: estômago, CR: colorectal. >10%, p=0.001; 5-10%, p=0.06. FIGURA 3c 90 FIGURA 3d 45 85 80 40 75 70 35 65 30 60 55 25 50 45 20 40 35 15 30 25 10 20 15 5 Staning IV Staning III II I Figura 3c Escalas globais de sintomas de acordo com diagnósticos e estratificadas por estadiosdo tumor; CP: cabeça-pescoço, ESO: esófago, EST: estômago, CR: colo-rectal. IV, p=0.001; III, p=0.002; II, p=0.04; I, p=0.04. IV III II I Figura 3d Escalas globais de itens individuais de acordo com diagnósticos estratificadas por estadios do tumor; CP: cabeçapescoço, ESO: esófago, EST: estômago, CR: colo-rectal; IV+ III, p=0.001; II+ I, p=0.05. REFERÊNCIAS Cravo ML, Glória ML, Claro I (2000) Metabolic responses to tumour disease and progression: tumour-host interaction. Clin Nutr;19:459-465 Van der Schueren MAEB, Van Leeuwen PAM, Kuik DJ, et al (1999) The impact of nutritional status on the prognoses of patients with advanced head and neck cancer. Cancer; 86:519-527 Grosvenor M, Bulcavage L, Chlebowski R (1989) Symptoms potentially influencing weight loss in a cancer population. Correlations with primary site, nutritional status, and chemotherapy administration. Cancer; 63:330334 Hansell DT, Davies J, Burns HJ (1986) The effects on resting energy expenditure of different tumor types. 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DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSES Todos os autores declaram que não têm qualquer relação financeira ou profissional com outras pessoas ou organizações que possam influenciar inapropriadamente o nosso trabalho. 57 Sandra Macedo-Ribeiro Bioquímica, Universidade do Porto Grupo de Cristalografia Macromolecular Centro de Neurociências e Biologia Celular, Coimbra Intermediários de agregação da proteína ataxina-3: 58 Novos alvos na terapêutica da doença de Machado-Joseph Objectivos A repetição excessiva de três “letras” (CAG) no gene que contém o código para a síntese da proteína ataxina-3 determina o aparecimento da doença de Machado-Joseph. A alteração do gene por repetição do codão CAG, traduz-se numa repetição do aminoácido glutamina na proteína por ele codificada. A actividade biológica de uma proteína é determinada pela sua forma tridimensional, isto é, pela forma como as cadeias de aminoácidos que a constituem se organizam no espaço. A alteração da sequência de aminoácidos da ataxina-3, por expansão do número de glutaminas, induz alterações na sua estrutura tridimensional, modificando consequentemente a forma como esta interage consigo própria e com outras moléculas no interior das células – diz-se então que a proteína adquire uma conformação tóxica. Um dos principais marcadores patológicos da doença é a presença de depósitos insolúveis contendo ataxina-3 nos neurónios selectivamente afectados nesta doença neurodegenerativa. No entanto, os seus gravíssimos sintomas começam a manifestar-se muito antes, durante um período muito prolongado em que os neurónios continuam vivos mas não funcionam devidamente e ainda não são visíveis os depósitos de ataxina-3. Por esse motivo, é fundamental identificar e caracterizar as várias etapas que levam à deposição da proteína de forma a estabelecer estratégias terapêuticas capazes de combater a doença numa fase precoce. A doença de Machado-Joseph A doença de Machado-Joseph, também designada ataxia espinocerebelosa tipo 3, é uma doença neurodegenerativa rara (1.6 casos por milhão), descrita pela primeira vez nos anos 70 em descendentes de açorianos e para a qual não existe ainda nenhum tratamento eficaz. Esta doença hereditária progressiva, que surge associada a sintomas de ataxia (ausência de controlo muscular e falta de coordenação nos movimentos do corpo), encontra-se distribuída por todo o mundo mas tem uma especial prevalência no arquipélago do Açores, em particular nas ilhas de S. Miguel e das Flores. A doença afecta também famílias do continente, A doença de Machado-Joseph, também designada ataxia espinocerebelosa tipo 3, é uma doença neurodegenerativa rara (1.6 casos por milhão), descrita pela primeira vez nos anos 70 em descendentes de açorianos e para a qual não existe ainda nenhum tratamento eficaz. tendo-se descoberto um concelho do distrito de Santarém, onde a prevalência é de 1:1000 habitantes. A doença de Machado-Joseph transmite-se de pais para filhos, bastando a presença de um só gene mutado (em apenas um dos ), em qualquer dos progenitores, para a doença se manifestar, o que faz dela uma doença genética autosómica dominante. Sendo uma doença hereditária, a doença de Machado-Joseph resulta de uma alteração num gene, localizado no braço longo do cromossoma 14. Os genes constituem os moldes que determinam a construção do corpo humano, armazenando a informação para a síntese das proteínas. No gene alterado na doença de Machado-Joseph, identificou-se uma região com uma repetição do tripleto CAG (citosina, adenina e guanina), que resulta na repetição do aminoácido glutamina na proteína (ataxina3) codificada por este gene. Em indivíduos normais, este aminoácido repete-se entre 12 e 40 vezes. A doença ocorre como resultado duma expansão dessa repetição para além das 55 vezes (Figura 1). Assim, esta doença inserese no grupo das doenças resultantes de expansão de poliglutaminas, das quais a doença de Huntington é a mais conhecida. Figura 1 – O gene alterado na doença de Machado-Joseph contém uma região onde naturalmente se encontra repetido o codão CAG, que resulta numa repetição de glutaminas na sequência de aminoácidos da proteína ataxina-3. A doença surge quando o número de glutaminas repetidas ultrapassa 55. Nas doenças de poliglutaminas, quanto maior é a expansão da repetição de glutaminas, menor 59 Esta doença hereditária progressiva, que surge associada a sintomas de ataxia (ausência de controlo muscular e falta de coordenação nos movimentos do corpo), encontra-se distribuída por todo o mundo mas tem uma especial prevalência no arquipélago do Açores, em particular nas ilhas de S. Miguel e das Flores. A doença afecta também famílias do continente, tendo-se descoberto um concelho do distrito de Santarém, onde a prevalência é de 1:1000 habitantes. 60 é a idade em que se manifesta e mais graves são os sintomas da doença. São também doenças progressivas, o que significa que as células são capazes de criar mecanismos de protecção contra a toxicidade induzida pela expansão de poliglutaminas e adiar o aparecimento dos primeiros sintomas. No entanto, dependendo do número de glutaminas repetidas, o efeito tóxico cumulativo acaba por se sobrepor aos mecanismos de defesa das células e aparecem os primeiros sintomas que rapidamente se agravam. No caso da doença de MachadoJoseph, os primeiros sintomas surgem por volta dos 40 anos, ocorrendo a morte 10-20 anos depois. Como as proteínas envolvidas nas doenças de poliglutaminas não apresentam qualquer tipo de semelhança estrutural ou funcional, com excepção da região contendo a repetição de glutaminas, tudo indica que os mecanismos de toxicidade são dominados pela alteração estrutural provocada pela expansão desta região. No entanto, os sintomas são distintos em cada uma destas doenças neurodegenerativas, pelo que o conjunto de neurónios afectado em cada doença é diferente. Isto indica claramente que as proteínas que são afectadas individualmente pela expansão de poliglutaminas têm também um papel determinante na modulação da especificidade da morte neuronal e nos mecanismos de progressão da doença. Poliglutaminas e Amilóide: Aspectos estruturais Em 1991, quando se descobriu que um conjunto de doenças neurodegenerativas era causado pela expansão de uma sequência de glutaminas, um dos maiores focos de investigação incidiu imediatamente na identificação de características moleculares e estruturais das sequências de poliglutaminas responsáveis pela patologia. Em 1994, Max Perutz propôs que as expansões de glutaminas, nas proteínas mutadas neste grupo de desordens neurológicas, resultariam em: a) interacções anómalas com factores de transcrição contendo domínios de poliglutaminas que resultariam em anomalias na transcrição, ou b) na formação de agregados mediados por interacções directas entre os domínios de poliglutaminas expandidos. Só dois anos depois as inclusões nucleares e/ou citoplasmáticas (IN) formadas pelas proteínas mutadas foram descobertas nos neurónios selectivamente afectados neste grupo de doenças neurodegenerativas, constituindo hoje em dia um dos principais marcadores patológicos da doença. Estas inclusões insolúveis têm natureza fibrilar e propriedades tintoriais características do material amiloidogénico, colocando as doenças de poliglutaminas no grupo mais vasto das doenças caracterizadas pela deposição intrae extracelular de proteínas sob a forma de fibras de amilóide; como é o caso das mais conhecidas doenças de Alzheimer e de Parkinson bem como da Polineuropatia Amiloidótica Familiar. Neste grupo de patologias, alterações na estrutura tridimensional das proteínas intervenientes na doença, quer sejam induzidas por mutações, stress ambiental ou envelhecimento celular, resultam na agregação das proteínas alteradas e na formação de depósitos insolúveis, facilmente detectados por microscopia óptica. A toxicidade destes novas informações sobre os mecanismos patogénicos neste grupo de doenças. O objectivo principal deste trabalho consiste na identificação e caracterização das propriedades amiloidogénicas de alguns intermediários de agregação da ataxina-3, que poderão vir a constituir novos alvos terapêuticos na doença de Machado-Joseph (Fig. 2). 61 agregados proteicos insolúveis e o seu efeito nos processos patológicos tem sido alvo de acesa controvérsia. Apesar das evidências serem ainda indirectas, a formação de depósitos proteicos insolúveis parece constituir a etapa final de um processo de agregação multi-etapas, constituindo uma estratégia das células para impedir que proteínas com estruturas tridimensionais alteradas estabeleçam interacções anómalas com outras proteínas ou outros componentes celulares. Nesta perspectiva, serão os intermediários formados no início da via de agregação das proteínas os principais causadores da toxicidade celular. Esses intermediários tóxicos poderão ser simplesmente formas alteradas das proteínas envolvidas na doença, ou espécies solúveis parcialmente agregadas (oligómeros esféricos ou protofibras). A compreensão dos mecanismos de alteração conformacional e agregação, a nível molecular e estrutural, é crucial para o desenvolvimento de terapias eficazes utilizáveis numa fase inicial da doença, adiando o aparecimento dos sintomas. A caracterização do processo de agregação das proteínas que sofrem expansão de poliglutaminas é por isso crucial para obter Figura 2- A proteína alterada deposita-se nas células (A), sob a forma de fibras (B). Se elucidarmos quais as características estruturais da proteína (C) que determinam a agregação, poderemos evitála e assim tratar a doença. Metodologia Para melhor compreender as propriedades químicas e estruturais da ataxina-3, o gene da proteína humana foi clonado e inserido num vector que permite a sua produção em grandes quantidades num sistema bacteriano (Escherichia coli). A ataxina-3 recombinante, contendo apenas 14 glutaminas, foi seguidamente purificada por cromatografia líquida. Verificouse então que a proteína purificada, isolada do seu ambiente celular, adquiria propriedades auto-adesivas e tinha a capacidade para formar estruturas oligoméricas e fibrilares. Estas estruturas foram caracterizadas por microscopia electrónica e por análise das suas propriedades de ligação a Vermelho de Congo e Tioflavina T, dois compostos utilizados normalmente na detecção de depósitos de amilóide. Utilizando técnicas de dicroísmo circular testaram-se as alterações da estrutura secundária da proteína, induzidas por oligomerização. Finalmente, utilizou-se um anticorpo específico com capacidade para detectar “conformações tóxicas” em proteínas envolvidas na formação de fibras de amilóide, para caracterizar as alterações conformacionais induzidas pela agregação da ataxina-3. Intermediários de agregação da Ataxina-3 não expandida: Modelos para o estudo da agregação na doença de Machado-Joseph 62 Demonstrou-se com este trabalho que a ataxina-3 contendo um número moderado de glutaminas, quando produzida em bactérias e isolada do meio celular, adquire espontaneamente propriedades auto-adesivas, depositando-se sob a forma de fibras de amilóide (Fig. 2B), em condições próximas das condições fisiológicas. Colocou-se como hipótese de trabalho que a proteína ataxina-3 teria uma propensão intrínseca para agregar, independentemente da expansão de glutaminas, provavelmente evitada no meio celular por interacções com outras macromoléculas, ou por modificações pós-tradução (fosforilação, etc.), que não podem ser reproduzidas na proteína produzida em bactérias. A expansão do número de glutaminas “in vivo” provavelmente desencadeia uma série de alterações estruturais inicialmente subtis, que cumulativamente interferem com as interacções macromoleculares, acabando por induzir a exposição dos domínios responsáveis pela oligomerização e posterior deposição da proteína na doença de Machado-Joseph. Considerouse então que as alterações na conformação da proteína induzidas pela repetição de glutaminas para além das 55 no meio celular, poderiam ser mimetizadas pela proteína não expandida isolada do seu ambiente celular. Assim, a proteína não expandida poderá constituir um modelo “in vitro” para o estudo da agregação da proteína expandida na doença de Machado-Joseph. Utilizando técnicas de microscopia electrónica visualizaram-se alguns dos intermediários na via de agregação da ataxina-3 (Fig.3). A comparação dos espectros de dicroísmo circular indicou que a transição da forma monomérica da ataxina-3 para as formas oligoméricas é acompanhada de um aumento de estrutura beta, uma característica que normalmente acompanha a formação de fibras de amilóide. Apenas as formas oligoméricas da ataxina-3 reagiram com um anticorpo, capaz de reconhecer “conformações tóxicas”, aparentemente comuns a formas oligoméricas de várias proteínas que formam amilóide. Isto indica que estas assumem uma conformação nova, ausente na forma monomérica da proteína. Os estudos de agregação “in vitro” para a ataxina-3 não expandida, sugerem um mecanismo multi-etapas, passando por intermediários oligoméricos tóxicos e resultando na formação de estruturas fibrilares com propriedades biofísicas caracteristícas do material amiloidogénico. O facto de trabalharmos com uma proteína com um número reduzido de glutaminas, permite-nos capturar intermediários A caracterização do processo de agregação das proteínas que sofrem expansão de poliglutaminas é por isso crucial para obter novas informações sobre os mecanismos patogénicos neste grupo de doenças. O objectivo principal deste trabalho consiste na identificação e caracterização das propriedades amiloidogénicas de alguns intermediários de agregação da ataxina-3, que poderão vir a constituir novos alvos terapêuticos na doença de Machado-Joseph. Sendo uma doença hereditária, a doença de Machado-Joseph resulta de uma alteração num gene, localizado no braço longo do cromossoma 14. 63 de oligomerização que não poderíamos visualizar se trabalhássemos com a proteína expandida, a qual quando isolada agrega muito rapidamente. A caracterização destes intermediários tóxicos e do seu mecanismo de nos permite a conversão da forma monomérica da ataxina-3 a formas oligoméricas tóxicas, permitindo-nos com facilidade testar toda uma série de compostos com capacidade para inibir esta transição estrutural. toxicidade tem implicações práticas, pois são estes intermediários que poderão constituir importantes alvos terapêuticos na prevenção da sintomatologia desta doença. Desenvolvemos ainda, com este trabalho, um protocolo que Figura 3 – Via de agregação da ataxina-3. Os monómeros e intermediários de agregação da ataxina-3 foram visualizados por microscopia electrónica. A presença de uma “conformação tóxica” foi detectada por interacção com um anticorpo específico, que reagiu apenas com os intermediários oligoméricos e protofibrilares. A conversão da proteína ataxina-3 em formas oligoméricas é acompanhada por uma alteração na sua estrutura tridimensional, conforme determinado pela análise de dicroísmo circular e pela ligação específica das formas oligoméricas a um anticorpo que reconhece um epítope conformacional. Esta alteração estrutural da proteína parece ser um dos primeiros mecanismos na formação das espécies tóxicas, sendo portanto o principal alvo da acção de terapias preventivas na sintomatologia desta doença. 64 Perspectivas futuras A conversão da proteína ataxina-3 em formas oligoméricas é acompanhada por uma alteração na sua estrutura tridimensional, conforme determinado pela análise de dicroísmo circular e pela ligação específica das formas oligoméricas a um anticorpo que reconhece um epítope conformacional. Esta alteração estrutural da proteína parece ser um dos primeiros mecanismos na formação das espécies tóxicas, sendo portanto o principal alvo da acção de terapias preventivas na sintomatologia desta doença. No entanto, a concepção de “drogas” especificamente desenhadas para intervir nesta fase do processo de agregação, implica o conhecimento da estrutura da ataxina-3 com um detalhe atómico. Identificar as alterações conformacionais induzidas pela expansão de glutaminas por comparação das estruturas da proteína normal e expandida utilizando por exemplo técnicas de cristalografia de raios-X vai ser fundamental para este processo. Glossário Amilóide | Agregado fibrilar insolúvel composto por material proteico, que pode ser observado por microscopia electrónica ou por detecção da sua birrefringência após coloração com Vermelho de Congo. Biologia Estrutural | Uma área de estudo dedicada à determinação da estrutura tridimensional das moléculas biológicas, para melhor compreender as suas funções nos seres vivos. Código Genético | A informação para a ordenação dos aminoácidos (unidades de construção das proteínas) está contida no ADN (ácido desoxirribonucleico), sob a forma de um código determinado pela sequência de nucleótidos ATGC (adenina, timina, citosina e guanina). Cada aminoácido é o resultado da descodificação de três nucleótidos (tripleto) do ADN. Cristalografia de Raios-X | Um dos métodos utilizados para determinar a estrutura tridimensional detalhada das moléculas biológicas. A técnica consiste na exposição de cristais da molécula a estudar a um feixe de raios-X, que interage com os electrões dos átomos que formam as moléculas. Dicroísmo circular | O dicroismo circular (CD) é a diferença de absorção da luz circularmente polarizada à esquerda e à direita por uma amostra opticamente activa. Esta técnica permite determinar alterações de estrutura secundária das proteínas. Fibra amilóide | Agregado filamentoso de proteína, insolúvel e estruturado. Este filamento é composto por unidades repetitivas de folhas beta, alinhadas perpendicularmente ao eixo da fibra Gene | Aegmento de ADN que contém a informação para a síntese de uma determinada proteína. Microscopia Electrónica | É o tipo de microscopia mais utilizado nos laboratórios modernos, devido à capacidade de tornar visíveis os vírus e as estruturas diminutas. Permite ampliar milhões de vezes um objecto. Proteína | Molécula biológica composta por aminoácidos ordenados numa sequência específica determinada pelo código genético. A sequência de aminoácidos determina a forma tridimensional das proteínas, fundamental para o desempenho das suas funções celulares. Agradecimentos Ao doutor Pedro Pereira pela revisão cuidadosa do manuscrito. À doutora Patrícia Maciel pelo desafio de iniciar a caracterização estrutural desta proteína. À doutora Ana Margarida Damas e ao doutor Luís Gales pela colaboração na caracterização estrutural dos agregados de ataxina-3. À Fundação para a Ciência e Tecnologia pelo financiamento concedido sob a forma dos projectos POCTI/MGI/47550/2002 e POCI/SAU-MMO/60156/2004. Referências Nakano, K., Dawson, D. & Spence, A. (1972). Machado disease. A hereditary ataxia in Portuguese emigrants to Massachusetts. Neurology 22, 49-55. Rosenberg, R., Nyhan, W., Bay, C. & Shore, P. (1976). Autosomal dominant striato-nigral degeneration: a clinical, pathologic and biochemical study of a new genetic disorder. Neurology 26, 703-714. Sequeiros, J. & Coutinho, P. (1993). Epidemiology and Clinical Aspects of Machado-Joseph Disease. Advances Neurol 61, 139-151. Coutinho, P. & Andrade, C. (1978). 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J Biol Chem 278, 31554-31563. 65 Armando Almeida1 Hugo Leite-Almeida2 1Professor Auxiliar de Histologia e Embriologia Área Curricular “Sistemas Orgânicos e Funcionais” Líder de uma Equipa de Investigação em Neurobiologia da Dor Instituto de Investigação em Ciências da Vida e da Saúde (ICVS) Escola de Ciências da Saúde Universidade do Minho Campus de Gualtar – Braga 2Bolseiro de Investigação (BI) Equipa de Investigação em Neurobiologia da Dor Instituto de Investigação em Ciências da Vida e da Saúde (ICVS) Universidade do Minho Campus de Gualtar – Braga 66 Patrick Wall, um dos fundadores da moderna investigação básica dos mecanismos anátomofisiológicos da dor e da aplicação destes à clínica do tratamento da dor afirmava, no seu último livro publicado pouco antes de falecer (Wall, 2000), que “a dor é ainda um dos grandes mistérios da Medicina”. Esta afirmação, proferida por quem mais nos últimos 50 anos contribuiu para o desbravar dos enigmas sobre o processamento doloroso, aguça ainda mais a curiosidade sobre esta experiência, desde sempre associada ao sofrimento humano e à sua representação plástica em diversas formas de expressão artística. De facto, a diferença entre a ideia que existe do que é a dor no dia a dia e a dor crónica que perturba o quotidiano de milhões de pessoas, os mecanismos que estão na base da transformação de dor aguda prolongada ou inflamatória em dor crónica, o desafio terapêutico que constitui para o médico um conjunto alargado de síndromes de dor crónica constituem um desafio que, por si só, estimula a investigação científica ao mais alto nível. Outra área que tem despertado uma atenção especial é o facto de perante um determinado estímulo doloroso a dor que sentimos ser expressa de maneira diferente por cada um de nós e, mesmo para cada pessoa, a dor e reacção comportamental associada poder variar ao longo do dia ou em diferentes pontos temporais, dependendo de diversos factores que serão explorados mais à frente neste artigo. Porque é que as emoções controlam a Dor? A Dor é importante para o organismo? Imagine como ficaria o seu corpo se o organismo não tivesse um sistema de alerta que o avisasse de que se estava a espetar num prego, a morder a língua, a tomar banho com água a ferver ou que tinha fracturado uma perna ao saltar de uma janela? Ou, perguntando de modo mais dramático, acha que conseguiria sobreviver sem Dor? A resposta é não. A evolução biológica dos organismos apurou a percepção de dor aguda como um dos principais mecanismos de defesa contra agressões nocivas com origem externa ou interna ao corpo. A dor aguda é aquela que nos permite reagir reflexamente com movimentos de fuga de modo a preservar a integridade do organismo ou a proteger determinada parte magoada do corpo do toque ou do movimento. Esta defesa depende do sistema nociceptivo, um conjunto de células nervosas (neurónios) que, da periferia do corpo até ao encéfalo, é responsável desde a detecção do estímulo agressor e potencialmente doloroso até à resposta comportamental de fuga gerada pelo encéfalo. Se a percepção da dor resultasse apenas da activação deste sistema nociceptivo, então a dor seria proporcional ao estímulo, já que dependeria da intensidade com que o sistema fosse activado. E, de facto, em condições “normais” do dia-a-dia uma lesão pequena como uma alfinetada num dedo dói menos e 67 68 durante menos tempo do que uma forte martelada nesse mesmo dedo. Daqui resulta que o dedo é retirado de modo mais vincado no segundo exemplo e a maior dor sentida obriga a pessoa a parar e a concentrar a sua atenção na protecção da mão aleijada, deixando de fazer qualquer outra actividade que estivesse a fazer, situação que seria rapidamente ultrapassada após uma pequena alfinetada. Outro exemplo em que a dor tem uma função biológica protectora apesar de ser muito incómoda para as pessoas é aquela que resulta nas dores musculares associadas a diversos estados febris e que são referidas como “dói-me o corpo todo, nem me consigo mexer”. Esses estados dolorosos são controlados em parte pelo encéfalo e obrigam as pessoas a irem deitar-se e a repousar, com o objectivo de promover a recuperação do organismo. E se o sistema nociceptivo estiver bloqueado ou for defeituoso? E se o organismo não conseguisse detectar que a martelada é dolorosa e esta não doesse? Ou que estávamos a tomar banho com água muito quente e o corpo não fosse capaz de reagir em defesa para fugir e evitar uma queimadura extensa? As lesões resultantes da não detecção consciente das mesmas (ausência de dor) acarretaria graves consequências para a saúde, eventualmente fatais se a pessoa não estiver sobre um permanente controlo da sua interacção com o meio ambiente que a rodeia. Por exemplo, um dos casos mais conhecidos prende-se com uma paciente canadiana que nasceu com uma insensibilidade dolorosa. Desde pequena que sofreu frequentemente lesões de alguma gravidade que necessitavam mesmo de cuidados médicos devido a mastigar a língua, ter lesões musculares por exagerar o levantamento de certos pesos ou queimar-se diversas vezes. Acabou por morrer aos 29 anos devido a uma infecção generalizada das articulações devido à ausência de protecção das mesmas por falta de uma postura corporal variável capaz de modificar constantemente a sustentação do corpo entre diferentes partes da estrutura óssea. Uma pessoa normal está constantemente a mudar de posição, em pé, deitada ou sentada devido à percepção corporal de que muitas vezes nem temos percepção consciente mas que nos protege de uma postura rígida e permanente numa mesma posição (imagine estar em pé durante uma hora seguida sem se mexer – de facto, seria incapaz de o fazer devido às dores progressivamente mais intensas que iria sentir!). Surge agora uma nova dúvida. A importância da dor aguda e a sua função fulcral de defesa do organismo foi demonstrada acima com exemplos simples, mas e quanto àquela dor que se prolonga por vezes durante anos e que ultrapassou à muito a importância biológica de alerta e fuga? A dor crónica que associamos a estadios terminais de doenças prolongadas ou a perturbações graves do nosso aparelho locomotor (músculos e esqueleto), que papel representa para a vida do Homem? A evolução biológica dos organismos apurou a percepção de dor aguda como um dos principais mecanismos de defesa contra agressões nocivas com origem externa ou interna ao corpo. 69 A Dor pode ser uma doença? “A dor crónica, aquela que permanece após realizar a sua necessária função de protecção do organismo, não deve ser considerada como uma simples ferida ou doença. É mesmo um síndrome – um problema médico que, por si só, necessita de atenção e tratamento específico” (Wall e Melzack, 1982). De facto, desde sempre a dor foi considerada como a expressão de uma doença subjacente. Elucidativo desta ideia foi o facto de, ainda recentemente, um profissional da área do tratamento de perturbações músculo-esqueléticas questionar a ideia consagrada pela Organização Mundial de Saúde de que “o tratamento de todas as formas de dor deverá ser um direito humano Universal”, argumentando que esse direito deveria incidir sobre o tratamento da doença causadora da dor e não sobre o tratamento da dor propriamente dita. Esta afirmação espelha concerteza uma visão redutora resultante de “defeito” profissional, pois a dor crónica músculoesquelética está muitas vezes associada a processos inflamatórios crónicos perfeitamente identificados como causadores da dor. No entanto, esse profissional esqueceu-se que, por exemplo na dor associada a neoplasias terminais, deixa de fazer qualquer sentido a eliminação da dor por tratamento da situação que a origina, tornando-se premente o alívio da dor para permitir a melhor qualidade de vida possível ao doente. “Reacção de defesa? Aviso de sobrevivência? A verdade é que a maior parte das doenças, mesmo as mais perigosas, atacam-nos sem aviso. Quando surge a dor… é tarde de mais… A Dor torna apenas ainda mais difícil e triste a nossa situação já de si muito grave… de facto a dor é sempre um presente sinistro e macabro que enfraquece o Homem, que fica ainda pior do que estava apenas com a doença terminal” (Lerich, 1939). Dor crónica é aquela que se prolonga para além do próprio processo cicatricial inflamatório de uma dor aguda ou sustentada de curta duração, geralmente com duração superior a 6 meses e que, ao fim desse tempo, já não tem sequer qualquer relação aparente com o evento que resultou na dor aguda inicial. De facto, não é fácil encontrar qualquer valor biológico nas dores intensas e de difícil controlo que estão associadas à fase terminal da esmagadora maioria de doenças prolongadas como o cancro. Já não possuem aquela função de alerta ou aviso para uma agressão aguda. As Unidades de Dor, especificamente devotadas para o tratamento da dor crónica nociceptiva (resultante da activação prolongada e excessiva do sistema nociceptivo) ou neuropática (resultante da lesão do sistema nervoso central ou periférico), constituídas por equipas multidisciplinares que procuram controlar as diversas dimensões da dor crónica, são já uma realidade em crescimento exponencial no nosso país. Os profissionais de saúde implicados no controlo da dor são os primeiros 70 Outro exemplo em que a dor tem uma função biológica protectora apesar de ser muito incómoda para as pessoas é aquela que resulta nas dores musculares associadas a diversos estados febris e que são referidas como “dóime o corpo todo, nem me consigo mexer”. Esses estados dolorosos são controlados em parte pelo encéfalo e obrigam as pessoas a irem deitar-se e a repousar, com o objectivo de promover a recuperação do organismo. a concordar que não existe qualquer significado biológico importante, fundamental para o organismo como mecanismo de defesa, que possa ser atribuído à maioria dos síndromes de dor crónica. Esta é por si só uma doença resultante de perturbações do funcionamento normal do sistema nociceptivo e dos mecanismos que controlam a percepção dolorosa. Além da dor oncológica, um exemplo especialmente marcante, até em termos psicológicos, desta dor sem objectivo definido que massacra os doentes já de si em situação fragilizada, é a dor do membro fantasma, em que são descritas situações de dor intensa em partes de um membro amputado, que já não existe e que deste modo até nem permite que o doente possa manipular ou proteger a pretensa área dolorosa. Esta dor, que surge muitas vezes meses ou anos depois da amputação, resulta de alterações do sistema nervoso periférico decorrentes do seccionamento dos nervos pelo processo mecânico de corte do membro. Afinal, o que é a Dor? Em 1982 Melzack e Wall afirmavam que “apesar da sua extraordinária importância na Biologia e na Medicina, a palavra Dor nunca foi definida de modo satisfatório”. Apesar de termos a ideia de senso comum que a dor que sentimos é proporcional à extensão da lesão ou agressão que lhe deu origem, isso não é sempre verdade. De facto, a dor aguda, aquela que tem a função fundamental de alertar o organismo para uma agressão potencialmente ameaçadora da sua integridade, é normalmente proporcional à extensão da lesão. Então, como o objectivo primordial do organismo é preservar a sua sobrevivência, a evolução de milhões de anos desenvolveu o mecanismo de a atenção do organismo se concentrar na agressão dolorosa e diminuir o espaço dedicado às outras sensações provenientes do meio ambiente. Agora imagine que está num safari e cai de um elefante e fractura uma perna. Concerteza que nos minutos seguintes toda a sua atenção se concentrará na dor sentida e na sua protecção, quer requerendo a atenção e cuidados dos acompanhantes, quer 71 movendo o menos possível o membro afectado. Mas de repente surge um leão a umas dezenas de metros e toda a gente começa a fugir. Acha que vai continuar concentrado na sua dor, encolhido a um canto e muito quieto para não ter dor? Não, claro que não… vai-se levantar e, dentro de certos limites, correr quase tanto como os seus companheiros de aventura – o que é mais importante para a “sobrevivência” do seu organismo agora? A perna fracturada ou a aproximação do carnívoro? Para onde está concentrado o seu sistema nervoso agora? Para a fuga, estando todos os outros elementos sensoriais que o rodeiam “deprimidos” no seu subconsciente, com o objectivo de se concentrar no seu salvamento! Claro que depois de estar a salvo no interior de um veículo a sua dor vai voltar… e provavelmente muito pior devido a ter corrido sobre uma perna partida! Mas está vivo! Os parágrafos anteriores permitem compreender que dor não é apenas uma “experiência sensorial induzida por um estímulo que lesou o tecido corporal ou ameaçou a sua destruição e que é introspectivamente definido por cada pessoa como algo que dói”, conforme definido por Mountcastle já em 1980. Como já vimos, dor não possui apenas uma dimensão sensorial, responsável pela determinação da intensidade, duração, localização e tipo de dor, “é uma experiência sensorial, afectiva e cognitiva desagradável associada a uma lesão do corpo real ou virtual, ou descrita com termos usados numa lesão desse tipo” (Merskey et al, 1979), conforme definição actualmente aceite pela Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP). O estado emocional em que nos encontramos influencia claramente a percepção dolorosa final, inibindo a dor em relação ao “normal” em situações de grande stress, por exemplo quando, no exemplo acima, o leão aparece e induz um medo tal que constitui por si só uma situação fortemente “analgésica”. Por outro lado, estados emocionais depressivos graves podem hiperbolizar a percepção dolorosa. A componente cognitiva da dor refere-se à influência que a cultura, as experiências “dolorosas “ passadas, as crenças religiosas ou a falta delas, o espírito de sacrifício e outras características pessoais têm em modular a dor que sentimos. Assim, a dimensão afectivacognitiva da dor refere-se aos complexos comportamentos de reacção e fuga desencadeados pelas qualidades do estímulo referidas como desagradáveis ou aversivas. Como é que sentimos Dor? O sistema nociceptivo, que permite que um estímulo nóxico (potencialmente lesivo) mecânico (alfinetada), térmico (queimadura) ou químico (ácido) seja transformado num sinal eléctrico à periferia do sistema nervoso periférico 72 (nervos) e transmitido ao sistema nervoso central (encéfalo e medula espinhal) onde é experienciado como dor, é constituído por vias anatómicas constituídas principalmente por 4 neurónios em cadeia (Figura 1): Figura 1. Representação esquemática do Sistema Nociceptivo. Notar a sequência dos 4 neurónios principais implicados na transdução de um estímulo nóxico (potencialmente doloroso) num sinal eléctrico, no envio da mensagem nociceptiva até à medula espinhal e tálamo e na geração final das várias dimensõesl da experiência dolorosa no córtex. A pele, as articulações, os músculos, os vasos sanguíneos e as vísceras são enervadas por fibras (prolongamentos de neurónios) que neles terminam livremente (terminações nervosas livres) ou rodeados por tecido conjuntivo especializado (receptores capsulados). Na pele, as fibras que terminam em receptores capsulados são responsáveis pela detecção de estímulos inócuos, não dolorosos e chamam-se fibras A (A-beta). As fibras que terminam livremente são responsáveis pela transdução de estímulos nóxicos (“dolorosos”), são de dois tipos, fibras A (A-delta) e fibras C, constituem o primeiro componente do sistema nociceptivo e denominam-se nociceptores (Figura 1). As fibras nociceptoras não são mais do que o prolongamento axonal periférico do 1º neurónio da cadeia nociceptiva (neurónio = célula nervosa), denominado aferente primário (núcleo localizado no gânglio raquidiano, junto à coluna vertebral), enquanto o prolongamento axonal central termina no corno dorsal da medula espinhal. Aqui o aferente primário forma uma sinapse com os neurónios espinhais nociceptivos, de 2ª ordem, e o sinal eléctrico é transmitido por libertação de neurotransmissores excitatórios na fenda sináptica, entre o neurónio pré-sináptico (o aferente primário) e o neurónio pós-sináptico (o neurónio espinhal) (Figura 1). Os neurónios espinhais são responsáveis por transmitir a informação nociceptiva até ao encéfalo através de axónios 73 longos que terminam principalmente no tálamo, onde fazem sinapses com os neurónios talâmicos de 3ª ordem (Figura 1). Esta projecção espinhotalâmica é constituída por 2 componentes anatómico e funcionalmente diferentes: a projecção espinhotalâmica lateral (ETL; a vermelho na Figura 1) e espinhotalâmica medial (ETM; a azul na Figura 1). A ETL activa neurónios no tálamo lateral (a vermelho na Figura 2), os quais enviam axónios que vão activar especificamente neurónios do córtex somatosensitivo, os neurónios de 4ª ordem (Figura 1) responsáveis pela detecção de componentes sensitivos da nocicepção e pelo processamento da dimensão sensitiva-discriminativa da dor (expressões a vermelho na Figura 2). A ETM activa neurónios do tálamo medial (a azul na Figura 2), os quais enviam axónios para grandes áreas do córtex e áreas subcorticais implicadas no processamento emocional e cognitivo (sistema límbico), nomeadamente o córtex cingulado anterior, a amígdala e o hipocampo (Figura 1) implicados no processamento da dimensão afectiva-cognitiva da dor (expressões a azul na Figura 2). Do resultado do processamento da informação nociceptiva nos centros sensitivodiscriminativos e afectivo-volitivos é gerada a experiência dolorosa com todas as reações motoras e psicológicas que compõem a dor. Figura 2. Diagrama elucidativo da geração de sinais ligados ao processamento das componente sensitiva-discriminativa (tálamo lateral, a vermelho) e afectivo-volitiva (tálamo medial, a azul) da experiência dolorosa. A informação nociceptiva gerada à periferia pelo estímulo doloroso (martelada no pé) é transportada da periferia para a medula espinhal pelas fibras nociceptoras (A e C) dos neurónios aferentes primários e da medula para o tálamo pelos neurónios espinhais com projecções axonais longas ascendentes (neurónios espinhotalâmicos). Será sempre importante biologicamente sentir Dor? Já foi focado atrás que, tendo em conta que a prioridade do organismo é “preservar a sua integridade”, a dor aguda é um mecanismo de 74 alerta fundamental estando por isso as vias anatómicas que constituem o sistema nociceptivo “ligadas” e em alerta contínuo em relação aos estímulos provenientes do meio ambiente, exterior ou interior ao corpo. Por outro lado, numa situação de perigo eminente, causadora de grande stress ou medo intenso, a prioridade do organismo continua ser a mesma (sobrevivência) e por isso a activação de mecanismos de fuga induzidos pela activação do eixo hipotálamo-pituitária-glândula suprarrenal e consequente libertação de adrenalina passam a ser o mecanismo fundamental de defesa, passando a percepção dolorosa claramente para 2º plano. No caso da história do safari, para que interessa sentir dor se o leão nos devorar? Neste caso torna-se imperioso “desligar” fisiologicamente o sistema nociceptivo e assim interromper a transmissão de informação potencialmente dolorosa da periferia até aos centros superiores que processam a dor. Deste modo, a atenção do sistema nervoso em manter as capacidades físicas preparadas para a fuga não é prejudicada pelo irromper de informação dolorosa, a qual iria perturbar ou impedir o processo imediato de procura de protecção. É preciso então um mecanismo endógeno, isto é, activado fisiologicamente pelo próprio organismo, que seja capaz de “desligar” o sistema nociceptivo. Sistema endógeno de controlo da dor Em 1969 um cirurgião de nome Reynolds fazia experiências em ratos que consistiam na introdução de eléctrodos em certas partes do encéfalo e passagem de corrente eléctrica que induzia a activação das células nervosas dessa área cerebral por excitação eléctrica. Este tipo de experiência mimetiza a passagem de informação ao longo das células nervosas, já que esta é ela própria um sinal eléctrico. Reynolds procurava activar uma área do hipotálamo mas enganou-se nas coordenadas do aparelho onde a cabeça do animal estava presa e injectou uma área mais caudal do encéfalo, denominada substância cinzenta periaqueductal (PAG – do inglês “periaqueductal gray”), localizada em volta do espaço interventricular entre o 3º e 4º ventrículos cerebrais, o Aqueducto de Sylvius (ver localização da PAG na Figura 3). Verificou que a estimulação da PAG induzia uma analgesia (ausência de dor) tão profunda e intensa que permitia a realização de cirurgia abdominal sem a administração de qualquer analgésico ou anestésico. Trabalhos posteriores mostraram que a PAG era na realidade o centro cerebral de um circuito com a capacidade de “desligar” o circuito nociceptivo (Figura 3). Para isso os neurónios da PAG enviam axónios para uma área localizada mais caudalmente no cérebro, o bolbo raquidiano rostral ventromedial (RVM – do inglês “rostral ventromedial medulla”) que Como já vimos, dor não possui apenas uma dimensão sensorial, responsável pela determinação da intensidade, duração, localização e tipo de dor, “é uma experiência sensorial, afectiva e cognitiva desagradável associada a uma lesão do corpo real ou virtual, ou descrita com termos usados numa lesão desse tipo” (Merskey et al, 1979), conforme definição actualmente aceite pela Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP). formam sinapses com neurónios do RVM e os activam. Os neurónios do RVM activados enviam por sua vez axónios descendentes de longo alcance que terminam no corno dorsal da medula espinhal, exactamente nas áreas da medula que contêm os neurónios nociceptivos de 2ª ordem que são activados pelas fibras nociceptoras dos neurónios aferentes primários de 1ª ordem (Figura 3). As terminações dos axónios que descendem do RVM vão aí formar sinapses com os neurónios espinhais e / ou com as terminações das fibras nociceptoras libertando neurotransmissores inibitórios que bloqueiam a passagem do sinal eléctrico do 1º para o 2º neurónio (Figuras 1 e 3). Outra forma de bloquear a nocicepção é excitando interneurónios inibitórios do próprio corno dorsal da medula espinhal que, ao libertarem por sua vez neurotransmissores inibitórios vão impedir a transmissão nociceptiva normal. Deste modo, a informação nociceptiva gerada por um estímulo nóxico lesivo aplicado à periferia, apesar de activar normalmente as fibras A e C nociceptoras, não passa para o sistema nervoso central, não atinge os centros superiores de processamento da experiência dolorosa, o organismo não sente dor e pode concentrar-se noutros factores momentaneamente mais importantes para a sua sobrevivência, como fugir com a máxima velocidade possível. O circuito PAG-RVM-medula constitui a base do mecanismo mais estudado nos últimos 40 anos englobado no Sistema Endógeno de Controlo da Dor, o qual pode ser activado fisiologicamente por neurotransmissores libertados pelo próprio organismo ou aplicados externamente para controlar a dor. A PAG é uma das áreas cerebrais cujos neurónios apresentam maior densidade de receptores opióides, isto é, proteínas localizadas nas membranas celulares que são os locais onde os neurotransmissores opióides (endorfinas) se ligam e desencadeiam o sinal eléctrico que constitui a informação que percorre as vias nervosas. Sabendo que o agente externo morfina 75 76 Assim, após a activação da AMI por uma mensagem sensorial proveniente do tálamo ou córtex, esta pode imediatamente ir regulando as áreas corticais que para ela projectam e dessa forma controlar os tipos de mensagens sensoriais que recebe do córtex, filtrando positivamente aquelas que podem constituir especial ameaça para o organismo. Figura 3. Sistema Endógeno de Controlo da Dor (SECD). A informação nociceptiva proveniente da periferia e transmitida ao neurónio espinhal de 2ª ordem é sujeita, ao nível sináptico, ao controlo de passagem por parte de axónios longos descendentes provenientes do bolbo raquidiano rostral ventromedial (RVM) e de áreas noradrenérgicas do tronco cerebral (DLPT). Interneurónios inibitórios de axónio de ramificação curta e local, com opióides ou com GABA, podem também localmente controlar a passagem de informação “dolorosa” para o encéfalo. A origem do SECD está na substância cinzenta periaqueductal (PAG), a qual controla a influência descendente do encéfalo sobre a transmissão nociceptiva espinhal ao projectar axónios que controlam a actividade dos neurónios do RVM. A analgesia mediada pela activação do circuito PAG-RVM-corno dorsal da medula espinhal pode ser activado exteriormente com a administração de fármacos opióides (como a morfina), devido à riqueza em receptores opióides nos neurónios da PAG e RVM. As emoções e aspectos cognitivos passados podem activar a “analgesia endógena” mediada por este circuito já que a amígdala (AMI) e o córtex límbico (cingulados/préfrontal), implicados fortemente no processamento das dimensões afectivo-cognitivas da dor, não só projectam para a PAG e podem activar directamente o circuito como podem libertar do hipocampo (HIP) opióides endógenos que, ao serem libertados na PAG por projecções axonais, vão também activar o circuito analgésico. se liga fortemente aos mesmos receptores da PAG que são activados pela ligação das endorfinas endógenas responsáveis pela activação do sistema endógeno de controlo da dor que bloqueia a transmissão nociceptiva, percebe-se porquê que a morfina e seus derivados continuam a ser os mais potentes analgésicos disponíveis farmacologicamente para o controlo da grande maioria dos síndromes dolorosos. Como é que as emoções controlam a Dor? Se reparar na Figura 3, foi discutida apenas a conexão PAG-RVM-medula como um dos principais circuitos activados para controlo da dor. Mas, e que áreas cerebrais superiores são responsáveis por activar os neurónios da PAG tal como foi mimetizado por Reynolds ao estimular electricamente a PAG? Que alterações ambientais poderão desencadear a activação do sistema endógeno de controlo da dor? A amígdala (AMI) é uma área telencefálica fundamental para o desencadear de reacções emocionais, principalmente em situações que induzem medo (Figura 3). A AMY recebe informação de regiões corticais que processam todas as modalidades sensoriais e envia axónios de volta a essas mesmas regiões corticais. As conexões do córtex sensorial para a AMY permitem a esta detectar situações de perigo eminente. As conexões da AMY para o córtex permitem à própria AMY influenciar o processamento sensorial que ocorre no cortex. Muito importante é o facto de a informação que sai da AMI ocorrer antes da modulação que o córtex exerce sobre ela – este facto explica os “sustos” – reacções de medo desencadeadas pela AMI antes da consciencialização da situação (inofensiva) que lhes deu origem. Assim, após a activação da AMI por uma menssagem sensorial proveniente do tálamo ou córtex, esta pode imediatamente ir regulando as áreas corticais que para ela projectam e dessa forma controlar os tipos de mensagens sensoriais que recebe do córtex, filtrando positivamente aquelas que podem constituir especial ameaça para o organismo. É de notar ainda que a AMI pode influenciar os processos sensoriais que ocorrem no córtex de modo indirecto, activando os sistemas de “alerta / vigília” através de conexões para áreas do encéfalo as quais por sua vez possuem elevado número de projecções para grandes áreas do córtex. Assim, quando a AMI detecta o perigo pode activar estes sistemas de alerta espalhados pelo encéfalo, os quais podem influenciar e direccionar o processamento da informação sensorial que rodeia o organismo. Finalmente, as respostas corporais iniciadas pela AMI em resposta ao medo podem também influenciar a actividade cortical através de mecanismos de retroinfluência (“feedback”) resultantes de sinais provenientes das vísceras ou dos níveis de hormonas em circulação no sangue. 77 78 Um estímulo auditivo que, por aprendizagem, esteja associado ao medo (medo condicionado) envolve projecções do sistema auditivo para a AMY, enquanto a colocação do animal num ambiente experimental que evoque medo envolve a representação do contexto pelo hipocampo (sistema cognitivo) e a comunicação deste com a AMY (sistema emocional). A resposta da amígdala faz-se através de projecções axonais de curto e longo alcance para o hipotálamo, telencéfalo, tronco cerebral e mesmo a medula espinhal, as quais vão desencadear a resposta fisiológica e comportamental ao medo. Em termos de processamento doloroso, é natural que um estímulo doloroso agudo inesperado resulte na activação imediata da AMI, enquanto que dor associada a um ambiente físico, contextual ou ambiental implique o recrutamento do hipocampo e de factores cognitivos como alguma experiência passada num ambiente semelhante à nova situação. Este é um exemplo de interação entre emoções e cognição no processamento doloroso. No homem, a lesão da AMY interfere com as memórias emocionais implícitas (inatas a cada pessoa) mas não afecta as memórias explícitas (resultantes de algum processo de aprendizagem) sobre emoções, enquanto que lesões de áreas cognitivas do lobo cortical temporal médio (hipocampo) interferem com as memórias explícitas sobre emoções mas não afectam as memórias emocionais implícitas. Como o sistema de memória do hipocampo projecta para a AMI, esta conexão pode justificar que memórias de eventos traumáticos passados possam desencadear reacções de medo, aparentemente injustificadas, em determinados contextos ambientais. As experiências conscientes (sentimentos) são muitas vezes referidas como reflectindo o conteúdo da memória de trabalho (a que se encontra em processamento, tal como a memória RAM de um computador – do inglês “working memory”). Neste sentido, uma emoção consciente não deverá ser assim tão diferente de qualquer outro tipo de experiência consciente. A diferença estará mais nos sistemas que fornecem informação à memória de trabalho do que nos mecanismos de consciência propriamente ditos. No caso de experiências de medo, ou sentimentos de medo, a emoção consciente pode resultar do facto do estímulo desencadear inconscientemente memórias explícitas de longo termo (memórias de eventos passados mas marcantes) e activação da AMI. Outros sentimentos poderão surgir de modo semelhante mas sem envolverem o recrutamento da AMI. De que maneira é que a AMI, quando activada pelo medo, vai activar o sistema endógeno que inibe a percepção dolorosa através do bloqueio da transmissão da informação nociceptiva ao nível da medula 79 A Dor é um caso especial de processamento sensorial devido à grande relevância do seu significado sendo, por isso, extremamente recrutadora da atenção do organismo (daí a necessidade de ser inibida em situações de perigo real). Mesmo assim, a dor pode ser modulada pela carga cognitiva associada: observou-se um aumento dos níveis de dor quando pacientes submetidos a cirurgia foram instruídos a concentrarem-se na dor, enquanto a distracção diminui a dor e aumenta a tolerância do organismo. espinhal? Sabendo que o medo activa a AMI e é fortemente “analgésico” (inibe a percepção dolorosa), pensou-se inicialmente que as próprias projecções axonais da AMI para a medula espinhal estivessem directamente implicadas no bloqueio da transmissão da informação nociceptiva espinhal. De facto, a estimulação eléctrica da AMI induz analgesia associada a uma inibição da actividade de neurónios espinhais nociceptivos. No entanto, verificou- se que a destruição selectiva da PAG resultava numa diminuição drástica do efeito analgésico mediado pela activação da AMI. Estes dados mostram que, de facto, a activação da AMI induzida por factores emocionais como aqueles induzidos pelo medo activam o sistema endógeno de controlo da dor, nomeadamente o circuito PAG-RVM-medula espinhal, através de projecções axonais da AMI para a PAG (Figura 3). Por outro lado, a regulação da 80 libertação de opióides endógenos a partir do núcleo arqueado do hipotálamo (HIP; Figura 3), através de projecções axonais directas para a PAG (Figura 3), é um dos meios utilizados pelos centros encefálicos superiores (como a AMI) para induzir analgesia mediada por opióides endógenos. Quanto à dimensão cognitiva do processamento doloroso, a participação do hipocampo na inserção de memórias passadas na avaliação de uma situação dolorosa já foi referida atrás, podendo estar associado a alterações na dor induzidas por memórias passadas e processos de aprendizagem. Além do hipocampo, também o córtex cingulado anterior (CIN; Figura 3) tem sido particularmente ligado ao processamento cognitivo em geral (atenção, novidade, interferência e resposta competitiva), mas também ao processamento da dor. A Dor é um caso especial de processamento sensorial devido à grande relevância do seu significado sendo, por isso, extremamente recrutadora da atenção do organismo (daí a necessidade de ser inibida em situações de perigo real). Mesmo assim, a dor pode ser modulada pela carga cognitiva associada: observou-se um aumento dos níveis de dor quando pacientes submetidos a cirurgia foram instruídos a concentrarem-se na dor, enquanto a distracção diminui a dor e aumenta a tolerância do organismo. Redes neuroniais que associadas quer à dor quer à atenção estão na base destes efeitos comportamentais: o ACC e o córtex préfrontal dorsolateral são 2 dos principais pontos comuns a estes processamentos. A actividade do CIN é modulada de modo diferente durante testes de atenção ou dor e a dor aguda em participantes saudáveis e em participantes com dor crónica resulta em diferentes padrões de activação do CIN. A actividade no CIN está assim fortemente ligada ao processamento cognitivo da experiência subjectiva que constitui a reacção desagradável à dor e, através das conexões com a AMY e a PAG, deverá regular os mecanismos endógenos de controlo da dor (Figura 3). Bibliografia de Consulta: Almeida A, Lima D. O núcleo reticular dorsal do bolbo raquidiano como centro de facilitação da dor. Dor, 8:23-40 (2000). Johansen JP, Fields HL, Manning BH. The affective component of pain in rodents: direct evidence for a contribution of the anterior cingulated cortex. PNAS, 98(14):8077-8082 (2001). Langford DJ, Crager SE, Shehzad Z e colaboradores. Social modulation of pain as evidence for empathy in mice. Science, 312:19671970 (2006). LeDoux JE. Emotion circuits in the brain. Ann. Rev. Neurosci., 23:155-184 (2000). Lima D, Almeida A. The medullary dorsal reticular nucleus as a pro-nociceptive center of the pain control system. Prog. Neurobiol., 66:81-108 (2002). McNally GP. Pain facilitatory circuits in the mammalian central nervous system: their behavioural significance and role in morphine analgesic tolerance. Neurosci. Behav. Rev., 23:1059-1078 (1999). Price DD. Psychological mechanisms of pain and analgesia. In: Progress in Pain Research and Management, Vol 15. IASP Press, Seattle (1999). Rainville P. Brain mechanisms of pain affect and pain modulation. Curr. Opin. Neurobiol., 12:195-204 (2002). Rhudy JL, Meagher MW. Fear and anxiety: divergent effect on human pain thresholds. Pain, 84:65-75 (2000). Wall P. Pain: the science of suffering. Columbia University Press, New York (2000). Maria Arminda Mendes Doutoramento em Ciências da Educação (Especialização em Formação de Adultos). Costa Professora Coordenadora com Agregação. Investigadora da UNIFAI (ICBAS/UP). 82 O estudo, cujo resumo se apresenta, é o culminar de alguns anos de investigação Problematizamos a formação dos enfermeiros, imergimos no contexto de produção de cuidados a idosos, para problematizar distanciamo-nos do mesmo num esforço teórico de análise e compreensão e Enfermagem geriátrica: a “arte” de aprender cuidando. 83 na área dos cuidados aos idosos. para perceber as práticas que constroem nos cuidados que produzem; a dinâmica interactiva e formativa que aos mesmos estará inerente; reimergimos na indefinível realidade dos cuidados de enfermagem, onde se fundem o intelectual e o afectivo, o cognitivo e o experiencial, certos de que entre o que é e o que deve ser não há uma lógica directa. A- Enfermagem: Percursos e processos. “A nossa vida só tem sentido face à memória”. Moita Flores. A enfermagem escreve a sua história na história da humanidade. Delinear este percurso não é o objectivo, mas apenas recordá-lo. Oriunda do desejo eterno do homem em promover a vida, em recuperá-la, em vivê-la melhor, em prolongá-la, o homem encontra nos cuidados (e em quem cuida) o alibi da existência: nascemos e morremos, apelando e solicitando cuidados. Enfermagem e velhice assumem-se nesta investigação como os dois pólos de um fio condutor, que interliga enfermeiros e idosos / cuidados e formação: as sinergias de um movimento que, inscrito na sociedade, tem raízes educativas, porque articulado entre uma trajectória biográfica e um contexto de trabalho específico. A dúvida - A pesquisa centra-se num contexto de trabalho de enfermeiros, cuja população alvo de cuidados são predominantemente idosos (pessoas com mais de 65 anos e doentes internados) – um Serviço de Medicina de um hospital central da cidade do Porto em torno de algumas questões essenciais: Como atravessam os idosos a problemática formativa dos enfermeiros e seus percursos biográficos? Como a determinam? Como constroem os enfermeiros o saber geriátrico? Com que interacções e em que contextos? 84 A finalidade centralizadora do estudo – Compreender o processo de construção do saber geriátrico dos enfermeiros, em contexto de trabalho, tendo como base as premissas: - O Serviço de Medicina, como unidade prestadora de cuidados a idosos, constitui-se num ecossistema, interpelado por uma população utilizadora específica (os idosos); - Os cuidados dos enfermeiros, no Serviço de Medicina, são atravessados pelas dimensões sócio-técnicas do trabalho em cuidados geriátricos, num ecossistema específico; os modos e condições de produção de cuidados mobilizam um conjunto heterogéneo de profissionais com saberes diversos e que interagem na produção de cuidados; - Na construção de competências geriátricas dos enfermeiros, atravessam-se dinâmicas inerentes aos actores dos cuidados, aos utilizadores e ao contexto organizacional, em interacções mais ou menos deliberadas. O modo desta investigação – estudo etnográfico – privilegiando-se o contacto directo do investigador com a situação de cuidados e o contexto sócio-profissional, em que interagem os actores; o dispositivo metodológico (baseado na observação participante, entrevistas a enfermeiros e idosos, documentos vários do hospital, do serviço...) foi sendo construído ao longo da investigação (fluidez e abertura) procurando-se elucidar a lógica do trabalho geriátrico na equipa de enfermagem, interpretar as parcerias de cuidados desenhadas entre os profissionais e com os doentes, e a interacção com outros profissionais do terreno, designadamente os médicos, na construção dos cuidados geriátricos. O carácter fenomenológico do estudo feznos imergir no contexto do mesmo concentrando-nos na experiência dos actores – enfermeiros e idosos, partilhando-a, para compreender como cada actor constrói uma realidade que, sendo individual, também é colectiva, mediante um sistema de interacções e realidades plurireferenciadas, que atravessam o contexto de cuidados aos idosos. B - Percursos de cuidados com idosos: Que significados para os enfermeiros? “Embora tivesse lido, vezes sem conta, o que escrevera, só agora percebi que todos os textos, de uma forma ou de outra, contêm algo de biográfico...” João Lobo Antunes A dúvida perseguia-nos e fora-se instalando ao longo do estudo: como se relaciona a problemática equacionada com a trajectória biográfica dos actores? Como atravessam os idosos a problemática da formatividade das práticas geriátricas? A explicitação dos fenómenos sociais e humanos, que ocorrem no universo dos cuidados aos idosos, surge como indiciadora de ligações entre os acontecimentos do percurso de vida dos enfermeiros, designadamente os de natureza familiar, e os modos de acção e interacção com os utilizadores idosos dos cuidados. Os resultados desta investigação situam a problemática da experiência de vida do enfermeiro no continuum da sua convivência com pessoa idosas, exercendo estas um papel activo na facilitação e/ou disponibilização dos profissionais para o cuidado. Ao longo do estudo, expressões como: A explicitação dos fenómenos sociais e humanos, que ocorrem no universo dos cuidados aos idosos, surge como indiciadora de ligações entre os acontecimentos do percurso de vida dos enfermeiros, designadamente os de natureza familiar, e os modos de acção e interacção com os utilizadores idosos dos cuidados. “…lembrava-me da minha mãe...”, “...eu via ali a minha avó a sofrer...”, “...pensei no meu avô que tinha reacções semelhantes...”, “…são como meus avós…” convergem para um modelo afectivo, cuja tendência, por vezes, é bidireccional, pois, embora com menos frequência, também alguns idosos se referiam aos enfermeiros: “...são como minhas filhas...”. Resultado diferente é o apresentado por Trabor, ao constatar que os serviços geriátricos são fontes de stress e de burn out dos enfermeiros, chegando a recomendar remunerações adicionais como modo de resolver a questão... O cuidado de enfermagem geriátrico desliza, assim, num sistema de interacções, que se apresenta como positivo, porque influenciado por representações da infância, potenciado por experiências estruturantes, vividas na formação inicial de enfermagem, em contextos que se apresentam simultaneamente seguros e agressivos para os utilizadores, mas que se estruturam, tendo como vector principal de orientação a especificidade de cuidados aos idosos. C - Cuidados geriátricos: construção de lógicas de cuidados? “Bem-fazer e fazer bem – uma forma simples de dizer competência.” Idália Sá-Chaves. O desconforto evidente dos profissionais de saúde, incluindo os enfermeiros para intervir junto dos idosos, segundo Nuno Grande, oscila entre a sua incapacidade em compreender a velhice e a de ter as respostas adequadas para os seus problemas. Como se constroem os cuidados para responder aos problemas dos idosos? Que lógicas os determinam? Como são construídas? A questão que se coloca é a da inter-relação que é possível estabelecer entre competências, formação e conhecimento profissional em cuidados geriátricos. O cuidado geriátrico - como objecto de conhecimento em enfermagem - é estudado nesta investigação numa perspectiva simultaneamente individual e colectiva, decorrente do modo de investigação utilizado – estudo etnográfico. Diversos investigadores advogam uma nova gestão dos interfaces entre os indivíduos e as instituições, responsabilizando os primeiros pela eficácia dos segundos, numa lógica redistribuidora de papéis, responsabilidades e forças entre os actores e os sistemas. A articulação equacionada entre formação, competências e conhecimento profissional radica-se no pressuposto de que a lógica interactiva, evidencidada em estudos anteriores (Costa, 1994 COSTA, M. A. (1994) – Os idosos nos caminhos e descaminhos da formação dos Enfermeiros da formação dos Enfermeiros. In: Geriatria, ano VII, nº 85 86 66, Junho, p. 17-19., 1998 COSTA, M. A. (1998) – Enfermeiros: dos percursos de formação à produção de cuidados. Lisboa. Edições Fim de Século. 159 p., 2002 COSTA, M. A. – Cuidar Idosos. Formação, Práticas e Competências dos Enfermeiros. Coimbra. Ed. Formasau e Educa. 327 p.), permitiria o acesso a racionalidades inerentes a constructos profissionais para uma mais lúcida compreensão epistemológica, quer do desenho das competências geriátricas dos actores, quer dos modos de produção do conhecimento que as sustentam. Estudos recentes sobre as competências dos enfermeiros junto da população idosa (Melo, 1996 MELO, A. (1996) – Competência do Enfermeiro no cuidar do idoso. Opinião dos idosos e dos enfermeiros. Dissertação de Mestrado em Ciências de Enfermagem. Faculdade de Ciências Humanas. Universidade Católica Portuguesa, Lisboa.) evidenciam a elevada complexidade do cuidado geriátrico, sustentando que factores extrínsecos aos enfermeiros são inibidores da sua competência. A dicotomia entre aquilo em que os enfermeiros acreditam (os cuidados globais) e aquilo que efectivamente praticam (cuidados técnicos) é suportado pela experiência desagradável de trabalho que os idosos proporcionam aos enfermeiros, o que está de acordo com a afirmação de Nuno Grande, já referida e com a investigação de Personne PERSONNE, M. (1991) - Soigner les personnes âgées à l’hôpital. Tolouse, Ed. Privat. (1991). O processo de investigação permitiu sistematizar que a construção de cuidados geriátricos de enfermagem assenta em dois eixos estruturantes dos cuidados geriátricos e com os quais se identificam as lógicas da acção. a) Área explicativa dos cuidados geriátricos, organizada em torno dos cuidados aos doentes idosos, do grupo de pares e para o exterior da profissão, objectiva-se em cuidados geriátricos visíveis, designadamente: - As funções profissionais que, ao longo dos tempos, têm sido designadas como integradoras do paradigma do cuidar e do tratar (Ribeiro, 1995 RIBEIRO, F. (1995) - Cuidar e tratar: Formação em Enfermagem e desenvolvimento sócio-moral. Lisboa, Educa.) ou os cuidados de manutenção da vida e de reparação; - As funções que permitem a reorganização ambiental do idoso (cuidados ecológicos e familiares) em ambiente terapêutico de saúde e de bem-estar. b) Área intrínseca ao enfermeiro, que cuida idosos, enraíza-se na sua personalidade e é inerente ao seu modo de ser pessoa, gerando, a partir do que é e mediante a sua implicação na actividade, novas formas de cuidar, criando cuidados mediante um processo formativo auto e hetero - estruturante e, simultaneamente, revitalizador do contexto pela construção partilhada. A relação entre o que se é e o que se faz exterioriza no cuidado de enfermagem o compromisso social com os doentes idosos – respeitando as suas crenças e valores, e potenciando a sua participação nos cuidados e com a profissão – no compromisso com a autoactualização de conhecimentos e a habilitação permanente para cuidar. A simultaneidade, que entre ambos se estabelece, permitiu sistematizar um conjunto de princípios e convicções, que baseiam a actuação dos enfermeiros e suas lógicas de desenvolvimento: - Especificidade dos cuidados geriátricos: doentes com necessidades especificas, que decorrem da sua estrutura biológica, psicológica, espiritual e cultural, assim como do tecido social e comunitário a que pertencem. - Contexto de cuidados e processo de cuidados: os enfermeiros identificam-se com uma visão humanista de cuidados, na qual cuidar surge como uma acção humana mais de natureza antropológica do que técnica. Em condições logísticas e organizacionais de produção de cuidados, por vezes adversas (assim percebidas pelos actores e utilizadores dos cuidados), o conceito de AJUDA orienta uma prática na qual o doente idoso assume o papel de participante. - Construção do conhecimento na acção e pela acção de cuidados: os enfermeiros tornam-se coconstituintes do conhecimento na acção de cuidados aos idosos, reconstruindo o sentido da formação: “...É um conhecimento global que só ali a gente aprende, mas que se calhar não é suficiente para tratar os doentes geriátricos...”. Nele se evidencia a necessidade de um processo continuado de (auto)formação, perante a desactualização permanente dos saberes no contexto social de trabalho (Alarcão, 1997 ALARCÃO, I. (1997) – Prefácio. In: SÁCHAVES, I. (org) – Percursos de formação e desenvolvimento profissional. Porto, Porto Editora.). O processo de construção de competências em cuidados geriátricos tem, no utilizador dos cuidados, o núcleo polarizador da dinâmica que as gera em contexto. A especificidade das necessidade dos idosos e a singularidade do cuidado geriátrico proporcionam e enquadram uma experiência de formação que, para além de ser mobilizada, é construída em situação (Le Boterf, 1995 LE BOTERF, G. (1995) De la Competénce. Paris, Éditions d’Organization.). É também revelador da natureza da prática de enfermagem. Cabe, aqui, uma palavra relativamente à 87 O cuidado de enfermagem geriátrico desliza, assim, porque influenciado por representações da infância, vividas na formação inicial de enfermagem, seguros e agressivos para os utilizadores, mas que se estruturam, 88 construção de competências pelo colectivo dos actores de cuidados. A sua identificação apresenta contornos frágeis no contexto de trabalho: ora surge diluída na controvérsia do percurso das identidades profissionais, ora se submerge na lógica burocrática da formação em serviço, cujos caminhos trilham sendas de um tradicionalismo identificado pelos enfermeiros e marcado por determinismos estruturalmente definidos na instituição e na carreira profissional: concursos, acesso a cursos, avaliação do desempenho. A sua identificação não parece evidenciar-se nos modos de pensar a acção colectiva e no modo como os percursos individuais se articulam entre si (Friedberg, 1993 FRIEDBERG, E. (1993)- Le Pouvoir et la Règle. Paris, Ed. Seuil.; Canário, 1999 CANÁRIO, R. (1999) – Educação de adultos. Um campo e uma problemática. Lisboa, Educa – Formação.). Posição semelhante é a partilhada pelos doentes idosos do serviço, que identificam o trabalho dos enfermeiros como subalternizado ao dos médicos (burocracia medicalizante), numa lógica social de desvalorização dos cuidados (enfatizando a sua visibilidade primária: a cura) e de revalorização dos cuidados comunicacionais e de relação (visibilidade secundária: o conforto e bem-estar). As dimensões identificadas nos cuidados sistematizam, globalmente, a construção de competências num percurso profissional que, inscrito na problemática global do cuidado e da formação em enfermagem geriátrica, atravessa o contexto de cuidados geriátricos de enfermagem, interligando o que se faz ACÇÃO - “de nós eles esperam tudo...”, o que no decurso da acção decorre – RELAÇÃO – “é muito importante o carinho com que o fazem...” (testemunho de uma idosa) e é preenchido pela capacidade reflexiva e implicativa do que se é – SER – “se eu fosse idosa, gostava de ser cuidada por ela, porque ela tem o resto, tem capacidade de olhar...” (testemunho de uma enfermeira). D - Cuidados geriátricos: traços e sentidos de (des)continuidade. “O homem tem necessidade de amor, é verdade; tem ainda mais necessidade de justiça; mas tem, sobretudo, necessidade de sentido”. Paul Ricoeur A natureza da prática dos cuidados de enfermagem geriátricos e os eixos estruturantes, em que os mesmos se organizam, permitem identificar, no contexto de cuidados, sentidos e traços de (des)continuidade, que interligam cuidados / saber / formação, em cuidados de enfermagem geriátricos. O enfermeiro produz e produz-se nos cuidados que dispensa aos doentes idosos. O percurso da reflexão na e sobre a acção, tanto individualmente como no num sistema de interacções, que se apresenta como positivo, potenciado por experiências estruturantes, em contextos que se apresentam simultaneamente tendo como vector principal de orientação a especificidade de cuidados aos idosos. grupo de pares, potencializa o continuum do SER profissional em situação de cuidados: compreensão – transformação – compreensão, o que determina que os enfermeiros se apresentem simultaneamente, como utilizadores e produtores de saberes geriátricos: “A experiência é como um copo de água: vai-se enchendo e vai-se bebendo, de maneira que caiba sempre mais. Eu acho que nunca se chega a ser perfeito; gostava de ser, mas também aprendemos no dia a dia e, depois, vamos melhorando a maneira de ser e de fazer...” (testemunho de um enfermeiro). A natureza da prática de enfermagem toma visibilidade na diversidade de actuações, constelando, pela formação, novas competências. A formação e construção dos cuidados de enfermagem geriátricos surgem, também, como um processo contingente e contingencial, nos seus modos de operacionalização em contexto; estes fragilizam o processo global e dificultam a desocultação do agir profissional (Schön, 1996 SCHÖN, D. (1998) – El professional reflexivo. Como piensan los professionales cuando actúan. Barcelona, Paidós). O processo de fragilização a que aludimos identifica-se, no contexto de cuidados geriátricos, no elevado risco suscitado pelas “zonas cinzentas” da actuação profissional com os decorrentes efeitos de instabilidade funcional, de desigual valor estratégico da negociação, identificados pelos enfermeiros. E- Enfermagem geriátrica: uma prática de dimensão humana. “...and you will be like God!” Genesis, 3:5. “Eu fico angustiada; tenho que decidir coisas sobre a vida das pessoas...”; “Na enfermagem não pode haver atrasos, porque um atraso pode significar a morte...” (testemunho de enfermeiros). A experiência de prestar cuidados a idosos exige interpretação e deliberação – uma lógica distintiva da formação em enfermagem. Inscrito nesta lógica está o vivido do enfermeiro, que dá sentido aos cuidados e à formação. O saber geriátrico, em que se inscrevem as competências dos enfermeiros, diferencia-se e diferencia-os: “Há os que olham pra a gente e seguem caminho; há os que olham para a gente e eu acho que vêem ali um filho de Deus, e tomam conta de nós” (testemunho de um idoso). O saber geriátrico dos enfermeiros pode ser assim caracterizado: - Enraizado no percurso de vida e de socialização que realizaram, é um saber prático, simples, genuíno (porque lido também pelo utilizador), centrado no outro e construído na acção, efectivando-se numa forma particular de relação entre pessoas (a ajuda), que mutuamente se influenciam, e que atribuem sentido à acção de cuidar, procurando, pela aprendizagem activa, informal e ecológica, estimular dinâmicas revitalizadoras do saber e da saúde. 89 - Na experiência de cuidados geriátricos contextualizada a este Serviço de Medicina, gravitam uma infinidade de crenças periféricas que, desafiando a tradicional causalidade científica, corroboram o percurso da implicação pessoal na construção de si, dos outros, particularmente dos idosos e da profissão. As crenças identificadas (sentido, vivido, gosto, empenhamento, compromisso...) “fluidificam” a acção de cuidar e “adoçam a relação...” entre cuidar e tratar. São sua parte integrante, porque específica e caracterizadora do quê de ser enfermeiro geriatra. 90 A prática profissional em cuidados geriátricos apresenta, assim, um agir integrador, no qual: - O contexto do sujeito – enfermeiro geriatra, com o seu sistema de disposições, no qual incluímos o percurso biográfico experienciado com idosos, os processos de socialização e os processos de formação profissional; - O contexto do doente com as trajectória biográfica e de transição entre processos de saúde e doença da pessoa idosa, da(s) sua(s) doença(s), as suas crenças e o seu sistema de disposições para os cuidados e para os profissionais; - O contexto da profissão e sua organização, com os modelos profissionais de cuidados a influenciarem o exercício do trabalho geriátrico, com as interacções que nos cuidados se estabelecem e com os seus significados a darem sentido aos percursos formativos dos actores, na reconceptualização e recursividade entre formar-se e agir; - O contexto da acção com o seu modelo organizacional e as estratégias de acção locais e processos de negociação estratégica geram as dinâmicas contextuais das competências dos enfermeiros geriatras. A dinâmica da construção de competências em enfermagem geriátrica constitui-se numa acção integradora, na qual: trajectórias biográficas e socialização (contexto do sujeito), o exercício do trabalho (contexto da profissão), os percursos biográficos do doente e seu processo de socialização em meio hospitalar (contexto do doente) e as estratégias de acção locais e suas (in)variantes organizacionais (contexto da acção), adquirem e dão significado à formação. A acção de cuidar idosos tem sentido nos contextos em que ocorre e gera novas formas de cuidar, consubstanciando a ideia de que aprendem cuidando. A dinâmica formativa, que se estabelece nos contextos de cuidados geriátricos, tem sido “assaltada” por um conjunto de designações intervencionistas de visão tecnológica (diagnósticos de enfermagem, prescrição de actos, processos de informatização), cujo questionamento se impõe, neste momento, à luz das conclusões anteriores: Procura de visibilidade social para os cuidados de enfermagem? Aproximação ao modelo médico, como estratégia de revalorização profissional? Fuga para a frente? Procura de uma imagem positiva de si? O conjunto de práticas de cuidados geriátricos (práticas repetidas), com propensão para se incluírem no conjunto de actos da razão técnica (“resvalo” para a razão técnica), distinguem-se do cuidado profissional, com dimensão global: “Há coisas que a gente diz que são tarefas rotineiras, como o dar banhos, injecções; mas não são rotineiras, pois eu faço sempre de forma diferente, porque faço a cada doente e cada doente é diferente do outro que está ao lado...”; “...É uma questão de sentimento interior e de saber. A gente intui, mas pensa no que intui; não é rotina...pois a intuição anda muito ali, aliada às nossas decisões” (testemunho da enfermeiros). São as experiências singulares e apopriativas das acções e seus significados que sustentam a reconceptualização do cuidado e saber profissional: “Há um desafio muito grande em termos relacionais, que quebra a rotina dos cuidados: é a idade dos doentes...”. Nota final As estratégias accionadas pelos enfermeiros na construção das competências geriátricas do cuidado profissional assumem diferentes significados. São as razões do SER, a procura da “arte” nos significados que atribuem aos cuidados e em que espelham a sua vida: Uma lógica de percurso de vida: “Gosto de pensar neles, como meus avós”; Um modo de ser profissional: “Há enfermeiros muito diferentes uns dos outros”; Um conteúdo explicativo dos cuidados geriátricos: “Aos idosos é preciso dar muita atenção para que participem nos cuidados”; Uma interacção profissional “inter pares”: “Falamos uns com os outros, para evoluirmos. Não viu na passagem de turno?”; Uma frágil e penalizante interacção interprofissional: “estamos um bocadinho de costas voltadas...”, mas baseada na interacção multiprofissional: “É importante a gente falar sobre os assuntos...”. Uma reflexão sobre a acção e a profissão: “Gosto de parar para fazer um balanço”; “aprendo muito no dia a dia, com os doentes, colegas, os médico, com o que leio, com o que penso”. 91 “Fui-me embora do serviço. Eram 9.00 horas da manhã. Levava a sensação de um enorme peso nas pernas, fruto de um cansaço a que já não estou habituada; mas cresceu a minha admiração por estes homens e mulheres – enfermeiros que, no dia a dia, acompanham o lento evoluir de um sol, cuja lentidão, ao nascer, traz a serenidade indomável da crença de que o caminho se faz caminhando e de que a vida se cuida, cuidando...” (transcrição das notas de campo 1999). BIBLIOGRAFIA COSTA, M. A. (1994) – Os idosos nos caminhos e descaminhos da formação dos Enfermeiros da formação dos Enfermeiros. In: Geriatria, ano VII, nº 66, Junho, p. 17-19. COSTA, M. A. (1998) – Enfermeiros: dos percursos de formação à produção de cuidados. Lisboa. Edições Fim de Século. 159 p. COSTA, M. A. – Cuidar Idosos. Formação, Práticas e Competências dos Enfermeiros. Coimbra. Ed. Formasau e Educa. 327 p. MELO, A. (1996) – Competência do Enfermeiro no cuidar do idoso. Opinião dos idosos e dos enfermeiros. Dissertação de Mestrado em Ciências de Enfermagem. Faculdade de Ciências Humanas. Universidade Católica Portuguesa, Lisboa. PERSONNE, M. (1991)- Soigner les personnes âgées à l’hôpital. Tolouse, Ed. Privat. RIBEIRO, F. (1995) - Cuidar e tratar: Formação em Enfermagem e desenvolvimento sócio-moral. Lisboa, Educa. ALARCÃO, I. (1997) – Prefácio. In: SÁ-CHAVES, I. (org) – Percursos de formação e desenvolvimento profissional. Porto, Porto Editora. LE BOTERF, G. (1995) - De la Competénce. Paris, Éditions d’Organization. FRIEDBERG, E. (1993)- Le Pouvoir et la Règle. Paris, Ed. Seuil. CANÁRIO, R. (1999) – Educação de adultos. Um campo e uma problemática. Lisboa, Educa – Formação. SCHÖN, D. (1998) – El professional reflexivo. Como piensan los professionales cuando actúan. Barcelona, Paidós. Paula Espírito Santo Coordenadora do Curso de Análises Clínicas e Saúde Pública do Instituto Superior de Saude do Alto Ave– ISAVE 92 Introdução O PSA (Prostatic Specific Antigen) é uma glicoproteína de cadeia simples da família das calicreinas (proteases do soro). O gene KLK3 (cromossoma 19) codifica a protease PSA, também chamada hK3-calicreína glandular humana 3 (Yousef; Diamandis, 2003). Possui peso molecular de aproximadamente 33 Kda e é secretada em altos níveis pelo epitélio da próstata humana (WANG, 1979), sob o controlo de androgenios e progestinas (Diamandis, 1994). O nome PSA (Antigénio Específico da Próstata) reflecte a ideia inicial de que a proteína A determinação da presença e concentração de PSA em materiais provenientes de amostras de manchas de cenários de crimes sexuais, onde o corpo de delito é o esperma, é de extremo valor. A quantificação dos níveis séricos de PSA é utilizada desde algum tempo e em larga escala como marcador tumoral e doseando o PSA total e a sua fracção livre, como diagnóstico diferencial entre carcinoma e hipertrofia benigna da próstata. O PSA no esperma encontra-se em concentrações milhares de vezes superiores à sua concentração no soro, sendo este o seu principal valor na análise forense, para identificação do líquido seminal, principalmente de indivíduos vasectomizados, azoospermicos ou oligozoospermicos. A determinação da presença e concentração de PSA em materiais provenientes de amostras de manchas de cenários de crimes sexuais, onde o corpo de delito é o esperma, é de extremo valor. é exclusiva da próstata e até há bem pouco tempo pensava-se que apenas era produzido pelas células epiteliais prostáticas. Mais recentemente, com o avanço tecnológico e com o aumento da sensibilidade e especificidade dos testes de detecção e de quantificação, verificou-se que esta proteína também estava expressa numa variedade de outros tecidos e fluidos biológicos, tanto masculinos como femininos, sugerindo funcionalidade extraprostática. Talvez a principal função do PSA seja liquefazer o produto seminal após a ejaculação, por fragmentação e solubilização das proteínas seminogelina e fibronectina (Lilja et al, 1987). A quantificação dos níveis séricos de PSA é utilizada desde algum tempo e em larga escala como marcadores tumorais e doseando o PSA total e a sua fracção livre, como diagnóstico diferencial entre carcinoma e hipertrofia benigna da próstata. Estas determinações também possuem alto valor na monitorização de tratamento (quimio e/ou radioterapia) e evolução pós-cirúrgica – progressão da doença e resposta terapêutica (Vihko et al, 1990; Oesterling, 1991; Armbruster, 1993). O PSA no esperma encontra-se em concentrações milhares de vezes superiores à sua concentração no soro, sendo este o seu 93 Tabela 1 FLUIDO Grupos de estudo PSA (ng/ml) 0 – 1.25 0.43 – 0.88 Autor do estudo Lawson et al (1998) Macaluso et al (1999) Doenças neurológicas até 0.382 Melegos et al (1997) 0.01 – 3.50 0 - 111 0.01 – 2.00 0.008 – 1.22 0.007 – 0.029 0 – 0.066 0.8 - 153 <0.06 0.007 – 0.035 0.002 – 0.004 0 – 0.019 0 – 0.679 Até 0.5 Até 2.768 0.287 0.2 – 2.00 0.2 – 12.00 0.02 – 0.15 0.09 – 1.239 0.001 – 0.046 0.001 – 0.029 0.12 – 1.06 Yu et al (1995) Magklara et al (1999) Magklara et al (1999) Wolf et al (1999) Aksoy et al (2002) Secreções vaginais Líquido cefalorraquidiano Leite materno Líquido amniótico 94 Saliva Soro de mulheres Soro de crianças até 12 anos Urina de mulheres Durante o ciclo menstrual Controlos Com cancro da mama Uso de contraceptivos orais Durante o ciclo menstrual Durante o ciclo menstrual Controlos Com hirsutismo Sexo masculino Sexo feminino Controlos Medicado com testosterona Controlos Uso de contraceptivos orais Controlos Síndr. de ovário policístico Balck et al (2000) Manelo et al (1998) Aksoy et al (2002) Zarghami et al (1997) Melegos et al (1997) Filella et al (1996) Antoniou et al (2004) Breul et al (1997) Manello et al (1998) Obiezu et al (2001) Shmidt (2001) Tabela 2 Nº pacientes estudados PSA (ng/ml) Autor do estudo 18 118 48 22 (0.7 ± 0.39) x 106 (0.4 ± 0.3) x 106 (1.29 ± 0.15) x 106 (1.29 ± 0.68) x 106 Senku et al (2004) Shieferstein (1999) Lynne et al (1999) Wang et al (1998) Concluise finalmente que os níveis de PSA noutros líquidos biológicos que não o líquido seminal, não interferem na investigação de esperma em perícias criminais, sendo portanto um teste de grande valor neste tipo de investigação principal valor na análise forense, para identificação do líquido seminal, principalmente de indivíduos vasectomizados, azoospermicos ou oligozoospermicos (Sensabagh, 1978; Baechter, 1993; Martin, 1984; Kotowski, 1993; Hochmeister et al, 1999). O método tradicional de identificação positiva da presença de esperma em cenário de crime de natureza sexual é a prova de presença de espermatozóides por observação microscópica de amostras. A identificação de evidência de sémen é um teste de rotina nos laboratórios forenses dado que este está sempre presente em cenas de crimes que envolvem violação sexual. O sémen seco mantém a actividade da fosfatase ácida durante um certo período de tempo, logo um procedimento de rastreio é a demonstração de zonas de actividade de fosfatase ácida. Para confirmação do resultado efectuase a pesquisa de espermatozóides nestas zonas. Se estes não forem detectados, é necessário outro teste de confirmação, onde a quantificação de PSA tem demonstrado o seu valor. PSA em fluidos biológicos Devido ao desenvolvimento das técnicas de detecção e doseamento do PSA foi possível começar a dosear este antigénio noutros fluidos e tecidos biológicos que não líquido seminal ou soro. Inicialmente, a sensibilidade dos métodos era muito baixa, mas o desenvolvimento dos métodos imunológicos automatizados superou este problema, sendo que actualmente a sensibilidade é de cerca de 0.001 ng/ml, o que possibilitou a detecção de PSA em vários fluidos extra-prostáticos (tabela 1). Alguns autores pesquisaram a presença de PSA no líquido seminal, obtendo os valores descritos na tabela 2. Discussão Da análise cuidada dos resultados obtidos por vários pesquisadores em diversos estudos, resulta que a determinação da presença e concentração de PSA em materiais provenientes de amostras de manchas de cenários de crimes sexuais, onde o corpo de delito é o esperma, é de extremo valor. Não podemos descartar a possibilidade do envolvimento de indivíduos oligozoospérmicos, azoospérmicos e vasectomizados, e que o tempo útil de actividade da fosfatase ácida pode não ser suficiente para a sua detecção. Assim, considerando a alta concentração de PSA no líquido seminal relativamente a outros fluidos biológicos, a sua determinação tornase uma ferramenta extremamente precisa nestes casos, já que a pesquisa directa de espermatozóides e de fosfatase ácida pode resultar negativa. 95 96 Em caso de crime sexual, o líquido seminal pode ser depositado directamente na vítima ou noutro tipo de suportes. Em qualquer dos casos, a colheita deve ser efectuada por zaragatoa, sofrendo depois uma extracção. Relativamente a este passo de extracção, devemos ter em conta a diluição do fluido no líquido de extracção e a eficiência desta extracção, pois estes factores são de extrema importância na análise dos níveis de PSA nas diversas amostras. Estima-se que a eficiência da extracção é de cerca de 1% (Gartside et al, 2003; Custis, 2003). Assim, sabendo que apenas 1% do PSA é possível ser extraído de uma amostra, devemos ajustar o factor de diluição tendo em conta o volume de amostra necessário para a realização dos testes. diferentes do líquido seminal, são bastante mais baixos (sempre inferiores a 4 ng/ml) do que neste último (na ordem de grandeza dos 10.000), permitindo portanto uma identificação positiva do líquido seminal. Os métodos imunológicos quantitativos automatizados utilizados nos estudos descritos já foram validados para testes forenses (Simich, 1999). Conclui-se finalmente que os níveis de PSA noutros líquidos biológicos que não o líquido seminal, não interferem na investigação de esperma em perícias criminais, sendo portanto um teste de grande valor neste tipo de investigação. Analisando as tabelas 1 e 2, verificamos que os níveis de PSA noutros fluidos biológicos Bibliografia specific antigen. Urol. Clin. North Am., v. 24, n. 2, p. 275-282. AKSOY, H.; AKÇAY, F.; ZÜHAL UMUDUM, Z.; YILDIRIM, A. 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É possível denotar as fenestrações e espaçamentos entre as células endoteliais, que facilitam as interacções entre os hepatócitos e os linfócitos T. lhe possuir uma elevada permeabilidade. Este facto, para além de facilitar o contacto com células T activadas circulantes, possibilita ainda a entrada de células T naive, propriedade única entre os órgãos sólidos (Figura 1). Deste modo, o fígado parece possuir características que o tornam um órgão extremamente favorável ao estabelecimento de interacções entre os linfócitos e as células hepáticas. Imunologicamente, o fígado é também apontado como um local preferencial de apoptose de células T, tendo sido postulado por alguns autores como um “cemitério” de linfócitos T CD8+ activados, para onde estas células se deslocam para serem eliminadas por apoptose. Existem contudo evidências de que este órgão seja, muito para além disso, um possível local de activação primária de linfócitos T naive. De facto, dados sugerem que células hepáticas são capazes de funcionar como células apresentadoras de antigénio ou APC (do inglês Antigen Presenting Cell). Contudo, a activação resultante, apesar de ser tão eficiente como a levada a cabo por células dendríticas, é ineficiente por ocorrer na ausência de co-estimulação, acabando por resultar na morte duma parte dos linfócitos activados. Essa activação defectiva parece contribuir para a manutenção da tolerância imunológica deste órgão, extremamente necessária, uma vez que as células hepáticas estão constantemente a produzir neo-antigénios e a ser expostas a antigénios do tracto gastrointestinal. Para além das características referidas, que tornam o fígado extremamente interessante do ponto de vista da interacção com linfócitos T circulantes, este órgão possui ainda numerosos tipos de linfócitos intrahepáticos (IHL) que fazem parte da sua constituição celular. Essa população residente é caracterizada por possuir subtipos de linfócitos pouco comuns e com fracções distintas das existentes no sangue periférico, donde se destacam elevado número de células NK, NKT e células T γδ (Figura 2). Existem essencialmente duas teorias para a Sangue Fígado Células T αß Células T NK/NKT Células T γδ Células T Inatas Fig. 2 - Comparação gráfica das proporções entre os diferentes tipos de células T de um fígado normal e do sangue periférico. Uma proporção significativamente maior de células T hepáticas possuem um fenótipo inato quando comparado com as existentes no sangue periférico (Adaptado de Doherty e O´Farrelly et al., 2000). origem desses linfócitos intrahepáticos. A primeira, hipótese da origem local dos IHL, postula que a génese e maturação destes linfócitos ocorre no fígado, a partir das células totipotentes hematopoiéticas ou estaminais aí existentes. A segunda, hipótese do recrutamento específico, postula que a origem destes está no recrutamento preferencial de determinados tipos de linfócitos T circulantes. Essas duas hipóteses não são, contudo, mutuamente exclusivas, uma vez que parte da população de IHL pode ter efectivamente origem local e a outra parte derivar de recrutamento particular de determinados tipos de linfócitos. De qualquer modo, independentemente da sua origem, os linfócitos intrahepáticos podem sofrer activação e diferenciação “in situ”, o que contribuirá igualmente para a existência de uma maior fracção de determinados tipos de células em detrimento de outros, contribuindo para a composição característica e única dessa população. Deste modo, o microambiente existente no fígado, ou seja, todo o tipo de estímulos directos ou indirectos promovidos pelas células hepáticas é essencial, quer para a compreensão da composição da tão singular população IHL, quer para o estabelecimento do papel desempenhado pelo fígado na interacção com os linfócitos T circulantes. Um dos componentes importantes do microambiente hepático, substancial para a compreensão das interacções entre as células do fígado e os linfócitos, são as citocinas. A presença de determinadas citocinas pode (i) direccionar o tipo de células produzidas durante a hematopoiése, a partir das células 99 estaminais; (ii) promover a activação e diferenciação de tipos de linfócitos específicos, levando ao aumento da sua fracção no fígado; (iii) levar ao recrutamento de linfócitos T pelas suas capacidades quimioatractivas. 100 Estudos recentes mostram que entre as citocinas produzidas pelo fígado parece encontrar-se a interleucina 15 (IL-15). Esta citocina desempenha um importante papel na interacção com os linfócitos T CD8+, quer na activação de células naive, quer na manutenção de células de memória, assim como uma função única no desenvolvimento, activação e manutenção das células NK, NKT e intraepiteliais do intestino. A IL-15 é extremamente pleiotrópica, possuindo um papel muito mais abrangente do que a maioria das citocinas, encontrando-se amplamente distribuída por vários tipos de tecidos. Os efeitos biológicos da IL-15 são mediados através da sua interacção com as cadeias IL-2Rß e γc, que é partilhada pela IL-2 e IL-15. Adicionalmente, uma unidade privada do receptor da IL-15, o IL-15Rα, é requerida para uma ligação de elevada afinidade. Esta unidade do receptor possui, tal como a IL-15 uma vasta distribuição celular e pode ser expressa sem as outras subunidades do receptor. Essa capacidade de ser produzida por numerosos tipos de células não imunes, sugere que esta citocina possa constituir um importante meio de comunicação entre estas e células do sistema imune. O objectivo principal do nosso trabalho consistiu no estudo das interacções entre os hepatócitos e os linfócitos T no contexto da proliferação e sobrevivência linfocitária. Ou seja, em estudar se os hepatócitos possuem Rα IL-15 Fig. 3 - Apresentação em trans da IL-15. Modelo esquemático ilustrando a possível “transapresentação” da IL-15, no contexto do IL-15Ra presente na superfície celular de um hepatócito, a um linfócito T vizinho expressando as outras subunidades do receptor IL-15Rßgc. propriedades estimuladoras para os linfócitos T, desempenhando assim um papel importante no processo de diferenciação das células T e na sua homeostasia. Ao mesmo tempo, procurou determinar-se qual o papel da IL-15 nessa interacção celular. Com base nos dados obtidos parece ser possível indicar que os hepatócitos produzem um microambiente favorável à sobrevivência, activação e proliferação dos linfócitos T, verificando-se um aumento na proliferação e uma diminuição na morte celular dos linfócitos T como resultado da interacção com os hepatócitos. Essa activação e aumento proliferativo ocorrem particularmente nas células T CD8+, e parece resultar essencialmente de um contacto directo célula-célula. Para além disso, aquando da adição de IL-15 a esse sistema de interacção, é possível por vezes detectar um efeito sinergístico entre a citocina e os hepatócitos no aumento da activação e proliferação celular. Isto poderá contribuir para a explicação da composição única da população linfocitária intrahepática e servir para colocar o fígado na posição de um órgão importante para a manutenção periférica de linfócitos T circulantes. 101 Paralelamente, dados de citometria evidenciaram a capacidade de produção de IL-15 pelos hepatócitos, quer intracelularmente, quer à superfície, assim como a expressão do receptor de elevada afinidade IL-15Rα. Sendo ainda que, dados preliminares parecem indicar que a IL-15 expressa à superfície se encontre ancorada à membrana ligada ao receptor IL15Rα. Tomados em conjunto, estes resultados apontam para que o efeito produzido pela interacção dos hepatócitos com os linfócitos T possa ser resultado de uma apresentação em trans da IL-15 produzida pelos hepatócitos, constituindo um modelo de estudo para o futuro (Figura 3). 15, no contexto IL-15/IL-15Rα parece constituir uma importante ponte de comunicação entre as células epiteliais do fígado e os linfócitos T. Isto poderá contribuir para a explicação da composição única da população linfocitária intrahepática e servir para colocar o fígado na posição de um órgão importante para a manutenção periférica de linfócitos T circulantes. Referências Alves NL, Hooibrink B, Arosa FA, van Lier RA (2003) IL-15 induces antigen-independent expansion and differentiation of human naive CD8+ T cells in vitro. Blood. 102: 2541-2546. Arosa FA. (2002) CD8+CD28- T cells: certainties and uncertainties of a prevalent human T cell subset. Immunology and Cell Biology. 80:1-13. Esta capacidade de trans-apresentação da IL15 encontra-se descrita para outras células, como monócitos e fibroblastos, e consiste na apresentação da IL-15 à superfície, possivelmente ligada ao receptor de elevada afinidade, IL15Rα, de uma célula produtora de IL-15, a uma célula vizinha que possua as outras duas unidades do receptor da citocina. Esta curiosa propriedade parece ser única entre as citocinas e, para além de intensificar, parece também prolongar o efeito da IL-15 por mais tempo. Correia M. (2004) Estudo da proliferação e sobrevivência dos linfócitos T após interacção com células epiteliais do fígado humano: o papel da IL-15. Tese de Estágio. Univ. do Minho Assim, de acordo com os resultados obtidos, e em concordância com outros estudos, a IL- Dubois S, Mariner J, Waldmann TA, Tagaya Y. (2002) IL15Ra recycles and presents IL-15 in trans to neighboring cells. Immunity. 17:537-547 Bertolino P, McCaughan GW, Bowen D. (2002) Role of primary intrahepatic T-cell activation in the "liver tolerance effect". Immunology and Cell Biology. 80:84-92. Doherty DG, O’Farrelly C. (2000) Innate and adaptative lymphoid cells in human liver. Immunol. Rev. 174:5-20 Golden-Mason L, Kelly AM, Doherty DG, Traynor O, McEntee G, Kelly J, Hegarty JE, O’Farrelly C. (2004) Hepatic interleukin-15 expression: implications for local NK/NKT cell homeostasis and development. Journal of Immunology. 172:5980-5986 Neurónios dopaminérgicos do mesencéfalo ventral são um dos principais tipos celulares afectados na doença de Parkinson. Ensaios clínicos indicam que terapia por substituição celular pode ser efectuada com sucesso em pacientes de Parkinson. A aplicação desta metodologia terapêutica em larga escala é, no entanto, condicionada pela falta de fontes abundantes de neurónios dopaminérgicos. Células estaminais constituem uma dessas possíveis fontes. No entanto, é necessário o desenvolvimento de protocolos eficientes promovendo a sua diferenciação específica num fenótipo dopaminérgico. Nesta tese, são apresentados estudos que indicam uma contribuição fundamental da família de lipoproteínas Wnt no desenvolvimento de neurónios dopaminérgicos do mesencéfalo ventral. Estas lipoproteínas poderão no futuro contribuir para a optimização de terapias celulares com células estaminais para a doença de Parkinson. 103 Sinalização por lipoproteínas Wnt no desenvolvimento de neurónios dopaminérgicos do mesencéfalo ventral Wnt signalling in the development of ventral midbrain dopaminergic neurons Gonçalo Castelo-Branco Gonçalo Castelo-Branco Licenciado em Bioquímica pela Universidade de Coimbra e doutorado em Filosofia (Bioquímica Médica) pelo Instituto Karolinska, Estocolmo, Suécia. Investigador no Laboratório de Neurodesenvolvimento Molecular, Centro de Excelência em Biologia do Desenvolvimento, Departamento de Neurociências do Instituto Karolinska Tese de doutoramento publicada em Dezembro de 2004 (ISBN 91-7140-176-8) e defendida no Instituto Karolinska, Estocolmo, Suécia, a 14 de Janeiro de 2005, tendo como oponente o Professor Doutor Lukas Sommer, do Instituto Federal Suíço, Zurique, Suiça e como júri de doutoramento os professores doutores Jonas Frisén (Instituto Karolinska, Estocolmo, Suécia), Ted Ebendal (Universidade de Uppsala, Suécia) e Karin Forsberg-Nilsson (Universidade de Uppsala, Suécia). O autor desta tese foi financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Ministério da Ciência e Tecnologia, Portugal), Fundo Social Europeu, Instituto Karolinska e Fundação Calouste Gulbenkian (Portugal). 104 Doença de Parkinson A doença de Parkinson é uma patologia neurodegenerativa crónica que envolve a perda e atrofia de neurónios em áreas específicas do cérebro, nomeadamente na via nigroestriatal e na área tegmental ventral (neurónios dopaminérgicos), e no locus coeruleus (neurónios noradrenérgicos). Os neurónios dopaminérgicos da via nigroestriatal têm os seus corpos celulares no mesencéfalo ventral, nomeadamente na substantia nigra, projectando os seus axónios para os núcleos caudate e putamen do estriado dorsal (Figura 1). A degeneração dos neurónios dopaminérgicos conduz a um decréscimo da actividade motora e a sintomas como aquinésia (incapacidade de iniciar movimentos), bradiquinésia (inabilidade de completar movimentos, o que os torna lentos), perda de expressão facial (associada a rigidez muscular) ou tremores . Figura 1 - Inervação de neurónios dopaminérgicos da substantia nigra (SN) e área tegmental ventral (VTA) no cérebro adulto de um roedor (ratinho ou rato). Os principais tratamentos para a doença de Parkinson têm como base a estimulação da função dopaminérgica nas áreas afectadas, através de moléculas precursoras da dopamina (como levodopa e derivados) ou intervenções cirúrgicas (como a estimulação cerebral profunda). A administração de levodopa leva a melhorias sintomáticas significativas. No entanto, com o decorrer dos anos, a degeneração celular evolui, perdendo este composto a sua eficiência e podendo levar a excessiva actividade motora e disquinésias. Terapia Celular com células estaminais para a doença de Parkinson A terapia por substituição celular constitui uma aproximação terapêutica alternativa para a doença de Parkinson, consistindo na transplantação de células funcionais para a área do cérebro afectada, de modo a que as novas células possam substituir os neurónios em degenerescência. Após estudos exaustivos em modelos animais da doença de Parkinson, investigadores em Lund, Suécia, demonstraram que o transplante de células dopaminérgicas derivadas de fetos humanos para o estriado de pacientes de Parkinson conduz a melhorias sintomáticas significativas . Os neurónios implantados adquirem propriedades de neurónios dopaminérgicos da via nigroestriatal, nomeadamente a formação de contactos sinápticos com os neurónios do estriado e libertação de dopamina. Além disso, as células implantadas não são afectadas com o evoluir da doença . Desde 1987, mais de 350 transplantes com células dopaminérgicas fetais humanas foram efectuadas em doentes de Parkinson. No entanto, são necessários de 6 a 8 fetos humanos para o transplante de um só doente de Parkinson, o que levanta problemas logísticos e éticos que têm impedido a optimização desta tecnologia e a sua implantação em larga escala. podendo originar células da sua linhagem embrionária mas não de outra linhagens (multipotencialidade). No organismo adulto, as CE tem essencialmente uma função regeneradora e não de desenvolvimento, diferenciando-se em células do mesmo tipo do órgão de onde derivam (multipotencialidade). A diferenciação de uma CE (com potencial abrangente) num tipo celular tão específico com o de neurónio dopaminérgico não é um Neurónios dopaminérgicos do mesencéfalo ventral são um dos principais tipos celulares afectados na doença de Parkinson. Alguns ensaios clínicos indicam que terapia por substituição celular pode ser efectuada com sucesso em pacientes de Parkinson. Uma fonte alternativa para quantidades elevadas de células dopaminérgicas para transplante na doença de Parkinson são as células estaminais (CE). Estas células imaturas podem diferenciar-se em diversos tipos celulares, tendo igualmente a capacidade de se autorenovar e dividir indefinidamente. A célula estaminal com potencial mais abrangente é a CE embrionária, derivada da massa interior do blastócisto (embrião com 5-6 dias). Esta célula pode dar origem a todos os tipos celulares do indivíduo adulto, mas não ao organismo inteiro (daí ser pluripotente). Numa fase fetal, à medida que o desenvolvimento do organismo avança, o potencial das CE passa a ser mais restrito, processo linear e espontâneo, requerendo por conseguinte a manipulação in vitro da CE, quer por via de engenharia genética (sobreexpressão ou repressão de certos genes), quer por tratamento com factores determinados, em estratégias que procurem mimetizar o desenvolvimento in vivo. Este tipo de abordagem tem sido aplicada com êxito em diversos tipos de CE de roedores e humanas. No entanto, a eficácia da diferenciação não é elevada e o grau de funcionalidade dos neurónios dopaminérgicos gerados a partir de CE não é completa. Deste modo, a análise ao pormenor das fases iniciais do desenvolvimento de neurónios dopaminérgicos no mesencéfalo ventral é essencial para 105 A terapia por substituição celular constitui uma aproximação terapêutica células funcionais para a área do cérebro afectada, de modo a que 106 a definição de novas estratégias de manipulação in vitro de CE, com taxas de indução dopaminérgicas ainda mais significativas do que as obtidas até hoje. Wnts no desenvolvimento de neurónios dopaminérgicos do mesencéfalo ventral Factores de transcrição nucleares como HNF3b, Nurr-1, Pitx-3, En-1, Lmx-1b e Otx-2 têm sido identificados como moduladoreschave no desenvolvimento de neurónios dopaminérgicos do mesencéfalo ventral (Figura 2) . No entanto, papéis semelhantes foram atribuídos apenas a três factores extracelulares, FGF-8 (fibroblast growth factor 8), Shh (sonic hedgehog) e Wnt-1. Estas proteínas actuam aparentemente numa fase inicial do desenvolvimento dopaminérgico, induzindo proliferação dos progenitores neuronais e contribuindo para a coordenação do desenvolvimento antero-posterior e dorso-ventral da região mesencefálica. Dado que as lipoproteínas Wnt estão envolvidas em diversos processos durante o desenvolvimento neuronal e vários membros desta família são expressos no mesencéfalo ventral durante o desenvolvimento , o nosso grupo de investigação decidiu verificar se estas proteínas desempenham um papel relevante no desenvolvimento dos neurónios dopaminérgicos. Objectivos da tese de doutoramento 1. Determinar a função de proteínas da família Wnt e dos seus receptores no desenvolvimento de neurónios dopaminérgicos do mesencéfalo ventral. Figura 2 – Linha temporal da especificação de neurónios dopaminérgicos no mesencéfalo ventral. (A) Células progenitoras neuronais, positivas para os marcadores ADH-2 (aldehyde dehydrogenase) e Otx-2, estão presentes na área média da zona ventricular. (B) Estas células progenitoras migram através dos processos das células da glia radial e começam a expressar o marcador AADC (L-aromatic amino acid decarboxylase). Com o ínicio da expressão do factor de transcrição Nurr-1, estes progenitores saem do ciclo celular. (C) As células progenitoras pós-mitóticas chegam à superfície pial do mesencéfalo ventral e começam a expressar marcadores dopaminérgicos, como hidroxilase de tirosina (TH) e os factores de transcrição Pitx-3 e Lmx-1b. Todos as proteínas aqui mencionadas mantêm a sua expressão em neurónios dopaminérgicos do mesencéfalo ventral em fases subsequentes do desenvolvimento. alternativa para a doença de Parkinson, consistindo na transplantação de as novas células possam substituir os neurónios em degenerescência. 2. Investigar os mecanismos intracelulares que modelam a diferenciação de células precursoras neuronais do mesencéfalo ventral em neurónios dopaminérgicos. 3. Investigar como a modulação da sinalização celular por proteínas Wnt ou relacionadas pode ser utilizada para a diferenciação de células progenitoras ou estaminais neuronais em neurónios dopaminérgicos. Resumo dos artigos ou manuscritos científicos incluídos na tese de doutoramento 1) Differential regulation of midbrain dopaminergic neuron development by Wnt-1, Wnt-3a, and Wnt-5a (Regulação diferencial do desenvolvimento dos neurónios dopaminérgicos do mesencéfalo ventral por Wnt-1, Wnt-3a e Wnt-5a); Gonçalo CasteloBranco, Joseph Wagner, Francisco J. Rodriguez, Julianna Kele, Kyle Sousa, Nina Rawal, Hilda Amalia Pasolli, Elaine Fuchs, Jan Kitajewski e Ernest Arenas. Publicado no jornal científico Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America; 100 (22):12747-52 (2003). Neste estudo, descobrimos que Wnt-1 e Wnt-5a aumentam o número de neurónios dopaminérgicos (identificados pela imu- noreactividade para a enzima hidroxilase de tirosina (TH)) em culturas de células precursoras neuronais, enquanto Wnt-3a tem o efeito oposto. O tratamento destas culturas de células precursoras neuronais com Fz8-CRD, um inibidor extracelular de sinalização Wnt, reduz igualmente o número basal de neurónios dopaminérgicos, confirmando a especificidade dos efeitos das proteínas Wnt no desenvolvimento nos neurónios dopaminérgicos do mesencéfalo ventral. Investigámos igualmente os mecanismos pelos quais as proteínas Wnt modelam o número de neurónios dopaminérgicos. Descobrimos que Wnt-1 aumenta o número de neurónios no nosso sistema experimental essencialmente através de indução de proliferação dos precursores neuronais. Wnt5a, por sua vez, actua principalmente na regulação da maturação e diferenciação dos precursores neuronais dopaminérgicos. Verificámos igualmente que Wnt-3a tem a capacidade de reduzir o número de neurónios dopaminérgicos nas nossas culturas, ao promover a proliferação das células precursoras dopaminérgicas, impedindo simultaneamente a sua diferenciação em neurónios dopaminérgicos. Colectivamente, estes resultados indicam que Wnts são importantes reguladores da neurogénese dopaminérgica no mesencéfalo ventral. 2) Ventral midbrain glia express regionspecific transcription factors and modulate 107 dopaminergic neurogenesis through Wnt5a secretion (Glia do mesencéfalo ventral expressa factores de transcrição específicos e modela a neurogénese dopaminérgica através de secreção de Wnt-5a); Gonçalo CasteloBranco, Kyle Sousa, Vitezslav Bryja, Luísa Pinto, Joseph Wagner e Ernest Arenas. Manuscrito da tese, entretanto publicado no jornal científico Molecular and Cellular Neuroscience, 2006 Feb;31(2):251-62 O nosso grupo relatou previamente que células estaminais neuronais de ratinho podem ser diferenciadas em neurónios dopaminérgicos do mesencéfalo ventral por sobreexpressão do factor de transcrição Nurr-1 e co-cultura com células gliais (astrócitos) derivadas do mesencéfalo ventral de rato . Como as proteínas Wnt têm algumas características semelhantes a factores secretados por estes astrócitos, incluindo pouca solubilidade em meios aquosos , perguntámos se poderiam ser responsáveis pelos efeitos das células da glia derivadas do mesencéfalo ventral. Os nossos resultados indicaram que células da glia do mesencéfalo ventral são capazes de induzir um fenótipo dopaminérgico não só em células estaminais neuronais, mas também em células precursoras neuronais positivas para o factor de transcrição Nurr-1, isoladas de diferentes partes do cérebro, 108 Figura 3 –Sinalização Wnt canónica. Num estado de repouso, as proteínas Wnt canónicas não ligam aos receptores Frizzled and LRP-5/6, devido à sua ausência no meio extracelular, antagonismo por sFRPs (WIF ou Cerberus) ou internalização dos receptores LRPs, desencadeado pelas proteínas Dkks and Kremens. ß-catenina é então degradada pelo complexo proteossómico, após fosforilação pela enzima GSK-3ß no complexo de destruição (constituído igualmente pelas proteínas Axin/APC). Por ligação de Wnts aos receptores Frizzled/LRP, as proteínas Axin e Dishevelled são recrutadas para a membrana celular. LRPs medeiam a destabilização da proteina Axin, contribuindo para o desmantelamento do complexo de destruição. Como GSK-3ß é igualmente inibido, b-catenina não é fosforilada e os seus níveis intracelulares são estabilizados. (1) ß-catenina é então transportada para o núcleo, onde pode converter repressores transcripcionais da família de proteínas TCF/LEF e Pitx-2 em activadores transcripcionais. Como consequência, genes alvo como ciclinas são activados. (2) b-catenin estabilizada pode igualmente interagir como o complexo de caderinas, regulando adesão celular e dendritogenese. (3) A inibição de GSK-3ß pode igualmente induzir remodelação axonal e sinaptogenese. Em suma, factores que modelem a sinalização Wnt em células estaminais ou precursoras neuronais poderão ser utilizados futuramente para a indução de diferenciação dopaminérgica, tendo em vista a sua aplicação em terapia de substituição celular para a doença de Parkinson. incluindo o córtex cerebral. Estes efeitos são específicos para o nicho neurogénico dopaminérgico, dado que astrócitos derivados do córtex cerebral não reproduzem os efeitos de astrócitos do mesencéfalo ventral. Para além disso, os nossos resultados indicaram que este efeitos são, em parte, devidos à secreção de Wnt-5a. Em suma, neste estudo descobrimos que células da glia isoladas do mesencéfalo ventral podem contribuir para a diferenciação de células estaminais e precursoras neuronais em neurónios dopaminérgicos através da secreção de factores solúveis como Wnt-5a. desenvolvimento de neurónios dopaminérgicos. Os nossos resultados indicam que o nicho dopaminérgico do mesencéfalo ventral está dependente da expressão de LRP-6 e da regulação por Dkk-2. Tratamento de células precursoras dopaminérgicas com Dkk-2 aumenta o número de neurónios dopaminérgicos, tal como Wnt-5a. Para além disso, ratinhos com uma mutação no gene de LRP6 têm igualmente um atraso na neurogénese dopaminérgica, realçando o importante papel do sistema Wnt-Dkk-LRP no desenvolvimento dos neurónios dopaminérgicos do mesencéfalo ventral. 3) Dkk-2 and LRP-6 promote the differentiation of ventral midbrain dopaminergic neurons (Dkk-2 e LRP-6 promovem a diferenciação dos neurónios dopaminérgicos da região do mesencéfalo ventral); Gonçalo Castelo-Branco, Kyle Sousa, Vitezslav Bryja e Ernest Arenas. Manuscrito da tese, submetido para publicação em Novembro de 2005 (em colaboração com o grupo de investigação do Professor Wolfgang Wurst, em Munique, Alemanha). 4) GSK3b inhibition/ß-catenin stabilization in ventral midbrain precursors increases differentiation into dopamine neurons (Inibição de GSK-3ß/ estabilização de ß-catenina em células precursoras do mesencéfalo ventral aumenta a sua diferenciação em neurónios dopaminérgicos); Gonçalo Castelo-Branco, Nina Rawal e Ernest Arenas. Publicado no jornal científico The Journal of Cell Science, 117: 5731-5737 (2004). Dkks (dickkopfs) são proteínas que têm a capacidade de se ligar a LRPs (low density lipoprotein receptor related proteins), uma família de co-receptores das lipoproteínas Wnt. Deste modo, Dkks podem modelar sinalização via Wnts (Figura 3). Neste estudo, investigámos o papel de diferentes Dkks e LRPs no Wnts podem transduzir o seu sinal intracelularmente por diversas vias. Neste estudo, investigámos se GSK-3ß, um dos principais componentes da via de sinalização Wnt canónica (Figura 3) está envolvido na diferenciação dopaminérgica de células precursoras do mesencéfalo ventral. Descobrimos que a inibição 109 farmacológica de GSK-3ß, por tratamento com dois compostos químicos (kenpaullone e indirubin-3-monoxime), induzem a diferenciação de células precursoras em neurónios dopaminérgicos positivos para TH. Este efeito coincide com a estabilização da proteína ß-catenina no seguimento do tratamento com os inibidores. Para mais, sobreexpressão de ß-catenina nas células precursoras neuronais leva igualmente a um aumento do número de neurónios dopaminérgicos. Dado que Wnts são moléculas pouco solúveis, os compostos farmacológicos utilizados no estudo poderão ser usados no futuro para o melhoramento de preparações celulares antes da transplantação para doentes de Parkinson. Estas moléculas poderão mimetizar a sinalização Wnt em células precursoras ou estaminais neuronais, e assim aumentar o número de neurónios dopaminérgicos disponíveis para transplante. 110 Figura 4 – Wnts no desenvolvimento de neurónios dopaminérgicos do mesencéfalo ventral. Os resultados apresentados nesta teses indicam que moduladores de sinalização Wnt poderão ser usados para o desenvolvimento de neurónios dopaminérgicos a partir de células estaminais. Durante o desenvolvimento do mesencéfalo ventral e antes da génese dos neurónios dopaminérgicos, Wnt-1 e Wnt-5a (em menor extensão) induzem a proliferação de células precursoras neuronais. O aumento da expressão de Nurr-1 nestas células leva à sua saída do ciclo celular. Nesta fase , Wnt-5a (e também Wnt-1, em menor extensão) é capaz de induzir diferenciação dopaminérgica. Wnt-3a não é expresso no mesencéfalo ventral, dado que poderia inibir a diferenciação dopaminérgica, quer promovendo proliferação ou induzindo diferenciação num tipo celular alternativo. Kenpaullone (KP) and Indirubin-3-monoxyme (I3M) são agentes farmacológicos que podem mimetizar a sinalização Wnt e igualmente induzir diferenciação dopaminérgica, e que poderão ser utilizados no futuro para o melhoramento de preparações celulares para terapia de substituição celular na doença de Parkinson. Bibliografia: Arenas, E. (2002) Stem cells in the treatment of Parkinson's disease. Brain Res Bull, 57, 795-808. Bjorklund, A., Dunnett, S.B., Brundin, P., Stoessl, A.J., Freed, C.R., Breeze, R.E., Levivier, M., Peschanski, M., Studer, L. and Barker, R. (2003) Neural transplantation for the treatment of Parkinson's disease. Lancet Neurol, 2, 437-445. Lindvall, O. (1997) Neural transplantation: a hope for patients with Parkinson's disease. Neuroreport, 8, iii-x. Lindvall, O. (2003) Stem cells for cell therapy in Parkinson's disease. Pharmacol Res, 47, 279-287. Olanow, C.W. (2004) The scientific basis for the current treatment of Parkinson's disease. Annu Rev Med, 55, 41-60. Parr, B.A., Shea, M.J., Vassileva, G. and McMahon, A.P. (1993) Mouse Wnt genes exhibit discrete domains of expression in the early embryonic CNS and limb buds. Development, 119, 247-261. Piccini, P., Brooks, D.J., Bjorklund, A., Gunn, R.N., Grasby, P.M., Rimoldi, O., Brundin, P., Hagell, P., Rehncrona, S., Widner, H. and Lindvall, O. (1999) Dopamine release from nigral transplants visualized in vivo in a Parkinson's patient. Nat Neurosci, 2, 11371140. Rosenthal, A. (1998) Auto transplants for Parkinson's disease? Neuron, 20, 169-172. Wagner, J., Akerud, P., Castro, D.S., Holm, P.C., Canals, J.M., Snyder, E.Y., Perlmann, T. and Arenas, E. (1999) Induction of a midbrain dopaminergic phenotype in Nurr1-overexpressing neural stem cells by type 1 astrocytes. Nat Biotechnol, 17, 653-659. Willert, K., Brown, J.D., Danenberg, E., Duncan, A.W., Weissman, I.L., Reya, T., Yates, J.R., 3rd and Nusse, R. (2003) Wnt proteins are lipid-modified and can act as stem cell growth factors. Nature, 423, 448-452. Zigmond, M.J. (1999) Fundamental neuroscience. Academic Press, San Diego. Conclusões No trabalho apresentado nesta tese, identificámos Wnts e Dkks como importantes reguladores do desenvolvimento dos neurónios dopaminérgicos do mesencéfalo ventral. Enquanto Wnt-1, Wnt-5a e Dkk-2 aumentam o número de células positivas para TH em culturas de células precursoras neuronais do mesencéfalo ventral, Wnt-3a mantem e diminui estes números. Os mecanismos pelos quais Wnts induzem estes efeitos são diversos. Enquanto Wnt-1 actua principalmente como um agente indutor de proliferação para células precursoras dopaminérgicas, Wnt-5a e Dkk2 induzem diferenciação. Já Wnt-3a pode manter os precursores neuronais num estado proliferativo ou induzir diferenciação em outros subtipos neuronais. Todos estes factores são secretados em diferentes estádios no mesencéfalo ventral por células precursoras neuronais ou glia, e regulam, por sinalização autócrina e/ou paracrina, o adequado desenvolvimento dos neurónios dopaminérgicos (Figura 4). Para além disso, algumas destas moléculas transduzem o seu sinal através do receptor LRP-6, que é importante para o desenvolvimento de neurónios dopaminérgicos no mesencéfalo ventral, como estabelecido pela análise de animais com mutações no seu gene. Identificámos igualmente compostos inibidores de GSK-3ß e indutores de estabilização de ßcatenina como indutores da diferenciação de neurónios dopaminérgicos. Em suma, factores que modelem a sinalização Wnt em células estaminais ou precursoras neuronais poderão ser utilizados futuramente para a indução de diferenciação dopaminérgica, tendo em vista a sua aplicação em terapia de substituição celular para a doença de Parkinson (Figura 4). 111 Gustavo Afonso1 Lara Costa2 Marta Miranda3 1enfermeiro graduado. Centro de Saúde de Braga – Unidade de Saúde do Carandá. Responsável pelo apoio domiciliário de enfermagem 2enfermeira graduada. Centro de Saúde de Braga – Unidade de Saúde do Carandá 3enfermeira graduada, pós-graduação em Enfermagem de Emergência. Centro de Saúde de Braga – Unidade de Saúde do Carandá 112 Abordagem da ferida crónica: tratamento local É inquestionável que as feridas crónicas representam um grave problema de saúde dado as suas repercussões aos mais variados níveis: pessoal, familiar e sócio-económico. Uma ferida crónica pode ser definida como uma ferida que “permanece sem cicatrizar, por um período de tempo superior a 6 semanas” (Collins, Hampton e White, 2002). 113 114 Actualmente coexistem ainda duas distintas abordagens da ferida crónica: os métodos de cura seca e a cura húmida. O primeiro baseiase na utilização de material destinado única e exclusivamente a tapar a ferida, sem qualquer tipo de acção, “produtos passivos” (exemplo: gases de algodão, pomadas, etc.), enquanto que no segundo, o tratamento em meio húmido, são empregues apósitos resultantes da investigação científica, capazes de criar condições de ambiente húmido e de interagir com o leito da ferida. O conceito de tratamento em meio húmido, traduzido do inglês “moist wound healing”, é conhecido no seio da comunidade científica desde 1962 através dos estudos de Winter. terapêuticas e preventivas consoante a etiologia da ferida, atinge-se a sua cicatrização, o restabelecimento da saúde e uma melhoria na qualidade de vida da pessoa doente. Limpeza da ferida A limpeza é a primeira fase na abordagem terapêutica das feridas crónicas, com repercussões em todo o processo de cicatrização, uma vez que é através de uma correcta limpeza que se consegue diminuir o risco de infecção devido à remoção de microorganismos, tecido necrosado e possíveis detritos provenientes de anteriores apósitos, presentes no leito da ferida.A Ao efectuar o tratamento local da ferida crónica baseado no conceito de tratamento em meio húmido, atinge-se um elevado nível de eficácia e eficiência relativamente aos recursos materiais e humanos, visto que se consegue diminuir o número de intervenções curativas e, assim, diminuir o tempo de cicatrização. Segundo este método, podem ser consideradas diferentes etapas no tratamento local da ferida crónica: limpeza da ferida, desbridamento, controlo do exsudado, abordagem da carga bacteriana e infecção e cicatrização em meio húmido. AHCPR (Agency for Health Care Policy and Research) elaborou um Guia para Tratamento de Úlceras de Pressão do qual resultam recomendações adaptáveis a outras lesões cutâneas crónicas. Destas e relativamente à limpeza da ferida, destacamos as seguintes: Ao efectuar o tratamento local da ferida crónica baseado no conceito de tratamento em meio húmido, atinge-se um elevado nível de eficácia e eficiência relativamente aos recursos materiais e humanos, visto que se consegue diminuir o número de intervenções curativas e, assim, diminuir o tempo de cicatrização. - Usar a mínima força mecânica possível quando para isso se utilizam compressas; A par desta abordagem, ao considerar a pessoa portadora de ferida crónica segundo uma perspectiva holística, associando medidas - Não utilizar antisépticos como por exemplo iodopovidona, hipoclorito de sódio e peróxido de hidrogénio (com conhecida toxicidade e agressividade para os tecidos e processo de cicatrização); - Utilizar solução salina isotónica; - Aplicar a solução de limpeza com pressão adequada de modo a efectuar uma acção mecânica (de remoção de microorganismos e outros detritos) e sem danificar o tecido viável (segundo a GNEAUPP – Grupo Nacional para el Estúdio y Asesoramiento en Úlceras por Pression y Heridas Crónicas – as pressões eficazes e seguras situam-se entre 1 a 4 Kg/ cm2; com uma seringa de 35 ml com cateter de 0,9 mm atinge-se uma pressão de 2 Kg7 cm2). Desbridamento A presença de tecido necrosado (seco ou húmido, de cor preta ou amarela) no leito da ferida pode retardar o processo de cicatrização visto que actua como uma barreira mecânica ao tecido de granulação e ainda se constitui como um meio ideal para a proliferação de microorganismos, dificultando ainda a correcta avaliação da extensão e profundidade da ferida. O método de desbridamento é determinado não só pelo tipo de tecido necrosado mas também pelo estado geral do doente, como é o caso de doentes com perturbações da coagulação ou doentes em fase terminal, casos em que o desbridamento poderá estar contraindicado. O desbridamento é um processo natural que ocorre em todos os processos de regeneração e cicatrização tecidular. Contudo, nas feridas crónicas ocorrem fenómenos fisiopatológicos que impedem o desenvolvimento deste processo, tornando-se necessário um desbridamento externo. Na prática, os métodos de desbridamento podem ser classificados em: cirúrgico; cortante; enzimático; autolítico; osmótico; larval; mecânico; químico. Limpeza com soro fisiológico exercendo a mínima força mecânica. Cirúrgico: efectuado em bloco operatório para remoção de grandes áreas de tecido necrosado. 115 Cortante: pode ser efectuado no domicílio ou em ambulatório através da utilização de tesouras ou bisturis. É um método rápido e selectivo mas que exige perícia e conhecimentos específicos. Pode ser utilizado em associação com outros métodos (autolítico e enzimático). É susceptível de causar alguma dor, pelo que pode ser recomendado a aplicação prévia de anestésicos locais (por exemplo: gel de lidocaína a 2%). Pode estar ainda associada a hemorragia como complicação frequente, controlável através de compressão manual directa e/ ou aplicação de apósitos com propriedades hemostáticas com vigilância durante as 24 horas seguintes. 116 Enzimático: feito através da aplicação tópica de enzimas exógenas (como por exemplo a colagenase ou a estreptoquinase) que funcionam de forma sinérgica com as enzimas endógenas, degradando a fibrina, o colagénio desnaturalizado e a elastina. É recomendável proteger a pele peri – lesional dado o risco de maceração, e ainda se recomenda a utilização de um apósito secundário. Autolítico: potencia o desbridamento natural das feridas, permitindo que o tecido desvitalizado se auto-elimine, através da aplicação de apósitos constituídos maioritariamente por água (70% a 90%), como por exemplo os hidrogéis. É o método mais selectivo, não traumático e não doloroso, sendo por isso bem tolerado pelo próprio doente. É aconselhável a utilização de um apósito secundário. Osmótico: feito através de trocas de fluidos de diferentes osmolaridades, como por exemplo apósitos de poliacrilato activados com soluções hiperosmolares. É também um método selectivo, exigindo a troca de apósito de 12 em 12 ou de 24 em 24 horas. Larval: surge como uma alternativa não cirúrgica para o desbridamento de lesões de diferentes etiologias, especialmente indicado em feridas vasculares isquémicas. São utilizadas larvas estéreis da mosca Lucilia sericata criadas laboratorialmente. Estas larvas produzem enzimas que liquefazem o tecido desvitalizado para posterior ingestão e eliminação, sem danificar o tecido viável. Mecânico: é um método pouco recomendado e em desuso, por ser traumático, doloroso e não selectivo, razões pelas quais foi estipulada a sua não utilização pelas Guidelines do National Institute for Clinical Excelence (NICE). Químico: também de utilização não preconizada pela aplicação de agentes (exemplo: hipoclorito de sódio) cuja capacidade de desbridamento é ineficaz e não selectiva tornando-se ainda danosa para os tecidos viáveis e pele peri-lesional. Desbridamento autolítico: hidrogel em estrutura amorfa. Controlo do exsudado O excesso de exsudado tem consequências negativas para o processo de cicatrização uma vez que foi demonstrado que feridas extremamente exsudativas cicatrizam mais lentamente que as não exsudativas (o excesso de exsudado induz a decomposição das proteínas da matriz extracelular e dos factores de crescimento e a inibição da proliferação celular). Além disso, o excesso de exsudado pode provocar maceração da pele peri-lesional, devendo esta ser protegida com: cremes hidratantes, óxido de zinco ou, preferencialmente, produtos barreira. Para controlo directo do exsudado devem ser utilizados apósitos com grande capacidade de absorção (alginatos ou hidrofibras de hidrocolóide ou ainda espumas poliméricas), ou sistemas mecânicos à base de vácuo. Devem ainda ser tratadas causas subjacentes causadoras do excesso de exsudado como é o exemplo do edema no caso de úlceras venosas e o aumento da carga bacteriana frequentemente responsável pelo aumento da produção do exsudado. Maceração peri-lesional. Abordagem da carga bacteriana e infecção Todas as feridas crónicas estão contaminadas e a sua colonização é evitada através de uma limpeza e desbridamento eficazes. O diagnóstico de infecção é essencialmente clínico, feito através da constatação de sinais e sintomas clássicos: inflamação (eritema, edema, tumor, calor), dor, odor e alterações nas características do exsudado. Laboratorialmente, a infecção é idealmente diagnosticada através de biopsia quando a contagem de bactérias por grama de tecido é superior a 105. Perante uma ferida infectada, a primeira atitude será intensificar a limpeza e desbridamento durante um período de 2 a 4 semanas. Se houver persistência dos sinais infecciosos, devem ser utilizados apósitos com iodo de libertação lenta ou apósitos com prata. Se não houver evolução favorável, o ideal é a realização de culturas bacterianas e a implementação de antibioterapia sistémica adequada aos microorganismos identificados. Não está recomendada a utilização de antibióticos tópicos nas feridas visto esta ter riscos associados como o desenvolvimento de resistências, sensibilização, alergias e reacções cruzadas. Assim como não está recomendada a aplicação de antisépticos locais por não estar demonstrada a sua acção na diminuição do nível bacteriano e, pelo contrário, estar provado terem efeitos citotóxicos. Ferida infectada, leito da ferida de tonalidade esverdeada. 117 A par desta abordagem, ao considerar a pessoa portadora de ferida crónica segundo uma perspectiva holística, associando medidas terapêuticas e preventivas consoante a etiologia da ferida, atinge-se a sua cicatrização, o restabelecimento da saúde e uma melhoria na qualidade de vida da pessoa doente. 118 Cicatrização em meio húmido Para estimular a cicatrização torna-se necessário manter um meio húmido no sentido de favorecer a angiogénese, granulação e epitelização. Para isso, desenvolveram-se apósitos geradores de um ambiente húmido na ferida graças à sua capacidade de interacção com o exsudado da mesma, controlando a sua quantidade, absorvendo-o ou retendo-o. Aliado a isto, estes apósitos têm a capacidade de criar um ambiente bacteriostático quer por acidificação do meio quer por funcionarem como uma barreira mecânica à invasão por agentes infecciosos; mantêm uma temperatura adequada estimulando principalmente a fibrinólise; permite um aporte de oxigénio e nutrientes via endógena através da angiogénese; e não provocam dor tanto na sua aplicação como na sua remoção. Os apósitos com estas características podem ser classificados em: espumas poliméricas, hidrogéis, hidrocolóides, alginatos, apósitos com prata (sendo todos estes os mais utilizados) e ainda, poliuretanos, apósitos com silicone e apósitos de carvão. Espumas poliméricas: também conhecidos por hidropolímeros ou hidrocelulares, são compostos por poliuretano ao qual é associado uma estrutura hidrofílica. Têm uma elevada capacidade de absorção estando indicados para feridas de pouco a extremamente exsudativas, sem macerar a pele peri-lesional. Estão especialmente indicados para a fase de granulação, podendo ser utilizados para o desbridamento quando associados a hidrogéis. Hidrogéis: compostos fundamentalmente por água (de 70% a 90%) e sistemas microcristalinos de polissacarídeos e polímeros sintéticos. Indicados para o desbridamento autolítico de tecido necrosado húmido ou seco, podem também ser utilizados em todas as fases do processo de cicatrização. Requerem um apósito secundário. Hidrocolóides: compostos de carboximetilcelulose sódica (CMC). Têm capacidade autolítica para desbridamento de tecido necrosado. Em contacto com o exsudado da ferida, formam um gel de cor e odor característicos. Podem ser usados em todas as fases de cicatrização. Alginatos: polímeros de cadeia larga procedentes das algas (formados da associação dos ácidos gulurónico e manurónico, sendo a base uma fibra de alginato de cálcio). Têm grande capacidade de absorção (absorvem 15 a 20 vezes o seu peso). Indicados para feridas moderada a extremamente exsudativas, tendo também utilidade em feridas infectadas pela capacidade de retenção de microorganismos na sua estrutura. Úteis também em feridas 119 cavitárias e têm também propriedades hemostáticas. Apósitos com prata: produtos bioactivos que contêm prata em diferentes percentagens, associada a hidrocolóides, carvão e polietileno. Indicados para feridas infectadas, uma vez que há evidências científicas de que a prata actua sobre um amplo espectro de microorganismos incluindo alguns multi-resistentes, não tem efeitos secundários, não interfere com antibióticos sistémicos e produz escassas resistências. Referências bibliográficas ALVES, Alberto Correia. Uniformidade de Cuidados no Tratamento de Feridas. Uma Realidade Inovadora, in Sinais Vitais nº25. Julho de 1998; pág.13-15. GRUPO NACIONAL PARA EL ESTUDIO Y ASESORAMIENTO EN ÚLCERAS POR PRESIÓN Y HERIDAS CRÓNICAS. (2003). Documentos GNEAUPP. CASAMADA, Núria et al. (2002). 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O conceito consiste num método de planeamento (baseado em modelos ou em software informático) denominado NobelGuide®, da Nobel Biocare, capaz de criar uma férula cirúrgica personalizada, de acordo com o planeamento. Baseado no desenho da férula cirúrgica poderemos produzir uma prótese provisória ou definitiva, que pode ser colocada no mesmo tempo cirúrgico dos implantes. As indicações deste conceito são: maxilares total ou parcialmente desdentados; assim como, casos unitários. O principal benefício é permitir a colocação de um implante dentário e respectivo componente protético de uma forma fácil, rápida, minimamente invasiva e previsível, de acordo com o planeamento efectuado antecipadamente. 121 e Protético Virtual Pacientes Desdentados Totais Introdução Com o advento dos implantes dentários, novas alternativas de reabilitação oral têm surgido para pacientes edentulados, promovendo grandes avanços para a Medicina Dentária. Por outro lado, os conceitos de vida actual exigem maior rapidez, previsibilidade e conforto nos tratamentos. A reabilitação protética imediata após a colocação de implantes aparece como opção para suprir estas necessidades, promovendo a diminuição do tempo de tratamento, além de evitar uma segunda intervenção cirúrgica e o uso de uma prótese removível provisória1,2,3,4. Através do conceito NobelGuide® é possível determinar a posição exacta de todos os implantes antes do procedimento cirúrgico ser efectuado, identificar as estruturas anatómicas relevantes e visualizar a quantidade óssea disponível. Desta forma, e esta é a grande novidade deste sistema, permite-se ao laboratório produzir antecipadamente ao acto cirúrgico, uma solução protética provisória ou definitiva. O conceito NobelGuide® utiliza um procedimento cirúrgico sem retalho minimamente invasivo, que reduz significativamente a dor e o edema pós-operatórios. Com este procedimento reduz-se o número de visitas dos pacientes à clínica, assim como o tempo de cadeira. 122 Protocolo A – Exame do paciente e avaliação do tratamento: O planeamento baseado no software informático NobelGuide® foi concebido para maxilares com um ou vários dentes em falta, em casos em que o paciente: cumpre os requisitos gerais de saúde para cirurgia oral; cicatrizou completamente após quaisquer procedimentos dentários de regeneração óssea; tem quantidade óssea suficiente a nível maxilar e/ou mandibular; B – Preparação da guia radiológica: Deverão realizar-se impressões aos maxilares e um registo de mordida horizontal e equilibrado. Em casos de pacientes desdentados totais deve efectuar-se o registo de mordida utilizando as próteses existentes optimizadas ou, se necessário, novas próteses. A guia radiológica é utilizada para simular os dentes, a superfície do tecido mole e o espaço edêntulo durante a digitalização por tomografia computorizada. O desenho correcto da guia radiológica é um pré-requisito para um planeamento com sucesso, uma vez que, o resultado final da reabilitação é determinado por essa guia. A geometria da guia radiológica é transferida para a férula cirúrgica. Para facilitar a técnica de digitalização dupla por tomografia computorizada e a subsequente correspondência das duas digitalizações, terão de ser colocados pelo menos seis pontos de referência radiológica em cada prótese. Estes orifícios deverão ter 1,5 mm de diâmetro e 1 mm de profundidade, deverão ser colocados por vestibular e palatino/lingual a diferentes níveis em relação ao plano oclusal e preenchidos com gutta-percha. O conceito de planeamento cirúrgico e protético virtual permite replicar o tratamento planeado em realidade clínica na reabilitação de pacientes parcial ou totalmente desdentados C – Tomografia Computorizada: Nos casos de NobelGuide® baseados em software informático, os dados de digitalização por tomografia computorizada são utilizados para o planeamento cirúrgico e para a produção de uma férula que orienta a cirurgia durante a colocação dos implantes. É importante que os dados de digitalização sejam uma representação exacta da anatomia do paciente. Baseado no desenho da férula cirúrgica poderemos produzir uma prótese provisória ou definitiva, que pode ser colocada no mesmo tempo cirúrgico dos implantes Para realizar planeamento com NobelGuide® é necessária uma digitalização dupla: na primeira tomografia é digitalizado o paciente com a guia radiológica posicionada na boca juntamente com o registo de mordida previamente estabelecido; na segunda digitalização é digitalizada apenas a guia radiológica. Deverá certificar-se de que o paciente está numa posição em que o plano oclusal e o indicador laser horizontal estão paralelos e coincidem (se a digitalização por tomografia computorizada possuir um indicador laser vertical, deve colocarse entre os incisivos centrais). Não é permitida a utilização de uma inclinação de suporte, deve pedir-se ao paciente para não se mexer durante todo o processo de digitalização e evitar engolir. A distância correcta entre as partes axiais deverá ser no máximo de 0.5mm. Quando a «imagem de reconhecimento» aparecer no monitor, deve corrigir a posição do paciente para uma posição horizontal do palato duro. Em seguida, pode atribuir a área de interesse das partes axiais, em paralelo com o palato duro horizontal. O registo radiológico deverá ser introduzido na posição correcta entre a guia radiológica e a arcada oponente. É importante que o paciente morda firmemente o registo e a guia radiológica durante a digitalização (sem no entanto correr o risco de deformar a guia radiológica), para alinhar a guia com o tecido mole do paciente eliminando quaisquer espaços de ar. Na segunda digitalização a guia radiológica deve ser digitalizada numa posição semelhante à da digitalização do paciente. Para tal a guia deve ser fixa a um objecto adequado de material radiolucente e colocado no scanner aproximadamente na mesma posição em que estava colocado na boca do paciente durante a primeira digitalização. O material utilizado para colocar adequadamente a guia radiológica deve ser o mais radiolucente possível, suportes de polietileno ou espuma de poliuretano são adequados. A segunda digitalização deverá ser realizada com as mesmas definições aplicadas na primeira, incluindo a mesma distância entre as partes axiais. Como as unidades de Hounsfield geradas para a guia radiológica se assemelham demasiado às do tecido mole, a digitalização dupla é utilizada para resolver o problema de extracção da guia a partir de uma única degitalização por tomografia computorizada. Os marcadores guta-percha na guia radiológica são essenciais como pontos de referência para efectuar uma fusão exacta das duas digitalizações. Quando a digitalização dupla estiver concluída deverá realizar-se a transferência dos dados de digitalização em formato DICOM 3 descomprimido para pré-processamento. 123 D – Planeamento: O software está disponível em duas versões: o Clinical Design Pro e o Clinical Design Premium. O Clinical Design Premium inclui a aplicação de conversão de ficheiros de digitalização por tomografia computorizada para modelos de planeamento em 3D, enquanto que na versão Pro os ficheiros de digitalização terão de ser enviados para o website da Nobel Biocare onde estes serão convertidos em ficheiros de planeamento tridimensionais e enviados de volta ao clínico. 124 O software Procera® é utilizado para orientar no processo NobelGuide®. Cada processo de planeamento é único e completamente baseado nas considerações específicas e pré-requisitos apresentados por cada paciente. Os locais de colocação dos implantes com uma distância mínima entre centros conforme a(s) plataforma(s) que forem utilizadas. A zona amarela em volta dos implantes indica uma distância de 1.5 mm. Três parafusos estabilizadores (anchor pins) (Ø 1.5 mm) são planeados na arcada entre os implantes num plano axial, para permitir a estabilização adequada da férula cirúrgica durante a cirurgia. Quando o planeamento terminar deverá ser verificado e aprovado, devendo a férula cirúrgica ser encomendada através do software Procera®. Cada processo de planeamento é único e completamente baseado nas considerações específicas e prérequisitos apresentados por cada paciente. Fig. 1 – Aspecto inicial da paciente Fig. 2 – Ortopantomografia inicial Fig. 3 – Guias radiológicas superior e inferior Fig. 4 – Planeamento cirúrgico NobelGuide® maxilar Fig. 5 – Planemaento cirúrgico NobelGuide® mandibular E – Produção do molde em gesso e guia cirúrgica: Fig. 6 – Aspecto das férulas cirúrgicas Fig. 7 – Próteses totalmente em acrílico confeccionadas antes da intervenção cirúrgica Fig. 8 – Colocação e estabilização da férula cirúrgica mandibular Fig. 9 – Colocação dos implantes anteriores Fig. 10 – Imagem intra-operatória da mucosa mandibular A guia cirúrgica é utilizada durante a cirurgia para colocar a férula cirúrgica no maxilar antes de estabilizá-la com os parafusos estabilizadores. A férula cirúrgica foi desenvolvida em ambiente CAD e contém todas as informações necessárias para efectuar o molde em gesso, no qual pode ser produzida uma prótese provisória ou definitiva. A férula cirúrgica é feita de um material sensível à humidade e à radiação UV, devendo ser guardada juntamente com um material absorvente no saco de plástico protector anti-UV no qual foi fornecida e guardada num local seco e escuro. As réplicas do implante deverão ser colocadas em cada um dos orifícios na férula cirúrgica utilizando os cilindros guia com parafuso, a seguir são inseridos os parafusos estabilizadores e os suportes para os parafusos estabilizadores. Coloca-se silicone de gengiva para mimetizar o tecido mole. Vazar o molde a gesso e com um instrumento cortante remover as extremidades que se destacam em redor dos orifícios. Prende-se a prótese optimizada do paciente no molde em gesso e coloca-se em articulador juntamente com o modelo do maxilar oposto; deverá ser utilizado o registo oclusal radiológico para verificar a correcta oclusão. Substituir a guia radiológica pela férula cirúrgica e prendela com os parafusos estabilizadores, acrescentase material de registo nomeadamente silicone para obter um registo de qualidade. 125 F – Solução Protética: O conceito NobelGuide® fornece total liberdade na escolha da opção protética mais adequada, de forma a satisfazer os requisitos do paciente bem como da situação clínica. 126 Ao efectuar um procedimento protético de cirurgia guiada, é possível utilizar uma grande variedade de pilares Nobel Biocare, tais como: Immediate Temporary Abutment (pilar provisório para função imediata – casos unitários), Pilar Guided Abutment (para reabilitações parciais e totais), Pilar Procera® Abutment – Pilar Snappy AbutmentTM e Pilar Esthetic Abutment – Pilar Multi-Unit Abutment. Os casos clínicos baseados em modelos e em software informático, depois da produção do molde em gesso, a maioria dos procedimentos protéticos é similar aos procedimentos do tratamento convencional. Fig. 11 – Colocação e estabilização da férula cirúrgica maxilar Fig. 12 – Imagem intra-operatória da mucosa maxilar Fig. 13 – Aspecto final das próteses A reabilitação protética imediata após a colocação de implantes aparece como opção para suprir estas necessidades, promovendo a diminuição do tempo de tratamento, além de evitar uma segunda intervenção cirúrgica e o uso de uma prótese removível provisória Fig. 14 – Aspecto final da paciente Fig. 15 – Ortopantomografia final Vantagens Para o paciente: - O tratamento cirúrgico baseia-se em cirurgia guiada e sem retalho, que é minimamente invasiva. Este processo reduz consideravelmente a dor e o edema pós-operatório, assim como o número de consultas e tempo de cadeira2,4. - A combinação de Immediate Function® com próteses provisórias ou Teeth-in-anHour® com próteses definitivas reduz consideravelmente a duração do tratamento. Para o médico dentista: Conclusão O sistema NobelGuide® apresenta uma grande fiabilidade cirúrgica e protética assente numa total imobilidade da férula guia durante a cirurgia e no duplo sistema de ancoragem. Este sistema permite a utilização de implantes Brånemark System e Nobel Replace. O sistema NobelGuide® permite realizar próteses cimentadas ou aparafusadas previamente ao acto cirúrgico, podendo a sua colocação ser feita imediatamente após em função imediata1,2,3,4. 127 - Maior segurança e previsibilidade, uma vez que ao planear o tratamento num software 3D e transformá-lo numa férula cirúrgica existe uma escolha óssea criteriosa para a colocação ideal dos implantes1. - Pré-produção de próteses: o planeamento permite a pré-produção de próteses definitivas ou provisórias de acordo com o plano de tratamento estabelecido2,3,4. Bibliografia Lal K, White GS, Morea DN, Wright RF: Use of stereolithographic templates for surgical and prosthodontic implant planning and placement. Part I - The concept. J Prosthodont 2006; 15:51-58. Marchack C: An immediately loaded CAD/CAM-guided definitive prosthesis: A clinical report. J Prosthet Dent 2005; 93:8-12. van Steenberghe D, Ericson I, Van Cleynenbreugel J, Schutyser F, Brajnovic I, Andersson M: High precision planning for oral implants based on 3_D CT scanning. A new surgical technique for immediate and delayed loading. Appl Osseointegration Res 2004; 4:27-31. van Steenberghe D, Glauser R, Blomback U, Andersson M, Schutyser F, Pettersson A, Wendelhag I: A computed tomographic scan-derived customized surgical template and fixed prosthesis for flapless surgery and immediate loading of implants in fully edentulous maxillae: A prospective multicenter study. Clin Implant Dent Relat Res 2005; 7(1):111-120. Próxima edição Daniel Serrão A Pessoa Humana e o Direito a Cuidados de Saúde Nuno Penacho Terapia Génica: Um medicamento chamado gene... 128 Como se pode imaginar, os vírus são extremamente eficientes na entrega de material genético às células. Estas pequenas partículas possuem, como objectivo único da sua existência, a entrega do seu material genético às células e promovem a sua própria replicação de modo a iniciar um novo ciclo Fábio Pereira, José Carlos Machado, Maria Daniel Vaz de Almeida Nutrigenética e Nutrigenómica: em direcção à nutrição personalizada Adelaide Serra, Fernando Domingos Avaliação Nefrológica de uma população com Litíase Cálcica Idiopática Recorrente Experiência de 7 anos da Consulta de Nefrolitíase do Serviço de Nefrologia do Hospital de Santa Maria Prémio Bial de Medicina Clínica 2004 A litíase cálcica idiopática recorrente é a forma mais frequente de nefrolitíase encontrada na actualidade, verificando-se um aumento progressivo da sua incidência nas últimas décadas, sobretudo nos países industrializados Benedita Aguiar Psicologia da Saúde e Promoção da Saúde Não caindo em reducionismos, a Psicologia da Saúde procura desencadear mudanças de comportamentos, designadamente ao nível individual, enquanto que a promoção da saúde visa provocar mudanças do comportamento organizacional, crenças em saúde e oportunidades de aprendizagem prox. edição Numa era onde a medicina é cada vez mais preventiva, espera-se que a terapia nutricional seja a pedra angular dos futuros cuidados de saúde, transformando-se numa importante ferramenta terapêutica para a maximização da saúde e minimização do risco de doença em indivíduos susceptíveis Paula Gago, Veloso Gomes Via verde coronária – um projecto para a vida no Sotavento algarvio A mortalidade por doença coronária continua a ser elevada nos países desenvolvidos, ocupando, na maioria, o primeiro lugar como causa de morte… Em média, um terço de todos os casos de enfarte agudo do miocárdio eram fatais antes da hospitalização, a maioria deles na primeira hora após início dos sintomas Benzodiazepinas: aspectos farmacológicos e utilização clínica Sérgio Aires Gonçalves As benzodiazepinas pertencem ao grupo dos sedativoshipnóticos sendo os medicamentos globalmente mais prescritos. A sua utilização deve-se à sua acção calmante e sedativa-hipnótica. As benzodiazepinas são geralmente administradas por via oral sendo a rapidez da sua absorção e distribuição determinada por factores como a lipossolubilidade Paulo Teixeira Síndrome de Asperger A Síndrome de Asperger é o nome dado a um grupo de problemas que algumas crianças (e adultos) têm quando tentam comunicar com outras pessoas Hugo Leite-Almeida, Armando Almeida Como é que o cérebro aumenta a dor? Codigo de barras