gestapo ou big brother

Transcrição

gestapo ou big brother
GESTAPO OU BIG BROTHER? POR UM REPENSAR SOBRE O TERROR NO
UNIVERSO NAZISTA
Bruno Periolo Odahara1
INTRODUÇÃO
A literatura em geral sobre o nacional-socialismo alemão, especialmente
no período pós-guerra, pode ser observada quase sempre sobre os mesmos
enfoques, salvo discordâncias pontuais entre os autores, as quais, de qualquer
maneira, dificilmente importam numa alteração do conteúdo propriamente dito. Tanto
é que, de certa forma, pode-se dizer que o sujeito “nazismo” sofreu um processo de
predicação ao longo do tempo, beirando a tautologia.
A despeito disso, análises mais recentes, especialmente aquelas
posteriores à década de 1970, trouxeram consigo uma novel forma de investigar e
encarar os fatos que ocorreram durante o regime hitlerista. Deixando de lado as
interpretações tradicionalistas, passaram a questionar o âmago dos argumentos
colacionados, e descobriram, por exemplo, que, em nível empírico, o terror, um dos
grandes algozes e responsáveis pela imagem que foi traçada da Alemanha nacionalsocialista, não era tão “totalitário” quanto se supunha.
Certamente, não se está aqui a fazer votos por um revisionismo das
tragédias que tomaram lugar naquele espaço e período, posto que agir desta forma
implicaria numa postura carente da devida deferência para com os envolvidos, tal
qual histórico-cientificamente irresponsável. O que se deseja, todavia, é fomentar
indagações sobre os motivos que levaram à adoção de certas posturas da
sociedade, da resistência e dos pensadores com relação aos acontecimentos e aos
agentes governamentais, e perscrutar se, de uma foram ou de outra, elas continuam
sendo válidas.
Para tanto, inicialmente, serão retratadas algumas das qualidades
distintivas do Estado em seu formato totalitário, eis que se reputa de extrema
importância identificar quais são os traços que o fazem tão diferente e singular em
contraposição às demais formas de governo. Uma vez apontados, passar-se-á a
1
Mestrando do Programa de Filosofia do Direito da Universidade Federal do Estado do Paraná – UFPR.
reconhecê-los com maior especificidade no seu formato germânico, justificando-se
as noções de originalidade, ideologia, monopartidarismo e, com maior ênfase, terror,
explicando do que este se tratava e como era operado.
Por fim, o terror será objeto de maiores considerações em sua interação
com uma de suas mais alardeadas perpetradoras, a polícia secreta, e se procederá
de forma a ilustrar, partindo da segunda geração de pesquisas, porque a agência
não poderia ter imposto e sido – sozinha – responsável pelo sentimento de
totalitarismo que foi cultivado pela Administração Estatal e pela população, e
posteriormente reconhecido academicamente, cada qual com seus próprios
interesses.
1 – CARACTERÍSTICAS DOS ESTADOS TOTALITÁRIOS
Não se pretende, no presente trabalho, trazer qualquer definição ou
conceito peremptório do que seria o Estado Totalitário – não apenas pelas
pretensões já anteriormente fixadas, mas também pela hercúlea tarefa que assim
estaria anteposta. Desta forma, será tão-somente proposto um recorte mais amplo
das características ordinariamente atribuídas ao dito regime.
Inicia-se pela demarcação operada por Giorgio Agamben na obra “Estado
de Exceção”. Logo nos prolegômenos, ao retratar a dificuldade que estaria adstrita à
definição do que é o estado de exceção – mormente suas intrínsecas relações com
a guerra civil, a insurreição e a resistência2 –, toma como exemplo o Estado Nazista
e aponta que, tão logo Hitler assumiu o poder (ou, ao menos, este lhe foi concedido),
“ele proclamou o Decreto para a Proteção do Povo e do Estado, o qual suspendeu
os artigos da Constituição de Weimar relativos às liberdades pessoais”3. Uma vez
que a norma jamais perdeu sua validade, “de um ponto de vista jurídico o Terceiro
Reich inteiro pode ser considerado um estado de exceção que durou doze anos” 4,
ou seja, de 28/02/1933 à 08/05/1945.
Neste sentido, o totalitarismo moderno pode ser definido como o
estabelecimento, através de um estado de exceção, de uma guerra civil legal que
permite a eliminação física não apenas de adversários políticos, mas de categorias
2
AGAMBEN, Giorgio. State of Exception, p. 02.
Idem.
4
Idem.
3
inteiras de cidadãos que, por algum motivo, não podem ser integrados no sistema
político5.
O Ausnahmezustand seria, portanto, uma zona de indeterminação entre a
democracia e o absolutismo6, na qual as feições tradicionalmente atribuídas pela
teoria política aos Estados perdem seu valor e se confundem em contornos
acinzentados.
Para Carl J. Friedrich e Zbigniew K. Brzezinski, a ditadura totalitária
diferencia-se tanto da tirania, quanto do despotismo, apesar de “haver semelhanças
significativas que justificam arrolar todos êsses regimes numa categoria comum.
Essa categoria poderia ser, corretamente, a „autocracia‟”7. Todavia, a forma
totalitária “é històricamente única e sui generis”8, podendo ser reconhecida através
de seis “aspectos ou características básicas”9:
A “síndrome”, ou padrão de aspectos interrelacionados, da ditadura
totalitária, consiste em uma ideologia, um partido único tìpicamente dirigido
por um só homem, uma polícia terrorista, um monopólio de comunicações,
um monopólio de armamentos e uma economia centralizada.
Em seu livro sobre a democracia e a anti-democracia, datado de 1956,
José Maria Bello sustenta que “(a) idéia do Estado totalitário do fascismo
corresponde no nazismo à de uma rígida organização social orientada por uma
política única”10, não sendo simples para ele, porém, “distinguir os contornos do
nazismo alemão. Herdeiro do militarismo de Guilherme II, êle é na doutrina e na
prática profundamente anti-democrático”, razão pela qual “pode ser incluído entre os
regimes autocráticos mais típicos da atualidade, em oposição às democracias
representativas”11.
Ao estudar os modelos de ditadura, Franz Neumann afirma serem elas de
três tipos, quais sejam, (a) a ditadura simples, a qual “pertence ao objetivo do poder
político monopolizado pelo ditador, que pode exercer o seu poder sòmente por meio
do contrôle absoluto dos meios tradicionais de coação, ou seja, a polícia, o exército,
a burocracia e o Judiciário”; (b) a ditadura cesarista, que agrega, à ditadura simples,
5
Idem.
Idem, p. 03.
7
FRIEDRICH, Carl J.; BRZEZINSKI, Zbigniew K. Totalitarismo e Autocracia, p. 13.
8
Ibidem, p. 15.
9
Ibidem, p. 18.
10
BELLO, José Maria. Democracia e Anti-Democracia, p. 111-112.
11
Ibidem, p. 112.
6
o atributo de “criar um apoio popular (...) para a sua ascensão ao poder ou para o
exercício do mesmo, ou até mesmo para ambas as coisas”; e, por fim, (c) a ditadura
totalitária, que extrapola a “coação monopolizada” e o “apoio popular”, entendendo
“ser necessário controlar a educação, os meios de comunicação e as instituições
econômicas e assim engrenar tôda a sociedade e a vida privada do cidadão ao
sistema de dominação política”, passível de desenvolver, ou não, “um cunho
cesarista”12.
Devendo ser tratado como “um problema separado”, há o afastamento do
modelo totalitário das demais ditaduras, sendo necessário, assim, observá-lo através
de “cinco fatôres essenciais”: a) “transição de um Estado baseado no Govêrno pelo
direito (Rechtsstaat alemão) para um Estado policial”; b) “transição da difusão do
poder nos Estados liberais para a concentração do mesmo no regime totalitário,
concentração essa que pode variar em grau e forma”; c) “existência de um partido
estatal monopolista”, o qual “fornece a fôrça para controlar a máquina do Estado e a
sociedade, e para se desincumbir da gigantesca tarefa de cimentar os elementos
autoritários dentro da sociedade”. Inclusive, esta forma monopartidária “envolve um
aspecto sócio-psicológico que pertence ao que chamamos comumente de sociedade
de „massa‟”; d) “transição dos contrôles sociais que passam de pluralistas para
totalitários”, que vem a permitir a manipulação estatal através de cinco técnicas, a
saber, “princípio de liderança”, “„sincronização‟ de tôdas as organizações sociais‟”,
“criação de elites graduadas”, “atomização e isolamento do indivíduo” e
“transformação da cultura em propaganda, de valores culturais em artigos de
comércio”; e e) como “fator final e decisivo”, insere-se a “confiança no terror, como o
uso de violência não-calculável como ameaça permanente contra o indivíduo”13.
Reinhold Zippelius, por sua vez, argumenta que as peculiaridades do
Estado totalitário fazem com que ele “não coincid(a) com os conceitos dos Estados
autoritários
e
autocráticos,
embora
num
Estado
concreto
se
combinem
frequentemente, de facto, características totalitárias, autoritárias e autocráticas”14.
Em sua opinião, os “(e)lementos característicos do moderno totalitarismo surgiram
depois do domínio dos jacobinos”15, defendendo serem quatro:
12
NEUMANN, Franz. Estado Democrático e Estado Autoritário, p. 260.
Ibidem, p. 270 e SS.
14
ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado, p. 368.
15
Ibidem, p. 369.
13
um dogmatismo ideológico (aqui sob a forma de um messianismo que
pretendia concretizar o rênio da razão e da virtude cívica), a identificação do
partido dominante com a colectividade, a invasão do Estado por agentes do
16
poder político e um terror organizado ao serviço deste dogmatismo .
No entendimento do professor da universidade de Erlangen-Nürnberg,
haveria condições que facilitariam ao Estado moderno tomar uma faceta totalitária,
“desde que caia sob um governo centralizado, p. ex., sob uma ditadura”, haja vista
estarem “à sua disposição para uma intensiva manipulação da opinião pública, os
modernos meios técnicos e as experiências psicológicas, e, além disso, o aparelho
de uma burocracia e de uma economia fortemente organizadas”17. Ademais,
(o) Estado totalitário exige não só a obediência à lei, mas também
convicção: uma mundividência nacional-socialista, amor e espírito de
sacrifício face ao Führer, orgulho da raça, consciência de classe ou
qualquer outro “zelo anímico”. Oportunismo, sanções fácticas ou pelo
menos o temor de sanções são mobilizados para impor tais modos de
pensar obrigatórios. Evidentemente, não se pode impor também por estes
meios uma convicção como tal, mas pelo menos uma conduta que deveria
corresponder a uma determinada convicção.
Para levar adiante seu programa, Zippelius aponta que o regime totalitário
empregou diversas técnicas de efeito bastante prático. Por meio de agentes a ele
ligados, incute-se “na burocracia estatal e nas organizações sociais”, visando deixálas a sua mercê, fazendo uso de “um partido estatal com organização hierárquica e
disciplina rigorosa” e auxiliado por “(u)ma polícia secreta do Estado” que “completa o
sistema da penetração organizada do aparelho estatal e da sociedade com
funcionários do poder político”18.
No âmbito burocrático, preenche as repartições “com funcionários do
partido e agentes de confiança”, e faz com que tanto a economia, como o mercado
de trabalho, dependam daquilo que é determinado segundo os “métodos da
economia planificada, ao passo que o objectivo do plano se orienta pelo programa
político do Estado”19.
A fim de garantir “uma uniformização ideológica”, expande sua
propaganda “na rádio, na televisão, na imprensa de massas controlada e no
cinema”, operando cirurgicamente com o fito de abolir a propagação de idéias
16
Idem.
Idem.
18
Ibidem, p. 372-373.
19
Ibidem, p. 373.
17
contrárias e almejando “educar e moldar mentalmente o povo no sentido dos
objectivos do Estado”. Nesse mister, até mesmo “a „ocupação dos tempos livres‟” é
coordenada pelo partido, como se podia ver no avanço sobre a juventude, afinal, o
domínio sobre o pensamento não se dada apenas pelo ensino “no espírito da
ideologia oficial segundo os planos educacionais nas escolas, mas é também
absorvida e influenciada durante os seus „tempos livres‟ pelas organizações estatais
de juventude”20.
Não é tolerada a resistência, sendo sufocada logo à nascença por um
denso sistema de controlo que não hesita em recorrer à escuta telefónica, à
vigilância do correio, à utilização de espiões, fazendo até desaparecer
dezenas de milhares de opositores políticos em campos de concentração e
de trabalhos forçados. São precisamente também os regimes totalitários
que se servem da repressão de potenciais adversários e da disciplina da
21
comunidade política através do medo e do terror .
A eficácia da adesão, portanto, é garantida através de qualquer meio que
se fizer necessário. De fato,
(m)uitos que desaprovam um regime de terror existente, suportam
dificilmente a longo prazo a dissonância permanente entre a conduta
exigida pelo Estado e as suas próprias convicções. Não raras vezes
fraqueja a personalidade psíquica, sendo o mundo de convicções pessoais
adaptado à conduta extorquida por intimidação. O mecanismo psíquico em
que se baseia a “lavagem ao cérebro”, é utilizado desta maneira sobre
22
largas partes da população .
Vale notar, igualmente, a opinião de Hannah Arendt, desenhada com
maior profundidade no livro Origens do Totalitarismo, mas com opiniões em vários
outros textos – alguns deles inéditos. A fim de que não se corra o risco de parecer
leviano – eis que a densidade da filosofia da autora é tamanha que exigiria muito
mais profundidade que o trabalho, no momento, pode abrigar – serão trazidas
algumas opiniões de comentadores da autora, com pontuais excertos dos originais.
Cumpre assinalar, inicialmente, que Arendt também constava dentre os
pensadores que viram nos círculos totalitários uma forma nova de governo,
“diferente de tudo aquilo catalogado por autores como Aristóteles e Montesquieu;
[um modelo] construído inteiramente sobre o terror e a ficção ideológica e devotado
20
Idem.
Idem.
22
Ibidem, p. 374.
21
a um movimento perpétuo de destruição”23. Para Jerome Kohn, Arendt teria
vislumbrado no totalitarismo o surgimento no mundo de algo denominado “mal
radical e absoluto”24; outrossim, ao contrário de todas as demais formas de governo
(monarquia e sua antítese, tirania; aristocracia e oligarquia; democracia e
oclocracia), ele não possuía um oposto, podendo ser qualificado como “a crise dos
nossos tempos”25.
Com Dana Richard Villa, pode-se verificar o entendimento arendtiano de
que havia “pouca racionalidade estratégica no seu [regimes totalitários] uso do
terror”, posto que os inimigos originários – políticos – já haviam sido exterminados
enquanto da conquista do poder, ao passo que “populações totalmente inocentes
(...) foram mortas assim que os regimes se estabeleceram” obedecendo a uma
“suposta Lei da Natureza ou da História, a qual reduzia todo o desenvolvimento
histórico à „realidade‟ subjacente fundamental de uma guerra entre raças ou
classes”26. Daí, portanto, Arendt afirmar ser o terror total “a essência do governo
totalitário”27.
Ao lado do terror encontra-se o apelo ideológico, o qual encontrou seio e
resguardo em povos que precisavam de conforto após os sofrimentos decorrentes
da “Primeira Guerra Mundial, da Grande Depressão e da revolução”28. O ideário
totalitarista, com sua “lógica inerente” calcada na visão marxista da história (“toda a
história é a história da luta de classes”) ou na visão naturalista do nazismo
(“desenvolvimento natural resultante da luta entre raças”), autorizou que “toda ação
do regime pudesse ser logicamente „deduzida‟ e justificada em termos da „lei‟ da
História ou da Natureza”29.
Discorrendo sobre o assunto na quarta de seis palestras realizadas na
New School for Social Research, de New York, em 1953, Hannah Arendt chama de
logicidade “a lógica que devora [devours] a idéia onde quer que a ideologia esteja
sendo feita o princípio de ação ou tomada como fundamento de um corpo político.
23
VILLA, Dana R. Introduction: the development of Arendt’s political thought. In: _____ (ed.). Cambridge
Companion to Hannah Arendt, p. 1-21.
24
KOHN, Jerome. Totalitarianism: The Inversion of Politics, part 3. Disponível em <
http://memory.loc.gov/ammem/arendthtml/essayb3.html>. Acesso em 02/09/2009.
25
Idem.
26
VILLA, Dana R. Op. cit.
27
ARENDT, Hannah. Ideology and Terror: a novel form of government. In: _____. Origins of Totalitarianism,
p. 460-479.
28
VILLA, Dana R. Op. cit.
29
Idem.
Não é a idéia, mas a lógica que subjuga as massas”30. Assim, “ela [a lógica] se torna
a instância controladora dos sentidos: Nicht sein kann, was nicht sein darf"31.
Terror e logicidade formam, portanto, a essência e o princípio do
totalitarismo e, em conjunto, representam a sua natureza32.
Em síntese, traz-se um trecho constante do primeiro parágrafo do décimo
terceiro capítulo de Origens do Totalitarismo, o qual parece concentrar a concepção
de características dos regimes totalitários para Arendt:
(...) enfatizamos repetidamente que os meios de dominação total não são
somente mais drásticos, como também que o totalitarismo difere
essencialmente de outras formas de opressão política conhecidas por nós,
tais como despotismo, tirania e ditadura. Onde quer que tenha ascendido ao
poder, o totalitarismo desenvolveu instituições políticas completamente
novas e destruiu todas as tradições sociais, legais e políticas do país. Não
importando qual fosse a tradição especificamente nacional ou da fonte
espiritual particular da sua ideologia, o governo totalitário sempre
transformou as classes em massas, substituiu o sistema partidário, não por
ditaduras monopartidárias, mas por um movimento de massa, transferiu o
centro do poder do Exército para a polícia, e estabeleceu uma política
exterior visivelmente direcionada à dominação mundial. Os governos
totalitários hodiernos se desenvolveram de sistemas monopartidários;
sempre que estes se tornavam realmente totalitários, eles começavam a
operar de acordo com um sistema de valores absolutamente distinto de
todos os outros, tanto que nenhuma das nossas categorias utilitárias
tradicionais – legais, morais ou de senso comum – podia mais nos ajudar a
33
entender, ou julgar, ou prever o seu curso de ação .
Desta forma, espera-se deixar em evidência quais são alguns dos
elementos comumente aceitos que dão uma noção abrangente da composição dos
Estados totalitários da primeira metade do século passado, sobretudo com relação
ao nacional-socialista alemão.
30
ARENDT, Hannah. The Great Tradition and the Nature of Totalitarianism, lecture 4. Folder Title, Hannah
Arendt Papers, Manuscript Division, Library of Congress, Washington, D.C. Disponível em
<http://memory.loc.gov/cgibin/ampage?collId=mharendt&fileName=05/05145a/05145apage.db&recNum=0> e
seguintes.
31
Idem. A frase em alemão, que significa, em tradução livre, “aquilo que não deve, não pode acontecer”, parece
fazer clara alusão ao poema Die unmögliche Tatsache (O Fato Impossível), de Christian Morgenstern, escrito em
1910. No original, “Weil, so schließt er messerscharf / Nicht sein kann, was nicht sein darf”). Outrossim, a frase
também se encontra na obra “Os afogados e os sobreviventes”, de Primo Levi, que o descreve como “(u)m verso
de tal modo alemão e de tal modo rico de significado que virou provérbio, não podendo ser traduzido em italiano
senão através de uma perífrase desajeitada (...)”. LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os
castigos, as penas, as impunidades. p. 140.
32
ARENDT, Hannah. On the Nature of Totalitarianism: An Essay in Understanding. Folder Title, Hannah
Arendt Papers, Manuscript Division, Library of Congress, Washington, D.C. Disponível em
<http://memory.loc.gov/cgibin/ampage?collId=mharendt_pub&fileName=05/051930/051930page.db&recNum=
0> e seguintes. (p. 56).
33
ARENDT, Hannah. Origins of Totalitarianism, p. 460.
2 – O TOTALITARISMO ALEMÃO REVISITADO
2.1 – Originalidade, ideologia, monopartidarismo e terror
Até o presente momento, pode-se constatar uma linha geral nas opiniões
trazidas pelos estudiosos tradicionais dos regimes totalitários, especialmente no que
diz respeito ao modelo alemão, que é o objeto deste estudo. Ainda que com
diferenças entre si, faz-se possível desenhar contornos bastante próximos entre os
autores, aos quais serão feitas breves alusões.
O primeiro deles diz respeito à perspectiva de originalidade, do ponto de
vista histórico, que circundou o totalitarismo da primeira metade do século XX. Não
houve, no entender dos escritores coletados, possibilidade de enquadrá-lo em
qualquer modelo anteriormente visto, mesmo naqueles identificados como ditaduras,
tiranias ou despotismos. Os métodos empregados e a complexa estrutura edificada
pelos líderes dos regimes permitiram à Agamben falar de uma “zona de
indeterminação”, na qual se fixara o Ausnahmezustand, ou estado de exceção; Carl
J. Friedrich e Zbigniew K. Brzezinski disseram que o modelo seria historicamente
único e sui generis, ao passo que Franz Neumann o afastou tanto das ditaduras de
cunho simples, como daquelas cesaristas; através de Zippelius, é possível
distanciálo dos arquétipos autoritário e autocrático. Dessa feita, é possível postar o
sistema de governo em comento como uma totalitariedade originária.
Na seqüência, encontra-se a carga ideológica dominante. Empregada de
maneira sistemática e com o fim de controlar a massa não somente nos seus
afazeres públicos, mas também – e principalmente – nos seus pensamentos mais
íntimos, a ideologia do partido deveria garantir, por meio de sua proliferação única, a
adesão total e irrestrita de todos os súditos. Ainda que sua nascente esteja na
Administração Pública e em suas subdivisões, espraia-se horizontalmente através
da propaganda por todos os lados do Estado, não conhecendo limites.
Há também a faceta monopartidária, representada, no caso germânico,
pelo domínio do NSDAP. Tal constituição, garantida pela manobra ideológica, faziase imperativa “porque os tradicionais instrumentos de coação não são bastantes
para controlar uma sociedade industrial, e ainda menos porque as burocracias e
fôrças armadas nem sempre são muito fiéis”34. Ademais, haveria, como Reinhold
Zippelius mencionou, a assimilação e cooperação da população com o partido no
34
NEUMANN, Franz. Op. cit., p. 269.
comando, notadamente através da condução dos meios de comunicação, tendo em
vista que à estes não caberia a “tarefa de apresentar diversas alternativas políticas e
ideológicas e de incitar os cidadãos a uma formação autônoma de opinião pública”35,
mas repetir, à exaustão, o pensamento do Führer. Tal controle consta, igualmente,
dentre as características apontadas por Friedrich e Brzezisnki.
Por último, mas não menos importante, encontra-se o emprego do terror
desmedido contra toda a população, traço este que marca e permeia a existência
mesma do totalitarismo – é a sua própria essência, no jargão arendtiano. A tônica
ideológica e o monopartidarismo são pilastras que, juntas, carregam a base do
regime; todavia, para que sua manutenção se mostrasse possível, tornava-se
imperativo um instrumento empírico, prático, que fizesse o público cativo e incapaz
de reagir. Desta forma, o partido agia contra todos aqueles que eram – ou
aparentavam ser – inimigos do Reich, através da perseguição generalizada, tendo a
seu dispor, além do sistema legal e judicial, recursos que incluíam a pena capital,
tortura, campos de concentração e, posteriormente, campos de extermínio, dentre
outros.
De fato, tratava-se de uma prática que não era tão nova, como assinala
Frederick Lewis Schumann, em obra de 1936:
O uso do terror e da brutalidade pela ditadura do NSDAP não se distingue
daquela de outros regimes. A forma do terror nazista, todavia, difere-se em
um número importante de aspectos de outras contrapartes recentes ou
contemporâneas. De uma forma geral, as classes dominantes recorreram
ao terrorismo em massa nos tempos modernos apenas para salvaguardar o
regime de uma ameaça iminente de destruição ou para conter e vingar-se
sobre aqueles que temporariamente tiveram sucesso em privar uma elite de
36
sua propriedade e poder .
Esses foram os casos, por exemplo, do “Reino do Terror”, na Revolução
Francesa, e do “Terror Vermelho”, na Revolução Russa37. Porém,
(e)stas circunstâncias extremas, se é que podem assim serem
consideradas, não estiveram presentes na Alemanha, nem em qualquer
outra ditadura Fascista. (...). As vítimas do terror no Terceiro Reich não
eram membros de grupos de oposição ameaçadores. Os Liberais
entregaram-se ao jugo nazista sem pestanejar. A Democracia Social foi
facilmente controlada ante a faca de Hitler. O Comunismo, também, estava
35
ZIPPELIUS, Reinhold. Op. cit., p. 373.
SCHUMANN, Frederick L. The Uses of Violence. In: _____. Hitler and the Nazi Dictatorship: A Study in
Social Pathology and the Politics of Fascism. p. 287-311.
37
Ibidem, p. 288.
36
igualmente desamparado. (...). A revolução nazista, para o desgosto de
Spengler e de muitos dos membros das tropas de choque, foi uma vitória
contra inimigos que não podiam ou não iriam levar um dedo em defesa
própria. Não havia greves, lutas nas ruas, barricadas, rebeliões,
assassinatos de funcionários públicos, guerra estrangeira, nem ameaças
visíveis de qualquer natureza à autoridade incontestável dos ditadores. E,
38
mesmo assim, houve terror .
Assim, fosse contra os adversários políticos anteriores, num primeiro
momento, fosse contra toda a população, indiscriminadamente, na fase posterior, o
terror total expandiu-se por todos os setores dos regimes totalitários. Para sua
implementação, este terror teve substrato “na paixão alemã pela Ordnung [ordem] e
na paixão de Hitler pela „legalidade‟”39, a ponto de que “as medidas de repressão
fossem dignificadas com as formas da lei e que as agências governamentais fossem
expressamente autorizadas a agir contra „inimigos do Estado‟”40. Distanciando-se do
modelo tradicional que imaginava as leis positivas “transitórias e mutáveis de acordo
com as circunstâncias”, ainda que resguardassem “uma permanência relativa se
comparadas às mudanças muito mais rápidas das ações dos homens” e lhe
garantissem, portanto, uma “função estabilizadora”41, “(n)a interpretação do
totalitarismo, todas as leis se tornaram, ao contrário, leis de movimento”, perdendo a
Natureza e a História a característica de “fontes de autoridade para as ações dos
homens mortais”, sendo “em si mesmas movimento e suas leis, portanto, ainda que
alguém possa precisar de inteligência a fim de que possa percebê-las e entendê-las,
nenhuma relação guardam com a razão ou a permanência”42.
Portando, desta maneira, uma base legal, o terror foi disseminado
estrategicamente. O descontentamento dos líderes do partido “com a administração
da Justiça”, aliado às críticas da imprensa nazista a uma decisão proferida pela
Suprema
Corte,
levou
à
criação,
em
24/04/1933,
da
Corte
do
Povo
(Volksgerichtshof), a qual tinha como papel “lidar com casos de traição” e que fora
configurada de maneira a levar a cabo as pretensões do regime. Inclusive, faz-se
mister assinalar a mudança operada pelo Dritten Reich no sistema jurídico, feita em
dois instantes: no primeiro, houve a “identificação do NSDAP com o Estado e das
punições à crimes contra o partido com crimes contra o Estado”; no segundo, o
38
Ibidem, p. 288-289.
Ibidem, p. 298.
40
Idem.
41
ARENDT, Hannah. Origins…, p. 463.
42
ARENDT, Hannah. On the nature...
39
partido superou o Estado, sendo “punidos crimes contra o Estado como crimes
contra o NSDAP”43.
Com a premente função de evitar qualquer espécie de dissidência, em
adição às Tropas de Choque (Sturmabteilungen – SA) e às Tropas de Proteção
(Schutzstaffeln – SS), foi criada a Polícia Secreta do Estado (Geheime Staatspolizei
– Gestapo), em 27/04/1933. Esta foi, inicialmente, “o instrumento principal do
govêrno”, sendo comandada até 17/06/1936 por Hermann Goering, quando passou
à supervisão de Heinrich Himmler. Mesmo antes da unificação à SS, em 26/05/1939,
a Gestapo, desde 1936, “fôra separada do contrôle judicial e assumira,
teòricamente, o controle e a operação dos campos de concentração”. Após proceder
a uma distorção da “noção de „custódia protetora‟”, passou a operar mediante a
“prisão arbitrária e encerramento em campos de concentração de qualquer pessoa
que quizessem [sic] e pelo tempo que desejassem; a Gestapo tornou-se, assim, o
mais dramático símbolo do terror e da ditadura totalitária em seus piores aspectos”44.
A opinião arendtiana sobre as polícias secretas no totalitarismo, de que seriam elas
“super-eficientes e super-competentes”, parece trafegar no mesmo sentido, apesar
de destilar certa dose de ironia nas suas considerações posteriores45.
2.2 – Gestapo ou Big Brother?
Em que pese as teorias dos autores acima mencionados servirem, já há
tempo, como paradigma para boa parte das pesquisas que envolvem o totalitarismo
em geral, e o germânico, em especial, reputou-se por bem empreender uma busca
por novos holofotes a lançar outras luzes sobre o cotidiano nazista e suas práticas,
mister naquilo que toca a polícia secreta do regime.
De fato, não se pretende oferecer uma concepção revisionista – não, ao
menos, em seu sentido usual, estigmatizado, que guarda substancial carga
pejorativa, no sentido de alterar os fatos históricos e tentar, aqui, diminuir a
importância, “justificar” ou mesmo negar aquilo que ocorreu no período
compreendido entre os anos de 1933 e 1945 na Alemanha de Adolf Hitler. Esperase,
sim, poder contribuir para uma abertura das discussões e salientar pontos que,
talvez, tenham sido encobertos pelo tempo, realizando-se tal exercício sempre com
43
SCHUMANN, Frederick L. Op. cit., p. 300 e ss.
FRIEDRICH, Carl J., BRZEZINSKI, Zbigniew K. Op cit., p. 134.
45
ARENDT, Hannah. Origins..., p. 420 e ss.
44
o devido respaldo acadêmico e respeito pela memória daqueles que, direta ou
indiretamente, sofreram em decorrência das atrocidades promovidas em favor de
“um bem maior”.
No que respeita, então, ao conteúdo da corrente análise, pode-se afirmar,
seguindo David F. Crew, que “nas décadas de 1950 e 1960, Hannah Arendt, Carl
Friedrich e Karl Dietrich Bracher construíram uma descrição notoriamente longeva
da Alemanha nazista como um Estado e sociedade „totalitários‟”46. Tal interpretação,
que guarda similaridades com o livro 1984, de George Orwell, é amplamente aceita
tanto em círculos universitários, como perante o senso comum. Entretanto, este
“modelo totalitário derivou das próprias auto-representações ideológicas do regime
nazista”, restando afastadas, assim, “de qualquer análise mais próxima da
sociedade alemã [que vivia] sob o Nacional Socialismo”47.
Espalharam-se, pois, durante muito tempo, estes discursos comuns, que
“raramente iam além de vagas afirmações de „culpa coletiva‟ ou de tentativas
igualmente simplistas de diferenciar entre as „vítimas‟ e seus „algozes‟”, ao passo
que “novas pesquisas demonstram (...) que as realidades do dia-a-dia na Alemanha
nazista não irão simplesmente se submeter a uma descrição dicotômica [black and
white description]”48. Este é o caso, por exemplo, do mito de onisciência, onipotência
e onipresença da Gestapo.
Criado em grande parte pela propaganda do regime – na tentativa tanto
de causar intimidação generalizada, como de esconder seus próprios problemas –,
este mito serviu, eficientemente, para erguer a figura de uma polícia secreta capaz
de “rastrear os inimigos do regime com uma acuidade instintiva”, sendo reproduzido
em larga escala não apenas nos relatos daquele período, como também em
pesquisas realizadas após o final da guerra49.
Num primeiro momento, tal visão serviu para auto-justificar as agruras
pelas quais passavam os membros dos movimentos de esquerda – ausência de
uma resistência maciça, isolamento social e aniquilamento de suas formações.
Explicações que defendessem a perfeição metodológica e instrumental da Gestapo
eram escusas perfeitas para que os dissidentes não tivessem que enfrentar as
46
CREW, David F. General Introduction. In: _____ (ed.). Nazism and German Society: 1933-1945, p. 01-37.
Idem.
48
Idem.
49
MALMANN, Klaus-Michael; PAUL, Gerhard. Omniscient, omnipotent, omnipresent? Gestapo, society and
resistance. In: CREW, David F (ed.). Nazism and German Society: 1933-1945, p. 166-196. (p. 167).
47
causas mesmas que afastaram posturas contrárias ao partido, ainda que seu lastro
apontasse para uma concepção absolutamente distorcida da realidade, refratária
dos sentimentos que pesavam sobre aqueles que as delineavam50.
No instante posterior à guerra, as análises que retratavam o mito de uma
polícia secreta alemã suprema continuaram sendo propagados, ainda que sua
função tenha sofrido relativa guinada. A antiga propaganda do Dritten Reich foi
alçada “ao status de credo”, ao mesmo tempo em que a suposição de uma Gestapo
onipresente “subsidiou, novamente, uma „saída de emergência‟ adequada – desta
vez para o „homem comum‟ [„man in the street‟] e sua oportuna acedência no
passado nazista” – afinal, mesmo que originada de uma “falsa representação
histórica”, são mais convenientes as interpretações que centram a sociedade sob o
controle intangível de seus “líderes criminosos”, completamente incapaz de se
levantar “contra a tirania de violência nazi-socialista”, que outras que encontram
traços de responsabilidade no próprio corpo social51.
Da mesma superficialidade padecem os exames históricos sobre a
resistência que corroboraram a divisão opressores-oprimidos e “engoliram por inteiro
o mito de onipotência e eficiência”, eis que não perpassarem a “ofuscação
propagandística” e deixaram de analisar “os procedimentos de fato do „Estado
Discricionário‟ (Massnahmenstaat), sua topografia regional, a forma como estava
incrustado na sociedade e, acima de tudo, as realidades de suas práticas
cotidianas”. Desta feita, “(a) história da Gestapo tornou-se a estória de sucesso
unidimensional dos onipotentes super-homens [vestidos] de preto”52.
Deve-se ter em conta que uma grande gama de autores deixou-se levar
pela faceta ideológica proposta pelo governo nazista e impressionou-se pela
“monstruosidade da Gestapo”, sem, contudo, descrever como se dava a prática de
suas operações. “Comum a todos estes estudos é o fato de que suas avaliações
estão alicerçadas não em estudos empíricos, mas substancialmente em um sistema
de suposições especulativas”, as quais desconhecem as interações entre “a polícia
política e a sociedade” e apóiam-se numa história que fez amplo uso de uma
compreensão horizontalizada e superficial, situada exclusivamente no comando
50
Ibidem, p. 167-168.
Ibidem, p. 168-169.
52
Ibidem, p. 169.
51
berlinense e que ignorava os demais padrões regionais53. Segundo Klaus-Michael
Mallmann e Gerhard Paul, pouca importância foi dada à “estrutura, equipamentos e
atividades” da Gestapo em níveis descentralizados, o mesmo podendo ser dito da
atenção “aos seus problemas, equívocos e sucessos”54.
Ao contrário de incitar novas investigações, estas perspectivas limitadoras
acabaram por imprimir na polícia secreta a marca de um “„big brother‟ onipotente”;
outrossim, a “vigilância continuada e o terror precisamente direcionado tornaram-se
uma espécie de senha ou „elo perdido‟” para os autores, cujo expediente garantiu
uma “explicação preguiçosa para o fato de que a resistência havia sido esmagada,
frustrada ou, simplesmente, não havia existido”55.
Todavia, um novo panorama aparenta poder ser projetado a partir das
análises de escritores como Detlev Peukert, Inge Marssolek, René Ott, Reinhard
Mann, Robert Gelatelly e Burkhard Jellonek, além dos já mencionados Mallmann e
Paul, posto terem oferecido à comunidade universitária e ao público geral opiniões
que divergem das correntes tradicionais, colocando em xeque concepções que
davam a impressão de serem, outrora, imutáveis, ante o arraigamento de teorias
que, paradoxalmente, careciam elas mesmas de raízes. Retirada a máscara de um
“sujeito propagandisticamente inflado” e passando-se a uma percepção segundo
“sua normalidade e rotina diária”, a Gestapo nem de longe lembra as descrições
comumente aceitas, até porque suas próprias forças “dificilmente poderia(m) tê-la
viabilizado a cumprir o papel do „Big Brother‟ ubíquo”56.
Uma vez alquebrada a corriqueira representação orwelliana, outro
aspecto exsurge, não menos estarrecedor: a denunciação de populares por
populares, fator que foi “quase ignorado até agora, mas assustador em sua
extensão”. Era ela, pois, “que mantinha o maquinário do terror em movimento e
constituía um componente central da „constituição‟ interna do Terceiro Reich”57, em
oposição aos setores administrativos e de inteligência da organização, os quais, em
sua
maioria,
eram
extremamente
carentes
e
deficitários58.
Apenas
exemplificativamente, na região que era abrangida pelo escritório regional de
Düsseldorf e que tinha sob seu controle quatro milhões de pessoas, somente 281
53
Ibidem, p. 170-171.
Ibidem, p. 171.
55
Ibidem, p. 172.
56
Ibidem, p. 172-173.
57
Ibidem, p. 173.
58
Ibidem, p. 173-175 e 176-179.
54
(duzentos e oitenta e um) agentes podiam ser convocados em março de 1937,
incluídos nestes todos os que estavam lotados nas subestações, enquanto
Hannover e Bremen tinham, respectivamente, quarenta e dois e quarenta e quatro
empregados59.
Até o começo da guerra, ainda que de forma reduzida, a polícia secreta
alemã possuía em seu contingente pessoal treinado e razoavelmente qualificado, o
que ajudava a manter a aparência de um organismo único, coeso e de amplo
alcance, apesar de sua realidade estar muito distante da propaganda. Por outro
lado, “(e)m termos quantitativos, a Gestapo mal representava uma enfermaria do
fanatismo nacional-socialista”, não tendo muitos de seus membros nem mesmo
participado do NSDAP – em Saarbrücken, “apenas 10 por cento daqueles ali
empregados pertenciam à SS em 1935, enquanto 50 por cento eram membros do
partido”. Mais: enquanto “(o) número daqueles que não pertenciam a nenhuma
organização nazista era de 40 por cento, incrivelmente alta”, havia até mesmo exmembros de partidos republicanos e cristãos praticantes entre seus funcionários,
algo que indica, ao menos, uma ideologia heterogênea entre seus participantes60.
A deflagração do conflito externo trouxe consigo ainda mais dificuldades
operacionais, obrigando a Gestapo a trazer para seu círculo pessoal “menos
tecnicamente competente que os experts em criminologia” com quem estava
habituada; eram, porém, “muito mais ideológicos”. “Este declínio em prática policial
inteligente estimulou a substituição dos métodos policiais herdados por confissões
extorquidas com o uso da força”. Daí, então, que “a realidade da Gestapo começou
a se ajustar à sua popular concepção de uma gangue de criminosos brutais”61.
Todos estes empecilhos, das mais diversas ordens, demandavam outras
explicações para que as garras (não tão) afiadas da polícia política continuassem
provocando danos. E eis, então, que foi colocado em questão o papel das denúncias
espontâneas da população. Ainda que a prática tivesse variado em grau “de acordo
com o período, a região e o tipo de comportamento criminalizado”, ela “representava
provavelmente o mais importante recurso do conhecimento da polícia estatal, tanto
quantitativa, como qualitativamente”, a ponto das denúncias representarem 69,5%
(sessenta e nove inteiros e cinco décimos por cento) “de todos os casos que foram
59
Ibidem, p. 174.
Ibidem, p. 175-176.
61
Ibidem, p. 176-177.
60
colocados sob a categoria de „traição‟ ou „alta traição‟ pelo promotor público de
Saarbrücken”62.
Não se pode olvidar que o fanatismo político tinha uma posição de
destaque entre as razões que levavam às denúncias, não sendo, todavia, a única;
“de regra, eram visões conflitantes, desejos de emancipação e sede de vingança
que desempenhavam este papel”63. Eram, portanto, causas humanas (demasiado
humanas, alguém poderia dizer) que compunham o substrato das motivações dos
denunciantes.
Ainda que se possa imaginar que alguns “informantes, homens e
mulheres,
não
estivessem
completamente
a
par
de
todas
as
possíveis
conseqüências de suas ações”, não se pode ignorar que havia situações “nas quais
o extermínio físico não era apenas aceito como possível resultado da denúncia,
mas, na verdade, era deliberadamente pretendido”. Neste mister, é possível
mencionar o caso da “operária que em Saarbrücken acusou seu marido, um excomunista, de ouvir a „rádio inimiga‟”; por quê? Para que fosse possível ao amante
adentrar seu lar. “Ela disse ao filho, „Seu pai irá embora e você ganhará um muito
melhor‟”64.
De qualquer forma, um padrão foi percebido não somente pelo regime –
que passou, inclusive, a punir denúncias flagrantemente mentirosas, até mesmo
com o envio a campos de concentração –, como também por “atentos
correspondentes estrangeiros”: “(o) fenômeno de denunciação em massa (...) não
era algo que era forçado pelo regime por meio de uma lei ou de diretivas
importantes; era uma questão puramente de livre-arbítrio”. Curiosamente, ao mesmo
tempo em que as denúncias eram de suma importância para o regime – e para a
polícia secreta, em especial – “elas também causavam uma grande sobrecarga nas
capacidades da Gestapo e comumente prendiam os escritórios distritais à busca de
interesses
pessoais”.
Portanto,
“nesta
medida,
as
denúncias
eram
tanto
problemáticas como indispensáveis”65.
Havia uma exceção, contudo: a “denunciação provou-se uma arma quase
inútil” quando relativa a grupos conspiratórios de partidos políticos, no caso, de
comunistas e social-democratas. Contra estes, a Gestapo dependia de informantes
62
Ibidem, p. 179.
Ibidem, p. 180.
64
Idem.
65
Ibidem, p. 180-181.
63
pagos, cujo número era bastante restrito. Ademais, esta longa manus encontrava-se
por demais debilitada, eis que os dados repassados raramente eram passíveis de
serem utilizados, sem contar na desconfiança do próprio movimento com relação a
alguns categorias de agentes66.
Apesar da fragilidade das informações recebidas dos canais semiparalelos, as quais possibilitavam apenas prisões individuais, “a prática de
„interrogatório sob tortura‟ (verschärfen Vernehmung), provou-se um instrumento
investigativo excepcional para a Gestapo”, a ponto de permitir detenções em massa
através de indicações dadas por aqueles que sob ela eram questionados67.
Noutra senda, a inteligência provida por agências ligadas ao Estado
subsidiava dados de importância fundamental, especialmente naquela que advinha
de “registros populacionais, departamentos de trabalho e saúde, ferrovias e correios,
polícia criminal e patrulha local”, mesmo que a cooperação variasse regionalmente
e, por vezes, resultasse em atritos entre as autoridades68.
Enfim, o que se pode perceber das descrições acima coletadas é que a
Gestapo, longe de ser uma Terrormaschine de peças teutonicamente engendradas e
ordenadas, mostrava-se amplamente fragmentada. Padecia fortemente, pois, das
falhas internas nos setores administrativos e de inteligência, não possuindo nem
mesmo uma ideologia unificada. Suas ações dependiam invariavelmente das
denúncias populares e dos demais órgãos do governo e seus funcionários, que nem
sempre se dispunham a ajudar e servir de empregados da polícia política.
A escamoteação de suas (reconhecidas) deficiências69 por meio da
ferramenta propagandística – a qual jogou uma nuvem de fumaça sobre o regime e
a sociedade – mostrou-se quase infalível, diminuindo notoriamente as chances de
levante e sustentando uma das facetas que desaguaram na caracterização
acadêmica do “totalitarismo” nazista. Uma população acuada e desejosa de cumprir
seus “deveres” (afinal, Estado e súdito confundiam-se num só ente) estava mais
propensa a contribuir com os trabalhos, ainda que a essência fosse composta de
interesses das mais diversas ordens e por vezes correspondesse, obliquamente, ao
fanatismo nacionalista.
66
Ibidem, p. 181-182.
Ibidem, p. 182-183.
68
Ibidem, p. 184.
69
Ibidem, p. 185-187.
67
Sem a colaboração expressa e ininterrupta das massas e sem os dados
subsidiados por outros setores estatais, “a Gestapo estaria virtualmente cega”; sem
a cooperação “da polícia criminal, das patrulhas e da força policial, ela não teria
condições de executar as tarefas às quais havia sido destinada”70. Havia, assim,
uma cumplicidade intrínseca com os “crimes de massa”, conceito este que pode
passar a ser tomado sob duas vertentes: “estes eram crimes que afetavam as
massas alemãs, mas uma grande parte da população alemã também participava
nestes crimes”71.
Não obstante, é possível argüir que a figura tradicional se formou a partir
do ingresso de material humano menos tecnicamente preparado e mais dado a
questões ideológicas, cujos métodos eram francamente perniciosos, ao mesmo
tempo em que o aparelho judicial, mesmo corroborando muitos dos atos praticados,
ficava à margem de parcelas significativas das investigações e punições ditadas
pela Gestapo, que galgara importância na mesma medida em que suas atribuições
cresciam
e
suas
possibilidades
de
cumpri-las,
ao
menos
formal
e
independentemente, arrefeciam. Este argumento, todavia, é erguido em pilares
ocos,
e
se
revela
frágil
tão
logo
se
proponha
a
analisar,
não
mais
macroscopicamente, mas ao nível das vicissitudes cotidianas do grupo, as quais
indicavam uma distância patente entre a panfletagem oficial e a concepção pública
de uma polícia big brother e as reais condições de insuficiência em que se
encontrava.
Ao serem percebidas estas contradições que se abatiam sobre a
realidade diuturna da polícia política, faz-se possível enveredar por novos caminhos
rumo ao Kern, ao centro do mito – caminhos estes que, por sinal, mostram-se tão
(ou mais) polêmicos e, quiçá, bizarros, que aqueles anteriormente abertos. Enquanto
são retiradas as capas de proteção que encobriam a justificativa para a débil, ou
quase inexistente, resistência, bem como aquela que autorizara os autores, ao
menos até fins da década de 1970, a continuarem defendendo um discurso que
supervalorizava a ideologia disseminada pelo regime e protegia indiscutivelmente a
sociedade, elementos mais putrefatos – e, portanto, humanos – são liberados.
Fanatismo, sim; igualmente, ganância, luxúria, vaidade, preconceito, ira e soberba
podem ser arrolados como motivadores para a cumplicidade e condescendência da
70
71
Ibidem, p. 184-185.
Ibidem, p. 185.
população, que, inicialmente, se prostrou – ou teria, em momentos, se entregue? –
às ameaças, mas que também se mostrou bastante hábil no sentido de afastar sua
responsabilidade no pós-guerra pela via acadêmica, diretamente ou por antepostas
pessoas, e colocá-la toda numa versão mitificada, supra-humana, da Gestapo. Daí
se poder dizer que esta
possuía um nível muito menor de sistematicidade e inteligência criminal que
a literatura anterior sugere, não sendo as possibilidades de vigilância tão
“totalitárias” que a resistência estivesse, desde o início, condenada à
catástrofe. A fragmentação interna do Massnahmenstaat e deficiências
estruturais de suas agências permitiram uma variedade de espaços livres e
72
nichos para os quais o povo poderia ter se retirado .
No lugar do mito de onipotência, onipresença e onisciência, em
substituição a esta montagem à lá Orwell à qual durante muito tempo se rendeu, e
descobrindo-se, empiricamente, que o castelo não era de pedra, mas de areia,
pode-se proceder a uma nova constatação: a de que, “ao invés da imagem de um
Estado capaz de uma vigilância (praticamente) perfeita de toda a população, nós
agora precisamos ver uma sociedade que produziu denúncias em massa”73.
O ofuscante e colossal Apolo, despido de seu uniforme de gala, revelouse, então, um homem de olhos e ouvidos falhos; suas mãos, apesar de ferruginosas,
são conduzidas por músculos atrofiados; os pés, descalços e feridos, se locomovem
por um terreno pantanoso e tenebroso; e por suas veias corre um sangue negro,
negro como pode ser a natureza humana.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não se supõe que, com o que foi coletado e descrito nas linhas acima, se
possam mudar opiniões, concepções ou entendimentos há muito inculcados,
entalhados que foram por inúmeras reflexões e considerações que têm como
assento alguns dos mais aclamados estudiosos dos Estados ditos “totalitários” e,
principalmente, do regime nacional-socialista germânico. Seria de uma audácia
estupenda – e estúpida – imaginar que tal empresa seria sequer possível.
Uma vez transpassados, porém, os argumentos de autoridade, e
buscadas novas fontes de pesquisa – que de fato se preocupem com aspectos
históricos mais empíricos e menos estritamente acadêmicos e que, por isso, trazem
72
73
Ibidem, p. 187.
Ibidem, p. 188.
consigo a possibilidade de inéditas interpretações acerca do fenômeno nazista,
tomado aqui como um todo (Estado e sociedade) –, as profundas rachaduras do
muro tradicional começam a saltar aos olhos, fazendo-se improvável a continuidade
de sua mantença erguida sem algumas revisões e eventuais reparos.
De fato, se a idéia original de totalitário traz consigo, entre outras coisas,
a suposição de que não havia possibilidade de oferecer contraposição ao regime,
porque o terror que era impingido não permitia qualquer hesitação, dever-se-ia
pressupor que o Estado possuiria condições e agentes suficientes para que o medo
fosse disseminado em escala sem precedente. Era nesta visão – turva – que a
população queria acreditar, que a resistência fundava seus próprios fracassos e que
as pesquisas dividiam, binariamente, réus e vítimas, enquanto aquela promovia
denúncias em massa, esses pouco – ou quase nada – faziam, e estas protegem ora
seus autores, ora as duas primeiras categorias.
Havia – como ainda há – muitas suposições, e poucas demonstrações,
para que continuem a serem sustentadas tais versões. Para quê cogitar da origem
da violência no próprio povo, se ele estava, de maneira indefectível, “subordinado”
aos “nazistas do mau”? Por que não vislumbrar na ereção do mito da polícia secreta,
cujo suporte era estritamente propagandístico, um anteparo para a passividade e
ineficiência de movimentos de resistência? Qual a razão de esconder, por manobras
semânticas muitas vezes, a concupiscência, a corrupção e a intimidade que
resguardavam os interesses e as relações da Gestapo com a sociedade?
Não se quer – nem se pode esperar – que tais perguntas sejam passíveis
de respostas exatas, matemáticas. De fatos é “fácil” falar; difícil é entendê-los
apenas como uma das várias interpretações possíveis para o episódio que se
pretende descrever. Isenção não há: os interesses permeiam e, em parte, sufocam a
compreensão que se faz do mundo.
Se o trabalho servir ao seu propósito inicial, que é o de possibilitar uma
nova dimensão de estudos sobre o assunto, pois bem. Repise-se, ainda que pareça
enfadonho: não se quer promover idéias revisionistas ou levantar bandeiras a favor
do anti-semitismo, racismo, nacionalismo, ou quaisquer outros “ismos”; almejam-se,
sim, revisões, rediscussões, reestudos sobre este tema que, por espinhoso, acaba
perturbando e afastando novéis análises. Se não servir, ao menos, que projete
dúvidas sobre as considerações tomadas por habitualmente escorreitas.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. State of Exception (transl. by Kevin Attel). Chicago: The
University of Chicago Press, 2005.
ARENDT, Hannah. Ideology and Terror: a novel form of government. In: _____.
Origins of Totalitarianism, 2nd ed, 7th print. Cleveland: Meridian Book, 1962, p. 460479.
_____. On the Nature of Totalitarianism: An Essay in Understanding. Folder Title,
Hannah Arendt Papers, Manuscript Division, Library of Congress, Washington, D.C.
Disponível em <http://memory.loc.gov/cgibin/ ampage?collId=mharendt_pub&file
Name=05/051930/051930page.db&recNum=0> e seguintes. Acesso em 03/09/2009.
_____. The Great Tradition and the Nature of Totalitarianism, lecture 4. Folder Title,
Hannah Arendt Papers, Manuscript Division, Library of Congress, Washington, D.C.
Disponível
em
<
http://memory.loc.gov/cgibin/ampage?collId=mharendt&file
Name=05/05145a/05145apage.db&recNum=0> e seguintes. Acesso em 03/09/2009.
_____. Totalitarianism in Power. In: _____. Origins of Totalitarianism, 2nd ed, 7th
print. Cleveland: Meridian Book, 1962, p. 389-459.
BELLO, José Maria.
PROGRESSO, 1956.
Democracia
e
Anti-Democracia.
Salvador:
Livraria
CREW, David F. General Introduction. In: _____ (ed.). Nazism and German Society:
1933-1945. New York: Routledge, 1994, p. 01-37.
FRIEDRICH, Carl J.; BRZEZINSKI, Zbigniew K. Totalitarismo e Autocracia (trad.
Donaldson M. Garschagen). Rio de Janeiro: Edições GRD, 1965.
KOHN, Jerome. Totalitarianism: The Inversion of Politics, part 3. Disponível em
<http://memory.loc.gov/ammem/arendthtml/essayb3.html>. Acesso em 02/09/2009.
MALMANN, Klaus-Michael; PAUL, Gerhard. Omniscient, omnipotent, omnipresent?
Gestapo, society and resistance. In: CREW, David F (ed.). Nazism and German
Society: 1933-1945. New York: Routledge, 1994, p. 166-196.
NEUMANN, Franz. Estado Democrático e Estado Autoritário (trad. Luiz Corção). Rio
de Janeiro: Zahar Editôres, 1969.
SCHUMANN, Frederick L. The Uses of Violence. In: _____. Hitler and the Nazi
Dictatorship: A Study in Social Pathology and the Politics of Fascism. London: Robert
Hale & Company, 1936, p. 287-311.
VILLA, Dana R. Introduction: the development of Arendt‟s political thought. In: _____
(ed.). The Cambridge Companion to Hannah Arendt. Cambridge: Cambridge
University Press, 2001, p. 1-21.
ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado
Coutinho).3ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997.
(trad. Karin Praefke-Aires

Documentos relacionados

Imprimir artigo

Imprimir artigo crise espiritual permanece sempre4 vaga e equívoca, e repleta de possíveis incompreensões. Por outro lado, uma vez que as condições prévias da dominação totalitária são condições gerais da época, n...

Leia mais