Visualização da dissertação de Camila Soares Lippi - Direito
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Visualização da dissertação de Camila Soares Lippi - Direito
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CAMILA SOARES LIPPI O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA RUANDA SOB UMA PERSPECTIVA DE GÊNERO: um estudo do caso Akayesu RIO DE JANEIRO 2011 Camila Soares Lippi O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA RUANDA SOB UMA PERSPECTIVA DE GÊNERO: um estudo do caso Akayesu Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Professor Dr. Luiz Eduardo Figueira. 2011 2 Lippi, Camila Soares. O Tribunal Penal Internacional sob uma perspectiva de gênero: um estudo do caso / Camila Soares Lippi. – 2011. 124 f. Orientador: Luiz Eduardo Figueira. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Faculdade de Direito. Bibliografia: f. f. 107-124. 1. Direito Internacional Público- Dissertação. 2. Teoria do Direito I. Luiz Eduardo Figueira. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas. Faculdade de Direito. III. Título. CDD 341.1 Camila Soares Lippi O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA RUANDA SOB UMA PERSPECTIVA DE GÊNERO: um estudo do caso Akayesu Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito. Aprovada em, _____________________________, por: Professor Dr. Luiz Eduardo Figueira Professora Dra. Luciana Boiteux de Figueiredo Professor Dr. Marco Aurélio Gonçalves Ferreira Professora Dra. Vanessa Oliveira Batista 2 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho à minha família, mais especificamente minha mãe, tias e avós, pelo apoio que me deram desde que voltei ao Rio de Janeiro para cursar o ensino superior e, posteriormente, o mestrado. Dedico também esse trabalho aos amigos que me apoiaram nesta árdua tarefa que foi escrever esta dissertação, respeitando a minha clausura quando era necessário, e me retirando dela quando mais necessário ainda (inclusive me proibindo de mencionar a palavra dissertação- vocês sabem quem são, nem preciso mencionar nomes). 3 AGRADECIMENTOS Gostaria de tecer um agradecimento, em primeiro lugar, aos meus dois orientadores: à professora Luciana Boiteux, que foi minha orientadora no meu primeiro ano de mestrado (embora a orientação não tenha sido oficializada, houve orientação de fato), e ao professor Luiz Eduardo Figueira, que, após a saída dessa professora do PPGD-UFRJ, aceitou assumir a orientação deste trabalho. Agradeço também aos membros da banca de qualificação (professoras Luciana Boiteux e Ana Lúcia Sabadell, e professor Luiz Eduardo Figueira) pelas críticas construtivas feitas naquela ocasião, que permitiram a elaboração de um melhor trabalho. Finalmente, agradeço aos professores que integraram a banca de defesa desta dissertação (professores Luciana Boiteux, Vanessa Batista e Marco Aurélio Gonçalves Ferreira), por seus preciosos comentários, que me permitiram fazer uma versão melhorada deste trabalho, devidamente revisado. 4 RESUMO LIPPI, Camila Soares. O Tribunal Penal Internacional sob uma perspectiva de gênero: um estudo do caso Akyesu. Rio de Janeiro, 2011. Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. Este trabalho pretende estudar o caso Akayesu, do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, sob uma perspectiva de gênero, mais especificamente a sua decisão, pioneira no Direito Internacional, de considerar que o estupro pode constituir genocídio. Pretende-se analisar o impacto das estratégias da sociedade civil global sobre os demais atores envolvidos nesse caso (Escritório do Procurador e Juízes da Câmara de Julgamento), e quais são as implicações desse caso para o Direito Internacional e para as abordagens feministas do Direito (dada a incorreção de se falar numa única teoria feminista do Direito). Quanto ao primeiro objetivo, há indícios de que houve impacto das estratégias da sociedade civil global tanto sobre o Escritório do Procurador quanto sobre a Câmara de Julgamento. Porém, ressalva-se que a pesquisadora não teve acesso ao campo, e, por isso, adotou-se o método indiciário. Quanto ao segundo objetivo, verificou-se que, no campo do Direito Internacional, essa decisão de considerar que o estupro pode constituir genocídio, embora essa conduta não esteja expressa na Convenção sobre Genocídio, de 1948, reinterpretou uma norma criada num contexto de invisibilidade e ausência das mulheres no Direito Internacional, atribuindo-lhe novos significados e, ao não enfatizar as conseqüências para a mulher como reprodutora, deixou de introduzir nesse ramo jurídico estereótipos de gênero. As suas implicações em relação às abordagens feministas do Direito são o fato de esse caso, em razão da interseção entre gênero e etnia que fica nele presente, permitir repensar vários conceitos presentes em diversas abordagens feministas do Direito, pelo fato de eles não resistirem ao teste que o caso 5 Akayesu representa a eles, tais como a crítica da distinção público/privado; a crítica das dicotomias binárias; patriarcado; e o estupro como tendo por bem jurídico protegido a liberdade individual. Palavras-chave: Tribunal Penal Internacional para Ruanda; caso Akayesu; gênero; genocídio; estupro. 6 ABSTRACT LIPPI, Camila Soares. O Tribunal Penal Internacional sob uma perspectiva de gênero: um estudo do caso Akayesu. Rio de Janeiro, 2011. Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. This thesis aims studying the Akayesu case, of the International Criminal Tribuanl for Rwanda, under a gender perspective, more specifically its pioneer decision in International Law of considering that rape can constitute genocide. It aims studying the global civil society’s strategies over the other actors of this case (Office of the Prosecutor and Trial Chamber), and which are this case’s implications to International Law and to the feminist approaches to Law (since it is incorrect speaking of a single feminist theory of Law). About the main objective, there is some indication that global civil society’s strategies had an impact both over the Office of the Prosecutor and the Trial Chamber. But we emphasize that the researcher did not have access to the field, reason for which it was adopted the evidentiary method. As for the second objective, it was verified that, in the field of International Law, this decision of considering that rape can constitute genocide, although this conduct is not expressed in the 1948 Genocide Convention, reinterpreted a norm created on a context of invisibility and absence of women in International Law, assigning it new meanings, and, when it did not emphasize the woman’s role as reproducer, did not reinforce law gender stereotypes in this field. The implications of the Akayesu case to the feminist approaches of Law, due to the intersection between gender and ethnicity which is present in it, allows us to rethink many concepts used in varied feminist theories of Law, for the fact they do not resist the test the Akayesu case represent to them, such as: the criticism of the public/private 7 distinction; the criticism of the binary dichotomies; patriarchy; as rape as being a violation of individual values. Key-words: International Criminal Tribunal for Rwanda; Akayesu case; gender; genocide; rape. 8 SUMÁRIO Lista de siglas____________________________________________________ p. 11 Introdução______________________________________________________ p. 13 I- O crime de genocídio________________________________________ p. 20 1.1. O surgimento do conceito de genocídio e da Convenção de 1948_____ p. 20 1.2. Bem jurídico protegido______________________________________ p. 32 1.3. Elemento subjetivo__________________________________________ p. 34 1.4. Elemento objetivo__________________________________________ p. 36 1.5. Decisões da Corte Internacional de Justiça sobre genocídio__________ p. 39 II- Contextualizado o caso Akayesu_______________________________ p. 42 2.1. Documentos internacionais sobre direitos das mulheres da década de 1990___________________________________________________________ p. 42 2.1.1. Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a mulher__________ p. 43 2.1.2. A Conferência de Viena sobre Direitos Humanos___________________ p. 45 2.1.3. Conferência de Pequim_______________________________________ p. 47 2.2. O genocídio em Ruanda________________________________________ p. 50 2.3. O debate sobre a situação em Ruanda no Conselho de Segurança da ONU: genocídio?______________________________________________________ p. 59 2.4. Violência sexual durante o genocídio ruandês_______________________ p. 62 III- O estupro enquanto genocídio no caso Akayesu______________________ p. 67 3.1. O caso Akayesu______________________________________________ p. 67 3.2. O impacto das estratégias da sociedade civil global__________________ p. 75 3.2.1. A sociedade civil global__________________________________ p. 76 9 3.2.1.1. O relatório Shattered Lives da Human Rights Watch___________ p. 76 3.2.1.2. O parecer amicus curiae de uma coalizão feminista____________ p. 78 3.2.2. O papel do Escritório do Procurador________________________ p. 82 3.2.3. A participação dos juízes_________________________________ p. 88 3.3. Debates feministas sobre o caso Akayesu__________________________ p. 89 Conclusão______________________________________________________ p. 103 Referências_____________________________________________________ p. 107 10 LISTA DE SIGLAS AG- Assembléia-Geral das Nações Unidas CICV- Comitê Internacional da Cruz Vermelha CS- Conselho de Segurança das Nações Unidas CIJ- Corte Internacional de Justiça DIDH- Direito Internacional dos Direitos Humanos DIH- Direito Internacional Humanitário DPI- Direito Penal Internacional DPKO- Departamento de Operações Peacekeeping das Nações Unidas ECOSOC- Conselho Econômico e Social das Nações Unidas EUA- Estados Unidos da América FPR- Força Patriótica de Ruanda FNI- Força Neutra Internacional ONG- Organização Não-Governamental ONU- Organização das Nações Unidas OUA- Organização da Unidade Africana RGF- Forças Governamentais Ruandesas SG- Secretário-Geral das Nações Unidas TPI- Tribunal Penal Internacional TPII- Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia TPIR- Tribunal Penal Internacional para Ruanda 11 UA- União Africana UNAMIR- Missão das Nações Unidas de Assistência a Ruanda URSS- União Soviética 12 INTRODUÇÃO O objeto desta dissertação é a construção do estupro como crime de genocídio no caso Akayesu, do Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR) 1. Pretende-se analisar, sob essa perspectiva, uma grande inovação feita pelo Tribunal: além de ser indicado pela literatura especializada como a primeira condenação por genocídio já proferida, trata-se também da primeira vez em que se decidiu que o estupro pode constituir genocídio, embora originalmente, em todos os instrumentos internacionais existentes que criminalizavam a prática desse crime à época (Convenção para a Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio, Estatuto do TPIR, Estatuto do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia – TPII-, Estatuto de Roma para o Tribunal Penal Internacional –TPI), essa conduta não estava listada entre as que constituíam o delito de genocídio. Justificando o recorte Embora o TPIR provavelmente esteja próximo de ser extinto, por ser, como a própria terminologia ad hoc indica, limitado no espaço e no tempo, o estudo de sua jurisprudência é relevante, pois, em virtude do artigo 21, parágrafo 2 do Estatuto de Roma, do TPI, casos 1 O TPIR possui natureza de órgão subsidiário em relação ao Conselho de Segurança da ONU, órgão principal dessa organização. As competências rationae personae, rationae temporis e rationae loci deste Tribunal estão dispostas nos arts. 1º e 7º do seu Estatuto. O art. 5º desse mesmo instrumento dispõe sobre competência rationae personae. Em relação a ela, o TPIR só pode julgar pessoas naturais, que devem ser cidadãos ruandeses, pois, conforme os arts. 1º e 7º do Estatuto, só podem ser julgados pelo Tribunal pessoas responsáveis por sérias violações de direito humanitário cometidas por cidadãos ruandeses. A competência rationae temporis do TPIR só recai nos crimes cometidos no ano de 1994, ano de criação do Tribunal, e em que houve o grande genocídio em Ruanda (apesar de haver denúncias no sentido de que alguns crimes contra a humanidade foram cometidos em anos anteriores, razão pela qual o governo de Ruanda queria que essa competência retroagisse a 1990). Não podem ser punidas violações de direito humanitário cometidas após esse ano, apesar de haver denúncias de que elas ainda ocorrem (mas não caracterizam genocídio). Portanto, reside aí uma diferença entre a competência rationae temporis desse Tribunal em relação ao TPII, cuja competência retroage a 1991, apesar de ter sido criado em 1993, e que não adota uma data em que termina sua competência. Trata-se, no caso iugoslavo, de uma fórmula aberta, na qual a competência rationae temporis do Tribunal tem uma data para começar, e não uma para terminar. Isso é resultado da participação do recém-empossado governo tutsi no processo de negociação do Estatuto do TPIR, que não tinha interesse em uma extensão da competência rationae temporis para depois do genocídio (SHRAGA, ZACKLIN, 1996, p. 506-507). Já a competência rationae loci do Tribunal recai sobre crimes cometidos não só no território de Ruanda (tanto em sua superfície terrestre quanto em seu espaço aéreo), mas também no território de Estados vizinhos. A competência rationae materiae recai sobre os crimes de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, serão discutidas no Capítulo I. 13 submetidos a esse Tribunal podem ser interpretadas à luz da jurisprudência dos tribunais ad hoc, já que esse dispositivo prevê que essa jurisprudência é fonte do direito para o TPI. Além disso, o operador do direito brasileiro deve conhecer essa jurisprudência, pois Brasil se submeteu ao Estatuto de Roma e à jurisdição do TPI, através da ratificação do Estatuto, em 2002, e também pela Emenda Constitucional nº 45, que insere um §4º ao art. 5º da Constituição Brasileira de 1988 (segundo o qual o Brasil se submete à jurisdição do TPI). Além disso, há um projeto de lei que visa implementar dispositivos do Estatuto de Roma (PL 4038/2008) no âmbito interno. Além disso, há uma marginalização da África no contexto internacional. Quanto ao caso específico em análise, o caso Akayesu, optou-se por ele por ser indicado pela literatura especializada como a primeira condenação já proferida sobre genocídio, o primeiro julgado a lidar com questões relativas a gênero dos dois tribunais ad hoc, a primeira vez que se adotou uma definição de estupro no Direito Internacional, e a primeira vez que um órgão jurisdicional considerou que o estupro e a violência sexual podem constituir genocídio. Levando-se isso em consideração, percebeu-se que esse caso era digno de uma análise mais aprofundada. Problemas O problema do qual se parte são as implicações, no Direito Internacional e nas abordagens feministas do Direito, trazidas pela decisão pioneira do TPIR, no caso Akayesu, de que o estupro pode constituir genocídio, e quais são os elementos que esse caso traz para se repensar certos conceitos tradicionalmente presentes em diversas abordagens feministas. Outro problema que surge é o impacto da sociedade civil global 2 nessa decisão. O que se 2 Mônica Herz e Andrea Hoffman conceituam a sociedade civil como “espaço de atuação e de pensamento ocupado por iniciativas de indivíduos ou grupos, de caráter voluntário e sem fins lucrativos, que perpassam as fronteiras dos Estados” (HERZ, HOFFMANN, 2004, p.226), excluindo-se dessa forma, instituições que visem o lucro, como as corporações transnacionais. Além disso, sociedade civil não é sinônimo de organização nãogovernamental: essas constituem apenas a modalidade mais institucionalizada de sociedade civil (HERZ, HOFFMANN, 2004, p. 226-227). As formas de organização da sociedade civil que intervieram nesse processo foram uma ONG (definidas por Herz e Hoffman como “organizações voluntárias organizadas por indivíduos e grupos que contam com um documento constituinte e uma sede permanente”) (HERZ, HOFFMANN, 2004, p. 228), a Human Rights Watch, e uma coalizão transnacional (ou seja, “ligações entre diversos tipos de organizações da sociedade civil que, embora se mantenham independentes organizacionalmente, atuam em conjunto para promover uma determinada atividade”) (HERZ, HOFFMANN, 2004, p. 228). 14 procura verificar é se houve impacto desse ator tanto na estratégia persecutória em relação a crimes sexuais, quanto na decisão da Câmara de Julgamento 3 de considerar que o estupro constitui genocídio. Objetivos Um dos objetivos desta dissertação é verificar as implicações, no Direito Internacional e nas abordagens feministas do Direito, trazidas pela decisão pioneira do TPIR, no caso Akayesu, de que o estupro pode constituir genocídio. Pretende-se também, através desse estudo de caso, investigar como o movimento feminista tem colaborado na construção do Direito Penal Internacional4. Outro objetivo é estudar a relevância desse caso analisado como fonte de interpretação do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, em relação ao crime de genocídio, dado que, conforme mencionado anteriormente, a jurisprudência dos Tribunais Internacionais ad hoc constitui fonte para a aplicação do Direito pelo TPI. 3 O TPIR possui quatro órgãos: a Câmara de Julgamentos (Trial Chamber), com competência para julgar, em primeira instancia, os acusados perante a Corte, a Câmara de Apelações (Appeals Chamber), o Escritório do Procurador (Office of the Prosecutor), órgão investigativo e acusatório, e a Secretaria (Registry), órgão administrativo. Inicialmente, tanto a Câmara de Apelações quanto o Procurador eram compartilhados com o TPII, o primeiro, tanto por motivos de economia financeira quanto pela questão da uniformização do Direito Penal Internacional, e o segundo apenas por motivos de economia financeira. A Câmara de Apelações continua sendo compartilhada, mas, devido à Resolução 1512 de 2003 do CS, o TPIR passou a ter um Procurador autônomo, não mais compartilhando o do TPIR. Em agosto de 2002, através da Resolução 1431, o CS resolveu incorporar 4 juízes ad litem (um juiz que participa apenas em algum caso em particular ou em um número limitado de casos, e que não possui os mesmos poderes que os demais juízes), podendo ser incorporados, no máximo quarto deles às Câmaras de Julgamento. Em 2003, o Conselho adotou a Resolução 1512 e aumentou o número de juízes ad litem que servem no Tribunal de quatro para nove. Já na Resolução1855 de 2008, o CS decidiu que o SG pode indicar, quando houver recursos, juízes ad litem adicionais a requerimento do Presidente do Tribunal, de forma a complementar os julgamentos existentes ou a conduzir julgamentos adicionais, sendo que o número total de juízes ad litem indicados pelas Câmaras pode exceder, temporariamente, o máximo de nove, previsto no art. 11, parágrafo 1º, do Estatuto do TPIR, para um máximo de 12 a qualquer tempo, retornando ao máximo de nove em 31 de dezembro de 2009. Durante o julgamento do caso em análise, ainda não havia os juízes ad litem, havendo tão somente os permanentes. 4 Parte-se aqui do conceito de Direito Penal Internacional de M. Cherif Bassiouni. Para o autor, essa seria uma área do conhecimento jurídico interdisciplinar entre Direito Penal e Direito Internacional (BASSIOUNI, 2008, p. 4), ao contrário do que defendem outros autores, segundo os quais haveria separação entre as áreas de Direito Penal Internacional e Direito Internacional Penal. Celso Mello, por exemplo, distingue entre Direito Internacional Penal, área de conhecimento do Direito Internacional Penal, e Direito Penal Internacional, área de conhecimento do Direito Penal. Porém, o próprio autor reconhece que essa distinção não é clara na prática (MELLO, 2004, p. 1009-1010), o que nos faz questionar sua utilidade e, por isso, considerar que se trata de uma única área do conhecimento, de caráter interdisciplinar. 15 Marco teórico Quanto ao marco teórico, a pesquisa se baseia nas abordagens feministas do Direito, com ênfase nas abordagens feministas de Direito Internacional. Embora não se possa falar de um único ponto de vista feminista, nem de uma teoria feminista uniforme, e sim de uma multiplicidade de pontos de vista (inclusive, sobre o objeto desta dissertação, ou seja, a decisão pioneira do TPIR de considerar que o estupro pode constituir genocídio), partiu-se de alguns conceitos utilizados por alguns autores/autoras. Dentre eles, e sobre o qual há certo consenso dentre as variadas abordagens feministas, está o de gênero, categoria referente às idéias de “masculinidade” e de “feminilidade”, ou seja, das interpretações culturais sobre o sexo biológico (CHARLESWORTH, 1999, p. 379). Dentro ainda de uma perspectiva feminista, utiliza-se o conceito de patriarcado, cujo significado não é tão pacífico entre as feministas, mas é amplamente utilizado por essas autoras. Aqui, esse conceito é entendido como uma forma de opressão que expressa a interseção entre raça, classe, gênero e orientação sexual, e não englobando apenas a dominação de homens contra mulheres (VAN MARLE; BONTHUYS 2007, p. 21). A corrente teórica feminista adotada, por perceber-se, ao final do estudo, que é a que melhor fornece elementos para pensar o caso em tela, é o feminismo pós-moderno. Essa corrente, conforme seu próprio nome sugere, parte do pós-modernismo, ou seja, o questionamento pós-moderno da crença moderna de que o pensamento racional asseguraria justiça. Na busca por direitos e princípios de justiça, o pós-modernismo foca no local, no particular e no contextual ao invés do universal. Ele prefere a contingência a categorias e princípios amplos. O feminismo pós-moderno não apenas chama atenção para as diferenças entre homens e mulheres, mas também para as diferenças entre mulheres, por não se acreditar em identidades fixas e inerentes, pois identidades são sempre construídas continuamente através de discursos concorrentes. Dessa forma, evita-se enxergar as mulheres como compartilhando de uma identidade feminina a-histórica, descontextualizada. Nessa concepção, conceitos de gênero, raça e classe que formam a base do pensamento feminista não são percebidos como sendo reais fora dos discursos que o criam (MARLE, BONTHUYS, 2007, p. 38). 16 Método O método escolhido foi o estudo de caso, como sugere o nome desta dissertação. Isso garante um estudo mais profundo de uma decisão, considerada pela literatura estudada, como inovadora, embora haja diferentes pontos de vista sobre essa inovação trazida pela decisão do TPIR de considerar que o estupro constitui genocídio. O estudo basear-se-á em fontes primárias, principalmente o julgado de primeiro grau do caso Akayesu, mas também em algumas Resoluções de órgãos da ONU, tratados, declarações aprovadas por Conferências da ONU, pareceres e relatórios emitidos por ONGs (Organizações Não-Governamentais), dentre outras. Além da pesquisa em fontes primárias, empreendeu-se revisão bibliográfica não somente sobre o caso em tela, mas também sobre o crime de genocídio, sobre normas internacionais relativas a direitos das mulheres, particularmente nos anos 1990, e sobre os acontecimentos que levaram ao genocídio em Ruanda em 1994, e sobre o genocídio, prestando especial atenção à violência sexual sofrida por mulheres durante o genocídio ruandês. Torna-se necessário fazer uma importante ressalva no tratamento dessas fontes: pela grande distância geográfica entre a pesquisadora e o campo que pretende estudar, não se pôde ter acesso aos autos do processo no TPIR contra Jean-Paul Akayesu; em função dessa mesma distância, não foi possível entrevistar membros da sociedade civil global, ou que tenham ocupado cargos no Escritório do Procurador ou na Câmara de Julgamentos naquele período. Dessa forma, essas fontes tiveram que ser tratadas através do método indiciário, do qual trata Carlo Ginzburg, ou seja, de forma a fornecer indícios que, juntos, dão certa idéia do que pode ter ocorrido (GINZBURG, 1989, p. 143-179). O marco cronológico da pesquisa é a instalação do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, dentro de sue contexto histórico: o pós-Guerra Fria, o genocídio em Ruanda e a Conferência de Pequim (marco da normatização das relações de gênero no Direito Internacional dos Direitos Humanos5). O universo de análise, por sua vez, é o Caso Akayesu. 5 Utiliza-se aqui a definição de direitos humanos enquanto “conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, buscam concretizar as exigências da dignidade, da liberdade, da igualdade, da fraternidade e 17 Haverá interdisciplinaridade com a Política Internacional, para que possa ser compreendida a dinâmica política que levou ao surgimento do Tribunal Penal Internacional para Ruanda. Percurso analítico Para esclarecer de que forma a decisão do TPIR, no caso Akayesu, de considerar que o estupro pode constituir genocídio, é inovadora no Direito Internacional, é necessário, antes de tudo, esclarecer o que é genocídio, e como esse crime era percebido antes do julgamento pioneiro do caso Akayesu. Nesse sentido, procura-se, no Capítulo I, analisar esse conceito, como ele surgiu no Direito Internacional, seus elementos subjetivo e objetivo, o bem jurídico por ele protegido, e a interpretação dada pela Corte Internacional de Justiça (CIJ) às normas sobre genocídio antes de ser proferida a sentença do caso Akayesu. O Capítulo II tem como objetivo principal situar o caso Akayesu, de forma a melhor a compreensão do leitor do contexto em que se insere o caso. Nesse sentido, são analisados, primeiramente, os instrumentos internacionais de proteção dos direitos das mulheres aprovados no âmbito da ONU na década de 1990. Posteriormente é analisado o genocídio em Ruanda: sua dinâmica, a percepção do conflito em Ruanda como genocídio, e a violência sexual cometida contra as mulheres tutsi no contexto do genocídio ruandês de 1994. O Capítulo III, por sua vez, adentra na análise do caso Akayesu. Num primeiro momento, busca-se descrever o caso, particularmente a decisão inovadora de que o estupro pode constituir genocídio. Depois, de forma a se verificar o impacto das estratégias da sociedade civil nos demais atores (juizes da Câmara de Julgamento e Procuradores). Finalmente, estuda-se o impacto da decisão do caso Akayesu de considerar que estupro pode constituir genocídio no Direito Internacional e nas abordagens feministas do Direito, através de um mapeamento do posicionamento de autoras/autores feministas sobre essa inovação trazida pelo caso Akayesu, e também de algumas autoras/autores feministas que, embora não mencionando propriamente o caso Akayesu, falam das implicações de se considerar que o da solidariedade humanas. ser reconhecidas positivamente em todos os níveis, sendo que tais direitos guardam relação com os documentos de direito internacional, por se referirem àquelas posições jurídicas endereçadas à pessoa humana como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional” (BATISTA, BOITEUX DE FIGUEIREDO RODRIGUES, PIRES, 2008, p. 9). 18 estupro pode constituir genocídio. Com base numa reflexão sobre esses posicionamentos e também no marco teórico proposto, são feitas considerações sobre as implicações de se considerar que o estupro pode constituir genocídio no Direito Internacional e nas abordagens feministas do Direito, indicando a necessidade de se repensar alguns dos conceitos propostos por várias dessas abordagens feministas. 19 I- O CRIME DE GENOCÍDIO Este capítulo se dedica ao estudo do crime de genocídio, mais especificamente das normas relativas a esse delito estabelecidas anteriormente ao julgado do caso Akayesu emitido pela Câmara de Julgamento do TPIR. Este crime está previsto no art. 2º do Estatuto do TPIR, que trata do crime de genocídio, é reflexo do art. II da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, de 1948. Os objetivos dela são obrigar seus Estados partes a criminalizar o genocídio e a punir os seus autores, e a adotar sistemas de cooperação judicial para a repressão desse crime (CASSESE, 2008, p. 127-128). Segundo esse tratado, seja o crime cometido em tempos de paz ou de guerra, o indivíduo que o cometeu deve ser julgado e punido. A Convenção atualmente faz parte do direito consuetudinário internacional (OBOTE-ODORA, 1999), ou seja, como prática geral reiterada ao longo do tempo, e aceita como sendo direito, o que a torna obrigatória inclusive para Estados que não a tenham ratificado. O estudo que se empreende aqui sobre esse delito se divide em cinco partes: a primeira aborda o surgimento do conceito de genocídio e da Convenção de 1948 sobre a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio; o segundo trecho trata do bem jurídico protegido pela tipificação desse delito; a terceira parte é sobre o elemento objetivo do crime de genocídio; no quarto item, aborda-se o elemento subjetivo desse crime; e finalmente, o último item versa sobre interpretações da Corte Internacional de Justiça quanto a esse delito em julgados anteriores à decisão do TPIR sobre o caso Akayesu. 1.1. O surgimento do conceito de genocídio e da Convenção de 1948 A Convenção de 1948 sobre Genocídio provavelmente não existiria hoje se não fosse o jurista polonês Raphael Lemkin. Judeu, Lemkin perdeu vários membros de sua família, e teve de se mudar para os Estados Unidos como refugiado após a Alemanha invadir a Polônia, e lá passou a lecionar na Duke University e aprofundou seus estudos, que já havia começado a desenvolver enquanto estudante quando ainda era jovem, sobre algo ainda sem nome e cujo termo ele viria a cunhar depois: o genocídio (POWER, 2007, 14-29). 20 Na Conferência para a Unificação do Direito Penal de Madri, em 1933, quando trabalhava como Promotor em seu país, Lemkin apresentou à comunidade jurídica internacional os conceitos de dois novos crimes internacionais: barbárie (barbarism) e vandalismo (vandalism). Barbárie seriam atos de exterminação dirigidos contra coletivos étnicos, religiosos ou sociais, por qualquer motivo. Dentre os elementos desse crime, estariam os seguintes: emprego de violência cruel; ação sistemática e organizada; a ação não se dirige contra pessoas determinadas, mas contra uma coletividade; a coletividade atacada está indefesa; e a intenção com que se realiza pode consistir em intimidação dessa população (LEMKIN, 1933). Já o vandalismo seria um ataque visando uma coletividade que poderia assumir também a forma da destruição sistemática e organizada da arte e da herança cultural nas quais as características únicas daquela coletividade são reveladas. O autor do crime não estaria somente destruindo a obra, mas o símbolo da cultura de uma determinada coletividade (LEMKIN, 1933). Porém, as idéias de Lemkin não foram acolhidas nessa Conferência de 1933. Ele enfrentou diversas dificuldades nesse sentido. Em primeiro lugar, o então Ministro das Relações Exteriores da Polônia, Joseph Beck, alinhado a Hitler, se recusou a permitir que Lemkin viajasse para Madri para defender suas idéias pessoalmente. O trabalho de Lemkin teve que ser lido em voz alta por terceiros em sua ausência. Em segundo lugar, Lemkin não conseguiu muitos aliados que defendessem suas propostas, no período entre guerras na Europa, economicamente deteriorada devido à crise de 1929, e com Estados isolacionistas e nacionalistas. Os Estados, no âmbito da Liga das Nações, falavam em “segurança coletiva”, mas nesse conceito, não consideravam que estava incluída a segurança dentro do Estado. Os juristas presentes argumentavam que o que Lemkin descrevia era algo que não acontecia com freqüência, não merecendo ser tipificado. Os representantes alemães chegaram a se levantar em protesto à sua apresentação. Os conceitos expostos por ele haviam sido fortemente influenciados pelo massacre de armênios perpetrado pelos turcos, e pelo assassinato de judeus na Polônia em pogroms. Então, em seu país natal, ele foi acusado de tentar melhorar a situação dos judeus na Polônia com sua proposta. O Ministro das Relações Exteriores do país o culpou por ter insultado os aliados alemães. Assim, logo após a Conferência, o governo anti-semita polonês o demitiu do cargo de promotor público adjunto, pois Lemkin se recusava a refrear as críticas que fazia em relação a Hitler (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 78; POWER, 2007, p. 22). 21 Um discurso proferido por Churchill em 19416 teria ressoado em Lemkin, quando este já se encontrava refugiado nos Estados Unidos, de modo a levá-lo a procurar uma nova palavra, na qual pudesse aperfeiçoar os conceitos que havia apresentado em Madri, além de agrupar todos os aspectos da proteção do grupo vitimado, bem como as atuações sistemáticas que os atingiriam, tomando como exemplo aquelas perpetradas pelos nazistas com fim de extermínio em massa (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 79). Assim, diante da impossibilidade de encontrar um termo mais preciso, Lemkin cunhou o termo “genocídio, em obra seminal de 1944, denominada Axis Rule in Occupied Europe. Isso ocorreu no final da Segunda Guerra Mundial, quando o mundo se encontrava chocado perante os acontecimentos na Alemanha nazista. Lemkin criou uma palavra que tinha o prefixo grego genos (que significa raça, ou tribo) com o sufixo de origem latina cídio (em inglês, cide), que deriva do vocábulo latino caedere, que significa matar. Ele caracterizou o delito de genocídio, o novo vocábulo criado, como uma velha prática que estava em sua etapa de desenvolvimento moderno, constituída por um plano coordenado que busca a destruição das bases fundamentais da vida dos grupos atacados, destruição essa que implica usualmente a desintegração das instituições políticas e sociais, da cultura do povo, de sua linguagem, de sua religião. A destruição do grupo seria o objetivo principal desse crime. Os atos seriam sempre, na concepção desse autor, direcionados aos grupos, e aos indivíduos que são selecionados por fazerem parte desses grupos (LEMKIN, 1944). Porém, o crime de genocídio não foi tipificado nem pela Carta do Tribunal Militar Internacional, nem pela do Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente (mais conhecidos como Tribunais de Nuremberg e de Tóquio), a despeito de a palavra ter sido rápida e amplamente adotada pelos jornalistas, lexicógrafos e políticos. O motivo para essa rejeição da tipificação desse delito foi o fato do conceito de genocídio abranger, na concepção de Lemkin, condutas praticadas tanto em tempos de guerra quanto em tempos de paz (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 82; SCHABAS, 2000, p. 35-37). Isso fica exemplificado pela 6 “Aqui há um demônio [Adolph Hitler] quem num mero espasmo de seu orgulho e desejo por dominação, pode condenar dois ou três milhões […] de seres humanos à morte violenta e rápida. Deixe que a Rússia seja apagada. Deixe que a Rússia seja destruída. Ordenem que o Exército avance. Tais foram os seus decretos. Assim, desde o Oceano Ártico até o Mar Negro, seis ou sete milhões de soldados foram pegos numa armadilha mortal. Pela primeira vez em sua experiência, o assassinato em massa se tornou não rentável ao agressor. Ele retalia com as piores crueldades. Enquanto seu Exército avança, distritos inteiros são exterminados. Porções de mil, literalmente porções de mil execuções a sangue frio estão sendo perpetradas por tropas alemãs sobre patriotas russos que defendem seu solo. Desde as invasões mongóis à Europa no século XVI, nunca houve uma carnificina tão metódica, impiedosa nessa escala, ou numa escala próxima. E esse é só o começo. Fome e pestilência ainda se seguirão na rotina sangrenta dos tanques de Hitler. Nós estamos na presença de um crime sem nome” (CHURCHIL, 1941. Tradução da autora. Grifo nosso). 22 seguinte fala do Promotor Peter Jackson, representante norte-americano nas Conferências de Londres de 1945, em posicionamento afirmado nas minutas dessas mesmas Conferências (que criaram o Tribunal de Nuremberg): “Então por ultimo ficam as atrocidades, persecuções, e deportações por motives políticos, raciais ou religiosos, e os motivos para essa última parte da definição é que, como afirmado antes, ordinariamente nós não consideramos que os atos dos governos sobre seus cidadãos garantem nossa interferência. Nós temos algumas circunstâncias lamentáveis em nossos próprios países nas quais as minorias são tratadas de forma injusta. Nós pensamos que é justificável nossa interferência ou tentativa de trazer retribuição aos indivíduos ou aos Estados somente porque campos de concentração e deportações estavam em conformidade com um plano ou empreendimento comum de fazer uma guerra injusta ou ilegal com a qual nos envolvemos. Nós não vemos outra base pela qual podemos justificar o fato de julgarmos as atrocidades que foram cometidas dentro da Alemanha, sob direito alemão, ou mesmo em violação do direito alemão, por autoridades do Estado alemão. Sem substancialmente essa definição, não pensaríamos que nós tivemos qualquer responsabilidade em relação ao julgamento das coisas, que eu concordo com o Procurador-Geral, são absolutamente necessárias neste caso.” (INTERNATIONAL CONFERENCE ON MILITARY TRIALS, 1945 b. Tradução da autora). O delito que se tipificou nas Cartas dos Tribunais de Nuremberg e de Tóquio foi do de crimes contra a humanidade7, cuja redação foi a seguinte: “CRIMES CONTRA A HUMANIDADE: nomeadamente, homicídio, extermínio, escravidão, deportação e outros atos desumanos cometidos contra qualquer população civil, antes ou durante a guerra; ou perseguições por motivos políticos, raciais ou religiosos, em execução ou em conexão com qualquer crime da competência do Tribunal, cometidos ou não em violação da legislação nacional do país onde perpetrados.” (INTERNATIONAL CONFERENCE ON MILITARY TRIALS, 1945 a. Tradução da autora). Assim, esse delito é diferenciado do genocídio porque, ao passo que este, na época, não exigia um nexo de causalidade com um contexto de guerra, aquele o fazia. Embora estivessem sob a competência dos Tribunais de Nuremberg e de Tóquio crimes cometidos tanto antes quanto durante a guerra, os delitos cometidos antes eram compreendidos como atos preparatórios para a guerra, e não como crimes autônomos em relação a essa, como era a concepção de genocídio na época. Este “[...] era um pré-requisito que atendia mais a interesses políticos do que jurídicos” (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 84), conforme pode depreender-se das palavras de Peter Jackson. A inserção da previsão de crimes contra a humanidade nas cartas de Nuremberg e Tóquio objetivava preencher uma lacuna do direito internacional daquele período, que não dispunha de institutos para serem aplicados às condutas cometidas pelos nazistas. Adotar como resposta para tal lacuna um dispositivo criminalizando o genocídio era arriscado na visão dos vencedores, pois poderia por em cheque a doutrina do domínio reservado, que lhes dava a justificativa da soberania para evitar 7 Os crimes tipificados nas Cartas dos Tribunais de Nurembuergue e de Tóquio, além dos crimes contra a humanidade, foram os crimes de guerra e os crimes contra a paz. 23 críticas externas sobre o modo como conduziam suas políticas nacionalmente, e os desobrigava a agir por motivos humanitários no estrangeiro quando não lhes fosse conveniente. Posteriormente, a exigência do contexto de guerra para configurar o crime contra a humanidade cairia em desuso, e o que o diferenciaria do genocídio seria o dolo característico de cada um, conforme se abordará no item sobre o elemento subjetivo do delito de genocídio (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 83- 84). Esse nexo entre crimes contra a humanidade e contexto de guerra, entretanto, não era um requisito na Control Council Law 10 8, que foi utilizada como norma para o julgamento de vários criminosos de guerra menores dentro da Alemanha. Segundo Pereira Júnior, “A justificativa dos países Aliados era de que se tratava de uma lei nacional a ser aplicada na Alemanha, e não de uma lei internacional (evitando também que tal regra fosse aplicada contra os Aliados)” (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 84). Embora o genocídio não tivesse sido situado entre os crimes sob competência dos tribunais, os promotores de Nuremberg utilizaram a palavra “genocídio” no indiciamento dos acusados e nas exposições e debates em plenário. Já no Tribunal de Tóquio não há registro de menção ao crime de genocídio. Dessa forma, embora não estivesse positivado nas Cartas dos Tribunais do pós-guerra o crime de genocídio e, por esse mesmo motivo, não tenha esse delito julgado por eles, acabaram lançando certa influência para os futuros debates sobre esse crime dentro da ONU (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 85; SCHABAS, 2000, p. 38). Lemkin estava hospitalizado em Paris quando ouviu pelo rádio informações acerca dos trabalhos iniciais das Nações Unidas, e quando soube que haveria a primeira reunião da Assembléia Geral. Então, ele vislumbrou ali um fórum internacional onde suas idéias sobre genocídio poderiam vicejar. Ele chegou a Nova York no dia 31.10.1946 (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 85). O polonês logo conseguiu o apoio de alguns delegados para que fosse feita uma resolução contra o genocídio. O projeto de resolução, redigido pelo jurista polonês e proposto, perante a Assembléia-Geral da ONU, por Cuba, Índia e Panamá, contou, em seu preâmbulo, com um parágrafo garantindo jurisdição universal para processar o crime, idéia essa defendida 8 O Allied Control Council era o órgão executivo das Zonas de Ocupação dos Aliados na Alemanha, logo após a Segunda Guerra Mundial. Seus membros eram Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética, sendo a França adicionada, posteriormente, por voto dos demais membros. A Allied Control Council Law 10 foi uma lei, aprovada nesse regime de exceção, para julgar os criminosos menores do período nazista dentro da própria Alemanha, sob a ocupação aliada, dado que os grandes líderes encontravam-se sob competência do Tribunal de Nurembergue. 24 desde o início por Lemkin (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 85-86; POWER, 2007, p. 53; SCHABAS, 2007-2008, P. 35-36). Esse parágrafo, citado em Schabas, fazia a seguinte afirmação: “Considerando que a punição do gravíssimo crime de genocídio, quando cometido em tempo de paz se, encontra dentro da competência territorial exclusiva do Poder Judiciário de cada Estado, enquanto os crimes de uma importância relativamente menor, como a pirataria, o tráfico de mulheres, crianças, drogas, obscenos publicações são declarados como crimes internacionais e foram feitas as questões de interesse internacional […]” (Apud SCHABAS, 2007-2008, p. 36. Tradução da autora). Porém, esse parágrafo não foi incluído na Resolução final, pois a maioria dos membros da Assembléia-Geral não estava disposta a reconhecer que o crime de genocídio pudesse ter jurisdição universal, principalmente pelo fato de ser cometido tanto em tempos de paz quanto de guerra (SCHABAS, 2007-2008, p. 36). Para William Schabas, foi a falha de Nuremberg de reconhecer como crimes atrocidades cometidas em tempos de paz que promoveu as primeiras iniciativas para a codificação do crime de genocídio. Um exemplo disso é o fato de a Resolução (I) da Assembléia Geral ter sido adotada imediatamente após a aprovação de outra, a 95 (I), que foi um pedido para a preparação dos “Princípios de Nurembuegue”. Outro é a afirmação de Ernesto Dihigo, o representante de Cuba na sessão da Assembléia Geral em que houve a aprovação da Resolução 96 (I), de que ela seria necessária por causa da falha dos julgamentos de Nurembuergue de deixar atrocidades cometidas antes da guerra impunes. A Referência a Nuerembergue, naquele contexto, significava a priorização da tipificação dos crimes contra a humanidade, então entendidos como tendo nexo com a guerra, em detrimento do crime de genocídio, sem esse nexo (SCHABAS, 2007-2008, p. 36-37). Assim, adotou-se a resolução 96-I da AG (Assembléia-Geral das Nações Unidas) de 1946, que foi a o primeiro documento internacional a mencionar o termo “genocídio”. Essa Resolução tem origens nas atrocidades cometidas pelos nazistas no período da Segunda Guerra Mundial, mas não se refere a esse episódio particular genocídio. Ela é mais ampla, não se referindo a nenhum episódio particular desse crime, condenando-o em qualquer época que ele ocorra (LEBLANC, 2009, p. 15). Afirmava essa resolução, em seu preâmbulo que “Genocídio é a negação do direito à existência de grupos humanos inteiros” (UNITED NATIONS, 1946, p. 188. Tradução da autora). Além disso, a primeira cláusula operativa da resolução afirma que o genocídio constitui um crime sob o direito internacional. Nessa mesma resolução, já se solicitou ao 25 Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC) realizasse os estudos necessários, com o fim de começar a esboçar uma convenção sobre esse crime (UNITED NATIONS, 1946, p. 189). O ECOSOC pediu que o Secretário-Geral Trygve Lie, assessorado por um grupo de especialistas em direito penal e direito internacional (além de Lemkin, integravam essa comissão os juristas Henri Donnedieu de Vabres – professor da Universidade de Paris e juiz do Tribunal de Nuremberg- e Vespasian V. Pella – presidente da Associação Internacional de Direito Penal), preparasse um projeto de Convenção. Na ocasião, o Secretário-Geral acreditava que o genocídio devia ser definido de forma a não se confundir com outras noções já definidas, como os crimes contra a humanidade (SCHABAS, 2007-2008, p. 37). O Secretariado preparou um projeto de convenção, sempre acompanhado pelo comitê de especialistas, que foi enviado em 1947 para o Comitê sobre o Progressivo Desenvolvimento do Direito Internacional e sua Implementação (o antecedente da atual Comissão de Direito Internacional) da ONU para comentários. O Projeto continha 24 artigos e era acompanhado de um comentário e de dois projetos de estatuto para a criação de um tribunal penal internacional. A França, então, circulou um memorando desafiando o termo genocídio, chamando-o de um neologismo sem utilidade e até perigoso. O país preferia lidar com a temática de discriminação racial, social, política ou religiosa sob o ponto de vista dos crimes contra a humanidade (ARELLANO, 2007, p. 80; SCHABAS, 2007-2008, p. 37). Posteriormente, a França insistiu que a convenção que estava sendo proposta deveria reafirmar sua relação com os Princípios de Nuremberg, e explicar que o genocídio era meramente mais um aspecto dos crimes contra a humanidade. Essa proposta não obteve apoio amplo, mas ela demonstra a preocupação que havia em não criminalizar atrocidades cometidas em tempos de paz, e somente aquelas que têm conexão com a guerra (SCHABAS, 2007-2008, p. 38). Além disso, o Comitê sobre o Progressivo Desenvolvimento do Direito Internacional e sua Implementação declinou de suas tarefas de fazer comentários sobre o projeto, dado que os Estados-membros da ONU ainda não o tinham feito. O SG (Secretário-Geral das Nações Unidas) então solicitou aos Estados-membros que submetessem seus comentários, mas pouquíssimos o fizeram. Conseqüentemente, quando o ECOSOC se reuniu em julho de 1947, ele considerou que tomar qualquer iniciativa em relação ao projeto de convenção seria 26 inapropriado, e remeteu a questão novamente à Assembléia Geral das Nações Unidas (LEBLANC, 2009, p. 16-17). Quando o debate sobre o projeto de convenção sobre genocídio voltou à agenda da Assembléia-Geral, ainda em 1947, na sua segunda sessão ordinária, várias discordâncias surgiram entre seus membros: alguns argumentavam que o conteúdo da Resolução 96 (I) da AG deveria ser alterado, no sentido de que, ao invés de o ECOSOC ficar encarregado de realizar estudos com o fim de elaborar uma convenção sobre genocídio, deveria estudar se a convenção seria ou não necessária; outros insistiam que já havia sido decido pela Assembléia Geral anteriormente, por unanimidade, a desejabilidade da convenção, e que, por isso, a Resolução 96 (I) deveria ser reafirmada (LEBLANC, 2009, p. 17). 9 Na ocasião, o Reino Unido, que era hostil à idéia da Convenção, propôs que o assunto fosse remetido à Comissão de Direito Internacional da ONU, dado seu trabalho continuo em relação aos Princípios de Nuremberg, e à relação próxima entre crimes contra a humanidade e genocídio. A conseqüência prática disso seria apagar a linha existente entre as Resoluções 95 (I) e 96 (I). Da mesma forma que países de terceiro mundo propuseram a Resolução 96 (I), coube a eles lutar pela autonomia do conceito de genocídio em relação ao de crimes contra a humanidade (SCHABAS, 2007-2008, p. 38-39). Então, como forma de resistir à proposta do Reino Unido, Panamá Cuba, Egito, e China tomaram iniciativas para reforçar a distinção entre os Princípios de Nurembuergue e a proposta de Convenção sobre Genocídio. Dessa forma, a China propôs uma emenda à resolução que afirmava que genocídio e crimes contra a humanidade são diferentes, que acabou sendo adotada (SCHABAS, 2007-2008, p. 38-39). Assim, foi aprovada a Resolução 180 (II) da Assembléia-Geral, que reafirma a Resolução 96 (I), e solicitava que o ECOSOC continuasse a realizar o seu trabalho em relação à elaboração de uma convenção sobre genocídio, incluindo o estudo do projeto de convenção apresentando pelo Secretário-Geral da ONU, e a proceder de forma a elaborar um projeto de convenção a ser apresentado à AG em 9 Segundo Lawrence J. LeBlanc, essa discussão que ocorreu na segunda sessão ordinária sobre a desejabilidade de uma convenção sobre genocídio é reflexo da emergência da Guerra Fria, da confrontação ideologia entre Estados Unidos e União Soviética, o que fez com que muitos representantes estatais perante a ONU se tornassem mais cautelosos quanto à possibilidade de cooperação internacional e quanto ao desenvolvimento e fortalecimento do direito internacional. Um exemplo disso é o fato de que, embora tanto a Resolução 96 (I) quanto a Resolução 180 (II), ambas da Assembléia Geral da ONU, afirmarem os mesmos princípios, ao passo que a primeira foi aprovada por unanimidade, a segunda foi aprovada com 38 votos a favor, nenhum contrário, e quarenta abstenções. Apesar de que ninguém votaria contra uma resolução condenando o genocídio, pois o país que o fizesse logo após os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial sofreria certa condenação moral, o alto índice de abstenções, maior inclusive que o de votos a favor, indica que a temática do genocídio tinha passado não ser mais um item urgente na agenda internacional (LEBLANC, 2009, p. 17). 27 sua próxima sessão, no ano seguinte. A Resolução 180 (II) também informou ao ECOSOC que ele não precisa esperar as observações feitas por todos os membros da ONU para completar seu trabalho de preparar um projeto de convenção (LEBLANC, 2007-2008; PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 87; UNITED NATIONS, 1947, p. 129-130). No ECOSOC, o projeto de convenção apresentado pelo Secretário-Geral e elaborado pela comissão de especialistas da qual Lemkin fazia parte, foi criticado por sua suposta “escassez de realismo”. O ECOSOC, então, criou um comitê ad hoc para revisar o projeto do Secretário-Geral e oferecer um novo. Composto por China, França, Líbano, Polônia, URSS (União Soviética), Estados Unidos e Venezuela, o comitê ad hoc se reuniu 28 vezes entre abril e maio de 1948, preparando o projeto de convenção acompanhado de um comentário. O Secretariado propôs que esse comitê ad hoc considerasse várias questões substantivas, inclusive as relações ente genocídio e crimes contra a humanidade. Esse debate, dentro do comitê ad hoc, acabou surgindo na discussão do preâmbulo do projeto de tratado. Novamente, a França insistiu nas ligações entre crimes contra a humanidade e genocídio, enquanto outros afirmaram que os dois conceitos são distintos. Assim, o comitê ad hoc se opôs à expressão “crimes contra a humanidade”, por considerar que ela já havia adquirido um significado jurídico bem definido na Carta de Londres. Porém, a França obteve sucesso ao conseguir que fosse incluída no preâmbulo do projeto de convenção uma menção ao Tribunal de Nuremberg, levantando oposição de alguns países, como Líbano e Venezuela, pois isso poderia acarretar em uma confusão entre crimes contra a humanidade e genocídio (ARELLANO, 2007, p. 88; LEBLANC, 2009, p. 18; SCHABAS, 2007-2008, p. 39-40). O comitê ad hoc entregou, em maio de 1948, seu projeto para a Assembléia Geral, a qual, por sua vez, o remeteu ao Sexto Comitê 10. Na ocasião, o Secretário-Geral da ONU entregou aos membros do Comitê uma nota que havia preparado, na qual mencionava as relações entre genocídio e crimes contra a humanidade, mas insistiu na utilidade de distinguilos, principalmente porque tipificar o genocídio seria útil ao afastar o critério de nexo com a Guerra para punir atrocidades. A França, por sua vez, preparou um projeto de Convenção que fazia rivalidade ao que foi apresentado pelo Secretariado, cujo artigo I afirma que “o crime contra a humanidade conhecido como genocídio é um ataque à vida de um grupo humano ou indivíduo membro desse grupo, particularmente em razão de sua nacionalidade, raça, religião ou opiniões” (Apud SCHABAS 2007-2008, p. 40. Tradução da autora). 10 A Assembléia Geral da ONU, além da plenária, se divide em seis comitês especializados. O sexto Comitê é o Comitê Jurídico. 28 Esse trecho duelava justamente com o art. I do outro projeto de Convenção, que afirmava que o genocídio podia ser cometido tanto em tempos de Guerra quanto de paz. O representante do Brasil no Sexto Comitê afirmou que os crimes contra a humanidade, da forma como estavam definidos na Carta de Londres, incluíam o genocídio, mas apenas se tivesse sido cometido durante ou em conexão com a preparação para a guerra. O representante brasileiro também notou uma confusão que existe em Nuremberg quanto ao escopo do termo “crimes contra a humanidade”, e afirmou que, tendo em vista a vagueza do termo, o crime de genocídio deveria ser bem definido como um crime cometido contra determinados grupos também em tempos de paz. Além disso, a Venezuela submeteu um projeto de preâmbulo da Convenção, e explicou que aí omitiu qualquer menção ao Tribunal de Nuremberg, porque genocídio era distinto de crimes contra a humanidade. A França possuía suas próprias propostas para o preâmbulo, sendo a mais significante uma menção aos julgamentos de Nuremberg (SCHABAS, 2007-2008, p. 40-41). O novo projeto, revisado pelo Sexto Comitê, foi apresentado à Assembléia Geral, que o aprovou, por unanimidade, em dezembro de 1948, sem fazer, em seu preâmbulo, qualquer menção aos julgamentos de Nuremberg, o que tornava nítida a distinção entre crimes contra a humanidade e genocídio, como desejado por Lemkin. A Convenção só entraria em vigor em 1951 (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 87). Embora Lemkin estivesse determinado a ver os perpetradores de genocídio sendo processados, ele não acreditava que a Convenção deveria prever um tribunal penal internacional de caráter permanente para processar e punir o crime de genocídio, pois o mundo não estaria pronto, na concepção desse jurista, para uma corte que afrontaria a soberania estatal. O jurista acreditava que o princípio que deveria reger o novo tratado era o da jurisdição universal11, da mesma forma que era o que regia o crime de pirataria (POWER, 2007, p. 55-56). Propostas prevendo a jurisdição universal (inclusive devido ao lobby feito por Lemkin nos corredores da ONU) chegaram a ser feitas, ao menos, duas vezes no processo de preparação da Convenção, mas sem sucesso. A jurisdição universal foi combatida pelo mesmo motivo que o nexo com a guerra foi exigido para investigação dos crimes contra a humanidade pelos tribunais penais internacionais do pós-Segunda Guerra: a defesa da soberania absoluta, tendo por seu maior símbolo a doutrina do domínio reservado (PEREIRA 11 Encontra-se presente o crime de genocídio como sujeito a competência de corte criminal internacional reconhecida pelas partes contratantes pelo fato de que havia na época a idéia de se criar uma corte desse gênero. 29 JÚNIOR, 2010, p. 88-90). Assim, o art. 6º da Convenção de 1948 sobre Genocídio, que trata da competência para julgar esse delito, tem até hoje a seguinte redação: “As pessoas acusadas de genocídio ou de qualquer dos outros actos enumerados no artigo 3.º serão julgadas pelos tribunais competentes do Estado em cujo território o ato foi cometido ou pelo tribunal criminal internacional que tiver competência quanto às Partes Contratantes que tenham reconhecido a sua jurisdição” (BRASIL, 1952). Porém, na década de 1990, antes mesmo do julgamento do caso Akayesu, diversas cortes nacionais da Europa Ocidental começaram a processar responsáveis pelos genocídios na ex-Iugoslávia e em Ruanda, o que indica que passou a haver um reconhecimento de que, sob o direito consuetudinário internacional, o crime de genocídio está sujeito à jurisdição universal (SCHABAS, 2003 b, p. 46-59). Além disso, a convicção de Lemkin de que o genocídio precisa ser confrontado, seja em contexto de paz ou de guerra, foi endossada no art. 1º da Convenção, que afirma que “As Partes Contratantes confirmam que o genocídio, seja cometido em tempo de paz ou em tempo de guerra, é um crime do direito dos povos, que desde já se comprometem a prevenir e a punir”. Isso removeu a crença existente na criação da Carta de Londres sobre o Tribunal de Nueremberg de que só seriam puníveis crimes de guerra, ou atos preparatórios para a guerra (JONES, 2010). As pessoas que podem ser responsabilizadas pelo cometimento do crime de genocídio são definidas pelo art. 4º da Convenção que estabelece que “As pessoas que tenham cometido genocídio ou qualquer dos outros atos enumerados no artigo 3.º serão punidas, quer sejam governantes, funcionários ou particulares” (BRASIL, 1952. Grifo nosso). Segundo Lawrence J. LeBlanc, o Sexto Comitê da Assembléia-Geral da ONU, decidiu sobre esse artigo ao debater não só quem poderia ser punido pelo crime de genocídio, mas outros dispositivos da Convenção, com base na Resolução 96 (I) da AG. Ocorre que essa Resolução em momento nenhum afirma nada nesse sentido; ela não deixa claro se o apoio ou conivência do governo é necessário para o cometimento desse crime. Alguns representantes do Sexto Comitê acreditavam que o que caracterizaria o genocídio seria o fato de ele ser cometido, encorajado, ou tolerado pelo Estado, o que era uma posição, na visão de LeBlanc, compreensível, dado o contexto histórico que estava sendo tomada, no qual o mundo estava chocado com os massacres cometidos contra os judeus pelos nazistas. Porém, essa proposta foi rejeitada, e acabou prevalecendo que particulares também podem ser responsabilizados (LEBLANC, 2009, p. 19). 30 Mas, até o julgamento do caso Akayesu, não havia nenhuma punição por delito de genocídio. Isso porque a corte penal internacional à qual se refere o art. 6º da Convenção de 1948 sobre o genocídio não tinha sido criada até a década de 1990, só surgindo duas cortes ad hoc nessa década, e sendo aprovado, nesse mesmo período, o estatuto de uma permanente, que só entrou em vigor em 2002. Além disso, nenhum tribunal doméstico de “Estado em cujo território o ato foi cometido”, conforme prevê esse mesmo dispositivo, julgou alguém por esse crime. Tanto é assim que William Schabas afirma que, nas décadas de 1970 e 1980, alguns consideravam que a Convenção sobre Genocídio não era mais do que uma curiosidade histórica (SCHABAS, 2000, p. 8). Além dessas, outras críticas eram feitas, como as de Kuper na década de 1980, que ressaltava algumas ironias presentes na Convenção de 1948 sobre Genocídio: ela estipulava que um Estado genocida deveria processar e punir as pessoas que comandavam esse mesmo Estado, e nenhum tribunal internacional havia sido criado para julgar os responsáveis por genocídios, conforme estipulado pela própria Convenção. Além disso, considerava que o próprio sistema Nações Unidas protegia os perpetradores desse crime, pois: “[o] Estado territorial soberano reivindica, como parte integral da sua soberania, o direito de cometer genocídio, ou participar em massacres genocidas, contra os povos sob seu domínio, e [...] as Nações Unidas, para todos os efeitos práticos, defende esse direito” (KUPER Apud HUGHES, 2009, p. 3-4. Tradução da autora). Cassese também considera que o mecanismo de execução e aplicação de pena para o crime de genocídio, conforme estabelecido na Convenção de 1948, é ineficaz, pois, além de dificilmente um Estado julgar os seus próprios líderes pelo crime de genocídio, e de outro Estado não poder julgar o genocida de outro Estado devido a esse não ser um crime submetido a jurisdição universal, o tribunal penal internacional ao qual alude o art. 6º da Convenção só foi criado muitos anos depois, em 1998, e só entrou em funcionamento no século seguinte, no ano de 2002 (CASSESE, 2008, p. 127-128). Daí a importância do caso Akayesu, por ser o primeiro a atribuir sentidos ao crime de genocídio. 12 12 Houve um caso anterior que foi equiparado ao genocídio, o caso Eichmann, decidido em 1961 pela Corte Distrital de Jerusalém e, logo em seguida, pela Corte Suprema de Israel em 1962. Eichmann foi julgado por crimes contra o povo judeu, um crime sob a legislação israelense que incorporava todos os elementos da definição de genocídio. Além disso, a Corte Suprema de Israel afirmou que esse crime corresponde ao genocídio (CASSESE, 2008, p. 131). Houve também alguns casos da Corte Internacional de Justiça anteriores ao caso Akayesu que atribuíram alguns sentidos ao conceito de genocídio (devidamente tratados no item 1.5 desta dissertação), mas nenhum que abordasse a temática da responsabilidade individual (inclusive, por uma questão de competência da própria Corte). Portanto, o caso Akayesu foi a primeira decisão condenatória em relação ao crime de genocídio a chamá-lo pelo seu próprio nome, atribuindo, em função dele, responsabilidade penal 31 1.2. Bem jurídico protegido Segundo Daniela de Vito e outros, no momento em que a Convenção de 1948 foi aprovada, entrelaçaram-se, no interior da ONU influências de três áreas para produzir o conceito de genocídio: o DPI (Direito Penal Internacional), quanto à responsabilidade criminal individual, o DIDH (Direito Internacional dos Direitos Humanos) e o DIH (Direito Internacional Humanitário) 13 . De acordo com o conceito de genocídio da Resolução 96-I da AG, o que se protege com a Convenção de 1948 é o direito à existência de grupos humanos. Porém, grupos são compostos de indivíduos, que tem seu direito à vida tutelado pelo DIDH. Daí a contribuição do DIDH à construção do conceito de genocídio, trazendo a faceta da proteção do indivíduo (VITO, 2009, p. 33). Dessa forma, pode-se concluir que o bem jurídico tutelado pelo crime de genocídio é a existência desses grupos. Porém, embora o bem jurídico protegido seja a existência há vítimas individuais, sendo essas vítimas, inclusive, listadas nas petições feitas pelos Procuradores perante cortes internacionais. Mas essas pessoas só se tornam vítimas individuais por seu pertencimento a determinado grupo cujo direito a existir é tutelado pela tipificação do crime de genocídio. A crença de Lemkin que enfatizava a proteção de grupos nacionais e étnicos (em prejuízo de grupos políticos e classes sociais) também se expressou na Convenção, ao afirmar que “[…] entende-se por genocídio os atos abaixo indicados, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso” (BRASIL, 1952). Em todas as estratégias genocidas citadas nas alíneas do art. 2º da Convenção de 1948, está refletida a concepção de que o genocídio é um plano coordenado de diferentes ações com o objetivo de destruir grupos. Porém, em nenhum ponto a Convenção definiu o que seriam grupos nacionais, étnicos, raciais ou religiosos (JONES, 2010). Uma definição mais formal de genocídio, dentro do Direito Internacional, foi proposta por Lerner, segundo a qual o bem jurídico protegido pela tipificação do genocídio é a proteção de grupos (que consistem de indivíduos) que possuem um fator unificador permanente (raça ou etnia, por exemplo). Dentro dessa perspectiva, seria mais difícil incluir a individual. 13 O Direito Humanitário é, nas palavras de Cristophe Swirnaski, “o conjunto de normas internacionais, de origem convencional ou consuetudinária, especificamente destinado a ser aplicado nos conflitos armados, internacionais ou não-internacionais, que limita, por razões humanitárias, o direito das partes em conflito de escolher livremente os métodos e os meios utilizados na guerra, ou que protege as pessoas e os bens afetados, ou que possam ser afetados pelo conflito.” (SWIRNASKI, 1998, p. 18). 32 religião aí, porque Lerner argumenta que crenças religiosas podem mudar (LERNER Apud VITO, 2009, p 34). A Convenção de 1948, incluindo a referência a grupos religiosos, foi formulada com a idéia de se centrar na permanência de grupos, excluindo desse modo outros grupos. Segundo de Vito e outros: “Havia e continua a haver preocupação com a listagem limitada na Convenção de 1948 de grupos que podem ser alvo. A exclusão de grupos “políticos” é um exemplo disso. Houve também pedidos para se considerar a categoria “mulher” um grupo que pode sofrer genocídio” (VITO, 2009, p. 49). Mas os autores argumentam que a formulação de Lerner permite alguma flexibilidade de interpretação, pois inclui as palavras “fatores permanentes que estão, via de regra, fora do controle de membros” (VITO, 2009, p. 34). O fato de esses quatro grupos protegidos pela Convenção não serem por ela definidos, nem são os critérios para essa definição estarem nela dispostos permite tal flexibilidade de interpretação (CASSESE, 2008, p. 131). Além disso, grupos são sempre socialmente construídos, entendimento compartilhado por Mettraux. O autor afirma que o grupo protegido não deve ser imaginado pelo perpetrador; sua existência deve ser objetiva. Porém, essa existência não precisa ser comprovada científica ou factualmente. O que importa é que haja uma percepção comum, compartilhada socialmente, de que tal grupo exista (METTRAUX, 2005, p. 224). Embora a intenção neste capítulo fosse mencionar as normas sobre genocídio como eram interpretadas antes do caso Akayesu, cabe mencionar a grande inovação que este caso trouxe em relação à interpretação dos grupos protegidos pela Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. A Câmara de Julgamento, na sentença condenatória em relação a Jean-Paul Akayesu, pela primeira vez definiu cada um dos grupos protegidos na Convenção sobre Genocídio. Ela afirmou, com base nos trabalhos preparatórios da Convenção, que a intenção do legislador era proteger apenas grupos “estáveis”, constituídos de forma a se verem como permanentes, e cujo pertencimento se dá através do nascimento. Por isso, o critério adotado para se definir os grupos protegidos pela Convenção sobre Genocídio é que a adesão de seus membros raramente seria desafiada por eles mesmos, dado que ela seria vista como automática, contínua e, freqüentemente, como irremediável. A Câmara, então, estabeleceu que grupo nacional é uma coleção de pessoas percebidas como compartilhando um vínculo jurídico de cidadania comum, assim como uma reciprocidade de direitos e deveres; o grupo étnico, um grupo cujos membros compartilham uma mesma língua ou cultura; o grupo racial é aquele que compartilha traços físicos geralmente (mas nem 33 sempre) ligados a uma região geográfica, independentemente de fatores culturais, nacionais, lingüísticos ou religiosos; e o grupo religioso foi definido como aquele que compartilha a mesma religião, denominação ou modo de adoração (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 209-210). Porém, o caso do genocídio em Ruanda colocava à prova a definição de etnia, dado que hutus e tutsis falam a mesma língua (o Francês e o Kinyrwanda) e uma mesma cultura: a distinção entre as etnias foi construída pelo colonizador belga. Tutsis e hutus também compartilhavam a mesma nacionalidade, a mesma raça, e, muitas vezes, a mesma religião. Mas esses grupos se enxergam como distintos um do outro pela etnia, construída pelo colonizador, de forma estável, determinada pelo nascimento: a Câmara sublinha que as carteiras de identidade em Ruanda vinham com um campo ou “ubwoko” ou “ethnie” (palavras usadas, respectivamente, em Kinyrwanda e em Francês para designar “etnia”), no qual estava escrita a etnia da pessoa (tutsi ou hutu, por exemplo). Assim, dado que esses grupos se enxergam como permanentes e imutáveis, a Câmara afirmou que eles estariam protegidos pela Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, embora não constituíssem nenhum dos grupos expressamente estabelecidos como tutelados por este tratado (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 281). 1.3. Elemento subjetivo Tanto o caput do art. 2º, parágrafo 2º do Estatuto do TPIR o art. II da Convenção de 1948, estabelecem que “[...] entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso [...]” (grifo nosso). Obote-Odora e Guénaël Mettraux entendem que a palavra intenção significa que o elemento subjetivo do tipo é o dolo, não cabendo modalidade culposa (METTRAUX, 2005, p. 212; OBOTE-ODORA, 1999). É essa intenção de eliminar determinado grupo que torna o genocídio distinto dos crimes contra a humanidade, dos crimes de guerra, e dos crimes comuns. Afirma Cassese que o genocídio é o típico crime em que ocorre a despersonalização do sujeito passivo: a vítima não sofre ataque em função de suas características individuais, mas apenas porque ela é membro de um grupo (CASSESE, p. 137). Além disso, no entendimento de Payam Akhavan, não caberia dolo eventual, somente dolo direto. Segundo o autor: 34 “[…] o elemento subjetivo do genocídio no caput do artigo 2(2) como característica que distingue aquele crime, especificamente o requisito da intenção (dolo direto) de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal. Esse elemento subjetivo se aplica a todos os atos materiais de genocídio enumerados no artigo 2 (a)-(e) do Estatuto. Como esses atos – como assassinato e causar graves danos físicos e mentais- não são crimes internacionais por si sós, é a sua intenção específica que distingue o crime de genocídio de um crime ordinário. Assim, além de definir o que é genocídio, esse elemento subjetivo também distingue a esfera do Direito Penal Internacional do direito doméstico” (AKHAVAN, 2005, p. 992. Tradução da autora). É importante distinguir o dolo específico do delito de genocídio do dolo dos demais crimes tipificados no Estatuto do TPIR, começando-se pelos crimes contra a humanidade, regulamentados no art. 3º14 do Estatuto do Tribunal. Esse dispositivo é muito similar ao art. 5º15 do Estatuto do TPII, que lista as condutas que compõem esse tipo penal. Porém, difere desse na definição do que são crimes contra a humanidade, pois o Estatuto do TPII estabelece como requisito para a existência desse crime que ele tenha sido cometido durante conflitos armados, sejam eles internos ou não, ao passo que esse requisito não é estabelecido como necessário pelo Estatuto do TPIR (SHRAGA, ZACKLIN, 1996, p. 508). Entretanto, desde o seu primeiro caso, o TPII abandonou o nexo com a guerra como elemento do crime contra a humanidade, passando a adotá-lo apenas como critério de competência (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 282-283). O dolo do crime de genocídio seria a destruição de um grupo, no todo ou em parte, ao passo que o do crime contra a humanidade seria o de praticar qualquer daquelas condutas listas como constituindo esse crime, com o conhecimento do autor de que estão sendo praticadas de forma sistemática e generalizada, contra uma população civil qualquer (podendo essa ser constituída de um ou mais grupos), ou seja, sem um caráter discriminatório específico (CASSESE, 2008, p. 145; METTRAUX, 2005, p. 216-217; PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 284-292). Segundo Cassese e Mettraux, ao contrário do que ocorre em relação aos crimes contra humanidade, o Procurador não precisa comprovar se houve uma prática ampla e sistemática ou um plano como elemento do crime de genocídio (CASSESE, 2008. p. 141; METTRAUX, 2005, p. 210) 14 16 . Já Alex Obote-Odora afirma que o genocídio é um crime “O Tribunal Internacional para Ruanda terá o poder para processar pessoas responsáveis pelos seguintes crimes, quando cometidos como parte de um ataque amplo e sistemático contra uma população, quando cometidos de forma ampla e sistemática contra qualquer população civil com base nacional, política étnica, racial ou religiosa: a) Assassinato; b) Extermínio; c) Escravização; d) Deportação; e) Aprisionamento; f) Tortura; g) Estupro; h) Persecuções com base política, racial ou religiosa; i) Outros atos desumanos” (UNITED NATIONS, 1994 b, p. 4. Tradução da autora). 15 “O Tribunal Internacional terá o poder para processar pessoas responsáveis pelos seguintes crimes, quando cometidos em conflito armado, seja de caráter nacional ou internacional, e diretamente contra uma população civil: a) Assassinato; b) Extermínio; c) Escravização; d) Deportação; e) Aprisionamento; f) Tortura; g) Estupro; h) Persecuções com base política, racial ou religiosa; i) Outros atos desumanos” (UNITED NATIONS, 2009, p. 6. Tradução da autora). 16 Porém, Mettraux afirma que, mesmo não havendo a exigência legal de provar que havia um plano ou política sistemática para que haja uma condenação por genocídio, caso haja prova desse plano ou política, fica facilitada a prova de que houve intenção genocida. Como a intenção de destruir o grupo é o que torna esse crime tão distinto dos demais, facilita a prova de que o crime de genocídio foi cometido (METTRAUX, 2005, p. 210). 35 cometido no contexto de uma política desenvolvida por autoridades estatais, ou de entidade similar ao Estado. Essa entidade deve ter a capacidade de organizar os poderes e recursos do Estado ou da entidade similar em conduzir a conduta proibida. Porém, segundo o mesmo autor, uma política de genocídio não é especificada como elemento do crime de genocídio nem na Convenção de 1948 nem no art. 2º do Estatuto (OBODE-ODORA, 1999). A única exceção dos crimes contra a humanidade em relação ao caráter discriminatório seria a perseguição por motivos políticos, religiosos ou raciais, previsto no art. 3º, alínea h do Estatuto do TPIR e no art. 5, alínea h, do Estatuto do TPII. Perseguir seria restringir direitos de um determinado grupo. Porém, não há aí o dolo de destruir o grupo, no todo ou em parte, conforme é exigido para que reste caracterizado o crime de genocídio (CASSESE, 2008, p. 145; PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 284-292). Já o crime de guerra se distingue do genocídio e dos crimes contra a humanidade por ser o único delito que exige o nexo com um contexto de guerra. O dolo, nesse caso, é o de cometer qualquer uma das condutas listadas como crime de guerra, com o conhecimento do autor de que foram cometidas num contexto de guerra17 (PEREIRA JÚNIOR, p. 274-275). 1.4. Elemento objetivo Constituem genocídio, consoante as alíneas do art. 2º, parágrafo 2º do Estatuto do TPIR e do art. II da Convenção de 1948, as seguintes condutas (atendidos os requisitos supramencionados, ou seja, que haja dolo e elas sejam cometidas como parte de um plano político para a destruição do grupo): “1. assassinato de membros do grupo; 2. dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; 3. submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; 4. medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; 17 Ao estabelecer a competência do TPIR para julgar crimes de guerra, o Conselho de Segurança a limitou às normas destes aplicáveis aos conflitos armados de caráter interno, ou seja, ao art. 3º comum às quatro Convenções de Genebra, e ao Protocolo II à Convenção de Genebra Relativa à proteção das pessoas civis em tempo de guerra, pois o conflito ruandês foi classificado como uma guerra civil. 36 5. transferência forçada de menores do grupo para outro” (BRASIL, 1952).18 Além das condutas previstas tanto no art. II da Convenção sobre Genocídio quanto no art. 2º, parágrafo 2º do Estatuto do TPIR, o art. III da Convenção e o art. 2º, parágrafo 3º do Estatuto desse Tribunal afirmam que são puníveis não só o cometimento do crime, mas também a tentativa e a conspiração para cometê-lo, além de modalidades de concurso (incitação e cumplicidade). 19 Segundo Mettraux, para que seja configurado crime de genocídio, não é necessário que a destruição à qual faz referência o caput do artigo II da Convenção sobre genocídio ocorra de fato. Basta que seja perpetrado, se acordo com o próprio art. II, “qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir”, estando esses atos listados nas alíneas do art. II, transcritas acima. Além disso, quando o caput do art. II se refere a “destruir”, Mettraux interpreta que essa destruição seja física ou biológica (METTRAUX, 2005, p. 216). Faz-se importante, neste trabalho, apontar os fatores que levaram à adoção da conduta listada no parágrafo 2, “dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo”, criticada por ser muito vaga e incerta (PERLMAN, 1950, p. 7). Stephen Gorove faz menção aos trabalhos preparatórios da Convenção. Inicialmente, esse parágrafo não possuía essa redação. A expressão utilizada anteriormente era “causar danos à integridade física de membros do grupo”, ou seja, mencionava-se somente o dano físico, e não o mental (GOROVE, 1951, p. 176). Embora não se fizesse menção ao dano mental, quando o projeto de Convenção passava pelo Comitê ad hoc, o representante chinês lembrou que, durante a Segunda Guerra Mundial, isso foi feito pelos japoneses, ao dopar forçadamente os chineses com ópio com o intuito de destruir essa nacionalidade. Por isso, ele solicitou que o uso de narcóticos fosse considerado como forma de genocídio, e sugeriu que a frase “causar danos à integridade física de membros do grupo” fosse substituída por “causar danos à integridade física ou à capacidade mental do grupo”, ou “causar danos à saúde de membros do grupo” (GOROVE, 1951, p. 176-177; PERLMAN, 1950, p. 7). 18 Segundo Brenda Fitzpatrick, Lemkin via as alíneas b, c e d como passos rumo à alínea a, ou seja, rumo ao assassinato de membros do grupo, que aí sim levaria à sua destruição (LEMKIN Apud FITZPATRICK, 2003, p. 77). 19 “Artigo III - Serão punidos os seguintes atos: o genocídio; o conluio para cometer o genocídio; a incitação direta e pública a cometer o genocídio; a tentativa de genocídio; a cumplicidade no genocídio” (BRASIL, 1952). 37 Quando o projeto de Convenção foi ser discutido no Sexto Comitê da AssembléiaGeral, o delegado chinês submeteu propostas similares às que tinham sido feitas no Comitê ad hoc (GOROVE, 1951, p. 177). Ele também afirmou que não concordava com o conceito de integridade física, por considerar que não era amplo o suficiente para cobrir o uso de narcóticos pelos japoneses como forma de erradicação do povo chinês (GOROVE, 1951, p. 178). O representante britânico compreendeu os motivos que faziam o representante chinês discordar do conceito de dano físico, mas, ainda assim, discordou dele, por considerar problemática a inclusão de algo tão ambíguo. Ele afirmou que, caso um ato similar ao cometido pelos japoneses repercutisse na saúde física, poderia ser encaixado no conceito de dano físico presente no projeto de Convenção. O delegado do Egito concordou com o britânico, afirmando que pode interpretar “integridade física” como implicando também em integridade mental, entendimento esse seguido pelo delegado norte-americano (GOROVE, 1951, p. 178). O delegado britânico propôs uma emenda ao texto, e sugeriu que à frase “Causando dano físico” fosse adicionado o termo “grave”, ficando a frase “Causando dano grave à integridade física”. O delegado indiano, embora concordando com a proposta britânica, sentiu que a proposta chinesa deveria ser contemplada, e sugeriu que fosse adicionada a palavra “mental” entre “físico” e “dano”, de forma que ficasse a frase “Causando dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo”. Essa proposta indiana foi aprovada por 14 a 10 votos, com 14 abstenções. Os que votaram contra a inclusão do conceito de dano mental o fizeram porque consideravam isso irrelevante, mas porque consideravam que o dano físico inclui o mental (GOROVE, 1951, p. 178-180). Gorove também chama a atenção para o fato de, na época, muitos se posicionarem de forma contrária à inclusão da expressão “dano mental”, por considerarem-na ambíguo (GOROVE, 1951, p. 187). 1.5. Decisões da Corte Internacional de Justiça sobre genocídio 38 Antes da decisão do TPIR em relação ao caso Akayesu, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) já havia atribuído alguns sentidos à Convenção de 1948 sobre Genocídio. Ainda que não houvesse uma condenação em relação a um determinado réu, dado que essa não é a competência da CIJ, esses julgados forneciam elementos interpretativos em relação à Convenção de 1948. O primeiro caso nesse sentido foi a Opinião Consultiva 20 sobre Reservas à Convenção para Prevenir e Punir o Crime de Genocídio, de 1951 21. Afirma a Corte Internacional de Justiça que a Convenção sobre Genocídio gera obrigações erga omnes aos Estados, ao afirmar que, por seu caráter puramente humanitário, os princípios da Convenção são reconhecidos pelas nações civilizadas como vinculantes em relação aos Estados, mesmo na ausência de uma obrigação convencional, derivada da ratificação de tratado e, por isso, a Convenção sobre Genocídio possui caráter universal, conforme a passagem abaixo: “As origens e o caráter daquela Convenção [sobre Genocídio], os objetivos perseguidos pela Assembléia-Geral e as partes contratantes, as relações que existem ente as provisões da Convenção, inter se, e entre essas provisões e esses objetivos, fornecem elementos de interpretação da vontade da Assembléia Geral e as partes. As origens da Convenção demonstram que era intenção da Organização das Nações Unidas condenar e punir o genocídio como "um crime sob o Direito Internacional", envolvendo a negação do direito de existência de grupos humanos inteiros, uma negação que choca a consciência da humanidade e resulta em grandes prejuízos para a humanidade, e que é contrária à lei moral e ao espírito e aos objetivos das Nações Unidas […].A primeira conseqüência decorrente dessa concepção é que os princípios subjacentes à Convenção são princípios reconhecidos pelas nações civilizadas como obrigatórios aos Estados, mesmo sem qualquer obrigação convencional. Uma segunda conseqüência é o caráter universal tanto da condenação do genocídio quanto da cooperação necessária "a fim de libertar a humanidade de flagelo tão odioso" (Preâmbulo da Convenção). A Convenção sobre Genocídio foi, portanto, destinada pela Assembléia Geral e pelas partes contratantes para ser definitivamente um âmbito universal. Foi, de fato, aprovada em 09 de dezembro de 1948, por uma resolução adotada, por unanimidade, por cinqüenta e seis Estados. 20 O procedimento para a emissão das opiniões consultivas da Corte Internacional de Justiça é estabelecido pelo Capítulo VI de seu Estatuto. A Corte pode, consoante o art. 65, parágrafo 1º, desse instrumento internacional, emitir uma opinião consultiva a respeito de qualquer questão jurídica solicitada por qualquer órgão das Nações Unidas, desde que seja autorizado pela Carta da ONU a fazer essa consulta à CIJ. 21 Trata-se de uma consulta formulada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em relação à possibilidade de Estados-partes da Convenção sobre Genocídio fazerem reservas a ela. Dentre as várias decisões tomadas em relação à possibilidade de que Estados fizessem reservas à Convenção, a CIJ se pronunciou no sentido de que não cabem reservas que sejam contrárias aos objetivos básicos da Convenção. 39 Os objetivos de tal Convenção também devem ser considerados. A Convenção foi adotada manifestamente para uma finalidade puramente humanitária e civilizadora. É realmente difícil imaginar uma convenção que possa ter esse caráter dual em maior grau, uma vez que seu objetivo, por um lado é a salvaguarda da própria existência de certos grupos humanos e, por outro, confirmar e apoiar os mais elementares princípios de moralidade. Em tal Convenção os Estados contratantes não têm qualquer interesse próprio, eles simplesmente têm, todos, um interesse comum, nomeadamente, a realização dos altos propósitos que são a razão de ser da Convenção. Por conseguinte, em uma convenção desse tipo não se pode falar de vantagens individuais ou desvantagens para os Estados, ou a manutenção de um perfeito equilíbrio contratual entre direitos e deveres. Os altos ideais que inspiraram a Convenção prevêem, por força da vontade comum das partes, o fundamento e a medida de todas as suas disposições” (INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE, 1951, p. 23. Tradução da autora). Em 1970, no Caso Barcelona Traction22, a Corte Internacional de Justiça, ao versar sobre o tema da obrigação estatal, reafirmou que a criminalização do genocídio constituía obrigação erga omnes no Direito Internacional Público. Muito embora não se trate de um caso sobre genocídio propriamente, esse caso atribui sentidos à Convenção sobre esse crime, conforme se percebe abaixo: “Em particular, uma distinção essencial deve ser estabelecida entre as obrigações do Estado perante a comunidade internacional como um todo, e os decorrentes vis-à-vis outro Estado no domínio da proteção diplomática. Por sua própria natureza, os primeiros são a preocupação de todos os Estados. Em vista da importância dos direitos envolvidos, todos os Estados podem ter um interesse jurídico em sua proteção, que são obrigações erga omnes. 34. Essas obrigações decorrem, por exemplo, no direito internacional contemporâneo, a partir da proibição dos atos de agressão e de genocídio” […]”. (INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE, 1970, p. 32. Tradução da autora). 22 O Caso Barcelona Traction envolveu a companhia Barcelona Traction, que possuía sede no Canadá, e operava na Espanha. O governo espanhol, na década de 1960, aumentou as dificuldades para que companhias estrangeiras operassem em seu país, acarretando assim prejuízos para os acionistas, que eram belgas. Por esse motivo, a Bélgica ingressou com a ação na CIJ, mas sem ser bem sucedida. Embora o caso não lide especificamente com a temática do genocídio, é relevante por trazer uma interpretação das normas sobre esse crime existentes à época. 40 Já no caso Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Bosnia and Herzegovina v. Serbia and Montenegro) 23, o juiz ad hoc24 Lauterpach, em seu voto separado no Pedido de Medidas Provisionais Adicionais 25, afirmou que as normas da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio têm o status de normas jus cogens (INTERNATIONAL CRIMINAL COURT, 1993, p. 440), o que significa que elas constituem normas imperativas absolutas, da qual nenhuma derrogação é permitida, salvo se por outra norma posterior que tenha esse mesmo status. Foi a primeira vez que foi afirmado no Direito Internacional o status de jus cogens da Convenção sobre Genocídio. 23 Trata-se de um caso apresentado à Corte Internacional de Justiça pela Bósnia, alegando responsabilidade da Sérvia pelo genocídio da população bósnio-muçulmana, no massacre de Srebrenica, quando a Bósnia declarou sua independência em relação à Sérvia. A Corte declarou, nesse caso, que Estados podem ser responsabilizados pelo genocídio, e não apenas seus líderes individualmente, e também decidiu que –embora não por unanimidadeque a Sérvia não era diretamente responsável pelo genocídio de Srebrenica, nem cúmplice em relação a ele, mas que a Sérvia tinha violado a Convenção de 1948 sobre Genocídio ao falhar em prevenir o episódio de Srebrenica, ao não cooperar com o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia para a punição dos perpetradores, e também por violar as medidas provisionais estabelecidas pela Corte. 24 O juiz ad hoc, na Corte Internacional de Justiça, pode ser convocado por uma das partes, ou ambas, caso não haja nenhum juiz nacional do país parte no contencioso, podendo ser inclusive nacional de outro país que não a parte que o convocou. 25 As medidas provisionais estão previstas no art. 41 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Trata-se de uma medida de caráter incidental no processo. Caso seja alegado por uma das partes que há iminência ou risco de violação de algum direito de alguma das partes que possa ser tutelado posteriormente pela sentença, a Corte tem a faculdade de indicar as medidas provisionais adequadas para protegê-los. Seria algo equivalente às medidas cautelares do direito brasileiro. 41 II- CONTEXTUALIZANDO O CASO AKAYESU O objetivo deste capítulo é contextualizar o caso Akayesu. Tendo isso em mente, primeiramente apresentamos os instrumentos internacionais de proteção dos direitos das mulheres dos anos 1990 aprovados no âmbito da ONU: a Declaração sobre Violência contra a Mulher (1993) e os documentos finais das Conferências de Viena (1993) e de Pequim (1995). 26 Muito embora esses três instrumentos tenham caráter de soft law e, portanto, não tenham caráter vinculante, eles estabelecem diretrizes a serem seguidas não só pelos Estados, mas também pela própria ONU, seus órgãos e agências especializadas (estrutura dentro da qual o TPIR está localizado). Ainda com esse objetivo de contextualizar o caso Akayesu, aborda-se o genocídio ocorrido em Ruanda em 1994, que deu origem ao TPIR, a discussão que se deu no Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre se o que houve em Ruanda no ano de 1994 foi genocídio, e a violência sexual sofrida pelas mulheres ruandesas durante esse genocídio. 2.1. Documentos internacionais sobre direitos das mulheres da década de 1990 A parir de meados da década de 80, após a Conferência sobre a Mulher de Nairóbi, o mundo se transformou profundamente. Na década de 1990, em contraste com a “crise do multilateralismo” dos anos 80, ocorre uma intensa mobilização dos foros diplomáticos parlamentares, sendo assim chamada por Lindgren Alves de “a década das conferências”. Esse “renascimento” da diplomacia parlamentar ocorreu por dois motivos: o fim da Guerra Fria e o fortalecimento da sociedade civil (ALVES, 2001, p. 31). Esse fortalecimento da sociedade civil ocorreu principalmente pela aceleração dos meios de comunicação e de informação, alterando a relação espaço/tempo. A sociedade civil 26 Excluiu-se da análise o Protocolo Adicional à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher por dois motivos: além de ter sido aprovado em 1999, após a decisão da Câmara de Julgamentos do TPIR sobre o caso Akayesu, ele não estabelece direitos para as mulheres, o que já é feito na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, mas aprimora o mecanismo de supervisão que a Convenção já havia estabelecido anteriormente, permitindo que indivíduos e grupos de indivíduos pudessem encaminhar petições ao Comitê da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. 42 internacional de forma geral, incluindo o movimento feminista, se aproveitou dessas novas possibilidades tecnológicas para expandir seu espaço de articulação (COSTA, 2003, p.74). O foco do movimento feminista no período compreendido não era necessariamente os direitos das mulheres, mas trazer preocupações relativas a gênero para todas as grandes conferências internacionais da ONU de 1990, fossem elas especificamente sobre direito das mulheres ou não. Esse esforço se deu através de intensos debates dentro do próprio movimento, nos quais os participantes desenvolveram novos entendimentos, que compartilhavam entre si, e também fizeram lobby junto aos representantes estatais para incluílas nos documentos resultantes das negociações governamentais. Assim, o movimento feminista mudou substancialmente o quadro do que se entendia por assuntos globais (FRIEDMAN, 2003, p. 313-314). É precisamente nesse contexto histórico da “década das conferências” que ocorrem a Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, de 1993, e a Conferência de Pequim sobre a Mulher, em 1995, e que é aprovada a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a mulher. 2.1.1. Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a mulher No ano de 1993, a Assembléia-Geral da ONU aprovou, através de sua Resolução 48/104, a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a mulher. Nas cláusulas preambulares desse documento, a Assembléia-Geral afirma que a violência contra a mulher constitui uma violação de seus direitos fundamentais, e nulifica seu gozo desses direitos. Ainda nas cláusulas preambulares da Declaração, também se reconhece que a violência contra a mulher é uma manifestação de relações desiguais de poder entre homens e mulheres, que levaram a uma dominação e discriminação contra a mulher, e que essa violência é um dos mecanismos sociais através dos quais as mulheres são forçadas a estarem numa posição subordinada em relação aos homens. Nas cláusulas preambulares também é expressa preocupação com o fato de alguns grupos de mulheres serem mais vulneráveis à violência, como as pertencentes a grupos minoritários, mulheres indígenas, migrantes, as que habitam em comunidades rurais ou remotas, as mulheres detidas em estabelecimentos prisionais, as meninas, as mulheres portadoras de deficiência, as idosas e as que vivem em situação de conflito. Numa outra cláusula preambular, a Assembléia-Geral dá as boas vindas ao movimento de mulheres, afirmando que ele tem sido crucial para chamar atenção para a 43 natureza, gravidade e magnitude do problema que representa a violência contra a mulher. Ainda no preâmbulo da declaração, a AG se mostra alarmada com o fato de que as oportunidades para que as mulheres atinjam igualdade no âmbito jurídico, social, político e econômico sejam limitadas pela violência continua e endêmica contra as mulheres (UNITED NATIONS, 1993 a, p. 217). O artigo 1º da Declaração define o termo violência contra a mulher como qualquer ato de violência baseada em gênero cujos resultados sejam, ou provavelmente venham a ser, danos ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para as mulheres, incluindo ameaças em relação a tais atos, coerção, ou privação arbitrária de sua liberdade, ocorrendo isso tanto no âmbito público quanto privado (UNITED NATIONS, 1993 a, p. 217). O seu art. 2º, por sua vez, estabelece que a violência contra a mulher inclui, mas não está limitada a, violência física, sexual e psicológica, seja ela sofrida no âmbito da família, no da comunidade em geral, e/ou perpetrada ou tolerada pelo Estado (UNITED NATIONS, 1993 a, p. 217). É afirmado no art. 3º da Declaração que as mulheres são titulares do gozo e proteção de seus direitos em posição de igualdade, sejam eles políticos, civis, econômicos sociais ou culturais. Esses direitos incluem os seguintes, listados nas alíneas do art. 3º da Declaração: direito à vida; à igualdade; à liberdade e segurança pessoal; direito a igual proteção perante a lei; direito a estar livre de qualquer tipo de discriminação; direito a gozar do maior grau possível de saúde física e mental; o direito a condições justas e favoráveis de trabalho; e o direito a não estar sujeito a tortura, ou outro tratamento ou punição cruel ou degradante (UNITED NATIONS, 1993 a, p. 217-218). O artigo 5º da Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, por sua vez, trata da atuação da ONU, de seus órgãos e suas agências especializadas. Dentre suas várias alíneas, destaca-se aqui a alínea “e”, que encoraja a coordenação entre organizações e órgãos do sistema ONU a incorporarem a temática da violência contra a mulher em seus projetos e decisões, especialmente no que tange a grupos de mulheres particularmente vulneráveis a violência; a alínea “g”, que afirma que esses órgãos e agências especializadas devem levar em consideração a temática da violência contra a mulher ao cumprir seu mandato; e a alínea “h”, que afirma que esses órgãos e agências especializadas devem cooperar com ONGs ao lidar com a implementação de tratados de direitos humanos (UNITED NATIONS, 1993 a, p. 219). 44 2.1.2. Conferência de Viena sobre Direitos Humanos A Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, ocorrida também em 1993, foi a segunda sobre o assunto (a primeira foi em Teerã, em 1968), e se tornou um veículo para sublinhar novas visões sobre pensamento e prática em torno de direitos humanos das mulheres. Sua convocação inicial não fazia menção aos direitos das mulheres, nem havia, especificamente, qualquer aspecto dos direitos humanos relativo a gênero em sua agenda. Porém, como o movimento feminista considerava que a Conferência podia representar um reconhecimento de que os direitos das mulheres são direitos humanos, ela se tornou o foco unificador de uma campanha global sobre direitos humanos das mulheres (BUNCH, FROST, 2000, p. 4-5). O movimento feminista agiu de forma a inserir a temática de direitos humanos das mulheres em todo o processo preparatório da Conferência de Viena, através de lobby, demandando que o assunto fosse discutido nos encontros preparatórios. A idéia de direitos humanos das mulheres foi um instrumento de trabalho para que as/os feministas articulassem e colaborassem entre si em torno de preocupações amplas e similares em relação à situação das mulheres, ao mesmo tempo em que se davam a oportunidade de, através desse esforço inicial, uma forma de elaborar melhor a temática, em ocasiões futuras, de modo que incluísse preocupações com contextos políticos, geográficos, econômicos e culturais específicos (BUNCH, FROST, 2000, p. 4-5). Quando a Conferência de Viena finalmente ocorreu, a idéia de que direitos das mulheres são direitos humanos tinha se tornado uma espécie de “grito de guerra” de milhares de pessoas ao redor do mundo, e um dos mais debatidos entre os “novos temas de direitos humanos (BUNCH, FROST, 2000, p. 5). Em Viena, mulheres constituíam cerca de metade dos 3.000 participantes das ONGs presentes à Conferência. O movimento feminista foi firme ao estabelecer os direitos das mulheres como parte da agenda dos direitos humanos, afirmando particularmente que a violência contra a mulher deve ser reconhecida como uma forma de violação aos direitos humanos. Ao chamar atenção para a necessidade de que fossem reconhecidas as dimensões de gênero dos direitos humanos –de forma a fazê-los inclusivos tanto em relação aos homens quanto às mulheres-, as militantes feministas defendiam simultaneamente os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos já criados, e simultaneamente pediam mudanças em relação ao tema (FRIEDMAN, 2003, p. 321). 45 O documento final dessa Conferência, a Declaração e Programa de Ação de Viena (que é somente um documento, divido em duas partes, a Declaração e o Programa de Ação), reflete essa militância feminista. Ele reconhece, no artigo 18 da sua primeira parte, que os direitos das mulheres são inalienáveis, que são parte indivisível dos direitos humanos, e que a erradicação de todas as formas de discriminação contra a mulher é um dos objetivos da comunidade internacional. Afirma também que a violência baseada em gênero e todas as formas de violência e exploração sexual são incompatíveis com a dignidade da pessoa humana, e por isso, devem ser eliminadas. Além disso, vincula as atividades da ONU em matéria de direitos humanos à proteção dos direitos das mulheres, e urge que governos, instituições, organizações não-governamentais e intergovernamentais intensifiquem seus esforços para proteger e promover os direitos das mulheres (UNITED NATIONS, 1993 c).27 O art. 37 da Plataforma de Ação, novamente, vincula as atividades da ONU à proteção dos direitos das mulheres: “37. O status igualitário e os direitos humanos das mulheres devem ser integrados ao cotidiano das atividades do sistema Nações Unidas. Essas questões devem ser regular e sistematicamente abordadas em todos os órgãos e mecanismos das Nações Unidas. Em particular, devem ser tomadas medidas para aumentar a cooperação e promover uma maior integração de objetivos e metas entre a Comissão sobre o Status das Mulheres, a Comissão de Direitos Humanos, o Comitê para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres, o Fundo das Nações Unidas para as Mulheres , o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e outras agências das Nações Unidas. Neste contexto, a cooperação e a coordenação deve ser reforçada entre o Centro para os Direitos Humanos e a Divisão para o Avanço das Mulheres” (UNITED NATIONS, 1993 c. Tradução da autora). O art. 38 da Plataforma de Ação, por sua vez, faz menção ao direito humanitário, mais particularmente aos estupros sistemáticos enquanto instrumento de limpeza étnica, que naquele ano chocava a comunidade internacional com as transmissões midiáticas da Guerra dos Bálcãs: “38. Em particular, a Conferência Mundial de Direitos Humanos enfatiza a importância de trabalhar rumo à eliminação da violência contra as mulheres na vida pública e privada, a eliminação de todas as formas de assédio e exploração sexual, e tráfico de mulheres, a eliminação do preconceito de gênero na administração da justiça e a erradicação de quaisquer conflitos que possam surgir entre direitos das 27 “18. Os direitos humanos das mulheres e das meninas são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. A participação plena e igualitária das mulheres na vida política, civil, econômica, social e cultural, nos níveis nacional, regional e internacional, e a erradicação de todas as formas de discriminação em razão do sexo, são objetivos prioritários da comunidade internacional A violência de gênero e todas as formas de assédio e exploração sexual, incluindo aquelas resultantes de preconceito cultural, e o tráfico internacional, são incompatíveis com a dignidade e o valor da pessoa humana, e devem ser eliminados. Isto pode ser conseguido através de medidas legais e através de ação nacional e cooperação internacional em domínios como o desenvolvimento econômico e social, educação, maternidade segura, cuidados com a saúde, e apoio social. Os direitos humanos das mulheres devem ser parte integrante das atividades das Nações Unidas sobre direitos humanos, incluindo a promoção de todos os instrumentos de direitos humanos relacionados às mulheres. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos insta os governos, instituições, e organizações intergovernamentais e não-governamentais a intensificarem os seus esforços para a proteção e promoção dos direitos humanos das mulheres e meninas” (UNITED NATIONS, 1993 a. Tradução da autora). 46 mulheres e efeitos danosos de certas práticas e tradicionais, preconceitos culturais e extremismos religiosos. A Conferência Mundial de Direitos Humanos pede à Assembléia-Geral que adote o projeto de declaração sobre a violência contra a mulher e urge aos Estados que combatam a violência contra a mulher de acordo com suas provisões. Violações dos direitos humanos das mulheres em situações de conflitos armadas são violações dos princípios fundamentais do Direito Internacional dos Direitos Humanos e do Direito Humanitário. Todas as violações desse tipo, incluindo, em particular, o homicídio, o estupro sistemático, a escravidão sexual, e a gravidez forçada, requerem uma resposta particularmente efetiva” (UNITED NATIONS, 1993 c. Tradução da autora). Já o art. 44 da Plataforma de Ação faz menção à Conferência de Pequim, que viria a ocorrer em 1995 e trataria justamente sobre a mulher. 2.1.3. Conferência de Pequim Passamos agora à análise da Conferência de Pequim. No período preparatório da Conferência e durante a própria Conferência, o movimento feminista teve seu trabalho extremamente dificultado pelas autoridades chinesas, que negaram vistos a muitas militantes, colocaram vigilância policial constante, deslocaram o fórum de ONGs, a ser realizado paralelamente à Conferência de Pequim, para outra cidade (Huairou, que possuía uma estrutura precária para receber as participantes), e censuraram discursos feitos no fórum. Além disso, a ONU se omitiu em relação a isso, acatando a maior parte das imposições chinesas (COSTA, 2003, p.98-99). Apesar de o movimento feminista ter sido enfraquecido pelos supracitados fatores, os Estados tiveram uma participação reduzida na construção dos documentos finais, a Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim. Apesar da distância entre Huairou e Pequim, as ONGs feministas foram os principais atores no processo de negociação. Isso ocorreu porque muitas/muitos feministas foram incorporadas às delegações nacionais e observaram o fórum oficial, promovendo a interação entre um fórum e outro. Elas tomavam ciência dos debates em Huairou, buscando incorporá-los aos documentos oficiais. Concomitantemente, exerciam seu papel de lobistas perante os Estados na Conferência oficial (COSTA, 2003, p. 113). Nota-se a influência das ONGs feministas pela presença, no documento final da Conferência de Pequim, da visão de que as relações de gênero perpassavam todas as dimensões da vida social. O gênero, enquanto categoria analítica, permitia rever espaços de poder e de exclusão. Assim, diversas questões, entre elas casamento, trabalho, conflito 47 armado, estupro e educação, foram abordadas na Declaração e na Plataforma de Ação de Pequim (que são dois documentos separados, a Declaração e a Plataforma de Ação) como dimensões de poder que justificavam discriminação, a tortura e a subjugação das mulheres no plano internacional (COSTA, 2003, p. 113). No capítulo IV, item D da Plataforma de Pequim, é tratada a temática da violência contra a mulher. Em seu parágrafo 112, é definido o que se entende por violência contra a mulher: “112. O termo "violência contra as mulheres" significa qualquer ato de violência baseada em gênero que resulte, ou provavelmente resultará, em dano físico, sexual ou psicológico às mulheres, incluindo ameaças de realizar tais atos, coerção ou privação arbitrária da liberdade, seja na vida pública ou privada. Assim, a violência contra as mulheres abrange, mas não está limitada a: a. Violência física, sexual e psicológica ocorrida na família, incluindo espancamento, abuso sexual de meninas no lar, a violência relacionada com o dote, o estupro marital, mutilação genital feminina e outras práticas tradicionais prejudiciais à mulher, violência não-conjugal violência relacionada à exploração; b. A violência física, sexual e psicológica ocorrida na comunidade em geral, incluindo estupro, abuso sexual, assédio sexual e intimidação no trabalho, nas instituições de ensino e em outros lugares, o tráfico de mulheres e prostituição forçada; c. A violência física, sexual e psicológica perpetrada ou tolerada pelo Estado, onde quer que ocorra” (UNITED NATIONS, 1995, p. 48. Tradução da autora). O parágrafo 114 afirma que se incluem nesse conceito de violência contra a mulher violações de seus direitos ocorridas em situações de conflitos armados, como homicídio, estupro sistemático, escravidão sexual e gravidez forçada (UNITED NATIONS, 1995, p. 49). O parágrafo 116, por sua vez, trata da maior vulnerabilidade de mulheres que pertençam a determinados grupos, “[…] como as mulheres pertencentes a grupos minoritários, as mulheres indígenas, mulheres refugiadas, as mulheres migrantes, incluindo as trabalhadoras migrantes, as mulheres pobres que vivem em comunidades rurais ou remotas, as mulheres carentes, as mulheres detentas, as meninas, as mulheres portadoras de deficiência, as idosas, as mulheres deslocadas internas, mulheres repatriadas, mulheres que vivem na pobreza e mulheres em situações de conflito armado, ocupação estrangeira, guerras de agressão, guerras civis, terrorismo, incluindo a tomada de reféns, também são particularmente vulneráveis à violência” (UNITED NATIONS, 1995, p. 49. Tradução da autora). Já o parágrafo 118 caracteriza a violência contra a mulher como uma manifestação de relações de poder desiguais entre homens e mulheres: “A violência contra as mulheres é uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres, que levaram à dominação e à discriminação contra as mulheres pelos homens, e à prevenção do pleno avanço da mulher” (UNITED NATIONS, 1995, p. 49. Tradução da autora). 48 O parágrafo 121 da Plataforma de Ação, por sua vez, lembra que as mulheres podem estar mais vulneráveis em relação a pessoas em posição de autoridade, tanto em situações de conflito quanto de paz (UNITED NATIONS, 1995, p. 50). O item E do Capítulo IV da Plataforma de Ação de Pequim, por sua vez, trata das mulheres em situação de conflito armado. O seu parágrafo 131 afirma que violações dos direitos humanos das mulheres em situações de conflitos são violações dos princípios fundamentais do Direito Internacional dos Direitos Humanos e do Direito Humanitário. Prossegue esse parágrafo reconhecendo que violações massivas de direitos humanos, especialmente na forma de genocídio, limpeza étnica como estratégia de guerra, e estupro, incluindo estupro sistemático de mulheres em contexto de guerra, são práticas repugnantes, altamente condenáveis, e que devem ser impedidas, ao passo que seu perpetradores devem ser punidos (UNITED NATIONS, 1995, p. 56). O parágrafo 132 da Plataforma de Ação de Pequim cita as Convenções de Genebra sobre direito humanitário, e seus Protocolos Adicionais I e II, que afirmam que mulheres devem ser protegidas contra estupro e outras formas de violência sexual em contextos de guerra, e cita também o já mencionado art. 38 da Plataforma de Ação de Viena, que trata de violações dos direitos humanos da mulher em situações de conflito. O parágrafo 132 da Plataforma de Ação de Pequim segue declarando que violações desse tipo, “[…] incluindo em particular homicídio, estupro, incluindo estupros sistemáticos, escravidão sexual e gravidez forçada, exigem uma resposta particularmente eficaz. Graves e sistemáticas violações e situações que constituem sérios obstáculos ao pleno gozo dos direitos humanos continuam a ocorrer em diferentes partes do mundo. Tais violações e obstáculos incluem, bem como a tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos e degradantes ou prisões sumárias arbitrárias, todas as formas de racismo, discriminação racial, xenofobia, negação dos direitos econômicos, sociais e culturais, e intolerância religiosa.” (UNITED NATIONS, 1995, p. 56. Tradução da autora). Já o parágrafo 135 da Plataforma de Ação de Pequim considera que, embora comunidades inteiras sofram as conseqüências dos conflitos armados, mulheres e meninas são particularmente afetadas, devido ao seu status na sociedade, normalmente inferior em termos hierárquicos. Um exemplo disso, segundo ainda esse dispositivo, é que as partes do conflito, freqüentemente, estupram as mulheres impunemente, muitas vezes usando o estupro como uma tática de guerra. O impacto da violência contra a mulher em situações de conflito é experimentado por mulheres de todas as idades que sofrem os seguintes danos, consoante o parágrafo 135 da Plataforma de Ação de Pequim: 49 “deslocamento, perda do lar e da propriedade, perda ou desaparecimento involuntário de parentes próximos, pobreza e separação e desintegração da família, e as que são vítimas de atos de assassinato, terrorismo, tortura, desaparecimento forçado, escravidão sexual, estupro, abuso sexual e gravidez forçada em situações de conflito armado, especialmente como resultado das políticas de limpeza étnica e outras formas novas e emergentes de violência” (UNITED NATIONS, 1995, p. 57. Tradução da autora). Ainda segundo esse dispositivo da Plataforma de Ação, isso acaba repercutindo em conseqüências traumáticas para essas mulheres (nos planos social, econômico e psicológico) que podem durar uma vida inteira (UNITED NATIONS, 1995, p. 57). 2.2. O genocídio em Ruanda Em 1885, quando o imperialismo europeu estava em seu apogeu, na África as sociedades eram o que importava, e o Estado era uma construção sem a qual muitos poderiam viver. Havia fronteiras, mas não no que se entende através do conceito ocidental de fronteira, surgido do período de Westfália. Eram fronteiras lingüísticas, culturais, militares ou comerciais, mas tendiam a se entrelaçar e se sobrepor. Segundo Prunier, novas fronteiras foram então desenhadas, nem tanto de forma a violar as antigas fronteiras, mas sob uma lógica distinta da africana. As concepções culturais e sociais africanas não foram levadas em consideração, nem questionadas: foram simplesmente tornadas obsoletas. Para esse autor, os europeus racionalizaram as culturas africanas até a sua morte. Essa racionalidade européia foi imposta de “cima para baixo”. Justamente pelo fato de a independência dos países africanos ter ocorrido no período da Guerra Fria, os seus desdobramentos políticos só ocorreram depois do fim dela (PRUNIER, 2009, p. xxix-xxx). Assim, o pós-Guerra Fria ficou conhecido pelo rompimento de vários conflitos interétnicos. Vários nacionalismos surgidos no pós-Primeira Guerra Mundial, após o fim dos grandes impérios (Austro-Húngaro, Otomano, Alemão e Russo) e no território deles, estouraram. Além disso, as fronteiras artificialmente impostas pelo imperialismo europeu na África e na Ásia não refletiam as realidades políticas locais. O colonialismo europeu nessas regiões também acirrava disputas étnicas através do favorecimento de um grupo em detrimento de outro, com o fim de fortalecer o poder colonial. Esses problemas tinham sido contidos pelo balanço de poder hegemônico entre URSS e Estados Unidos no pós-Segunda Guerra Mundial. Com a queda do bloco comunista, a possibilidade de manutenção de zonas 50 de influência diminuiu, e a disputa pelo poder dentro de vários Estados, assim como as antigas demandas nacionalistas, cresceu de forma violenta (RODRIGUES, 2000, p. 6-7). É nesse contexto que ocorre o genocídio ruandês de 1994. Em 1889, a Alemanha declarou Ruanda seu protetorado, mas com a derrota na I Guerra Mundial, a Bélgica ocupou o país. Os tutsis então foram transformados pela metrópole no grupo dominante na colônia. Em 1961, um plebiscito supervisionado pela ONU tornou o país autônomo, e em 1962 ocorreu a independência. Então, as elites políticas hutus substituíram os belgas numa violenta competição, causando centenas de mortes de tutsis e causando milhares de refugiados espalhados no Burundi, Tanzânia e Uganda. A guerra civil ruandesa tem suas raízes na colonização belga, que manipulou essa clivagem entre as elites ruandesas na competição política que se instaurou a partir de seu processo de colonização. (RODRIGUES, 2000, p. 132). Em 1973, Juvenal Habyarimana chega ao poder, derrubando o antigo presidente. Desde então, a sociedade se tornou cada vez mais estratificada, pois houve um sistema de cotas étnicas para empregos e oportunidades educacionais em favor dos hutus. Além disso, Habyarimana favoreceu uma minoria de hutus do norte do país, principalmente representantes de seu próprio clã (RODRIGUES, 2000, p. 133). Isso acabou gerando um fluxo de refugiados tutsis para outros países da região dos Grandes Lagos Africanos, dentre eles Uganda. Nos anos oitenta, ataques contra a população refugiada ruandesa em Uganda levaram os exilados a se unirem ao Movimento Revolucionário Nacional, e, em 1979, os membros mais antigos desse grupo fundaram a Aliança Ruandesa para a Unidade Nacional, que mudou de nome em 1979 para Frente Patriótica Ruandesa (FPR). Seu compromisso era o de promover a reconciliação étnica (RODRIGUES, 2000, p. 133). Foi nesse país que se formou a liderança dessa força política, que nasceu em campos de refugiados em Uganda. A FPR atacou Ruanda a partir do sul de Uganda em 1990. Esse seria o primeiro confronto do que depois se tornaria uma guerra civil, cujo objetivo era forçar o governo ruandês a aceitar a repatriação dos refugiados, em sua maioria tutsis. França e Bélgica enviaram tropas para Kigali, a capital, para proteger seus nacionais. O Zaire (atual República Democrática do Congo), também enviou ajuda, mas com a função explícita de apoiar o exército ruandês. A FPR foi vencida e, então, passou a se organizar como movimento de guerrilhas. O governo, por sua vez, passou a promover massacres contra a população civil 51 tutsi, em represália aos membros da FPR que arrasavam aldeias hutus (RODRIGUES, 2000, p. 133-134). Durante os três anos que precederam o genocídio, o conflito em Ruanda foi visto como um caso de guerra civil de baixíssima intensidade, mitigada e remediada por esforços significativos. Nas palavras de Bruce Jones, “A extraordinária ironia é que essa matança escalou a partir de uma guerra civil tão baixa em intensidade que ela escapou ao radar do monitoramento internacional de conflitos. (...) Aliás, o número de mortes na guerra era tão baixo que o Stockholm International Peace Research Institute categorizava a luta como ‘disputa’” (JONES Apud ALVES, 2005, p. 102). Poucos dias após a invasão da FPR em 1990, o governo belga enviou a Ruanda uma missão composta pelo primeiro-ministro, o ministro das relações exteriores e o ministro da defesa, que se encontraram com o Presidente Habyarimana em Nairóbi (capital do Quênia), em 14 de outubro daquele ano. A comitiva belga fez visitas ao Quênia, a Uganda, à Tanzânia, e à Organização da Unidade Africana (OUA) 28, iniciando um processo regional para lidar com a crise ruandesa. Em junho de 1992, o governo ruandês concordou em iniciar negociações políticas abrangentes rumo a um acordo de paz. A Declaração de Paz de Arusha foi assinada pelo governo ruandês e pela FPR em 4 de agosto de 1993, na cidade tanzaniana de Arusha, e dava término formal ao conflito, instaurando um governo de transição com a participação da FPR, embora houvesse oposição de hutus extremistas quanto a isso (ALVES, 2005, p. 134). No papel, Arusha resolvia as mais importantes questões que subjaziam o conflito, como o direito dos refugiados de retornar a Ruanda e a integração das forças armadas. Parte da Declaração era um programa de implementação que previa o desdobramento de uma missão de paz que viria, futuramente, a ser denominada UNAMIR (Missão de Assistência das Nações Unidas para Ruanda), o estabelecimento de um amplo governo de transição, que incorporaria todas as etnias, e eleições multipartidárias a se realizarem no máximo até 1995 (ALVES, 2005, p. 104). O ex-comandante da UNAMIR, Tenente-general Roméo Dallaire, afirma que com a liderança do DPKO (Departamento de Operações de Peacekeeping da ONU) focada principalmente nos Bálcãs, o funcionário do Departamento que entendia melhor da situação em Ruanda era Hedi Annabi, que parecia, aliás, ser quem lidava com todas as desgraças do continente africano no DPKO. Annabi era o único na ONU que parecia enxergar de forma mais cética o acordo de Arusha, pois os extremistas hutus tinham assinado a Declaração de 28 A OUA foi sucedida pela União Africana (UA), fundada em 2002. 52 Arusha sob enorme pressão (DALLAIRE, 2005, p. 86). Como afirmou Dallaire em relação a Arusha posteriormente aos fatos ocorridos em Ruanda em 1994: “O Acordo de Paz [Arusha] era um documento complexo que foi o resultado da arbitragem feita pelo presidente da Tanzânia, Ali Hassan Mwinyi, em Arusha, durante quase dois anos de negociações conturbadas. O que não era evidente para nós sentados em Nova York era que o acordo encobria, mais do que resolvia, os principais problemas de como dividir o poder entre as partes anteriormente em conflito e como reinstalar refugiados em Ruanda, alguns dos quais tinham saído do país há quarenta e tiveram filhos que afirmam serem cidadãos ruandeses. Também não apreciávamos a situação dos direitos humanos no país depois de tanta luta. (Essa informação estava disponível em Nova York, mas devido à falta de partilha de informações entre os serviços nas agências da ONU e as organizações não-governamentais (ONGs), ninguém nos proveu com elas, até que nós chegamos ao país, em outubro de 1993)” (DALLAIRE, 2005, p. 54. Tradução da autora). Então, a ONU enviou ao país uma missão de manutenção da paz, a UNAMIR, naquele mesmo ano, com os objetivos de monitorar o cessar-fogo e de acompanhar o processo de desmilitarização. Essa missão foi instituída em resposta à demanda das partes contratantes da Declaração de Arusha por uma Força Neutra Internacional (FNI) que tivesse um papel ativo na implementação e no monitoramento dos acordos. Os proponentes da Declaração de Arusha esperavam que a FNI garantisse a segurança geral no país, provesse segurança para os civis, detectasse fluxos de armas e neutralizasse grupos armados. A UNAMIR possuía um mandato extremamente restrito, dentro do Capítulo VI29 da Carta da ONU, com o uso de armas autorizado apenas para a autodefesa, cujo mandato foi estabelecido pela Resolução 872 de 199330 (ALVES, 2005, p. 104). Esse mandato restrito reflete o fato de, conforme afirma Ana Cristina Araújo Alves, Ruanda ter sido apresentada à ONU como uma operação “fácil”: “[...] Ruanda foi apresentada à ONU como uma operação “fácil”: havia um cessar-fogo estável, um tratado de paz apoiado pelas partes, acordos que prometiam reconciliação nacional, democracia e a promessa de fazer dos ódios étnicos um legado do passado” (ALVES, 2005, p. 104). 29 Cabe aqui fazer uma distinção entre a atuação do Conselho de Segurança sob os Capítulos VI e VII da Carta das Nações Unidas. O Capítulo VI da Carta da ONU trata da atuação do CS na solução pacífica de controvérsias que tem o potencial de abalar a paz e a segurança internacionais. O Capítulo VII da Carta, por sua vez, trata de ações relativas a ameaças à paz, rupturas de paz e atos de agressão. Medidas tomadas pelo Conselho de Segurança consoante o Capítulo VII da Carta da ONU possuem eficácia erga omnes (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945, p. 22-31). 30 O mandato da UNAMIR, estabelecido pela Terceira cláusula preambular da Resolução 872 (1993) do Conselho, era o seguinte: “(a) Contribuir para a segurança da cidade de Kigali, inclusive dentro da “área segura de armas” estabelecida pelas partes dentro e em torno da cidade; (b) Monitorar a observância de um acordo de cessar-fogo, que peça pelo estabelecimento de zonas de aquartelamento e de assembléia e a demarcação da nova zona desmilitarizada, e de novos procedimentos de desmilitarização; (c) Monitorar a segurança do período final do mandato do governo de transição, de forma a anteceder as eleições; (d) Prestar assistência na desminalização, primariamente através de programas de treinamento; (e) Investigar, a pedido das partes ou por iniciativa própria, casos de suposta não conformidade com os dispositivos do Acordo de Paz de Arusha relativos à integração das Forças Armadas, e perseguir tais casos com as partes responsáveis, e relatá-los, quando couber, ao SecretárioGeral; (f) Monitorar o processo de repatriação dos refugiados e deslocados internos ruandeses para verificar se ele está ocorrendo de maneira segura e ordenada; (g) Assistir na coordenação de atividades de assistência humanitária em conjunto com operações de socorro; (h) Investigar e relatar incidentes relativos a atividades da gendarmerie e da polícia” (UNITED NATIONS, 1993, p. 2. Tradução da autora). 53 Dallaire relata que a liderança do DPKO, ao se reunir com ele pela primeira vez na sede da ONU me Nova York, em 1993, falava de Ruanda como uma chance de melhorar a imagem das operações peacekeeping da ONU. Ficava claro que a missão era considerada uma atividade secundária em relação a um evento principal, que estava sempre em lugar mais importante, como a Bósnia, o Haiti, a Somália31 ou Moçambique, mas não naquele país africano pequeno que quase ninguém sabia indicar no mapa onde estava localizado (DALLAIRE, 2005, p. 55). Porém, contrariamente às expectativas internacionais, houve uma contínua deterioração da situação política e de segurança em Ruanda desde a assinatura dos acordos de Arusha, na qual estavam presentes a polarização da política ruandesa, a demonização da FPR e o repúdio a Arusha por parte dos extremistas (ALVES, 2005, p. 105) 32. Diante de uma situação já deteriorada, o avião em que estavam Habyarimana e o presidente do Burundi, Ntaryamira, quando retornavam de negociações a respeito do processo de implementação do acordo, foi abatido (um incidente até hoje não explicado) e ambos morreram. Esse fato desencadeou uma torrente de violência e morte com conotações políticas e étnicas, que teve início em 7 de abril de 1994. A Primeira-ministra do governo interino estabelecido em Arusha, Agathe Uwilingiyimana, hutu moderada, o gabinete de ministros e os oficiais do governo estabelecido em Arusha (todos tutsis ou hutus moderados) e a UNAMIR foram os primeiros alvos, seguindo-se ataques massivos a hutus moderados e, sobretudo, a tutsis, tentando exterminar essa etnia. Além disso, a autoridade governamental foi desintegrada. O governo interino que assumiu em abril de 1994 através de um golpe de Estado acobertou e incentivou o genocídio (RODRIGUES, 2000, p. 134-135). 31 Alguns soldados americanos foram mortos numa operação de paz da ONU na Somália, em uma emboscada. Esse fato fez com que o país se tornasse relutante em enviar soldados para missões de paz, e que vários outros Estados (inclusive devido à subseqüente morte de soldados paquistaneses que foram resgatar esses americanos) tivessem atitude similar. Além disso, essa falha na Somália acarretou uma falta de confiança da comunidade internacional nas missões de paz da ONU. 32 Em 30 de março de 1994, antes mesmo de começarem a ocorrer os genocídios, o contexto doméstico ruandês era descrito por Boutros Boutros-Ghali, o então Secretário-Geral da ONU, da seguinte forma: “Apesar do fato de o Governo Ruandês e a Frente Patriótica Ruandesa (FPR) haverem concordado em Kinihira em 10 de dezembro de 1993 em estabelecer o governo de transição e a Assembléia Nacional de Transição antes de 31 de dezembro, isso não ocorreu como resultado da incapacidade das partes em questão de concordar sobre modalidades relevantes, incluindo as listas dos membros do governo de transição e da Assembléia Nacional de Transição. (...) O prolongado atraso em estabelecer as instituições de transição tem não apenas impedido a UNAMIR de realizar suas tarefas de acordo com a agenda de implementação aprovada pelo Conselho de Segurança, mas tem também contribuído para a deterioração da situação de segurança no país e colocado uma ameaça ao processo de paz” (BOUTROS-GHALI Apud ALVES, 2005, p. 105). 54 A invasão de soldados extremistas hutus à casa de Agathe Uwilingiyimana não custou apenas a vida de uma apoiadora proeminente da paz e da divisão do poder entre tutsis e hutus, mas também provocou o colapso da UNAMIR, ao seqüestrarem todos os peacekeepers que faziam a segurança de Uwilingiyimana. Então, eles levaram os peacekeepers para um campo militar, deixaram os ganeses em segurança, e mataram e mutilaram dez belgas. Devido ao fato de os EUA terem se retirado da Somália devido à morte de dezoito soldados norteamericanos em ação naquele país, os extremistas Hutus acreditavam que a morte dos belgas, que constituíam o contingente melhor preparado e melhor equipado da UNAMIR, ocasionaria uma retirada desse contingente de Ruanda e, assim, facilitaria o trabalho dos genocidas. E foi exatamente isso o que ocorreu (POWER, 2007, p. 332). Segundo Samantha Power, a partir do início desses eventos, Dallaire também recebeu ordens para que fosse dada prioridade à evacuação de estrangeiros. O DPKO, que havia rejeitado a proposta de Dallaire, feita em janeiro de 1994, de serem realizadas incursões em esconderijos de armas dos extremistas hutus, com base na política da ONU de neutralidade e de se evitar o enfrentamento, enviou um fax específico quando começou o genocídio: “Você deve fazer todo esforço para não comprometer a sua imparcialidade ou de agir além de seu mandato, mas pode exercer o seu poder discricionário de fazer [isso] se isso for essencial para a evacuação de cidadãos estrangeiros. Isto não deve, repito, não estende a participação em um possível combate, exceto em legítima defesa.” (Apud POWER, 2007, p. 352. Tradução da autora). A neutralidade era essencial. Evitar o combate também era vital, mas Dallaire poderia fazer uma exceção a esses dois princípios das operações de paz da ONU em benefício da comunidade estrangeira situada em Ruanda (POWER, 2007, p. 352). Como reação aos eventos genocidas, foi reiniciada a guerra civil, havendo retaliação pela FPR. Como o principal mandato da UNAMIR era monitorar o cessar fogo, a missão viuse, de repente, sem mandato. Na noite de 12 de abril, Dallaire recebeu um telefonema da Europa. Era Gharekhan, um assistente especial de Boutros Boutros-Ghali, na linha. Ele informou que o governo belga havia decidido retirar seus “peacekeepers” da UNAMIR. Gharekhan então pediu que Dallaire considerasse opções futures, e terminou a ligação (DALLAIRE, 2005, p. 294). Na mesma noite, Maurice Baril confirmou que o SG, após consultar o Ministro belga das Relações Exteriores, iria notificar o CS sobre a retirada do contingente belga da 55 UNAMIR. Boutros-Ghali pensava que essa retirada dos belgas de Ruanda colocaria toda a missão em perigo. Porém, Dallaire afirmou a Baril que não sairia de Ruanda (DALLAIRE, 2005, p. 294). Em 14 de abril, Dallaire recebeu outro fax do DPKO, solicitando que ele examinasse duas novas opções de contingenciamento da missão. A primeira era afirmar aos dois lados do conflito que o SG estava considerando a possibilidade de manter a UNAMIR em Ruanda por mais três semanas, embora sem os belgas, mas com o equipamento desse contingente que estava sendo retirado, de forma a permitir às partes acelerar o processo estabelecido em Arusha - mas somente se houvesse um cessar-fogo nesse período e o aeroporto de Kigali fosse considerado território neutro. A outra possibilidade era a de que, não havendo o cessar-fogo, a UNAMIR seria retirada, permanecendo somente Dallaire, Jacques-Robert Booh-Booh (o Representante Especial do SG em Ruanda) e algo em torno de 200 a 250 tropas, um número bastante reduzido (DALLAIRE, 2005, p. 295). No dia seguinte, Dallaire recebeu um fax do DPKO afirmando que as duas propostas foram aprovadas pelo SG e foram apresentadas por ele ao CS para deliberação. O DPKO adicionou uma Terceira opção: a missão começaria com 2.000 tropas e depois seria gradativamente reduzida até possuir apenas 250 tropas caso não houvesse cessar-fogo em três semanas. Boutros-Ghali era favorável à primeira opção, e a França apoiava o plano, mas estabelecendo o prazo para o cessar-fogo em seis dias, sendo apoiados pelos britânicos. A Nigéria, falando em nome do Movimento dos Países Não-Alinhados, afirmou que não considerava nenhuma das opções adequadas, e que retirar a UNAMIR seria equivocado (DALLAIRE, 2005, p. 298). Apenas Colin Keating, representante da Nova Zelândia, país que estava com a presidência do CS, afirmou que o CS deveria reforçar a UNAMIR, revendo seu mandato, de forma a permitir que a Missão contribuísse para restabelecer a paz em Ruanda e para implementar as instituições transicionais previstas em Arusha. Porém, a discussões no CS terminaram naquele dia sem que fosse tomada uma decisão em relação à UNAMIR (DALLAIRE, 2005, p. 298 e 301). Em 21 de abril, após um longo tempo adiando a tomada de uma decisão em relação à UNAMIR após o assassinato dos dez peacekeepers belgas, o Conselho de Segurança aprovou sua Resolução 912 que, além de pedir um cessar-fogo entre as partes, decidiu por uma 56 drástica redução do contingente da UNAMIR, o que provocou uma tragédia humanitária ainda maior (RODRIGUES, 2000, p. 135-136). Reconhecendo posteriormente essa falha, a Resolução 918 do Conselho autoriza, sob o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, o aumento das forças em Ruanda para 5.500, e deu à UNAMIR o mandato de proteger os civis em risco e prover segurança e suporte para as operações de ajuda humanitária (RODRIGUES, 2000, p. 135-136), sendo essa missão com mandato renovado chamada informalmente de UNAMIR II. Apesar disso, o apoio logístico e financeiro da operação não era suficiente, e os EUA, devido à morte de soldados seus na Operação “Restore Hope” na Somália, estavam relutando em participar por causa da preocupação que a operação da Somália gerou no país (RODRIGUES, 2000, p. 136). Por isso, em virtude da carência de fundos, tropas e equipamentos necessários para a missão, não obstante seu caráter de urgência, até 20 de junho o desdobramento da UNAMIR II ainda não havia sido viabilizado (ALVES, 2005, p. 127). Diante dessa paralisia, em junho de 1994, por iniciativa francesa, o Conselho de Segurança, através da Resolução 929, autorizou uma operação humanitária multinacional temporária para a proteção dos refugiados, invocando Capítulo VII da Carta da ONU (“Ações relativas a ameaças à paz, ruptura da paz e atos de agressão”) A chamada “Operação Turquesa”, liderada pela França, fora da hierarquia de comando da ONU, era composta por 2.500 homens, todos franceses ou franco-africanos, e recebeu um mandato de dois meses sob o capítulo VII da Carta das Nações Unidas. No dia seguinte à sua aprovação pelo Conselho, as primeiras tropas da Operação Turquesa deslocaram-se de Goma, no Zaire, para o noroeste de Ruanda. (ALVES, 2005, p. 127; RODRIGUES, 2000, p. 136).33 33 É bem questionável o legítimo interesse humanitário da França nessa intervenção em Ruanda, pois a França era aliada do governo de Habyarimana, que, como citado anteriormente, implementou uma série de políticas próhutus, e foi o governo contra o qual se revoltou a RPF. Segundo Prunier, a França, desde 1960, trouxe para a sua esfera de influência os países africanos francófonos, como Ruanda, protegendo seus interesses econômicos na reunião em troca de seu envolvimento violento nesses países (PRUNIER, 2009, p. xxxiv). Segundo Simone Martins Rodrigues, ao iniciar a crise em Ruanda em 1990, a primeira ação francesa foi enviar tropas que apoiaram o governo de Habyarimana após a invasão da FPR, ligada à África de língua inglesa (devido ao fato de vários de seus integrantes terem sido criados em Uganda, país anglófono, e ter lutado na guerra civil ugandesa, em prol da subida ao poder de Yoweri Museveni –presidente de Uganda de 1986 até hoje- nesse país) através da fronteira com Uganda, ao norte. O então presidente da França, François Mitterrand, considerou que a agressão feita pela FPR era uma ação contra uma zona de língua francesa, mantendo, num primeiro momento, um discurso que fazia lembrar as políticas de manutenção da zona de influência e os argumentos geopolíticos da Guerra Fria. Mitterrand estava ansioso por recuperar a influência de seu país na África, e considerava que uma vitória da FPR poderia levar o país a se distanciar da zona de influência francesa. Após a morte de Habyarimana, a França fez de tudo para retirar a UNAMIR de Ruanda, e não implementar no país nenhuma outra força de paz ligada a uma organização internacional, seja a ONU, a OUA (Organização da Unidade Africana), ou uma força de paz mista (RODRIGUES, 2000, p. 137). A França começou no espírito de ajudar uma ditadura aliada, e terminou com bastante sangue nas mãos (PRUNIER, 2009, p. xxxiv). Porém, em meados de junho, a pressão 57 Em julho de 1994, a FPR tomou Kigali e se instalou no governo, com Pasteur Bizimungu como presidente de Ruanda, e Paul Kagame como seu Primeiro-Ministro. O novo governo declarou unilateralmente o cessar-fogo e terminou o conflito, reafirmando seu compromisso com a Declaração de Arusha e com a reconciliação e a reconstrução nacional (RODRIGUES, 2000, p. 136-137). Como afirmou Dallaire, ironicamente, o cessar-fogo unilateral era apenas outro nome para a declaração de vitória da FPR (DALLAIRE, 2007, 2005, p. 474-475). A vitória da FPR levou muitos hutus a fugirem do país com medo de represálias, refugiando-se na fronteira com o Zaire, muitos morrendo por falta de condições básicas de subsistência e ajuda médica (RODRIGUES, 2000, p. 136-137). As estimativas são de que Ruanda tinha uma população de 7,9 milhões de pessoas antes da guerra civil; depois, esse número caiu para 5 milhões. Dois milhões de pessoas se tornaram deslocados internos, e 2,1 milhões de ruandeses continuam refugiados no Zaire, Tanzânia, Burundi e Uganda (RODRIGUES, 2000, p. 139). doméstica para o empreendimento de uma ação que cessasse com as atrocidades que estavam sendo cometidas em Ruanda aumentou. A pressão por uma intervenção, segundo Rodrigues, foi especialmente forte na França devido ao amplo suporte que o direito de ingerência tem no país, e porque as forças hutus que promoviam o genocídio tinham sido treinadas e armadas pelo governo francês, trazendo um elemento de responsabilidade (RODRIGUES, 2000, p. 137-138). Ao que parece, a França pretendia intervir em Ruanda com ou sem a autorização do Conselho de Segurança. Os planos de intervenção francesa foram trazidos para a apreciação do Conselho em 20 de junho, e em 21 de junho, apenas um dia após isso, numa velocidade incrível, a França já havia começado a mover suas tropas de suas bases africanas na República da África Central e no Chade em direção a Goma (no Zaire, localizado na fronteira com Ruanda), antes da autorização do Conselho em 22 de junho. Embora formalmente tivesse motivação “humanitária” e seu caráter “imparcial” serem altamente questionáveis. Durante a travessia, os refugiados teriam sido usados como um escudo humano entre os genocidas e a FPR. Ao declarar a região próxima à fronteira com o Zaire uma zona livre e ao ameaçar responder militarmente a qualquer incursão a essa zona, a Operação Turquesa criou um porto seguro para os líderes do genocídio, e isso possibilitou que parte dos mentores e organizadores do genocídio saísse intacta de Ruanda, podendo se estabelecer no Zaire, e lá se reorganizar politicamente (RODRIGUES, 2000, p. 126-128). Nesse sentido, Dallaire narra uma situação em que foi visitar, Augustin Bizimungu (membro das Forças Governamentais Ruandesas –RGF, algo como as nossas Forças Armadas-, um dos líderes do genocídio, e que, em abril de 1994, no ápice do genocídio, assumiu a posição de Chefe de Pessoal da RGF em substituição ao moderado que ocupava esse cargo, Déogritias Nsabimana) em Goma (Zaire), na zona da Operação Turquesa, onde este estava morando, a pedido do próprio Bizimungu. Jean-Claude Lauforcade, o comandante da Operação Turquesa, ao comunicar a Dallaire que Bizimungu queria vê-lo, pediu-lhe que fosse discreto, em relação ao encontro com o ex-líder genocida, pois não seria bom para o governo francês que o mundo soubesse que um dos grandes planejadores do genocídio estava em um campo militar seu (DALLAIRE, 2005, p. 473). Quando foi visitar Bizimungu, descobriu que o ex-líder genocida estava morando num confortável bangalô numa montanha, com vista para o Lago Kivu. Lá, Dallaire encontrou Bizimungu rodeado por alguns altos oficiais das Forças Armadas do Zaire, outros da França, e seu oficial de inteligência. Tanto Bizimungu quanto seu oficial de inteligência, de acordo com Dallaire, usavam uniformes da RGF que estavam num estado impecável, botas muito bem lustradas, e pareciam relaxados, e começou a proferir a teoria da conspiração que era compartilhada pelos extremistas hutus, segundo a qual os hutus queriam formar um Estado ruandês tutsi ( DALLAIRE, 2005, p. p. 508). 58 2.3. O debate sobre a situação em Ruanda no Conselho de Segurança da ONU: genocídio? Na segunda semana de matanças, Dallaire pediu a Phillippe Gaillard, que chefiava a missão do CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha) em Ruanda, um livro de Direito Internacional. Ele folheou as Convenções de Genebra e a Convenção sobre Genocídio à procura de definições relevantes. Ao perceber que o genocídio implicava a tentativa de se eliminar um grupo específico, e que era exatamente aquilo que via em Ruanda, não teve dúvidas: estava diante de um genocídio (POWER, 2007, p. 358). Dallaire utilizou o termo pela primeira vez em um relatório sobre a situação em Ruanda durante a última semana de abril. Depois disso, a Reuters citou esse termo em uma matéria sobre Ruanda em 30 de abril, e Dallaire seguiu utilizando o termo em comunicações confidenciais da ONU em maio. Mas, mesmo depois que começou a utilizar o termo, deixou batalhas semânticas para os outros: “Eu não me atolei no debate sobre o termo genocídio [...]. Tivemos prova suficiente de que foi o genocídio, e para aqueles que não concordam, tivemos crimes contra a humanidade em uma escala maciça. O que mais precisávamos para saber o que tínhamos que fazer?” (Apud POWER, 2007, p. 358. Tradução da autora). A administração Clinton se opunha ao uso do termo para qualificar o que ocorria em Ruanda. Em 28 de abril de 1994, Christine Shelley, a porta-voz do Departamento de Estado, começou uma “dança” de dois meses para evitar o uso do termo “genocídio”. O temor ao uso desse termo seria ele causar demandas para uma intervenção que a administração Clinton não queria realizar (POWER, 2007, p. 359). Isso porque a aplicação da Convenção sobre Genocídio ainda era algo novo naquele momento, os Estados Unidos ficavam preocupados com as demandas por intervenção que poderiam ser geradas por dois dispositivos da Convenção (STRAUS, 2005, p. 129). Um deles é o art. 5º, que afirma que “As Partes Contratantes obrigam-se a adotar, de acordo com as suas Constituições respectivas, as medidas legislativas necessárias para assegurar a aplicação das disposições da presente Convenção e, especialmente, a prever sanções penais eficazes que recaiam sobre as pessoas culpadas de genocídio ou de qualquer dos atos enumerados no artigo 3.º [condutas equiparadas ao genocídio]” (BRASIL, 1952). O outro é o art. 8º, segundo o qual “As Partes Contratantes podem recorrer aos órgãos competentes da Organização das Nações Unidas para que estes, de acordo com a Carta das Nações Unidas, tomem as medidas que julguem apropriadas 59 para a prevenção e repressão dos atos de genocídio ou dos outros actos enumerados no artigo 3.º” (BRASIL, 1952). Christine Shelley afirmava, na época do conflito em Ruanda: “Agora, certamente, há algumas ações que ocorreram que certamente cabem nesses elementos [do crime de genocídio] (Apud POWER, 2007, p. 360. Tradução da autora). Segundo Shelley: “As intenções, as intenções precisas, e se estes [ataques] são apenas dirigidos episodicamente ou com a intenção de realmente eliminar os grupos no todo ou em parte, esta é uma questão mais complicada de resolver. [...] Eu não sou capaz de olhar para todos estes critérios neste momento e dizer sim ou não. É algo que requer um estudo muito cuidadoso antes de podermos dar uma resposta definitiva” (Apud POWER, 2007, p. 360. Tradução da autora). Quando a porta-voz do Departamento de Estado da Casa Branca foi perguntada se a descoberta de que o que de fato ocorria em Ruanda era genocídio iria obrigar os EUA a agirem de forma a interrompê-lo, Shelley novamente se remeteu aos termos da Convenção sobre Genocídio, afirmando que esse tratado não implicava numa obrigação de intervir (Apud POWER, 2007, p. 360. Tradução da autora). Então, o Conselho de Segurança, ao discutir a situação em Ruanda, começou a ficar dividido quanto ao uso do termo para descrever o que estava se passando no país. Segundo William Schabas, desde as primeiras semanas do genocídio, o CS utilizou linguagem que indicava foco em responsabilidade penal individual. O Conselho de Segurança da ONU inicialmente condenou a violência, pedindo aos envolvidos que respeitassem o Direito Internacional Humanitário (Resolução 912 de 21 de abril de 1994) (SCHABAS, 2006, p. 25). O embaixador tcheco Karel Kovanda chegou a reclamar que 80% do tempo do CS estava sendo gasto em como retirar os peacekeepers da UNAMIR, e os outros 20% em pedir um cessar-fogo para acabar com a guerra civil, o que ele comparava a pedir a Hitler um cessar-fogo com os judeus. O CS não gastou energia com o genocídio. Quando o presidente do CS elaborou um discurso que qualificava o que ocorria em Ruanda como genocídio, os EUA (Estados Unidos) se opuseram. Power cita o original desse discurso não aprovado: “O Conselho de Segurança reafirma que a matança sistemática de membros de qualquer grupo étnico, com a intenção de destruií-lo, no todo ou em parte, constitui genocídio. [...] O Conselho lembra ainda que um importante conjunto de normas de Direito Internacional que lida com os perpetradores do genocídio existe” (Apud POWER, 2007, p. 361. Tradução da autora). Power cita um fax da missão dos EUA junto à ONU em Nova York enviado ao Departamento de Estado, ao qual teve acesso. Nesse faz um conselheiro político da missão escreveu: 60 “Os acontecimentos em Ruanda parecem claramente satisfazer a definição de genocídio do Artigo II da Convenção de 1948 para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. No entanto, se o Conselho reconhecer isso, pode ser forçado a tomar "as medidas [no âmbito da Carta da ONU] que julguem apropriadas para a prevenção e repressão dos atos de genocídio", conforme previsto no artigo VIII [da Convenção]” (Apud POWER, 2007, p. 361. Tradução da autora). Devido à insistência dos EUA e do Reino Unido, o termo genocídio foi excluído do discurso do presidente do CS. O discurso final afirma que: “O Conselho de Segurança condena todas essas violações do direito internacional humanitário em Ruanda, em especial aqueles perpetrados contra a população civil, e lembra que pessoas que tenham instigado ou participado de tais atos são individualmente responsáveis. Neste contexto, o Conselho de Segurança lembra que o assassinato de membros de um grupo étnico com a intenção de destruí-lo, no todo ou em parte, constitui um crime punível sob o Direito Internacional” (Apud POWER, 2007, p. 361. Tradução da autora). Assim, nessa ocasião, o Presidente do CS declarou que pessoas que participassem ou instigassem tais atos fossem responsabilizados internacionalmente, utilizando novamente a linguagem do art. II da Convenção do Genocídio, mas sem mencionar esse termo. Em Resolução que data de 17 de maio de 1994 (Resolução 918), o CS evoca, no preâmbulo, a linguagem Convenção do Genocídio, mas sem utilizar o termo genocídio (SCHABAS, 2006, p. 25-26). Até que, em junho de 1994, depois de muito debate, o Conselho de Segurança finalmente reconheceu, através da aprovação de sua Resolução 925, que o que ocorreu em Ruanda foi genocídio, afirmando, em seu preâmbulo: “[...] Notando com grave preocupação os relatórios que indicam que atos de genocídio ocorreram em Ruanda, e lembrando, nesse contexto, que o genocídio constitui um crime punível sob o Direito Internacional […]” (SCHABAS, 2000, p. 461; SCHABAS, 2006, p. 161; UNITED NATIONS, 1994 a, p. 1. Tradução da autora). Em julho de 1994, através da Resolução 935, o CS, após sua lenta atuação lenta quando o genocídio estava acontecendo, votou no sentido de estabelecer uma comissão de especialistas, similar em termos de estrutura e mandato à que fora criada para investigar ações a serem tomadas quando do conflito na ex-Iugoslávia (VAN DEN HERIK, 2005, p. 26), com o mandato de investigar os fatos ocorridos em Ruanda naquele ano, incluindo possíveis atos de genocídio (note-se que o CS ainda não havia determinado, conforme solicita o art. 39 da Carta da ONU, se os fatos realmente constituíam genocídio, para então tomar as medidas 61 cabíveis34). Pediu-se também que o SG submetesse o relatório da Comissão de Especialistas ao CS quatro meses depois. A Comissão de Especialistas considerou que, no contexto ruandês, um tribunal de caráter internacional teria mais chances de promover um julgamento justo, e estipulou que os crimes preocupam a sociedade internacional como um todo, devido a sua extrema gravidade. Na visão da Comissão, um Tribunal não apenas traria justiça no caso sob investigação, como também evitaria que novas atrocidades daquele nível voltariam a acontecer (VAN DEN HERIK, 2005, p. 41). Em seu relatório, a Comissão sugeriu que a competência o do TPII fosse expandida para implementar sua recomendação. Porém, fazer isso poderia resultar numa corte internacional penal com jurisdição universal. Isso não está dentro das competências do CS, pois ele só pode atuar em violações específicas da paz e segurança internacional. Por isso, o CS resolver criar um tribunal ad hoc separado do TPII, porém compartilhando com este a Câmara de Apelações e o Procurador, para fins econômicos e de preservar a unidade legal (VAN DEN HERIK, 2005, p. 41-42). Assim, em novembro de 1994, o CS estabeleceu, invocando o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, o TPIR, através da Resolução 955, e aprovou o Estatuto do Tribunal. 2.4. Violência sexual durante o genocídio ruandês Esse item busca estudar características gerais da violência sexual perpetrada contra as mulheres durante o genocídio ruandês de 1994. É bom mencionar que nem todas essas características se encontram no julgado do caso Akayesu. Esse item serve, como este capítulo como um todo, para contextualizar o caso. Quando o surto de violência começou em abril de 1994, o estupro de mulheres tutsis foi amplamente praticado. As atrocidades cometidas contra as mulheres tutsis refletem, segundo Adam Jones, as relações de gênero em Ruanda no período anterior a 1994. Essas mulheres eram descritas, tanto por hutus quanto por tutsis, como mulheres “de elite”, como 34 “O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão, e fará recomendações ou decidirá que medidas deverão ser tomadas de acordo com os Artigos 41 e 42, a fim de manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945, p. 25). 62 sendo mais bonitas, mais altas, e com nível educacional mais alto. Ao mesmo tempo, mulheres tutsis eram descritas como mulheres que usariam sua suposta vantagem sexual para “subverter a nação” (HUMAN RIGHTS WATCH, 1996; JONES, 2002, p. 78). Um exemplo dessa propaganda étnica é retrata em Power. Segundo a autora, em dezembro de 1990 o jornal impresso Hutu Kangura (termo em kinirwanda –um dialeto ruandês- que significa, em português, “acorde”) publicou os “Dez mandamentos para um Hutu”, que articulavam as regras que os radicais esperavam ver impostas. Dentre esses mandamentos, nos interessam os dois primeiros, transcritos pela autora: “1. Todo Hutu deve saber que uma mulher Tutsi, seja quem ela for, trabalha para os interesses de seu grupo étnico. Como resultado, devemos considerar como traidor qualquer Hutu que: • Casa-se com uma mulher Tutsi; • É amigo de uma mulher Tutsi; • Emprega uma mulher Tutsi como sua secretária ou cocumbina. 2. Todo Hutu deve saber que nossas filhas Hutus são mais confiáveis e conscientes de seus papéis como mulheres, esposas e mães de família. Elas não são bonitas, boas secretárias e mais honestas?” (Apud POWER, 2007, p. 338. Tradução da autora). Essa vulnerabilidade das mulheres tutsis à violência genocida foi aumentada quando os meios de comunicação dominados por extremistas hutus ruandeses começaram a afirmar haver uma ligação entre seus charmes e desejos com os das tropas estrangeiras, especialmente belgas, que estavam servindo em Ruanda sob os termos dos Acordos de Arusha. Algumas charges publicadas em jornais extremistas hutus, por exemplo, regularmente retratavam mulheres tutsis abraçando Dallaire, com o título “General Dallaire e suas tropas caíram na armadilha das mulheres fatais”, ou servindo sexualmente soldados belgas que estavam servindo na UNAMIR (JONES, 2002, p. 78).35 Durante o genocídio, o estupro em massa foi utilizado como estratégia deliberada da Interahamwe36 para eliminar o grupo étnico tutsi. Além do trauma da violação sexual em si, as conseqüências para as mulheres que sofreram esses estupros incluíram altos níveis de contágio por HIV, num contexto de acesso limitado ou de nenhum acesso a medicamentos 35 Em relação a esses episódios específicos das charges, há alguns relatos apresentados por Dallaire. Afirma o excomandante da UNAMIR que alguns membros do contingente belga estavam se relacionando com mulheres tutsis, e que isso estava sendo extremamente prejudicial à UNAMIR, dado que a imprensa extremista hutu aproveitou esse fato tanto para fazer propaganda de ódio das mulheres tutsis, quanto para tornar parte da população ruandesa hostil à Missão, alegando que ela seria a favor dos tutsis. Mesmo com uma série de sanções disciplinares impostas tanto por Dallaire quanto por Luc Marchal (comandante do setor de Kigali da UNAMIR, e também do contingente belga da Missão), alguns soldados continuavam tendo condutas tidas como inadequadas nesse sentido e, muitas vezes, acompanhadas de comportamentos racistas e colonialistas, de forma que alguns soldados belgas tiveram que ser repatriados em função desse tipo de atitude (DALLAIRE, 2005, p. 183-185). 36 A Interahamwe é uma milícia extremista hutu. 63 anti-retrovirais. Quando a violência genocida terminou, a maioria dos homens havia morrido, ou se refugiado em países vizinhos, deixando uma população composta por 70% de mulheres. (VALJI, 2007, p. 6). Dallaire relata ter visto cenas de mulheres mortas, numa posição que claramente indicava que antes elas haviam sido estupradas: “Vimos muitas faces da morte durante o genocídio, desde a inocência de bebês até o espanto das pessoas idosas, de faces desafiadoras de combatentes ao estado resignado de freiras. Eu vi tantos rostos e tento até agora me lembrar de cada um. No início eu parecia desenvolver uma tela entre mim e aquelas imagens e sons, que me permita ficar focado no trabalho a ser feito. Por muito tempo eu apaguei completamente da minha mente as máscaras da morte das meninas e mulheres estupradas e mutiladas sexualmente, como se o que tinha sido feito para elas era a última coisa que iria me tirar do sério. Mas se você olhasse, poderia ver as provas, mesmo nos esqueletos esbranquiçados. As pernas dobradas e separadas. Uma garrafa quebrada, um ramo tosco, mesmo uma faca entre elas. Onde os corpos estavam frescos, vimos o que parecia ter sido agrupado dentro e próximo das mulheres e meninas mortas. Havia sempre muito sangue. Alguns cadáveres do sexo masculino tiveram seus órgãos genitais cortados, mas muitas mulheres e meninas tiveram seus seios decepados e os seus órgãos genitais grosseiramente cortados. Elas morreram em uma posição de total vulnerabilidade, de costas, com suas pernas dobradas e joelhos afastados. Foi a expressão de seus rostos mortos que me impressionavam mais, um friso de dor em choque e humilhação. Por muitos anos, depois que voltei para casa, eu expulsei as memórias daqueles rostos de minha mente, mas eles voltaram, de forma muito clara” (DALLAIRE, 2005, p. 430. Tradução da autora). Em um relatório dirigido ao Conselho Econômico e Social das Nações Unidas sobre a situação dos direitos humanos em Ruanda, René Degni-Ségui, o então Relator Especial da Comissão de Direitos Humanos37 da ONU, traz algumas informações sobre os estupros cometidos em Ruanda no período do genocídio. Segundo o relatório, não há estatísticas exatas quanto aos estupros, mas somente estimativas. O Ministério Ruandês da Família e da Proteção da Mulher registrou a ocorrência de 15.700 casos de mulheres estupradas durante o genocídio. Mas, por uma série de razões, como a vergonha e a humilhação social que essas vítimas podem sofrer ao admitirem publicamente terem sido estupradas, e o fato de muitas das vítimas de estupro nesse período terem sido mortas em seguida (como apresentado no relato de Dallaire sobre corpos de mulheres que apresentavam evidências de terem sido estupradas logo antes de serem mortas), Degni-Ségui acredita que esses dados subestimam o número de estupros que realmente ocorreu no período do genocídio (UNITED NATIONS, 1996). Outro fator que dificulta na coleta de dados em relação aos estupros ocorridos no período do genocídio ruandês é o medo sentido por essas mulheres, pois muitos dos perpetradores ainda estão vivos, morando entre elas, e às vezes até são vizinhos dessas mulheres (HUMAN RIGHTS WATCH, 1996). De acordo com Lisa Sharlach, em algumas áreas de Ruanda, quase 37 A Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas foi extinta em 2006 e sucedida pelo Conselho de Direitos Humanos, que possui uma estrutura diferente da antecessora, mas as mesmas atribuições. 64 todas as mulheres tutsis que sobreviveram ao episódio de violência em 1994 foram estupradas (SHARLACH, 2009, p. 187). Comparando-se os estupros genocidas ocorridos em Ruanda com os ocorridos na exIugoslávia, ao contrário destes, não há evidência de que os hutus planejavam engravidar as mulheres tutsis, de forma a perpetuar sua etnia (embora tais gravidezes tenham sido uma óbvia conseqüência dos estupros).38 Porém, diferentemente do que ocorreu na ex-Iugoslávia, em Ruanda estupros foram praticados como forma de transmissão do HIV/AIDS. Há relatos de que alguns estupradores hutus disseram às suas vítimas que eram portadores de HIV, e que as estavam estuprando para que elas morressem lentamente de AIDS. Como conseqüência, muitas mulheres que sobreviveram aos estupros se tornaram soropositivas, e, dada a escassez de acesso a medicamentos anti-retrovirais em Ruanda, várias delas morreram de AIDS. Mas, apesar das supracitadas diferenças entre os estupros genocidas em Ruanda e na antiga Iugoslávia, eles compartilham uma característica: a intenção dos perpetradores era humilhar as suas vítimas através do estupro devido à sua identidade étnica. Em ambos os casos, o estupro funcionou como meio de destruir relações inter-pessoais numa determinada comunidade (ALISON, 2007, p. 87; BIJLEVELD, MORSSINKHOF, SMEULERS, 2009, p. 213; SHARLACH, 2009, p. 187; WEITSMAN, 2008, p. 577). Miranda Alison também pontua outra característica em comum entre os estupros coletivos cometidos em Ruanda e na antiga Iugoslávia: o fato de o estupro cometido por gangues (cuja nomenclatura corriqueira em inglês, “gang-rape”, se refere ao estupro de uma ou mais mulheres de forma reiterada por uma coletividade de homens, e que, em ambos os conflitos, respondia por uma proporção considerável dos estupros) assumir uma função de unir os homens dos grupos que perpetravam esse crime. Estabelecia-se, através do estupro cometido por gangues, um senso de lealdade entre homens, que fortalecia ainda mais o sentimento de pertencimento a um determinado grupo étnico (ALISON, 2007, p. 77). O tratamento que as mulheres tutsis que sobreviveram ao estupro têm em seu país não é dos melhores: a percepção popular é que essas mulheres se prostituíram para salvar suas próprias vidas. Essas mulheres acabaram se tornando párias dentro da sociedade ruandesa 38 A gravidez forçada, consistindo no estupro e em impedir que a mulher estuprada aborte o filho fruto desse estupro, foi amplamente praticada no genocídio ocorrido na década de 1990 na antiga Iugoslávia como forma de limpeza étnica, dado que a etnia é transmitida pela linhagem paterna. A sociedade ruandesa também é uma sociedade patrilinear, e a transmissão da linhagem hutu para os filhos de mulheres tutsis decorrente de estupros genocidas em Ruanda acabou sendo conseqüência do genocídio de 1994 (FRANKE, 2006, p. 819; CAMPANARO, 2001; HAFFAJEE, 2006, p 205; LINDROOS, 2003, p. 16-17). 65 pelo fato de terem sido estupradas, e algumas relatam preferir terem morrido durante o genocídio a ter sobrevivido aos estupros e sofrerem conseqüente humilhação social (SHARLACH, 2009, p. 188; JONES, 2002, p. 82). Brenda Fitzpatrick cita um dado do Rwandan National Population Office, que estima que entre duas e cinco mil gravidezes em Ruanda no ano de 1994 resultaram de estupros (FITZPATRICK, 2003, p. 77-78). Em decorrência disso, há relatos de muitos abandonos e infanticídios de crianças nascidas dos estupros ocorridos no genocídio ruandês. Essas crianças são chamadas comumente em Ruanda como enfants mauvais souvenirs (crianças que trazem más lembranças). (FITZPATRICK, 2003, p. 77-78; WEITSMAN, 2008, p. 577). Em alguns casos, a esterilização forçada foi praticada, de forma a impedir mulheres tutsis de jamais se reproduzirem novamente (DRUMBL, 2000, p. 23). Apesar de haver esses relatos sobre violência sexual durante o conflito ruandês de 1994, o Conselho de Segurança das Nações Unidas não deu o mesmo tratamento a esse problema que o dado à violência sexual ocorrida durante o conflito na ex-Iugoslávia. Um exemplo disso é o fato de a Resolução 808 de 1993 do Conselho de Segurança, que cria o TPII, mencionar o tratamento recebido pelas mulheres muçulmanas na ex-Iugoslávia 39, e a Resolução 955 de 1994 do mesmo órgão das Nações Unidas, que cria o TPIR, não mencionar as violações sexuais ocorridas cometidas contra as mulheres tutsis em Ruanda no ano de 1994 (UNITED NATIONS, 1993 b, p. 2; UNITED NATIONS, 1994 b). Isso porque Ruanda, ao contrário da ex-Iugoslávia, que liga a Rússia à Europa Ocidental, não é uma região estratégica. E ainda é pobre em recursos naturais. O reconhecimento da violência sexual sofrida pelas mulheres tutsis em Ruanda na guerra civil de 1994 somente veio em 1998, quando a Câmara de Julgamento do TPIR proferiu a condenação de Jean-Paul Akayesu. 39 O trecho da Resolução 808 do Conselho de Segurança que faz menção a essa questão é uma cláusula preambular, que afirma o seguinte: “[...] Notando também com grave preocupação o ‘relatório da missão investigativa da Comunidade Européia em relação ao tratamento de mulheres muçulmanas na antiga Iugoslávia’ […]” (UNITED NATIONS, 1993 b, p. 2. Tradução da autora). 66 III- O ESTUPRO ENQUANTO GENOCÍDIO NO CASO AKAYESU Após analisar o que é o crime de genocídio (Capítulo I), os documentos internacionais sobre direitos das mulheres dos nos 1990, o genocídio ocorrido em Ruanda em 1994, e a violência sexual perpetrada contra as mulheres tutsis nesse genocídio (Capítulo II), chega o momento de debruçar-se sobre o caso Akayesu. Começa-se esse capítulo apresentando a decisão da Câmara de Julgamentos do TPIR de considerar que o estupro constitui genocídio, e como ela se deu. Aí, a abordagem é, basicamente, descritiva, embora haja uma análise do conceito de estupro adotado pelo TPIR no caso. Posteriormente a essa descrição do caso Akayesu, analisa-se o papel dos atores envolvidos no caso, de forma a se verificar indícios de um possível impacto das estratégias ator específico, a sociedade civil global, na construção do estupro enquanto genocídio a partir do caso Akayesu. Em seguida, no item 3.3 (“Debates feministas sobre o caso Akayesu”), são apresentados os debates que existem entre as várias autoras feministas (e também os autores feministas) sobre o caso, especialmente sobre a decisão de que o estupro constitui genocídio, e é apresentando, com base nesses posicionamentos feministas e em discussões teóricas em relação ao feminismo no Direito, um posicionamento da própria autora desta dissertação, indicando, inclusive, com base no caso, a necessidade de se repensar determinados conceitos muito comuns nas abordagens feministas, que não conseguem explicar o caso Akayesu e o estupro enquanto genocídio. 3.1. O caso Akayesu 67 O julgamento de Akayesu começou em janeiro de 1997, diante da Câmara de Julgamentos do TPIR, composta pelo juiz Laïty Kama (Senegal), que presidia a Câmara, o juiz Lennart Aspegren (Suécia) e a juíza Navanethem Pillay (África do Sul). Jean Paul Akayesu foi bourgmestre de Taba commune de abril de 1993 até junho de 1994. Como bourgmestre, ele era responsável por exercer funções executivas e manter a ordem pública em Taba commune, sujeito à autoridade do prefeito. Ele tinha controle exclusivo da polícia da commune, assim como os gendarmes40 postos à disposição da commune. Ele também era responsável por executar as leis e regulamentos, assim como administrar a justiça, também sujeito somente à autoridade do prefeito41. Inicialmente, o Indictment42 não continha qualquer acusação relativa a crimes sexuais. Entretanto, em uma sessão do julgamento, uma testemunha (chamada no julgado de “testemunha J”) falou do estupro de sua filha cometido membros da Interahamwe: “Alegações de violência sexual vieram à atenção da Câmara pela primeira vez através dos relatos da testemunha J, uma mulher Tutsi que disse que sua filha de seis anos de idade foi estuprada por três membros da Interahamwe quando eles foram matar o pai dela. Em juízo, a testemunha J também afirmou que ela ouviu falar que meninas estavam sendo estupradas no bureau commune” (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 169. Tradução da autora). Essa testemunha afirmou também que nunca foi indagada por funcionários do Escritório do Procurador43 sobre isso. Depois, outra testemunha (chamada, no julgado, de “testemunha H”) afirmou que ela mesma havia sido estuprada, e que teria visto ou sabia de outros estupros; afirmou, também, que Jean-Paul Akayesu estava presente quando os estupros estavam ocorrendo, conforme o trecho a seguir: 40 A gendarmerie é a polícia militar das regiões rurais ruandesas. Trata-se do maior componente de forças militares em Ruanda. Os gendarmes são os policiais membros dessa corporação. 41 Quando ocorreu o genocídio em Ruanda, em 1994, o país era dividido em 11 municipalidades, cada uma governada por um prefeito. Essas municipalidades eram divididas em varias communes, que estavam sob a autoridade do bourgmestre. O bourgmestre de cada commune era indicado pelo Presidente da República, depois de recomendação do Ministro do Interior. 42 O Indictment é a peça inicial acusatória nas cortes penais internacionais. 43 O Procurador do TPIR, conforme o art. 15, parágrafo 1º do Estatuto do Tribunal, concentra em torno de si duas funções: a de investigação e a de acusação. Ele deve, conforme o art. 17, parágrafo 1º, do Estatuto, começar as investigações ex officio ou a partir de informações obtidas por qualquer fonte, como Estados, órgãos das Nações Unidas, ou ONGs. Formalmente, não há direito de denuncia às vítimas, nem de qualquer ente, apesar de informações poderem ser encaminhadas por qualquer ao Procurador, que decide ou não se iniciará investigações, e contra quem. Nesse sentido, o Procurador possui um poder discricionário. Esse poder do procurador no TPIR é tão amplo que ele não precisa se submeter a escrutínio judicial ao conduzir as investigações (apesar de ter de cumprir com uma série de obrigações relativas aos direitos dos suspeitos). Esse controle jurisdicional da conduta do Procurador durante as investigações só é feito quando essas chegam ao fim, quando ele submete o Indictment a um juiz revisor, que pode admiti-la ou não. Durante os julgamentos, quando assume a função acusatória, o ônus da Prova recai sobre o Procurador. Porém, caso o Procurador encontre provas que inocentem o suspeito (ou acusado, se juiz já tiver admitido o Indictment), deve entregá-las à defesa (CASSESE, 2008, p. 395-422). 68 Subseqüentemente, a testemunha H, uma mulher tutsi, afirmou em juízo que ela mesma foi estuprada num campo, e que, fora da área do bureau communal, ela viu, pessoalmente, outras mulheres tutsis serem estupradas, e teve conhecimento de pelo menos três casos de estupro por membros da Interahamwe. A testemunha H afirmou inicialmente que o acusado, assim como outros oficiais de polícia da commune, estava presente quando os estupros estavam acontecendo, e não fez nada para preveni-los. Porém, em exame pela Câmara para saber se Akayesu estava ciente de que os estupros estavam acontecendo, ela respondeu que não sabia, mas que aconteceu no bureau communal, e que ele sabia que as mulheres estavam lá. A Testemunha H afirmou que alguns dos estupros ocorreram numa área de bosque próxima, mas que alguns deles ocorreram no Próprio bureau communal. Em exame pela Câmara, ela disse que o acusado estava presente durante um dos estupros, mas que não podia confirmar se ele viu o que estava acontecendo. Embora a testemunha H expressou a opinião de que a Interahamwe agiu com a impunidade e que deveria ter sido impedida pela polícia da commune e o acusado de cometer abusos, ela declarou que não foram dadas ordens para a Interahamwe relativamente ao estupro. Ela também declarou que ela mesma foi espancada, mas não estuprada no bureau communal (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 169170.Tradução da autora). A defesa não fez nenhuma pergunta sobre os estupros, mas a juíza Pillay, e depois Aspergan, o fizeram, pedindo que as testemunhas falassem mais sobre os estupros. Não obstante grande parte da literatura feminista sobre o caso Akayesu dar os créditos à juíza Pillay pelo fato de serem inseridas acusações relativas a crimes sexuais no caso Akayesu, Beth Van Schaack, analisando as transcrições dessa sessão, afirma que houve ampla participação de todos os juízes nesse processo (SCHAACK, 2008, p. 7). A própria juíza Pillay afirma que todos os juízes fizeram perguntas às testemunhas sobre esses estupros (PILLAY, 2008 a, p. 666). Quando foi encerrada a declaração da testemunha H (a que afirmou que havia sido estuprada), a sessão foi adiada para maio de 1997. A partir desse momento, assuntos relativos a gênero no Direito Penal Internacional passaram a estar na agenda de muitas organizações de direitos humanos. Relatos sobre estupro em Ruanda durante o genocídio começaram a aparecer na imprensa (PILLAY, 2008 a, p. 9). Em junho de 1997, a acusação pediu uma audiência perante a Câmara de Julgamentos, e fez uma moção oral, pedindo autorização para emendar o Indictment, tendo em vista os testemunhos que afirmaram que houve violência sexual durante o genocídio. (PILLAY, 2008 a, p. 9-10). De acordo com as transcrições, citadas, mais uma vez, por Schaack: “Eu acho que é seguro dizer que a questão da violência sexual é de grande importância para o Gabinete do Procurador e levamos essa questão muito, muito seriamente. Nós sentimos que a violência sexual sendo usada como arma ou como uma ferramenta é deplorável e não pode ser aceita. Neste caso, é evidente durante todo o depoimento que havia indícios de que houve atos de violência sexual em Taba. Isso surgiu não apenas no depoimento de testemunha J ou da ou testemunha H, mas eu tenho que dizer que também surgiu em investigações prévias, mas as informações que recebemos ... antes, em nossa opinião, não eram o suficiente para vincular o acusado aos atos de violência sexual. Continuamos a investigar. ... Depois de receber [as declarações das testemunhas 69 adicionais], nós, como o Gabinete do Procurador, sentimos que estamos na obrigação de vir aqui hoje e fazer este pedido” (Apud SHAACK, 2008, p. 10. Tradução da autora). Quanto à ausência de alegações sobre violência sexual na primeira versão do Indictment, se pronunciou a acusação: “Talvez porque a vergonha que às vezes acompanha esses atos tenha dificultado que as mulheres testemunhassem ou declarassem o que ocorreu com elas ou também, estou pronta para admitir, porque em alguns momentos não somos tão sensíveis quanto deveríamos ser em torno do assunto” (Apud SHAACK, 2008, p. 10. Tradução da autora). A acusação negou qualquer influência da sociedade civil global na decisão de pedir à Corte licença para emendar o Indictment. Ela pediu aos juízes permissão para emendar a peça para acusar Akayesu dos crimes contra a humanidade de estupro e de outros atos desumanos, e o crime de guerra de “atentados à dignidade da pessoa, nomeadamente os tratamentos humilhantes e degradantes, a violação, a coação à prostituição e todo o atentado ao pudor”, constante no artigo 3º comum às quatro Convenções de Genebra e o no art. 4º, parágrafo 2º, alínea “e” do Protocolo Adicional II à Convenção de Genebra sobre a Proteção dos Civis em Tempo de Guerra. A defensa de Akayesu se opôs a esse pedido feito pela acusação. Depois de deliberar por dez minutos, a Câmara de Julgamentos concedeu à acusação licença para emendar o Indictment, e o julgamento foi adiado para outubro de 1997 (Apud SHAACK, 2008, p. 10). O Escritório do Procurador também adicionou três acusações, cujos fatos aos quais se referem estão nos parágrafos 12A y 12B da nova versão do Indictment: “12A. Entre 7 de abril e o final de julho de 1994, centenas de civis (doravante denominados “civis deslocados”) procuraram refúgio no bureau communal. A maioria desses deslocados civis eram tutsis. Enquanto procuravam refúgio no bureau communal, mulheres deslocadas civis foram freqüentemente levadas por milicianos locais armadas e pela polícia da commune, e sujeitas a violência sexual, e/ou espancadas dentro, ou em lugares próximos, do bureau communal. Os deslocados civis também eram regularmente assassinados dentro, ou próximo, do bureau communal. Muitas mulheres foram forçadas a agüentar múltiplos atos de violência sexual, que às vezes eram cometidas por mais de um estuprador. Os atos de violência sexual eram geralmente acompanhadas por ameaças explícitas de morte ou dano físico. As mulheres deslocadas civis viviam constantemente com medo, e sua saúde física mental deteriorou-se como resultado de violência sexual, espancamentos e mortes. 12B. Jean Paul AKAYESU sabia que os atos de violência, espancamentos e assassinatos estavam sendo cometidos, e às vezes estava presente durante esses fatos. Jean Paul AKAYESU facilitou os atos de violência sexual, os espancamentos e assassinatos ao permitir que eles ocorressem dentro, ou nas proximidades, do bureau communal. Em virtude de sua presença durante os atos de violência sexual, espancamentos, assassinatos, e em virtude de haver falhado em prevenir a violência sexual, espancamentos e assassinatos, Jean Paul AKAYESU encorajou essas atividades” (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 11. Tradução da autora). As acusações incluídas nessa nova versão, relativas aos atos narrados acima, foram as de estupro enquanto crimes contra a humanidade, e o crime de guerra “de atentados à dignidade da pessoa, nomeadamente os tratamentos humilhantes e degradantes, a violação, a coação à prostituição e todo o atentado ao pudor”. Ainda que não se tenham modificado as acusações relativas a genocídio, a violência sexual foi incluída na nova versão, porque o 70 Escritório do Procurador, no Indictment tanto na versão original quanto a modificada, pediu que Akayesu fosse condenado pelos atos descritos nos parágrafos 12 a 23, nos quais foram incluídos os parágrafos 12A e 12B, depois das modificações. A partir da emenda do Indictment, seguiu-se uma torrente de testemunhas que falaram dos estupros ocorridos em Taba, e muitas ligando Akayesu a esses fatos. Algumas falavam terem sofrido ou terem presenciado violência sexual através da penetração vaginal com o pênis. Outras falam de um episódio ocorrido com uma jovem mulher tutsi, de nome Chantal, que era ginasta, e foi obrigada a executar exercícios de ginasta nua (ocasião em que Akayesu estaria presente, e teria assistido esse episódio, rindo). Há também um relato, apresentado por uma mulher hutu, que perdeu o marido tutsi, em que, após um ataque perpetrado contra um casal tutsi, em que o marido morreu e a esposa ficou agonizando, alguns membros da Interahamwe forçavam um pedaço de madeira dentro das partes íntimas da mulher. Há inúmeros relatos de estupros e violência sexual perpetrados por gangues. Uma das testemunhas (chamada pelo Tribunal de “testemunha JJ”) relatou (e isso não foi relatado somente por ela, mas por outras testemunhas) que as mulheres tutsis que chegavam ao bureau commune o faziam procurando refúgio, e esperavam que as autoridades fossem defendê-las, mas foram surpreendidas com o contrário, sendo, ela e outras vítimas, estupradas de forma reiterada por gangues. Essa testemunha também disse que, enquanto ela e outras mulheres estavam se encaminhando ao centro cultural do bureau commune, Akayesu as viu se dirigindo para lá. Na segunda vez que estava sendo levada ao centro cultural para ser estuprada, a testemunha JJ afirmou ter visto Akayesu na entrada do recinto, dizendo em voz alta aos membros da Interahamwe que estavam praticando os estupros: "Never ask me again what a Tutsi woman tastes like" e "Tomorrow they will be killed”, falando de uma forma a encorajar o que estava acontecendo ali, com aquelas mulheres tutsis. Outra testemunha (chamada pelo TPIR de “testemunha OO”), uma jovem mulher tutsi, narrou que, pouco após ela e outras pessoas que procuravam refúgio no bureau commune lá se instalaram, chegaram membros da Interahamwe e começaram a matar pessoas com facões. Quando ela e outras meninas tentaram fugir, foram impedidas por esses membros da Interahamwe, que se dirigiram a Akayesu e a ele disseram que levariam essas jovens mulheres para que com elas se relacionassem sexualmente, ao que Akayesu respondeu permitindo que fossem levadas. Aí, ela foi separada das demais meninas e levada a um campo por um membro da Interahamwe chamado Antoine. Antoine mandou que ela sentasse e, quando ela se recusou, ele a empurrou ao chão e a penetrou com o pênis em sua vagina. A testemunha OO afirma que, quando ela 71 começou a chorar, Antoine a disse que se ela continuasse a chorar ou gritasse, outros viriam para matá-la (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 171180). Porém, o episódio de violência sexual em massa ocorrido em Taba tem conotações étnicas, conforme ficou patente nos relatos da testemunha chamada pelo Tribunal de PP, uma mulher tutsi casada com um hutu. A testemunha PP afirmou ter visto vários estupros sendo cometidos contra mulheres tutsis em Taba, mas relatou que ela mesma não foi estuprada, pelo fato de os perpetradores não estarem certos em relação à sua identidade étnica (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 180). Ao valorar as provas submetidas em relação a violência sexual, a Câmara de Julgamento considerou que Akayesu sabia, ou ao menos deveria saber, das violações sexuais cometidas no bureau commune, e que as mulheres tutsis que lá procuravam refúgio estavam sendo retiradas do bureau commune para sofrerem violência sexual. Além disso, considerou que não foi apresentada nenhuma prova de que Akayesu não tinha como prevenir os atos de violência sexual, ou punir seus perpetradores. Muito pelo contrário, haviam sido submetidas provas de que Akayesu ordenou, instigou, ajudou e incentivou a prática da violência sexual em Taba (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 186). Em 2 de setembro de 1998, a Câmara de Julgamento emitiu sentença condenatória em relação a Akayesu. Essa foi a primeira vez na qual se adotou uma definição de estupro no Direito Internacional. O Tribunal Penal Internacional para Ruanda o definiu como “[…] uma invasão física de natureza sexual, cometidas sobre uma pessoa sob circunstâncias coercitivas. O Tribunal considera violência sexual, que inclui estupro, como qualquer ato de natureza sexual que é cometido sobre uma pessoa, sob circunstâncias que são coercitivas. A violência sexual não é limitada apenas a uma invasão física do corpo humano, e pode incluir atos que não envolvem penetração, e sequer contato físico” (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 275. Tradução da autora). Para Kelly D. Askin, pode-se diferenciar, nessa definição, o estupro da violência sexual. Segundo a autora, a definição de estupro estaria contida no trecho “[…] uma invasão física de natureza sexual, cometidas sobre uma pessoa sob circunstâncias coercitivas” (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 275; ASKIN, 2003, p. 319). Já a violência sexual seria definida na frase “O Tribunal considera violência sexual, que inclui estupro, como qualquer ato de natureza sexual que é cometido sobre uma pessoa, sob circunstâncias que são coercitivas. A violência sexual não é limitada apenas a uma invasão física do corpo humano, e pode incluir atos que não envolvem 72 penetração, e sequer contato físico” (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 275; ASKIN, 2003, p. 319). O Tribunal não está preocupado com uma interação de partes do corpo. O que interessa ao TPIR é se, socialmente, aquele ato é considerado sexual, e se há dano à vítima. Além disso, como bem analisam muitas autoras feministas, não há que se discutir se houve consenso ou não, porque as circunstancias eram coercitivas. Por isso o TPIR ao definir estupro no caso Akayesu, utiliza o termo coerção (social, contextual), E não consenso (individual). Além disso, a coerção não se dá somente pela força física. Ameaças, intimidações, opressões físicas e outros meios de coerção podem invocar o medo ou desespero por parte da vítima (ROUX, MUHIRE, 2009, p. 73). Quanto à acusação de genocídio por estupros e violências sexuais cometidas por seus subordinados, pelos quais seria responsável internacionalmente por ser o superior hierárquico, como dispõe o artigo 6º, parágrafo 3º de seu Estatuto 44, o Tribunal Penal Internacional para Ruanda decidiu que eles constituem genocídio quando cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo em particular. Conforme a sentença: “Em relação, particularmente, a […] estupro e violência sexual, a Câmara deseja sublinhar o fato de que, em sua opinião, esses atos constituem genocídio da mesma forma que qualquer outro ato, desde que sejam cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo em particular, alvejado enquanto tal. De fato, o estupro e a violência sexual certamente constituem danos corporais e mentais graves às vítimas e são, ainda, segundo a Câmara, uma das piores formas de infligir danos à vítima [...]. À luz de todas as evidências submetidas diante de si, a Câmara está convencida de que os atos de estupro e violência sexual descritos acima foram cometidos somente contra as mulheres tutsis, muitas das quais foram submetidas à pior humilhação pública, mutiladas, e estupradas várias vezes, freqüentemente em público, nas instalações do Bureau Communal ou em outros locais públicos, e muitas vezes por mais de um estuprador. Esses estupros resultaram na destruição física e psicológica das mulheres tutsi, de suas famílias e de suas comunidades. A violência sexual era parte integrante do processo de destruição, especificamente dirigido às mulheres tutsis e, especificamente, contribuindo para a sua destruição e à destruição do grupo tutsi como um todo. 732. O estupro de mulheres tutsi era sistemático […]. Como parte da campanha de propaganda voltada para mobilizar os hutus contra os tutsis, as mulheres tutsis foram apresentadas como objetos sexuais. De fato, à Câmara foi dito, por exemplo, que antes de ser estuprada e morta, Alexia, que era a esposa do Professor, Ntereye, e suas duas sobrinhas, foram forçados pela Interahamwe a se despirem, e foram ordenadas a correr e a fazer exercícios "a fim de mostrar as coxas das mulheres tutsi". O membro da Interahamwe que estuprou Alexia disse, quando ele jogou no chão e ficou em cima dela, "vamos agora como é a vagina de uma mulher tutsi". Como mencionando acima, Akayesu, falando 44 “O fato de que qualquer dos atos referidos nos artigos 2 a 4 do presente Estatuto ser cometido por um subordinado não exime seu superior da responsabilidade penal, se ele ou ela sabia ou tinha razões para saber que o subordinado estava para cometer tais atos, ou os havia cometido e o superior deixou de tomar as medidas necessárias e razoáveis para prevenir tais atos ou para punir os seus autores” (UNITED NATIONS, 1994 b, p. 6. Tradução da autora). Trata-se de uma exceção à regra de que o elemento subjetivo do tipo penal é o dolo direito (AKHAVAN, 2005, p. 993). Segundo Luciana Boiteux, a responsabilidade do superior hierárquico constitui-se numa modalidade de crime omissivo impróprio com dolo eventual, em que a esse superior é atribuído o papel de agente garantidor. Impõe-se assim, aos superiores, uma obrigação legal de evitar ao resultado, sendo-lhes exigidas as atividades visando impedir o resultado (desde que essa ação seja possível) (BOITEUX, 2007, p. 105). 73 com esse membro da Interahamwe que estava cometendo os estupros, disse-lhe: "Nunca me pergunte de novo como é a vagina de uma mulher tutsi". Esta representação sexualizada da identidade étnica ilustra graficamente que as mulheres tutsis foram sujeitas a violência sexual porque elas eram tutsis. A violência sexual foi um passo no processo de destruição do grupo tutsi - destruição do espírito, da vontade de viver, e da própria vida” (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 288. Tradução da autora). Assim, o TPIR considerou que o estupro e outras formas de violência sexual constituem genocídio com fulcro no art. 2º, parágrafo 2º, alínea b do Estatuto, ou seja, que a violência sexual constitui um ato cometido com a intenção de causar graves danos físicos e mentais aos membros do grupo. Além disso, havia um componente étnico, pois os estupros eram cometidos somente contra mulheres Tutsi, e de forma sistemática. Prossegue a Câmara de Julgamento, no parágrafo 733 do julgado, afirmando que “[…] a Câmara considera que na maioria dos casos, os estupros de mulheres Tutsi em Taba foram acompanhados da intenção de matar essas mulheres. Muitos estupros foram perpetrados perto de valas comuns, para onde as mulheres eram levadas para serem mortas” (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 290. Tradução da autora). Complementa a Câmara de Julgamento, nesse trecho o seu entendimento, no sentido de que entende não apenas que estiveram presentes os elementos objetivos necessários para caracterizar o delito de genocídio, mas também o elemento subjetivo de exterminar o grupo, dado que geralmente, quando as mulheres tutsis eram estupradas, havia a intenção de matá-las logo em seguida. Akayesu, ao final do julgamento pelo juízo de primeiro grau, foi condenado por genocídio, incitação ao genocídio, (não somente em razão dos estupros, mas por atos ocorridos em Taba, que fogem ao escopo desta dissertação), e crimes contra a humanidade de estupro, assassinato, extermínio, tortura, e outros atos desumanos. Mas foi absolvido por cumplicidade ao genocídio, e por todas as acusações que lhes foram imputadas em relação ao art. 3º comum a todas as Convenções de Genebra sobre Direito Humanitário, e o art. 4º, parágrafo 2º, alínea e do Protocolo Adicional II à Convenção IV de Genebra (atentados à dignidade da pessoa, nomeadamente tratamentos humilhantes e degradantes, a violação, a coação à prostituição, e todo o atentado ao pudor), por entender-se que esteve ausente o elemento subjetivo para que seja caracterizado o crime de guerra (conhecimento do autor do delito de que estava dentro de um contexto de guerra). Essa decisão da Câmara de Julgamento do TPIR de considerar que o estupro e outras formas de violência sexual constituem genocídio, embora não estejam entre as condutas listadas como constituindo esse delito na Convenção de 1948, teve conseqüências para o 74 Tribunal Penal Internacional (TPI). Não obstante o Estatuto de Roma, que criou o TPI, e que é a principal fonte de direito para essa Corte, não mencionar que o estupro constitui genocídio, os Elementos dos Crimes45, documento aprovado em uma Assembléia dos Estados-Partes do Estatuto de Roma, o faz, ao considerar que um dos elementos do crime de genocídio mediante lesão grave à integridade física ou mental (artigo 6º, alínea b, do Estatuto de Roma) a Assembléia dos Estados-Partes adicionou uma nota de rodapé a esse elemento, na qual explica que “Essa conduta pode incluir atos de tortura, violações, violência sexual ou tratamentos desumanos ou degradantes, mas não necessariamente está limitada a esses atos” (CORTE PENAL INTERNACIONAL, 2002, p. 117. Tradução da autora). 3.2. O impacto das estratégias da sociedade civil global Este item se dedica a estudar o impacto das estratégias da sociedade civil global sobre os demais atores envolvidos no caso Akayesu, mas particularmente da decisão do TPIR de considerar que o estupro constitui genocídio. Num primeiro momento, verificamos as estratégias utilizadas pela sociedade civil global no caso. Posteriormente, analisamos a atuação do Escritório do Procurador e, em seguida, a atuação dos próprios juízes que proferiram a sentença de primeiro grau. Novamente, utilizamos como fonte primária o julgado de primeiro grau do caso Akayesu na análise da atuação de todos os atores. No estudo da participação da sociedade civil global, são utilizados também relatórios e pareceres em forma de amicus curiae feitos por ONGs em relação ao julgamento de estupros enquanto pelo Tribunal Penal Internacional para Ruanda de forma geral e, mais particularmente, ao caso em tela. Utilizam-se também alguns artigos escritos tanto por feministas que militaram para que os estupros fossem julgados pelo Tribunal quanto pelos próprios juízes, pelos Procuradores e pelos funcionários do Escritório do Procurador que tiveram contato com o caso, e que foram publicados em periódicos especializados, de forma a se buscar indícios sobre possíveis impactos das estratégias da sociedade civil na atuação dos demais atores (procuradores e juízes). 45 O nome desse documento em inglês é Elements of the Crimes. 75 3.2.1. A sociedade civil global Esse subitem se dedica a analisar de que forma a sociedade civil global influenciou na decisão do TPIR de considerar que o estupro constitui genocídio. Num primeiro momento desse item, procura-se verificar de que forma esse ator influenciou na decisão do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, sendo analisado o relatório Shattered lives: Sexual Violence during the Rwandan Genocide and its Aftermath, produzido pela ONG Human Rights Watch, e logo na seqüência, o lobby feminista no caso Akayesu. 3.2.1.1. O relatório Shattered Lives da Human Rights Watch Começou-se a discutir questões de gênero nas decisões do Tribunal Penal Internacional para Ruanda a partir da publicação, em 24 de setembro de 1996, do relatório Shattered lives: Sexual Violence during the Rwandan Genocide and its Aftermath pela ONG Human Rights Watch, com base em pesquisas e entrevistas conduzidas por membros da ONG e consultores em Ruanda entre março e abril do ano de publicação (HUMAN RIGHTS WATCH, 1996). No relatório, já em sua introdução, é afirmado que, embora o número exato de estupros provavelmente nunca será conhecido, eles foram praticados de forma ampla contra mulheres tutsi no período do genocídio. Porém, denuncia o fato de que, até o momento, o TPIR não tinha feito muito pela sua punição. Segundo o relatório: “Apesar de o estupro constituir um crime de guerra e um crime contra a humanidade, pouco tem sido feito até agora para efetivamente incluir violência baseada em gênero no trabalho do Tribunal. A metodologia e os procedimentos investigativos usados até agora pelo Tribunal não tem sido conduzidas de forma a coletar testemunhos relativos a estupros no contexto ruandês, e os Indictments do Tribunal até essa data não incluem acusações de estupro. Em julho de 1996, o Tribunal estabeleceu um Comitê de Agressão Sexual para coordenar a investigação de violência baseada em gênero. Na época da redação deste relatório, o Comitê tinha acabado de começar a funcionar, com o intuito de superar obstáculos estratégicos, jurídicos e metodológicos relativos às investigações. Estamos 76 esperançosos que essas iniciativas levarão à implementação de procedimentos mais apropriados e efetivos para coletar evidências de tais crimes. Se o Tribunal não toma passos imediatos para lidar com esses problemas e conduzir investigações efetivas para coletar testemunhas de vítimas de estupro, quando esses casos forem levados aos juízes do Tribunal será muito tarde” (HUMAN RIGHTS WATCH, 1996. Tradução da autora). Note-se que, ao falar do estupro como crime internacional, o relatório da Human Rights Watch, nesse parágrafo, não faz menção alguma ao genocídio, mas tão somente aos crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Isso não significa que não havia uma demanda da ONG por julgamento desses crimes, mas apenas que não havia o reconhecimento, naquele momento, de que estupros podiam constituir crimes de genocídio. A ONG queria sim que estupros constituíssem genocídio, pois, entre as várias recomendações que são feitas ao Tribunal Penal Internacional para Ruanda nesse relatório, está a seguinte: “O Tribunal Internacional deve investigar e levar a juízo de forma plena a violência sexual. Estupro, escravidão sexual e mutilação sexual devem ser reconhecidos e levados a julgamento, quando apropriado, como crimes contra a humanidade, genocídio, ou crimes de guerra” (HUMAN RIGHTS WATCH, 1996. Grifo nosso. Tradução da autora). Argumenta-se também nesse relatório que o principal elemento no caso do genocídio não é objetivo, ou seja, as condutas cometidas, mas o elemento subjetivo (a intenção de destruir um determinado grupo nacional, étnico ou religioso através de determinada conduta). Por isso, é afirmado nesse relatório que estupro e outras formas de violência sexual podem constituir atos proibidos pela Convenção de 1948 sobre Genocídio, desde que reste comprovado que houve esse elemento subjetivo, podendo constituir ofensas alíneas do art. 2º, § 1º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, que é o dispositivo desse Estatuto que trata sobre genocídio. Conforme o relatório: “[…] crimes como estupro, mutilação sexual e escravidão sexual devem ser levados a juízo sob a alínea (b) do art. 2º. Como os depoimentos neste relatório demonstram, danos físicos e mentais extremamente sérios foram infligidos através de violência sexual direcionada às mulheres. […] sob certas circunstâncias, a violência sexual pode ser levada a juízo sob as alíneas (c) ou (d) do artigo 2º. Violência sexual pode infligir, no grupo condições de vida calculadas para causar a destruição física do grupo, e pode prevenir nascimentos dentro do grupo. […] mulheres sujeitas a violência sexual podem ficar fisicamente impossibilitadas de reproduzir, ou elas podem ter negado esse papel reprodutivo pela sua sociedade, dada a natureza os ataques que elas sofreram” (HUMAN RIGHTS WATCH, 1996. Tradução da autora). A intenção genocida por trás da violência sexual no genocídio em Ruanda, de acordo com o relatório da Human Rights Watch, emerge do fato de que o padrão de violência sexual cometida nesse período, documentada pela ONG através de entrevistas feitas com as sobreviventes, é a de que esses atos não eram acessórios às matanças, nem eram estupros 77 oportunísticos. Tratava-se de atos praticados com a intenção de erradicar os tutsis. Ainda segundo o relatório, os estupradores esperavam com suas ações, que a violência física e psicológica praticada contra cada mulher tutsi ajudasse a destruir esse grupo (HUMAN RIGHTS WATCH, 1996). No parágrafo a seguir, o relatório da Human Rights Watch faz uma analogia que é repetida no julgado de primeira instância em relação ao estupro e a tortura: “A intenção genocida também fica evidenciada na natureza da violência sexual em questão. Violência sexual, como outras formas de tortura, pode preceder ou ser um meio de execução extrajudicial. Em Ruanda, atos de mutilação sexual e outras formas de violência que ameaçam a vida humana foram infligidos com o intuito de causar a eventual morte de suas vítimas. Mulheres sofreram estupros por gangues, estupradas com objetos, e foram sujeitas a uma brutalidade ultrajante, que envolvia mutilar os órgãos sexuais das mulheres. Alguns desses ataques deixaram mulheres feridas fisicamente de forma que podem nunca mais serem capazes de ter filhos. Muitas vítimas de agressão sexual morreram no curso dos ataques, ou por conseqüência deles. Violência sexual em tais casos era uma parte direta das mortes. Em outros casos documentados pela Human Rights Watch/FIDH, as mulheres sobreviveram à violência sexual porque seus agressores a deixaram para morrer, acreditando que elas tinham sido mortalmente feridas” (HUMAN RIGHTS WATCH, 1996. Tradução da autora). Dentre as várias recomendações feitas pela Human Rights Watch, está a de que, além de maior preocupação com questões de gênero nos futuros Indictments, está a de que os já apresentados perante o TPIR fossem emendados para que elas fossem incluídas (HUMAN RIGHTS WATCH, 1996), o que acabou efetivamente sendo feito posteriormente, sendo o caso Akayesu um marco nesse sentido. 3.2.1.2. O parecer amicus curiae de uma coalizão feminista Conforme afirmado anteriormente, até que algumas testemunhas afirmassem em juízo terem sido estupradas ou terem testemunhado outros estupros, não houve ação concreta do Procurador no sentido de incluir atos de estupro. Após esses testemunhos é que houve ação do Procurador para emendar o Indictment para incluir atos de estupro. Afirma Rhonda Copelon que isso só ocorreu devido a pressões exercidas pelo movimento feminista, pois havia resistência do Escritório do Procurador para emendar o 78 Indictment de forma a incluir os estupros, motivo pelo qual várias organizações feministas submeteram, conjuntamente, um amicus curiae46. Segundo a autora: “[…] afigurou-se, a partir de informações confidenciais obtidas de dentro do Escritório do Procurador, que os promotores do caso Akayesu não estavam planejando alterar o Indictment para incluir acusações de estupro ou violência sexual. Isto apesar do fato de que uma coalizão, iniciada pela Human Rights Watch e, mais tarde, consolidada pelo Centro Internacional de Direitos Humanos e Desenvolvimento Democrático ("ICHRDD") em Montreal como o Projeto de Monitoramento sobre o Crimes relativos a gênero no Tribunal Penal Internacional para Ruanda, tinha enviado várias cartas críticas a Louise Arbour, então a Promotora-Chefe com a responsabilidade tanto pelo TPII quanto pelo TPIR, pedindo mudanças institucionais que facilitassem as investigações de crimes de gênero. Assim, parecia haver pouca escolha além de submeter um amicus curiae, trazendo esta situação discriminatória [...] para o tribunal a invocar o Ministério Público, ou passo em si mesmo, para garantir a inclusão de estupro em acusações de genocídio, bem como crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Assim, o IWHR, o Working Group on Engendering the Rwanda Tribunal, organizado por um grupo dedicado de recém-formados da Faculdade de Direito da Universidade de Toronto Faculdade, e o Centro para Direitos Constitucionais em Nova York, prepararam e apresentaram um amicus curiae. O projeto ICHRDD circulou esse documento para que fosse assinado por grupos de mulheres em Ruanda, em outros lugares na África, e em todo o mundo. Mais tarde naquele ano, as organizações ruandeses das mulheres organizaram a primeira marcha das mulheres por justiça”. (COPELON, 2000. Tradução da autora). O amicus curiae, em seus parágrafos 2 e 38, faz menção aos mandatos estabelecidos na Declaração e Plataforma de Ação Viena em relação aos direitos das mulheres, já citados nos Capítulo II desta dissertação, argumentando-se, no parágrafo 38, que a falha do Procurador em emendar o Indictment para incluir acusações relativas a violência sexual acarretaria uma falha em cumprir com esses mandatos estabelecidos em Viena. O amicus curiae também pedia que a Câmara de Julgamento exercesse sua autoridade supervisora, sob as normas do Estatuto de do Rules of Procedure and Evidence 47 do Tribunal, de forma a pedir ao Procurador que emendasse o Indictment contra Jean-Paul Akayesu, de forma a incluir acusações relativas a estupro e outras formas graves de violência sexual que estejam sob a competência do TPIR. O amicus curiae também solicitava que a Câmara de Julgamento do Tribunal avaliasse suplementar o registro de tais acusações ou 46 A submissão de pareceres amicus curiae é regulamentada pela Regra 74 do Rules of Procedure and Evidence do Tribunal Penal Internacional para Ruanda. De acordo com a Regra 74: “A Câmara pode, se considerar desejável para uma determinação apropriada do caso, convidar ou permitir que qualquer Estado, organização ou pessoa compareça diante de si observações sobre qualquer assunto especificado pela Câmara” (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1996. Tradução da autora). 47 Rules of Procedure and Evidence (“Regras de Procedimento e Prova”), é o código de processo penal (só que, seguindo o modelo norte-americano, aprovado pelos próprios juízes) do Tribunal Penal Internacional para Ruanda. Há várias versões do Rules of Procedure and Evidence, cada uma com uma data de aprovação diferente, dadas as reformas feitas pelos juízes em relação ao documento. Como estamos nos referindo ao um parecer amicus curiae de maio de 1997, utilizaremos a versão do Rules of Procedure and Evidence válida nesse período, ou seja, a adotada em 5 de julho de 1996 (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1996). 79 chamando suas próprias testemunhas, consoante a Regra 9848 do Rules of Procedure and Evidence, ou recomendando ao Procurador que suplementasse sua investigação em relação ao caso Akayesu (COALITION FOR WOMEN’S HUMAN RIGHTS IN CONFLICT SITUATIONS, 1997). O parecer amicus curiae mostrou preocupação com o fato de, embora houvesse depoimentos registrados nos autos do processo, e documentação (sendo, aí, mencionado o supracitado relatório Shattered Lives da Human Rights Watch) indicando a existência de outras provas de que a violência sexual foi parte de uma ampla campanha de violência, constituindo genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra sob os arts. 2º, 3º, e 4º (que tratam, respectivamente, sobre genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra) do Estatuto do TPIR, que Akayesu, embora não tivesse cometido ele próprio, seria responsável criminalmente sob os art. 6º, parágrafos 1º 49 e 3º50 do mesmo documento internacional (COALITION FOR WOMEN’S HUMAN RIGHTS IN CONFLICT SITUATIONS, 1997). O parecer segue afirmando que o estupro e outras formas de violência sexual, incluindo o assassinato de mulheres grávidas, podem constituir genocídio se os requisitos do art. 2º do Estatuto do TPIR forem preenchidos. Ele também afirma que, em Ruanda, esses atos foram partes integrais de uma campanha genocida, inspirado pelo ódio às mulheres tutsis, planejada de forma a resultar na morte ou destruição física, mental, ou das perspectivas sociais e da capacidade dessas mulheres de participarem na produção e reprodução de uma comunidade (COALITION FOR WOMEN’S HUMAN RIGHTS IN CONFLICT SITUATIONS, 1997). O amicus curiae prossegue afirmando que o Procurador já havia afirmado, ao longo do processo, que o estupro de mulheres Tutsis era parte de uma campanha genocida, mas sem 48 Estabelece a Regra 98 do Rules of Procedure and Evidence: “A Câmara de Julgamento pode, de ofício, ordenar que ambas as partes para produzir provas adicionais. Pode também convocar testemunhas e ordenar o seu comparecimento” (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1996. Tradução da autora). 49 “Um pessoa que tenha planejado, instigado, ordenado, cometido ou, de qualquer outra forma, tenha auxiliado e incentivado no planejamento, preparação ou execução de um dos crimes previstos nos artigos 2º a 4º do presente Estatuto será considerada individualmente responsável pelo crime” (UNITED NATIONS, 1994 b, p. 5. Tradução da autora). 50 “O fato de que qualquer dos atos referidos nos artigos 2º a 4º do presente Estatuto ser cometido por um subordinado não exime seu superior da responsabilidade penal, se ele ou ela sabia ou tinha razões para saber que o subordinado estava para cometer tais atos, ou os havia cometido e o superior deixou de tomar as medidas necessárias e razoáveis para prevenir tais atos ou para punir os seus autores” (UNITED NATIONS, 1994 b, p. 6. Tradução da autora). 80 ligá-la a Akayesu (COALITION FOR WOMEN’S HUMAN RIGHTS IN CONFLICT SITUATIONS, 1997). O parecer cita o fato de haver o depoimento das testemunhas J e H, prestado em juízo, e que esses depoimentos deveriam servir de base para que o Procurador aprofundasse investigações sobre violência sexual perpetradas por subordinados de Akayesu, pelo qual este poderia ser responsabilizado internacionalmente, com base no art. 6º, parágrafos 1º e 3º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional para Ruanda (COALITION FOR WOMEN’S HUMAN RIGHTS IN CONFLICT SITUATIONS, 1997). À luz dos argumentos expostos pela coalizão de ONGs que emitiu o parecer, é solicitado, nesse documento, que seja emendado o Indictment do caso Akayesu, de forma a incluir o estupro de mulheres tutsis em Taba sob o art. 3º, alíneas (f), (g) e (h) 51, e sob o art. 4º, alíneas (a), (e) e (h) 52 do Estatuto do TPIR; pede-se também, no parecer amicus curiae, que se inclua no Indictment a mutilação da genitália e dos seios das mulheres tutsis com base nos arts. 3º, alínea (f), e 4º, alíneas (a) e (e) do Estatuto do Tribunal; e que, pelo fato de mulheres Tutsis terem sido forçadas a desfilar nuas pelas ruas de Taba, fossem incluídas acusações de violações do art. 4º, alíneas (a), (e), (h) e (i) 53 do Estatuto (COALITION FOR WOMEN’S HUMAN RIGHTS IN CONFLICT SITUATIONS, 1997). Além disso, o parecer solicitou que o Procurador considerasse emendar o Indictment de forma a acusar Akayesu de genocídio, com base no art. 2º, parágrafo 2º alíneas, (b), (c) e (d)54 do Estatuto do TPIR. Como base argumentativa para isso, o parecer cita uma 51 “O Tribunal Internacional para Ruanda tem competência para julgar as pessoas responsáveis pelos seguintes crimes, quando cometidos como parte de um ataque generalizado e sistemático contra uma população civil por razões nacionais, políticas, étnicas, raciais ou religiosas: [...] f) Tortura; g) Violação, h) Perseguição por motivos políticos, raciais e religiosos […]” (UNITED NATIONS, 1994 b, p. 4. Tradução da autora) 52 “O Tribunal Internacional para o Ruanda tem competência para julgar as pessoas que cometeram ou ordenaram o cometimento de graves violações do artigo 3º comum às Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949 para a Proteção das Vítimas de Guerra, e do Segundo Protocolo Adicional, de 08 de junho de 1977. Essas violações incluem, mas não são limitadas a: a) Violência contra a vida, a saúde física e mental ou o bem-estar das pessoas, em especial o homicídio, bem como tratamentos cruéis, tais como a tortura, mutilação ou qualquer forma de punição corporal; [...] e) Ofensas à dignidade pessoal, especialmente os tratamentos humilhantes e degradantes, violação, prostituição forçada e qualquer forma de atentado ao pudor; [...] h) Ameaça de cometer qualquer dos atos acima”. (UNITED NATIONS, 1994 b, p. 5. Tradução da autora). 53 Embora o parecer fale em alínea (i) do art. 4º, o art. 4º do Estatuto do TPIR só vai até a alínea (h). Pode se tratar de erro. É provável que talvez o parecer se referisse ao art. 3º do Estatuto, cujas alíneas (f), (g) e (h) já foram transcritas na nota de rodapé nº 50 desta dissertação, e cuja alínea (i) afirma que constituem crimes contra a humanidade outros atos inumanos não especificados nas alíneas anteriores do mesmo artigo (UNITED NATIONS, 1994 b, p. 5). 54 “Genocídio significa qualquer dos seguintes atos, quando cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como: […] b) Causar graves danos físicos ou mentais em membros do grupo; b) Deliberadamente infringir, no grupo, condições de vida calculadas para causar a sua destruição física no todo ou em parte; c) Impor medidas para prevenir nascimentos dentro do grupo […]” 81 recomendação do Comitê de Especialistas convocado pelo Conselho de Segurança para verificar a possível ocorrência de genocídio em Ruanda no ano de 1994. Esse comitê recomendou que o Procurador explorasse totalmente a relação entre uma política de estupro sistemático sob um comando hierárquico tanto como crime contra a humanidade quanto como crime de genocídio (COALITION FOR WOMEN’S HUMAN RIGHTS IN CONFLICT SITUATIONS, 1997). Segundo Copelon, aproximadamente duas semanas após a submissão do amicus curiae, o Procurador anunciou que emendaria o Indictment, motivado, como dito anteriormente, pelo depoimento da testemunha H, e não pelo amicus curiae, considerada pelo Escritório do Procurador como apenas um fator, mas não determinante. A autora, que atuou como consultora na elaboração do parecer, afirma que teve uma informação interna do Escritório do Procurador, considerada por ela como confiável, que realmente foram as testemunhas que ocasionaram uma investigação mais aprofundada ligando os estupros cometidos em Taba a Akayesu (COPELON, 2000). Porém, independentemente do fato de, na verdade, o depoimento dessas testemunhas terem feito com que o Escritório do Procurador aprofundasse as investigações para verificar a existência de estupros que constituíssem qualquer dos tipos penais abarcados pelo Estatuto de Tribunal Penal Internacional para Ruanda, Copelon considera que esse amicus curiae serviu para tornar visível o quanto os estupros sofridos pelas mulheres tutsi durante o genocídio em Ruanda foram renegados pelo Escritório do Procurador. Além disso, ela afirma que, curiosamente, a Câmara só tomou conhecimento desse amicus curiae através de um fax, respondendo que o documento foi recebido, e que depois funcionários do Tribunal afirmaram não tê-lo recebido. Inclusive, de acordo com Copelon, esse amicus curiae não consta nos autos do processo (COPELON, 2000). A referência é feita somente de forma implícita no julgamento, no seguinte trecho: “A Câmara entende que a emenda do Indictment resultou de testemunho espontâneo de violência sexual pelas testemunhas J e H durante o curso do julgamento, seguida de investigação do Escritório do Procurador, e não por pressão pública. Porém, a Câmara nota o interesse nesse assunto demonstrado pelas organizações não-governamentais, o que ela considera como um indicativo de preocupação pública em relação à exclusão histórica do estupro e outras formas de violência sexual da investigação e persecução de crimes de guerra” (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 170-171. Tradução da autora). (UNITED NATIONS, 1994 b, p. 5. Tradução da autora). 82 3.2.2. O papel do Escritório do Procurador O caso Akayesu foi iniciado quando o Escritório do Procurador ainda se encontrava sob a chefia de Richard J. Goldstone, que foi nomeado para o cargo de Procurador Geral do TPII e do TPIR em agosto de 1994, sendo o primeiro procurador em exercício dos dois Tribunais55. Ele afirmou que logo que chegou à Haia, encontrou o Escritório inundado de cartas e petições não somente de organizações de direitos humanos e feministas, mas também de homens e mulheres do Canadá, Estados Unidos e Europa Ocidental –escritas individualmente, e não de um modelo pronto-, implorando que fosse dado tratamento adequado a crimes relacionados a gênero. Goldstone também enfatiza que na época já era claro que estupros sistemáticos nas guerras da Iugoslávia e da Ruanda não poderiam ser fatos isolados (GOLDSTONE, 2002, p. 280).56 Como conseqüência daquelas cartas, Richard J. Goldstone nomeou a jurista norteamericana Patricia Viseur Sellers para exercer um cargo que ele passou a conceder de grande importância no Escritório do Procurador, o de Assessora para Persecução de Crimes Relacionados a Gênero do Escritório do Procurador. Na época, Goldstone e Viseur Sellers concordaram entre si que deveriam lidar com questões de gênero não somente na investigação dos crimes e nos Indictments, mas também dentro do Escritório do Procurador (GOLDSTONE, 2002, p. 280). Isso porque, segundo Goldstone, havia muito preconceito de gênero por parte dos próprios funcionários do Escritório do Procurador, principalmente entre os membros da equipe de investigação. De forma geral, os investigadores eram membros da polícia ou das forças armadas que largaram esse trabalho e foram trabalhar no Escritório de Procurador, e a esmagadora maioria era de homens. A cultura de trabalho deles não era nada sensível a questões de gênero. Goldstone afirma que, se não houvesse sensibilização dos funcionários 55 O primeiro Procurador a ser aprovado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas foi o venezuelano Ramón Escovar-Salom, através da Resolução 877 de 1993 do CS. Porém, Escovar-Salom foi nomeado Ministro do Interior de seu país em 1994, motivo pelo qual nem assumiu o Escritório do Procurador. Em virtude disso, através da Resolução 936 de 1994, o Conselho de Segurança nomeou Goldstone como o Procurador do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia e, após a criação do TPIR, ele teve de ser o Procurador de ambos os Tribunais. 56 Como no momento em que Goldstone assumiu o Escritório do Procurador não havia ainda o Tribunal Penal Internacional para Ruanda, é bem provável que essas tais cartas se referissem aos estupros ocorridos na antiga Iugoslávia, não só por isso, mas também pelo fato de eles terem ganho uma visibilidade midiática muito maior do que os ocorridos em Ruanda. 83 dentro do Escritório, provavelmente não se obteria muitos resultados em crimes relacionados a gênero no Tribunal (GOLDSTONE, 2002, p. 280). Além disso, os Indictments iniciais foram redigidos e propostos às Câmaras sob grande pressão para obter recursos da ONU, organização ao qual o TPII e o TPIR estavam subordinados financeiramente. Goldstone afirma que logo após ter chegado à Haia, lhe foi dito que não haveria espaço para os Tribunais no orçamento da ONU para o ano seguinte (1995), se não fosse proposto nenhum Indictment até lá, em novembro de 1994 (apenas três meses após a chegada de Goldstone). Assim, o Escritório do Procurador, que na época só contava com 23 membros (pouquíssimos deles eram investigadores) e cujos recursos eram escassos, teve que se dedicar completamente cumprir essa tarefa num prazo tão curto. A forma como isso foi feita é descrita pelo autor no trecho a seguir: Nós tínhamos o relatório da Comissão de Peritos (o Comitê Bassiouni) 57 e o utilizamos para encontrar pessoas contra as quais poderia haver indícios suficientes para justificar as acusações (GOLDSTONE, 2002, p. 281. Tradução da autora). Porém, o Comitê Bassiouni só tinha competência para investigar violações de Direito Humanitário cometidos na guerra na ex-Iugoslávia. Portanto, o primeiro Indictment foi para o TPII, ficando os dirigidos ao TPIR para outro momento, devido à falta de provas (já que a única disponível naquele momento era o relatório produzido Comitê Bassiouni, relativo à antiga Iugoslávia). Os problemas de recursos financeiros e humanos eram muito mais exacerbados no TPIR que no TPII, segundo o ex-Procurador. Se já era difícil persuadir pessoas qualificadas a irem trabalhar para o TPII na Haia, era ainda mais para trabalhar em Kigali, a capital de Ruanda, para realizar investigações, logo após um genocídio. A situação de segurança em Ruanda na época era tão grave que a ONU não permitia que parentes e cônjuges acompanhassem os funcionários do Tribunal (GOLDSTONE, 2001, p. 123). Patricia Viseur Sellers, em artigo publicado no American University Journal of Gender, Social Policy & the Law, afirma que, em outubro de 1994, quando foi nomeada, Goldstone lhe deu a tarefa de desenvolver uma estratégia investigativa e persecutória para que pudessem ser feitas acusações bem sucedidas em relação aos crimes sexuais dispostos no 57 Pela Resolução 780 (1992), o Conselho de Segurança da ONU pediu ao Secretário-Geral que estabelecesse uma Comissão de Especialistas para investigar a existência de graves violações de Direito Humanitário no território da ex-Iugoslávia, cujas atividade foram iniciadas em novembro de 1992 e foram terminadas em abril de 1994, ficando conhecida também pelo nome de “Comitê Bassiouni” pelo fato de, a partir de outubro de 1993, o famoso jurista da área de Direito Penal Internacional Cherif Bassiouni (que já a compunha desde o início) ter passado a liderá-la. 84 Estatuto do Tribunal. Porém, só havia um artigo enumerado nesse sentido no Estatuto, que era o estupro como crime contra a humanidade, disposto no art. 5º do Estatuto do TPII, e que na época, considerava-se que estupro somente recairia sobre crimes contra a humanidade. De 1995 a 1999, Viseur Sellers atuou na mesma função no TPIR (VISEUR SELLERS, 2007, p. 304), atuando, portanto à frente do caso Akayesu. É interessante notar que, numa palestra sua proferida em 30 de março de 1996 (portanto, anteriormente, mas não tanto assim, à publicação do relatório Shattered Lives da Human Rights Watch) sobre persecução a violência sexual no Tribunal Penal Internacional para Ruanda, Viseur Sellers fala que o estupro pode constituir, perante o estatuto do Tribunal, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, mas em momento algum fala da possibilidade de que ele possa constituir genocídio (VISEUR SELLERS, 1996, p. 105-110). Portanto, dado o intervalo de tempo entre a publicação do relatório Shattered Lives (no qual se mencionava, como dito anteriormente, que, caso cumprissem com os requisitos da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, os estupros poderiam constituir genocídio, e que os estupros perpetrados durante o conflito ruandês de 1994, em geral, compartilhavam essa característica) e a supracitada palestra proferida por Viseur Sellers, parece haver indícios de que, embora a decisão de processar Akayesu por delitos sexuais tenha sido tomada por causa das testemunhas que relataram ter sofrido ou testemunhado violência sexual, a interpretação de que a violência sexual pode constituir genocídio só ingressou na estratégia persecutória do Escritório do Procurador do TPIR devido ao impacto do relatório Shattered Lives, e, portanto, devido à sociedade civil global. Apesar da nomeação de Viseur Sellers para o cargo de Assessora para Persecução de Crimes Relacionados a Gênero do Escritório do Procurador, há relatos de certa negligência da gestão Goldstone à frente do Escritório do Procurador em relação à persecução de crimes relacionados a gênero, conjugada com falta de experiência em lidar com crimes sexuais na magnitude com que foram realizados em Ruanda. Segundo Galina Nelaeva: “Dadas as restrições significativas de tempo, o Procurador-Chefe se mostrou relutante a dedicar recursos para as investigações de estupro e violência sexual, concentrando-se sobre o genocídio, assassinato, extermínio e tortura. No início, então, não houve acusações de estupro ou violência sexual em qualquer acusação TPIR. Isso pode ter sido devido ao fato de que o estupro era percebido como um crime menos importante, mas a falta de experiência na persecução de crimes e falta de conhecimento de questões relativas a gênero por parte do pessoal do TPIR também desempenhou um papel importante” (NELAEVA, 2010, p. 7-8. Tradução da autora). 85 Alex Obote-Odora, que foi assistente especial para o Procurador no Tribunal Penal Internacional para Ruanda, relata problemas de treinamento para os funcionários em relação a crimes sexuais: “Durante os primeiros anos do TPIR, os investigadores receberam pouco ou nenhum treinamento no que diz respeito à metodologia de investigação de crimes cometidos de forma generalizada e sistemática, genocídio e crimes sexuais. Muitos investigadores não tinham estudado direito internacional humanitário e não investigaram os crimes cometidos no contexto do estupro e violência sexual cometidos de forma generalizada e sistemática” (OBOTE-ODORA Apud NELAEVA, 2010, p. 8. Tradução da autora). Elizabeth Neuffer, por sua vez, acredita que o problema tenha sido o fato de haver muitos investigadores homens, que, mesmo que tivessem a maior sensibilidade em relação a assuntos relacionados a gênero, teriam dificuldades em colher depoimentos de mulheres ruandesas que foram estupradas durante o genocídio, pelo fato de elas não se sentirem à vontade em relatar a homens os abusos sofridos. Segundo Neuffer: "Muitas acharam perturbador quando os investigadores, principalmente homens brancos, foram para as aldeias em seus jipes brancos da ONU e depois trataram as sobreviventes com arrogância, como se fossem estúpidos ao invés de traumatizados. As mulheres de Taba simplesmente não queriam se abrir com eles." (NEUFFER Apud NELAEVA, 2010, p. 8. Tradução da autora). Em 1996, Louise Arbour sucede Goldstone no Escritório do Procurador. Quando as testemunhas que motivaram a emenda do Indictment prestaram seus depoimentos, e quando houve a submissão de um parecer amicus curiae por uma coalizão de ONGs feministas, Arbour já era a responsável pelo Escritório do Procurador. Arbour sublinha que sua trajetória não era de uma jurista internacionalista, e sim de penalista, em seu país de origem, o Canadá. E ela relata que foi justamente essa sua experiência enquanto penalista no Canadá que a fez lidar com questões de gênero anteriormente a assumir o cargo de Procuradora do TPII e do TPIR. A experiência chave, nesse sentido, teria sido quando ela trabalhou numa missão, no seu país, para investigar brutalidades perpetradas por uma espécie de guarda policial correcional para situações de emergência (ARBOUR, 2003, p. 198-200). Essas experiências em relação à investigação de crimes relacionados a gênero podem ter tido impacto na criação da Unidade de Apoio às Vítimas e Testemunhas 58 em junho de 58 A Unidade de Apoio às Vítimas e Testemunhas está prevista na Regra 34 do Rules of Procedure and Evidence. Essa Unidade tem a função, consoante a Regra 34 (A), de recomendar medidas para a proteção de vítimas e testemunhas; assegurar-se que elas recebam apoio, incluindo reabilitação física e psicológica, especialmente em casos de estupro ou outra forma de agressão sexual; e (esse último item foi incluído na reforma do Rules of Procedure and Evidence aprovada em 1997, e subsiste até hoje) desenvolver planos a curto e longo prazo para a proteção de testemunhas que tenham testemunhado perante o Tribunal e que temam por ameaças a sua vida, sua propriedade e sua família. A Regra 34 (B), por sua vez, nas versões aprovadas em 5 de 86 1996. Em março de 1997, a Unidade foi reformada com o intuito de desenvolver melhor relação com as testemunhas, resultando numa unidade separada, dentro da Secretaria do TPIR, da Unidade de Apoio às Vítimas e Testemunhas: a Unidade de Assuntos de Gênero de Assistência às Vítimas. Assim, alguns problemas relativos à investigação de assuntos ligados a gênero presentes na gestão Goldstone foram superados (BRETON-LE GOFF, 2002; NELAEVA, 2010, p. 8). Porém, outros problemas subsistiam no Escritório do Procurador, mas em relação às estratégias persecutórias de crimes relacionados a gênero. Segundo Arbour, parte do debate, dentro do Escritório do Procurador, em relação aos crimes de violência sexual, referia-se a se à persecução dos perpetradores diretos desse tipo de violência consistia numa estratégia persecutória apropriada. Havia ainda a discussão se haveria mais ganhos perseguindo o perpetrador de fato dos abusos sexuais (nas palavras de Arbour, o “Mr. Nobody”), ou se o objetivo da persecução deveria ser atingir o alto da cadeia de comando. A punição, no caso da violência sexual, seria particularmente difícil, na visão que se tinha na época, de ser aplicada aos superiores hierárquicos sob a doutrina da responsabilidade do superior hierárquico. Requerer-se-ia provar que esses superiores tanto participaram da violência sexual, ou que eles sabiam que essa violência estava sendo cometida por seus subordinados, mas falharam em impedir ou em punir os que estavam participando dela (ARBOUR, 2003, p. 203). O que fica patente nesse relato de Arbour é que na época do caso Akayesu, a persecução de crimes relacionados a gênero no Direito Internacional ainda estava em caráter experimental, sendo justificável certa cautela por parte do Escritório do Procurador. Não se está aqui advogando que a preocupação do Escritório do Procurador com os estupros em Taba, especificamente no caso Akayesu, ocorreu porque houve uma mudança, com a saída de um Procurador homem, e a substituição por uma Procuradora. Não se pode partilhar de uma afirmação tão essencialista, que atribui à mulher uma característica natural de ter cuidado com o outro ser humano. Tanto é que Gaëlle Breton-Le Goff aponta várias julho de 1996 e 6 de junho de 1997, estabelece que deve-se considerar, ao selecionar pessoal para trabalhar nessa unidade. A versão aprovada do Rules of Procedure and Evidence em 8 de junho de 1998 vai mais além, estabelecendo que, além de ser importante o emprego de mulheres na Unidade, deve também haver uma abordagem sensível a gênero nas medidas de proteção e apoio às vítimas e testemunhas (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1996; INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1997, p. 33; INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998; INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 2010, p. 27). É importante lembrar, mais uma vez, que a Unidade de Apoio às Vítimas e Testemunhas não está ligada ao Escritório do Procurador, e sim à Secretaria do Tribunal, e a criação da Unidade se deu através de reforma do Rules of Procedure and Evidence, que, como mencionado anteriormente, é aprovado pelos juízes do Tribunal. Porém, o Procurador acaba dependendo bastante do trabalho da Unidade em suas funções investigativas. 87 omissões que a Procuradora que assumiu depois de Arbour, Carla del Ponte, teve em relação a casos de violência sexual posteriores a Akayesu, tanto no TPII quanto no TPIR, caracterizando-a como a Procuradora mais omissa nesse sentido, numa comparação entre as gestões Goldstone, Arbour e del Ponte (BRETON-LE GOFF, 2002). Assim, há indício do impacto da sociedade civil na estratégia persecutória do TPIR, no caso Akayesu, em relação ao estupro como genocídio. 3.2.3. A participação dos juízes Como dito anteriormente, muito embora boa parte da bibliografia sobre o caso Akayesu atribua à juíza Navanethem Pillay papel primordial ao interrogar as a primeiras testemunhas que relataram ter sofrido violência sexual, antes mesmo que o Indictment fosse emendado, as transcrições, analisadas por Beth Van Shaack, e um artigo publicado pela própria juíza indicam o contrário, conforme se verifica nos trechos a seguir: “[…] no caso Akayesu todos os três juízes fizeram perguntas sobre esses estupros […]” (PILLAY, 2008, p. 666. Tradução da autora). “Em interrogatório, a defesa não levantou a questão dos estupros, mas a juíza Pillay, e depois o juiz Aspergan, o fizeram, pedindo à testemunha H para desenvolver melhor sua resposta sobre onde Akayesu estava e o que ele estava fazendo enquanto as mulheres eram estupradas dentro, ou perto do bureau comunal. Relatos deste julgamento dão à juíza Pillay crédito por trazer à atenção da acusação a questão da violência sexual em Taba. A transcrição revela, no entanto, que todos os juízes da Câmara seguiram essa linha de questionamento em face do silêncio virtual a partir das partes” (SHAACK, 2008, p. 7-8. Tradução da autora). Além disso, o trecho acima, escrito por Beth Van Shaack, revela a grande importância do papel das testemunhas na decisão dos juízes. Isso também transparece no seguinte trecho do julgado de primeira instância do caso Akayesu: “A Câmara entende que a emenda do Indictement resultou de testemunho espontâneo sobre violência sexual pelas Testemunhas J e H durante o curso deste julgamento e subsequente investigação pelo Procurador, mais do que da pressão pública” (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 170-171. Tradução da autora). Esse papel é confirmado pelas palavras da juíza Pillay: “Devo dizer que o depoimento de uma das testemunhas me motivou a reexaminar as definições tradicionais de estupro. A testemunha ‘JJ’ estava sendo indagada pelo Procurador, em relação a cada uma das violações múltiplas que ela sofreu, se houve penetração: ‘Lamento ter de continuar a perguntar-lhe toda hora- seu agressor a penetrou com seu pênis?’ Sua resposta foi: ‘Essa não foi a 88 única coisa que eles fizeram comigo, pois eles eram meninos e eu sou uma mãe e ainda assim eles fizeram isso comigo. É o que eles me disseram que eu não posso esquecer’. Suas palavras me levaram a investigar a percepção do Direito sobre a experiência das mulheres relativa a violência sexual e suas conseqüências durante os conflitos armados. Neste caso, os alegados atos de estupro ocorreram como parte de um ataque generalizado e sistemático contra uma população civil” (PILLAY, 2008 a, p. 667. Tradução da autora). “Com base no testemunho e em novas acusações, proferimos a primeira condenação de estupro como crime de genocídio registrada na história” (PILLAY, 2008 b, p. 18. Tradução da autora). Porém, apesar das negativas dos juízes da Câmara de Julgamento do TPIR quanto ao impacto da sociedade civil na construção do estupro enquanto genocídio na sentença do caso Akayesu, esse mesmo órgão do TPIR parece confirmar o raciocínio apresentado pela Human Rights Watch no relatório Shattered Lives, pois faz uma analogia entre o crime de estupro e o crime de tortura nesse julgado, ao afirmar que: “A Câmara considera que o estupro é uma forma de agressão, e que os elementos centrais desse crime não podem ser capturados numa mecânica de objetos e partes do corpo. A Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes não cataloga atos específicos na definição de tortura, focando, ao invés disso, no conceito de violência sancionada pelo Estado. Essa abordagem é mais útil ao Direito Internacional. Da mesma forma que a tortura, o estupro é usado para propósitos tais como intimidação, degradação, humilhação, discriminação, punição, controle ou destruição de uma pessoa. Como a tortura, o estupro é uma violação da dignidade pessoal, e o estupro de fato constitui tortura quando é infligido por instigação ou com o consentimento ou aquiescência da autoridade pública ou outra pessoa agindo numa função (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 241. Tradução da autora).59 Assim, há um indício de que tenha ocorrido qualquer influência da sociedade civil na decisão da Câmara de Julgamento de considerar, no caso Akayesu, que o estupro pode constituir genocídio. 3.3. Debates feministas sobre o caso Akayesu 59 Embora já tenhamos mencionado anteriormente esse parágrafo do relatório Shattered Lives que faz uma analogia entre tortura e estupro como genocídio, o citamos novamente agora, para fins de comparação com o citado trecho do julgado da Câmara de Julgamento referente ao caso Akayesu: “A intenção genocida também fica evidenciada na natureza da violência sexual em questão. Violência sexual, como outras formas de tortura, pode preceder ou ser um meio de execução extrajudicial. Em Ruanda, atos de mutilação sexual e outras formas de violência que ameaçam a vida humana foram infligidos com o intuito de causar a eventual morte de suas vítimas. Mulheres sofreram estupros por gangues, estupradas com objetos, e foram sujeitas a uma brutalidade ultrajante, que envolvia mutilar os órgãos sexuais das mulheres. Alguns desses ataques deixaram mulheres feridas fisicamente de forma que podem nunca mais serem capazes de ter filhos. Muitas vítimas de agressão sexual morreram no curso dos ataques, ou por conseqüência deles. Violência sexual em tais casos era uma parte direta das mortes. Em outros casos documentados pela Human Rights Watch/FIDH, as mulheres sobreviveram à violência sexual porque seus agressores a deixaram para morrer, acreditando que elas tinham sido mortalmente feridas” (HUMAN RIGHTS WATCH, 1996. Tradução da autora). 89 Entre as autoras feministas do Direito Internacional, parece não haver muita discordância sobre a importância da definição de estupro adotada pelo Tribunal Penal Internacional para Ruanda no caso. Em geral, crêem que a definição foi benéfica para as mulheres, pois não se concentra, ao definir estupro, em uma descrição meramente mecânica de “interação de partes do corpo”, para citar a expressão utilizada por MacKinnon (2006, p. 956), mas o dano causado a essas mulheres. A única crítica foi encontrada em Tessa de Wit. Embora a autora não dê seu posicionamento sobre o tema, ela relata que alguns criticam essa definição de estupro por ser muito ampla, e, por isso, não cumprir com o princípio da legalidade, por não ser o estupro como genocídio uma conduta tipificada no Direito Internacional, e por essa definição não ser muito específica (WIT, 2005, p. 51-52). Ainda assim, essa não é uma crítica que parte de autores ou autoras feministas de Direito Internacional. Entre esses, parece haver consenso de que a definição de estupro constante no julgado do caso Akayesu é benéfica. Porém, há discussão sobre o quão benéfica foi essa decisão do TPIR, no caso Akayesu, de que o estupro constitui genocídio. Para Hilary Charlesworth, o Direito Penal Internacional que emerge no pós-Guerra Fria, incluindo o Caso Akayesu, somente reconhece a proibição da violência sexual dentro de uma comunidade. Por exemplo, o estupro genocida, nessa perspectiva, apenas foi condenado no Caso Akayesu porque foi cometido com a intenção de destruir um determinado grupo em particular. A autora critica essa decisão porque, segundo ela, não se reconhece que o estupro é um crime porque é una manifestação de dominação masculina, mas porque é um crime contra uma comunidade étnica. Por isso, a autora crê que esse julgado incorpora a distinção público/privado, porque opera na esfera pública da coletividade, mas sem se preocupar com a esfera privada, considerada por ela como locus privilegiado da dominação masculina (CHARLESWORTH, 1999, p. 387). A crítica de Franke é em outro sentido. Ela considera que, quando mulheres foram vítimas de muitos crimes, as autoridades legais tendem a concentrar-se somente, ou principalmente, na violação sexual. Ela argumenta que “[…] é raro que tribunais penais tratem atrocidades de gênero como algo além de violência sexual contra as mulheres. os homens [...] também são vítimas de violência sexual, e as mulheres são vítimas de violência baseada em gênero que não é sexual. [...] A redução do gênero ao sexual e o desconhecimento de como os homens podem sofrer a violência de gênero é, para ser generosa, uma forma de compensação dos anos ignorando o lugar das mulheres no Direito Humanitário. No entanto, esta compensação teve o efeito de sexualizar as mulheres, de forma que não consegue captar tanto a variedade de maneiras pelas quais as mulheres sofrem injustiça, bem como as maneiras pelas quais os homens sofrem violência de gênero também. [...] Ver a "questão de gênero" aparecer apenas no caso 90 de violência sexual é elidir as noções de dimensões de gênero da guerra, de violência e de investir em matar mais que em cuidar.” (FRANKE, 2006, p. 822-823. Tradução da autora). Mas outras juristas feministas consideram que essa decisão do Tribunal Penal Internacional foi benéfica em se tratando de direitos das mulheres. MacKinnon, uma dessas autoras, parte, em seu comentário ao caso Akayesu, na distinção entre consentimento (que considera uma relação individual) e coerção (social, contextual), e afirma que, num contexto extremamente coercitivo, como um conflito civil altamente violento, não há sentido em se discutir se houve consenso ou não, considerando a decisão do TPIR no caso em análise acertada nesse sentido. Segundo essa autora, no contexto do Direito Internacional Humanitário, “[…] olhar para a coerção para definir o estupro é olhar para as realidades coletivas circundantes dos membros do grupo e as forças políticas, alinhamentos, estratificações e confrontos. Se o sexo estava sendo envolvido simplesmente em gratificação sexual, por exemplo, não seria previsível ser unilateralmente imposto a um grupo étnico por outro, como foi quando infligido em mulheres muçulmanas e croatas na Bósnia-Herzegovina e na Croácia, e mulheres tutsis em Ruanda. Tais realidades coletivas de destruição baseada em grupo expõe a instrumentalização do estupro em ataques em que o consentimento das vítimas torna-se, na prática, portanto, legalmente irrelevante” (MACKINNON, 2006, p. 956. Tradução da autora). Louise Chappel, por sua vez, considera que o julgamento de Akayesu constitui uma mudança de paradigma em relação à visão tradicional do estupro no direito humanitário como dano à honra feminina60. Além disso, ela argumenta que o julgamento reconheceu que estupros constituem sérios danos físicos e mentais às mulheres, e relacionou esses atos com a destruição do grupo, demonstrando haver conexão entre as identidades de gênero e étnicas. A sentença emitida pelo TPIR no caso Akayesu, para Chappel, também reconheceu que esses atos podem ser usados para especificamente destruir as mulheres que são membros de uma dada comunidade (os tutsis, no caso ruandês). Por isso, a autora considera que, nesse caso de que tratamos, “Pela primeira vez, as mulheres foram vistas pelo Direito Internacional como multidimensionais” (CHAPPEL, 2003, p. 11. Tradução da autora). Martina Lindroos compartilha o posicionamento de Chappel de que a decisão do TPIR sobre estupro enquanto genocídio no caso Akayesu constitui uma mudança de paradigmas, não enxergando o estupro apenas como ofensa à honra, termo esse com dimensões dicotômicas. Segundo a autora: “Desviando-se do ponto de vista das Convenções de Genebra, o Tribunal não considera que a violência sexual como um simples ataque de honra da mulher, mas dá espaço para os danos físicos e psicológicos decorrentes da violência sexualizada” (LINDROOS, 2003, p 28. Tradução da autora). 60 O problema de considerar o estupro como crime contra a honra feminina, segundo Chappel, é que, freqüentemente, esse termo possui dimensões dicotômicas de gênero, sendo a honra feminina associada à castidade, à passividade, e à honra masculina, à atividade, à capacidade de proteger a mulher que esteja sob sua “posse”. 91 Adam Jones, por sua vez, embora no trecho seguinte não aborde propriamente o caso Akayesu, afirma, da mesma forma que Chappel e Lindroos, que determinadas categorias, como gênero e etnia, se intercedem no crime de genocídio: “Menos reconhecido é o fato de que essas identidades, juntamente com os 'três grandes' ausentes da Convenção do Genocídio (grupos políticos, sociais ou de gênero), não existem isoladamente. O alvo genocida é sempre o resultado de uma confusão e mistura de identidades. [...] É por isso que as vítimas podem ser vistas simultaneamente como representantes [...] de uma etnia perigosa, uma classe social insurgente ou gananciosa, ameaçando a identidade política, e um grupo de gênero malévolo […]” (JONES, 2010. Tradução da autora). Quanto ao caso Akayesu mais especificamente, Jones considera que a decisão do Tribunal Penal Internacional para Ruanda de condenar o réu foi benéfica porque “[…]vítimas do sexo feminino são vistas como vítimas em seu próprio direito, e não um meio através do qual a desonra e deslocamento se abate sobre uma família ou comunidade” (JONES, 2010. Tradução da autora). A decisão do TPIR no caso Akayesu, na opinião de Sherrie L. Russell-Brown, foi importante por reconhecer como o estupro pode ser utilizado para destruir um grupo, por reconhecer que há interseção entre gênero e outras categorias, como, no caso sob análise, a etnia; por levar em consideração a subjetividade da vítima; e por levar em consideração o dano que a ela é ocasionado. Isso porque, embora o bem jurídico protegido pelo crime de genocídio seja a existência do grupo, o efeito de causar danos físicos ou morais aos membros desse grupo através do estupro é um ato contra o indivíduo (RUSSEL-BROWN, 2003, p. 371373). Já Jocelyn Campanaro crê que o ponto positivo do Caso Akayesu é que ele constitui não somente a primeira vez que o estupro genocida foi reconhecido, mas também a primeira vez que um organismo internacional reconheceu que pode julgar estupros e outras formas de violência sexual que resultem em dano mental, e não somente físico (CAMPANARO, 2001). Rhonda Copelon afirma que considera a decisão da Câmara de Apelações em relação ao caso Akayesu de considerar o estupro enquanto genocídio importante, pois enfatiza a segmentação étnica produzida pela representação sexualizada da identidade étnica. A autora também acredita que essa decisão foi positiva por não enfatizar as conseqüências reprodutivas como medidas genocidas, pois, segundo ela, enfatizar o impacto reprodutivo é tender a reduzir a questão a uma visão meramente biológica das relações de gênero, como se a mulher só existisse enquanto reprodutora. Segundo a autora: 92 “[…] O julgado do caso Akayesu não enfatizou, como alguns alegaram, as conseqüências reprodutivas como marca característica do estupro como medida genocida. Ao invés disso, o estupro e a violência sexual foram compreendidos como instrumentos de genocídio primeiramente devido o dano físico e psicológico sofrido pelas mulheres, e em segundo lugar devido ao seu impacto potencial na comunidade alvejada. Enfatizar o impacto reprodutivo na comunidade ameaçaria reduzir as mulheres a simples veículos de continuidade da população alvejada. Isso também tende a enfatizar o aspecto biológico do problema, e não a visão da identidade, o bem jurídico a ser protegido pelo conceito de genocídio, enquanto construção social” (COPELON, 2000, p. 228. Tradução da autora). Jonathan Short discorda do ponto de vista de Copelon. Ele considera que não enfatizar o impacto das ações dos perpetradores na reprodução daquela comunidade é ignorar a intenção dos perpetradores de genocídio, pelos seguintes motivos: “Ignorar o impacto que tais ações na comunidade é ignorar as realidades culturais que existem quando essas ações são tomadas. Por isso é melhor adicionalmente categorizar essas ações no âmbito de crimes contra a humanidade ou de direito interno, que falam mais diretamente às ações tomadas contra as mulheres individuais” (SHORT, 2002-2003, p. 520. Tradução da autora). Além disso, o autor afirma que essa visão não tende a uma percepção biológica da sociedade. Para ele, o que as normas sobre genocídio pretendem proteger –grupos nacionais raciais, étnicos e religiosos- são construções sociais. A proteção da habilidade biológica de procriar, segundo Short, é incidental para a proteção do grupo étnico como um todo, e considera ingênuo considerar o contrário (tratando-se do crime de genocídio, mas não dos crimes contra a humanidade) quando a intenção do perpetrador é destruir o grupo étnico, utilizando-se como meio para isso a destruição de sua habilidade de procriar (Idem). Para de Vito e outros, essa decisão foi extremamente benéfica, no sentido de positivar o estupro no Direito Internacional. Isso porque, segundo os autores, quase não se lida com o estupro no Direito Internacional dos Direitos Humanos, e se lida com ele de forma precária no Direito Internacional Humanitário. Coube, então, ao Direito Penal Internacional, consolidar a proibição do estupro no Direito Internacional, ao considerá-lo como genocídio no caso Akayesu. De acordo com os autores: “Poder-se-ia argumentar que o resultado de incluir o estupro na categoria de genocídio é elevá-lo acima de outros crimes internacionais e violações de direitos humanos. Essa abordagem talvez seja útil para contrabalançar a posição problemática que o estupro ocupa, no sentido de que não está previsto por boa parte do Direito Internacional dos Direitos Humanos e [...] é distorcido dentro do Direito Humanitário Internacional. [...] algumas mulheres que foram estupradas durante eventos genocidas podem considerar que uma associação entre estupro e genocídio tem maiores conseqüências do que enfocar somente o estupro como violação da autonomia sexual de uma pessoa. Talvez a necessidade de assegurar um registro dessa associação, por exemplo, de que as mulheres tutsis foram estupradas porque faziam parte do grupo étnico tutsi, seja mais importante do que tratar as violações como atos cometidos apenas contra indivíduos. A mudança da definição de crime sexual para genocídio ajuda a reparar os laços sociais que o estupro, especialmente o estupro público, destrói” (DE VITO, 2009, p. 37). 93 Obando considera que essa decisão do TPIR foi um avanço, mas sem apresentar muitos argumentos. Conforme a autora: “O reconhecimento de que certos tipos de ataques contra as mulheres de um dos quatro grupos protegidos (por nacionalidade, etnia, raça ou religião) pela Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948, com a intenção de destruir o grupo, no todo ou em parte, pode constituir genocídio, apesar de as mulheres não constituírem por si um dos quatro grupos protegidos, é outro avanço chave dentro do direito internacional humanitário” (OBANDO, 2004, p. 5. Tradução da autora). Kelly D. Askin considera que o caso Akayesu resultou no julgado mais progressista sobre questões relativas a gênero de todos os que foram pronunciados por órgãos jurisdicionais internacionais (ASKIN, 1999, p. 100). A autora enumera os motivos que a fazem considerar essa definição como de vanguarda na passagem a seguir: “A decisão tem um significado adicional no julgamento de crimes de gênero no direito penal internacional: (1) a Câmara de Julgamento reconheceu a violência sexual como uma parte integrante do genocídio em Ruanda, e considerou o acusado culpado de genocídio, inclusive por crimes de violência sexual; (2) a Câmara reconheceu o estupro e outras formas de violência sexual como crimes independentes que constituem crimes contra a humanidade e (3) a Câmara enunciou uma ampla definição internacional tanto de estupro como de violência sexual” (ASKIN, 1999, p. 107. Tradução da autora). Porém, embora enxergue de forma positiva o fato de que o estupro possa constituir genocídio, assim como Obando, não apresenta motivos para isso. Hellen Scanlon e Kelli Muddell também seguem esse linha, conforme verifica-se no trecho abaixo: “Isso foi particularmente significativo, pois era a primeira vez que um tribunal internacional punia a violência sexual em uma guerra civil, e foi a primeira vez que o estupro foi considerado ato de genocídio, destinado à destruição de um grupo. Foi também um indicativo da necessidade de ter uma representação sensível em relação a gênero adequado no sistema judicial, bem como a interação aberta com grupos de mulheres” (SCANLON, MUDDELL, 2009, p. 18. Tradução da autora). Mark Ellis também possui posicionamento similar ao de Obando, Askin, Scanlon e Muddell, conforme a passagem abaixo: “Não apenas Tribunal, no caso Akayesu, reconheceu que causar sérios danos físicos ou mentais a membros do grupo por meio de estupro pode constituir genocídio, como também reconheceu que o estupro e a violência sexual pode constituir um genocídio como disposto no artigo 4 (d) do Estatuto do TPIR” (ELLIS, 2006-2007, p. 233. Tradução da autora). Da mesma forma, Andrea R. Phelps não apresenta os fundamentos pelos quais considera benéfica a decisão do TPIR, no caso Akayesu, de considerar que os estupros podem constituir genocídio: “[...] o Tribunal reconheceu a conexão entre os crimes de gênero, especialmente a violência sexual, e de genocídio em si. Além disso, Akayesu foi condenado por ter conhecimento da existência de violência sexual e facilitá-la, apesar de evidências insuficientes de que Akayesu participou pessoalmente os atos físicos que levaram às acusações” (PHELPS, 2006, p. 510. Tradução da autora). 94 Alexandra A. Miller considera que o caso Akayesu cria uma obrigação aos Estados de atuar nos casos de estupro, mas não explica exatamente em que sentido se daria essa atuação. Segundo a autora: “Com a decisão do caso Akayesu, o Tribunal começou a forçar os Estados a reconhecer oficialmente o estupro. Ao tirar o estupro da esfera dos crimes contra a humanidade e estendendo-o ao genocídio, o tribunal está criando um dever para os Estados de intervirem” (MILLER, 2003-2004, p. 366. Tradução da autora). Fiona de Londras, por sua vez, não critica a decisão da Corte considerar o estupro como genocídio. Ela considera que isso é muito significativo por positivar direitos das mulheres. Sua grande crítica é o tratamento que Escritório do Procurador dispensa às vítimas de estupro. Conforme a autora: “Mesmo quando passos de enorme importância na persecução de crimes relativos a violência sexual são tomados, o são apesar de, ao invés de devido a, esforços e tomada de decisões estratégicas pelo Escritório do Procurador. Isto é bem demonstrado pelo caso Akayesu, que [...] foi o primeiro caso em que foi decidido que o estupro poderia constituir genocídio.” (LONDRAS, 2009, p. 11. Tradução da autora) “À luz disto, o Indictment foi alterado durante o julgamento para incluir três acusações extras relativas à violência sexual e três parágrafos adicionais. [...] O fracasso do Escritório do Procurador em incluir a violência sexual no Indictment inicialmente, portanto, não só ameaçou tornar invisível a natureza particularmente relacionada a gênero das experiências das mulheres em Taba, mas também resultou em que vítimas mulheres que testemunharam sob o Indicment alterado tivessem sua credibilidade posta em causa não por seu próprio comportamento, mas sim pelo do Escritório do Procurador” (LONDRAS, 2009, p. 11-12. Tradução da autora). Em outra ocasião, em que não fala especificamente do caso Akayesu, mas ao fato de as mulheres serem alvejadas em genocídios, Fiona de Londras lembra que, quando a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio foi aprovada, as mulheres eram invisíveis para o Direito Internacional61. Segundo a autora: “Há duas razões pelas quais é especificamente importante olhar para as experiências das mulheres durante o genocídio; em primeiro lugar, porque, durante a época da redação da Convenção sobre Genocídio, as mulheres eram invisíveis para o Direito Internacional, e em segundo lugar porque os 61 Se levarmos em consideração o contexto em que a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio ocorreu, altamente influenciado pelos julgamentos dos Tribunais de Nuremberg, principalmente, e de Tóquio, num segundo plano, isso fica ainda mais patente. Isso porque esses julgamentos, que exerceram certa influência na aprovação da Convenção, foram completamente omissos em relação aos abusos sofridos por mulheres na Segunda Guerra Mundial, como o sistema de “mulheres de conforto”, através do qual aproximadamente 200 mil mulheres jovens e meninas orientais, de origem não japonesa, provenientes de territórios ocupados pelo Japão eram levadas a “estações de conforto”, agora compreendidas como um local onde elas eram estupradas e faziam serviços domésticos forçados para as tropas japonesas. Esse sistema só se tornou conhecido nos anos 1990, quando algumas sobreviventes tornaram suas histórias públicas (COPELON, 2000; ASKIN, 2004). Apesar de essa prática ter sido ampla e sistematicamente praticada pelo Japão na Segunda Guerra Mundial, só houve um caso de punição por estupro (como crime contra a humanidade, dado que o genocídio sequer era tipificado tanto na Carta do Tribunal de Tóquio quanto na do de Nuremberg) (CAMPANARO, 2001). 95 últimos 25 aos testemunharam um aumento da concentração de violência sexual contra as mulheres como forma de genocídio. Se o propósito do Direito Internacional é proteger, prevenir e punir, então é essencial que o Direito lide com essas ameaças, e responda a essa tendência” (LONDRAS, 2005, p. 3. Tradução da autora). Assim, tomando como ponto de partida as idéias apresentadas pela autora no parágrafo acima, pode-se afirmar que a decisão do TPIR no caso Akayesu de considerar que o estupro pode constituir genocídio tem o poder de atribuir novos significados à Convenção sobre Genocídio, incorporando finalmente as preocupações com as experiências femininas na interpretação das normas da Convenção. Martha A. Fineman compartilha do mesmo entendimento de Fiona de Londras em relação ao tratamento dispensado pelo Escritório do Procurador às vítimas de estupro. Segundo a autora: “Embora o caso Akayesu seja corretamente elogiado por avanços na visão jurídica sobre o genocídio e a violência sexual, o caso continha falhas no processo. Foi quase uma oportunidade perdida para o Escritório do Procurador, e o processo foi mais traumático do que o necessário para as testemunhas, devido à omissão desse órgão do TPIR” (FINEMAN, 2010, p. 300. Tradução da autora). Heidi Nichols Haddad também adota esse posicionamento, conforme a passagem abaixo: “O caso Akayesu é amplamente elogiado por ser um precedente histórico bem-sucedido na persecução do estupro como um instrumento de genocídio, e por fornecer uma definição jurisprudencial mais ampla de estupro, expandindo-a para além de penetração e leva em conta as circunstâncias coercitivas do conflito armado. No entanto, as circunstâncias que levaram a esta conclusão histórica refletem a desatenção para com o estupro na estratégia do Escritório do Procurador” (HADDAD, 2010. Tradução da autora). Esse mesmo entendimento é adotado por Stephanie K. Wood: “Porém, a forma como o TPIR manejou os casos Akayesu e Nyiramasuhuko revelam a falha em adequadamente investigar e apresentar Indictements sobre a violência baseada em gênero sancionada pelo governo durante o genocídio diante dos julgamentos, deficiências no cuidado com as testemunhas durante a investigação e as fases dos julgamentos, e atrasos em dar da justiça aos sobreviventes” (WOOD, 2004. Tradução da autora). Makau Mutua também compartilha tal posicionamento. Critica a própria competência rationae materiae dos Tribunais Penais Internacionais para a ex-Iugoslávia, pelo fato de, embora seus Estatutos reconheçam o estupro como crime internacional, não se centram nesse crime específico. Nesse sentido, considera o caso Akayesu importante, pois ele torna a discussão sobre gênero um pouco mais central no Direito Penal Internacional, ao reconhecer pela primeira vez nesse ramo do Direito a seriedade desse crime, e o fato de ele poder constituir genocídio e crimes contra a humanidade (MUTUA, 2008). Andrea R. Phelps também afirma que considera um avanço a decisão do Tribunal Penal Internacional para Ruanda de considerar que o estupro constitui genocídio (embora não 96 afirme porque o considera assim), mas considera que ele demonstra problemas na investigação de crimes sexuais: “O julgamento e condenação de Jean-Paul Akayesu representa tanto o progresso quanto contínuos retrocessos na persecução de crimes de guerra baseados em gênero. […] não havia, inicialmente, nem investigação suficiente, nem o reconhecimento de que acusações por crimes de guerra baseados em gênero deveriam ser incluídos no Indictment do caso Akayesu. Mas, quando começou a aparecer evidência em relação a esses crimes, o julgamento foi adiado para que se investigasse melhor. O mais importante é que o Tribunal reconheceu as conexões entre crimes baseados em gênero, particularmente violência sexual, e genocídio em si” (PHELS, 2006, p. 512. Tradução da autora). Rechaça-se aqui o entendimento de Charlesworth. O estupro genocida não é um favorecimento da dimensão pública em detrimento da privada. Durante uma guerra genocida, essas mesmas noções se elidem. Absolutizar a crítica da distinção público/privado é absolutizar essa própria distinção, que é contextual e contingente, e que certamente não se faz presente no caso Ruandês. Dessa forma, a decisão do caso Akayesu de considerar que o estupro pode constituir genocídio fornece elementos para a crítica da distinção público/privado como opressora em relação às mulheres, dado que nem sempre, conforme o caso demonstra, a opressão de dá numa lógica em que essa distinção se faz presente. Rechaça-se aqui o entendimento de Charlesworth. O estupro genocida não é um favorecimento da dimensão pública em detrimento da privada. Durante uma guerra genocida, essas mesmas noções se elidem. Absolutizar a crítica da distinção público/privado é absolutizar esse modelo, que é contextual e contingente, e que certamente não se faz presente no caso do genocídio ruandês. Dessa forma, a decisão do caso Akayesu de considerar que o estupro pode constituir genocídio fornece elementos para a crítica da distinção público/privado, modelo segundo o qual a esfera privada, onde ocorre a opressão sobre a mulher, não é regulada pelo direito. Afinal, nem sempre, a opressão se dá na esfera privada e, conforme o caso demonstra, nem sempre as fronteiras entre público e privado são tão claras em situações onde há opressão sobre a mulher. Além disso, as categorias gênero e etnia não são autônomas uma em relação à outra, como parece indicar o posicionamento de Charlesworth em relação ao caso Akayesu, ao afirmar que o estupro enquanto genocídio privilegia a categoria etnia em relação a gênero; elas estão sempre inter-relacionadas. Por isso, não há esse privilegio da etnia em relação a gênero, pois as relações de gênero são sempre contextuais, mudando no tempo e no espaço, e dependendo das relações étnicas, religiosas, de classe, entre outras, e vice-versa. Assim, encampa-se aqui o posicionamento de Chappel, Russel Brown e Lindroos. 97 O posicionamento dessas autoras não é relevante somente no sentido de considerar que as relações de gênero e de etnia estão sempre inter-relacionadas. A visão de Chappel e de Lindroos de que houve uma mudança de paradigmas ao mudar a visão tradicional do direito humanitário de que o estupro constitui um crime contra honra deve ser levada em consideração, pois o termo honra possui dimensões dicotômicas, sendo a mulher sempre uma pessoa passiva, a ser defendida por um bravo cavalheiro. Caso não houvesse essa quebra de paradigmas, estar-se-ia a reforçar estereótipos de gênero que têm sido desconstruídos pelas feministas. Com base nas críticas expostas por essas autoras, pode-se afirmar que o discurso feminista liberal62 de igualdade formal entre homens e mulheres, sem atentar às diferenças existentes entre mulheres, não é, portanto, o mais adequado para compreender a decisão do TPIR no caso Akayesu de considerar que o estupro pode constituir genocídio. Talvez a corrente mais adequada para compreender essa decisão seja o feminismo pós-moderno 63, que não apenas chama atenção para as diferenças entre homens e mulheres, mas também às diferenças entre mulheres. Isso parte da crença pós-moderna de que não há identidades ficas e inerentes, mas que elas são sempre construídas continuamente através de discursos concorrentes. Dessa forma, evita-se enxergá-las como compartilhando de uma identidade feminina a-histórica, descontextualizada. Nessa escola feminista, os conceitos de gênero, raça e classe que formam a base do pensamento feminista não são percebidos como sendo reais 62 As feministas liberais preocupam-se em alcançar a igualdade entre homens e mulheres, mas seu foco é principalmente na não-discriminação e na remoção do preconceito de gênero do direito. As reformas jurídicas deveriam resultar em normas jurídicas neutras, que se aplicariam a homens e mulheres da mesma forma. Por não perceberem os padrões jurídicos, como objetividade, racionalidade e individualismo, como favoráveis aos homens, seus argumentos tendem a ser focados na igualdade formal. Porém, alcançar esses direitos estaria limitado àquelas mulheres que compartilham as características típicas de homens de classe média e excluiria as mulheres que se conformassem aos estereótipos do comportamento feminino, e as mulheres negras e proletárias. Assim, o feminismo liberal é contrário às desigualdades formais entre homens e mulheres, nem às desigualdades entre as próprias mulheres, por fatores como religião, classe e etnia (p. 32). No contexto do caso Akayesu, e do genocídio em Ruanda de forma geral, essa corrente falha ao não lidar com o fato de que ser mulher tutsi, na ocasião, oferecia mais riscos que ser uma mulher hutu (MARLE, BONTHUYS, 2007, p. 31-32). 63 Essa corrente, conforme seu próprio nome diz, parte do pós-modernismo, ou seja, o questionamento pósmoderno da crença moderna de que o pensamento racional asseguraria justiça. Na busca por direitos e princípios de justiça, o pós-modernismo foca no local, no particular e no contextual ao invés do universal. Ele prefere a contingência a categorias e princípios amplos. O feminismo pós-moderno não apenas chama atenção para as diferenças entre homens e mulheres, mas também às diferenças entre mulheres. Isso parte da crença pósmoderna de que não há identidades fixas e inerentes, mas que elas são sempre construídas continuamente através de discursos concorrentes. Dessa forma, evita-se enxergar as mulheres como compartilhando de uma identidade feminina a-histórica, descontextualizada, mas exatamente por isso as feministas pós-modernas são criticadas por minarem o projeto político feminista de avançar em prol dos interesses das mulheres. Os conceitos de gênero, raça e classe que formam a base do pensamento feminista não são percebidos como sendo reais fora dos discursos que o criam (MARLE, BONTHUYS, 2007, p. 38). Aplicando-se essa corrente ao caso Akayesu, percebe-se que as categorias étnicas tutsi e hutu são contingentes, construídas socialmente. Além disso, verificase que o fato de ser uma mulher tutsi em relação a ser uma mulher hutu está localizado no tempo e no espaço, ou seja, em 1994, em Ruanda. 98 fora dos discursos que o criam (MARLE, BONTHUYS, 2007, p. 31-32 e 37-38), como, inclusive, concluiu o Tribunal em relação à distinção entre as etnias tutsi e hutu em Ruanda, construídas pelo colonizador belga, sem lastro na realidade. Aliás, essa questão da incapacidade do feminismo liberal de explicar o estupro genocida fica patente no questionamento da compatibilidade entre o estupro, geralmente tratado como uma violação a um direito individual (a liberdade sexual), e o genocídio, que busca proteger o bem jurídico integridade do grupo. Segundo Daniela de Vito e outros, o genocídio costuma ser definido como violação cometida contra grupos específicos, ao passo que o estupro tende a ser definido com violação da autonomia sexual do indivíduo. Por isso, eles indagam se essas categorias, uma definida no nível do grupo, e outra definida no nível do individuo, são compatíveis. Esses autores argumentam que, se for possível estabelecer uma concepção abrangente de genocídio –capaz de englobar tanto a esfera individual quanto coletiva- o estupro (quando tipificado como genocídio) pode ser compreendido como violação cometida tanto contra o individuo quanto contra o grupo. Entretanto, essas duas esferas, na concepção dos autores, nunca poderão ocupar o mesmo patamar, pois o que constitui a fundamentação da criminalização do genocídio é a proteção do grupo. O estupro enquanto genocídio não constitui violação de um indivíduo: passa a fazer parte de uma noção desenvolvida para proteger o grupo; assim, sua dinâmica muda. Assim, haveria, na visão dos autores, lugar tanto para a proteção do grupo quanto para a proteção da vítima individual do estupro como genocídio (VITO, 2009, p. 30). O que os autores parecem não compreender é que o estupro só é visto como violação da autonomia individual porque o discurso feminista predominante ainda é o feminismo liberal, que não consegue responder a violações cometidas em função da interseção entre várias identidades. Dessa forma, levando-se em consideração à interseção entre etnia e gênero no estupro genocida, cabe repensar o conceito tradicional, típico da primeira onda feminista. Esse conceito foi introduzido inicialmente no pensamento feminista pelas feministas radicais, que o usaram para descrever estruturas sociais que permitem que haja a dominação masculina sobre as mulheres. Porém, esse primeiro conceito feminista de patriarcado pode ser criticado por ignorar os diferentes modos através dos quais mulheres foram subordinadas em diferentes instituições sociais, diferentes sociedade e diferentes épocas. Também falha esse conceito inicial ao ignorar os efeitos da classe, da raça e do colonialismo, que privilegia algumas mulheres em relação a alguns homens (MARLE, BONTHUYS, 2007, p. 19-29). Levando isso em consideração, Karin van Marle e Elje Bonthuys citam um conceito de patriarcado que 99 consideram mais correto, trazido por Collins, que descreve o patriarcado como uma matriz de dominação que contem poucas vítimas ou opressores em estado puro. Cada indivíduo seria parcialmente penalizado ou privilegiado por essa matriz (Apud MARLE, BONTHUYS, 2007, p. 20). Ruanda no período do genocídio fornece uma possibilidade de repensar esse conceito, dado que no que aconteceu não foi apenas a dominação dos homens sobre as mulheres, como previsto no conceito tradicional de patriarcado no pensamento feminista, e sim uma dominação exercida contra as mulheres de uma determinada etnia, com a intenção de destruíla. Concorda-se também aqui com o posicionamento de MacKinnon e Campanaro, segundo o qual cabe discutir se houve consenso das vítimas, pois, em una guerra genocida, os preconceitos de gênero e de etnia, sempre interligados e já existentes anteriormente emergem de forma muito agressiva, sendo o contexto extremamente coercitivo. Não se trata, como bem afirma MacKinnon, de uma relação individual de consenso ou não consenso, mas de uma relação social extremamente coercitiva. Também é considerado aqui válido o posicionamento de Fiona de Londras de que a Convenção sobre Genocídio não incorporou expressamente a questão do estupro porque, no período, a experiência das mulheres não era levada em consideração no Direito Internacional. Assim, a decisão do TPIR, no caso Akayesu, de que o estupro pode constituir genocídio, nada mais faz do que incorporar as experiências femininas na interpretação deste tratado. Além disso, a afirmação de Copelon de que essa decisão ao não enfatizar as conseqüências reprodutivas como medidas genocidas, foi bem sucedida em não a reduzir a questão a uma visão meramente biológica das relações de gênero, como se a mulher só existisse enquanto reprodutora, é encampada aqui. Caso o contrário, o Direito Penal Internacional estaria (da mesma forma que se considerasse que o estupro é uma ofensa à honra) reforçando estereótipos de gênero que tem sido desconstruídos pelo ponto de vista feminista. Mas as críticas que faz Franke não podem ser rechaçadas. O conceito de violência de gênero não se restringe apenas à violência sexual, nem é algo que ocorre somente às mulheres. Por isso, há um caráter de superficialidade na decisão do TPIR no caso Akayesu ao tratar de assuntos relativos a gênero. O julgado da Câmara de Julgamento do caso Akayesu não somente trata apenas de violência sexual cometida contra mulheres, mas a trata sem 100 utilizar o conceito de gênero como construção social. Nesse julgado nem aparece a palavra “gênero”, o que indica que o TPIR naturaliza as relações de gênero nesse caso. Além disso, embora não seja incorreta a crítica feita por Fiona de Londras, Heidi Nichols Haddad, Stephanie K. Wood e Martha A. Fineman quanto ao fato de que o tratamento que as vítimas de crimes sexuais receberam do Escritório do Procurador não foi adequado, deve-se ter em mente, em primeiro lugar, que o Escritório do Procurador não é um todo uniforme, e sim um espaço de lutas em que pessoas com diferentes visões duelam (como fica patente na afirmação de Goldstone em relação às dificuldades que teve em lidar com o machismo que reinava entre os membros da equipe de investigação). Além disso, conforme o relato de Arbour, naquela época, era tudo muito experimental em relação aos crimes relacionados a gênero no Direito Penal Internacional, sendo compreensível certa cautela do Escritório do Procurador em relação a isso. O caso Akayesu também abre espaço a uma crítica da crítica das categorias binárias. A crítica das categorias binárias é feita por algumas autoras feministas, tanto no campo do Direito quanto no das Relações Internacionais, com base no conceito de gênero. Sob essa ótica, gênero, num sentido simbólico, se refere a certas características variáveis, social e culturalmente construídas, e que tendem a ser vistas como dicotômicas pela sociedade: autônomo/dependente, público/privado, protetor/protegido, eu/ “o outro”, poder/fraqueza, razão/emoção, atividade/passividade, virilidade/castidade, entre outras. Nessa visão, a sociedade, de forma geral, associa as primeiras categorias à masculinidade, e as segundas à feminilidade, e considera as características “masculinas” como tendo um valor superior (TICKNER, 1997, p. 614; CHARLESWORTH, CHINKIN, WRIGHT, 1991, p. 626; CHARLESWORTH, 1999, p. 382). As definições dessas categorias binárias são relacionais e dependem uma da outra para adquirir significado. Assim, gênero vai além da linguagem: é um sistema simbólico que modela vários aspectos da nossa cultura. Mesmo que homens e mulheres e homens não se encaixem nos papéis sociais a eles designados, a existência dos sistemas de significado expressos nas categorias binárias afeta a todos nós - tanto a forma como interpretamos o mundo quanto o modo como ele nos entende (TICKNER, 1997, p. 614615). Porém, como lembra Miranda Alison, durante períodos de conflitos múltiplas construções binárias são construídas: “[…] não apenas o “masculino” é contrastado com o “feminino” dentro do grupo e “nós” é contrastado a “eles” entre grupos, mas “nossas mulheres” são contrastadas com “as mulheres deles” e “nossos homens” aos “homens deles”. “Nossas mulheres” são castas, honradas, e devem ser 101 protegidas “por nossos homens”; “as mulheres deles” não são castas, e são depravadas” (ALISON, 2007, p. 80. Tradução da autora). Essa construção de múltiplas categorias binárias em períodos de conflitos fica patente no estudo do caso Akayesu, em que as mulheres tutsis são vistas como mais sedutoras que as mulheres hutus e, por isso, não ligadas, na visão dos homens hutus extremistas, a determinados valores também ligados ao feminino na crítica das categorias binárias, como a castidade, cabe questionar a generalização que a crítica das categorias binárias faz em relação a essas mesmas categorias, o que acaba resultando num certo essencialismo. Não se pretende, com isso, derrubar por terra a crítica das categorias binárias. O que se pretende aqui é agregar uma crítica do feminismo pós-moderno, argumentando-se pela necessidade da interseção entre as múltiplas identidades (gênero, raça, etnia, religião, classe, dentre outras) na análise dessas mesmas categorias. Assim, com base nisso, pode-se afirmar que se deve tomar cuidado com a forma estanque em que as categorias binárias são analisadas por certas autoras, devendo-se agregar, de forma a tornar a crítica das categorias binárias mais completa, de forma a incorporar a questão da fluidez das identidades, para a qual os pós-modernos chamam atenção. 102 CONCLUSÃO Começamos nossa análise através do estudo do crime de genocídio. Verificamos que o bem jurídico que a tipificação desse crime busca tutelar é bastante específico: a existência de grupos. Além disso, seu elemento subjetivo é o que o faz tão distinto em relação aos demais crimes tipificados no Estatuto do Tribunal Penal Internacional para Ruanda: o dolo de eliminar um determinado grupo, no todo ou em parte. Assim, há uma despersonalização do indivíduo que é vítima da conduta genocida, não sendo ele escolhido para ser vítima com base em características que lhe são peculiares, mas sim em uma característica que ele compartilha com outros indivíduos pertencentes a esse mesmo grupo. O elemento objetivo desse delito compreende as condutas tipificadas na Convenção sobre Genocídio, em seu artigo 2º, parágrafo 2º (assassinato de membros do grupo; dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; 4. medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; 5. transferência forçada de menores do grupo para outro), dentre as quais não está incluído o estupro. Foi afirmado também que não é necessária a eliminação, no todo ou em parte, do grupo, mas tão somente a prática dos atos indicados, desde que com o dolo de eliminá-lo. No Capítulo II, buscou-se contextualizar o caso Akayesu. Nesse sentido, foram estudadas as normas relativas a direitos das mulheres aprovadas no âmbito da ONU nos anos 1990, antes de ser proferida a sentença do TPIR que condenou Akayesu. Além da importância de afirmarem que a violência contra a mulher é condenável, inclusive em contextos de massiva violência inter-étnica, essas normas estabelecem diretrizes para a atuação não só dos Estados em relação à promoção e proteção dos direitos das mulheres, mas também inseriu linhas de ação nesse mesmo sentido para a ONU, do qual o TPIR é órgão subsidiário. Assim, portanto, ele tem mandatos, embora não expressos em seu Estatuto, quanto à temática da violência contra a mulher. Nesse Capítulo também foi estudado, ainda de forma a contextualizar o caso Akayesu, o genocídio ocorrido em Ruanda em 1994, fruto de ódios inter-étnicos alimentados pelo colonialismo belga, mas suprimidos durante o período da Guerra-Fria. Nessa ocasião, os relatos são de que as mulheres experimentaram um tipo de violência genocida que os homens, 103 ao menos pelo que consta nos relatos, não sofreram: a violência sexual, sendo essas mulheres selecionadas não só em função de seu sexo, mas também em função de sua etnia. No Capítulo III, chegamos finalmente à análise do caso Akayesu. Conforme se verificou, trata-se da primeira vez em que se adotou uma definição de estupro no Direito Internacional, que não está preocupada com uma interação de partes do corpo, e sim com a percepção social de que aquilo é estupro. Além disso, não se fala em consenso (relação individual), em sim em coerção (relação social, coletiva), dadas as circunstâncias em que o estupro na comunidade de Taba, onde ocorreram os estupros relativos ao caso Akayesu, ocorreram, eram marcadas pela intimidação coletiva. O TPIR distingue entre estupro e violência sexual: esta é gênero, e aquele, uma espécie do gênero violência sexual. Enquanto o estupro é uma invasão física de natureza sexual, em circunstâncias coercitivas, envolvendo penetração (pouco importando qual foi o órgão invadido, e o que o invadiu, desde que essa invasão seja socialmente percebida como tendo um caráter sexual), a violência sexual é constituída por atos percebidos socialmente como sexuais que não envolvem necessariamente a penetração ou o contato físico, mas que são também cometidos em circunstâncias coercitivas. O Tribunal, ao decidir que o estupro constitui genocídio, sublinha que ele teve a intenção de eliminar um grupo, dado que era direcionado às mulheres tutsis, geralmente anteriormente ao assassinato delas. Portanto, preenche-se o requisito do elemento subjetivo: dolo de eliminar um grupo. Além disso, quanto ao elemento objetivo, o Tribunal considera que o estupro se encaixa na alínea b do art. 2º da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, ou seja, a prática de atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo. Em relação ao impacto das estratégias da sociedade civil global sobre os demais atores (Câmara de Apelações e Escritório do Procurador do Tribunal Penal Internacional para Ruanda), há indício de impacto do lobby da sociedade civil global (particularmente do relatório Shattered Lives da Human Rights Watch) tanto sobre a Câmara de Apelações quanto sobre o Escritório do Procurador. Passamos agora às conclusões quanto às implicações que o caso traz para o Direito Internacional e para as abordagens feministas do Direito. A primeira delas é que o caso, através de uma nova interpretação de um dispositivo específico da Convenção para a 104 Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (qual seja, o art. 2º, alínea b), de forma a incorporar uma preocupação com as mulheres, que não apareceu na Convenção pelo fato de o Direito Internacional, na época em que ela foi aprovada, ser androcêntrico. É interpretar o Direito Internacional de forma a retirar a invisibilidade das mulheres nesse ramo jurídico. Outra implicação dessa decisão do caso Akayesu é que, ao não enfatizar as conseqüências reprodutivas como medidas genocidas, não reduziu a questão do estupro enquanto genocídio a uma visão meramente biológica das relações de gênero, como se a mulher só existisse enquanto reprodutora. Dessa forma, o Direito Internacional deixa de reforçar estereótipos de gênero. O caso Akayesu abre espaço à crítica de alguns conceitos corriqueiramente presentes em muitas abordagens feministas do Direito, como a crítica da dicotomia público/privado. Durante uma guerra genocida, essas mesmas noções se elidem. Absolutizar a crítica da distinção público/privado é absolutizar esse modelo, que é contextual e contingente, e que certamente não se faz presente no caso do genocídio ruandês. Dessa forma, a decisão do caso Akayesu de considerar que o estupro pode constituir genocídio fornece elementos para a crítica da distinção público/privado, modelo segundo o qual a esfera privada, onde ocorre a opressão masculina sobre a mulher, não é regulada pelo direito. Afinal, nem sempre a opressão se dá na esfera privada e, conforme o caso demonstra, nem sempre as fronteiras entre público e privado são tão claras em situações onde há opressão sobre a mulher. Além disso, a interseção entre identidade étnica e gênero que fica patente na decisão de considerar que o estupro constitui genocídio abre críticas ao discurso feminista liberal de igualdade formal entre homens e mulheres, sem atentar às diferenças existentes entre mulheres, sendo mais adequado para compreender essa decisão o feminismo pós-moderno, que não apenas chama atenção para as diferenças entre homens e mulheres, mas também às diferenças entre mulheres. O estupro só tratado como crime contra o indivíduo revela a influência do feminismo liberal, calcado em valores individuais, ao não levar em consideração situações em que esse crime nem sempre se dirige a um indivíduo com base em suas características pessoais, e sim nas características que esse indivíduo compartilha com um grupo. Levando-se em consideração essa interseção entre etnia e gênero no estupro genocida, cabe repensar o conceito tradicional de patriarcado, introduzido inicialmente no 105 pensamento feminista pelas feministas radicais, que o usaram para descrever estruturas sociais que permitem que haja a dominação masculina sobre as mulheres. Porém, esse conceito de patriarcado ignora os diferentes modos através dos quais mulheres foram subordinadas em diferentes instituições sociais, diferentes sociedade e diferentes épocas, e também falha esse conceito inicial ao ignorar os efeitos da classe, da raça e do colonialismo. Ruanda no período do genocídio fornece uma possibilidade de repensar esse conceito, dado que no que aconteceu não foi apenas a dominação dos homens sobre as mulheres, como previsto no conceito tradicional de patriarcado no pensamento feminista, e sim uma dominação exercida contra as mulheres de uma determinada etnia, com a intenção de destruí-la. Assim, o conceito de patriarcado deve ser repensado, de forma a incorporar a interseção entre gênero e outras categorias, como, a exemplo do caso Akayesu, etnia. O caso Akayesu também abre espaço a uma crítica da crítica das categorias binárias. Essas categorias nem sempre tem correspondentes feminismos e masculinos tão estanques quanto apresentados por algumas autoras. O caso Akayesu, um caso sobre estupro enquanto genocídio, é um exemplo disso: nele, fica patente a existência de múltiplas construções binárias: assim, as mulheres tutsis são vistas como mais sedutoras que as mulheres hutus e, por isso, não ligadas, na visão dos homens hutus extremistas, a determinados valores também ligados ao feminino na crítica das categorias binárias, como a castidade. Cabe questionar a generalização que a crítica das categorias binárias faz em relação a essas mesmas categorias, de forma a essencializá-las. Conforme mencionado anteriormente, não se pretende derrubar por terra a crítica das categorias binárias, e sim complementá-la com uma preocupação em relação interseção entre as múltiplas identidades, e da fluidez entre elas, na análise dessas mesmas categorias. 106 REFERÊNCIAS AKHAVAN, Payam. The Crime of Genocide in the ICTR Jurisprudence. Journal of International Criminal Justice, 3 (2005), p. 989-1006. Disponível em: http://www.jura.unituebingen.de/professoren_und_dozenten/vogel/veranstaltungen/materialienteilnehmerbereich/akhavan-genocide-ictr-jicj-2005-989.pdf, acessado no dia 25 de agosto de 2010. ALISON, Miranda. Wartime sexual violence: women’s human rights and questions of masculinity. Review of International Studies, 33, 2007, 75–90. ALVES, Ana Cristina Araújo. Contos sobre Ruanda: uma análise crítica das narrativas sobre o genocídio ruandês de 1994. 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