Visualização da dissertação de Camila Soares Lippi - Direito

Transcrição

Visualização da dissertação de Camila Soares Lippi - Direito
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CAMILA SOARES LIPPI
O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA RUANDA SOB UMA PERSPECTIVA
DE GÊNERO: um estudo do caso Akayesu
RIO DE JANEIRO
2011
Camila Soares Lippi
O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA RUANDA SOB UMA PERSPECTIVA
DE GÊNERO: um estudo do caso Akayesu
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Direito,
Faculdade Nacional de Direito, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em
Direito.
Orientador: Professor Dr. Luiz Eduardo Figueira.
2011
2
Lippi, Camila Soares.
O Tribunal Penal Internacional sob uma perspectiva
de gênero: um estudo do caso / Camila Soares Lippi. –
2011.
124 f.
Orientador: Luiz Eduardo Figueira.
Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Jurídicas
e Econômicas, Faculdade de Direito.
Bibliografia: f. f. 107-124.
1. Direito Internacional Público- Dissertação. 2.
Teoria do Direito I. Luiz Eduardo Figueira. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro de
Ciências Jurídicas e Econômicas. Faculdade de Direito.
III. Título.
CDD 341.1
Camila Soares Lippi
O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA RUANDA SOB UMA PERSPECTIVA
DE GÊNERO: um estudo do caso Akayesu
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Direito,
Faculdade Nacional de Direito, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em
Direito.
Aprovada em, _____________________________, por:
Professor Dr. Luiz Eduardo Figueira
Professora Dra. Luciana Boiteux de Figueiredo
Professor Dr. Marco Aurélio Gonçalves Ferreira
Professora Dra. Vanessa Oliveira Batista
2
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho à minha família, mais especificamente minha mãe, tias e avós,
pelo apoio que me deram desde que voltei ao Rio de Janeiro para cursar o ensino superior e,
posteriormente, o mestrado.
Dedico também esse trabalho aos amigos que me apoiaram nesta árdua tarefa que foi
escrever esta dissertação, respeitando a minha clausura quando era necessário, e me retirando
dela quando mais necessário ainda (inclusive me proibindo de mencionar a palavra
dissertação- vocês sabem quem são, nem preciso mencionar nomes).
3
AGRADECIMENTOS
Gostaria de tecer um agradecimento, em primeiro lugar, aos meus dois orientadores:
à professora Luciana Boiteux, que foi minha orientadora no meu primeiro ano de mestrado
(embora a orientação não tenha sido oficializada, houve orientação de fato), e ao professor
Luiz Eduardo Figueira, que, após a saída dessa professora do PPGD-UFRJ, aceitou assumir a
orientação deste trabalho.
Agradeço também aos membros da banca de qualificação (professoras Luciana
Boiteux e Ana Lúcia Sabadell, e professor Luiz Eduardo Figueira) pelas críticas construtivas
feitas naquela ocasião, que permitiram a elaboração de um melhor trabalho.
Finalmente, agradeço aos professores que integraram a banca de defesa desta
dissertação (professores Luciana Boiteux, Vanessa Batista e Marco Aurélio Gonçalves
Ferreira), por seus preciosos comentários, que me permitiram fazer uma versão melhorada
deste trabalho, devidamente revisado.
4
RESUMO
LIPPI, Camila Soares. O Tribunal Penal Internacional sob uma perspectiva de gênero: um
estudo do caso Akyesu. Rio de Janeiro, 2011. Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade
Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.
Este trabalho pretende estudar o caso Akayesu, do Tribunal Penal Internacional para
Ruanda, sob uma perspectiva de gênero, mais especificamente a sua decisão, pioneira no
Direito Internacional, de considerar que o estupro pode constituir genocídio. Pretende-se
analisar o impacto das estratégias da sociedade civil global sobre os demais atores envolvidos
nesse caso (Escritório do Procurador e Juízes da Câmara de Julgamento), e quais são as
implicações desse caso para o Direito Internacional e para as abordagens feministas do Direito
(dada a incorreção de se falar numa única teoria feminista do Direito). Quanto ao primeiro
objetivo, há indícios de que houve impacto das estratégias da sociedade civil global tanto
sobre o Escritório do Procurador quanto sobre a Câmara de Julgamento. Porém, ressalva-se
que a pesquisadora não teve acesso ao campo, e, por isso, adotou-se o método indiciário.
Quanto ao segundo objetivo, verificou-se que, no campo do Direito Internacional, essa
decisão de considerar que o estupro pode constituir genocídio, embora essa conduta não esteja
expressa na Convenção sobre Genocídio, de 1948, reinterpretou uma norma criada num
contexto de invisibilidade e ausência das mulheres no Direito Internacional, atribuindo-lhe
novos significados e, ao não enfatizar as conseqüências para a mulher como reprodutora,
deixou de introduzir nesse ramo jurídico estereótipos de gênero. As suas implicações em
relação às abordagens feministas do Direito são o fato de esse caso, em razão da interseção
entre gênero e etnia que fica nele presente, permitir repensar vários conceitos presentes em
diversas abordagens feministas do Direito, pelo fato de eles não resistirem ao teste que o caso
5
Akayesu representa a eles, tais como a crítica da distinção público/privado; a crítica das
dicotomias binárias; patriarcado; e o estupro como tendo por bem jurídico protegido a
liberdade individual.
Palavras-chave: Tribunal Penal Internacional para Ruanda; caso Akayesu; gênero;
genocídio; estupro.
6
ABSTRACT
LIPPI, Camila Soares. O Tribunal Penal Internacional sob uma perspectiva de gênero: um
estudo do caso Akayesu. Rio de Janeiro, 2011. Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade
Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.
This thesis aims studying the Akayesu case, of the International Criminal Tribuanl
for Rwanda, under a gender perspective, more specifically its pioneer decision in International
Law of considering that rape can constitute genocide. It aims studying the global civil
society’s strategies over the other actors of this case (Office of the Prosecutor and Trial
Chamber), and which are this case’s implications to International Law and to the feminist
approaches to Law (since it is incorrect speaking of a single feminist theory of Law). About
the main objective, there is some indication that global civil society’s strategies had an impact
both over the Office of the Prosecutor and the Trial Chamber. But we emphasize that the
researcher did not have access to the field, reason for which it was adopted the evidentiary
method. As for the second objective, it was verified that, in the field of International Law, this
decision of considering that rape can constitute genocide, although this conduct is not
expressed in the 1948 Genocide Convention, reinterpreted a norm created on a context of
invisibility and absence of women in International Law, assigning it new meanings, and,
when it did not emphasize the woman’s role as reproducer, did not reinforce law gender
stereotypes in this field. The implications of the Akayesu case to the feminist approaches of
Law, due to the intersection between gender and ethnicity which is present in it, allows us to
rethink many concepts used in varied feminist theories of Law, for the fact they do not resist
the test the Akayesu case represent to them, such as: the criticism of the public/private
7
distinction; the criticism of the binary dichotomies; patriarchy; as rape as being a violation of
individual values.
Key-words: International Criminal Tribunal for Rwanda; Akayesu case; gender;
genocide; rape.
8
SUMÁRIO
Lista de siglas____________________________________________________ p. 11
Introdução______________________________________________________ p. 13
I-
O crime de genocídio________________________________________ p. 20
1.1.
O surgimento do conceito de genocídio e da Convenção de 1948_____ p. 20
1.2.
Bem jurídico protegido______________________________________ p. 32
1.3.
Elemento subjetivo__________________________________________ p. 34
1.4.
Elemento objetivo__________________________________________ p. 36
1.5.
Decisões da Corte Internacional de Justiça sobre genocídio__________ p. 39
II-
Contextualizado o caso Akayesu_______________________________ p. 42
2.1. Documentos internacionais sobre direitos das mulheres da década de
1990___________________________________________________________ p. 42
2.1.1. Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a mulher__________ p. 43
2.1.2. A Conferência de Viena sobre Direitos Humanos___________________ p. 45
2.1.3. Conferência de Pequim_______________________________________ p. 47
2.2. O genocídio em Ruanda________________________________________ p. 50
2.3. O debate sobre a situação em Ruanda no Conselho de Segurança da ONU:
genocídio?______________________________________________________ p. 59
2.4. Violência sexual durante o genocídio ruandês_______________________ p. 62
III- O estupro enquanto genocídio no caso Akayesu______________________ p. 67
3.1. O caso Akayesu______________________________________________ p. 67
3.2. O impacto das estratégias da sociedade civil global__________________ p. 75
3.2.1. A sociedade civil global__________________________________ p. 76
9
3.2.1.1.
O relatório Shattered Lives da Human Rights Watch___________ p. 76
3.2.1.2.
O parecer amicus curiae de uma coalizão feminista____________ p. 78
3.2.2. O papel do Escritório do Procurador________________________ p. 82
3.2.3. A participação dos juízes_________________________________ p. 88
3.3. Debates feministas sobre o caso Akayesu__________________________ p. 89
Conclusão______________________________________________________ p. 103
Referências_____________________________________________________ p. 107
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LISTA DE SIGLAS
AG- Assembléia-Geral das Nações Unidas
CICV- Comitê Internacional da Cruz Vermelha
CS- Conselho de Segurança das Nações Unidas
CIJ- Corte Internacional de Justiça
DIDH- Direito Internacional dos Direitos Humanos
DIH- Direito Internacional Humanitário
DPI- Direito Penal Internacional
DPKO- Departamento de Operações Peacekeeping das Nações Unidas
ECOSOC- Conselho Econômico e Social das Nações Unidas
EUA- Estados Unidos da América
FPR- Força Patriótica de Ruanda
FNI- Força Neutra Internacional
ONG- Organização Não-Governamental
ONU- Organização das Nações Unidas
OUA- Organização da Unidade Africana
RGF- Forças Governamentais Ruandesas
SG- Secretário-Geral das Nações Unidas
TPI- Tribunal Penal Internacional
TPII- Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia
TPIR- Tribunal Penal Internacional para Ruanda
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UA- União Africana
UNAMIR- Missão das Nações Unidas de Assistência a Ruanda
URSS- União Soviética
12
INTRODUÇÃO
O objeto desta dissertação é a construção do estupro como crime de genocídio no
caso Akayesu, do Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR) 1. Pretende-se analisar,
sob essa perspectiva, uma grande inovação feita pelo Tribunal: além de ser indicado pela
literatura especializada como a primeira condenação por genocídio já proferida, trata-se
também da primeira vez em que se decidiu que o estupro pode constituir genocídio, embora
originalmente, em todos os instrumentos internacionais existentes que criminalizavam a
prática desse crime à época (Convenção para a Prevenção e Repressão ao Crime de
Genocídio, Estatuto do TPIR, Estatuto do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia –
TPII-, Estatuto de Roma para o Tribunal Penal Internacional –TPI), essa conduta não estava
listada entre as que constituíam o delito de genocídio.
Justificando o recorte
Embora o TPIR provavelmente esteja próximo de ser extinto, por ser, como a própria
terminologia ad hoc indica, limitado no espaço e no tempo, o estudo de sua jurisprudência é
relevante, pois, em virtude do artigo 21, parágrafo 2 do Estatuto de Roma, do TPI, casos
1
O TPIR possui natureza de órgão subsidiário em relação ao Conselho de Segurança da ONU, órgão principal
dessa organização. As competências rationae personae, rationae temporis e rationae loci deste Tribunal estão
dispostas nos arts. 1º e 7º do seu Estatuto. O art. 5º desse mesmo instrumento dispõe sobre competência rationae
personae. Em relação a ela, o TPIR só pode julgar pessoas naturais, que devem ser cidadãos ruandeses, pois,
conforme os arts. 1º e 7º do Estatuto, só podem ser julgados pelo Tribunal pessoas responsáveis por sérias
violações de direito humanitário cometidas por cidadãos ruandeses. A competência rationae temporis do TPIR
só recai nos crimes cometidos no ano de 1994, ano de criação do Tribunal, e em que houve o grande genocídio
em Ruanda (apesar de haver denúncias no sentido de que alguns crimes contra a humanidade foram cometidos
em anos anteriores, razão pela qual o governo de Ruanda queria que essa competência retroagisse a 1990). Não
podem ser punidas violações de direito humanitário cometidas após esse ano, apesar de haver denúncias de que
elas ainda ocorrem (mas não caracterizam genocídio). Portanto, reside aí uma diferença entre a competência
rationae temporis desse Tribunal em relação ao TPII, cuja competência retroage a 1991, apesar de ter sido criado
em 1993, e que não adota uma data em que termina sua competência. Trata-se, no caso iugoslavo, de uma
fórmula aberta, na qual a competência rationae temporis do Tribunal tem uma data para começar, e não uma
para terminar. Isso é resultado da participação do recém-empossado governo tutsi no processo de negociação do
Estatuto do TPIR, que não tinha interesse em uma extensão da competência rationae temporis para depois do
genocídio (SHRAGA, ZACKLIN, 1996, p. 506-507). Já a competência rationae loci do Tribunal recai sobre
crimes cometidos não só no território de Ruanda (tanto em sua superfície terrestre quanto em seu espaço aéreo),
mas também no território de Estados vizinhos. A competência rationae materiae recai sobre os crimes de
genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, serão discutidas no Capítulo I.
13
submetidos a esse Tribunal podem ser interpretadas à luz da jurisprudência dos tribunais ad
hoc, já que esse dispositivo prevê que essa jurisprudência é fonte do direito para o TPI.
Além disso, o operador do direito brasileiro deve conhecer essa jurisprudência, pois
Brasil se submeteu ao Estatuto de Roma e à jurisdição do TPI, através da ratificação do
Estatuto, em 2002, e também pela Emenda Constitucional nº 45, que insere um §4º ao art. 5º
da Constituição Brasileira de 1988 (segundo o qual o Brasil se submete à jurisdição do TPI).
Além disso, há um projeto de lei que visa implementar dispositivos do Estatuto de Roma (PL
4038/2008) no âmbito interno.
Além disso, há uma marginalização da África no contexto internacional.
Quanto ao caso específico em análise, o caso Akayesu, optou-se por ele por ser
indicado pela literatura especializada como a primeira condenação já proferida sobre
genocídio, o primeiro julgado a lidar com questões relativas a gênero dos dois tribunais ad
hoc, a primeira vez que se adotou uma definição de estupro no Direito Internacional, e a
primeira vez que um órgão jurisdicional considerou que o estupro e a violência sexual podem
constituir genocídio. Levando-se isso em consideração, percebeu-se que esse caso era digno
de uma análise mais aprofundada.
Problemas
O problema do qual se parte são as implicações, no Direito Internacional e nas
abordagens feministas do Direito, trazidas pela decisão pioneira do TPIR, no caso Akayesu,
de que o estupro pode constituir genocídio, e quais são os elementos que esse caso traz para se
repensar certos conceitos tradicionalmente presentes em diversas abordagens feministas.
Outro problema que surge é o impacto da sociedade civil global 2 nessa decisão. O que se
2
Mônica Herz e Andrea Hoffman conceituam a sociedade civil como “espaço de atuação e de pensamento
ocupado por iniciativas de indivíduos ou grupos, de caráter voluntário e sem fins lucrativos, que perpassam as
fronteiras dos Estados” (HERZ, HOFFMANN, 2004, p.226), excluindo-se dessa forma, instituições que visem o
lucro, como as corporações transnacionais. Além disso, sociedade civil não é sinônimo de organização nãogovernamental: essas constituem apenas a modalidade mais institucionalizada de sociedade civil (HERZ,
HOFFMANN, 2004, p. 226-227). As formas de organização da sociedade civil que intervieram nesse processo
foram uma ONG (definidas por Herz e Hoffman como “organizações voluntárias organizadas por indivíduos e
grupos que contam com um documento constituinte e uma sede permanente”) (HERZ, HOFFMANN, 2004, p.
228), a Human Rights Watch, e uma coalizão transnacional (ou seja, “ligações entre diversos tipos de
organizações da sociedade civil que, embora se mantenham independentes organizacionalmente, atuam em
conjunto para promover uma determinada atividade”) (HERZ, HOFFMANN, 2004, p. 228).
14
procura verificar é se houve impacto desse ator tanto na estratégia persecutória em relação a
crimes sexuais, quanto na decisão da Câmara de Julgamento 3 de considerar que o estupro
constitui genocídio.
Objetivos
Um dos objetivos desta dissertação é verificar as implicações, no Direito
Internacional e nas abordagens feministas do Direito, trazidas pela decisão pioneira do TPIR,
no caso Akayesu, de que o estupro pode constituir genocídio. Pretende-se também, através
desse estudo de caso, investigar como o movimento feminista tem colaborado na construção
do Direito Penal Internacional4.
Outro objetivo é estudar a relevância desse caso analisado como fonte de
interpretação do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, em relação ao crime de genocídio,
dado que, conforme mencionado anteriormente, a jurisprudência dos Tribunais Internacionais
ad hoc constitui fonte para a aplicação do Direito pelo TPI.
3
O TPIR possui quatro órgãos: a Câmara de Julgamentos (Trial Chamber), com competência para julgar, em
primeira instancia, os acusados perante a Corte, a Câmara de Apelações (Appeals Chamber), o Escritório do
Procurador (Office of the Prosecutor), órgão investigativo e acusatório, e a Secretaria (Registry), órgão
administrativo. Inicialmente, tanto a Câmara de Apelações quanto o Procurador eram compartilhados com o
TPII, o primeiro, tanto por motivos de economia financeira quanto pela questão da uniformização do Direito
Penal Internacional, e o segundo apenas por motivos de economia financeira. A Câmara de Apelações continua
sendo compartilhada, mas, devido à Resolução 1512 de 2003 do CS, o TPIR passou a ter um Procurador
autônomo, não mais compartilhando o do TPIR.
Em agosto de 2002, através da Resolução 1431, o CS resolveu incorporar 4 juízes ad litem (um juiz que participa
apenas em algum caso em particular ou em um número limitado de casos, e que não possui os mesmos poderes
que os demais juízes), podendo ser incorporados, no máximo quarto deles às Câmaras de Julgamento. Em 2003,
o Conselho adotou a Resolução 1512 e aumentou o número de juízes ad litem que servem no Tribunal de quatro
para nove. Já na Resolução1855 de 2008, o CS decidiu que o SG pode indicar, quando houver recursos, juízes
ad litem adicionais a requerimento do Presidente do Tribunal, de forma a complementar os julgamentos
existentes ou a conduzir julgamentos adicionais, sendo que o número total de juízes ad litem indicados pelas
Câmaras pode exceder, temporariamente, o máximo de nove, previsto no art. 11, parágrafo 1º, do Estatuto do
TPIR, para um máximo de 12 a qualquer tempo, retornando ao máximo de nove em 31 de dezembro de 2009.
Durante o julgamento do caso em análise, ainda não havia os juízes ad litem, havendo tão somente os
permanentes.
4
Parte-se aqui do conceito de Direito Penal Internacional de M. Cherif Bassiouni. Para o autor, essa seria uma
área do conhecimento jurídico interdisciplinar entre Direito Penal e Direito Internacional (BASSIOUNI, 2008, p.
4), ao contrário do que defendem outros autores, segundo os quais haveria separação entre as áreas de Direito
Penal Internacional e Direito Internacional Penal. Celso Mello, por exemplo, distingue entre Direito
Internacional Penal, área de conhecimento do Direito Internacional Penal, e Direito Penal Internacional, área de
conhecimento do Direito Penal. Porém, o próprio autor reconhece que essa distinção não é clara na prática
(MELLO, 2004, p. 1009-1010), o que nos faz questionar sua utilidade e, por isso, considerar que se trata de uma
única área do conhecimento, de caráter interdisciplinar.
15
Marco teórico
Quanto ao marco teórico, a pesquisa se baseia nas abordagens feministas do Direito,
com ênfase nas abordagens feministas de Direito Internacional. Embora não se possa falar de
um único ponto de vista feminista, nem de uma teoria feminista uniforme, e sim de uma
multiplicidade de pontos de vista (inclusive, sobre o objeto desta dissertação, ou seja, a
decisão pioneira do TPIR de considerar que o estupro pode constituir genocídio), partiu-se de
alguns conceitos utilizados por alguns autores/autoras. Dentre eles, e sobre o qual há certo
consenso dentre as variadas abordagens feministas, está o de gênero, categoria referente às
idéias de “masculinidade” e de “feminilidade”, ou seja, das interpretações culturais sobre o
sexo biológico (CHARLESWORTH, 1999, p. 379).
Dentro ainda de uma perspectiva feminista, utiliza-se o conceito de patriarcado, cujo
significado não é tão pacífico entre as feministas, mas é amplamente utilizado por essas
autoras. Aqui, esse conceito é entendido como uma forma de opressão que expressa a
interseção entre raça, classe, gênero e orientação sexual, e não englobando apenas a
dominação de homens contra mulheres (VAN MARLE; BONTHUYS 2007, p. 21).
A corrente teórica feminista adotada, por perceber-se, ao final do estudo, que é a que
melhor fornece elementos para pensar o caso em tela, é o feminismo pós-moderno. Essa
corrente, conforme seu próprio nome sugere, parte do pós-modernismo, ou seja, o
questionamento pós-moderno da crença moderna de que o pensamento racional asseguraria
justiça. Na busca por direitos e princípios de justiça, o pós-modernismo foca no local, no
particular e no contextual ao invés do universal. Ele prefere a contingência a categorias e
princípios amplos. O feminismo pós-moderno não apenas chama atenção para as diferenças
entre homens e mulheres, mas também para as diferenças entre mulheres, por não se acreditar
em identidades fixas e inerentes, pois identidades são sempre construídas continuamente
através de discursos concorrentes. Dessa forma, evita-se enxergar as mulheres como
compartilhando de uma identidade feminina a-histórica, descontextualizada.
Nessa
concepção, conceitos de gênero, raça e classe que formam a base do pensamento feminista
não são percebidos como sendo reais fora dos discursos que o criam (MARLE, BONTHUYS,
2007, p. 38).
16
Método
O método escolhido foi o estudo de caso, como sugere o nome desta dissertação.
Isso garante um estudo mais profundo de uma decisão, considerada pela literatura estudada,
como inovadora, embora haja diferentes pontos de vista sobre essa inovação trazida pela
decisão do TPIR de considerar que o estupro constitui genocídio.
O estudo basear-se-á em fontes primárias, principalmente o julgado de primeiro grau
do caso Akayesu, mas também em algumas Resoluções de órgãos da ONU, tratados,
declarações aprovadas por Conferências da ONU, pareceres e relatórios emitidos por ONGs
(Organizações Não-Governamentais), dentre outras.
Além da pesquisa em fontes primárias, empreendeu-se revisão bibliográfica não
somente sobre o caso em tela, mas também sobre o crime de genocídio, sobre normas
internacionais relativas a direitos das mulheres, particularmente nos anos 1990, e sobre os
acontecimentos que levaram ao genocídio em Ruanda em 1994, e sobre o genocídio,
prestando especial atenção à violência sexual sofrida por mulheres durante o genocídio
ruandês.
Torna-se necessário fazer uma importante ressalva no tratamento dessas fontes: pela
grande distância geográfica entre a pesquisadora e o campo que pretende estudar, não se pôde
ter acesso aos autos do processo no TPIR contra Jean-Paul Akayesu; em função dessa mesma
distância, não foi possível entrevistar membros da sociedade civil global, ou que tenham
ocupado cargos no Escritório do Procurador ou na Câmara de Julgamentos naquele período.
Dessa forma, essas fontes tiveram que ser tratadas através do método indiciário, do qual trata
Carlo Ginzburg, ou seja, de forma a fornecer indícios que, juntos, dão certa idéia do que pode
ter ocorrido (GINZBURG, 1989, p. 143-179).
O marco cronológico da pesquisa é a instalação do Tribunal Penal Internacional para
Ruanda, dentro de sue contexto histórico: o pós-Guerra Fria, o genocídio em Ruanda e a
Conferência de Pequim (marco da normatização das relações de gênero no Direito
Internacional dos Direitos Humanos5). O universo de análise, por sua vez, é o Caso Akayesu.
5
Utiliza-se aqui a definição de direitos humanos enquanto “conjunto de faculdades e instituições que, em cada
momento histórico, buscam concretizar as exigências da dignidade, da liberdade, da igualdade, da fraternidade e
17
Haverá interdisciplinaridade com a Política Internacional, para que possa ser
compreendida a dinâmica política que levou ao surgimento do Tribunal Penal Internacional
para Ruanda.
Percurso analítico
Para esclarecer de que forma a decisão do TPIR, no caso Akayesu, de considerar que
o estupro pode constituir genocídio, é inovadora no Direito Internacional, é necessário, antes
de tudo, esclarecer o que é genocídio, e como esse crime era percebido antes do julgamento
pioneiro do caso Akayesu. Nesse sentido, procura-se, no Capítulo I, analisar esse conceito,
como ele surgiu no Direito Internacional, seus elementos subjetivo e objetivo, o bem jurídico
por ele protegido, e a interpretação dada pela Corte Internacional de Justiça (CIJ) às normas
sobre genocídio antes de ser proferida a sentença do caso Akayesu.
O Capítulo II tem como objetivo principal situar o caso Akayesu, de forma a melhor
a compreensão do leitor do contexto em que se insere o caso. Nesse sentido, são analisados,
primeiramente, os instrumentos internacionais de proteção dos direitos das mulheres
aprovados no âmbito da ONU na década de 1990. Posteriormente é analisado o genocídio em
Ruanda: sua dinâmica, a percepção do conflito em Ruanda como genocídio, e a violência
sexual cometida contra as mulheres tutsi no contexto do genocídio ruandês de 1994.
O Capítulo III, por sua vez, adentra na análise do caso Akayesu. Num primeiro
momento, busca-se descrever o caso, particularmente a decisão inovadora de que o estupro
pode constituir genocídio. Depois, de forma a se verificar o impacto das estratégias da
sociedade civil nos demais atores (juizes da Câmara de Julgamento e Procuradores).
Finalmente, estuda-se o impacto da decisão do caso Akayesu de considerar que estupro pode
constituir genocídio no Direito Internacional e nas abordagens feministas do Direito, através
de um mapeamento do posicionamento de autoras/autores feministas sobre essa inovação
trazida pelo caso Akayesu, e também de algumas autoras/autores feministas que, embora não
mencionando propriamente o caso Akayesu, falam das implicações de se considerar que o
da solidariedade humanas. ser reconhecidas positivamente em todos os níveis, sendo que tais direitos guardam
relação com os documentos de direito internacional, por se referirem àquelas posições jurídicas endereçadas à
pessoa humana como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional”
(BATISTA, BOITEUX DE FIGUEIREDO RODRIGUES, PIRES, 2008, p. 9).
18
estupro pode constituir genocídio. Com base numa reflexão sobre esses posicionamentos e
também no marco teórico proposto, são feitas considerações sobre as implicações de se
considerar que o estupro pode constituir genocídio no Direito Internacional e nas abordagens
feministas do Direito, indicando a necessidade de se repensar alguns dos conceitos propostos
por várias dessas abordagens feministas.
19
I- O CRIME DE GENOCÍDIO
Este capítulo se dedica ao estudo do crime de genocídio, mais especificamente das
normas relativas a esse delito estabelecidas anteriormente ao julgado do caso Akayesu
emitido pela Câmara de Julgamento do TPIR. Este crime está previsto no art. 2º do Estatuto
do TPIR, que trata do crime de genocídio, é reflexo do art. II da Convenção para a Prevenção
e Repressão do Crime de Genocídio, de 1948. Os objetivos dela são obrigar seus Estados
partes a criminalizar o genocídio e a punir os seus autores, e a adotar sistemas de cooperação
judicial para a repressão desse crime (CASSESE, 2008, p. 127-128). Segundo esse tratado,
seja o crime cometido em tempos de paz ou de guerra, o indivíduo que o cometeu deve ser
julgado e punido. A Convenção atualmente faz parte do direito consuetudinário internacional
(OBOTE-ODORA, 1999), ou seja, como prática geral reiterada ao longo do tempo, e aceita
como sendo direito, o que a torna obrigatória inclusive para Estados que não a tenham
ratificado.
O estudo que se empreende aqui sobre esse delito se divide em cinco partes: a
primeira aborda o surgimento do conceito de genocídio e da Convenção de 1948 sobre a
Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio; o segundo trecho trata do bem jurídico
protegido pela tipificação desse delito; a terceira parte é sobre o elemento objetivo do crime
de genocídio; no quarto item, aborda-se o elemento subjetivo desse crime; e finalmente, o
último item versa sobre interpretações da Corte Internacional de Justiça quanto a esse delito
em julgados anteriores à decisão do TPIR sobre o caso Akayesu.
1.1. O surgimento do conceito de genocídio e da Convenção de 1948
A Convenção de 1948 sobre Genocídio provavelmente não existiria hoje se não fosse
o jurista polonês Raphael Lemkin. Judeu, Lemkin perdeu vários membros de sua família, e
teve de se mudar para os Estados Unidos como refugiado após a Alemanha invadir a Polônia,
e lá passou a lecionar na Duke University e aprofundou seus estudos, que já havia começado a
desenvolver enquanto estudante quando ainda era jovem, sobre algo ainda sem nome e cujo
termo ele viria a cunhar depois: o genocídio (POWER, 2007, 14-29).
20
Na Conferência para a Unificação do Direito Penal de Madri, em 1933, quando
trabalhava como Promotor em seu país, Lemkin apresentou à comunidade jurídica
internacional os conceitos de dois novos crimes internacionais: barbárie (barbarism) e
vandalismo (vandalism). Barbárie seriam atos de exterminação dirigidos contra coletivos
étnicos, religiosos ou sociais, por qualquer motivo. Dentre os elementos desse crime, estariam
os seguintes: emprego de violência cruel; ação sistemática e organizada; a ação não se dirige
contra pessoas determinadas, mas contra uma coletividade; a coletividade atacada está
indefesa; e a intenção com que se realiza pode consistir em intimidação dessa população
(LEMKIN, 1933).
Já o vandalismo seria um ataque visando uma coletividade que poderia assumir
também a forma da destruição sistemática e organizada da arte e da herança cultural nas quais
as características únicas daquela coletividade são reveladas. O autor do crime não estaria
somente destruindo a obra, mas o símbolo da cultura de uma determinada coletividade
(LEMKIN, 1933).
Porém, as idéias de Lemkin não foram acolhidas nessa Conferência de 1933. Ele
enfrentou diversas dificuldades nesse sentido. Em primeiro lugar, o então Ministro das
Relações Exteriores da Polônia, Joseph Beck, alinhado a Hitler, se recusou a permitir que
Lemkin viajasse para Madri para defender suas idéias pessoalmente. O trabalho de Lemkin
teve que ser lido em voz alta por terceiros em sua ausência. Em segundo lugar, Lemkin não
conseguiu muitos aliados que defendessem suas propostas, no período entre guerras na
Europa, economicamente deteriorada devido à crise de 1929, e com Estados isolacionistas e
nacionalistas. Os Estados, no âmbito da Liga das Nações, falavam em “segurança coletiva”,
mas nesse conceito, não consideravam que estava incluída a segurança dentro do Estado. Os
juristas presentes argumentavam que o que Lemkin descrevia era algo que não acontecia com
freqüência, não merecendo ser tipificado. Os representantes alemães chegaram a se levantar
em protesto à sua apresentação. Os conceitos expostos por ele haviam sido fortemente
influenciados pelo massacre de armênios perpetrado pelos turcos, e pelo assassinato de judeus
na Polônia em pogroms. Então, em seu país natal, ele foi acusado de tentar melhorar a
situação dos judeus na Polônia com sua proposta. O Ministro das Relações Exteriores do país
o culpou por ter insultado os aliados alemães. Assim, logo após a Conferência, o governo
anti-semita polonês o demitiu do cargo de promotor público adjunto, pois Lemkin se recusava
a refrear as críticas que fazia em relação a Hitler (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 78; POWER,
2007, p. 22).
21
Um discurso proferido por Churchill em 19416 teria ressoado em Lemkin, quando
este já se encontrava refugiado nos Estados Unidos, de modo a levá-lo a procurar uma nova
palavra, na qual pudesse aperfeiçoar os conceitos que havia apresentado em Madri, além de
agrupar todos os aspectos da proteção do grupo vitimado, bem como as atuações sistemáticas
que os atingiriam, tomando como exemplo aquelas perpetradas pelos nazistas com fim de
extermínio em massa (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 79).
Assim, diante da impossibilidade de encontrar um termo mais preciso, Lemkin
cunhou o termo “genocídio, em obra seminal de 1944, denominada Axis Rule in Occupied
Europe. Isso ocorreu no final da Segunda Guerra Mundial, quando o mundo se encontrava
chocado perante os acontecimentos na Alemanha nazista. Lemkin criou uma palavra que tinha
o prefixo grego genos (que significa raça, ou tribo) com o sufixo de origem latina cídio (em
inglês, cide), que deriva do vocábulo latino caedere, que significa matar. Ele caracterizou o
delito de genocídio, o novo vocábulo criado, como uma velha prática que estava em sua etapa
de desenvolvimento moderno, constituída por um plano coordenado que busca a destruição
das bases fundamentais da vida dos grupos atacados, destruição essa que implica usualmente
a desintegração das instituições políticas e sociais, da cultura do povo, de sua linguagem, de
sua religião. A destruição do grupo seria o objetivo principal desse crime. Os atos seriam
sempre, na concepção desse autor, direcionados aos grupos, e aos indivíduos que são
selecionados por fazerem parte desses grupos (LEMKIN, 1944).
Porém, o crime de genocídio não foi tipificado nem pela Carta do Tribunal Militar
Internacional, nem pela do Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente (mais
conhecidos como Tribunais de Nuremberg e de Tóquio), a despeito de a palavra ter sido
rápida e amplamente adotada pelos jornalistas, lexicógrafos e políticos. O motivo para essa
rejeição da tipificação desse delito foi o fato do conceito de genocídio abranger, na concepção
de Lemkin, condutas praticadas tanto em tempos de guerra quanto em tempos de paz
(PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 82; SCHABAS, 2000, p. 35-37). Isso fica exemplificado pela
6
“Aqui há um demônio [Adolph Hitler] quem num mero espasmo de seu orgulho e desejo por dominação, pode
condenar dois ou três milhões […] de seres humanos à morte violenta e rápida. Deixe que a Rússia seja apagada.
Deixe que a Rússia seja destruída. Ordenem que o Exército avance. Tais foram os seus decretos. Assim, desde o
Oceano Ártico até o Mar Negro, seis ou sete milhões de soldados foram pegos numa armadilha mortal.
Pela primeira vez em sua experiência, o assassinato em massa se tornou não rentável ao agressor. Ele retalia com
as piores crueldades. Enquanto seu Exército avança, distritos inteiros são exterminados. Porções de mil,
literalmente porções de mil execuções a sangue frio estão sendo perpetradas por tropas alemãs sobre patriotas
russos que defendem seu solo. Desde as invasões mongóis à Europa no século XVI, nunca houve uma
carnificina tão metódica, impiedosa nessa escala, ou numa escala próxima. E esse é só o começo. Fome e
pestilência ainda se seguirão na rotina sangrenta dos tanques de Hitler.
Nós estamos na presença de um crime sem nome” (CHURCHIL, 1941. Tradução da autora. Grifo nosso).
22
seguinte fala do Promotor Peter Jackson, representante norte-americano nas Conferências de
Londres de 1945, em posicionamento afirmado nas minutas dessas mesmas Conferências (que
criaram o Tribunal de Nuremberg):
“Então por ultimo ficam as atrocidades, persecuções, e deportações por motives políticos, raciais ou
religiosos, e os motivos para essa última parte da definição é que, como afirmado antes,
ordinariamente nós não consideramos que os atos dos governos sobre seus cidadãos garantem nossa
interferência. Nós temos algumas circunstâncias lamentáveis em nossos próprios países nas quais as
minorias são tratadas de forma injusta. Nós pensamos que é justificável nossa interferência ou
tentativa de trazer retribuição aos indivíduos ou aos Estados somente porque campos de concentração
e deportações estavam em conformidade com um plano ou empreendimento comum de fazer uma
guerra injusta ou ilegal com a qual nos envolvemos. Nós não vemos outra base pela qual podemos
justificar o fato de julgarmos as atrocidades que foram cometidas dentro da Alemanha, sob direito
alemão, ou mesmo em violação do direito alemão, por autoridades do Estado alemão. Sem
substancialmente essa definição, não pensaríamos que nós tivemos qualquer responsabilidade em
relação ao julgamento das coisas, que eu concordo com o Procurador-Geral, são absolutamente
necessárias neste caso.” (INTERNATIONAL CONFERENCE ON MILITARY TRIALS, 1945 b.
Tradução da autora).
O delito que se tipificou nas Cartas dos Tribunais de Nuremberg e de Tóquio foi do
de crimes contra a humanidade7, cuja redação foi a seguinte:
“CRIMES CONTRA A HUMANIDADE: nomeadamente, homicídio, extermínio, escravidão,
deportação e outros atos desumanos cometidos contra qualquer população civil, antes ou durante a
guerra; ou perseguições por motivos políticos, raciais ou religiosos, em execução ou em conexão com
qualquer crime da competência do Tribunal, cometidos ou não em violação da legislação nacional do
país onde perpetrados.” (INTERNATIONAL CONFERENCE ON MILITARY TRIALS, 1945 a.
Tradução da autora).
Assim, esse delito é diferenciado do genocídio porque, ao passo que este, na época,
não exigia um nexo de causalidade com um contexto de guerra, aquele o fazia. Embora
estivessem sob a competência dos Tribunais de Nuremberg e de Tóquio crimes cometidos
tanto antes quanto durante a guerra, os delitos cometidos antes eram compreendidos como
atos preparatórios para a guerra, e não como crimes autônomos em relação a essa, como era a
concepção de genocídio na época. Este “[...] era um pré-requisito que atendia mais a
interesses políticos do que jurídicos” (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 84), conforme pode
depreender-se das palavras de Peter Jackson. A inserção da previsão de crimes contra a
humanidade nas cartas de Nuremberg e Tóquio objetivava preencher uma lacuna do direito
internacional daquele período, que não dispunha de institutos para serem aplicados às
condutas cometidas pelos nazistas. Adotar como resposta para tal lacuna um dispositivo
criminalizando o genocídio era arriscado na visão dos vencedores, pois poderia por em
cheque a doutrina do domínio reservado, que lhes dava a justificativa da soberania para evitar
7
Os crimes tipificados nas Cartas dos Tribunais de Nurembuergue e de Tóquio, além dos crimes contra a
humanidade, foram os crimes de guerra e os crimes contra a paz.
23
críticas externas sobre o modo como conduziam suas políticas nacionalmente, e os
desobrigava a agir por motivos humanitários no estrangeiro quando não lhes fosse
conveniente. Posteriormente, a exigência do contexto de guerra para configurar o crime contra
a humanidade cairia em desuso, e o que o diferenciaria do genocídio seria o dolo
característico de cada um, conforme se abordará no item sobre o elemento subjetivo do delito
de genocídio (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 83- 84).
Esse nexo entre crimes contra a humanidade e contexto de guerra, entretanto, não era
um requisito na Control Council Law 10 8, que foi utilizada como norma para o julgamento de
vários criminosos de guerra menores dentro da Alemanha. Segundo Pereira Júnior, “A
justificativa dos países Aliados era de que se tratava de uma lei nacional a ser aplicada na
Alemanha, e não de uma lei internacional (evitando também que tal regra fosse aplicada
contra os Aliados)” (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 84).
Embora o genocídio não tivesse sido situado entre os crimes sob competência dos
tribunais, os promotores de Nuremberg utilizaram a palavra “genocídio” no indiciamento dos
acusados e nas exposições e debates em plenário. Já no Tribunal de Tóquio não há registro de
menção ao crime de genocídio. Dessa forma, embora não estivesse positivado nas Cartas dos
Tribunais do pós-guerra o crime de genocídio e, por esse mesmo motivo, não tenha esse delito
julgado por eles, acabaram lançando certa influência para os futuros debates sobre esse crime
dentro da ONU (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 85; SCHABAS, 2000, p. 38).
Lemkin estava hospitalizado em Paris quando ouviu pelo rádio informações acerca
dos trabalhos iniciais das Nações Unidas, e quando soube que haveria a primeira reunião da
Assembléia Geral. Então, ele vislumbrou ali um fórum internacional onde suas idéias sobre
genocídio poderiam vicejar. Ele chegou a Nova York no dia 31.10.1946 (PEREIRA JÚNIOR,
2010, p. 85).
O polonês logo conseguiu o apoio de alguns delegados para que fosse feita uma
resolução contra o genocídio. O projeto de resolução, redigido pelo jurista polonês e proposto,
perante a Assembléia-Geral da ONU, por Cuba, Índia e Panamá, contou, em seu preâmbulo,
com um parágrafo garantindo jurisdição universal para processar o crime, idéia essa defendida
8
O Allied Control Council era o órgão executivo das Zonas de Ocupação dos Aliados na Alemanha, logo após a
Segunda Guerra Mundial. Seus membros eram Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética, sendo a França
adicionada, posteriormente, por voto dos demais membros. A Allied Control Council Law 10 foi uma lei,
aprovada nesse regime de exceção, para julgar os criminosos menores do período nazista dentro da própria
Alemanha, sob a ocupação aliada, dado que os grandes líderes encontravam-se sob competência do Tribunal de
Nurembergue.
24
desde o início por Lemkin (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 85-86; POWER, 2007, p. 53;
SCHABAS, 2007-2008, P. 35-36). Esse parágrafo, citado em Schabas, fazia a seguinte
afirmação:
“Considerando que a punição do gravíssimo crime de genocídio, quando cometido em tempo de paz
se, encontra dentro da competência territorial exclusiva do Poder Judiciário de cada Estado, enquanto
os crimes de uma importância relativamente menor, como a pirataria, o tráfico de mulheres, crianças,
drogas, obscenos publicações são declarados como crimes internacionais e foram feitas as questões de
interesse internacional […]” (Apud SCHABAS, 2007-2008, p. 36. Tradução da autora).
Porém, esse parágrafo não foi incluído na Resolução final, pois a maioria dos
membros da Assembléia-Geral não estava disposta a reconhecer que o crime de genocídio
pudesse ter jurisdição universal, principalmente pelo fato de ser cometido tanto em tempos de
paz quanto de guerra (SCHABAS, 2007-2008, p. 36).
Para William Schabas, foi a falha de Nuremberg de reconhecer como crimes
atrocidades cometidas em tempos de paz que promoveu as primeiras iniciativas para a
codificação do crime de genocídio. Um exemplo disso é o fato de a Resolução (I) da
Assembléia Geral ter sido adotada imediatamente após a aprovação de outra, a 95 (I), que foi
um pedido para a preparação dos “Princípios de Nurembuegue”. Outro é a afirmação de
Ernesto Dihigo, o representante de Cuba na sessão da Assembléia Geral em que houve a
aprovação da Resolução 96 (I), de que ela seria necessária por causa da falha dos julgamentos
de Nurembuergue de deixar atrocidades cometidas antes da guerra impunes. A Referência a
Nuerembergue, naquele contexto, significava a priorização da tipificação dos crimes contra a
humanidade, então entendidos como tendo nexo com a guerra, em detrimento do crime de
genocídio, sem esse nexo (SCHABAS, 2007-2008, p. 36-37).
Assim, adotou-se a resolução 96-I da AG (Assembléia-Geral das Nações Unidas) de
1946, que foi a o primeiro documento internacional a mencionar o termo “genocídio”. Essa
Resolução tem origens nas atrocidades cometidas pelos nazistas no período da Segunda
Guerra Mundial, mas não se refere a esse episódio particular genocídio. Ela é mais ampla, não
se referindo a nenhum episódio particular desse crime, condenando-o em qualquer época que
ele ocorra (LEBLANC, 2009, p. 15).
Afirmava essa resolução, em seu preâmbulo que “Genocídio é a negação do direito à
existência de grupos humanos inteiros” (UNITED NATIONS, 1946, p. 188. Tradução da
autora). Além disso, a primeira cláusula operativa da resolução afirma que o genocídio
constitui um crime sob o direito internacional. Nessa mesma resolução, já se solicitou ao
25
Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC) realizasse os estudos
necessários, com o fim de começar a esboçar uma convenção sobre esse crime (UNITED
NATIONS, 1946, p. 189).
O ECOSOC pediu que o Secretário-Geral Trygve Lie, assessorado por um grupo de
especialistas em direito penal e direito internacional (além de Lemkin, integravam essa
comissão os juristas Henri Donnedieu de Vabres – professor da Universidade de Paris e juiz
do Tribunal de Nuremberg- e Vespasian V. Pella – presidente da Associação Internacional de
Direito Penal), preparasse um projeto de Convenção. Na ocasião, o Secretário-Geral
acreditava que o genocídio devia ser definido de forma a não se confundir com outras noções
já definidas, como os crimes contra a humanidade (SCHABAS, 2007-2008, p. 37).
O Secretariado preparou um projeto de convenção, sempre acompanhado pelo
comitê de especialistas, que foi enviado em 1947 para o Comitê sobre o Progressivo
Desenvolvimento do Direito Internacional e sua Implementação (o antecedente da atual
Comissão de Direito Internacional) da ONU para comentários. O Projeto continha 24 artigos e
era acompanhado de um comentário e de dois projetos de estatuto para a criação de um
tribunal penal internacional. A França, então, circulou um memorando desafiando o termo
genocídio, chamando-o de um neologismo sem utilidade e até perigoso. O país preferia lidar
com a temática de discriminação racial, social, política ou religiosa sob o ponto de vista dos
crimes contra a humanidade (ARELLANO, 2007, p. 80; SCHABAS, 2007-2008, p. 37).
Posteriormente, a França insistiu que a convenção que estava sendo proposta deveria
reafirmar sua relação com os Princípios de Nuremberg, e explicar que o genocídio era
meramente mais um aspecto dos crimes contra a humanidade. Essa proposta não obteve apoio
amplo, mas ela demonstra a preocupação que havia em não criminalizar atrocidades
cometidas em tempos de paz, e somente aquelas que têm conexão com a guerra (SCHABAS,
2007-2008, p. 38).
Além disso, o Comitê sobre o Progressivo Desenvolvimento do Direito Internacional
e sua Implementação declinou de suas tarefas de fazer comentários sobre o projeto, dado que
os Estados-membros da ONU ainda não o tinham feito. O SG (Secretário-Geral das Nações
Unidas) então solicitou aos Estados-membros que submetessem seus comentários, mas
pouquíssimos o fizeram. Conseqüentemente, quando o ECOSOC se reuniu em julho de 1947,
ele considerou que tomar qualquer iniciativa em relação ao projeto de convenção seria
26
inapropriado, e remeteu a questão novamente à Assembléia Geral das Nações Unidas
(LEBLANC, 2009, p. 16-17).
Quando o debate sobre o projeto de convenção sobre genocídio voltou à agenda da
Assembléia-Geral, ainda em 1947, na sua segunda sessão ordinária, várias discordâncias
surgiram entre seus membros: alguns argumentavam que o conteúdo da Resolução 96 (I) da
AG deveria ser alterado, no sentido de que, ao invés de o ECOSOC ficar encarregado de
realizar estudos com o fim de elaborar uma convenção sobre genocídio, deveria estudar se a
convenção seria ou não necessária; outros insistiam que já havia sido decido pela Assembléia
Geral anteriormente, por unanimidade, a desejabilidade da convenção, e que, por isso, a
Resolução 96 (I) deveria ser reafirmada (LEBLANC, 2009, p. 17). 9 Na ocasião, o Reino
Unido, que era hostil à idéia da Convenção, propôs que o assunto fosse remetido à Comissão
de Direito Internacional da ONU, dado seu trabalho continuo em relação aos Princípios de
Nuremberg, e à relação próxima entre crimes contra a humanidade e genocídio. A
conseqüência prática disso seria apagar a linha existente entre as Resoluções 95 (I) e 96 (I).
Da mesma forma que países de terceiro mundo propuseram a Resolução 96 (I), coube a eles
lutar pela autonomia do conceito de genocídio em relação ao de crimes contra a humanidade
(SCHABAS, 2007-2008, p. 38-39).
Então, como forma de resistir à proposta do Reino Unido, Panamá Cuba, Egito, e
China tomaram iniciativas para reforçar a distinção entre os Princípios de Nurembuergue e a
proposta de Convenção sobre Genocídio. Dessa forma, a China propôs uma emenda à
resolução que afirmava que genocídio e crimes contra a humanidade são diferentes, que
acabou sendo adotada (SCHABAS, 2007-2008, p. 38-39). Assim, foi aprovada a Resolução
180 (II) da Assembléia-Geral, que reafirma a Resolução 96 (I), e solicitava que o ECOSOC
continuasse a realizar o seu trabalho em relação à elaboração de uma convenção sobre
genocídio, incluindo o estudo do projeto de convenção apresentando pelo Secretário-Geral da
ONU, e a proceder de forma a elaborar um projeto de convenção a ser apresentado à AG em
9
Segundo Lawrence J. LeBlanc, essa discussão que ocorreu na segunda sessão ordinária sobre a desejabilidade
de uma convenção sobre genocídio é reflexo da emergência da Guerra Fria, da confrontação ideologia entre
Estados Unidos e União Soviética, o que fez com que muitos representantes estatais perante a ONU se tornassem
mais cautelosos quanto à possibilidade de cooperação internacional e quanto ao desenvolvimento e
fortalecimento do direito internacional. Um exemplo disso é o fato de que, embora tanto a Resolução 96 (I)
quanto a Resolução 180 (II), ambas da Assembléia Geral da ONU, afirmarem os mesmos princípios, ao passo
que a primeira foi aprovada por unanimidade, a segunda foi aprovada com 38 votos a favor, nenhum contrário, e
quarenta abstenções. Apesar de que ninguém votaria contra uma resolução condenando o genocídio, pois o país
que o fizesse logo após os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial sofreria certa condenação moral, o alto
índice de abstenções, maior inclusive que o de votos a favor, indica que a temática do genocídio tinha passado
não ser mais um item urgente na agenda internacional (LEBLANC, 2009, p. 17).
27
sua próxima sessão, no ano seguinte. A Resolução 180 (II) também informou ao ECOSOC
que ele não precisa esperar as observações feitas por todos os membros da ONU para
completar seu trabalho de preparar um projeto de convenção (LEBLANC, 2007-2008;
PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 87; UNITED NATIONS, 1947, p. 129-130).
No ECOSOC, o projeto de convenção apresentado pelo Secretário-Geral e elaborado
pela comissão de especialistas da qual Lemkin fazia parte, foi criticado por sua suposta
“escassez de realismo”. O ECOSOC, então, criou um comitê ad hoc para revisar o projeto do
Secretário-Geral e oferecer um novo. Composto por China, França, Líbano, Polônia, URSS
(União Soviética), Estados Unidos e Venezuela, o comitê ad hoc se reuniu 28 vezes entre
abril e maio de 1948, preparando o projeto de convenção acompanhado de um comentário. O
Secretariado propôs que esse comitê ad hoc considerasse várias questões substantivas,
inclusive as relações ente genocídio e crimes contra a humanidade. Esse debate, dentro do
comitê ad hoc, acabou surgindo na discussão do preâmbulo do projeto de tratado. Novamente,
a França insistiu nas ligações entre crimes contra a humanidade e genocídio, enquanto outros
afirmaram que os dois conceitos são distintos. Assim, o comitê ad hoc se opôs à expressão
“crimes contra a humanidade”, por considerar que ela já havia adquirido um significado
jurídico bem definido na Carta de Londres. Porém, a França obteve sucesso ao conseguir que
fosse incluída no preâmbulo do projeto de convenção uma menção ao Tribunal de
Nuremberg, levantando oposição de alguns países, como Líbano e Venezuela, pois isso
poderia acarretar em uma confusão entre crimes contra a humanidade e genocídio
(ARELLANO, 2007, p. 88; LEBLANC, 2009, p. 18; SCHABAS, 2007-2008, p. 39-40).
O comitê ad hoc entregou, em maio de 1948, seu projeto para a Assembléia Geral, a
qual, por sua vez, o remeteu ao Sexto Comitê 10. Na ocasião, o Secretário-Geral da ONU
entregou aos membros do Comitê uma nota que havia preparado, na qual mencionava as
relações entre genocídio e crimes contra a humanidade, mas insistiu na utilidade de distinguilos, principalmente porque tipificar o genocídio seria útil ao afastar o critério de nexo com a
Guerra para punir atrocidades. A França, por sua vez, preparou um projeto de Convenção que
fazia rivalidade ao que foi apresentado pelo Secretariado, cujo artigo I afirma que
“o crime contra a humanidade conhecido como genocídio é um ataque à vida de um grupo humano ou
indivíduo membro desse grupo, particularmente em razão de sua nacionalidade, raça, religião ou
opiniões” (Apud SCHABAS 2007-2008, p. 40. Tradução da autora).
10
A Assembléia Geral da ONU, além da plenária, se divide em seis comitês especializados. O sexto Comitê é o
Comitê Jurídico.
28
Esse trecho duelava justamente com o art. I do outro projeto de Convenção, que
afirmava que o genocídio podia ser cometido tanto em tempos de Guerra quanto de paz. O
representante do Brasil no Sexto Comitê afirmou que os crimes contra a humanidade, da
forma como estavam definidos na Carta de Londres, incluíam o genocídio, mas apenas se
tivesse sido cometido durante ou em conexão com a preparação para a guerra. O representante
brasileiro também notou uma confusão que existe em Nuremberg quanto ao escopo do termo
“crimes contra a humanidade”, e afirmou que, tendo em vista a vagueza do termo, o crime de
genocídio deveria ser bem definido como um crime cometido contra determinados grupos
também em tempos de paz. Além disso, a Venezuela submeteu um projeto de preâmbulo da
Convenção, e explicou que aí omitiu qualquer menção ao Tribunal de Nuremberg, porque
genocídio era distinto de crimes contra a humanidade. A França possuía suas próprias
propostas para o preâmbulo, sendo a mais significante uma menção aos julgamentos de
Nuremberg (SCHABAS, 2007-2008, p. 40-41).
O novo projeto, revisado pelo Sexto Comitê, foi apresentado à Assembléia Geral,
que o aprovou, por unanimidade, em dezembro de 1948, sem fazer, em seu preâmbulo,
qualquer menção aos julgamentos de Nuremberg, o que tornava nítida a distinção entre crimes
contra a humanidade e genocídio, como desejado por Lemkin. A Convenção só entraria em
vigor em 1951 (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 87).
Embora Lemkin estivesse determinado a ver os perpetradores de genocídio sendo
processados, ele não acreditava que a Convenção deveria prever um tribunal penal
internacional de caráter permanente para processar e punir o crime de genocídio, pois o
mundo não estaria pronto, na concepção desse jurista, para uma corte que afrontaria a
soberania estatal. O jurista acreditava que o princípio que deveria reger o novo tratado era o
da jurisdição universal11, da mesma forma que era o que regia o crime de pirataria (POWER,
2007, p. 55-56).
Propostas prevendo a jurisdição universal (inclusive devido ao lobby feito por
Lemkin nos corredores da ONU) chegaram a ser feitas, ao menos, duas vezes no processo de
preparação da Convenção, mas sem sucesso. A jurisdição universal foi combatida pelo
mesmo motivo que o nexo com a guerra foi exigido para investigação dos crimes contra a
humanidade pelos tribunais penais internacionais do pós-Segunda Guerra: a defesa da
soberania absoluta, tendo por seu maior símbolo a doutrina do domínio reservado (PEREIRA
11
Encontra-se presente o crime de genocídio como sujeito a competência de corte criminal internacional
reconhecida pelas partes contratantes pelo fato de que havia na época a idéia de se criar uma corte desse gênero.
29
JÚNIOR, 2010, p. 88-90). Assim, o art. 6º da Convenção de 1948 sobre Genocídio, que trata
da competência para julgar esse delito, tem até hoje a seguinte redação:
“As pessoas acusadas de genocídio ou de qualquer dos outros actos enumerados no artigo 3.º serão
julgadas pelos tribunais competentes do Estado em cujo território o ato foi cometido ou pelo tribunal
criminal internacional que tiver competência quanto às Partes Contratantes que tenham reconhecido a
sua jurisdição” (BRASIL, 1952).
Porém, na década de 1990, antes mesmo do julgamento do caso Akayesu, diversas
cortes nacionais da Europa Ocidental começaram a processar responsáveis pelos genocídios
na ex-Iugoslávia e em Ruanda, o que indica que passou a haver um reconhecimento de que,
sob o direito consuetudinário internacional, o crime de genocídio está sujeito à jurisdição
universal (SCHABAS, 2003 b, p. 46-59).
Além disso, a convicção de Lemkin de que o genocídio precisa ser confrontado, seja
em contexto de paz ou de guerra, foi endossada no art. 1º da Convenção, que afirma que “As
Partes Contratantes confirmam que o genocídio, seja cometido em tempo de paz ou em tempo
de guerra, é um crime do direito dos povos, que desde já se comprometem a prevenir e a
punir”. Isso removeu a crença existente na criação da Carta de Londres sobre o Tribunal de
Nueremberg de que só seriam puníveis crimes de guerra, ou atos preparatórios para a guerra
(JONES, 2010).
As pessoas que podem ser responsabilizadas pelo cometimento do crime de
genocídio são definidas pelo art. 4º da Convenção que estabelece que “As pessoas que tenham
cometido genocídio ou qualquer dos outros atos enumerados no artigo 3.º serão punidas, quer
sejam governantes, funcionários ou particulares” (BRASIL, 1952. Grifo nosso). Segundo
Lawrence J. LeBlanc, o Sexto Comitê da Assembléia-Geral da ONU, decidiu sobre esse
artigo ao debater não só quem poderia ser punido pelo crime de genocídio, mas outros
dispositivos da Convenção, com base na Resolução 96 (I) da AG. Ocorre que essa Resolução
em momento nenhum afirma nada nesse sentido; ela não deixa claro se o apoio ou conivência
do governo é necessário para o cometimento desse crime. Alguns representantes do Sexto
Comitê acreditavam que o que caracterizaria o genocídio seria o fato de ele ser cometido,
encorajado, ou tolerado pelo Estado, o que era uma posição, na visão de LeBlanc,
compreensível, dado o contexto histórico que estava sendo tomada, no qual o mundo estava
chocado com os massacres cometidos contra os judeus pelos nazistas. Porém, essa proposta
foi rejeitada, e acabou prevalecendo que particulares também podem ser responsabilizados
(LEBLANC, 2009, p. 19).
30
Mas, até o julgamento do caso Akayesu, não havia nenhuma punição por delito de
genocídio. Isso porque a corte penal internacional à qual se refere o art. 6º da Convenção de
1948 sobre o genocídio não tinha sido criada até a década de 1990, só surgindo duas cortes ad
hoc nessa década, e sendo aprovado, nesse mesmo período, o estatuto de uma permanente,
que só entrou em vigor em 2002. Além disso, nenhum tribunal doméstico de “Estado em cujo
território o ato foi cometido”, conforme prevê esse mesmo dispositivo, julgou alguém por esse
crime. Tanto é assim que William Schabas afirma que, nas décadas de 1970 e 1980, alguns
consideravam que a Convenção sobre Genocídio não era mais do que uma curiosidade
histórica (SCHABAS, 2000, p. 8).
Além dessas, outras críticas eram feitas, como as de Kuper na década de 1980, que
ressaltava algumas ironias presentes na Convenção de 1948 sobre Genocídio: ela estipulava
que um Estado genocida deveria processar e punir as pessoas que comandavam esse mesmo
Estado, e nenhum tribunal internacional havia sido criado para julgar os responsáveis por
genocídios, conforme estipulado pela própria Convenção. Além disso, considerava que o
próprio sistema Nações Unidas protegia os perpetradores desse crime, pois:
“[o] Estado territorial soberano reivindica, como parte integral da sua soberania, o direito de cometer
genocídio, ou participar em massacres genocidas, contra os povos sob seu domínio, e [...] as Nações
Unidas, para todos os efeitos práticos, defende esse direito” (KUPER Apud HUGHES, 2009, p. 3-4.
Tradução da autora).
Cassese também considera que o mecanismo de execução e aplicação de pena para o
crime de genocídio, conforme estabelecido na Convenção de 1948, é ineficaz, pois, além de
dificilmente um Estado julgar os seus próprios líderes pelo crime de genocídio, e de outro
Estado não poder julgar o genocida de outro Estado devido a esse não ser um crime
submetido a jurisdição universal, o tribunal penal internacional ao qual alude o art. 6º da
Convenção só foi criado muitos anos depois, em 1998, e só entrou em funcionamento no
século seguinte, no ano de 2002 (CASSESE, 2008, p. 127-128).
Daí a importância do caso Akayesu, por ser o primeiro a atribuir sentidos ao crime de
genocídio. 12
12
Houve um caso anterior que foi equiparado ao genocídio, o caso Eichmann, decidido em 1961 pela Corte
Distrital de Jerusalém e, logo em seguida, pela Corte Suprema de Israel em 1962. Eichmann foi julgado por
crimes contra o povo judeu, um crime sob a legislação israelense que incorporava todos os elementos da
definição de genocídio. Além disso, a Corte Suprema de Israel afirmou que esse crime corresponde ao genocídio
(CASSESE, 2008, p. 131). Houve também alguns casos da Corte Internacional de Justiça anteriores ao caso
Akayesu que atribuíram alguns sentidos ao conceito de genocídio (devidamente tratados no item 1.5 desta
dissertação), mas nenhum que abordasse a temática da responsabilidade individual (inclusive, por uma questão
de competência da própria Corte). Portanto, o caso Akayesu foi a primeira decisão condenatória em relação ao
crime de genocídio a chamá-lo pelo seu próprio nome, atribuindo, em função dele, responsabilidade penal
31
1.2.
Bem jurídico protegido
Segundo Daniela de Vito e outros, no momento em que a Convenção de 1948 foi
aprovada, entrelaçaram-se, no interior da ONU influências de três áreas para produzir o
conceito de genocídio: o DPI (Direito Penal Internacional), quanto à responsabilidade
criminal individual, o DIDH (Direito Internacional dos Direitos Humanos) e o DIH (Direito
Internacional Humanitário)
13
. De acordo com o conceito de genocídio da Resolução 96-I da
AG, o que se protege com a Convenção de 1948 é o direito à existência de grupos humanos.
Porém, grupos são compostos de indivíduos, que tem seu direito à vida tutelado pelo DIDH.
Daí a contribuição do DIDH à construção do conceito de genocídio, trazendo a faceta da
proteção do indivíduo (VITO, 2009, p. 33). Dessa forma, pode-se concluir que o bem jurídico
tutelado pelo crime de genocídio é a existência desses grupos. Porém, embora o bem jurídico
protegido seja a existência há vítimas individuais, sendo essas vítimas, inclusive, listadas nas
petições feitas pelos Procuradores perante cortes internacionais. Mas essas pessoas só se
tornam vítimas individuais por seu pertencimento a determinado grupo cujo direito a existir é
tutelado pela tipificação do crime de genocídio.
A crença de Lemkin que enfatizava a proteção de grupos nacionais e étnicos (em
prejuízo de grupos políticos e classes sociais) também se expressou na Convenção, ao afirmar
que “[…] entende-se por genocídio os atos abaixo indicados, cometidos com a intenção de
destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso” (BRASIL,
1952). Em todas as estratégias genocidas citadas nas alíneas do art. 2º da Convenção de 1948,
está refletida a concepção de que o genocídio é um plano coordenado de diferentes ações com
o objetivo de destruir grupos. Porém, em nenhum ponto a Convenção definiu o que seriam
grupos nacionais, étnicos, raciais ou religiosos (JONES, 2010).
Uma definição mais formal de genocídio, dentro do Direito Internacional, foi
proposta por Lerner, segundo a qual o bem jurídico protegido pela tipificação do genocídio é
a proteção de grupos (que consistem de indivíduos) que possuem um fator unificador
permanente (raça ou etnia, por exemplo). Dentro dessa perspectiva, seria mais difícil incluir a
individual.
13
O Direito Humanitário é, nas palavras de Cristophe Swirnaski, “o conjunto de normas internacionais, de
origem convencional ou consuetudinária, especificamente destinado a ser aplicado nos conflitos armados,
internacionais ou não-internacionais, que limita, por razões humanitárias, o direito das partes em conflito de
escolher livremente os métodos e os meios utilizados na guerra, ou que protege as pessoas e os bens afetados, ou
que possam ser afetados pelo conflito.” (SWIRNASKI, 1998, p. 18).
32
religião aí, porque Lerner argumenta que crenças religiosas podem mudar (LERNER Apud
VITO, 2009, p 34). A Convenção de 1948, incluindo a referência a grupos religiosos, foi
formulada com a idéia de se centrar na permanência de grupos, excluindo desse modo outros
grupos. Segundo de Vito e outros:
“Havia e continua a haver preocupação com a listagem limitada na Convenção de 1948 de grupos que
podem ser alvo. A exclusão de grupos “políticos” é um exemplo disso. Houve também pedidos para se
considerar a categoria “mulher” um grupo que pode sofrer genocídio” (VITO, 2009, p. 49).
Mas os autores argumentam que a formulação de Lerner permite alguma
flexibilidade de interpretação, pois inclui as palavras “fatores permanentes que estão, via de
regra, fora do controle de membros” (VITO, 2009, p. 34). O fato de esses quatro grupos
protegidos pela Convenção não serem por ela definidos, nem são os critérios para essa
definição estarem nela dispostos permite tal flexibilidade de interpretação (CASSESE, 2008,
p. 131).
Além
disso,
grupos
são
sempre
socialmente
construídos,
entendimento
compartilhado por Mettraux. O autor afirma que o grupo protegido não deve ser imaginado
pelo perpetrador; sua existência deve ser objetiva. Porém, essa existência não precisa ser
comprovada científica ou factualmente. O que importa é que haja uma percepção comum,
compartilhada socialmente, de que tal grupo exista (METTRAUX, 2005, p. 224).
Embora a intenção neste capítulo fosse mencionar as normas sobre genocídio como
eram interpretadas antes do caso Akayesu, cabe mencionar a grande inovação que este caso
trouxe em relação à interpretação dos grupos protegidos pela Convenção para a Prevenção e a
Repressão do Crime de Genocídio. A Câmara de Julgamento, na sentença condenatória em
relação a Jean-Paul Akayesu, pela primeira vez definiu cada um dos grupos protegidos na
Convenção sobre Genocídio. Ela afirmou, com base nos trabalhos preparatórios da
Convenção, que a intenção do legislador era proteger apenas grupos “estáveis”, constituídos
de forma a se verem como permanentes, e cujo pertencimento se dá através do nascimento.
Por isso, o critério adotado para se definir os grupos protegidos pela Convenção sobre
Genocídio é que a adesão de seus membros raramente seria desafiada por eles mesmos, dado
que ela seria vista como automática, contínua e, freqüentemente, como irremediável. A
Câmara, então, estabeleceu que grupo nacional é uma coleção de pessoas percebidas como
compartilhando um vínculo jurídico de cidadania comum, assim como uma reciprocidade de
direitos e deveres; o grupo étnico, um grupo cujos membros compartilham uma mesma língua
ou cultura; o grupo racial é aquele que compartilha traços físicos geralmente (mas nem
33
sempre) ligados a uma região geográfica, independentemente de fatores culturais, nacionais,
lingüísticos ou religiosos; e o grupo religioso foi definido como aquele que compartilha a
mesma religião, denominação ou modo de adoração (INTERNATIONAL CRIMINAL
TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 209-210). Porém, o caso do genocídio em Ruanda
colocava à prova a definição de etnia, dado que hutus e tutsis falam a mesma língua (o
Francês e o Kinyrwanda) e uma mesma cultura: a distinção entre as etnias foi construída pelo
colonizador belga. Tutsis e hutus também compartilhavam a mesma nacionalidade, a mesma
raça, e, muitas vezes, a mesma religião. Mas esses grupos se enxergam como distintos um do
outro pela etnia, construída pelo colonizador, de forma estável, determinada pelo nascimento:
a Câmara sublinha que as carteiras de identidade em Ruanda vinham com um campo ou
“ubwoko” ou “ethnie” (palavras usadas, respectivamente, em Kinyrwanda e em Francês para
designar “etnia”), no qual estava escrita a etnia da pessoa (tutsi ou hutu, por exemplo). Assim,
dado que esses grupos se enxergam como permanentes e imutáveis, a Câmara afirmou que
eles estariam protegidos pela Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de
Genocídio, embora não constituíssem nenhum dos grupos expressamente estabelecidos como
tutelados por este tratado (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA,
1998, p. 281).
1.3.
Elemento subjetivo
Tanto o caput do art. 2º, parágrafo 2º do Estatuto do TPIR o art. II da Convenção de
1948, estabelecem que “[...] entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos
com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso
[...]” (grifo nosso). Obote-Odora e Guénaël Mettraux entendem que a palavra intenção
significa que o elemento subjetivo do tipo é o dolo, não cabendo modalidade culposa
(METTRAUX, 2005, p. 212; OBOTE-ODORA, 1999). É essa intenção de eliminar
determinado grupo que torna o genocídio distinto dos crimes contra a humanidade, dos crimes
de guerra, e dos crimes comuns. Afirma Cassese que o genocídio é o típico crime em que
ocorre a despersonalização do sujeito passivo: a vítima não sofre ataque em função de suas
características individuais, mas apenas porque ela é membro de um grupo (CASSESE, p.
137). Além disso, no entendimento de Payam Akhavan, não caberia dolo eventual, somente
dolo direto. Segundo o autor:
34
“[…] o elemento subjetivo do genocídio no caput do artigo 2(2) como característica que distingue
aquele crime, especificamente o requisito da intenção (dolo direto) de destruir, no todo ou em parte,
um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal. Esse elemento subjetivo se aplica a todos
os atos materiais de genocídio enumerados no artigo 2 (a)-(e) do Estatuto. Como esses atos – como
assassinato e causar graves danos físicos e mentais- não são crimes internacionais por si sós, é a sua
intenção específica que distingue o crime de genocídio de um crime ordinário. Assim, além de definir
o que é genocídio, esse elemento subjetivo também distingue a esfera do Direito Penal Internacional
do direito doméstico” (AKHAVAN, 2005, p. 992. Tradução da autora).
É importante distinguir o dolo específico do delito de genocídio do dolo dos demais
crimes tipificados no Estatuto do TPIR, começando-se pelos crimes contra a humanidade,
regulamentados no art. 3º14 do Estatuto do Tribunal. Esse dispositivo é muito similar ao art.
5º15 do Estatuto do TPII, que lista as condutas que compõem esse tipo penal. Porém, difere
desse na definição do que são crimes contra a humanidade, pois o Estatuto do TPII estabelece
como requisito para a existência desse crime que ele tenha sido cometido durante conflitos
armados, sejam eles internos ou não, ao passo que esse requisito não é estabelecido como
necessário pelo Estatuto do TPIR (SHRAGA, ZACKLIN, 1996, p. 508). Entretanto, desde o
seu primeiro caso, o TPII abandonou o nexo com a guerra como elemento do crime contra a
humanidade, passando a adotá-lo apenas como critério de competência (PEREIRA JÚNIOR,
2010, p. 282-283). O dolo do crime de genocídio seria a destruição de um grupo, no todo ou
em parte, ao passo que o do crime contra a humanidade seria o de praticar qualquer daquelas
condutas listas como constituindo esse crime, com o conhecimento do autor de que estão
sendo praticadas de forma sistemática e generalizada, contra uma população civil qualquer
(podendo essa ser constituída de um ou mais grupos), ou seja, sem um caráter discriminatório
específico (CASSESE, 2008, p. 145; METTRAUX, 2005, p. 216-217; PEREIRA JÚNIOR,
2010, p. 284-292). Segundo Cassese e Mettraux, ao contrário do que ocorre em relação aos
crimes contra humanidade, o Procurador não precisa comprovar se houve uma prática ampla e
sistemática ou um plano como elemento do crime de genocídio (CASSESE, 2008. p. 141;
METTRAUX, 2005, p. 210)
14
16
. Já Alex Obote-Odora afirma que o genocídio é um crime
“O Tribunal Internacional para Ruanda terá o poder para processar pessoas responsáveis pelos seguintes
crimes, quando cometidos como parte de um ataque amplo e sistemático contra uma população, quando
cometidos de forma ampla e sistemática contra qualquer população civil com base nacional, política étnica,
racial ou religiosa: a) Assassinato; b) Extermínio; c) Escravização; d) Deportação; e) Aprisionamento; f) Tortura;
g) Estupro; h) Persecuções com base política, racial ou religiosa; i) Outros atos desumanos” (UNITED
NATIONS, 1994 b, p. 4. Tradução da autora).
15
“O Tribunal Internacional terá o poder para processar pessoas responsáveis pelos seguintes crimes, quando
cometidos em conflito armado, seja de caráter nacional ou internacional, e diretamente contra uma população
civil: a) Assassinato; b) Extermínio; c) Escravização; d) Deportação; e) Aprisionamento; f) Tortura; g) Estupro;
h) Persecuções com base política, racial ou religiosa; i) Outros atos desumanos” (UNITED NATIONS, 2009, p.
6. Tradução da autora).
16
Porém, Mettraux afirma que, mesmo não havendo a exigência legal de provar que havia um plano ou política
sistemática para que haja uma condenação por genocídio, caso haja prova desse plano ou política, fica facilitada
a prova de que houve intenção genocida. Como a intenção de destruir o grupo é o que torna esse crime tão
distinto dos demais, facilita a prova de que o crime de genocídio foi cometido (METTRAUX, 2005, p. 210).
35
cometido no contexto de uma política desenvolvida por autoridades estatais, ou de entidade
similar ao Estado. Essa entidade deve ter a capacidade de organizar os poderes e recursos do
Estado ou da entidade similar em conduzir a conduta proibida. Porém, segundo o mesmo
autor, uma política de genocídio não é especificada como elemento do crime de genocídio
nem na Convenção de 1948 nem no art. 2º do Estatuto (OBODE-ODORA, 1999).
A única exceção dos crimes contra a humanidade em relação ao caráter
discriminatório seria a perseguição por motivos políticos, religiosos ou raciais, previsto no art.
3º, alínea h do Estatuto do TPIR e no art. 5, alínea h, do Estatuto do TPII. Perseguir seria
restringir direitos de um determinado grupo. Porém, não há aí o dolo de destruir o grupo, no
todo ou em parte, conforme é exigido para que reste caracterizado o crime de genocídio
(CASSESE, 2008, p. 145; PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 284-292).
Já o crime de guerra se distingue do genocídio e dos crimes contra a humanidade por
ser o único delito que exige o nexo com um contexto de guerra. O dolo, nesse caso, é o de
cometer qualquer uma das condutas listadas como crime de guerra, com o conhecimento do
autor de que foram cometidas num contexto de guerra17 (PEREIRA JÚNIOR, p. 274-275).
1.4.
Elemento objetivo
Constituem genocídio, consoante as alíneas do art. 2º, parágrafo 2º do Estatuto
do TPIR e do art. II da Convenção de 1948, as seguintes condutas (atendidos os
requisitos supramencionados, ou seja, que haja dolo e elas sejam cometidas como parte
de um plano político para a destruição do grupo):
“1. assassinato de membros do grupo;
2. dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
3. submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física
total ou parcial;
4. medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
17
Ao estabelecer a competência do TPIR para julgar crimes de guerra, o Conselho de Segurança a limitou às
normas destes aplicáveis aos conflitos armados de caráter interno, ou seja, ao art. 3º comum às quatro
Convenções de Genebra, e ao Protocolo II à Convenção de Genebra Relativa à proteção das pessoas civis em
tempo de guerra, pois o conflito ruandês foi classificado como uma guerra civil.
36
5. transferência forçada de menores do grupo para outro” (BRASIL, 1952).18
Além das condutas previstas tanto no art. II da Convenção sobre Genocídio quanto
no art. 2º, parágrafo 2º do Estatuto do TPIR, o art. III da Convenção e o art. 2º, parágrafo 3º
do Estatuto desse Tribunal afirmam que são puníveis não só o cometimento do crime, mas
também a tentativa e a conspiração para cometê-lo, além de modalidades de concurso
(incitação e cumplicidade). 19
Segundo Mettraux, para que seja configurado crime de genocídio, não é necessário
que a destruição à qual faz referência o caput do artigo II da Convenção sobre genocídio
ocorra de fato. Basta que seja perpetrado, se acordo com o próprio art. II, “qualquer dos
seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir”, estando esses atos listados nas alíneas
do art. II, transcritas acima. Além disso, quando o caput do art. II se refere a “destruir”,
Mettraux interpreta que essa destruição seja física ou biológica (METTRAUX, 2005, p. 216).
Faz-se importante, neste trabalho, apontar os fatores que levaram à adoção da
conduta listada no parágrafo 2, “dano grave à integridade física ou mental de membros do
grupo”, criticada por ser muito vaga e incerta (PERLMAN, 1950, p. 7). Stephen Gorove faz
menção aos trabalhos preparatórios da Convenção. Inicialmente, esse parágrafo não possuía
essa redação. A expressão utilizada anteriormente era “causar danos à integridade física de
membros do grupo”, ou seja, mencionava-se somente o dano físico, e não o mental
(GOROVE, 1951, p. 176).
Embora não se fizesse menção ao dano mental, quando o projeto de Convenção
passava pelo Comitê ad hoc, o representante chinês lembrou que, durante a Segunda Guerra
Mundial, isso foi feito pelos japoneses, ao dopar forçadamente os chineses com ópio com o
intuito de destruir essa nacionalidade. Por isso, ele solicitou que o uso de narcóticos fosse
considerado como forma de genocídio, e sugeriu que a frase “causar danos à integridade física
de membros do grupo” fosse substituída por “causar danos à integridade física ou à
capacidade mental do grupo”, ou “causar danos à saúde de membros do grupo” (GOROVE,
1951, p. 176-177; PERLMAN, 1950, p. 7).
18
Segundo Brenda Fitzpatrick, Lemkin via as alíneas b, c e d como passos rumo à alínea a, ou seja, rumo ao
assassinato de membros do grupo, que aí sim levaria à sua destruição (LEMKIN Apud FITZPATRICK, 2003, p.
77).
19
“Artigo III - Serão punidos os seguintes atos: o genocídio; o conluio para cometer o genocídio; a incitação
direta e pública a cometer o genocídio; a tentativa de genocídio; a cumplicidade no genocídio” (BRASIL, 1952).
37
Quando o projeto de Convenção foi ser discutido no Sexto Comitê da AssembléiaGeral, o delegado chinês submeteu propostas similares às que tinham sido feitas no Comitê
ad hoc (GOROVE, 1951, p. 177). Ele também afirmou que não concordava com o conceito
de integridade física, por considerar que não era amplo o suficiente para cobrir o uso de
narcóticos pelos japoneses como forma de erradicação do povo chinês (GOROVE, 1951, p.
178).
O representante britânico compreendeu os motivos que faziam o representante chinês
discordar do conceito de dano físico, mas, ainda assim, discordou dele, por considerar
problemática a inclusão de algo tão ambíguo. Ele afirmou que, caso um ato similar ao
cometido pelos japoneses repercutisse na saúde física, poderia ser encaixado no conceito de
dano físico presente no projeto de Convenção. O delegado do Egito concordou com o
britânico, afirmando que pode interpretar “integridade física” como implicando também em
integridade mental, entendimento esse seguido pelo delegado norte-americano (GOROVE,
1951, p. 178).
O delegado britânico propôs uma emenda ao texto, e sugeriu que à frase “Causando
dano físico” fosse adicionado o termo “grave”, ficando a frase “Causando dano grave à
integridade física”. O delegado indiano, embora concordando com a proposta britânica, sentiu
que a proposta chinesa deveria ser contemplada, e sugeriu que fosse adicionada a palavra
“mental” entre “físico” e “dano”, de forma que ficasse a frase “Causando dano grave à
integridade física ou mental de membros do grupo”. Essa proposta indiana foi aprovada por
14 a 10 votos, com 14 abstenções. Os que votaram contra a inclusão do conceito de dano
mental o fizeram porque consideravam isso irrelevante, mas porque consideravam que o dano
físico inclui o mental (GOROVE, 1951, p. 178-180).
Gorove também chama a atenção para o fato de, na época, muitos se posicionarem de
forma contrária à inclusão da expressão “dano mental”, por considerarem-na ambíguo
(GOROVE, 1951, p. 187).
1.5.
Decisões da Corte Internacional de Justiça sobre genocídio
38
Antes da decisão do TPIR em relação ao caso Akayesu, a Corte Internacional de
Justiça (CIJ) já havia atribuído alguns sentidos à Convenção de 1948 sobre Genocídio. Ainda
que não houvesse uma condenação em relação a um determinado réu, dado que essa não é a
competência da CIJ, esses julgados forneciam elementos interpretativos em relação à
Convenção de 1948.
O primeiro caso nesse sentido foi a Opinião Consultiva 20 sobre Reservas à
Convenção para Prevenir e Punir o Crime de Genocídio, de 1951 21. Afirma a Corte
Internacional de Justiça que a Convenção sobre Genocídio gera obrigações erga omnes aos
Estados, ao afirmar que, por seu caráter puramente humanitário, os princípios da Convenção
são reconhecidos pelas nações civilizadas como vinculantes em relação aos Estados, mesmo
na ausência de uma obrigação convencional, derivada da ratificação de tratado e, por isso, a
Convenção sobre Genocídio possui caráter universal, conforme a passagem abaixo:
“As origens e o caráter daquela Convenção [sobre Genocídio], os objetivos perseguidos pela
Assembléia-Geral e as partes contratantes, as relações que existem ente as provisões da Convenção,
inter se, e entre essas provisões e esses objetivos, fornecem elementos de interpretação da vontade da
Assembléia Geral e as partes. As origens da Convenção demonstram que era intenção da Organização
das Nações Unidas condenar e punir o genocídio como "um crime sob o Direito Internacional",
envolvendo a negação do direito de existência de grupos humanos inteiros, uma negação que choca a
consciência da humanidade e resulta em grandes prejuízos para a humanidade, e que é contrária à lei
moral e ao espírito e aos objetivos das Nações Unidas […].A primeira conseqüência decorrente dessa
concepção é que os princípios subjacentes à Convenção são princípios reconhecidos pelas nações
civilizadas como obrigatórios aos Estados, mesmo sem qualquer obrigação convencional. Uma
segunda conseqüência é o caráter universal tanto da condenação do genocídio quanto da cooperação
necessária "a fim de libertar a humanidade de flagelo tão odioso" (Preâmbulo da Convenção). A
Convenção sobre Genocídio foi, portanto, destinada pela Assembléia Geral e pelas partes contratantes
para ser definitivamente um âmbito universal. Foi, de fato, aprovada em 09 de dezembro de 1948, por
uma resolução adotada, por unanimidade, por cinqüenta e seis Estados.
20
O procedimento para a emissão das opiniões consultivas da Corte Internacional de Justiça é estabelecido pelo
Capítulo VI de seu Estatuto. A Corte pode, consoante o art. 65, parágrafo 1º, desse instrumento internacional,
emitir uma opinião consultiva a respeito de qualquer questão jurídica solicitada por qualquer órgão das Nações
Unidas, desde que seja autorizado pela Carta da ONU a fazer essa consulta à CIJ.
21
Trata-se de uma consulta formulada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em relação à possibilidade de
Estados-partes da Convenção sobre Genocídio fazerem reservas a ela. Dentre as várias decisões tomadas em
relação à possibilidade de que Estados fizessem reservas à Convenção, a CIJ se pronunciou no sentido de que
não cabem reservas que sejam contrárias aos objetivos básicos da Convenção.
39
Os objetivos de tal Convenção também devem ser considerados. A Convenção foi adotada
manifestamente para uma finalidade puramente humanitária e civilizadora. É realmente difícil
imaginar uma convenção que possa ter esse caráter dual em maior grau, uma vez que seu objetivo, por
um lado é a salvaguarda da própria existência de certos grupos humanos e, por outro, confirmar e
apoiar os mais elementares princípios de moralidade. Em tal Convenção os Estados contratantes não
têm qualquer interesse próprio, eles simplesmente têm, todos, um interesse comum, nomeadamente, a
realização dos altos propósitos que são a razão de ser da Convenção. Por conseguinte, em uma
convenção desse tipo não se pode falar de vantagens individuais ou desvantagens para os Estados, ou
a manutenção de um perfeito equilíbrio contratual entre direitos e deveres. Os altos ideais que
inspiraram a Convenção prevêem, por força da vontade comum das partes, o fundamento e a medida
de todas as suas disposições” (INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE, 1951, p. 23. Tradução da
autora).
Em 1970, no Caso Barcelona Traction22, a Corte Internacional de Justiça, ao versar
sobre o tema da obrigação estatal, reafirmou que a criminalização do genocídio constituía
obrigação erga omnes no Direito Internacional Público. Muito embora não se trate de um caso
sobre genocídio propriamente, esse caso atribui sentidos à Convenção sobre esse crime,
conforme se percebe abaixo:
“Em particular, uma distinção essencial deve ser estabelecida entre as obrigações do Estado perante a
comunidade internacional como um todo, e os decorrentes vis-à-vis outro Estado no domínio da
proteção diplomática. Por sua própria natureza, os primeiros são a preocupação de todos os Estados.
Em vista da importância dos direitos envolvidos, todos os Estados podem ter um interesse jurídico em
sua proteção, que são obrigações erga omnes.
34. Essas obrigações decorrem, por exemplo, no direito internacional contemporâneo, a partir da
proibição dos atos de agressão e de genocídio” […]”. (INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE,
1970, p. 32. Tradução da autora).
22
O Caso Barcelona Traction envolveu a companhia Barcelona Traction, que possuía sede no Canadá, e
operava na Espanha. O governo espanhol, na década de 1960, aumentou as dificuldades para que companhias
estrangeiras operassem em seu país, acarretando assim prejuízos para os acionistas, que eram belgas. Por esse
motivo, a Bélgica ingressou com a ação na CIJ, mas sem ser bem sucedida. Embora o caso não lide
especificamente com a temática do genocídio, é relevante por trazer uma interpretação das normas sobre esse
crime existentes à época.
40
Já no caso Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the
Crime of Genocide (Bosnia and Herzegovina v. Serbia and Montenegro) 23, o juiz ad hoc24
Lauterpach, em seu voto separado no Pedido de Medidas Provisionais Adicionais 25, afirmou
que as normas da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio têm o
status de normas jus cogens (INTERNATIONAL CRIMINAL COURT, 1993, p. 440), o que
significa que elas constituem normas imperativas absolutas, da qual nenhuma derrogação é
permitida, salvo se por outra norma posterior que tenha esse mesmo status. Foi a primeira vez
que foi afirmado no Direito Internacional o status de jus cogens da Convenção sobre
Genocídio.
23
Trata-se de um caso apresentado à Corte Internacional de Justiça pela Bósnia, alegando responsabilidade da
Sérvia pelo genocídio da população bósnio-muçulmana, no massacre de Srebrenica, quando a Bósnia declarou
sua independência em relação à Sérvia. A Corte declarou, nesse caso, que Estados podem ser responsabilizados
pelo genocídio, e não apenas seus líderes individualmente, e também decidiu que –embora não por unanimidadeque a Sérvia não era diretamente responsável pelo genocídio de Srebrenica, nem cúmplice em relação a ele, mas
que a Sérvia tinha violado a Convenção de 1948 sobre Genocídio ao falhar em prevenir o episódio de Srebrenica,
ao não cooperar com o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia para a punição dos perpetradores, e
também por violar as medidas provisionais estabelecidas pela Corte.
24
O juiz ad hoc, na Corte Internacional de Justiça, pode ser convocado por uma das partes, ou ambas, caso não
haja nenhum juiz nacional do país parte no contencioso, podendo ser inclusive nacional de outro país que não a
parte que o convocou.
25
As medidas provisionais estão previstas no art. 41 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Trata-se de
uma medida de caráter incidental no processo. Caso seja alegado por uma das partes que há iminência ou risco
de violação de algum direito de alguma das partes que possa ser tutelado posteriormente pela sentença, a Corte
tem a faculdade de indicar as medidas provisionais adequadas para protegê-los. Seria algo equivalente às
medidas cautelares do direito brasileiro.
41
II- CONTEXTUALIZANDO O CASO AKAYESU
O objetivo deste capítulo é contextualizar o caso Akayesu. Tendo isso em mente,
primeiramente apresentamos os instrumentos internacionais de proteção dos direitos das
mulheres dos anos 1990 aprovados no âmbito da ONU: a Declaração sobre Violência contra a
Mulher (1993) e os documentos finais das Conferências de Viena (1993) e de Pequim (1995).
26
Muito embora esses três instrumentos tenham caráter de soft law e, portanto, não tenham
caráter vinculante, eles estabelecem diretrizes a serem seguidas não só pelos Estados, mas
também pela própria ONU, seus órgãos e agências especializadas (estrutura dentro da qual o
TPIR está localizado).
Ainda com esse objetivo de contextualizar o caso Akayesu, aborda-se o genocídio
ocorrido em Ruanda em 1994, que deu origem ao TPIR, a discussão que se deu no Conselho
de Segurança das Nações Unidas sobre se o que houve em Ruanda no ano de 1994 foi
genocídio, e a violência sexual sofrida pelas mulheres ruandesas durante esse genocídio.
2.1.
Documentos internacionais sobre direitos das mulheres da década de 1990
A parir de meados da década de 80, após a Conferência sobre a Mulher de Nairóbi, o
mundo se transformou profundamente. Na década de 1990, em contraste com a “crise do
multilateralismo” dos anos 80, ocorre uma intensa mobilização dos foros diplomáticos
parlamentares, sendo assim chamada por Lindgren Alves de “a década das conferências”.
Esse “renascimento” da diplomacia parlamentar ocorreu por dois motivos: o fim da Guerra
Fria e o fortalecimento da sociedade civil (ALVES, 2001, p. 31).
Esse fortalecimento da sociedade civil ocorreu principalmente pela aceleração dos
meios de comunicação e de informação, alterando a relação espaço/tempo. A sociedade civil
26
Excluiu-se da análise o Protocolo Adicional à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher por dois motivos: além de ter sido aprovado em 1999, após a decisão da Câmara
de Julgamentos do TPIR sobre o caso Akayesu, ele não estabelece direitos para as mulheres, o que já é feito na
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, mas aprimora o
mecanismo de supervisão que a Convenção já havia estabelecido anteriormente, permitindo que indivíduos e
grupos de indivíduos pudessem encaminhar petições ao Comitê da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra a Mulher.
42
internacional de forma geral, incluindo o movimento feminista, se aproveitou dessas novas
possibilidades tecnológicas para expandir seu espaço de articulação (COSTA, 2003, p.74).
O foco do movimento feminista no período compreendido não era necessariamente
os direitos das mulheres, mas trazer preocupações relativas a gênero para todas as grandes
conferências internacionais da ONU de 1990, fossem elas especificamente sobre direito das
mulheres ou não. Esse esforço se deu através de intensos debates dentro do próprio
movimento, nos quais os participantes desenvolveram novos entendimentos, que
compartilhavam entre si, e também fizeram lobby junto aos representantes estatais para incluílas nos documentos resultantes das negociações governamentais. Assim, o movimento
feminista mudou substancialmente o quadro do que se entendia por assuntos globais
(FRIEDMAN, 2003, p. 313-314).
É precisamente nesse contexto histórico da “década das conferências” que ocorrem a
Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, de 1993, e a Conferência de Pequim sobre a
Mulher, em 1995, e que é aprovada a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a
mulher.
2.1.1. Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a mulher
No ano de 1993, a Assembléia-Geral da ONU aprovou, através de sua Resolução
48/104, a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a mulher. Nas cláusulas
preambulares desse documento, a Assembléia-Geral afirma que a violência contra a mulher
constitui uma violação de seus direitos fundamentais, e nulifica seu gozo desses direitos.
Ainda nas cláusulas preambulares da Declaração, também se reconhece que a violência contra
a mulher é uma manifestação de relações desiguais de poder entre homens e mulheres, que
levaram a uma dominação e discriminação contra a mulher, e que essa violência é um dos
mecanismos sociais através dos quais as mulheres são forçadas a estarem numa posição
subordinada em relação aos homens. Nas cláusulas preambulares também é expressa
preocupação com o fato de alguns grupos de mulheres serem mais vulneráveis à violência,
como as pertencentes a grupos minoritários, mulheres indígenas, migrantes, as que habitam
em comunidades rurais ou remotas, as mulheres detidas em estabelecimentos prisionais, as
meninas, as mulheres portadoras de deficiência, as idosas e as que vivem em situação de
conflito. Numa outra cláusula preambular, a Assembléia-Geral dá as boas vindas ao
movimento de mulheres, afirmando que ele tem sido crucial para chamar atenção para a
43
natureza, gravidade e magnitude do problema que representa a violência contra a mulher.
Ainda no preâmbulo da declaração, a AG se mostra alarmada com o fato de que as
oportunidades para que as mulheres atinjam igualdade no âmbito jurídico, social, político e
econômico sejam limitadas pela violência continua e endêmica contra as mulheres (UNITED
NATIONS, 1993 a, p. 217).
O artigo 1º da Declaração define o termo violência contra a mulher como qualquer
ato de violência baseada em gênero cujos resultados sejam, ou provavelmente venham a ser,
danos ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para as mulheres, incluindo ameaças em
relação a tais atos, coerção, ou privação arbitrária de sua liberdade, ocorrendo isso tanto no
âmbito público quanto privado (UNITED NATIONS, 1993 a, p. 217).
O seu art. 2º, por sua vez, estabelece que a violência contra a mulher inclui, mas não
está limitada a, violência física, sexual e psicológica, seja ela sofrida no âmbito da família, no
da comunidade em geral, e/ou perpetrada ou tolerada pelo Estado (UNITED NATIONS, 1993
a, p. 217).
É afirmado no art. 3º da Declaração que as mulheres são titulares do gozo e proteção
de seus direitos em posição de igualdade, sejam eles políticos, civis, econômicos sociais ou
culturais. Esses direitos incluem os seguintes, listados nas alíneas do art. 3º da Declaração:
direito à vida; à igualdade; à liberdade e segurança pessoal; direito a igual proteção perante a
lei; direito a estar livre de qualquer tipo de discriminação; direito a gozar do maior grau
possível de saúde física e mental; o direito a condições justas e favoráveis de trabalho; e o
direito a não estar sujeito a tortura, ou outro tratamento ou punição cruel ou degradante
(UNITED NATIONS, 1993 a, p. 217-218).
O artigo 5º da Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, por sua
vez, trata da atuação da ONU, de seus órgãos e suas agências especializadas. Dentre suas
várias alíneas, destaca-se aqui a alínea “e”, que encoraja a coordenação entre organizações e
órgãos do sistema ONU a incorporarem a temática da violência contra a mulher em seus
projetos e decisões, especialmente no que tange a grupos de mulheres particularmente
vulneráveis a violência; a alínea “g”, que afirma que esses órgãos e agências especializadas
devem levar em consideração a temática da violência contra a mulher ao cumprir seu
mandato; e a alínea “h”, que afirma que esses órgãos e agências especializadas devem
cooperar com ONGs ao lidar com a implementação de tratados de direitos humanos (UNITED
NATIONS, 1993 a, p. 219).
44
2.1.2. Conferência de Viena sobre Direitos Humanos
A Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, ocorrida também em 1993, foi a
segunda sobre o assunto (a primeira foi em Teerã, em 1968), e se tornou um veículo para
sublinhar novas visões sobre pensamento e prática em torno de direitos humanos das
mulheres. Sua convocação inicial não fazia menção aos direitos das mulheres, nem havia,
especificamente, qualquer aspecto dos direitos humanos relativo a gênero em sua agenda.
Porém, como o movimento feminista considerava que a Conferência podia representar um
reconhecimento de que os direitos das mulheres são direitos humanos, ela se tornou o foco
unificador de uma campanha global sobre direitos humanos das mulheres (BUNCH, FROST,
2000, p. 4-5).
O movimento feminista agiu de forma a inserir a temática de direitos humanos das
mulheres em todo o processo preparatório da Conferência de Viena, através de lobby,
demandando que o assunto fosse discutido nos encontros preparatórios. A idéia de direitos
humanos das mulheres foi um instrumento de trabalho para que as/os feministas articulassem
e colaborassem entre si em torno de preocupações amplas e similares em relação à situação
das mulheres, ao mesmo tempo em que se davam a oportunidade de, através desse esforço
inicial, uma forma de elaborar melhor a temática, em ocasiões futuras, de modo que incluísse
preocupações com contextos políticos, geográficos, econômicos e culturais específicos
(BUNCH, FROST, 2000, p. 4-5).
Quando a Conferência de Viena finalmente ocorreu, a idéia de que direitos das
mulheres são direitos humanos tinha se tornado uma espécie de “grito de guerra” de milhares
de pessoas ao redor do mundo, e um dos mais debatidos entre os “novos temas de direitos
humanos (BUNCH, FROST, 2000, p. 5).
Em Viena, mulheres constituíam cerca de metade dos 3.000 participantes das ONGs
presentes à Conferência. O movimento feminista foi firme ao estabelecer os direitos das
mulheres como parte da agenda dos direitos humanos, afirmando particularmente que a
violência contra a mulher deve ser reconhecida como uma forma de violação aos direitos
humanos. Ao chamar atenção para a necessidade de que fossem reconhecidas as dimensões de
gênero dos direitos humanos –de forma a fazê-los inclusivos tanto em relação aos homens
quanto às mulheres-, as militantes feministas defendiam simultaneamente os instrumentos
internacionais de proteção dos direitos humanos já criados, e simultaneamente pediam
mudanças em relação ao tema (FRIEDMAN, 2003, p. 321).
45
O documento final dessa Conferência, a Declaração e Programa de Ação de Viena
(que é somente um documento, divido em duas partes, a Declaração e o Programa de Ação),
reflete essa militância feminista. Ele reconhece, no artigo 18 da sua primeira parte, que os
direitos das mulheres são inalienáveis, que são parte indivisível dos direitos humanos, e que a
erradicação de todas as formas de discriminação contra a mulher é um dos objetivos da
comunidade internacional. Afirma também que a violência baseada em gênero e todas as
formas de violência e exploração sexual são incompatíveis com a dignidade da pessoa
humana, e por isso, devem ser eliminadas. Além disso, vincula as atividades da ONU em
matéria de direitos humanos à proteção dos direitos das mulheres, e urge que governos,
instituições, organizações não-governamentais e intergovernamentais intensifiquem seus
esforços para proteger e promover os direitos das mulheres (UNITED NATIONS, 1993 c).27
O art. 37 da Plataforma de Ação, novamente, vincula as atividades da ONU à
proteção dos direitos das mulheres:
“37. O status igualitário e os direitos humanos das mulheres devem ser integrados ao cotidiano das
atividades do sistema Nações Unidas. Essas questões devem ser regular e sistematicamente abordadas
em todos os órgãos e mecanismos das Nações Unidas. Em particular, devem ser tomadas medidas
para aumentar a cooperação e promover uma maior integração de objetivos e metas entre a Comissão
sobre o Status das Mulheres, a Comissão de Direitos Humanos, o Comitê para a Eliminação da
Discriminação contra as Mulheres, o Fundo das Nações Unidas para as Mulheres , o Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento e outras agências das Nações Unidas. Neste contexto, a
cooperação e a coordenação deve ser reforçada entre o Centro para os Direitos Humanos e a Divisão
para o Avanço das Mulheres” (UNITED NATIONS, 1993 c. Tradução da autora).
O art. 38 da Plataforma de Ação, por sua vez, faz menção ao direito humanitário,
mais particularmente aos estupros sistemáticos enquanto instrumento de limpeza étnica, que
naquele ano chocava a comunidade internacional com as transmissões midiáticas da Guerra
dos Bálcãs:
“38. Em particular, a Conferência Mundial de Direitos Humanos enfatiza a importância de trabalhar
rumo à eliminação da violência contra as mulheres na vida pública e privada, a eliminação de todas as
formas de assédio e exploração sexual, e tráfico de mulheres, a eliminação do preconceito de gênero
na administração da justiça e a erradicação de quaisquer conflitos que possam surgir entre direitos das
27
“18. Os direitos humanos das mulheres e das meninas são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos
humanos universais. A participação plena e igualitária das mulheres na vida política, civil, econômica, social e
cultural, nos níveis nacional, regional e internacional, e a erradicação de todas as formas de discriminação em
razão do sexo, são objetivos prioritários da comunidade internacional
A violência de gênero e todas as formas de assédio e exploração sexual, incluindo aquelas resultantes de
preconceito cultural, e o tráfico internacional, são incompatíveis com a dignidade e o valor da pessoa humana, e
devem ser eliminados. Isto pode ser conseguido através de medidas legais e através de ação nacional e
cooperação internacional em domínios como o desenvolvimento econômico e social, educação, maternidade
segura, cuidados com a saúde, e apoio social.
Os direitos humanos das mulheres devem ser parte integrante das atividades das Nações Unidas sobre direitos
humanos, incluindo a promoção de todos os instrumentos de direitos humanos relacionados às mulheres.
A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos insta os governos, instituições, e organizações
intergovernamentais e não-governamentais a intensificarem os seus esforços para a proteção e promoção dos
direitos humanos das mulheres e meninas” (UNITED NATIONS, 1993 a. Tradução da autora).
46
mulheres e efeitos danosos de certas práticas e tradicionais, preconceitos culturais e extremismos
religiosos. A Conferência Mundial de Direitos Humanos pede à Assembléia-Geral que adote o projeto
de declaração sobre a violência contra a mulher e urge aos Estados que combatam a violência contra a
mulher de acordo com suas provisões. Violações dos direitos humanos das mulheres em situações de
conflitos armadas são violações dos princípios fundamentais do Direito Internacional dos Direitos
Humanos e do Direito Humanitário. Todas as violações desse tipo, incluindo, em particular, o
homicídio, o estupro sistemático, a escravidão sexual, e a gravidez forçada, requerem uma resposta
particularmente efetiva” (UNITED NATIONS, 1993 c. Tradução da autora).
Já o art. 44 da Plataforma de Ação faz menção à Conferência de Pequim, que viria a
ocorrer em 1995 e trataria justamente sobre a mulher.
2.1.3. Conferência de Pequim
Passamos agora à análise da Conferência de Pequim. No período preparatório da
Conferência e durante a própria Conferência, o movimento feminista teve seu trabalho
extremamente dificultado pelas autoridades chinesas, que negaram vistos a muitas militantes,
colocaram vigilância policial constante, deslocaram o fórum de ONGs, a ser realizado
paralelamente à Conferência de Pequim, para outra cidade (Huairou, que possuía uma
estrutura precária para receber as participantes), e censuraram discursos feitos no fórum.
Além disso, a ONU se omitiu em relação a isso, acatando a maior parte das imposições
chinesas (COSTA, 2003, p.98-99).
Apesar de o movimento feminista ter sido enfraquecido pelos supracitados fatores,
os Estados tiveram uma participação reduzida na construção dos documentos finais, a
Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim. Apesar da distância entre Huairou e Pequim,
as ONGs feministas foram os principais atores no processo de negociação. Isso ocorreu
porque muitas/muitos feministas foram incorporadas às delegações nacionais e observaram o
fórum oficial, promovendo a interação entre um fórum e outro. Elas tomavam ciência dos
debates em Huairou, buscando incorporá-los aos documentos oficiais. Concomitantemente,
exerciam seu papel de lobistas perante os Estados na Conferência oficial (COSTA, 2003, p.
113).
Nota-se a influência das ONGs feministas pela presença, no documento final da
Conferência de Pequim, da visão de que as relações de gênero perpassavam todas as
dimensões da vida social. O gênero, enquanto categoria analítica, permitia rever espaços de
poder e de exclusão. Assim, diversas questões, entre elas casamento, trabalho, conflito
47
armado, estupro e educação, foram abordadas na Declaração e na Plataforma de Ação de
Pequim (que são dois documentos separados, a Declaração e a Plataforma de Ação) como
dimensões de poder que justificavam discriminação, a tortura e a subjugação das mulheres no
plano internacional (COSTA, 2003, p. 113).
No capítulo IV, item D da Plataforma de Pequim, é tratada a temática da violência
contra a mulher. Em seu parágrafo 112, é definido o que se entende por violência contra a
mulher:
“112. O termo "violência contra as mulheres" significa qualquer ato de violência baseada em gênero
que resulte, ou provavelmente resultará, em dano físico, sexual ou psicológico às mulheres, incluindo
ameaças de realizar tais atos, coerção ou privação arbitrária da liberdade, seja na vida pública ou
privada. Assim, a violência contra as mulheres abrange, mas não está limitada a:
a. Violência física, sexual e psicológica ocorrida na família, incluindo espancamento, abuso sexual de
meninas no lar, a violência relacionada com o dote, o estupro marital, mutilação genital feminina e
outras práticas tradicionais prejudiciais à mulher, violência não-conjugal violência relacionada à
exploração;
b. A violência física, sexual e psicológica ocorrida na comunidade em geral, incluindo estupro, abuso
sexual, assédio sexual e intimidação no trabalho, nas instituições de ensino e em outros lugares, o
tráfico de mulheres e prostituição forçada;
c. A violência física, sexual e psicológica perpetrada ou tolerada pelo Estado, onde quer que ocorra”
(UNITED NATIONS, 1995, p. 48. Tradução da autora).
O parágrafo 114 afirma que se incluem nesse conceito de violência contra a mulher
violações de seus direitos ocorridas em situações de conflitos armados, como homicídio,
estupro sistemático, escravidão sexual e gravidez forçada (UNITED NATIONS, 1995, p. 49).
O parágrafo 116, por sua vez, trata da maior vulnerabilidade de mulheres que
pertençam a determinados grupos,
“[…] como as mulheres pertencentes a grupos minoritários, as mulheres indígenas, mulheres
refugiadas, as mulheres migrantes, incluindo as trabalhadoras migrantes, as mulheres pobres que
vivem em comunidades rurais ou remotas, as mulheres carentes, as mulheres detentas, as meninas,
as mulheres portadoras de deficiência, as idosas, as mulheres deslocadas internas, mulheres
repatriadas, mulheres que vivem na pobreza e mulheres em situações de conflito armado, ocupação
estrangeira, guerras de agressão, guerras civis, terrorismo, incluindo a tomada de reféns, também são
particularmente vulneráveis à violência” (UNITED NATIONS, 1995, p. 49. Tradução da autora).
Já o parágrafo 118 caracteriza a violência contra a mulher como uma manifestação
de relações de poder desiguais entre homens e mulheres:
“A violência contra as mulheres é uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais
entre homens e mulheres, que levaram à dominação e à discriminação contra as mulheres pelos
homens, e à prevenção do pleno avanço da mulher” (UNITED NATIONS, 1995, p. 49. Tradução da
autora).
48
O parágrafo 121 da Plataforma de Ação, por sua vez, lembra que as mulheres podem
estar mais vulneráveis em relação a pessoas em posição de autoridade, tanto em situações de
conflito quanto de paz (UNITED NATIONS, 1995, p. 50).
O item E do Capítulo IV da Plataforma de Ação de Pequim, por sua vez, trata das
mulheres em situação de conflito armado. O seu parágrafo 131 afirma que violações dos
direitos humanos das mulheres em situações de conflitos são violações dos princípios
fundamentais do Direito Internacional dos Direitos Humanos e do Direito Humanitário.
Prossegue esse parágrafo reconhecendo que violações massivas de direitos humanos,
especialmente na forma de genocídio, limpeza étnica como estratégia de guerra, e estupro,
incluindo estupro sistemático de mulheres em contexto de guerra, são práticas repugnantes,
altamente condenáveis, e que devem ser impedidas, ao passo que seu perpetradores devem ser
punidos (UNITED NATIONS, 1995, p. 56).
O parágrafo 132 da Plataforma de Ação de Pequim cita as Convenções de Genebra
sobre direito humanitário, e seus Protocolos Adicionais I e II, que afirmam que mulheres
devem ser protegidas contra estupro e outras formas de violência sexual em contextos de
guerra, e cita também o já mencionado art. 38 da Plataforma de Ação de Viena, que trata de
violações dos direitos humanos da mulher em situações de conflito. O parágrafo 132 da
Plataforma de Ação de Pequim segue declarando que violações desse tipo,
“[…] incluindo em particular homicídio, estupro, incluindo estupros sistemáticos, escravidão sexual e
gravidez forçada, exigem uma resposta particularmente eficaz. Graves e sistemáticas violações e
situações que constituem sérios obstáculos ao pleno gozo dos direitos humanos continuam a ocorrer
em diferentes partes do mundo. Tais violações e obstáculos incluem, bem como a tortura e outros
tratamentos cruéis, desumanos e degradantes ou prisões sumárias arbitrárias, todas as formas de
racismo, discriminação racial, xenofobia, negação dos direitos econômicos, sociais e culturais, e
intolerância religiosa.” (UNITED NATIONS, 1995, p. 56. Tradução da autora).
Já o parágrafo 135 da Plataforma de Ação de Pequim considera que, embora
comunidades inteiras sofram as conseqüências dos conflitos armados, mulheres e meninas são
particularmente afetadas, devido ao seu status na sociedade, normalmente inferior em termos
hierárquicos. Um exemplo disso, segundo ainda esse dispositivo, é que as partes do conflito,
freqüentemente, estupram as mulheres impunemente, muitas vezes usando o estupro como
uma tática de guerra. O impacto da violência contra a mulher em situações de conflito é
experimentado por mulheres de todas as idades que sofrem os seguintes danos, consoante o
parágrafo 135 da Plataforma de Ação de Pequim:
49
“deslocamento, perda do lar e da propriedade, perda ou desaparecimento involuntário de parentes
próximos, pobreza e separação e desintegração da família, e as que são vítimas de atos de assassinato,
terrorismo, tortura, desaparecimento forçado, escravidão sexual, estupro, abuso sexual e gravidez
forçada em situações de conflito armado, especialmente como resultado das políticas de limpeza
étnica e outras formas novas e emergentes de violência” (UNITED NATIONS, 1995, p. 57. Tradução
da autora).
Ainda segundo esse dispositivo da Plataforma de Ação, isso acaba repercutindo em
conseqüências traumáticas para essas mulheres (nos planos social, econômico e psicológico)
que podem durar uma vida inteira (UNITED NATIONS, 1995, p. 57).
2.2. O genocídio em Ruanda
Em 1885, quando o imperialismo europeu estava em seu apogeu, na África as
sociedades eram o que importava, e o Estado era uma construção sem a qual muitos poderiam
viver. Havia fronteiras, mas não no que se entende através do conceito ocidental de fronteira,
surgido do período de Westfália. Eram fronteiras lingüísticas, culturais, militares ou
comerciais, mas tendiam a se entrelaçar e se sobrepor. Segundo Prunier, novas fronteiras
foram então desenhadas, nem tanto de forma a violar as antigas fronteiras, mas sob uma
lógica distinta da africana. As concepções culturais e sociais africanas não foram levadas em
consideração, nem questionadas: foram simplesmente tornadas obsoletas. Para esse autor, os
europeus racionalizaram as culturas africanas até a sua morte. Essa racionalidade européia foi
imposta de “cima para baixo”. Justamente pelo fato de a independência dos países africanos
ter ocorrido no período da Guerra Fria, os seus desdobramentos políticos só ocorreram depois
do fim dela (PRUNIER, 2009, p. xxix-xxx).
Assim, o pós-Guerra Fria ficou conhecido pelo rompimento de vários conflitos interétnicos. Vários nacionalismos surgidos no pós-Primeira Guerra Mundial, após o fim dos
grandes impérios (Austro-Húngaro, Otomano, Alemão e Russo) e no território deles,
estouraram. Além disso, as fronteiras artificialmente impostas pelo imperialismo europeu na
África e na Ásia não refletiam as realidades políticas locais. O colonialismo europeu nessas
regiões também acirrava disputas étnicas através do favorecimento de um grupo em
detrimento de outro, com o fim de fortalecer o poder colonial. Esses problemas tinham sido
contidos pelo balanço de poder hegemônico entre URSS e Estados Unidos no pós-Segunda
Guerra Mundial. Com a queda do bloco comunista, a possibilidade de manutenção de zonas
50
de influência diminuiu, e a disputa pelo poder dentro de vários Estados, assim como as antigas
demandas nacionalistas, cresceu de forma violenta (RODRIGUES, 2000, p. 6-7). É nesse
contexto que ocorre o genocídio ruandês de 1994.
Em 1889, a Alemanha declarou Ruanda seu protetorado, mas com a derrota na I
Guerra Mundial, a Bélgica ocupou o país. Os tutsis então foram transformados pela metrópole
no grupo dominante na colônia. Em 1961, um plebiscito supervisionado pela ONU tornou o
país autônomo, e em 1962 ocorreu a independência. Então, as elites políticas hutus
substituíram os belgas numa violenta competição, causando centenas de mortes de tutsis e
causando milhares de refugiados espalhados no Burundi, Tanzânia e Uganda. A guerra civil
ruandesa tem suas raízes na colonização belga, que manipulou essa clivagem entre as elites
ruandesas na competição política que se instaurou a partir de seu processo de colonização.
(RODRIGUES, 2000, p. 132).
Em 1973, Juvenal Habyarimana chega ao poder, derrubando o antigo presidente.
Desde então, a sociedade se tornou cada vez mais estratificada, pois houve um sistema de
cotas étnicas para empregos e oportunidades educacionais em favor dos hutus. Além disso,
Habyarimana favoreceu uma minoria de hutus do norte do país, principalmente representantes
de seu próprio clã (RODRIGUES, 2000, p. 133). Isso acabou gerando um fluxo de refugiados
tutsis para outros países da região dos Grandes Lagos Africanos, dentre eles Uganda.
Nos anos oitenta, ataques contra a população refugiada ruandesa em Uganda levaram
os exilados a se unirem ao Movimento Revolucionário Nacional, e, em 1979, os membros
mais antigos desse grupo fundaram a Aliança Ruandesa para a Unidade Nacional, que mudou
de nome em 1979 para Frente Patriótica Ruandesa (FPR). Seu compromisso era o de
promover a reconciliação étnica (RODRIGUES, 2000, p. 133). Foi nesse país que se formou a
liderança dessa força política, que nasceu em campos de refugiados em Uganda.
A FPR atacou Ruanda a partir do sul de Uganda em 1990. Esse seria o primeiro
confronto do que depois se tornaria uma guerra civil, cujo objetivo era forçar o governo
ruandês a aceitar a repatriação dos refugiados, em sua maioria tutsis. França e Bélgica
enviaram tropas para Kigali, a capital, para proteger seus nacionais. O Zaire (atual República
Democrática do Congo), também enviou ajuda, mas com a função explícita de apoiar o
exército ruandês. A FPR foi vencida e, então, passou a se organizar como movimento de
guerrilhas. O governo, por sua vez, passou a promover massacres contra a população civil
51
tutsi, em represália aos membros da FPR que arrasavam aldeias hutus (RODRIGUES, 2000,
p. 133-134).
Durante os três anos que precederam o genocídio, o conflito em Ruanda foi visto
como um caso de guerra civil de baixíssima intensidade, mitigada e remediada por esforços
significativos. Nas palavras de Bruce Jones,
“A extraordinária ironia é que essa matança escalou a partir de uma guerra civil tão baixa em
intensidade que ela escapou ao radar do monitoramento internacional de conflitos. (...) Aliás, o
número de mortes na guerra era tão baixo que o Stockholm International Peace Research Institute
categorizava a luta como ‘disputa’” (JONES Apud ALVES, 2005, p. 102).
Poucos dias após a invasão da FPR em 1990, o governo belga enviou a Ruanda uma
missão composta pelo primeiro-ministro, o ministro das relações exteriores e o ministro da
defesa, que se encontraram com o Presidente Habyarimana em Nairóbi (capital do Quênia),
em 14 de outubro daquele ano. A comitiva belga fez visitas ao Quênia, a Uganda, à Tanzânia,
e à Organização da Unidade Africana (OUA) 28, iniciando um processo regional para lidar
com a crise ruandesa. Em junho de 1992, o governo ruandês concordou em iniciar
negociações políticas abrangentes rumo a um acordo de paz. A Declaração de Paz de Arusha
foi assinada pelo governo ruandês e pela FPR em 4 de agosto de 1993, na cidade tanzaniana
de Arusha, e dava término formal ao conflito, instaurando um governo de transição com a
participação da FPR, embora houvesse oposição de hutus extremistas quanto a isso (ALVES,
2005, p. 134).
No papel, Arusha resolvia as mais importantes questões que subjaziam o conflito,
como o direito dos refugiados de retornar a Ruanda e a integração das forças armadas. Parte
da Declaração era um programa de implementação que previa o desdobramento de uma
missão de paz que viria, futuramente, a ser denominada UNAMIR (Missão de Assistência das
Nações Unidas para Ruanda), o estabelecimento de um amplo governo de transição, que
incorporaria todas as etnias, e eleições multipartidárias a se realizarem no máximo até 1995
(ALVES, 2005, p. 104).
O ex-comandante da UNAMIR, Tenente-general Roméo Dallaire, afirma que com a
liderança do DPKO (Departamento de Operações de Peacekeeping da ONU) focada
principalmente nos Bálcãs, o funcionário do Departamento que entendia melhor da situação
em Ruanda era Hedi Annabi, que parecia, aliás, ser quem lidava com todas as desgraças do
continente africano no DPKO. Annabi era o único na ONU que parecia enxergar de forma
mais cética o acordo de Arusha, pois os extremistas hutus tinham assinado a Declaração de
28
A OUA foi sucedida pela União Africana (UA), fundada em 2002.
52
Arusha sob enorme pressão (DALLAIRE, 2005, p. 86). Como afirmou Dallaire em relação a
Arusha posteriormente aos fatos ocorridos em Ruanda em 1994:
“O Acordo de Paz [Arusha] era um documento complexo que foi o resultado da arbitragem feita pelo
presidente da Tanzânia, Ali Hassan Mwinyi, em Arusha, durante quase dois anos de negociações
conturbadas. O que não era evidente para nós sentados em Nova York era que o acordo encobria, mais
do que resolvia, os principais problemas de como dividir o poder entre as partes anteriormente em
conflito e como reinstalar refugiados em Ruanda, alguns dos quais tinham saído do país há quarenta e
tiveram filhos que afirmam serem cidadãos ruandeses. Também não apreciávamos a situação dos
direitos humanos no país depois de tanta luta. (Essa informação estava disponível em Nova York, mas
devido à falta de partilha de informações entre os serviços nas agências da ONU e as organizações
não-governamentais (ONGs), ninguém nos proveu com elas, até que nós chegamos ao país, em
outubro de 1993)” (DALLAIRE, 2005, p. 54. Tradução da autora).
Então, a ONU enviou ao país uma missão de manutenção da paz, a UNAMIR,
naquele mesmo ano, com os objetivos de monitorar o cessar-fogo e de acompanhar o processo
de desmilitarização. Essa missão foi instituída em resposta à demanda das partes contratantes
da Declaração de Arusha por uma Força Neutra Internacional (FNI) que tivesse um papel
ativo na implementação e no monitoramento dos acordos. Os proponentes da Declaração de
Arusha esperavam que a FNI garantisse a segurança geral no país, provesse segurança para os
civis, detectasse fluxos de armas e neutralizasse grupos armados. A UNAMIR possuía um
mandato extremamente restrito, dentro do Capítulo VI29 da Carta da ONU, com o uso de
armas autorizado apenas para a autodefesa, cujo mandato foi estabelecido pela Resolução 872
de 199330 (ALVES, 2005, p. 104).
Esse mandato restrito reflete o fato de, conforme afirma Ana Cristina Araújo Alves,
Ruanda ter sido apresentada à ONU como uma operação “fácil”:
“[...] Ruanda foi apresentada à ONU como uma operação “fácil”: havia um cessar-fogo estável, um
tratado de paz apoiado pelas partes, acordos que prometiam reconciliação nacional, democracia e a
promessa de fazer dos ódios étnicos um legado do passado” (ALVES, 2005, p. 104).
29
Cabe aqui fazer uma distinção entre a atuação do Conselho de Segurança sob os Capítulos VI e VII da Carta
das Nações Unidas. O Capítulo VI da Carta da ONU trata da atuação do CS na solução pacífica de controvérsias
que tem o potencial de abalar a paz e a segurança internacionais. O Capítulo VII da Carta, por sua vez, trata de
ações relativas a ameaças à paz, rupturas de paz e atos de agressão. Medidas tomadas pelo Conselho de
Segurança consoante o Capítulo VII da Carta da ONU possuem eficácia erga omnes (ORGANIZAÇÃO DAS
NAÇÕES UNIDAS, 1945, p. 22-31).
30
O mandato da UNAMIR, estabelecido pela Terceira cláusula preambular da Resolução 872 (1993) do
Conselho, era o seguinte: “(a) Contribuir para a segurança da cidade de Kigali, inclusive dentro da “área segura
de armas” estabelecida pelas partes dentro e em torno da cidade; (b) Monitorar a observância de um acordo de
cessar-fogo, que peça pelo estabelecimento de zonas de aquartelamento e de assembléia e a demarcação da nova
zona desmilitarizada, e de novos procedimentos de desmilitarização; (c) Monitorar a segurança do período final
do mandato do governo de transição, de forma a anteceder as eleições; (d) Prestar assistência na desminalização,
primariamente através de programas de treinamento; (e) Investigar, a pedido das partes ou por iniciativa própria,
casos de suposta não conformidade com os dispositivos do Acordo de Paz de Arusha relativos à integração das
Forças Armadas, e perseguir tais casos com as partes responsáveis, e relatá-los, quando couber, ao SecretárioGeral; (f) Monitorar o processo de repatriação dos refugiados e deslocados internos ruandeses para verificar se
ele está ocorrendo de maneira segura e ordenada; (g) Assistir na coordenação de atividades de assistência
humanitária em conjunto com operações de socorro; (h) Investigar e relatar incidentes relativos a atividades da
gendarmerie e da polícia” (UNITED NATIONS, 1993, p. 2. Tradução da autora).
53
Dallaire relata que a liderança do DPKO, ao se reunir com ele pela primeira vez na
sede da ONU me Nova York, em 1993, falava de Ruanda como uma chance de melhorar a
imagem das operações peacekeeping da ONU. Ficava claro que a missão era considerada uma
atividade secundária em relação a um evento principal, que estava sempre em lugar mais
importante, como a Bósnia, o Haiti, a Somália31 ou Moçambique, mas não naquele país
africano pequeno que quase ninguém sabia indicar no mapa onde estava localizado
(DALLAIRE, 2005, p. 55).
Porém, contrariamente às expectativas internacionais, houve uma contínua
deterioração da situação política e de segurança em Ruanda desde a assinatura dos acordos de
Arusha, na qual estavam presentes a polarização da política ruandesa, a demonização da FPR
e o repúdio a Arusha por parte dos extremistas (ALVES, 2005, p. 105) 32.
Diante de uma situação já deteriorada, o avião em que estavam Habyarimana e o
presidente do Burundi, Ntaryamira, quando retornavam de negociações a respeito do processo
de implementação do acordo, foi abatido (um incidente até hoje não explicado) e ambos
morreram. Esse fato desencadeou uma torrente de violência e morte com conotações políticas
e étnicas, que teve início em 7 de abril de 1994. A Primeira-ministra do governo interino
estabelecido em Arusha, Agathe Uwilingiyimana, hutu moderada, o gabinete de ministros e os
oficiais do governo estabelecido em Arusha (todos tutsis ou hutus moderados) e a UNAMIR
foram os primeiros alvos, seguindo-se ataques massivos a hutus moderados e, sobretudo, a
tutsis, tentando exterminar essa etnia. Além disso, a autoridade governamental foi
desintegrada. O governo interino que assumiu em abril de 1994 através de um golpe de
Estado acobertou e incentivou o genocídio (RODRIGUES, 2000, p. 134-135).
31
Alguns soldados americanos foram mortos numa operação de paz da ONU na Somália, em uma emboscada.
Esse fato fez com que o país se tornasse relutante em enviar soldados para missões de paz, e que vários outros
Estados (inclusive devido à subseqüente morte de soldados paquistaneses que foram resgatar esses americanos)
tivessem atitude similar. Além disso, essa falha na Somália acarretou uma falta de confiança da comunidade
internacional nas missões de paz da ONU.
32
Em 30 de março de 1994, antes mesmo de começarem a ocorrer os genocídios, o contexto doméstico ruandês
era descrito por Boutros Boutros-Ghali, o então Secretário-Geral da ONU, da seguinte forma: “Apesar do fato de
o Governo Ruandês e a Frente Patriótica Ruandesa (FPR) haverem concordado em Kinihira em 10 de dezembro
de 1993 em estabelecer o governo de transição e a Assembléia Nacional de Transição antes de 31 de dezembro,
isso não ocorreu como resultado da incapacidade das partes em questão de concordar sobre modalidades
relevantes, incluindo as listas dos membros do governo de transição e da Assembléia Nacional de Transição. (...)
O prolongado atraso em estabelecer as instituições de transição tem não apenas impedido a UNAMIR de realizar
suas tarefas de acordo com a agenda de implementação aprovada pelo Conselho de Segurança, mas tem também
contribuído para a deterioração da situação de segurança no país e colocado uma ameaça ao processo de paz”
(BOUTROS-GHALI Apud ALVES, 2005, p. 105).
54
A invasão de soldados extremistas hutus à casa de Agathe Uwilingiyimana não
custou apenas a vida de uma apoiadora proeminente da paz e da divisão do poder entre tutsis e
hutus, mas também provocou o colapso da UNAMIR, ao seqüestrarem todos os peacekeepers
que faziam a segurança de Uwilingiyimana. Então, eles levaram os peacekeepers para um
campo militar, deixaram os ganeses em segurança, e mataram e mutilaram dez belgas. Devido
ao fato de os EUA terem se retirado da Somália devido à morte de dezoito soldados norteamericanos em ação naquele país, os extremistas Hutus acreditavam que a morte dos belgas,
que constituíam o contingente melhor preparado e melhor equipado da UNAMIR, ocasionaria
uma retirada desse contingente de Ruanda e, assim, facilitaria o trabalho dos genocidas. E foi
exatamente isso o que ocorreu (POWER, 2007, p. 332).
Segundo Samantha Power, a partir do início desses eventos, Dallaire também
recebeu ordens para que fosse dada prioridade à evacuação de estrangeiros. O DPKO, que
havia rejeitado a proposta de Dallaire, feita em janeiro de 1994, de serem realizadas incursões
em esconderijos de armas dos extremistas hutus, com base na política da ONU de
neutralidade e de se evitar o enfrentamento, enviou um fax específico quando começou o
genocídio:
“Você deve fazer todo esforço para não comprometer a sua imparcialidade ou de agir além de seu
mandato, mas pode exercer o seu poder discricionário de fazer [isso] se isso for essencial para a
evacuação de cidadãos estrangeiros. Isto não deve, repito, não estende a participação em um possível
combate, exceto em legítima defesa.” (Apud POWER, 2007, p. 352. Tradução da autora).
A neutralidade era essencial. Evitar o combate também era vital, mas Dallaire
poderia fazer uma exceção a esses dois princípios das operações de paz da ONU em benefício
da comunidade estrangeira situada em Ruanda (POWER, 2007, p. 352).
Como reação aos eventos genocidas, foi reiniciada a guerra civil, havendo retaliação
pela FPR. Como o principal mandato da UNAMIR era monitorar o cessar fogo, a missão viuse, de repente, sem mandato.
Na noite de 12 de abril, Dallaire recebeu um telefonema da Europa. Era Gharekhan,
um assistente especial de Boutros Boutros-Ghali, na linha. Ele informou que o governo belga
havia decidido retirar seus “peacekeepers” da UNAMIR. Gharekhan então pediu que Dallaire
considerasse opções futures, e terminou a ligação (DALLAIRE, 2005, p. 294).
Na mesma noite, Maurice Baril confirmou que o SG, após consultar o Ministro belga
das Relações Exteriores, iria notificar o CS sobre a retirada do contingente belga da
55
UNAMIR. Boutros-Ghali pensava que essa retirada dos belgas de Ruanda colocaria toda a
missão em perigo. Porém, Dallaire afirmou a Baril que não sairia de Ruanda (DALLAIRE,
2005, p. 294).
Em 14 de abril, Dallaire recebeu outro fax do DPKO, solicitando que ele examinasse
duas novas opções de contingenciamento da missão. A primeira era afirmar aos dois lados do
conflito que o SG estava considerando a possibilidade de manter a UNAMIR em Ruanda por
mais três semanas, embora sem os belgas, mas com o equipamento desse contingente que
estava sendo retirado, de forma a permitir às partes acelerar o processo estabelecido em
Arusha - mas somente se houvesse um cessar-fogo nesse período e o aeroporto de Kigali fosse
considerado território neutro. A outra possibilidade era a de que, não havendo o cessar-fogo, a
UNAMIR seria retirada, permanecendo somente Dallaire, Jacques-Robert Booh-Booh (o
Representante Especial do SG em Ruanda) e algo em torno de 200 a 250 tropas, um número
bastante reduzido (DALLAIRE, 2005, p. 295).
No dia seguinte, Dallaire recebeu um fax do DPKO afirmando que as duas propostas
foram aprovadas pelo SG e foram apresentadas por ele ao CS para deliberação. O DPKO
adicionou uma Terceira opção: a missão começaria com 2.000 tropas e depois seria
gradativamente reduzida até possuir apenas 250 tropas caso não houvesse cessar-fogo em três
semanas. Boutros-Ghali era favorável à primeira opção, e a França apoiava o plano, mas
estabelecendo o prazo para o cessar-fogo em seis dias, sendo apoiados pelos britânicos. A
Nigéria, falando em nome do Movimento dos Países Não-Alinhados, afirmou que não
considerava nenhuma das opções adequadas, e que retirar a UNAMIR seria equivocado
(DALLAIRE, 2005, p. 298).
Apenas Colin Keating, representante da Nova Zelândia, país que estava com a
presidência do CS, afirmou que o CS deveria reforçar a UNAMIR, revendo seu mandato, de
forma a permitir que a Missão contribuísse para restabelecer a paz em Ruanda e para
implementar as instituições transicionais previstas em Arusha. Porém, a discussões no CS
terminaram naquele dia sem que fosse tomada uma decisão em relação à UNAMIR
(DALLAIRE, 2005, p. 298 e 301).
Em 21 de abril, após um longo tempo adiando a tomada de uma decisão em relação à
UNAMIR após o assassinato dos dez peacekeepers belgas, o Conselho de Segurança aprovou
sua Resolução 912 que, além de pedir um cessar-fogo entre as partes, decidiu por uma
56
drástica redução do contingente da UNAMIR, o que provocou uma tragédia humanitária ainda
maior (RODRIGUES, 2000, p. 135-136).
Reconhecendo posteriormente essa falha, a Resolução 918 do Conselho autoriza, sob
o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, o aumento das forças em Ruanda para 5.500, e
deu à UNAMIR o mandato de proteger os civis em risco e prover segurança e suporte para as
operações de ajuda humanitária (RODRIGUES, 2000, p. 135-136), sendo essa missão com
mandato renovado chamada informalmente de UNAMIR II.
Apesar disso, o apoio logístico e financeiro da operação não era suficiente, e os
EUA, devido à morte de soldados seus na Operação “Restore Hope” na Somália, estavam
relutando em participar por causa da preocupação que a operação da Somália gerou no país
(RODRIGUES, 2000, p. 136). Por isso, em virtude da carência de fundos, tropas e
equipamentos necessários para a missão, não obstante seu caráter de urgência, até 20 de junho
o desdobramento da UNAMIR II ainda não havia sido viabilizado (ALVES, 2005, p. 127).
Diante dessa paralisia, em junho de 1994, por iniciativa francesa, o Conselho de
Segurança, através da Resolução 929, autorizou uma operação humanitária multinacional
temporária para a proteção dos refugiados, invocando Capítulo VII da Carta da ONU (“Ações
relativas a ameaças à paz, ruptura da paz e atos de agressão”) A chamada “Operação
Turquesa”, liderada pela França, fora da hierarquia de comando da ONU, era composta por
2.500 homens, todos franceses ou franco-africanos, e recebeu um mandato de dois meses sob
o capítulo VII da Carta das Nações Unidas. No dia seguinte à sua aprovação pelo Conselho,
as primeiras tropas da Operação Turquesa deslocaram-se de Goma, no Zaire, para o noroeste
de Ruanda. (ALVES, 2005, p. 127; RODRIGUES, 2000, p. 136).33
33
É bem questionável o legítimo interesse humanitário da França nessa intervenção em Ruanda, pois a França era
aliada do governo de Habyarimana, que, como citado anteriormente, implementou uma série de políticas próhutus, e foi o governo contra o qual se revoltou a RPF. Segundo Prunier, a França, desde 1960, trouxe para a sua
esfera de influência os países africanos francófonos, como Ruanda, protegendo seus interesses econômicos na
reunião em troca de seu envolvimento violento nesses países (PRUNIER, 2009, p. xxxiv). Segundo Simone
Martins Rodrigues, ao iniciar a crise em Ruanda em 1990, a primeira ação francesa foi enviar tropas que
apoiaram o governo de Habyarimana após a invasão da FPR, ligada à África de língua inglesa (devido ao fato de
vários de seus integrantes terem sido criados em Uganda, país anglófono, e ter lutado na guerra civil ugandesa,
em prol da subida ao poder de Yoweri Museveni –presidente de Uganda de 1986 até hoje- nesse país) através da
fronteira com Uganda, ao norte. O então presidente da França, François Mitterrand, considerou que a agressão
feita pela FPR era uma ação contra uma zona de língua francesa, mantendo, num primeiro momento, um
discurso que fazia lembrar as políticas de manutenção da zona de influência e os argumentos geopolíticos da
Guerra Fria. Mitterrand estava ansioso por recuperar a influência de seu país na África, e considerava que uma
vitória da FPR poderia levar o país a se distanciar da zona de influência francesa. Após a morte de Habyarimana,
a França fez de tudo para retirar a UNAMIR de Ruanda, e não implementar no país nenhuma outra força de paz
ligada a uma organização internacional, seja a ONU, a OUA (Organização da Unidade Africana), ou uma força
de paz mista (RODRIGUES, 2000, p. 137). A França começou no espírito de ajudar uma ditadura aliada, e
terminou com bastante sangue nas mãos (PRUNIER, 2009, p. xxxiv). Porém, em meados de junho, a pressão
57
Em julho de 1994, a FPR tomou Kigali e se instalou no governo, com Pasteur
Bizimungu como presidente de Ruanda, e Paul Kagame como seu Primeiro-Ministro. O novo
governo declarou unilateralmente o cessar-fogo e terminou o conflito, reafirmando seu
compromisso com a Declaração de Arusha e com a reconciliação e a reconstrução nacional
(RODRIGUES, 2000, p. 136-137). Como afirmou Dallaire, ironicamente, o cessar-fogo
unilateral era apenas outro nome para a declaração de vitória da FPR (DALLAIRE, 2007,
2005, p. 474-475).
A vitória da FPR levou muitos hutus a fugirem do país com medo de represálias,
refugiando-se na fronteira com o Zaire, muitos morrendo por falta de condições básicas de
subsistência e ajuda médica (RODRIGUES, 2000, p. 136-137).
As estimativas são de que Ruanda tinha uma população de 7,9 milhões de pessoas
antes da guerra civil; depois, esse número caiu para 5 milhões. Dois milhões de pessoas se
tornaram deslocados internos, e 2,1 milhões de ruandeses continuam refugiados no Zaire,
Tanzânia, Burundi e Uganda (RODRIGUES, 2000, p. 139).
doméstica para o empreendimento de uma ação que cessasse com as atrocidades que estavam sendo cometidas
em Ruanda aumentou. A pressão por uma intervenção, segundo Rodrigues, foi especialmente forte na França
devido ao amplo suporte que o direito de ingerência tem no país, e porque as forças hutus que promoviam o
genocídio tinham sido treinadas e armadas pelo governo francês, trazendo um elemento de responsabilidade
(RODRIGUES, 2000, p. 137-138). Ao que parece, a França pretendia intervir em Ruanda com ou sem a
autorização do Conselho de Segurança. Os planos de intervenção francesa foram trazidos para a apreciação do
Conselho em 20 de junho, e em 21 de junho, apenas um dia após isso, numa velocidade incrível, a França já
havia começado a mover suas tropas de suas bases africanas na República da África Central e no Chade em
direção a Goma (no Zaire, localizado na fronteira com Ruanda), antes da autorização do Conselho em 22 de
junho. Embora formalmente tivesse motivação “humanitária” e seu caráter “imparcial” serem altamente
questionáveis. Durante a travessia, os refugiados teriam sido usados como um escudo humano entre os genocidas
e a FPR. Ao declarar a região próxima à fronteira com o Zaire uma zona livre e ao ameaçar responder
militarmente a qualquer incursão a essa zona, a Operação Turquesa criou um porto seguro para os líderes do
genocídio, e isso possibilitou que parte dos mentores e organizadores do genocídio saísse intacta de Ruanda,
podendo se estabelecer no Zaire, e lá se reorganizar politicamente (RODRIGUES, 2000, p. 126-128). Nesse
sentido, Dallaire narra uma situação em que foi visitar, Augustin Bizimungu (membro das Forças
Governamentais Ruandesas –RGF, algo como as nossas Forças Armadas-, um dos líderes do genocídio, e que,
em abril de 1994, no ápice do genocídio, assumiu a posição de Chefe de Pessoal da RGF em substituição ao
moderado que ocupava esse cargo, Déogritias Nsabimana) em Goma (Zaire), na zona da Operação Turquesa,
onde este estava morando, a pedido do próprio Bizimungu. Jean-Claude Lauforcade, o comandante da Operação
Turquesa, ao comunicar a Dallaire que Bizimungu queria vê-lo, pediu-lhe que fosse discreto, em relação ao
encontro com o ex-líder genocida, pois não seria bom para o governo francês que o mundo soubesse que um dos
grandes planejadores do genocídio estava em um campo militar seu (DALLAIRE, 2005, p. 473). Quando foi
visitar Bizimungu, descobriu que o ex-líder genocida estava morando num confortável bangalô numa montanha,
com vista para o Lago Kivu. Lá, Dallaire encontrou Bizimungu rodeado por alguns altos oficiais das Forças
Armadas do Zaire, outros da França, e seu oficial de inteligência. Tanto Bizimungu quanto seu oficial de
inteligência, de acordo com Dallaire, usavam uniformes da RGF que estavam num estado impecável, botas
muito bem lustradas, e pareciam relaxados, e começou a proferir a teoria da conspiração que era compartilhada
pelos extremistas hutus, segundo a qual os hutus queriam formar um Estado ruandês tutsi ( DALLAIRE, 2005, p.
p. 508).
58
2.3. O debate sobre a situação em Ruanda no Conselho de Segurança da ONU:
genocídio?
Na segunda semana de matanças, Dallaire pediu a Phillippe Gaillard, que chefiava a
missão do CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha) em Ruanda, um livro de Direito
Internacional. Ele folheou as Convenções de Genebra e a Convenção sobre Genocídio à
procura de definições relevantes. Ao perceber que o genocídio implicava a tentativa de se
eliminar um grupo específico, e que era exatamente aquilo que via em Ruanda, não teve
dúvidas: estava diante de um genocídio (POWER, 2007, p. 358).
Dallaire utilizou o termo pela primeira vez em um relatório sobre a situação em
Ruanda durante a última semana de abril. Depois disso, a Reuters citou esse termo em uma
matéria sobre Ruanda em 30 de abril, e Dallaire seguiu utilizando o termo em comunicações
confidenciais da ONU em maio. Mas, mesmo depois que começou a utilizar o termo, deixou
batalhas semânticas para os outros:
“Eu não me atolei no debate sobre o termo genocídio [...]. Tivemos prova suficiente de que foi o
genocídio, e para aqueles que não concordam, tivemos crimes contra a humanidade em uma escala
maciça. O que mais precisávamos para saber o que tínhamos que fazer?” (Apud POWER, 2007, p.
358. Tradução da autora).
A administração Clinton se opunha ao uso do termo para qualificar o que ocorria em
Ruanda. Em 28 de abril de 1994, Christine Shelley, a porta-voz do Departamento de Estado,
começou uma “dança” de dois meses para evitar o uso do termo “genocídio”. O temor ao uso
desse termo seria ele causar demandas para uma intervenção que a administração Clinton não
queria realizar (POWER, 2007, p. 359). Isso porque a aplicação da Convenção sobre
Genocídio ainda era algo novo naquele momento, os Estados Unidos ficavam preocupados
com as demandas por intervenção que poderiam ser geradas por dois dispositivos da
Convenção (STRAUS, 2005, p. 129). Um deles é o art. 5º, que afirma que
“As Partes Contratantes obrigam-se a adotar, de acordo com as suas Constituições respectivas, as
medidas legislativas necessárias para assegurar a aplicação das disposições da presente Convenção e,
especialmente, a prever sanções penais eficazes que recaiam sobre as pessoas culpadas de genocídio
ou de qualquer dos atos enumerados no artigo 3.º [condutas equiparadas ao genocídio]” (BRASIL,
1952).
O outro é o art. 8º, segundo o qual
“As Partes Contratantes podem recorrer aos órgãos competentes da Organização das Nações Unidas
para que estes, de acordo com a Carta das Nações Unidas, tomem as medidas que julguem apropriadas
59
para a prevenção e repressão dos atos de genocídio ou dos outros actos enumerados no artigo 3.º”
(BRASIL, 1952).
Christine Shelley afirmava, na época do conflito em Ruanda: “Agora, certamente, há
algumas ações que ocorreram que certamente cabem nesses elementos [do crime de
genocídio] (Apud POWER, 2007, p. 360. Tradução da autora). Segundo Shelley:
“As intenções, as intenções precisas, e se estes [ataques] são apenas dirigidos episodicamente ou com
a intenção de realmente eliminar os grupos no todo ou em parte, esta é uma questão mais complicada
de resolver. [...] Eu não sou capaz de olhar para todos estes critérios neste momento e dizer sim ou
não. É algo que requer um estudo muito cuidadoso antes de podermos dar uma resposta definitiva”
(Apud POWER, 2007, p. 360. Tradução da autora).
Quando a porta-voz do Departamento de Estado da Casa Branca foi perguntada se a
descoberta de que o que de fato ocorria em Ruanda era genocídio iria obrigar os EUA a
agirem de forma a interrompê-lo, Shelley novamente se remeteu aos termos da Convenção
sobre Genocídio, afirmando que esse tratado não implicava numa obrigação de intervir (Apud
POWER, 2007, p. 360. Tradução da autora).
Então, o Conselho de Segurança, ao discutir a situação em Ruanda, começou a ficar
dividido quanto ao uso do termo para descrever o que estava se passando no país. Segundo
William Schabas, desde as primeiras semanas do genocídio, o CS utilizou linguagem que
indicava foco em responsabilidade penal individual. O Conselho de Segurança da ONU
inicialmente condenou a violência, pedindo aos envolvidos que respeitassem o Direito
Internacional Humanitário (Resolução 912 de 21 de abril de 1994) (SCHABAS, 2006, p. 25).
O embaixador tcheco Karel Kovanda chegou a reclamar que 80% do tempo do CS
estava sendo gasto em como retirar os peacekeepers da UNAMIR, e os outros 20% em pedir
um cessar-fogo para acabar com a guerra civil, o que ele comparava a pedir a Hitler um
cessar-fogo com os judeus. O CS não gastou energia com o genocídio. Quando o presidente
do CS elaborou um discurso que qualificava o que ocorria em Ruanda como genocídio, os
EUA (Estados Unidos) se opuseram. Power cita o original desse discurso não aprovado:
“O Conselho de Segurança reafirma que a matança sistemática de membros de qualquer grupo étnico,
com a intenção de destruií-lo, no todo ou em parte, constitui genocídio. [...] O Conselho lembra ainda
que um importante conjunto de normas de Direito Internacional que lida com os perpetradores do
genocídio existe” (Apud POWER, 2007, p. 361. Tradução da autora).
Power cita um fax da missão dos EUA junto à ONU em Nova York enviado ao
Departamento de Estado, ao qual teve acesso. Nesse faz um conselheiro político da missão
escreveu:
60
“Os acontecimentos em Ruanda parecem claramente satisfazer a definição de genocídio do Artigo II
da Convenção de 1948 para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. No entanto, se o
Conselho reconhecer isso, pode ser forçado a tomar "as medidas [no âmbito da Carta da ONU] que
julguem apropriadas para a prevenção e repressão dos atos de genocídio", conforme previsto no artigo
VIII [da Convenção]” (Apud POWER, 2007, p. 361. Tradução da autora).
Devido à insistência dos EUA e do Reino Unido, o termo genocídio foi excluído do
discurso do presidente do CS. O discurso final afirma que:
“O Conselho de Segurança condena todas essas violações do direito internacional humanitário em
Ruanda, em especial aqueles perpetrados contra a população civil, e lembra que pessoas que tenham
instigado ou participado de tais atos são individualmente responsáveis. Neste contexto, o Conselho de
Segurança lembra que o assassinato de membros de um grupo étnico com a intenção de destruí-lo, no
todo ou em parte, constitui um crime punível sob o Direito Internacional” (Apud POWER, 2007, p.
361. Tradução da autora).
Assim, nessa ocasião, o Presidente do CS declarou que pessoas que participassem ou
instigassem tais atos fossem responsabilizados internacionalmente, utilizando novamente a
linguagem do art. II da Convenção do Genocídio, mas sem mencionar esse termo.
Em Resolução que data de 17 de maio de 1994 (Resolução 918), o CS evoca, no
preâmbulo, a linguagem Convenção do Genocídio, mas sem utilizar o termo genocídio
(SCHABAS, 2006, p. 25-26).
Até que, em junho de 1994, depois de muito debate, o Conselho de Segurança
finalmente reconheceu, através da aprovação de sua Resolução 925, que o que ocorreu em
Ruanda foi genocídio, afirmando, em seu preâmbulo: “[...] Notando com grave preocupação
os relatórios que indicam que atos de genocídio ocorreram em Ruanda, e lembrando, nesse
contexto, que o genocídio constitui um crime punível sob o Direito Internacional […]”
(SCHABAS, 2000, p. 461; SCHABAS, 2006, p. 161; UNITED NATIONS, 1994 a, p. 1.
Tradução da autora).
Em julho de 1994, através da Resolução 935, o CS, após sua lenta atuação lenta
quando o genocídio estava acontecendo, votou no sentido de estabelecer uma comissão de
especialistas, similar em termos de estrutura e mandato à que fora criada para investigar ações
a serem tomadas quando do conflito na ex-Iugoslávia (VAN DEN HERIK, 2005, p. 26), com
o mandato de investigar os fatos ocorridos em Ruanda naquele ano, incluindo possíveis atos
de genocídio (note-se que o CS ainda não havia determinado, conforme solicita o art. 39 da
Carta da ONU, se os fatos realmente constituíam genocídio, para então tomar as medidas
61
cabíveis34). Pediu-se também que o SG submetesse o relatório da Comissão de Especialistas
ao CS quatro meses depois.
A Comissão de Especialistas considerou que, no contexto ruandês, um tribunal de
caráter internacional teria mais chances de promover um julgamento justo, e estipulou que os
crimes preocupam a sociedade internacional como um todo, devido a sua extrema gravidade.
Na visão da Comissão, um Tribunal não apenas traria justiça no caso sob investigação, como
também evitaria que novas atrocidades daquele nível voltariam a acontecer (VAN DEN
HERIK, 2005, p. 41).
Em seu relatório, a Comissão sugeriu que a competência o do TPII fosse expandida
para implementar sua recomendação. Porém, fazer isso poderia resultar numa corte
internacional penal com jurisdição universal. Isso não está dentro das competências do CS,
pois ele só pode atuar em violações específicas da paz e segurança internacional. Por isso, o
CS resolver criar um tribunal ad hoc separado do TPII, porém compartilhando com este a
Câmara de Apelações e o Procurador, para fins econômicos e de preservar a unidade legal
(VAN DEN HERIK, 2005, p. 41-42).
Assim, em novembro de 1994, o CS estabeleceu, invocando o Capítulo VII da Carta
das Nações Unidas, o TPIR, através da Resolução 955, e aprovou o Estatuto do Tribunal.
2.4. Violência sexual durante o genocídio ruandês
Esse item busca estudar características gerais da violência sexual perpetrada contra
as mulheres durante o genocídio ruandês de 1994. É bom mencionar que nem todas essas
características se encontram no julgado do caso Akayesu. Esse item serve, como este capítulo
como um todo, para contextualizar o caso.
Quando o surto de violência começou em abril de 1994, o estupro de mulheres tutsis
foi amplamente praticado. As atrocidades cometidas contra as mulheres tutsis refletem,
segundo Adam Jones, as relações de gênero em Ruanda no período anterior a 1994. Essas
mulheres eram descritas, tanto por hutus quanto por tutsis, como mulheres “de elite”, como
34
“O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de
agressão, e fará recomendações ou decidirá que medidas deverão ser tomadas de acordo com os Artigos 41 e 42,
a fim de manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS, 1945, p. 25).
62
sendo mais bonitas, mais altas, e com nível educacional mais alto. Ao mesmo tempo,
mulheres tutsis eram descritas como mulheres que usariam sua suposta vantagem sexual para
“subverter a nação” (HUMAN RIGHTS WATCH, 1996; JONES, 2002, p. 78).
Um exemplo dessa propaganda étnica é retrata em Power. Segundo a autora, em
dezembro de 1990 o jornal impresso Hutu Kangura (termo em kinirwanda –um dialeto
ruandês- que significa, em português, “acorde”) publicou os “Dez mandamentos para um
Hutu”, que articulavam as regras que os radicais esperavam ver impostas. Dentre esses
mandamentos, nos interessam os dois primeiros, transcritos pela autora:
“1. Todo Hutu deve saber que uma mulher Tutsi, seja quem ela for, trabalha para os interesses de seu
grupo étnico. Como resultado, devemos considerar como traidor qualquer Hutu que:
•
Casa-se com uma mulher Tutsi;
•
É amigo de uma mulher Tutsi;
•
Emprega uma mulher Tutsi como sua secretária ou cocumbina.
2.
Todo Hutu deve saber que nossas filhas Hutus são mais confiáveis e conscientes de seus papéis
como mulheres, esposas e mães de família. Elas não são bonitas, boas secretárias e mais honestas?”
(Apud POWER, 2007, p. 338. Tradução da autora).
Essa vulnerabilidade das mulheres tutsis à violência genocida foi aumentada quando
os meios de comunicação dominados por extremistas hutus ruandeses começaram a afirmar
haver uma ligação entre seus charmes e desejos com os das tropas estrangeiras, especialmente
belgas, que estavam servindo em Ruanda sob os termos dos Acordos de Arusha. Algumas
charges publicadas em jornais extremistas hutus, por exemplo, regularmente retratavam
mulheres tutsis abraçando Dallaire, com o título “General Dallaire e suas tropas caíram na
armadilha das mulheres fatais”, ou servindo sexualmente soldados belgas que estavam
servindo na UNAMIR (JONES, 2002, p. 78).35
Durante o genocídio, o estupro em massa foi utilizado como estratégia deliberada da
Interahamwe36 para eliminar o grupo étnico tutsi. Além do trauma da violação sexual em si, as
conseqüências para as mulheres que sofreram esses estupros incluíram altos níveis de
contágio por HIV, num contexto de acesso limitado ou de nenhum acesso a medicamentos
35
Em relação a esses episódios específicos das charges, há alguns relatos apresentados por Dallaire. Afirma o excomandante da UNAMIR que alguns membros do contingente belga estavam se relacionando com mulheres
tutsis, e que isso estava sendo extremamente prejudicial à UNAMIR, dado que a imprensa extremista hutu
aproveitou esse fato tanto para fazer propaganda de ódio das mulheres tutsis, quanto para tornar parte da
população ruandesa hostil à Missão, alegando que ela seria a favor dos tutsis. Mesmo com uma série de sanções
disciplinares impostas tanto por Dallaire quanto por Luc Marchal (comandante do setor de Kigali da UNAMIR, e
também do contingente belga da Missão), alguns soldados continuavam tendo condutas tidas como inadequadas
nesse sentido e, muitas vezes, acompanhadas de comportamentos racistas e colonialistas, de forma que alguns
soldados belgas tiveram que ser repatriados em função desse tipo de atitude (DALLAIRE, 2005, p. 183-185).
36
A Interahamwe é uma milícia extremista hutu.
63
anti-retrovirais. Quando a violência genocida terminou, a maioria dos homens havia morrido,
ou se refugiado em países vizinhos, deixando uma população composta por 70% de mulheres.
(VALJI, 2007, p. 6).
Dallaire relata ter visto cenas de mulheres mortas, numa posição que claramente
indicava que antes elas haviam sido estupradas:
“Vimos muitas faces da morte durante o genocídio, desde a inocência de bebês até o espanto das
pessoas idosas, de faces desafiadoras de combatentes ao estado resignado de freiras. Eu vi tantos
rostos e tento até agora me lembrar de cada um. No início eu parecia desenvolver uma tela entre mim
e aquelas imagens e sons, que me permita ficar focado no trabalho a ser feito. Por muito tempo eu
apaguei completamente da minha mente as máscaras da morte das meninas e mulheres estupradas e
mutiladas sexualmente, como se o que tinha sido feito para elas era a última coisa que iria me tirar do
sério.
Mas se você olhasse, poderia ver as provas, mesmo nos esqueletos esbranquiçados. As pernas
dobradas e separadas. Uma garrafa quebrada, um ramo tosco, mesmo uma faca entre elas. Onde os
corpos estavam frescos, vimos o que parecia ter sido agrupado dentro e próximo das mulheres e
meninas mortas. Havia sempre muito sangue. Alguns cadáveres do sexo masculino tiveram seus
órgãos genitais cortados, mas muitas mulheres e meninas tiveram seus seios decepados e os seus
órgãos genitais grosseiramente cortados. Elas morreram em uma posição de total vulnerabilidade, de
costas, com suas pernas dobradas e joelhos afastados. Foi a expressão de seus rostos mortos que me
impressionavam mais, um friso de dor em choque e humilhação. Por muitos anos, depois que voltei
para casa, eu expulsei as memórias daqueles rostos de minha mente, mas eles voltaram, de forma
muito clara” (DALLAIRE, 2005, p. 430. Tradução da autora).
Em um relatório dirigido ao Conselho Econômico e Social das Nações Unidas sobre
a situação dos direitos humanos em Ruanda, René Degni-Ségui, o então Relator Especial da
Comissão de Direitos Humanos37 da ONU, traz algumas informações sobre os estupros
cometidos em Ruanda no período do genocídio. Segundo o relatório, não há estatísticas exatas
quanto aos estupros, mas somente estimativas. O Ministério Ruandês da Família e da Proteção
da Mulher registrou a ocorrência de 15.700 casos de mulheres estupradas durante o genocídio.
Mas, por uma série de razões, como a vergonha e a humilhação social que essas vítimas
podem sofrer ao admitirem publicamente terem sido estupradas, e o fato de muitas das vítimas
de estupro nesse período terem sido mortas em seguida (como apresentado no relato de
Dallaire sobre corpos de mulheres que apresentavam evidências de terem sido estupradas logo
antes de serem mortas), Degni-Ségui acredita que esses dados subestimam o número de
estupros que realmente ocorreu no período do genocídio (UNITED NATIONS, 1996). Outro
fator que dificulta na coleta de dados em relação aos estupros ocorridos no período do
genocídio ruandês é o medo sentido por essas mulheres, pois muitos dos perpetradores ainda
estão vivos, morando entre elas, e às vezes até são vizinhos dessas mulheres (HUMAN
RIGHTS WATCH, 1996). De acordo com Lisa Sharlach, em algumas áreas de Ruanda, quase
37
A Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas foi extinta em 2006 e sucedida pelo Conselho de
Direitos Humanos, que possui uma estrutura diferente da antecessora, mas as mesmas atribuições.
64
todas as mulheres tutsis que sobreviveram ao episódio de violência em 1994 foram estupradas
(SHARLACH, 2009, p. 187).
Comparando-se os estupros genocidas ocorridos em Ruanda com os ocorridos na exIugoslávia, ao contrário destes, não há evidência de que os hutus planejavam engravidar as
mulheres tutsis, de forma a perpetuar sua etnia (embora tais gravidezes tenham sido uma
óbvia conseqüência dos estupros).38 Porém, diferentemente do que ocorreu na ex-Iugoslávia,
em Ruanda estupros foram praticados como forma de transmissão do HIV/AIDS. Há relatos
de que alguns estupradores hutus disseram às suas vítimas que eram portadores de HIV, e que
as estavam estuprando para que elas morressem lentamente de AIDS. Como conseqüência,
muitas mulheres que sobreviveram aos estupros se tornaram soropositivas, e, dada a escassez
de acesso a medicamentos anti-retrovirais em Ruanda, várias delas morreram de AIDS. Mas,
apesar das supracitadas diferenças entre os estupros genocidas em Ruanda e na antiga
Iugoslávia, eles compartilham uma característica: a intenção dos perpetradores era humilhar
as suas vítimas através do estupro devido à sua identidade étnica. Em ambos os casos, o
estupro funcionou como meio de destruir relações inter-pessoais numa determinada
comunidade (ALISON, 2007, p. 87; BIJLEVELD, MORSSINKHOF, SMEULERS, 2009, p.
213; SHARLACH, 2009, p. 187; WEITSMAN, 2008, p. 577).
Miranda Alison também pontua outra característica em comum entre os estupros
coletivos cometidos em Ruanda e na antiga Iugoslávia: o fato de o estupro cometido por
gangues (cuja nomenclatura corriqueira em inglês, “gang-rape”, se refere ao estupro de uma
ou mais mulheres de forma reiterada por uma coletividade de homens, e que, em ambos os
conflitos, respondia por uma proporção considerável dos estupros) assumir uma função de
unir os homens dos grupos que perpetravam esse crime. Estabelecia-se, através do estupro
cometido por gangues, um senso de lealdade entre homens, que fortalecia ainda mais o
sentimento de pertencimento a um determinado grupo étnico (ALISON, 2007, p. 77).
O tratamento que as mulheres tutsis que sobreviveram ao estupro têm em seu país
não é dos melhores: a percepção popular é que essas mulheres se prostituíram para salvar suas
próprias vidas. Essas mulheres acabaram se tornando párias dentro da sociedade ruandesa
38
A gravidez forçada, consistindo no estupro e em impedir que a mulher estuprada aborte o filho fruto desse
estupro, foi amplamente praticada no genocídio ocorrido na década de 1990 na antiga Iugoslávia como forma de
limpeza étnica, dado que a etnia é transmitida pela linhagem paterna. A sociedade ruandesa também é uma
sociedade patrilinear, e a transmissão da linhagem hutu para os filhos de mulheres tutsis decorrente de estupros
genocidas em Ruanda acabou sendo conseqüência do genocídio de 1994 (FRANKE, 2006, p. 819;
CAMPANARO, 2001; HAFFAJEE, 2006, p 205; LINDROOS, 2003, p. 16-17).
65
pelo fato de terem sido estupradas, e algumas relatam preferir terem morrido durante o
genocídio a ter sobrevivido aos estupros e sofrerem conseqüente humilhação social
(SHARLACH, 2009, p. 188; JONES, 2002, p. 82).
Brenda Fitzpatrick cita um dado do Rwandan National Population Office, que estima
que entre duas e cinco mil gravidezes em Ruanda no ano de 1994 resultaram de estupros
(FITZPATRICK, 2003, p. 77-78). Em decorrência disso, há relatos de muitos abandonos e
infanticídios de crianças nascidas dos estupros ocorridos no genocídio ruandês. Essas crianças
são chamadas comumente em Ruanda como enfants mauvais souvenirs (crianças que trazem
más lembranças). (FITZPATRICK, 2003, p. 77-78; WEITSMAN, 2008, p. 577). Em alguns
casos, a esterilização forçada foi praticada, de forma a impedir mulheres tutsis de jamais se
reproduzirem novamente (DRUMBL, 2000, p. 23).
Apesar de haver esses relatos sobre violência sexual durante o conflito ruandês de
1994, o Conselho de Segurança das Nações Unidas não deu o mesmo tratamento a esse
problema que o dado à violência sexual ocorrida durante o conflito na ex-Iugoslávia. Um
exemplo disso é o fato de a Resolução 808 de 1993 do Conselho de Segurança, que cria o
TPII, mencionar o tratamento recebido pelas mulheres muçulmanas na ex-Iugoslávia 39, e a
Resolução 955 de 1994 do mesmo órgão das Nações Unidas, que cria o TPIR, não mencionar
as violações sexuais ocorridas cometidas contra as mulheres tutsis em Ruanda no ano de 1994
(UNITED NATIONS, 1993 b, p. 2; UNITED NATIONS, 1994 b). Isso porque Ruanda, ao
contrário da ex-Iugoslávia, que liga a Rússia à Europa Ocidental, não é uma região
estratégica. E ainda é pobre em recursos naturais. O reconhecimento da violência sexual
sofrida pelas mulheres tutsis em Ruanda na guerra civil de 1994 somente veio em 1998,
quando a Câmara de Julgamento do TPIR proferiu a condenação de Jean-Paul Akayesu.
39
O trecho da Resolução 808 do Conselho de Segurança que faz menção a essa questão é uma cláusula
preambular, que afirma o seguinte: “[...] Notando também com grave preocupação o ‘relatório da missão
investigativa da Comunidade Européia em relação ao tratamento de mulheres muçulmanas na antiga Iugoslávia’
[…]” (UNITED NATIONS, 1993 b, p. 2. Tradução da autora).
66
III- O ESTUPRO ENQUANTO GENOCÍDIO NO CASO
AKAYESU
Após analisar o que é o crime de genocídio (Capítulo I), os documentos
internacionais sobre direitos das mulheres dos nos 1990, o genocídio ocorrido em Ruanda em
1994, e a violência sexual perpetrada contra as mulheres tutsis nesse genocídio (Capítulo II),
chega o momento de debruçar-se sobre o caso Akayesu.
Começa-se esse capítulo apresentando a decisão da Câmara de Julgamentos do TPIR
de considerar que o estupro constitui genocídio, e como ela se deu. Aí, a abordagem é,
basicamente, descritiva, embora haja uma análise do conceito de estupro adotado pelo TPIR
no caso.
Posteriormente a essa descrição do caso Akayesu, analisa-se o papel dos atores
envolvidos no caso, de forma a se verificar indícios de um possível impacto das estratégias
ator específico, a sociedade civil global, na construção do estupro enquanto genocídio a partir
do caso Akayesu.
Em seguida, no item 3.3 (“Debates feministas sobre o caso Akayesu”), são
apresentados os debates que existem entre as várias autoras feministas (e também os autores
feministas) sobre o caso, especialmente sobre a decisão de que o estupro constitui genocídio,
e é apresentando, com base nesses posicionamentos feministas e em discussões teóricas em
relação ao feminismo no Direito, um posicionamento da própria autora desta dissertação,
indicando, inclusive, com base no caso, a necessidade de se repensar determinados conceitos
muito comuns nas abordagens feministas, que não conseguem explicar o caso Akayesu e o
estupro enquanto genocídio.
3.1.
O caso Akayesu
67
O julgamento de Akayesu começou em janeiro de 1997, diante da Câmara de
Julgamentos do TPIR, composta pelo juiz Laïty Kama (Senegal), que presidia a Câmara, o
juiz Lennart Aspegren (Suécia) e a juíza Navanethem Pillay (África do Sul).
Jean Paul Akayesu foi bourgmestre de Taba commune de abril de 1993 até junho de
1994. Como bourgmestre, ele era responsável por exercer funções executivas e manter a
ordem pública em Taba commune, sujeito à autoridade do prefeito. Ele tinha controle
exclusivo da polícia da commune, assim como os gendarmes40 postos à disposição da
commune. Ele também era responsável por executar as leis e regulamentos, assim como
administrar a justiça, também sujeito somente à autoridade do prefeito41.
Inicialmente, o Indictment42 não continha qualquer acusação relativa a crimes
sexuais. Entretanto, em uma sessão do julgamento, uma testemunha (chamada no julgado de
“testemunha J”) falou do estupro de sua filha cometido membros da Interahamwe:
“Alegações de violência sexual vieram à atenção da Câmara pela primeira vez através dos relatos da
testemunha J, uma mulher Tutsi que disse que sua filha de seis anos de idade foi estuprada por três
membros da Interahamwe quando eles foram matar o pai dela. Em juízo, a testemunha J também
afirmou que ela ouviu falar que meninas estavam sendo estupradas no bureau commune”
(INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 169. Tradução da autora).
Essa testemunha afirmou também que nunca foi indagada por funcionários do
Escritório do Procurador43 sobre isso. Depois, outra testemunha (chamada, no julgado, de
“testemunha H”) afirmou que ela mesma havia sido estuprada, e que teria visto ou sabia de
outros estupros; afirmou, também, que Jean-Paul Akayesu estava presente quando os estupros
estavam ocorrendo, conforme o trecho a seguir:
40
A gendarmerie é a polícia militar das regiões rurais ruandesas. Trata-se do maior componente de forças
militares em Ruanda. Os gendarmes são os policiais membros dessa corporação.
41
Quando ocorreu o genocídio em Ruanda, em 1994, o país era dividido em 11 municipalidades, cada uma
governada por um prefeito. Essas municipalidades eram divididas em varias communes, que estavam sob a
autoridade do bourgmestre. O bourgmestre de cada commune era indicado pelo Presidente da República, depois
de recomendação do Ministro do Interior.
42
O Indictment é a peça inicial acusatória nas cortes penais internacionais.
43
O Procurador do TPIR, conforme o art. 15, parágrafo 1º do Estatuto do Tribunal, concentra em torno de si
duas funções: a de investigação e a de acusação. Ele deve, conforme o art. 17, parágrafo 1º, do Estatuto, começar
as investigações ex officio ou a partir de informações obtidas por qualquer fonte, como Estados, órgãos das
Nações Unidas, ou ONGs. Formalmente, não há direito de denuncia às vítimas, nem de qualquer ente, apesar de
informações poderem ser encaminhadas por qualquer ao Procurador, que decide ou não se iniciará investigações,
e contra quem. Nesse sentido, o Procurador possui um poder discricionário. Esse poder do procurador no TPIR é
tão amplo que ele não precisa se submeter a escrutínio judicial ao conduzir as investigações (apesar de ter de
cumprir com uma série de obrigações relativas aos direitos dos suspeitos). Esse controle jurisdicional da conduta
do Procurador durante as investigações só é feito quando essas chegam ao fim, quando ele submete o Indictment
a um juiz revisor, que pode admiti-la ou não. Durante os julgamentos, quando assume a função acusatória, o
ônus da Prova recai sobre o Procurador. Porém, caso o Procurador encontre provas que inocentem o suspeito (ou
acusado, se juiz já tiver admitido o Indictment), deve entregá-las à defesa (CASSESE, 2008, p. 395-422).
68
Subseqüentemente, a testemunha H, uma mulher tutsi, afirmou em juízo que ela mesma foi estuprada
num campo, e que, fora da área do bureau communal, ela viu, pessoalmente, outras mulheres tutsis
serem estupradas, e teve conhecimento de pelo menos três casos de estupro por membros da
Interahamwe. A testemunha H afirmou inicialmente que o acusado, assim como outros oficiais de
polícia da commune, estava presente quando os estupros estavam acontecendo, e não fez nada para
preveni-los. Porém, em exame pela Câmara para saber se Akayesu estava ciente de que os estupros
estavam acontecendo, ela respondeu que não sabia, mas que aconteceu no bureau communal, e que
ele sabia que as mulheres estavam lá. A Testemunha H afirmou que alguns dos estupros ocorreram
numa área de bosque próxima, mas que alguns deles ocorreram no Próprio bureau communal. Em
exame pela Câmara, ela disse que o acusado estava presente durante um dos estupros, mas que não
podia confirmar se ele viu o que estava acontecendo. Embora a testemunha H expressou a opinião de
que a Interahamwe agiu com a impunidade e que deveria ter sido impedida pela polícia da commune e
o acusado de cometer abusos, ela declarou que não foram dadas ordens para a Interahamwe
relativamente ao estupro. Ela também declarou que ela mesma foi espancada, mas não estuprada no
bureau communal (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 169170.Tradução da autora).
A defesa não fez nenhuma pergunta sobre os estupros, mas a juíza Pillay, e depois
Aspergan, o fizeram, pedindo que as testemunhas falassem mais sobre os estupros. Não
obstante grande parte da literatura feminista sobre o caso Akayesu dar os créditos à juíza
Pillay pelo fato de serem inseridas acusações relativas a crimes sexuais no caso Akayesu,
Beth Van Schaack, analisando as transcrições dessa sessão, afirma que houve ampla
participação de todos os juízes nesse processo (SCHAACK, 2008, p. 7). A própria juíza Pillay
afirma que todos os juízes fizeram perguntas às testemunhas sobre esses estupros (PILLAY,
2008 a, p. 666).
Quando foi encerrada a declaração da testemunha H (a que afirmou que havia sido
estuprada), a sessão foi adiada para maio de 1997. A partir desse momento, assuntos relativos
a gênero no Direito Penal Internacional passaram a estar na agenda de muitas organizações de
direitos humanos. Relatos sobre estupro em Ruanda durante o genocídio começaram a
aparecer na imprensa (PILLAY, 2008 a, p. 9).
Em junho de 1997, a acusação pediu uma audiência perante a Câmara de
Julgamentos, e fez uma moção oral, pedindo autorização para emendar o Indictment, tendo
em vista os testemunhos que afirmaram que houve violência sexual durante o genocídio.
(PILLAY, 2008 a, p. 9-10). De acordo com as transcrições, citadas, mais uma vez, por
Schaack:
“Eu acho que é seguro dizer que a questão da violência sexual é de grande importância para o
Gabinete do Procurador e levamos essa questão muito, muito seriamente. Nós sentimos que a
violência sexual sendo usada como arma ou como uma ferramenta é deplorável e não pode ser aceita.
Neste caso, é evidente durante todo o depoimento que havia indícios de que houve atos de violência
sexual em Taba. Isso surgiu não apenas no depoimento de testemunha J ou da ou testemunha H, mas
eu tenho que dizer que também surgiu em investigações prévias, mas as informações que
recebemos ... antes, em nossa opinião, não eram o suficiente para vincular o acusado aos atos de
violência sexual. Continuamos a investigar. ... Depois de receber [as declarações das testemunhas
69
adicionais], nós, como o Gabinete do Procurador, sentimos que estamos na obrigação de vir aqui hoje
e fazer este pedido” (Apud SHAACK, 2008, p. 10. Tradução da autora).
Quanto à ausência de alegações sobre violência sexual na primeira versão do
Indictment, se pronunciou a acusação:
“Talvez porque a vergonha que às vezes acompanha esses atos tenha dificultado que as mulheres
testemunhassem ou declarassem o que ocorreu com elas ou também, estou pronta para admitir, porque
em alguns momentos não somos tão sensíveis quanto deveríamos ser em torno do assunto” (Apud
SHAACK, 2008, p. 10. Tradução da autora).
A acusação negou qualquer influência da sociedade civil global na decisão de pedir à
Corte licença para emendar o Indictment. Ela pediu aos juízes permissão para emendar a peça
para acusar Akayesu dos crimes contra a humanidade de estupro e de outros atos desumanos,
e o crime de guerra de “atentados à dignidade da pessoa, nomeadamente os tratamentos
humilhantes e degradantes, a violação, a coação à prostituição e todo o atentado ao pudor”,
constante no artigo 3º comum às quatro Convenções de Genebra e o no art. 4º, parágrafo 2º,
alínea “e” do Protocolo Adicional II à Convenção de Genebra sobre a Proteção dos Civis em
Tempo de Guerra. A defensa de Akayesu se opôs a esse pedido feito pela acusação. Depois de
deliberar por dez minutos, a Câmara de Julgamentos concedeu à acusação licença para
emendar o Indictment, e o julgamento foi adiado para outubro de 1997 (Apud SHAACK,
2008, p. 10).
O Escritório do Procurador também adicionou três acusações, cujos fatos aos quais
se referem estão nos parágrafos 12A y 12B da nova versão do Indictment:
“12A. Entre 7 de abril e o final de julho de 1994, centenas de civis (doravante denominados “civis
deslocados”) procuraram refúgio no bureau communal. A maioria desses deslocados civis eram tutsis.
Enquanto procuravam refúgio no bureau communal, mulheres deslocadas civis foram freqüentemente
levadas por milicianos locais armadas e pela polícia da commune, e sujeitas a violência sexual, e/ou
espancadas dentro, ou em lugares próximos, do bureau communal. Os deslocados civis também eram
regularmente assassinados dentro, ou próximo, do bureau communal. Muitas mulheres foram forçadas
a agüentar múltiplos atos de violência sexual, que às vezes eram cometidas por mais de um
estuprador. Os atos de violência sexual eram geralmente acompanhadas por ameaças explícitas de
morte ou dano físico. As mulheres deslocadas civis viviam constantemente com medo, e sua saúde
física mental deteriorou-se como resultado de violência sexual, espancamentos e mortes.
12B. Jean Paul AKAYESU sabia que os atos de violência, espancamentos e assassinatos estavam
sendo cometidos, e às vezes estava presente durante esses fatos. Jean Paul AKAYESU facilitou os
atos de violência sexual, os espancamentos e assassinatos ao permitir que eles ocorressem dentro, ou
nas proximidades, do bureau communal. Em virtude de sua presença durante os atos de violência
sexual, espancamentos, assassinatos, e em virtude de haver falhado em prevenir a violência sexual,
espancamentos e assassinatos, Jean Paul AKAYESU encorajou essas atividades”
(INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 11. Tradução da autora).
As acusações incluídas nessa nova versão, relativas aos atos narrados acima, foram
as de estupro enquanto crimes contra a humanidade, e o crime de guerra “de atentados à
dignidade da pessoa, nomeadamente os tratamentos humilhantes e degradantes, a violação, a
coação à prostituição e todo o atentado ao pudor”. Ainda que não se tenham modificado as
acusações relativas a genocídio, a violência sexual foi incluída na nova versão, porque o
70
Escritório do Procurador, no Indictment tanto na versão original quanto a modificada, pediu
que Akayesu fosse condenado pelos atos descritos nos parágrafos 12 a 23, nos quais foram
incluídos os parágrafos 12A e 12B, depois das modificações.
A partir da emenda do Indictment, seguiu-se uma torrente de testemunhas que
falaram dos estupros ocorridos em Taba, e muitas ligando Akayesu a esses fatos. Algumas
falavam terem sofrido ou terem presenciado violência sexual através da penetração vaginal
com o pênis. Outras falam de um episódio ocorrido com uma jovem mulher tutsi, de nome
Chantal, que era ginasta, e foi obrigada a executar exercícios de ginasta nua (ocasião em que
Akayesu estaria presente, e teria assistido esse episódio, rindo). Há também um relato,
apresentado por uma mulher hutu, que perdeu o marido tutsi, em que, após um ataque
perpetrado contra um casal tutsi, em que o marido morreu e a esposa ficou agonizando, alguns
membros da Interahamwe forçavam um pedaço de madeira dentro das partes íntimas da
mulher. Há inúmeros relatos de estupros e violência sexual perpetrados por gangues. Uma das
testemunhas (chamada pelo Tribunal de “testemunha JJ”) relatou (e isso não foi relatado
somente por ela, mas por outras testemunhas) que as mulheres tutsis que chegavam ao bureau
commune o faziam procurando refúgio, e esperavam que as autoridades fossem defendê-las,
mas foram surpreendidas com o contrário, sendo, ela e outras vítimas, estupradas de forma
reiterada por gangues. Essa testemunha também disse que, enquanto ela e outras mulheres
estavam se encaminhando ao centro cultural do bureau commune, Akayesu as viu se dirigindo
para lá. Na segunda vez que estava sendo levada ao centro cultural para ser estuprada, a
testemunha JJ afirmou ter visto Akayesu na entrada do recinto, dizendo em voz alta aos
membros da Interahamwe que estavam praticando os estupros: "Never ask me again what a
Tutsi woman tastes like" e "Tomorrow they will be killed”, falando de uma forma a encorajar
o que estava acontecendo ali, com aquelas mulheres tutsis. Outra testemunha (chamada pelo
TPIR de “testemunha OO”), uma jovem mulher tutsi, narrou que, pouco após ela e outras
pessoas que procuravam refúgio no bureau commune lá se instalaram, chegaram membros da
Interahamwe e começaram a matar pessoas com facões. Quando ela e outras meninas
tentaram fugir, foram impedidas por esses membros da Interahamwe, que se dirigiram a
Akayesu e a ele disseram que levariam essas jovens mulheres para que com elas se
relacionassem sexualmente, ao que Akayesu respondeu permitindo que fossem levadas. Aí,
ela foi separada das demais meninas e levada a um campo por um membro da Interahamwe
chamado Antoine. Antoine mandou que ela sentasse e, quando ela se recusou, ele a empurrou
ao chão e a penetrou com o pênis em sua vagina. A testemunha OO afirma que, quando ela
71
começou a chorar, Antoine a disse que se ela continuasse a chorar ou gritasse, outros viriam
para matá-la (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 171180).
Porém, o episódio de violência sexual em massa ocorrido em Taba tem conotações
étnicas, conforme ficou patente nos relatos da testemunha chamada pelo Tribunal de PP, uma
mulher tutsi casada com um hutu. A testemunha PP afirmou ter visto vários estupros sendo
cometidos contra mulheres tutsis em Taba, mas relatou que ela mesma não foi estuprada, pelo
fato de os perpetradores não estarem certos em relação à sua identidade étnica
(INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 180).
Ao valorar as provas submetidas em relação a violência sexual, a Câmara de
Julgamento considerou que Akayesu sabia, ou ao menos deveria saber, das violações sexuais
cometidas no bureau commune, e que as mulheres tutsis que lá procuravam refúgio estavam
sendo retiradas do bureau commune para sofrerem violência sexual. Além disso, considerou
que não foi apresentada nenhuma prova de que Akayesu não tinha como prevenir os atos de
violência sexual, ou punir seus perpetradores. Muito pelo contrário, haviam sido submetidas
provas de que Akayesu ordenou, instigou, ajudou e incentivou a prática da violência sexual
em Taba (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 186).
Em 2 de setembro de 1998,
a Câmara de Julgamento emitiu sentença
condenatória em relação a Akayesu. Essa foi a primeira vez na qual se adotou uma
definição de estupro no Direito Internacional. O Tribunal Penal Internacional para Ruanda
o definiu como
“[…] uma invasão física de natureza sexual, cometidas sobre uma pessoa sob circunstâncias
coercitivas. O Tribunal considera violência sexual, que inclui estupro, como qualquer ato de natureza
sexual que é cometido sobre uma pessoa, sob circunstâncias que são coercitivas. A violência sexual
não é limitada apenas a uma invasão física do corpo humano, e pode incluir atos que não envolvem
penetração, e sequer contato físico” (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA,
1998, p. 275. Tradução da autora).
Para Kelly D. Askin, pode-se diferenciar, nessa definição, o estupro da violência
sexual. Segundo a autora, a definição de estupro estaria contida no trecho “[…] uma invasão
física de natureza sexual, cometidas sobre uma pessoa sob circunstâncias coercitivas”
(INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 275; ASKIN, 2003,
p. 319). Já a violência sexual seria definida na frase
“O Tribunal considera violência sexual, que inclui estupro, como qualquer ato de natureza sexual que
é cometido sobre uma pessoa, sob circunstâncias que são coercitivas. A violência sexual não é
limitada apenas a uma invasão física do corpo humano, e pode incluir atos que não envolvem
72
penetração, e sequer contato físico” (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA,
1998, p. 275; ASKIN, 2003, p. 319).
O Tribunal não está preocupado com uma interação de partes do corpo. O que
interessa ao TPIR é se, socialmente, aquele ato é considerado sexual, e se há dano à vítima.
Além disso, como bem analisam muitas autoras feministas, não há que se discutir se houve
consenso ou não, porque as circunstancias eram coercitivas. Por isso o TPIR ao definir
estupro no caso Akayesu, utiliza o termo coerção (social, contextual), E não consenso
(individual). Além disso, a coerção não se dá somente pela força física. Ameaças,
intimidações, opressões físicas e outros meios de coerção podem invocar o medo ou
desespero por parte da vítima (ROUX, MUHIRE, 2009, p. 73).
Quanto à acusação de genocídio por estupros e violências sexuais cometidas por seus
subordinados, pelos quais seria responsável internacionalmente por ser o superior hierárquico,
como dispõe o artigo 6º, parágrafo 3º de seu Estatuto 44, o Tribunal Penal Internacional para
Ruanda decidiu que eles constituem genocídio quando cometidos com a intenção de destruir,
no todo ou em parte, um grupo em particular. Conforme a sentença:
“Em relação, particularmente, a […] estupro e violência sexual, a Câmara deseja sublinhar o fato de
que, em sua opinião, esses atos constituem genocídio da mesma forma que qualquer outro ato, desde
que sejam cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo em particular,
alvejado enquanto tal. De fato, o estupro e a violência sexual certamente constituem danos corporais e
mentais graves às vítimas e são, ainda, segundo a Câmara, uma das piores formas de infligir danos à
vítima [...]. À luz de todas as evidências submetidas diante de si, a Câmara está convencida de que os
atos de estupro e violência sexual descritos acima foram cometidos somente contra as mulheres tutsis,
muitas das quais foram submetidas à pior humilhação pública, mutiladas, e estupradas várias vezes,
freqüentemente em público, nas instalações do Bureau Communal ou em outros locais públicos, e
muitas vezes por mais de um estuprador. Esses estupros resultaram na destruição física e psicológica
das mulheres tutsi, de suas famílias e de suas comunidades. A violência sexual era parte integrante do
processo de destruição, especificamente dirigido às mulheres tutsis e, especificamente, contribuindo
para a sua destruição e à destruição do grupo tutsi como um todo.
732. O estupro de mulheres tutsi era sistemático […]. Como parte da campanha de propaganda
voltada para mobilizar os hutus contra os tutsis, as mulheres tutsis foram apresentadas como objetos
sexuais. De fato, à Câmara foi dito, por exemplo, que antes de ser estuprada e morta, Alexia, que era a
esposa do Professor, Ntereye, e suas duas sobrinhas, foram forçados pela Interahamwe a se despirem,
e foram ordenadas a correr e a fazer exercícios "a fim de mostrar as coxas das mulheres tutsi". O
membro da Interahamwe que estuprou Alexia disse, quando ele jogou no chão e ficou em cima dela,
"vamos agora como é a vagina de uma mulher tutsi". Como mencionando acima, Akayesu, falando
44
“O fato de que qualquer dos atos referidos nos artigos 2 a 4 do presente Estatuto ser cometido por um
subordinado não exime seu superior da responsabilidade penal, se ele ou ela sabia ou tinha razões para saber que
o subordinado estava para cometer tais atos, ou os havia cometido e o superior deixou de tomar as medidas
necessárias e razoáveis para prevenir tais atos ou para punir os seus autores” (UNITED NATIONS, 1994 b, p. 6.
Tradução da autora). Trata-se de uma exceção à regra de que o elemento subjetivo do tipo penal é o dolo direito
(AKHAVAN, 2005, p. 993). Segundo Luciana Boiteux, a responsabilidade do superior hierárquico constitui-se
numa modalidade de crime omissivo impróprio com dolo eventual, em que a esse superior é atribuído o papel de
agente garantidor. Impõe-se assim, aos superiores, uma obrigação legal de evitar ao resultado, sendo-lhes
exigidas as atividades visando impedir o resultado (desde que essa ação seja possível) (BOITEUX, 2007, p.
105).
73
com esse membro da Interahamwe que estava cometendo os estupros, disse-lhe: "Nunca me pergunte
de novo como é a vagina de uma mulher tutsi". Esta representação sexualizada da identidade étnica
ilustra graficamente que as mulheres tutsis foram sujeitas a violência sexual porque elas eram tutsis. A
violência sexual foi um passo no processo de destruição do grupo tutsi - destruição do espírito, da
vontade de viver, e da própria vida” (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA,
1998, p. 288. Tradução da autora).
Assim, o TPIR considerou que o estupro e outras formas de violência sexual
constituem genocídio com fulcro no art. 2º, parágrafo 2º, alínea b do Estatuto, ou seja, que a
violência sexual constitui um ato cometido com a intenção de causar graves danos físicos e
mentais aos membros do grupo. Além disso, havia um componente étnico, pois os estupros
eram cometidos somente contra mulheres Tutsi, e de forma sistemática.
Prossegue a Câmara de Julgamento, no parágrafo 733 do julgado, afirmando que
“[…] a Câmara considera que na maioria dos casos, os estupros de mulheres Tutsi em Taba foram
acompanhados da intenção de matar essas mulheres. Muitos estupros foram perpetrados perto de valas
comuns, para onde as mulheres eram levadas para serem mortas” (INTERNATIONAL CRIMINAL
TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 290. Tradução da autora).
Complementa a Câmara de Julgamento, nesse trecho o seu entendimento, no sentido
de que entende não apenas que estiveram presentes os elementos objetivos necessários para
caracterizar o delito de genocídio, mas também o elemento subjetivo de exterminar o grupo,
dado que geralmente, quando as mulheres tutsis eram estupradas, havia a intenção de matá-las
logo em seguida.
Akayesu, ao final do julgamento pelo juízo de primeiro grau, foi condenado por
genocídio, incitação ao genocídio, (não somente em razão dos estupros, mas por atos
ocorridos em Taba, que fogem ao escopo desta dissertação), e crimes contra a humanidade de
estupro, assassinato, extermínio, tortura, e outros atos desumanos. Mas foi absolvido por
cumplicidade ao genocídio, e por todas as acusações que lhes foram imputadas em relação ao
art. 3º comum a todas as Convenções de Genebra sobre Direito Humanitário, e o art. 4º,
parágrafo 2º, alínea e do Protocolo Adicional II à Convenção IV de Genebra (atentados à
dignidade da pessoa, nomeadamente tratamentos humilhantes e degradantes, a violação, a
coação à prostituição, e todo o atentado ao pudor), por entender-se que esteve ausente o
elemento subjetivo para que seja caracterizado o crime de guerra (conhecimento do autor do
delito de que estava dentro de um contexto de guerra).
Essa decisão da Câmara de Julgamento do TPIR de considerar que o estupro e outras
formas de violência sexual constituem genocídio, embora não estejam entre as condutas
listadas como constituindo esse delito na Convenção de 1948, teve conseqüências para o
74
Tribunal Penal Internacional (TPI). Não obstante o Estatuto de Roma, que criou o TPI, e que é
a principal fonte de direito para essa Corte, não mencionar que o estupro constitui genocídio,
os Elementos dos Crimes45, documento aprovado em uma Assembléia dos Estados-Partes do
Estatuto de Roma, o faz, ao considerar que um dos elementos do crime de genocídio mediante
lesão grave à integridade física ou mental (artigo 6º, alínea b, do Estatuto de Roma) a
Assembléia dos Estados-Partes adicionou uma nota de rodapé a esse elemento, na qual
explica que “Essa conduta pode incluir atos de tortura, violações, violência sexual ou
tratamentos desumanos ou degradantes, mas não necessariamente está limitada a esses atos”
(CORTE PENAL INTERNACIONAL, 2002, p. 117. Tradução da autora).
3.2. O impacto das estratégias da sociedade civil global
Este item se dedica a estudar o impacto das estratégias da sociedade civil global
sobre os demais atores envolvidos no caso Akayesu, mas particularmente da decisão do TPIR
de considerar que o estupro constitui genocídio.
Num primeiro momento, verificamos as estratégias utilizadas pela sociedade civil
global no caso. Posteriormente, analisamos a atuação do Escritório do Procurador e, em
seguida, a atuação dos próprios juízes que proferiram a sentença de primeiro grau.
Novamente, utilizamos como fonte primária o julgado de primeiro grau do caso
Akayesu na análise da atuação de todos os atores. No estudo da participação da sociedade
civil global, são utilizados também relatórios e pareceres em forma de amicus curiae feitos
por ONGs em relação ao julgamento de estupros enquanto pelo Tribunal Penal Internacional
para Ruanda de forma geral e, mais particularmente, ao caso em tela. Utilizam-se também
alguns artigos escritos tanto por feministas que militaram para que os estupros fossem
julgados pelo Tribunal quanto pelos próprios juízes, pelos Procuradores e pelos funcionários
do Escritório do Procurador que tiveram contato com o caso, e que foram publicados em
periódicos especializados, de forma a se buscar indícios sobre possíveis impactos das
estratégias da sociedade civil na atuação dos demais atores (procuradores e juízes).
45
O nome desse documento em inglês é Elements of the Crimes.
75
3.2.1. A sociedade civil global
Esse subitem se dedica a analisar de que forma a sociedade civil global influenciou
na decisão do TPIR de considerar que o estupro constitui genocídio. Num primeiro momento
desse item, procura-se verificar de que forma esse ator influenciou na decisão do Tribunal
Penal Internacional para Ruanda, sendo analisado o relatório Shattered lives: Sexual Violence
during the Rwandan Genocide and its Aftermath, produzido pela ONG Human Rights Watch,
e logo na seqüência, o lobby feminista no caso Akayesu.
3.2.1.1. O relatório Shattered Lives da Human Rights Watch
Começou-se a discutir questões de gênero nas decisões do Tribunal Penal
Internacional para Ruanda a partir da publicação, em 24 de setembro de 1996, do relatório
Shattered lives: Sexual Violence during the Rwandan Genocide and its Aftermath pela ONG
Human Rights Watch, com base em pesquisas e entrevistas conduzidas por membros da ONG
e consultores em Ruanda entre março e abril do ano de publicação (HUMAN RIGHTS
WATCH, 1996).
No relatório, já em sua introdução, é afirmado que, embora o número exato de
estupros provavelmente nunca será conhecido, eles foram praticados de forma ampla contra
mulheres tutsi no período do genocídio. Porém, denuncia o fato de que, até o momento, o
TPIR não tinha feito muito pela sua punição. Segundo o relatório:
“Apesar de o estupro constituir um crime de guerra e um crime contra a humanidade, pouco tem sido
feito até agora para efetivamente incluir violência baseada em gênero no trabalho do Tribunal. A
metodologia e os procedimentos investigativos usados até agora pelo Tribunal não tem sido
conduzidas de forma a coletar testemunhos relativos a estupros no contexto ruandês, e os Indictments
do Tribunal até essa data não incluem acusações de estupro. Em julho de 1996, o Tribunal estabeleceu
um Comitê de Agressão Sexual para coordenar a investigação de violência baseada em gênero. Na
época da redação deste relatório, o Comitê tinha acabado de começar a funcionar, com o intuito de
superar obstáculos estratégicos, jurídicos e metodológicos relativos às investigações. Estamos
76
esperançosos que essas iniciativas levarão à implementação de procedimentos mais apropriados e
efetivos para coletar evidências de tais crimes. Se o Tribunal não toma passos imediatos para lidar
com esses problemas e conduzir investigações efetivas para coletar testemunhas de vítimas de estupro,
quando esses casos forem levados aos juízes do Tribunal será muito tarde” (HUMAN RIGHTS
WATCH, 1996. Tradução da autora).
Note-se que, ao falar do estupro como crime internacional, o relatório da Human
Rights Watch, nesse parágrafo, não faz menção alguma ao genocídio, mas tão somente aos
crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Isso não significa que não havia uma
demanda da ONG por julgamento desses crimes, mas apenas que não havia o reconhecimento,
naquele momento, de que estupros podiam constituir crimes de genocídio. A ONG queria sim
que estupros constituíssem genocídio, pois, entre as várias recomendações que são feitas ao
Tribunal Penal Internacional para Ruanda nesse relatório, está a seguinte:
“O Tribunal Internacional deve investigar e levar a juízo de forma plena a violência sexual. Estupro,
escravidão sexual e mutilação sexual devem ser reconhecidos e levados a julgamento, quando
apropriado, como crimes contra a humanidade, genocídio, ou crimes de guerra” (HUMAN RIGHTS
WATCH, 1996. Grifo nosso. Tradução da autora).
Argumenta-se também nesse relatório que o principal elemento no caso do genocídio
não é objetivo, ou seja, as condutas cometidas, mas o elemento subjetivo (a intenção de
destruir um determinado grupo nacional, étnico ou religioso através de determinada conduta).
Por isso, é afirmado nesse relatório que estupro e outras formas de violência sexual podem
constituir atos proibidos pela Convenção de 1948 sobre Genocídio, desde que reste
comprovado que houve esse elemento subjetivo, podendo constituir ofensas alíneas do art. 2º,
§ 1º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, que é o dispositivo desse
Estatuto que trata sobre genocídio. Conforme o relatório:
“[…] crimes como estupro, mutilação sexual e escravidão sexual devem ser levados a juízo sob a
alínea (b) do art. 2º. Como os depoimentos neste relatório demonstram, danos físicos e mentais
extremamente sérios foram infligidos através de violência sexual direcionada às mulheres.
[…] sob certas circunstâncias, a violência sexual pode ser levada a juízo sob as alíneas (c) ou (d) do
artigo 2º. Violência sexual pode infligir, no grupo condições de vida calculadas para causar a
destruição física do grupo, e pode prevenir nascimentos dentro do grupo. […] mulheres sujeitas a
violência sexual podem ficar fisicamente impossibilitadas de reproduzir, ou elas podem ter negado
esse papel reprodutivo pela sua sociedade, dada a natureza os ataques que elas sofreram” (HUMAN
RIGHTS WATCH, 1996. Tradução da autora).
A intenção genocida por trás da violência sexual no genocídio em Ruanda, de acordo
com o relatório da Human Rights Watch, emerge do fato de que o padrão de violência sexual
cometida nesse período, documentada pela ONG através de entrevistas feitas com as
sobreviventes, é a de que esses atos não eram acessórios às matanças, nem eram estupros
77
oportunísticos. Tratava-se de atos praticados com a intenção de erradicar os tutsis. Ainda
segundo o relatório, os estupradores esperavam com suas ações, que a violência física e
psicológica praticada contra cada mulher tutsi ajudasse a destruir esse grupo (HUMAN
RIGHTS WATCH, 1996).
No parágrafo a seguir, o relatório da Human Rights Watch faz uma analogia que é
repetida no julgado de primeira instância em relação ao estupro e a tortura:
“A intenção genocida também fica evidenciada na natureza da violência sexual em questão. Violência
sexual, como outras formas de tortura, pode preceder ou ser um meio de execução extrajudicial. Em
Ruanda, atos de mutilação sexual e outras formas de violência que ameaçam a vida humana foram
infligidos com o intuito de causar a eventual morte de suas vítimas. Mulheres sofreram estupros por
gangues, estupradas com objetos, e foram sujeitas a uma brutalidade ultrajante, que envolvia mutilar
os órgãos sexuais das mulheres. Alguns desses ataques deixaram mulheres feridas fisicamente de
forma que podem nunca mais serem capazes de ter filhos. Muitas vítimas de agressão sexual
morreram no curso dos ataques, ou por conseqüência deles. Violência sexual em tais casos era uma
parte direta das mortes. Em outros casos documentados pela Human Rights Watch/FIDH, as mulheres
sobreviveram à violência sexual porque seus agressores a deixaram para morrer, acreditando que elas
tinham sido mortalmente feridas” (HUMAN RIGHTS WATCH, 1996. Tradução da autora).
Dentre as várias recomendações feitas pela Human Rights Watch, está a de que, além
de maior preocupação com questões de gênero nos futuros Indictments, está a de que os já
apresentados perante o TPIR fossem emendados para que elas fossem incluídas (HUMAN
RIGHTS WATCH, 1996), o que acabou efetivamente sendo feito posteriormente, sendo o
caso Akayesu um marco nesse sentido.
3.2.1.2. O parecer amicus curiae de uma coalizão feminista
Conforme afirmado anteriormente, até que algumas testemunhas afirmassem em
juízo terem sido estupradas ou terem testemunhado outros estupros, não houve ação concreta
do Procurador no sentido de incluir atos de estupro. Após esses testemunhos é que houve ação
do Procurador para emendar o Indictment para incluir atos de estupro.
Afirma Rhonda Copelon que isso só ocorreu devido a pressões exercidas pelo
movimento feminista, pois havia resistência do Escritório do Procurador para emendar o
78
Indictment de forma a incluir os estupros, motivo pelo qual várias organizações feministas
submeteram, conjuntamente, um amicus curiae46. Segundo a autora:
“[…] afigurou-se, a partir de informações confidenciais obtidas de dentro do Escritório do Procurador,
que os promotores do caso Akayesu não estavam planejando alterar o Indictment para incluir
acusações de estupro ou violência sexual. Isto apesar do fato de que uma coalizão, iniciada pela
Human Rights Watch e, mais tarde, consolidada pelo Centro Internacional de Direitos Humanos e
Desenvolvimento Democrático ("ICHRDD") em Montreal como o Projeto de Monitoramento sobre o
Crimes relativos a gênero no Tribunal Penal Internacional para Ruanda, tinha enviado várias cartas
críticas a Louise Arbour, então a Promotora-Chefe com a responsabilidade tanto pelo TPII quanto
pelo TPIR, pedindo mudanças institucionais que facilitassem as investigações de crimes de gênero.
Assim, parecia haver pouca escolha além de submeter um amicus curiae, trazendo esta situação
discriminatória [...] para o tribunal a invocar o Ministério Público, ou passo em si mesmo, para
garantir a inclusão de estupro em acusações de genocídio, bem como crimes de guerra e crimes contra
a humanidade. Assim, o IWHR, o Working Group on Engendering the Rwanda Tribunal, organizado
por um grupo dedicado de recém-formados da Faculdade de Direito da Universidade de Toronto
Faculdade, e o Centro para Direitos Constitucionais em Nova York, prepararam e apresentaram um
amicus curiae. O projeto ICHRDD circulou esse documento para que fosse assinado por grupos de
mulheres em Ruanda, em outros lugares na África, e em todo o mundo. Mais tarde naquele ano, as
organizações ruandeses das mulheres organizaram a primeira marcha das mulheres por justiça”.
(COPELON, 2000. Tradução da autora).
O amicus curiae, em seus parágrafos 2 e 38, faz menção aos mandatos estabelecidos
na Declaração e Plataforma de Ação Viena em relação aos direitos das mulheres, já citados
nos Capítulo II desta dissertação, argumentando-se, no parágrafo 38, que a falha do
Procurador em emendar o Indictment para incluir acusações relativas a violência sexual
acarretaria uma falha em cumprir com esses mandatos estabelecidos em Viena.
O amicus curiae também pedia que a Câmara de Julgamento exercesse sua
autoridade supervisora, sob as normas do Estatuto de do Rules of Procedure and Evidence 47
do Tribunal, de forma a pedir ao Procurador que emendasse o Indictment contra Jean-Paul
Akayesu, de forma a incluir acusações relativas a estupro e outras formas graves de violência
sexual que estejam sob a competência do TPIR. O amicus curiae também solicitava que a
Câmara de Julgamento do Tribunal avaliasse suplementar o registro de tais acusações ou
46
A submissão de pareceres amicus curiae é regulamentada pela Regra 74 do Rules of Procedure and Evidence
do Tribunal Penal Internacional para Ruanda. De acordo com a Regra 74: “A Câmara pode, se considerar
desejável para uma determinação apropriada do caso, convidar ou permitir que qualquer Estado, organização ou
pessoa compareça diante de si observações sobre qualquer assunto especificado pela Câmara”
(INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1996. Tradução da autora).
47
Rules of Procedure and Evidence (“Regras de Procedimento e Prova”), é o código de processo penal (só que,
seguindo o modelo norte-americano, aprovado pelos próprios juízes) do Tribunal Penal Internacional para
Ruanda. Há várias versões do Rules of Procedure and Evidence, cada uma com uma data de aprovação diferente,
dadas as reformas feitas pelos juízes em relação ao documento. Como estamos nos referindo ao um parecer
amicus curiae de maio de 1997, utilizaremos a versão do Rules of Procedure and Evidence válida nesse período,
ou seja, a adotada em 5 de julho de 1996 (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA,
1996).
79
chamando suas próprias testemunhas, consoante a Regra 9848 do Rules of Procedure and
Evidence, ou recomendando ao Procurador que suplementasse sua investigação em relação ao
caso Akayesu (COALITION FOR WOMEN’S HUMAN RIGHTS IN CONFLICT
SITUATIONS, 1997).
O parecer amicus curiae mostrou preocupação com o fato de, embora houvesse
depoimentos registrados nos autos do processo, e documentação (sendo, aí, mencionado o
supracitado relatório Shattered Lives da Human Rights Watch) indicando a existência de
outras provas de que a violência sexual foi parte de uma ampla campanha de violência,
constituindo genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra sob os arts. 2º, 3º, e 4º
(que tratam, respectivamente, sobre genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de
guerra) do Estatuto do TPIR, que Akayesu, embora não tivesse cometido ele próprio, seria
responsável criminalmente sob os art. 6º, parágrafos 1º 49 e 3º50 do mesmo documento
internacional (COALITION FOR WOMEN’S HUMAN RIGHTS IN CONFLICT
SITUATIONS, 1997).
O parecer segue afirmando que o estupro e outras formas de violência sexual,
incluindo o assassinato de mulheres grávidas, podem constituir genocídio se os requisitos do
art. 2º do Estatuto do TPIR forem preenchidos. Ele também afirma que, em Ruanda, esses
atos foram partes integrais de uma campanha genocida, inspirado pelo ódio às mulheres tutsis,
planejada de forma a resultar na morte ou destruição física, mental, ou das perspectivas
sociais e da capacidade dessas mulheres de participarem na produção e reprodução de uma
comunidade
(COALITION
FOR
WOMEN’S
HUMAN
RIGHTS
IN
CONFLICT
SITUATIONS, 1997).
O amicus curiae prossegue afirmando que o Procurador já havia afirmado, ao longo
do processo, que o estupro de mulheres Tutsis era parte de uma campanha genocida, mas sem
48
Estabelece a Regra 98 do Rules of Procedure and Evidence: “A Câmara de Julgamento pode, de ofício, ordenar
que ambas as partes para produzir provas adicionais. Pode também convocar testemunhas e ordenar o seu
comparecimento” (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1996. Tradução da autora).
49
“Um pessoa que tenha planejado, instigado, ordenado, cometido ou, de qualquer outra forma, tenha auxiliado e
incentivado no planejamento, preparação ou execução de um dos crimes previstos nos artigos 2º a 4º do presente
Estatuto será considerada individualmente responsável pelo crime” (UNITED NATIONS, 1994 b, p. 5. Tradução
da autora).
50
“O fato de que qualquer dos atos referidos nos artigos 2º a 4º do presente Estatuto ser cometido por um
subordinado não exime seu superior da responsabilidade penal, se ele ou ela sabia ou tinha razões para saber que
o subordinado estava para cometer tais atos, ou os havia cometido e o superior deixou de tomar as medidas
necessárias e razoáveis para prevenir tais atos ou para punir os seus autores” (UNITED NATIONS, 1994 b, p. 6.
Tradução da autora).
80
ligá-la a Akayesu (COALITION FOR WOMEN’S HUMAN RIGHTS IN CONFLICT
SITUATIONS, 1997).
O parecer cita o fato de haver o depoimento das testemunhas J e H, prestado em
juízo, e que esses depoimentos deveriam servir de base para que o Procurador aprofundasse
investigações sobre violência sexual perpetradas por subordinados de Akayesu, pelo qual este
poderia ser responsabilizado internacionalmente, com base no art. 6º, parágrafos 1º e 3º do
Estatuto do Tribunal Penal Internacional para Ruanda (COALITION FOR WOMEN’S
HUMAN RIGHTS IN CONFLICT SITUATIONS, 1997).
À luz dos argumentos expostos pela coalizão de ONGs que emitiu o parecer, é
solicitado, nesse documento, que seja emendado o Indictment do caso Akayesu, de forma a
incluir o estupro de mulheres tutsis em Taba sob o art. 3º, alíneas (f), (g) e (h) 51, e sob o art.
4º, alíneas (a), (e) e (h)
52
do Estatuto do TPIR; pede-se também, no parecer amicus curiae,
que se inclua no Indictment a mutilação da genitália e dos seios das mulheres tutsis com base
nos arts. 3º, alínea (f), e 4º, alíneas (a) e (e) do Estatuto do Tribunal; e que, pelo fato de
mulheres Tutsis terem sido forçadas a desfilar nuas pelas ruas de Taba, fossem incluídas
acusações de violações do art. 4º, alíneas (a), (e), (h) e (i)
53
do Estatuto (COALITION FOR
WOMEN’S HUMAN RIGHTS IN CONFLICT SITUATIONS, 1997).
Além disso, o parecer solicitou que o Procurador considerasse emendar o Indictment
de forma a acusar Akayesu de genocídio, com base no art. 2º, parágrafo 2º alíneas, (b), (c) e
(d)54 do Estatuto do TPIR. Como base argumentativa para isso, o parecer cita uma
51
“O Tribunal Internacional para Ruanda tem competência para julgar as pessoas responsáveis pelos seguintes
crimes, quando cometidos como parte de um ataque generalizado e sistemático contra uma população civil por
razões nacionais, políticas, étnicas, raciais ou religiosas: [...] f) Tortura; g) Violação, h) Perseguição por motivos
políticos, raciais e religiosos […]” (UNITED NATIONS, 1994 b, p. 4. Tradução da autora)
52
“O Tribunal Internacional para o Ruanda tem competência para julgar as pessoas que cometeram ou ordenaram
o cometimento de graves violações do artigo 3º comum às Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949
para a Proteção das Vítimas de Guerra, e do Segundo Protocolo Adicional, de 08 de junho de 1977. Essas
violações incluem, mas não são limitadas a: a) Violência contra a vida, a saúde física e mental ou o bem-estar
das pessoas, em especial o homicídio, bem como tratamentos cruéis, tais como a tortura, mutilação ou qualquer
forma de punição corporal; [...] e) Ofensas à dignidade pessoal, especialmente os tratamentos humilhantes e
degradantes, violação, prostituição forçada e qualquer forma de atentado ao pudor; [...] h) Ameaça de cometer
qualquer dos atos acima”. (UNITED NATIONS, 1994 b, p. 5. Tradução da autora).
53
Embora o parecer fale em alínea (i) do art. 4º, o art. 4º do Estatuto do TPIR só vai até a alínea (h). Pode se
tratar de erro. É provável que talvez o parecer se referisse ao art. 3º do Estatuto, cujas alíneas (f), (g) e (h) já
foram transcritas na nota de rodapé nº 50 desta dissertação, e cuja alínea (i) afirma que constituem crimes contra
a humanidade outros atos inumanos não especificados nas alíneas anteriores do mesmo artigo (UNITED
NATIONS, 1994 b, p. 5).
54
“Genocídio significa qualquer dos seguintes atos, quando cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em
parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como: […] b) Causar graves danos físicos ou mentais
em membros do grupo; b) Deliberadamente infringir, no grupo, condições de vida calculadas para causar a sua
destruição física no todo ou em parte; c) Impor medidas para prevenir nascimentos dentro do grupo […]”
81
recomendação do Comitê de Especialistas convocado pelo Conselho de Segurança para
verificar a possível ocorrência de genocídio em Ruanda no ano de 1994. Esse comitê
recomendou que o Procurador explorasse totalmente a relação entre uma política de estupro
sistemático sob um comando hierárquico tanto como crime contra a humanidade quanto como
crime de genocídio (COALITION FOR WOMEN’S HUMAN RIGHTS IN CONFLICT
SITUATIONS, 1997).
Segundo Copelon, aproximadamente duas semanas após a submissão do amicus
curiae, o Procurador anunciou que emendaria o Indictment, motivado, como dito
anteriormente, pelo depoimento da testemunha H, e não pelo amicus curiae, considerada pelo
Escritório do Procurador como apenas um fator, mas não determinante. A autora, que atuou
como consultora na elaboração do parecer, afirma que teve uma informação interna do
Escritório do Procurador, considerada por ela como confiável, que realmente foram as
testemunhas que ocasionaram uma investigação mais aprofundada ligando os estupros
cometidos em Taba a Akayesu (COPELON, 2000).
Porém, independentemente do fato de, na verdade, o depoimento dessas testemunhas
terem feito com que o Escritório do Procurador aprofundasse as investigações para verificar a
existência de estupros que constituíssem qualquer dos tipos penais abarcados pelo Estatuto de
Tribunal Penal Internacional para Ruanda, Copelon considera que esse amicus curiae serviu
para tornar visível o quanto os estupros sofridos pelas mulheres tutsi durante o genocídio em
Ruanda foram renegados pelo Escritório do Procurador. Além disso, ela afirma que,
curiosamente, a Câmara só tomou conhecimento desse amicus curiae através de um fax,
respondendo que o documento foi recebido, e que depois funcionários do Tribunal afirmaram
não tê-lo recebido. Inclusive, de acordo com Copelon, esse amicus curiae não consta nos
autos do processo (COPELON, 2000). A referência é feita somente de forma implícita no
julgamento, no seguinte trecho:
“A Câmara entende que a emenda do Indictment resultou de testemunho espontâneo de violência
sexual pelas testemunhas J e H durante o curso do julgamento, seguida de investigação do Escritório
do Procurador, e não por pressão pública. Porém, a Câmara nota o interesse nesse assunto
demonstrado pelas organizações não-governamentais, o que ela considera como um indicativo de
preocupação pública em relação à exclusão histórica do estupro e outras formas de violência sexual da
investigação e persecução de crimes de guerra” (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR
RWANDA, 1998, p. 170-171. Tradução da autora).
(UNITED NATIONS, 1994 b, p. 5. Tradução da autora).
82
3.2.2.
O papel do Escritório do Procurador
O caso Akayesu foi iniciado quando o Escritório do Procurador ainda se encontrava
sob a chefia de Richard J. Goldstone, que foi nomeado para o cargo de Procurador Geral do
TPII e do TPIR em agosto de 1994, sendo o primeiro procurador em exercício dos dois
Tribunais55. Ele afirmou que logo que chegou à Haia, encontrou o Escritório inundado de
cartas e petições não somente de organizações de direitos humanos e feministas, mas também
de homens e mulheres do Canadá, Estados Unidos e Europa Ocidental –escritas
individualmente, e não de um modelo pronto-, implorando que fosse dado tratamento
adequado a crimes relacionados a gênero. Goldstone também enfatiza que na época já era
claro que estupros sistemáticos nas guerras da Iugoslávia e da Ruanda não poderiam ser fatos
isolados (GOLDSTONE, 2002, p. 280).56
Como conseqüência daquelas cartas, Richard J. Goldstone nomeou a jurista norteamericana Patricia Viseur Sellers para exercer um cargo que ele passou a conceder de grande
importância no Escritório do Procurador, o de Assessora para Persecução de Crimes
Relacionados a Gênero do Escritório do Procurador. Na época, Goldstone e Viseur Sellers
concordaram entre si que deveriam lidar com questões de gênero não somente na investigação
dos crimes e nos Indictments, mas também dentro do Escritório do Procurador
(GOLDSTONE, 2002, p. 280).
Isso porque, segundo Goldstone, havia muito preconceito de gênero por parte dos
próprios funcionários do Escritório do Procurador, principalmente entre os membros da
equipe de investigação. De forma geral, os investigadores eram membros da polícia ou das
forças armadas que largaram esse trabalho e foram trabalhar no Escritório de Procurador, e a
esmagadora maioria era de homens. A cultura de trabalho deles não era nada sensível a
questões de gênero. Goldstone afirma que, se não houvesse sensibilização dos funcionários
55
O primeiro Procurador a ser aprovado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas foi o venezuelano
Ramón Escovar-Salom, através da Resolução 877 de 1993 do CS. Porém, Escovar-Salom foi nomeado Ministro
do Interior de seu país em 1994, motivo pelo qual nem assumiu o Escritório do Procurador. Em virtude disso,
através da Resolução 936 de 1994, o Conselho de Segurança nomeou Goldstone como o Procurador do Tribunal
Penal Internacional para a ex-Iugoslávia e, após a criação do TPIR, ele teve de ser o Procurador de ambos os
Tribunais.
56
Como no momento em que Goldstone assumiu o Escritório do Procurador não havia ainda o Tribunal Penal
Internacional para Ruanda, é bem provável que essas tais cartas se referissem aos estupros ocorridos na antiga
Iugoslávia, não só por isso, mas também pelo fato de eles terem ganho uma visibilidade midiática muito maior
do que os ocorridos em Ruanda.
83
dentro do Escritório, provavelmente não se obteria muitos resultados em crimes relacionados
a gênero no Tribunal (GOLDSTONE, 2002, p. 280).
Além disso, os Indictments iniciais foram redigidos e propostos às Câmaras sob
grande pressão para obter recursos da ONU, organização ao qual o TPII e o TPIR estavam
subordinados financeiramente. Goldstone afirma que logo após ter chegado à Haia, lhe foi
dito que não haveria espaço para os Tribunais no orçamento da ONU para o ano seguinte
(1995), se não fosse proposto nenhum Indictment até lá, em novembro de 1994 (apenas três
meses após a chegada de Goldstone). Assim, o Escritório do Procurador, que na época só
contava com 23 membros (pouquíssimos deles eram investigadores) e cujos recursos eram
escassos, teve que se dedicar completamente cumprir essa tarefa num prazo tão curto. A
forma como isso foi feita é descrita pelo autor no trecho a seguir:
Nós tínhamos o relatório da Comissão de Peritos (o Comitê Bassiouni) 57 e o utilizamos para encontrar
pessoas contra as quais poderia haver indícios suficientes para justificar as acusações (GOLDSTONE,
2002, p. 281. Tradução da autora).
Porém, o Comitê Bassiouni só tinha competência para investigar violações de Direito
Humanitário cometidos na guerra na ex-Iugoslávia. Portanto, o primeiro Indictment foi para o
TPII, ficando os dirigidos ao TPIR para outro momento, devido à falta de provas (já que a
única disponível naquele momento era o relatório produzido Comitê Bassiouni, relativo à
antiga Iugoslávia).
Os problemas de recursos financeiros e humanos eram muito mais exacerbados no
TPIR que no TPII, segundo o ex-Procurador. Se já era difícil persuadir pessoas qualificadas a
irem trabalhar para o TPII na Haia, era ainda mais para trabalhar em Kigali, a capital de
Ruanda, para realizar investigações, logo após um genocídio. A situação de segurança em
Ruanda na época era tão grave que a ONU não permitia que parentes e cônjuges
acompanhassem os funcionários do Tribunal (GOLDSTONE, 2001, p. 123).
Patricia Viseur Sellers, em artigo publicado no American University Journal of
Gender, Social Policy & the Law, afirma que, em outubro de 1994, quando foi nomeada,
Goldstone lhe deu a tarefa de desenvolver uma estratégia investigativa e persecutória para que
pudessem ser feitas acusações bem sucedidas em relação aos crimes sexuais dispostos no
57
Pela Resolução 780 (1992), o Conselho de Segurança da ONU pediu ao Secretário-Geral que estabelecesse
uma Comissão de Especialistas para investigar a existência de graves violações de Direito Humanitário no
território da ex-Iugoslávia, cujas atividade foram iniciadas em novembro de 1992 e foram terminadas em abril de
1994, ficando conhecida também pelo nome de “Comitê Bassiouni” pelo fato de, a partir de outubro de 1993, o
famoso jurista da área de Direito Penal Internacional Cherif Bassiouni (que já a compunha desde o início) ter
passado a liderá-la.
84
Estatuto do Tribunal. Porém, só havia um artigo enumerado nesse sentido no Estatuto, que era
o estupro como crime contra a humanidade, disposto no art. 5º do Estatuto do TPII, e que na
época, considerava-se que estupro somente recairia sobre crimes contra a humanidade. De
1995 a 1999, Viseur Sellers atuou na mesma função no TPIR (VISEUR SELLERS, 2007, p.
304), atuando, portanto à frente do caso Akayesu. É interessante notar que, numa palestra sua
proferida em 30 de março de 1996 (portanto, anteriormente, mas não tanto assim, à
publicação do relatório Shattered Lives da Human Rights Watch) sobre persecução a
violência sexual no Tribunal Penal Internacional para Ruanda, Viseur Sellers fala que o
estupro pode constituir, perante o estatuto do Tribunal, crimes contra a humanidade e crimes
de guerra, mas em momento algum fala da possibilidade de que ele possa constituir genocídio
(VISEUR SELLERS, 1996, p. 105-110). Portanto, dado o intervalo de tempo entre a
publicação do relatório Shattered Lives (no qual se mencionava, como dito anteriormente,
que, caso cumprissem com os requisitos da Convenção para a Prevenção e a Repressão do
Crime de Genocídio, os estupros poderiam constituir genocídio, e que os estupros perpetrados
durante o conflito ruandês de 1994, em geral, compartilhavam essa característica) e a
supracitada palestra proferida por Viseur Sellers, parece haver indícios de que, embora a
decisão de processar Akayesu por delitos sexuais tenha sido tomada por causa das
testemunhas que relataram ter sofrido ou testemunhado violência sexual, a interpretação de
que a violência sexual pode constituir genocídio só ingressou na estratégia persecutória do
Escritório do Procurador do TPIR devido ao impacto do relatório Shattered Lives, e, portanto,
devido à sociedade civil global.
Apesar da nomeação de Viseur Sellers para o cargo de Assessora para Persecução de
Crimes Relacionados a Gênero do Escritório do Procurador, há relatos de certa negligência da
gestão Goldstone à frente do Escritório do Procurador em relação à persecução de crimes
relacionados a gênero, conjugada com falta de experiência em lidar com crimes sexuais na
magnitude com que foram realizados em Ruanda. Segundo Galina Nelaeva:
“Dadas as restrições significativas de tempo, o Procurador-Chefe se mostrou relutante a dedicar
recursos para as investigações de estupro e violência sexual, concentrando-se sobre o genocídio,
assassinato, extermínio e tortura. No início, então, não houve acusações de estupro ou violência sexual
em qualquer acusação TPIR. Isso pode ter sido devido ao fato de que o estupro era percebido como
um crime menos importante, mas a falta de experiência na persecução de crimes e falta de
conhecimento de questões relativas a gênero por parte do pessoal do TPIR também desempenhou um
papel importante” (NELAEVA, 2010, p. 7-8. Tradução da autora).
85
Alex Obote-Odora, que foi assistente especial para o Procurador no Tribunal Penal
Internacional para Ruanda, relata problemas de treinamento para os funcionários em relação a
crimes sexuais:
“Durante os primeiros anos do TPIR, os investigadores receberam pouco ou nenhum treinamento no
que diz respeito à metodologia de investigação de crimes cometidos de forma generalizada e
sistemática, genocídio e crimes sexuais. Muitos investigadores não tinham estudado direito
internacional humanitário e não investigaram os crimes cometidos no contexto do estupro e violência
sexual cometidos de forma generalizada e sistemática” (OBOTE-ODORA Apud NELAEVA, 2010, p.
8. Tradução da autora).
Elizabeth Neuffer, por sua vez, acredita que o problema tenha sido o fato de haver
muitos investigadores homens, que, mesmo que tivessem a maior sensibilidade em relação a
assuntos relacionados a gênero, teriam dificuldades em colher depoimentos de mulheres
ruandesas que foram estupradas durante o genocídio, pelo fato de elas não se sentirem à
vontade em relatar a homens os abusos sofridos. Segundo Neuffer:
"Muitas acharam perturbador quando os investigadores, principalmente homens brancos, foram para
as aldeias em seus jipes brancos da ONU e depois trataram as sobreviventes com arrogância, como se
fossem estúpidos ao invés de traumatizados. As mulheres de Taba simplesmente não queriam se abrir
com eles." (NEUFFER Apud NELAEVA, 2010, p. 8. Tradução da autora).
Em 1996, Louise Arbour sucede Goldstone no Escritório do Procurador. Quando as
testemunhas que motivaram a emenda do Indictment prestaram seus depoimentos, e quando
houve a submissão de um parecer amicus curiae por uma coalizão de ONGs feministas,
Arbour já era a responsável pelo Escritório do Procurador.
Arbour sublinha que sua trajetória não era de uma jurista internacionalista, e sim de
penalista, em seu país de origem, o Canadá. E ela relata que foi justamente essa sua
experiência enquanto penalista no Canadá que a fez lidar com questões de gênero
anteriormente a assumir o cargo de Procuradora do TPII e do TPIR. A experiência chave,
nesse sentido, teria sido quando ela trabalhou numa missão, no seu país, para investigar
brutalidades perpetradas por uma espécie de guarda policial correcional para situações de
emergência (ARBOUR, 2003, p. 198-200).
Essas experiências em relação à investigação de crimes relacionados a gênero podem
ter tido impacto na criação da Unidade de Apoio às Vítimas e Testemunhas 58 em junho de
58
A Unidade de Apoio às Vítimas e Testemunhas está prevista na Regra 34 do Rules of Procedure and
Evidence. Essa Unidade tem a função, consoante a Regra 34 (A), de recomendar medidas para a proteção de
vítimas e testemunhas; assegurar-se que elas recebam apoio, incluindo reabilitação física e psicológica,
especialmente em casos de estupro ou outra forma de agressão sexual; e (esse último item foi incluído na
reforma do Rules of Procedure and Evidence aprovada em 1997, e subsiste até hoje) desenvolver planos a curto
e longo prazo para a proteção de testemunhas que tenham testemunhado perante o Tribunal e que temam por
ameaças a sua vida, sua propriedade e sua família. A Regra 34 (B), por sua vez, nas versões aprovadas em 5 de
86
1996. Em março de 1997, a Unidade foi reformada com o intuito de desenvolver melhor
relação com as testemunhas, resultando numa unidade separada, dentro da Secretaria do
TPIR, da Unidade de Apoio às Vítimas e Testemunhas: a Unidade de Assuntos de Gênero de
Assistência às Vítimas. Assim, alguns problemas relativos à investigação de assuntos ligados
a gênero presentes na gestão Goldstone foram superados (BRETON-LE GOFF, 2002;
NELAEVA, 2010, p. 8).
Porém, outros problemas subsistiam no Escritório do Procurador, mas em relação às
estratégias persecutórias de crimes relacionados a gênero. Segundo Arbour, parte do debate,
dentro do Escritório do Procurador, em relação aos crimes de violência sexual, referia-se a se
à persecução dos perpetradores diretos desse tipo de violência consistia numa estratégia
persecutória apropriada. Havia ainda a discussão se haveria mais ganhos perseguindo o
perpetrador de fato dos abusos sexuais (nas palavras de Arbour, o “Mr. Nobody”), ou se o
objetivo da persecução deveria ser atingir o alto da cadeia de comando. A punição, no caso da
violência sexual, seria particularmente difícil, na visão que se tinha na época, de ser aplicada
aos superiores hierárquicos sob a doutrina da responsabilidade do superior hierárquico.
Requerer-se-ia provar que esses superiores tanto participaram da violência sexual, ou que eles
sabiam que essa violência estava sendo cometida por seus subordinados, mas falharam em
impedir ou em punir os que estavam participando dela (ARBOUR, 2003, p. 203). O que fica
patente nesse relato de Arbour é que na época do caso Akayesu, a persecução de crimes
relacionados a gênero no Direito Internacional ainda estava em caráter experimental, sendo
justificável certa cautela por parte do Escritório do Procurador.
Não se está aqui advogando que a preocupação do Escritório do Procurador com os
estupros em Taba, especificamente no caso Akayesu, ocorreu porque houve uma mudança,
com a saída de um Procurador homem, e a substituição por uma Procuradora. Não se pode
partilhar de uma afirmação tão essencialista, que atribui à mulher uma característica natural
de ter cuidado com o outro ser humano. Tanto é que Gaëlle Breton-Le Goff aponta várias
julho de 1996 e 6 de junho de 1997, estabelece que deve-se considerar, ao selecionar pessoal para trabalhar nessa
unidade. A versão aprovada do Rules of Procedure and Evidence em 8 de junho de 1998 vai mais além,
estabelecendo que, além de ser importante o emprego de mulheres na Unidade, deve também haver uma
abordagem sensível a gênero nas medidas de proteção e apoio às vítimas e testemunhas (INTERNATIONAL
CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1996; INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR
RWANDA, 1997, p. 33; INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998;
INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 2010, p. 27). É importante lembrar, mais uma
vez, que a Unidade de Apoio às Vítimas e Testemunhas não está ligada ao Escritório do Procurador, e sim à
Secretaria do Tribunal, e a criação da Unidade se deu através de reforma do Rules of Procedure and Evidence,
que, como mencionado anteriormente, é aprovado pelos juízes do Tribunal. Porém, o Procurador acaba
dependendo bastante do trabalho da Unidade em suas funções investigativas.
87
omissões que a Procuradora que assumiu depois de Arbour, Carla del Ponte, teve em relação a
casos de violência sexual posteriores a Akayesu, tanto no TPII quanto no TPIR,
caracterizando-a como a Procuradora mais omissa nesse sentido, numa comparação entre as
gestões Goldstone, Arbour e del Ponte (BRETON-LE GOFF, 2002).
Assim, há indício do impacto da sociedade civil na estratégia persecutória do TPIR,
no caso Akayesu, em relação ao estupro como genocídio.
3.2.3. A participação dos juízes
Como dito anteriormente, muito embora boa parte da bibliografia sobre o caso
Akayesu atribua à juíza Navanethem Pillay papel primordial ao interrogar as a primeiras
testemunhas que relataram ter sofrido violência sexual, antes mesmo que o Indictment fosse
emendado, as transcrições, analisadas por Beth Van Shaack, e um artigo publicado pela
própria juíza indicam o contrário, conforme se verifica nos trechos a seguir:
“[…] no caso Akayesu todos os três juízes fizeram perguntas sobre esses estupros […]” (PILLAY,
2008, p. 666. Tradução da autora).
“Em interrogatório, a defesa não levantou a questão dos estupros, mas a juíza Pillay, e depois o juiz
Aspergan, o fizeram, pedindo à testemunha H para desenvolver melhor sua resposta sobre onde
Akayesu estava e o que ele estava fazendo enquanto as mulheres eram estupradas dentro, ou perto do
bureau comunal. Relatos deste julgamento dão à juíza Pillay crédito por trazer à atenção da acusação
a questão da violência sexual em Taba. A transcrição revela, no entanto, que todos os juízes da
Câmara seguiram essa linha de questionamento em face do silêncio virtual a partir das partes”
(SHAACK, 2008, p. 7-8. Tradução da autora).
Além disso, o trecho acima, escrito por Beth Van Shaack, revela a grande
importância do papel das testemunhas na decisão dos juízes. Isso também transparece no
seguinte trecho do julgado de primeira instância do caso Akayesu:
“A Câmara entende que a emenda do Indictement resultou de testemunho espontâneo sobre violência
sexual pelas Testemunhas J e H durante o curso deste julgamento e subsequente investigação pelo
Procurador, mais do que da pressão pública” (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR
RWANDA, 1998, p. 170-171. Tradução da autora).
Esse papel é confirmado pelas palavras da juíza Pillay:
“Devo dizer que o depoimento de uma das testemunhas me motivou a reexaminar as definições
tradicionais de estupro. A testemunha ‘JJ’ estava sendo indagada pelo Procurador, em relação a cada
uma das violações múltiplas que ela sofreu, se houve penetração: ‘Lamento ter de continuar a
perguntar-lhe toda hora- seu agressor a penetrou com seu pênis?’ Sua resposta foi: ‘Essa não foi a
88
única coisa que eles fizeram comigo, pois eles eram meninos e eu sou uma mãe e ainda assim eles
fizeram isso comigo. É o que eles me disseram que eu não posso esquecer’.
Suas palavras me levaram a investigar a percepção do Direito sobre a experiência das mulheres
relativa a violência sexual e suas conseqüências durante os conflitos armados. Neste caso, os alegados
atos de estupro ocorreram como parte de um ataque generalizado e sistemático contra uma população
civil” (PILLAY, 2008 a, p. 667. Tradução da autora).
“Com base no testemunho e em novas acusações, proferimos a primeira condenação de estupro como
crime de genocídio registrada na história” (PILLAY, 2008 b, p. 18. Tradução da autora).
Porém, apesar das negativas dos juízes da Câmara de Julgamento do TPIR quanto ao
impacto da sociedade civil na construção do estupro enquanto genocídio na sentença do caso
Akayesu, esse mesmo órgão do TPIR parece confirmar o raciocínio apresentado pela Human
Rights Watch no relatório Shattered Lives, pois faz uma analogia entre o crime de estupro e o
crime de tortura nesse julgado, ao afirmar que:
“A Câmara considera que o estupro é uma forma de agressão, e que os elementos centrais desse crime
não podem ser capturados numa mecânica de objetos e partes do corpo. A Convenção contra a Tortura
e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes não cataloga atos específicos na
definição de tortura, focando, ao invés disso, no conceito de violência sancionada pelo Estado. Essa
abordagem é mais útil ao Direito Internacional. Da mesma forma que a tortura, o estupro é usado para
propósitos tais como intimidação, degradação, humilhação, discriminação, punição, controle ou
destruição de uma pessoa. Como a tortura, o estupro é uma violação da dignidade pessoal, e o estupro
de fato constitui tortura quando é infligido por instigação ou com o consentimento ou aquiescência da
autoridade pública ou outra pessoa agindo numa função (INTERNATIONAL CRIMINAL
TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 241. Tradução da autora).59
Assim, há um indício de que tenha ocorrido qualquer influência da sociedade civil
na decisão da Câmara de Julgamento de considerar, no caso Akayesu, que o estupro pode
constituir genocídio.
3.3. Debates feministas sobre o caso Akayesu
59
Embora já tenhamos mencionado anteriormente esse parágrafo do relatório Shattered Lives que faz uma
analogia entre tortura e estupro como genocídio, o citamos novamente agora, para fins de comparação com o
citado trecho do julgado da Câmara de Julgamento referente ao caso Akayesu: “A intenção genocida também
fica evidenciada na natureza da violência sexual em questão. Violência sexual, como outras formas de tortura,
pode preceder ou ser um meio de execução extrajudicial. Em Ruanda, atos de mutilação sexual e outras formas
de violência que ameaçam a vida humana foram infligidos com o intuito de causar a eventual morte de suas
vítimas. Mulheres sofreram estupros por gangues, estupradas com objetos, e foram sujeitas a uma brutalidade
ultrajante, que envolvia mutilar os órgãos sexuais das mulheres. Alguns desses ataques deixaram mulheres
feridas fisicamente de forma que podem nunca mais serem capazes de ter filhos. Muitas vítimas de agressão
sexual morreram no curso dos ataques, ou por conseqüência deles. Violência sexual em tais casos era uma parte
direta das mortes. Em outros casos documentados pela Human Rights Watch/FIDH, as mulheres sobreviveram à
violência sexual porque seus agressores a deixaram para morrer, acreditando que elas tinham sido mortalmente
feridas” (HUMAN RIGHTS WATCH, 1996. Tradução da autora).
89
Entre as autoras feministas do Direito Internacional, parece não haver muita
discordância sobre a importância da definição de estupro adotada pelo Tribunal Penal
Internacional para Ruanda no caso. Em geral, crêem que a definição foi benéfica para as
mulheres, pois não se concentra, ao definir estupro, em uma descrição meramente mecânica
de “interação de partes do corpo”, para citar a expressão utilizada por MacKinnon (2006, p.
956), mas o dano causado a essas mulheres. A única crítica foi encontrada em Tessa de Wit.
Embora a autora não dê seu posicionamento sobre o tema, ela relata que alguns criticam essa
definição de estupro por ser muito ampla, e, por isso, não cumprir com o princípio da
legalidade, por não ser o estupro como genocídio uma conduta tipificada no Direito
Internacional, e por essa definição não ser muito específica (WIT, 2005, p. 51-52). Ainda
assim, essa não é uma crítica que parte de autores ou autoras feministas de Direito
Internacional. Entre esses, parece haver consenso de que a definição de estupro constante no
julgado do caso Akayesu é benéfica.
Porém, há discussão sobre o quão benéfica foi essa decisão do TPIR, no caso
Akayesu, de que o estupro constitui genocídio. Para Hilary Charlesworth, o Direito Penal
Internacional que emerge no pós-Guerra Fria, incluindo o Caso Akayesu, somente reconhece
a proibição da violência sexual dentro de uma comunidade. Por exemplo, o estupro genocida,
nessa perspectiva, apenas foi condenado no Caso Akayesu porque foi cometido com a
intenção de destruir um determinado grupo em particular. A autora critica essa decisão
porque, segundo ela, não se reconhece que o estupro é um crime porque é una manifestação
de dominação masculina, mas porque é um crime contra uma comunidade étnica. Por isso, a
autora crê que esse julgado incorpora a distinção público/privado, porque opera na esfera
pública da coletividade, mas sem se preocupar com a esfera privada, considerada por ela
como locus privilegiado da dominação masculina (CHARLESWORTH, 1999, p. 387).
A crítica de Franke é em outro sentido. Ela considera que, quando mulheres foram
vítimas de muitos crimes, as autoridades legais tendem a concentrar-se somente, ou
principalmente, na violação sexual. Ela argumenta que
“[…] é raro que tribunais penais tratem atrocidades de gênero como algo além de violência sexual
contra as mulheres. os homens [...] também são vítimas de violência sexual, e as mulheres são vítimas
de violência baseada em gênero que não é sexual. [...] A redução do gênero ao sexual e o
desconhecimento de como os homens podem sofrer a violência de gênero é, para ser generosa, uma
forma de compensação dos anos ignorando o lugar das mulheres no Direito Humanitário. No entanto,
esta compensação teve o efeito de sexualizar as mulheres, de forma que não consegue captar tanto a
variedade de maneiras pelas quais as mulheres sofrem injustiça, bem como as maneiras pelas quais os
homens sofrem violência de gênero também. [...] Ver a "questão de gênero" aparecer apenas no caso
90
de violência sexual é elidir as noções de dimensões de gênero da guerra, de violência e de investir em
matar mais que em cuidar.” (FRANKE, 2006, p. 822-823. Tradução da autora).
Mas outras juristas feministas consideram que essa decisão do Tribunal Penal
Internacional foi benéfica em se tratando de direitos das mulheres. MacKinnon, uma dessas
autoras, parte, em seu comentário ao caso Akayesu, na distinção entre consentimento (que
considera uma relação individual) e coerção (social, contextual), e afirma que, num contexto
extremamente coercitivo, como um conflito civil altamente violento, não há sentido em se
discutir se houve consenso ou não, considerando a decisão do TPIR no caso em análise
acertada nesse sentido. Segundo essa autora, no contexto do Direito Internacional
Humanitário,
“[…] olhar para a coerção para definir o estupro é olhar para as realidades coletivas circundantes dos
membros do grupo e as forças políticas, alinhamentos, estratificações e confrontos. Se o sexo estava
sendo envolvido simplesmente em gratificação sexual, por exemplo, não seria previsível ser
unilateralmente imposto a um grupo étnico por outro, como foi quando infligido em mulheres
muçulmanas e croatas na Bósnia-Herzegovina e na Croácia, e mulheres tutsis em Ruanda. Tais
realidades coletivas de destruição baseada em grupo expõe a instrumentalização do estupro em
ataques em que o consentimento das vítimas torna-se, na prática, portanto, legalmente irrelevante”
(MACKINNON, 2006, p. 956. Tradução da autora).
Louise Chappel, por sua vez, considera que o julgamento de Akayesu constitui uma
mudança de paradigma em relação à visão tradicional do estupro no direito humanitário como
dano à honra feminina60. Além disso, ela argumenta que o julgamento reconheceu que
estupros constituem sérios danos físicos e mentais às mulheres, e relacionou esses atos com a
destruição do grupo, demonstrando haver conexão entre as identidades de gênero e étnicas. A
sentença emitida pelo TPIR no caso Akayesu, para Chappel, também reconheceu que esses
atos podem ser usados para especificamente destruir as mulheres que são membros de uma
dada comunidade (os tutsis, no caso ruandês). Por isso, a autora considera que, nesse caso de
que tratamos, “Pela primeira vez, as mulheres foram vistas pelo Direito Internacional como
multidimensionais” (CHAPPEL, 2003, p. 11. Tradução da autora).
Martina Lindroos compartilha o posicionamento de Chappel de que a decisão do
TPIR sobre estupro enquanto genocídio no caso Akayesu constitui uma mudança de
paradigmas, não enxergando o estupro apenas como ofensa à honra, termo esse com
dimensões dicotômicas. Segundo a autora:
“Desviando-se do ponto de vista das Convenções de Genebra, o Tribunal não considera que a
violência sexual como um simples ataque de honra da mulher, mas dá espaço para os danos físicos e
psicológicos decorrentes da violência sexualizada” (LINDROOS, 2003, p 28. Tradução da autora).
60
O problema de considerar o estupro como crime contra a honra feminina, segundo Chappel, é que,
freqüentemente, esse termo possui dimensões dicotômicas de gênero, sendo a honra feminina associada à
castidade, à passividade, e à honra masculina, à atividade, à capacidade de proteger a mulher que esteja sob sua
“posse”.
91
Adam Jones, por sua vez, embora no trecho seguinte não aborde propriamente o caso
Akayesu, afirma, da mesma forma que Chappel e Lindroos, que determinadas categorias,
como gênero e etnia, se intercedem no crime de genocídio:
“Menos reconhecido é o fato de que essas identidades, juntamente com os 'três grandes' ausentes da
Convenção do Genocídio (grupos políticos, sociais ou de gênero), não existem isoladamente. O alvo
genocida é sempre o resultado de uma confusão e mistura de identidades. [...]
É por isso que as vítimas podem ser vistas simultaneamente como representantes [...] de uma etnia
perigosa, uma classe social insurgente ou gananciosa, ameaçando a identidade política, e um grupo de
gênero malévolo […]” (JONES, 2010. Tradução da autora).
Quanto ao caso Akayesu mais especificamente, Jones considera que a decisão do
Tribunal Penal Internacional para Ruanda de condenar o réu foi benéfica porque “[…]vítimas
do sexo feminino são vistas como vítimas em seu próprio direito, e não um meio através do
qual a desonra e deslocamento se abate sobre uma família ou comunidade” (JONES, 2010.
Tradução da autora).
A decisão do TPIR no caso Akayesu, na opinião de Sherrie L. Russell-Brown, foi
importante por reconhecer como o estupro pode ser utilizado para destruir um grupo, por
reconhecer que há interseção entre gênero e outras categorias, como, no caso sob análise, a
etnia; por levar em consideração a subjetividade da vítima; e por levar em consideração o
dano que a ela é ocasionado. Isso porque, embora o bem jurídico protegido pelo crime de
genocídio seja a existência do grupo, o efeito de causar danos físicos ou morais aos membros
desse grupo através do estupro é um ato contra o indivíduo (RUSSEL-BROWN, 2003, p. 371373).
Já Jocelyn Campanaro crê que o ponto positivo do Caso Akayesu é que ele constitui
não somente a primeira vez que o estupro genocida foi reconhecido, mas também a primeira
vez que um organismo internacional reconheceu que pode julgar estupros e outras formas de
violência sexual que resultem em dano mental, e não somente físico (CAMPANARO, 2001).
Rhonda Copelon afirma que considera a decisão da Câmara de Apelações em relação
ao caso Akayesu de considerar o estupro enquanto genocídio importante, pois enfatiza a
segmentação étnica produzida pela representação sexualizada da identidade étnica. A autora
também acredita que essa decisão foi positiva por não enfatizar as conseqüências reprodutivas
como medidas genocidas, pois, segundo ela, enfatizar o impacto reprodutivo é tender a
reduzir a questão a uma visão meramente biológica das relações de gênero, como se a mulher
só existisse enquanto reprodutora. Segundo a autora:
92
“[…] O julgado do caso Akayesu não enfatizou, como alguns alegaram, as conseqüências
reprodutivas como marca característica do estupro como medida genocida. Ao invés disso, o estupro e
a violência sexual foram compreendidos como instrumentos de genocídio primeiramente devido o
dano físico e psicológico sofrido pelas mulheres, e em segundo lugar devido ao seu impacto potencial
na comunidade alvejada. Enfatizar o impacto reprodutivo na comunidade ameaçaria reduzir as
mulheres a simples veículos de continuidade da população alvejada. Isso também tende a enfatizar o
aspecto biológico do problema, e não a visão da identidade, o bem jurídico a ser protegido pelo
conceito de genocídio, enquanto construção social” (COPELON, 2000, p. 228. Tradução da autora).
Jonathan Short discorda do ponto de vista de Copelon. Ele considera que não
enfatizar o impacto das ações dos perpetradores na reprodução daquela comunidade é ignorar
a intenção dos perpetradores de genocídio, pelos seguintes motivos:
“Ignorar o impacto que tais ações na comunidade é ignorar as realidades culturais que existem quando
essas ações são tomadas. Por isso é melhor adicionalmente categorizar essas ações no âmbito de
crimes contra a humanidade ou de direito interno, que falam mais diretamente às ações tomadas contra
as mulheres individuais” (SHORT, 2002-2003, p. 520. Tradução da autora).
Além disso, o autor afirma que essa visão não tende a uma percepção biológica da
sociedade. Para ele, o que as normas sobre genocídio pretendem proteger –grupos nacionais
raciais, étnicos e religiosos- são construções sociais. A proteção da habilidade biológica de
procriar, segundo Short, é incidental para a proteção do grupo étnico como um todo, e
considera ingênuo considerar o contrário (tratando-se do crime de genocídio, mas não dos
crimes contra a humanidade) quando a intenção do perpetrador é destruir o grupo étnico,
utilizando-se como meio para isso a destruição de sua habilidade de procriar (Idem).
Para de Vito e outros, essa decisão foi extremamente benéfica, no sentido de
positivar o estupro no Direito Internacional. Isso porque, segundo os autores, quase não se
lida com o estupro no Direito Internacional dos Direitos Humanos, e se lida com ele de forma
precária no Direito Internacional Humanitário. Coube, então, ao Direito Penal Internacional,
consolidar a proibição do estupro no Direito Internacional, ao considerá-lo como genocídio no
caso Akayesu. De acordo com os autores:
“Poder-se-ia argumentar que o resultado de incluir o estupro na categoria de genocídio é elevá-lo
acima de outros crimes internacionais e violações de direitos humanos. Essa abordagem talvez seja
útil para contrabalançar a posição problemática que o estupro ocupa, no sentido de que não está
previsto por boa parte do Direito Internacional dos Direitos Humanos e [...] é distorcido dentro do
Direito Humanitário Internacional. [...] algumas mulheres que foram estupradas durante eventos
genocidas podem considerar que uma associação entre estupro e genocídio tem maiores conseqüências
do que enfocar somente o estupro como violação da autonomia sexual de uma pessoa. Talvez a
necessidade de assegurar um registro dessa associação, por exemplo, de que as mulheres tutsis foram
estupradas porque faziam parte do grupo étnico tutsi, seja mais importante do que tratar as violações
como atos cometidos apenas contra indivíduos. A mudança da definição de crime sexual para
genocídio ajuda a reparar os laços sociais que o estupro, especialmente o estupro público, destrói”
(DE VITO, 2009, p. 37).
93
Obando considera que essa decisão do TPIR foi um avanço, mas sem apresentar
muitos argumentos. Conforme a autora:
“O reconhecimento de que certos tipos de ataques contra as mulheres de um dos quatro grupos
protegidos (por nacionalidade, etnia, raça ou religião) pela Convenção para a Prevenção e Repressão
do Crime de Genocídio de 1948, com a intenção de destruir o grupo, no todo ou em parte, pode
constituir genocídio, apesar de as mulheres não constituírem por si um dos quatro grupos protegidos, é
outro avanço chave dentro do direito internacional humanitário” (OBANDO, 2004, p. 5. Tradução da
autora).
Kelly D. Askin considera que o caso Akayesu resultou no julgado mais progressista
sobre questões relativas a gênero de todos os que foram pronunciados por órgãos
jurisdicionais internacionais (ASKIN, 1999, p. 100). A autora enumera os motivos que a
fazem considerar essa definição como de vanguarda na passagem a seguir:
“A decisão tem um significado adicional no julgamento de crimes de gênero no direito penal
internacional: (1) a Câmara de Julgamento reconheceu a violência sexual como uma parte integrante
do genocídio em Ruanda, e considerou o acusado culpado de genocídio, inclusive por crimes de
violência sexual; (2) a Câmara reconheceu o estupro e outras formas de violência sexual como crimes
independentes que constituem crimes contra a humanidade e (3) a Câmara enunciou uma ampla
definição internacional tanto de estupro como de violência sexual” (ASKIN, 1999, p. 107. Tradução
da autora).
Porém, embora enxergue de forma positiva o fato de que o estupro possa constituir
genocídio, assim como Obando, não apresenta motivos para isso.
Hellen Scanlon e Kelli Muddell também seguem esse linha, conforme verifica-se no
trecho abaixo:
“Isso foi particularmente significativo, pois era a primeira vez que um tribunal internacional punia a
violência sexual em uma guerra civil, e foi a primeira vez que o estupro foi considerado ato de
genocídio, destinado à destruição de um grupo. Foi também um indicativo da necessidade de ter uma
representação sensível em relação a gênero adequado no sistema judicial, bem como a interação aberta
com grupos de mulheres” (SCANLON, MUDDELL, 2009, p. 18. Tradução da autora).
Mark Ellis também possui posicionamento similar ao de Obando, Askin, Scanlon e
Muddell, conforme a passagem abaixo:
“Não apenas Tribunal, no caso Akayesu, reconheceu que causar sérios danos físicos ou mentais a
membros do grupo por meio de estupro pode constituir genocídio, como também reconheceu que o
estupro e a violência sexual pode constituir um genocídio como disposto no artigo 4 (d) do Estatuto do
TPIR” (ELLIS, 2006-2007, p. 233. Tradução da autora).
Da mesma forma, Andrea R. Phelps não apresenta os fundamentos pelos quais
considera benéfica a decisão do TPIR, no caso Akayesu, de considerar que os estupros podem
constituir genocídio:
“[...] o Tribunal reconheceu a conexão entre os crimes de gênero, especialmente a violência sexual, e
de genocídio em si. Além disso, Akayesu foi condenado por ter conhecimento da existência de
violência sexual e facilitá-la, apesar de evidências insuficientes de que Akayesu participou
pessoalmente os atos físicos que levaram às acusações” (PHELPS, 2006, p. 510. Tradução da autora).
94
Alexandra A. Miller considera que o caso Akayesu cria uma obrigação aos Estados
de atuar nos casos de estupro, mas não explica exatamente em que sentido se daria essa
atuação. Segundo a autora:
“Com a decisão do caso Akayesu, o Tribunal começou a forçar os Estados a reconhecer oficialmente o
estupro. Ao tirar o estupro da esfera dos crimes contra a humanidade e estendendo-o ao genocídio, o
tribunal está criando um dever para os Estados de intervirem” (MILLER, 2003-2004, p. 366. Tradução
da autora).
Fiona de Londras, por sua vez, não critica a decisão da Corte considerar o estupro
como genocídio. Ela considera que isso é muito significativo por positivar direitos das
mulheres. Sua grande crítica é o tratamento que Escritório do Procurador dispensa às vítimas
de estupro. Conforme a autora:
“Mesmo quando passos de enorme importância na persecução de crimes relativos a violência sexual
são tomados, o são apesar de, ao invés de devido a, esforços e tomada de decisões estratégicas pelo
Escritório do Procurador. Isto é bem demonstrado pelo caso Akayesu, que [...] foi o primeiro caso em
que foi decidido que o estupro poderia constituir genocídio.” (LONDRAS, 2009, p. 11. Tradução da
autora)
“À luz disto, o Indictment foi alterado durante o julgamento para incluir três acusações extras relativas
à violência sexual e três parágrafos adicionais. [...] O fracasso do Escritório do Procurador em incluir
a violência sexual no Indictment inicialmente, portanto, não só ameaçou tornar invisível a natureza
particularmente relacionada a gênero das experiências das mulheres em Taba, mas também resultou
em que vítimas mulheres que testemunharam sob o Indicment alterado tivessem sua credibilidade
posta em causa não por seu próprio comportamento, mas sim pelo do Escritório do Procurador”
(LONDRAS, 2009, p. 11-12. Tradução da autora).
Em outra ocasião, em que não fala especificamente do caso Akayesu, mas ao fato de
as mulheres serem alvejadas em genocídios, Fiona de Londras lembra que, quando a
Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio foi aprovada, as mulheres
eram invisíveis para o Direito Internacional61. Segundo a autora:
“Há duas razões pelas quais é especificamente importante olhar para as experiências das mulheres
durante o genocídio; em primeiro lugar, porque, durante a época da redação da Convenção sobre
Genocídio, as mulheres eram invisíveis para o Direito Internacional, e em segundo lugar porque os
61
Se levarmos em consideração o contexto em que a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de
Genocídio ocorreu, altamente influenciado pelos julgamentos dos Tribunais de Nuremberg, principalmente, e de
Tóquio, num segundo plano, isso fica ainda mais patente. Isso porque esses julgamentos, que exerceram certa
influência na aprovação da Convenção, foram completamente omissos em relação aos abusos sofridos por
mulheres na Segunda Guerra Mundial, como o sistema de “mulheres de conforto”, através do qual
aproximadamente 200 mil mulheres jovens e meninas orientais, de origem não japonesa, provenientes de
territórios ocupados pelo Japão eram levadas a “estações de conforto”, agora compreendidas como um local
onde elas eram estupradas e faziam serviços domésticos forçados para as tropas japonesas. Esse sistema só se
tornou conhecido nos anos 1990, quando algumas sobreviventes tornaram suas histórias públicas (COPELON,
2000; ASKIN, 2004). Apesar de essa prática ter sido ampla e sistematicamente praticada pelo Japão na Segunda
Guerra Mundial, só houve um caso de punição por estupro (como crime contra a humanidade, dado que o
genocídio sequer era tipificado tanto na Carta do Tribunal de Tóquio quanto na do de Nuremberg)
(CAMPANARO, 2001).
95
últimos 25 aos testemunharam um aumento da concentração de violência sexual contra as mulheres
como forma de genocídio. Se o propósito do Direito Internacional é proteger, prevenir e punir, então é
essencial que o Direito lide com essas ameaças, e responda a essa tendência” (LONDRAS, 2005, p. 3.
Tradução da autora).
Assim, tomando como ponto de partida as idéias apresentadas pela autora no
parágrafo acima, pode-se afirmar que a decisão do TPIR no caso Akayesu de considerar que o
estupro pode constituir genocídio tem o poder de atribuir novos significados à Convenção
sobre Genocídio, incorporando finalmente as preocupações com as experiências femininas na
interpretação das normas da Convenção.
Martha A. Fineman compartilha do mesmo entendimento de Fiona de Londras em
relação ao tratamento dispensado pelo Escritório do Procurador às vítimas de estupro.
Segundo a autora:
“Embora o caso Akayesu seja corretamente elogiado por avanços na visão jurídica sobre o genocídio e
a violência sexual, o caso continha falhas no processo. Foi quase uma oportunidade perdida para o
Escritório do Procurador, e o processo foi mais traumático do que o necessário para as testemunhas,
devido à omissão desse órgão do TPIR” (FINEMAN, 2010, p. 300. Tradução da autora).
Heidi Nichols Haddad também adota esse posicionamento, conforme a passagem
abaixo:
“O caso Akayesu é amplamente elogiado por ser um precedente histórico bem-sucedido na persecução
do estupro como um instrumento de genocídio, e por fornecer uma definição jurisprudencial mais
ampla de estupro, expandindo-a para além de penetração e leva em conta as circunstâncias coercitivas
do conflito armado. No entanto, as circunstâncias que levaram a esta conclusão histórica refletem a
desatenção para com o estupro na estratégia do Escritório do Procurador” (HADDAD, 2010. Tradução
da autora).
Esse mesmo entendimento é adotado por Stephanie K. Wood:
“Porém, a forma como o TPIR manejou os casos Akayesu e Nyiramasuhuko revelam a falha em
adequadamente investigar e apresentar Indictements sobre a violência baseada em gênero sancionada
pelo governo durante o genocídio diante dos julgamentos, deficiências no cuidado com as testemunhas
durante a investigação e as fases dos julgamentos, e atrasos em dar da justiça aos sobreviventes”
(WOOD, 2004. Tradução da autora).
Makau Mutua também compartilha tal posicionamento. Critica a própria
competência rationae materiae dos Tribunais Penais Internacionais para a ex-Iugoslávia, pelo
fato de, embora seus Estatutos reconheçam o estupro como crime internacional, não se
centram nesse crime específico. Nesse sentido, considera o caso Akayesu importante, pois ele
torna a discussão sobre gênero um pouco mais central no Direito Penal Internacional, ao
reconhecer pela primeira vez nesse ramo do Direito a seriedade desse crime, e o fato de ele
poder constituir genocídio e crimes contra a humanidade (MUTUA, 2008).
Andrea R. Phelps também afirma que considera um avanço a decisão do Tribunal
Penal Internacional para Ruanda de considerar que o estupro constitui genocídio (embora não
96
afirme porque o considera assim), mas considera que ele demonstra problemas na
investigação de crimes sexuais:
“O julgamento e condenação de Jean-Paul Akayesu representa tanto o progresso quanto contínuos
retrocessos na persecução de crimes de guerra baseados em gênero. […] não havia, inicialmente, nem
investigação suficiente, nem o reconhecimento de que acusações por crimes de guerra baseados em
gênero deveriam ser incluídos no Indictment do caso Akayesu. Mas, quando começou a aparecer
evidência em relação a esses crimes, o julgamento foi adiado para que se investigasse melhor. O mais
importante é que o Tribunal reconheceu as conexões entre crimes baseados em gênero,
particularmente violência sexual, e genocídio em si” (PHELS, 2006, p. 512. Tradução da autora).
Rechaça-se aqui o entendimento de Charlesworth. O estupro genocida não é um
favorecimento da dimensão pública em detrimento da privada. Durante uma guerra genocida,
essas mesmas noções se elidem. Absolutizar a crítica da distinção público/privado é
absolutizar essa própria distinção, que é contextual e contingente, e que certamente não se faz
presente no caso Ruandês. Dessa forma, a decisão do caso Akayesu de considerar que o
estupro pode constituir genocídio fornece elementos para a crítica da distinção
público/privado como opressora em relação às mulheres, dado que nem sempre, conforme o
caso demonstra, a opressão de dá numa lógica em que essa distinção se faz presente.
Rechaça-se aqui o entendimento de Charlesworth. O estupro genocida não é um
favorecimento da dimensão pública em detrimento da privada. Durante uma guerra genocida,
essas mesmas noções se elidem. Absolutizar a crítica da distinção público/privado é
absolutizar esse modelo, que é contextual e contingente, e que certamente não se faz presente
no caso do genocídio ruandês. Dessa forma, a decisão do caso Akayesu de considerar que o
estupro pode constituir genocídio fornece elementos para a crítica da distinção
público/privado, modelo segundo o qual a esfera privada, onde ocorre a opressão sobre a
mulher, não é regulada pelo direito. Afinal, nem sempre, a opressão se dá na esfera privada e,
conforme o caso demonstra, nem sempre as fronteiras entre público e privado são tão claras
em situações onde há opressão sobre a mulher.
Além disso, as categorias gênero e etnia não são autônomas uma em relação à outra,
como parece indicar o posicionamento de Charlesworth em relação ao caso Akayesu, ao
afirmar que o estupro enquanto genocídio privilegia a categoria etnia em relação a gênero;
elas estão sempre inter-relacionadas. Por isso, não há esse privilegio da etnia em relação a
gênero, pois as relações de gênero são sempre contextuais, mudando no tempo e no espaço, e
dependendo das relações étnicas, religiosas, de classe, entre outras, e vice-versa. Assim,
encampa-se aqui o posicionamento de Chappel, Russel Brown e Lindroos.
97
O posicionamento dessas autoras não é relevante somente no sentido de considerar
que as relações de gênero e de etnia estão sempre inter-relacionadas. A visão de Chappel e de
Lindroos de que houve uma mudança de paradigmas ao mudar a visão tradicional do direito
humanitário de que o estupro constitui um crime contra honra deve ser levada em
consideração, pois o termo honra possui dimensões dicotômicas, sendo a mulher sempre uma
pessoa passiva, a ser defendida por um bravo cavalheiro. Caso não houvesse essa quebra de
paradigmas, estar-se-ia a reforçar estereótipos de gênero que têm sido desconstruídos pelas
feministas.
Com base nas críticas expostas por essas autoras, pode-se afirmar que o discurso
feminista liberal62 de igualdade formal entre homens e mulheres, sem atentar às diferenças
existentes entre mulheres, não é, portanto, o mais adequado para compreender a decisão do
TPIR no caso Akayesu de considerar que o estupro pode constituir genocídio. Talvez a
corrente mais adequada para compreender essa decisão seja o feminismo pós-moderno 63, que
não apenas chama atenção para as diferenças entre homens e mulheres, mas também às
diferenças entre mulheres. Isso parte da crença pós-moderna de que não há identidades ficas e
inerentes, mas que elas são sempre construídas continuamente através de discursos
concorrentes. Dessa forma, evita-se enxergá-las como compartilhando de uma identidade
feminina a-histórica, descontextualizada. Nessa escola feminista, os conceitos de gênero, raça
e classe que formam a base do pensamento feminista não são percebidos como sendo reais
62
As feministas liberais preocupam-se em alcançar a igualdade entre homens e mulheres, mas seu foco é
principalmente na não-discriminação e na remoção do preconceito de gênero do direito. As reformas jurídicas
deveriam resultar em normas jurídicas neutras, que se aplicariam a homens e mulheres da mesma forma. Por não
perceberem os padrões jurídicos, como objetividade, racionalidade e individualismo, como favoráveis aos
homens, seus argumentos tendem a ser focados na igualdade formal. Porém, alcançar esses direitos estaria
limitado àquelas mulheres que compartilham as características típicas de homens de classe média e excluiria as
mulheres que se conformassem aos estereótipos do comportamento feminino, e as mulheres negras e proletárias.
Assim, o feminismo liberal é contrário às desigualdades formais entre homens e mulheres, nem às desigualdades
entre as próprias mulheres, por fatores como religião, classe e etnia (p. 32). No contexto do caso Akayesu, e do
genocídio em Ruanda de forma geral, essa corrente falha ao não lidar com o fato de que ser mulher tutsi, na
ocasião, oferecia mais riscos que ser uma mulher hutu (MARLE, BONTHUYS, 2007, p. 31-32).
63
Essa corrente, conforme seu próprio nome diz, parte do pós-modernismo, ou seja, o questionamento pósmoderno da crença moderna de que o pensamento racional asseguraria justiça. Na busca por direitos e princípios
de justiça, o pós-modernismo foca no local, no particular e no contextual ao invés do universal. Ele prefere a
contingência a categorias e princípios amplos. O feminismo pós-moderno não apenas chama atenção para as
diferenças entre homens e mulheres, mas também às diferenças entre mulheres. Isso parte da crença pósmoderna de que não há identidades fixas e inerentes, mas que elas são sempre construídas continuamente através
de discursos concorrentes. Dessa forma, evita-se enxergar as mulheres como compartilhando de uma identidade
feminina a-histórica, descontextualizada, mas exatamente por isso as feministas pós-modernas são criticadas por
minarem o projeto político feminista de avançar em prol dos interesses das mulheres. Os conceitos de gênero,
raça e classe que formam a base do pensamento feminista não são percebidos como sendo reais fora dos
discursos que o criam (MARLE, BONTHUYS, 2007, p. 38). Aplicando-se essa corrente ao caso Akayesu,
percebe-se que as categorias étnicas tutsi e hutu são contingentes, construídas socialmente. Além disso, verificase que o fato de ser uma mulher tutsi em relação a ser uma mulher hutu está localizado no tempo e no espaço, ou
seja, em 1994, em Ruanda.
98
fora dos discursos que o criam (MARLE, BONTHUYS, 2007, p. 31-32 e 37-38), como,
inclusive, concluiu o Tribunal em relação à distinção entre as etnias tutsi e hutu em Ruanda,
construídas pelo colonizador belga, sem lastro na realidade.
Aliás, essa questão da incapacidade do feminismo liberal de explicar o estupro
genocida fica patente no questionamento da compatibilidade entre o estupro, geralmente
tratado como uma violação a um direito individual (a liberdade sexual), e o genocídio, que
busca proteger o bem jurídico integridade do grupo. Segundo Daniela de Vito e outros, o
genocídio costuma ser definido como violação cometida contra grupos específicos, ao passo
que o estupro tende a ser definido com violação da autonomia sexual do indivíduo. Por isso,
eles indagam se essas categorias, uma definida no nível do grupo, e outra definida no nível do
individuo, são compatíveis. Esses autores argumentam que, se for possível estabelecer uma
concepção abrangente de genocídio –capaz de englobar tanto a esfera individual quanto
coletiva- o estupro (quando tipificado como genocídio) pode ser compreendido como violação
cometida tanto contra o individuo quanto contra o grupo. Entretanto, essas duas esferas, na
concepção dos autores, nunca poderão ocupar o mesmo patamar, pois o que constitui a
fundamentação da criminalização do genocídio é a proteção do grupo. O estupro enquanto
genocídio não constitui violação de um indivíduo: passa a fazer parte de uma noção
desenvolvida para proteger o grupo; assim, sua dinâmica muda. Assim, haveria, na visão dos
autores, lugar tanto para a proteção do grupo quanto para a proteção da vítima individual do
estupro como genocídio (VITO, 2009, p. 30). O que os autores parecem não compreender é
que o estupro só é visto como violação da autonomia individual porque o discurso feminista
predominante ainda é o feminismo liberal, que não consegue responder a violações cometidas
em função da interseção entre várias identidades.
Dessa forma, levando-se em consideração à interseção entre etnia e gênero no
estupro genocida, cabe repensar o conceito tradicional, típico da primeira onda feminista. Esse
conceito foi introduzido inicialmente no pensamento feminista pelas feministas radicais, que o
usaram para descrever estruturas sociais que permitem que haja a dominação masculina sobre
as mulheres. Porém, esse primeiro conceito feminista de patriarcado pode ser criticado por
ignorar os diferentes modos através dos quais mulheres foram subordinadas em diferentes
instituições sociais, diferentes sociedade e diferentes épocas. Também falha esse conceito
inicial ao ignorar os efeitos da classe, da raça e do colonialismo, que privilegia algumas
mulheres em relação a alguns homens (MARLE, BONTHUYS, 2007, p. 19-29). Levando isso
em consideração, Karin van Marle e Elje Bonthuys citam um conceito de patriarcado que
99
consideram mais correto, trazido por Collins, que descreve o patriarcado como uma matriz de
dominação que contem poucas vítimas ou opressores em estado puro. Cada indivíduo seria
parcialmente penalizado ou privilegiado por essa matriz (Apud MARLE, BONTHUYS, 2007,
p. 20). Ruanda no período do genocídio fornece uma possibilidade de repensar esse conceito,
dado que no que aconteceu não foi apenas a dominação dos homens sobre as mulheres, como
previsto no conceito tradicional de patriarcado no pensamento feminista, e sim uma
dominação exercida contra as mulheres de uma determinada etnia, com a intenção de destruíla.
Concorda-se também aqui com o posicionamento de MacKinnon e Campanaro,
segundo o qual cabe discutir se houve consenso das vítimas, pois, em una guerra genocida, os
preconceitos de gênero e de etnia, sempre interligados e já existentes anteriormente emergem
de forma muito agressiva, sendo o contexto extremamente coercitivo. Não se trata, como bem
afirma MacKinnon, de uma relação individual de consenso ou não consenso, mas de uma
relação social extremamente coercitiva.
Também é considerado aqui válido o posicionamento de Fiona de Londras de que a
Convenção sobre Genocídio não incorporou expressamente a questão do estupro porque, no
período, a experiência das mulheres não era levada em consideração no Direito Internacional.
Assim, a decisão do TPIR, no caso Akayesu, de que o estupro pode constituir genocídio, nada
mais faz do que incorporar as experiências femininas na interpretação deste tratado.
Além disso, a afirmação de Copelon de que essa decisão ao não enfatizar as
conseqüências reprodutivas como medidas genocidas, foi bem sucedida em não a reduzir a
questão a uma visão meramente biológica das relações de gênero, como se a mulher só
existisse enquanto reprodutora, é encampada aqui. Caso o contrário, o Direito Penal
Internacional estaria (da mesma forma que se considerasse que o estupro é uma ofensa à
honra) reforçando estereótipos de gênero que tem sido desconstruídos pelo ponto de vista
feminista.
Mas as críticas que faz Franke não podem ser rechaçadas. O conceito de violência de
gênero não se restringe apenas à violência sexual, nem é algo que ocorre somente às
mulheres. Por isso, há um caráter de superficialidade na decisão do TPIR no caso Akayesu ao
tratar de assuntos relativos a gênero. O julgado da Câmara de Julgamento do caso Akayesu
não somente trata apenas de violência sexual cometida contra mulheres, mas a trata sem
100
utilizar o conceito de gênero como construção social. Nesse julgado nem aparece a palavra
“gênero”, o que indica que o TPIR naturaliza as relações de gênero nesse caso.
Além disso, embora não seja incorreta a crítica feita por Fiona de Londras, Heidi
Nichols Haddad, Stephanie K. Wood e Martha A. Fineman quanto ao fato de que o tratamento
que as vítimas de crimes sexuais receberam do Escritório do Procurador não foi adequado,
deve-se ter em mente, em primeiro lugar, que o Escritório do Procurador não é um todo
uniforme, e sim um espaço de lutas em que pessoas com diferentes visões duelam (como fica
patente na afirmação de Goldstone em relação às dificuldades que teve em lidar com o
machismo que reinava entre os membros da equipe de investigação). Além disso, conforme o
relato de Arbour, naquela época, era tudo muito experimental em relação aos crimes
relacionados a gênero no Direito Penal Internacional, sendo compreensível certa cautela do
Escritório do Procurador em relação a isso.
O caso Akayesu também abre espaço a uma crítica da crítica das categorias binárias.
A crítica das categorias binárias é feita por algumas autoras feministas, tanto no campo do
Direito quanto no das Relações Internacionais, com base no conceito de gênero. Sob essa
ótica, gênero, num sentido simbólico, se refere a certas características variáveis, social e
culturalmente construídas, e que tendem a ser vistas como dicotômicas pela sociedade:
autônomo/dependente, público/privado, protetor/protegido, eu/ “o outro”, poder/fraqueza,
razão/emoção, atividade/passividade, virilidade/castidade, entre outras. Nessa visão, a
sociedade, de forma geral, associa as primeiras categorias à masculinidade, e as segundas à
feminilidade, e considera as características “masculinas” como tendo um valor superior
(TICKNER, 1997, p. 614; CHARLESWORTH, CHINKIN, WRIGHT, 1991, p. 626;
CHARLESWORTH, 1999, p. 382). As definições dessas categorias binárias são relacionais e
dependem uma da outra para adquirir significado. Assim, gênero vai além da linguagem: é um
sistema simbólico que modela vários aspectos da nossa cultura. Mesmo que homens e
mulheres e homens não se encaixem nos papéis sociais a eles designados, a existência dos
sistemas de significado expressos nas categorias binárias afeta a todos nós - tanto a forma
como interpretamos o mundo quanto o modo como ele nos entende (TICKNER, 1997, p. 614615).
Porém, como lembra Miranda Alison, durante períodos de conflitos múltiplas
construções binárias são construídas:
“[…] não apenas o “masculino” é contrastado com o “feminino” dentro do grupo e “nós” é
contrastado a “eles” entre grupos, mas “nossas mulheres” são contrastadas com “as mulheres deles” e
“nossos homens” aos “homens deles”. “Nossas mulheres” são castas, honradas, e devem ser
101
protegidas “por nossos homens”; “as mulheres deles” não são castas, e são depravadas” (ALISON,
2007, p. 80. Tradução da autora).
Essa construção de múltiplas categorias binárias em períodos de conflitos fica
patente no estudo do caso Akayesu, em que as mulheres tutsis são vistas como mais sedutoras
que as mulheres hutus e, por isso, não ligadas, na visão dos homens hutus extremistas, a
determinados valores também ligados ao feminino na crítica das categorias binárias, como a
castidade, cabe questionar a generalização que a crítica das categorias binárias faz em relação
a essas mesmas categorias, o que acaba resultando num certo essencialismo. Não se pretende,
com isso, derrubar por terra a crítica das categorias binárias. O que se pretende aqui é agregar
uma crítica do feminismo pós-moderno, argumentando-se pela necessidade da interseção
entre as múltiplas identidades (gênero, raça, etnia, religião, classe, dentre outras) na análise
dessas mesmas categorias. Assim, com base nisso, pode-se afirmar que se deve tomar cuidado
com a forma estanque em que as categorias binárias são analisadas por certas autoras,
devendo-se agregar, de forma a tornar a crítica das categorias binárias mais completa, de
forma a incorporar a questão da fluidez das identidades, para a qual os pós-modernos chamam
atenção.
102
CONCLUSÃO
Começamos nossa análise através do estudo do crime de genocídio. Verificamos que
o bem jurídico que a tipificação desse crime busca tutelar é bastante específico: a existência
de grupos. Além disso, seu elemento subjetivo é o que o faz tão distinto em relação aos
demais crimes tipificados no Estatuto do Tribunal Penal Internacional para Ruanda: o dolo de
eliminar um determinado grupo, no todo ou em parte. Assim, há uma despersonalização do
indivíduo que é vítima da conduta genocida, não sendo ele escolhido para ser vítima com base
em características que lhe são peculiares, mas sim em uma característica que ele compartilha
com outros indivíduos pertencentes a esse mesmo grupo. O elemento objetivo desse delito
compreende as condutas tipificadas na Convenção sobre Genocídio, em seu artigo 2º,
parágrafo 2º (assassinato de membros do grupo; dano grave à integridade física ou mental de
membros do grupo; submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe
ocasionem a destruição física total ou parcial; 4. medidas destinadas a impedir os nascimentos
no seio do grupo; 5. transferência forçada de menores do grupo para outro), dentre as quais
não está incluído o estupro. Foi afirmado também que não é necessária a eliminação, no todo
ou em parte, do grupo, mas tão somente a prática dos atos indicados, desde que com o dolo de
eliminá-lo.
No Capítulo II, buscou-se contextualizar o caso Akayesu. Nesse sentido, foram
estudadas as normas relativas a direitos das mulheres aprovadas no âmbito da ONU nos anos
1990, antes de ser proferida a sentença do TPIR que condenou Akayesu. Além da importância
de afirmarem que a violência contra a mulher é condenável, inclusive em contextos de
massiva violência inter-étnica, essas normas estabelecem diretrizes para a atuação não só dos
Estados em relação à promoção e proteção dos direitos das mulheres, mas também inseriu
linhas de ação nesse mesmo sentido para a ONU, do qual o TPIR é órgão subsidiário. Assim,
portanto, ele tem mandatos, embora não expressos em seu Estatuto, quanto à temática da
violência contra a mulher.
Nesse Capítulo também foi estudado, ainda de forma a contextualizar o caso
Akayesu, o genocídio ocorrido em Ruanda em 1994, fruto de ódios inter-étnicos alimentados
pelo colonialismo belga, mas suprimidos durante o período da Guerra-Fria. Nessa ocasião, os
relatos são de que as mulheres experimentaram um tipo de violência genocida que os homens,
103
ao menos pelo que consta nos relatos, não sofreram: a violência sexual, sendo essas mulheres
selecionadas não só em função de seu sexo, mas também em função de sua etnia.
No Capítulo III, chegamos finalmente à análise do caso Akayesu. Conforme se
verificou, trata-se da primeira vez em que se adotou uma definição de estupro no Direito
Internacional, que não está preocupada com uma interação de partes do corpo, e sim com a
percepção social de que aquilo é estupro. Além disso, não se fala em consenso (relação
individual), em sim em coerção (relação social, coletiva), dadas as circunstâncias em que o
estupro na comunidade de Taba, onde ocorreram os estupros relativos ao caso Akayesu,
ocorreram, eram marcadas pela intimidação coletiva. O TPIR distingue entre estupro e
violência sexual: esta é gênero, e aquele, uma espécie do gênero violência sexual. Enquanto o
estupro é uma invasão física de natureza sexual, em circunstâncias coercitivas, envolvendo
penetração (pouco importando qual foi o órgão invadido, e o que o invadiu, desde que essa
invasão seja socialmente percebida como tendo um caráter sexual), a violência sexual é
constituída por atos percebidos socialmente como sexuais que não envolvem necessariamente
a penetração ou o contato físico, mas que são também cometidos em circunstâncias
coercitivas.
O Tribunal, ao decidir que o estupro constitui genocídio, sublinha que ele teve a
intenção de eliminar um grupo, dado que era direcionado às mulheres tutsis, geralmente
anteriormente ao assassinato delas. Portanto, preenche-se o requisito do elemento subjetivo:
dolo de eliminar um grupo. Além disso, quanto ao elemento objetivo, o Tribunal considera
que o estupro se encaixa na alínea b do art. 2º da Convenção para a Prevenção e Repressão do
Crime de Genocídio, ou seja, a prática de atentado grave à integridade física e mental de
membros do grupo.
Em relação ao impacto das estratégias da sociedade civil global sobre os demais
atores (Câmara de Apelações e Escritório do Procurador do Tribunal Penal Internacional para
Ruanda), há indício de impacto do lobby da sociedade civil global (particularmente do
relatório Shattered Lives da Human Rights Watch) tanto sobre a Câmara de Apelações quanto
sobre o Escritório do Procurador.
Passamos agora às conclusões quanto às implicações que o caso traz para o Direito
Internacional e para as abordagens feministas do Direito. A primeira delas é que o caso,
através de uma nova interpretação de um dispositivo específico da Convenção para a
104
Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (qual seja, o art. 2º, alínea b), de forma a
incorporar uma preocupação com as mulheres, que não apareceu na Convenção pelo fato de o
Direito Internacional, na época em que ela foi aprovada, ser androcêntrico. É interpretar o
Direito Internacional de forma a retirar a invisibilidade das mulheres nesse ramo jurídico.
Outra implicação dessa decisão do caso Akayesu é que, ao não enfatizar as
conseqüências reprodutivas como medidas genocidas, não reduziu a questão do estupro
enquanto genocídio a uma visão meramente biológica das relações de gênero, como se a
mulher só existisse enquanto reprodutora. Dessa forma, o Direito Internacional deixa de
reforçar estereótipos de gênero.
O caso Akayesu abre espaço à crítica de alguns conceitos corriqueiramente presentes
em muitas abordagens feministas do Direito, como a crítica da dicotomia público/privado.
Durante uma guerra genocida, essas mesmas noções se elidem. Absolutizar a crítica da
distinção público/privado é absolutizar esse modelo, que é contextual e contingente, e que
certamente não se faz presente no caso do genocídio ruandês. Dessa forma, a decisão do caso
Akayesu de considerar que o estupro pode constituir genocídio fornece elementos para a
crítica da distinção público/privado, modelo segundo o qual a esfera privada, onde ocorre a
opressão masculina sobre a mulher, não é regulada pelo direito. Afinal, nem sempre a
opressão se dá na esfera privada e, conforme o caso demonstra, nem sempre as fronteiras
entre público e privado são tão claras em situações onde há opressão sobre a mulher.
Além disso, a interseção entre identidade étnica e gênero que fica patente na decisão
de considerar que o estupro constitui genocídio abre críticas ao discurso feminista liberal de
igualdade formal entre homens e mulheres, sem atentar às diferenças existentes entre
mulheres, sendo mais adequado para compreender essa decisão o feminismo pós-moderno,
que não apenas chama atenção para as diferenças entre homens e mulheres, mas também às
diferenças entre mulheres. O estupro só tratado como crime contra o indivíduo revela a
influência do feminismo liberal, calcado em valores individuais, ao não levar em consideração
situações em que esse crime nem sempre se dirige a um indivíduo com base em suas
características pessoais, e sim nas características que esse indivíduo compartilha com um
grupo.
Levando-se em consideração essa interseção entre etnia e gênero no estupro
genocida, cabe repensar o conceito tradicional de patriarcado, introduzido inicialmente no
105
pensamento feminista pelas feministas radicais, que o usaram para descrever estruturas sociais
que permitem que haja a dominação masculina sobre as mulheres. Porém, esse conceito de
patriarcado ignora os diferentes modos através dos quais mulheres foram subordinadas em
diferentes instituições sociais, diferentes sociedade e diferentes épocas, e também falha esse
conceito inicial ao ignorar os efeitos da classe, da raça e do colonialismo. Ruanda no período
do genocídio fornece uma possibilidade de repensar esse conceito, dado que no que aconteceu
não foi apenas a dominação dos homens sobre as mulheres, como previsto no conceito
tradicional de patriarcado no pensamento feminista, e sim uma dominação exercida contra as
mulheres de uma determinada etnia, com a intenção de destruí-la. Assim, o conceito de
patriarcado deve ser repensado, de forma a incorporar a interseção entre gênero e outras
categorias, como, a exemplo do caso Akayesu, etnia.
O caso Akayesu também abre espaço a uma crítica da crítica das categorias binárias.
Essas categorias nem sempre tem correspondentes feminismos e masculinos tão estanques
quanto apresentados por algumas autoras. O caso Akayesu, um caso sobre estupro enquanto
genocídio, é um exemplo disso: nele, fica patente a existência de múltiplas construções
binárias: assim, as mulheres tutsis são vistas como mais sedutoras que as mulheres hutus e,
por isso, não ligadas, na visão dos homens hutus extremistas, a determinados valores também
ligados ao feminino na crítica das categorias binárias, como a castidade. Cabe questionar a
generalização que a crítica das categorias binárias faz em relação a essas mesmas categorias,
de forma a essencializá-las. Conforme mencionado anteriormente, não se pretende derrubar
por terra a crítica das categorias binárias, e sim complementá-la com uma preocupação em
relação interseção entre as múltiplas identidades, e da fluidez entre elas, na análise dessas
mesmas categorias.
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