1 FIM DE JOGO NO ESTREITO DE TAIWAN ? (Publicado na Política

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1 FIM DE JOGO NO ESTREITO DE TAIWAN ? (Publicado na Política
FIM DE JOGO NO ESTREITO DE TAIWAN ?
(Publicado na Política Externa, vol 19 nº 4 Mar/Abril 2011)
Amaury Porto de Oliveira
A 29 de junho de 2010, delegações da República Popular da China (RPC) e da
República da China (nome do regime nacionalista criado no continente no início do
século XX) assinaram, na cidade chinesa de Chunquing, um Acordo Quadro de
Cooperação Econômica (ECFA, na sigla inglesa), que com algum otimismo pode ser
visto como o início da etapa que levará à solução final da Questão de Taiwan. A
assinatura marcou o fim de dois anos de negociações entre a chinesa Associação para
as Relações através do Estreito de Taiwan (ARATS, na sigla inglesa) e a taiwanesa
Fundação para Intercâmbios no Estreito (SEF, na sigla inglesa). As entidades em causa,
formalmente não oficiais, foram criadas há quinze anos, mas estiveram paralisadas
entre 1997 e 2008, quando predominaram em Taipé tendências independentistas.
Foram os presidentes delas que assinaram o acordo de agora, e Chungking foi
escolhida para a cerimônia de assinatura por ter sido lá que se desenrolaram na
década dos 1940, com intermediação dos EUA, os últimos esforços de conciliação
entre o Kuomintang (KMT), de Chiang Kai-shek, e as forças de Mao Zedong, antes da
fuga dos nacionalistas para a Ilha de Formosa. O clima para as negociações entre a
ARATS e a SEF foi criado no plano governamental, depois que a expressiva vitória
eleitoral do candidato do KMT, em março de 2008, pôs fim a oito anos da presidência
independentista de Chen Shui-bian.
Respaldadas por seus respectivos governos, a ARATS e a SEF lançaram-se ao
trabalho. Duas rodadas de conversações foram realizadas ainda em 2008 e, em abril de
2009, os presidentes das duas associações encontraram-se na cidade chinesa de
Nanquim para assinar ajustes, como o da conversão em vôos rotineiros dos vôos
charter, que já vinham sendo permitidos entre cidades dos dois lados do Estreito. A
freqüência dos vôos foi aumentada de 108 para 270 por semana e seis novos destinos
no continente foram abertos. Assinaram-se ainda ajustes sobre serviços financeiros e
para a cooperação no combate a ações criminosas. No mês de julho, o Ministério de
Assuntos Econômicos de Taiwan passou a aceitar requerimentos de investidores do
continente, e começaram a ser concluídos, entre repartições governamentais da China
e de Taiwan, memorandos de entendimento nos terrenos financeiro e bancário.
Paralelamente aos avanços nessas diversas frentes de trabalho, ia-se perseguindo o
objetivo-maior do Acordo Quadro, que foi afinal delineado em dezembro de 2009,
num importante encontro dos presidentes da ARATS e da SEF, na cidade taiwanesa de
Taichung. Assinaram-se ali três novos acordos: sobre a estandardização de produtos
industriais, quarentena de alimentos e pesca.
1
Meu propósito neste trabalho é reconstituir, em linhas gerais, a evolução da
velha Formosa, de colônia japonesa a importante centro da indústria global da
informação. Especular, em seguida, sobre as perspectivas de fim de jogo para a
Questão de Taiwan, que possam estar sendo abertas pelo Acordo Quadro assinado em
2010. Antes, porém, de enveredar por esses terrenos, descreverei desenvolvimentos
do último lustro, que tornaram viável a própria conclusão do Acordo.
2. Um Divisor de Águas1 Tem-se tornado usual assinalar 2008 como momento de virada nas relações
políticas entre os dois lados do Estreito de Taiwan, em conseqüência das expressivas
vitórias do KMT, tanto na eleição legislativa do mês de janeiro quanto na eleição
presidencial de março, na Ilha. É fora de dúvida que o afastamento do poder do
Partido Democrático Progressista (PDP) e de Chen ShuI-bian ampliou as possibilidades
de trabalho entre Pequim e Taipé. Mas eu tendo a datar de 2005 o divisor de águas,
opção também feita, entre outros, pelo pesquisador britânico Dafydd Fell, em artigo
na Asian Survey. Paradoxalmente, o desenvolvimento que eu vejo como o acicate dos
novos tempos costuma ser citado, pela mídia ocidental, como evidência da
beligerância empedernida dos chineses continentais: a Lei Anti-Secessão, promulgada
em Pequim pelo Congresso Nacional do Povo (14.03.05). Essa lei tornou obrigatória a
intervenção armada do Governo de Pequim, se e quando os governantes de Taipé
cruzarem umas quantas linhas de comportamento, dando passos interpretáveis como
o lançamento do processo de independência da Ilha.
Em meados de 2005 eu passei dois meses na China, buscando melhorar meu
entendimento dos processos em marcha, através de entrevistas e conversas com
intelectuais chineses, correspondentes estrangeiros e diplomatas lá em posto. Dentre
os documentos que pude coletar, sem autorização para identificar a fonte, destaco o
texto de uma conferência feita para público seleto pelo Professor Yan Xuetong, que
era na época o Diretor do Instituto de Estudos Internacionais da Universidade Qinghua,
em Pequim. O Professor Yan é também um dos líderes da chamada Nova Esquerda,
combativa tendência dentro do Partido Comunista Chinês (PCC), a qual esteve muito
por trás da elaboração e aprovação da Lei Anti-Secessão. Na conferência mencionada,
de que farei um resumo, Yan expôs com clareza os raciocínios que explicam a Lei AntiSecessão, na ótica do seu grupo.
Ele começou distinguindo duas fases no desdobramento da Questão de Taiwan.
De 1949 (criação da RPC e fuga dos nacionalistas para Taiwan) até 1992, duas
autoridades políticas separadas pelo Estreito porfiavam pelo governo de todo o
território da China. Nos anos 1990, quando tomaram corpo as idéias de uma
identidade taiwanesa propaladas pelo Presidente Lee Teng Hua, a disputa deixou de
ser pelo governo da China para ir-se fixando na pretensão de soberania sobre uma
parcela do território chinês. Para os governantes de Pequim, nas palavras do Professor
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Yan, é aceitável que as autoridades constituídas em Taipé reivindiquem o poder sobre
a parcela de território que são capazes de governar. Nega-se-lhes, porém, o direito de
contestar que Taiwan é parte da China. Ninguém tem o direito de estabelecer um novo
país sobre parte do território da China. Pequim tem consciência de que existe aí uma
situação anômala, mas vê sua permanência como resultado da sustentação militar
dada pelos EUA ao regime de Taiwan. Em outras palavras, a mudança de uma disputa
entre partidos pelo governo da China para a reivindicação de soberania sobre parcela
do território chinês resultou da interferência de potência externa nos assuntos
internos da China. Interferência que não teve ligação direta com a Guerra Fria. Ao
contrário, os fornecimentos de armas americanas ao regime de Taipé aumentaram
bastante após o colapso da URSS, na medida em que a China perdeu interesse para os
EUA como auxiliar na contenção aos soviéticos.
Os dirigentes de Pequim vêem a Questão de Taiwan como um remanescente da
guerra civil chinesa, dando azo à política oficial do “Direito à Recuperação por Via
Militar”. Foi só a partir das remodelações de Deng Xiaoping, em 1979, que se passou a
falar de “Recuperação Pacífica”. Com a ressalva, sempre, de que essa outra posição foi
elaborada na defrontação com um adversário que disputava o direito a governar a
China. Não como resposta a um adversário que pretende assumir a soberania sobre
parcela dó território nacional chinês. Diante deste, a via pacífica só é mantida em
virtude da preocupação de Pequim com a estabilidade da região, mas o Professor Yan
insiste em que a possibilidade do recurso à via militar tem de ser preservada, até a
solução definitiva da Questão. Para Yan, a premissa que guia os dirigentes de Pequim é
a de que o tempo corre a favor da solução pacífica. A China pode esperar até que
surjam as condições necessárias para uma solução negociada. O aumento dos contatos
comerciais e pessoais através do Estreito e o fortalecimento econômico da China
continental levarão, inexoravelmente, ao aparecimento de tais condições. Os
membros da “Nova Esquerda” começavam, contudo, a inquietar-se com essa
tranqüilidade da parte dos dirigentes de Pequim.
O fato era, enfatizou Yan, que o tempo não estava correndo a favor da solução
pacífica; tampouco era certo que o desenvolvimento econômico da China fosse
garantir a solução negociada da Questão. O movimento separatista surgira e crescera
em Taiwan paralelamente com a política de abertura e desenvolvimento econômico da
RPC, e as “forças básicas” aglutinadas nos partidos taiwaneses favoráveis à
independência vinham crescendo, a cada eleição. A atitude de “espera indefinida” dos
dirigentes de Pequim aproximava-se do seu limite, diante das evidências de que a
clique de Chen Shui-bian preparava-se para acelerar o processo de separação, inclusive
com algum feito de impacto sob a proteção dos Jogos Olímpicos que se aproximavam.
EUA e Japão tinham todo interesse na separação da Ilha, apesar do apoio formal de
Washington ao status quo no Estreito. Na verdade, “manter ou alterar o status quo”
reduzia-se a apoiar a independência gradual ou imediata. Em última análise, a política
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da reunificação pacífica transmitia aos independentistas de Taiwan e seus aliados uma
imagem de imobilismo de Pequim, e até de aceitação de passos mais ousados. Para
manter sua credibilidade internacional, o governo de Pequim precisava adotar com
urgência posições mais firmes.
Tal foi a gênese da Lei Anti-Secessão, e a principal conclusão que se tira da
conferência do Professor Yan é a de que os promotores desse texto legal estavam,
talvez, mais preocupados em pressionar os dirigentes de Pequim do que propriamente
os separatistas de Taipé. Hu Jintao, nomeado Secretário-Geral do PCC em outubro de
2002 (XVI Congresso do PCC) e elevado à Presidência da República na sessão de março
de 2003 do Congresso Nacional do Povo, viu ali a oportunidade de obter a posição que
lhe faltava, de Presidente da Comissão Militar Central, o Chefe Supremo das Forças
Armadas Chinesas. No dia 13 de março de 2005, ele endossou vivamente a Lei AntiSecessão, em discurso claramente dirigido às “forças patrióticas” do regime,
pronunciado no CNP, onde havia sido depositado o Projeto de Lei2. Horas depois do
discurso, Hu foi designado para a presidência da CMC, por 2.886 votos a favor, 6 votos
contra e 6 abstenções. A Lei seria aprovada no dia seguinte. Tendo tomado em mãos a
situação, Hu contra-atacou com habilidade, convidando o líder do KMT em Taiwan,
Lien Chan, a visitá-lo em Pequim. A visita ocorreu logo em abril, com grande impacto
midiático nos dois lados do Estreito, e a Questão de Taiwan acabou recolocada no seu
antigo contexto de problema entre partidos.
A imagem televisionada do Presidente da China recebendo em Pequim o líder
do KMT, vindo direto de Taipé para esse encontro, sacudiu o ambiente político nos
dois lados do Estreito. Era a primeira reunião pública da liderança do PCC e do KMT,
desde os idos dos 1940. Vários ajustes foram assinados, no nível partidário, com relevo
para um esquema de reuniões e consultas seguido ainda hoje. Ainda em 2005, outras
personalidades políticas da Ilha fizeram a peregrinação a Pequim, e foi-se tornando
inviável o plano de um referendo de cunho independentista, acalentado pelo governo
de Chen Shui-bian. Foram essas novidades no plano de partidos que forneceram a base
para os entendimentos de governo a governo, iniciados quando o KMT voltou ao poder
em Taiwan, no ano de 2008.
3. O Quadro Histórico –
Guiando-me pela periodização adotada por Edwin A. Winckler3, cabe aqui dar
uma idéia de como Formosa (Taiwan) evoluiu na Idade Moderna. Até o início do século
XVI, a Ilha foi terra de ninguém, entregue à sua população aborígene de origem pouco
precisa. Winckler cita, a partir daí, três grandes eras: imperial chinesa (1500-1895);
colonial japonesa (1895-1945); e republicana (nacionalista) chinesa (1945-presente).
Na verdade, o poder imperial chinês só se fez sentir com força em meados do século
XVII, no contexto da derrota da dinastia Ming pelos mandchus Ching. Curiosamente,
remanescentes do poder Ming fugiram para a Ilha, onde um deles, Koxinga, governou
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durante algum tempo. Nessa era, Taiwan viveu por longos períodos na interface do
mundo tradicional chinês com o nascente capitalismo europeu, representado no caso
por navegadores de grande distância portugueses, espanhóis e holandeses. Em 1855,
navegadores americanos hastearam a bandeira dos EUA numa praça-forte em
Kaohsiung e, pouco depois, a coligação anglo-francesa que derrotara a China na
Segunda Guerra do Ópio declarava aberto o porto de Tainan. A esta altura, alemães e
japoneses mobilizavam-se para também obter posições coloniais no Leste Asiático. O
Japão visou desde o início a Península Coreana, onde o Rei Kojong acabou pedindo a
ajuda da China. Antes mesmo de os chineses conseguirem acudir os coreanos, o Japão
atacou e destruiu o destacamento naval da China, impondo a esta o Tratado de
Shimonoseki (1895), que entregou Formosa e as Ilhas Pescadores aos japoneses.
O Japão buscava integrar-se na Primeira Revolução Industrial, quando já se
tinham esgotado as condições para o caminho liberal adotado por países pioneiros,
como a Inglaterra ou a França. Os japoneses precisaram recorrer às lições que estava
dando a Alemanha, de industrialização sob o comando do Estado. E tiveram também
de negociar com os imperialistas ocidentais sua aceitação entre eles, como um
imperialista-tardio. Na expressão sugestiva de Bruce Cumings: “O Japão montou o
Império que os anglo-americanos deixaram ele montar.” De todo modo, eram parcas
na Ásia as terras ainda disponíveis para serem colonizadas, e os exíguos recursos do
Estado japonês não lhe permitiam grandes aventuras. Tóquio foi tendo de contentarse com a anexação de países vizinhos, tratados como extensões do território nacional.
Vale dizer, ampliando a eles o sistema administrativo e a infraestrutura material já
existentes no país central, com o cuidado de excluir os locais das camadas superiores
de gerenciamento. Em Taiwan, por exemplo, a autoridade colonial arcou com 60% dos
custos dos novos sistemas de controle da água e de irrigação. Investiu na educação, e a
taxa de alfabetização cresceu de 1%, em 1905, para 27%, em 1940, enquanto o
número de matrículas no ensino elementar subia de 8,7% da população total, em
1905, para 57% em 1935. Graças a cuidados de saúde pública, a população de Taiwan
cresceu de três para mais de cinco milhões de pessoas durante a era colonial. Não se
formou uma classe comercial e industrial taiwanesa, mas no campo os japoneses
deixaram prosperar um estamento de grandes agricultores nativos, a fim de manter
girando a produção de arroz e açúcar, mercadorias que vieram a representar 70% das
exportações da Ilha, maciçamente destinadas ao Japão.
Em 1945, a rendição incondicional do Japão deixou os EUA com o controle de
todos os territórios insulares ocupados no Pacífico pelo Império japonês. O retorno de
Taiwan, as Pescadores e outras ilhas chinesas à República da China (o regime de Chiang
Kai-shek) já havia sido estabelecido nos arranjos dos Aliados da Segunda Guerra
Mundial, nas Conferências do Cairo e Potsdam. Um Governador delegado pelo KMT
logo assumiu em Taipé, começando a tratar a Ilha como território conquistado. Juncos
partiam diariamente para o continente, levando máquinas e outros bens saqueados de
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empresas da Ilha. Em 1947, os desmandos dos nacionalistas provocaram uma revolta
dos ilhéus, na qual se diz que foram trucidadas entre 10 mil e 20 mil pessoas, incluindo
praticamente toda a elite da era japonesa. Estavam, por outro lado, começando a
chegar as levas de continentais que fugiam diante do avanço de Mao Zedong. Estimase em dois milhões de indivíduos esses recém-chegados, que ocuparam a cúpula
política e militar do novo regime. De 1949 a 1987, Taiwan viveria sob a Lei Marcial. E
de 1951 a 1965 foi tomada em mãos, para efeitos práticos, pelos EUA. Burocratas da
USAID foram dando forma, política e economicamente, a um novo país.4
A fase de dependência direta dos EUA merece um registro especial, para o qual
vou apoiar-me num conhecido texto de Bruce Cumings5 e em dois artigos inseridos na
coletânea editada por Edwin Winckler, já citada neste trabalho. Antes mesmo de
terminar a guerra, uma poderosa coalizão de interesses domésticos passou a
mobilizar-se, nos EUA, contra a decisão da Conferência de Potsdam de destruir o
poderio industrial e militar do Japão, decisão que começou a ser implementada pelo
Comandante da ocupação, General MacArthur. A vitória dos comunistas na China abriu
caminho para o triunfo da coalizão em causa, na chamada “inversão de curso”. O
Japão foi mantido numa posição de vassalagem, mas como a peça-chave do dispositivo
estratégico de contenção da RPC, montado por Washington no Pacífico Norte. Uma
economia regional do Nordeste Asiático foi sendo também desenvolvida, atribuindo-se
ao Japão o papel de cabeça industrial, com a metade sul da Península coreana e
Taiwan como sucedâneos da velha hinterlândia colonial japonesa, e os países do
Sudeste Asiático, na medida em que se liberavam dos colonizadores europeus,
transformados em fornecedores das matérias primas industriais e energéticas
requeridas pela novel indústria japonesa, e em absorvedores das manufaturas de baixa
tecnologia que o Japão iria poder produzir. A Guerra da Coréia, em 1950, consolidaria
tudo isso. O dinheiro americano nela derramado funcionaria como um Plano Marshall
para o Japão, e a intervenção de centenas de milhares de “voluntários” chineses, se de
um lado levou ao armistício de 1953 (até hoje não superado), deu azo à decisão do
Presidente Truman de isolar militarmente Taiwan.
No primeiro dos dois artigos acima mencionados6, Richard Barret apóia-se em
documentos oficiais americanos tornados públicos em diferentes momentos para
estabelecer uma diversidade de posicionamentos em relação a Taiwan, da parte das
autoridades dos EUA. Os militares eram favoráveis à manutenção na Ilha de um regime
politicamente estável e pró-americano, embora não se mostrassem dispostos (até a
Guerra da Coréia pelo menos) a empenhar muitos recursos nesse objetivo. No
Departamento de Estado, prevalecia a tese de que um apoio limitado a Taiwan poderia
trazer benefícios de curto prazo para os EUA, mas havia o risco de prejudicar as
relações com a RPC, se esse apoio fosse sendo prolongado. Em contraste com a
cautela dos militares e diplomatas, os mais entusiasmados com o progresso de Taiwan
eram os burocratas da USAID. Eles viam na Ilha a oportunidade única de promover o
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desenvolvimento econômico e social de uma grande área rural, experiência distinta da
reconstrução de zonas industriais pela simples adição de capitais e tecnologia. Pareceu
até, por momentos, que os promotores da ajuda americana gostariam de ver a
derrocada do governo nacionalista, a fim de substituí-lo por um mandato das Nações
Unidas. Típica dessa linha de pensamento foi a criação pelo Congresso americano, em
1948, da Comissão Conjunta Sino-Americana para a Reconstrução Rural (JCRR, na sigla
inglesa), que faria as vezes de Ministério da Agricultura de Taiwan até 1979, com
orçamento anual votado pelo Congresso dos EUA. Graças à JCRR, o Governo de Taipé
pôde levar adiante programas de ajuda técnica agrícola a muitos países africanos, com
efeitos práticos na disputa pelo reconhecimento diplomático sustentada com Pequim.
Como de esperar, ao promoverem a formação de uma economia regional do
Pacífico Norte no quadro da reorganização estratégica da área, no pós-Segunda Guerra
Mundial, os EUA buscaram incentivar o desenvolvimento de economias nacionais de
tipo capitalista. Um dos primeiros cuidados foi, então, efetuar reformas agrárias
radicais nos países destinados a liderar a “Esfera Comercial do Oriente”: Japão, Coréia
do Sul e Taiwan. As reformas foram levadas adiante quase que simultaneamente, na
virada dos 1940 para os 1950, e o mesmo técnico americano, Wolf Ladejinsky, esteve
nos três países para os retoques finais. No segundo dos artigos acima evocados, Denis
Fred Simon7 amplia o exame da obra de state-building posta em marcha pelos EUA em
Taiwan. Na verdade, a grande responsável por esse trabalho foi a Mutual Security
Agency (MAS), que atuava na Ilha através de dois braços: a missão da AID e a missão
do Military Assistance Advisory Group (MAAG). Esta última encarregada de assistir no
levantamento das estruturas defensivas necessárias e no treinamento do pessoal
adequado. Quanto à USAID, como mostra Simon, sua contribuição foi muito além da
mercantilização do ambiente rural. Os conselheiros americanos empenharam-se em
promover o fortalecimento do setor privado, diante das tendências estatizantes do
governo de Taipé, e é possível colher, em outras fontes, relatos de como a USAID
usava sua influência para profissionalizar burocratas e técnicos taiwaneses segundo as
normas americanas, frustrando a carreira de quem não parecia útil à consolidação de
uma economia capitalista8.
Em 1965, os EUA suspenderam a ajuda financeira direta a Taiwan. Calcula-se
que, nos quinze anos de sua duração, 1 bilhão e meio de dólares (de 1950) hajam sido
doados a fundo perdido: 40% em média da formação anual de capital. Os conselheiros
da USAID haviam ensinado aos taiwaneses os segredos do desenvolvimento puxado
pelas exportações; haviam aberto o mercado doméstico americano às manufaturas de
baixa tecnologia que a novel indústria taiwanesa começara a produzir; e haviam
também estimulado os investimentos diretos estrangeiros na economia local. O
Governo de Taipé dava mostras de que poderia continuar a caminhar com as próprias
pernas. Contudo, tal como estivera acontecendo com a Coréia do Sul, Taiwan recebera
a missão de funcionar como bastião do dispositivo estratégico americano de
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contenção da China, e precisava manter um estabelecimento militar adequado, com a
maior autonomia possível em termos de auto-financiamento e de abastecimento de
armas. Nos anos 1970, sobretudo depois da retirada militar dos EUA do Sudeste
Asiático e do lançamento da Doutrina Nixon, Coréia do Sul e Taiwan ainda precisaram
ser ajudados pelos EUA a levantar indústrias para a fabricação de armamentos,
recebendo inclusive licenças de produção que eram negadas a países da OTAN9.
4. O Estado Desenvolvimentista Chalmers Johnson, da Universidade de Berkeley, foi o grande teorizador do
Estado Desenvolvimentista, num livro que marcou época: MITI and the Japanese
Miracle (Stanford, 1982). Ele centralizou sua análise no Estado que a “reversão de
curso” dos EUA permitira renascer no Japão do pós-Segunda Guerra Mundial, mas o
modelo desenvolvimentista surgira na virada do século XIX para o século XX, quando
os japoneses efetuaram sua primeira industrialização, guiados pelos ensinamentos
colhidos na Alemanha. Na sua nova versão, o Estado Desenvolvimentista japonês foi
também adotado pela Coréia do Sul e Taiwan. Há toda uma corrente de pensamento
que contesta esta última observação e procura explicar o surto de modernização de
Taiwan pela via do liberalismo econômico pregado pelos anglo-americanos. É possível
levantar uma grande bibliografia de livros e artigos em defesa de cada uma das duas
posições, mas eu não terei espaço para entrar nesse debate. Levarei adiante a
reconstrução que estou fazendo, apoiado na aceitação das teses desenvolvimentistas.
Para Chalmers Johnson, são quatro os fatores que compõem o Estado
Desenvolvimentista: (1) a autonomia do Estado diante da sociedade civil, ou seja, a
razão econômica prima sobre interesses particularistas; (2) a elite do país ou parte
decisiva dela chega a um consenso sobre a imperiosidade do desenvolvimento; (3) há
uma efetiva participação do aparelho do Estado na condução dos negócios públicos;
(4) o Estado conduz uma política industrial em consonância com as exigências do
mercado mundial. Nos anos 1960 a 1980, Taiwan satisfez essas quatro condições10,
mostrando-se apto a conquistar nichos no mercado internacional para o escoamento
de suas manufaturas intensivas em trabalho, a princípio, e intensivas em capital e
conhecimento a seguir. Na fase avançada, a indústria dos componentes
semicondutores, base de todas as múltiplas aplicações da eletrônica, foi o setor que
maior atenção recebeu em Taiwan, tanto do governo quanto do empresariado. Em
1973, foi criada a estatal Electronics Research and Services Organisation (ERSO), com
a missão de encontrar um parceiro transnacional para a instalação da indústria
taiwanesa dos semicondutores, o que veio a acontecer em 1977. Em associação com a
RCA, o Governo de Taipé investiu mais de três milhões de dólares na aquisição de
conhecimentos teóricos e formação de pessoal, até fundar a United Microelectronics
Corporation (UMC) e a Taiwan Semiconductors Manufacturing Company (TSMC), em
1987. A evolução dessa indústria merece atenção, tanto pelo papel de liderança que
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ela adquiriu no progresso de Taiwan, quanto por se ter tornado a grande arena de
resistência à China continental11.
Numa iniciativa claramente voltada para estimular o desenvolvimento
econômico apoiado no conhecimento, o Governo de Taipé fundou em 1980 o Hsinchu
Science-based Industrial Park (HSIP), numa área a 70 quilômetros da capital, onde
atuavam instituições acadêmicas e de pesquisas. Uma delas, o Industrial Technology
Research Institute (ITRI), estava ativa desde 1973, preparando o terreno para as
tecnologias da informação (TI) e a indústria dos circuitos integrados (CI). O Hsinchu
veio a ser o grande catalisador da ascensão mundial de Taiwan nas TI e CI, graças
inclusive a seu papel na atração de chineses que estivessem estudando ou trabalhando
no exterior, nesses setores. Em 1994, o número dos retornados alcançaria o pico de
6.500 indivíduos, responsáveis pela fundação de algumas centenas de firmas
especializadas, na Ilha. A essa altura, Taiwan ocupava o terceiro lugar mundial na
produção de material microeletrônico, atrás apenas dos EUA e do Japão. Uma de suas
inovações mais bem sucedidas fora a separação de sub-setores no interior da grande
indústria dos CI. Firmas taiwanesas especializaram-se em fundições para o fabrico das
bolachas de silício (wafers), sem preocupar-se com o desenho do circuito integrado a
ser nelas implantado. Essa separação entre dois tipos de atividades complexas e caras
permitiu avanços tecnológicos em cada um deles, e a proliferação de companhias,
ditas “fabless”, concentradas nos desenhos dos circuitos. As “fabless” multiplicaram-se
nos EUA, enquanto Taiwan liderava nas fundições. Mas em 1988 ganhou contundência
um elemento perturbador dos êxitos de Taiwan: o fator RPC. No mês de julho, o
Governo de Pequim promulgou um “Regulamento para o Incentivo de Investimentos
dos Compatriotas Taiwaneses”.
Ao pôr em marcha, em 1979, seu grande esforço de aggiornamento da RPC,
Deng Xiaoping dera desde o início destaque ao trabalho com Taiwan. Além da criação
da ZEE de Xiamen, fazendo face à Ilha, Pequim suspendeu o bombardeio das ilhotas de
Quemoi e Matsu, em execução desde 1950, e o Congresso Nacional do Povo emitiu
uma “Carta aos Compatriotas de Taiwan”, conclamando-os ao estabelecimento de
relações diretas – comerciais, marítimas e postais - entre os dois lados do Estreito. O
Governo de Taipé respondeu com frieza, mas o empresariado mostrou-se
crescentemente interessado no aprofundamento de tais relações. Em meados dos
anos 1980, depois da assinatura do acordo sino-britânico para o retorno de Hong Kong
à soberania chinesa, Pequim intensificou sua campanha de “um país dois sistemas” em
direção a Taiwan, e também os esforços diplomáticos pelo “desreconhecimento” do
governo taiwanês. Particularmente dolorosa para Taipé havia sido a decisão de
Washington de transferir para Pequim o seu reconhecimento. E quando os americanos
interferiram em todo o quadro financeiro do Leste Asiático, na famosa reunião do
Hotel Plaza em Nova York (1985), Chiang Ching-kuo, filho e sucessor de Chiang Kaishek no comando do partido único KMT, concluiu ser oportuno democratizar o sistema
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político de Taiwan. Numa entrevista dada à proprietária do Washington Post
(07.10.86), ele anunciou sua determinação de suspender a Lei Marcial e a proibição à
formação de partidos políticos.12
A suspensão da Lei Marcial flexibilizou a posição de Taipé em relação aos
investimentos na RPC, desde que feitos de forma indireta, em geral através de Hong
Kong. No continente, enquanto isso, tomava impulso a política de estimular firmas
estrangeiras a virem produzir na China, trazendo os insumos e a tecnologia, e com a
obrigação de exportar o produzido. Condições especiais foram dadas aos taiwaneses,
que podiam vender no mercado doméstico chinês até 30% dos seus produtos. As
indústrias de baixa tecnologia (a dos calçados, v.g.) começaram a cruzar em massa o
Estreito, levando o Governo de Taipé a introduzir medidas administrativas, como
limites para as somas que investidores taiwaneses podiam investir no continente , ou
cotas para o volume de exportações permitido. Apesar dessas medidas, o fluxo de
investimentos e exportações da Ilha não parava de crescer, e em 2001 deu um salto,
em virtude do ingresso das “duas Chinas” na OMC. É consenso, entre os economistas,
que Taiwan beneficiou-se mais do que qualquer outro país do ingresso da RPC na
OMC. Se se incluem as exportações para Hong Kong, as vendas de Taiwan para a
“Grande China” atingiram, na primeira metade de 2002, quase 19 bilhões de dólares,
ou 30% das exportações totais do país; dez pontos percentuais a mais do que a parcela
das exportações taiwanesas para os EUA, no mesmo período. Três tipos de explicações
costumam ser usados para explicar esse salto: (1) a grande experiência das firmas
taiwanesas em exportar para a China e seu bom conhecimento dos sistemas de
contingenciamento e licenciamento chineses; (2) o crescente valor dos componentes e
peças taiwaneses para os produtores do continente; (3) o nível cada vez maior dos
investimentos de firmas de Taiwan na indústria continental.
Aspecto central do relacionamento sino-taiwanês é a convergência que se
desenvolve entre as trajetórias tecnológicas das duas economias, à medida que ambas
se instalam na globalização. Nos dois lados do Estreito, o Estado foi o iniciador,
facilitador e suporte de programas de P&D; de educação; e de reestruturação
tecnológica. Foi, também, o grande interlocutor das corporações transnacionais, no
que concernia aos aspectos tecnológicos das respectivas economias, e à integração
delas nas redes produtivas globais. Em Taiwan, o governo chegou a acalentar a idéia de
fazer do país um Centro de Operação Regional da Ásia-Pacífico, servindo de base para
companhias transnacionais interessadas em trabalhar nos mercados do Leste Asiático:
Sudeste Asiático e China, em particular. O plano não marchou, basicamente porque a
China também foi-se empenhando em atrair as transnacionais para trabalhar
diretamente no mercado chinês, mudando por exemplo sua abordagem industrial de
áreas territoriais para setores técnicos. Não demorou que as firmas taiwanesas das TI e
CI tivessem elas próprias de transferir suas atividades de ponta para o continente, a
fim de enfrentar a concorrência das transnacionais. Foi um choque para Taipé quando,
10
em 2000, dois grupos empresariais da Ilha anunciaram que iam instalar no continente
fundições de bolachas de silício, do tipo liderado por Taiwan. Em 2002, em reação a
essa perda de vigor diante da RPC, o Estado desenvolvimentista taiwanês lançou um
programa para novo salto industrial, com a criação de uma economia baseada na
inovação tecnológica. Dez áreas-chaves para atividades com maior valor agregado
111foram identificadas, e atenção especial passou a ser dada à P&D em todas elas.
Cerca de 70 firmas locais foram estimuladas a criar seus próprios centros inovadores13.
5. A Interdependência Sino-Taiwanesa –
Recapitulando. A abertura do mercado continental às firmas de Taiwan esteve
na raiz do chamado “Milagre Taiwanês”: um longo período (1951-1987) de
crescimento médio em torno de 8,8% anuais. Inicialmente, foram empresas pequenas
e médias que reduziram seus custos de produção e melhoraram sua competitividade
internacional, ao se instalarem no continente. O Estado desenvolvimentista reagiu ao
esvaziamento industrial, promovendo o surgimento de empresas mais intensas em
tecnologia e com maior valor agregado, as quais, por sua vez, acabaram deslocando
produção para o continente, a fim de poderem aumentar as exportações para os EUA e
o Japão. No final dos anos 1980, pressões protecionistas dos EUA, inclusive no terreno
financeiro com o Acordo do Hotel Plaza (1985), forçaram o reajuste violento da
economia taiwanesa, dando origem a uma onda de investimentos diretos no exterior,
nos EUA e China continental, em particular. Em direção à China, um novo salto de
investimentos aconteceria no novo século, com a entrada dos dois países na OMC. O
Estado taiwanês estivera impulsionando as TI e CI, mas elas cresceram em ligação cada
vez mais estreita com o mercado chinês. Na altura de 2006, a China continental se
transformara no maior importador e maior exportador em relação a Taiwan.
Na década dos 1970, com a aproximação estratégica entre Washington e
Pequim, paralelamente à substituição de Taipé por Pequim nas Nações Unidas, teve
início um período de esgarçamento nas relações de Taiwan com seu grande patrono,
que acabou levando, no entanto, à decisão de Chiang Ching-kuo, filho e sucessor de
Chiang Kai-shek, de democratizar seu regime, em parte para revitalizar a legitimidade
internacional do mesmo. No início de 1986 tornara-se evidente que Chiang Ching-kuo
tinha pouco tempo mais de vida. O problema da sua sucessão ganhava premência, e
surgiam sinais de descontentamento político que punham em dúvida a possibilidade
de uma transição palaciana do poder. O velho ditador vinha dando mostras, porém, de
notável senso da História, tomando a iniciativa, nos seus dois últimos anos de vida, de
uma série de reformas liberalizadoras, apesar da recalcitrância da velha guarda do
KMT e das lideranças militares. Graças a isso, a chefia do Estado pôde ser assumida,
após a morte de Chiang, pelo Vice-Presidente Lee Teng-hui, um agrônomo nascido na
Ilha e educado no Japão e EUA (Universidade de Cornell). No XIII Congresso do KMT,
em outubro de 1988, Lee foi também conduzido à presidência do KMT. Usando sua
11
dupla liderança, do Estado e do partido, Lee Teng-hui iria promover a reivindicação dos
ilhéus a uma identidade nacional taiwanesa, oposta à identidade chinesa. Muito se
tem discutido e escrito em torno dessa reivindicação, que embora bastante popular na
Ilha, ainda não obtém maioria nos sucessivos recenseamentos lá realizados. E é
importante verificar que os chineses continentais convivem bem com a idéia. Haja
vista os mais de dois milhões de taiwaneses, entre empresários, técnicos e respectivas
famílias, que vivem hoje no continente em comunidades urbanas concebidas segundo
seus usos e preferências. Inclusive com escolas para os filhos, nas quais se adota o
currículo vigente na Ilha, um dos principais veículos de difusão da idéia da identidade
taiwanesa.
A Questão de Taiwan nasceu junto com a fundação da RPC, como um aspecto
ainda não resolvido do próprio processo de surgimento do novo regime. Tornou-se de
praxe, assim, que o problema seja tratado em Pequim diretamente pelo líder supremo.
No tempo de Mao Zedong, nem o Primeiro Ministro Zhou En-lai tinha autoridade para
tomar decisões autônomas. Na era reformista de Deng Xiaoping criou-se uma
comissão, conhecida sob a sigla CLGTA, confiada a um alto dirigente (Yang Shangkun,
inicialmente), que atuava como uma espécie de vice-czar nos assuntos de Taiwan.
Quando a Terceira Geração, com Jiang Zemin como seu núcleo, sentiu-se plenamente
instalada no poder, Jiang apressou-se a substituir ele próprio o velho Yang Shangkun,
na presidência da CLGTA (novembro de 1993). Ele redigiu em seguida um documento
vazado em termos fortes, conhecido como “os oito pontos de Jiang Zemin”, que veio a
ser aprovado pelo Birô Político do PCC, em janeiro de 1995. Hu Jintao, núcleo da
Quarta Geração de dirigentes, também assumiu a presidência da CLGTA. Ele tivera,
porém, pouco contato com a Questão de Taiwan, ao longo de sua carreira, e seguiu
adotando cautelosamente os “oito pontos de Jiang”. Hu repetiu a prática iniciada por
seu antecessor de nomear um membro do Comitê Permanente do Birô Político para a
vice-presidência da CLGTA, atribuindo-lhe a responsabilidade por eventuais contatos
diretos com o lado taiwanês. O vice de Jiang, o poderoso Zeng Qinghong, conduziu em
julho de 2000 uma série de conversações secretas com o chefe da Casa Civil do
Presidente Lee Teng-hui. Um jornal de Pequim revelou a ocorrência dessas conversas,
em Hong Kong e Macau, sem desvendar o conteúdo. Esses antecedentes mostram a
importância institucional da intervenção de Hu Jintao, em 2005, neutralizando o
ataque esquerdista da Lei Anti-Secessão para recolocar o problema no nível das
relações entre partidos.
Diferentemente da imagem de agressiva intransigência diante de Taiwan, que
observadores mal-dispostos em relação à China costumam apresentar, é possível
encontrar na evolução institucional acima descrita um contínuo movimento de
adequação às realidades políticas e estratégicas que cercam a Questão de Taiwan.
Num artigo em The China Quarterly14, o professor taiwanês Yun-han Chu fez
precisamente isso. Ele acentua cinco desdobramentos positivos, que vêm ocorrendo
12
na abordagem da problemática taiwanesa pelos dirigentes de Pequim: (1) os membros
da CLGTA demonstram estar aprendendo a conviver com o pluralismo caótico da
democracia em Taiwan e vêm exibindo maior compreensão dos anseios do grande
público da Ilha, o qual por sua vez tem mostrado crescente receptividade às propostas
do continente; (2) Pequim parece ter compreendido que muito tempo ainda passará
até soluções mais abrangentes se tornarem possíveis, e deixou de exigir o
reconhecimento prévio do princípio de “uma China única” para a negociação de
problemas práticos, como os vôos diretos e o turismo; (3) Pequim diversificou seus
contatos políticos na Ilha, cultivando relações com dirigentes dos diversos partidos
taiwaneses; (4) Pequim deixou cair de vez a idéia de impor prazos a Taiwan para tal ou
qual acordo; (5) Pequim tem revelado grande flexibilidade no tocante às relações
triangulares Washington-Pequim-Taipé, parecendo ter concluído que precisará da
ajuda dos EUA para conter estratégias de marcha ardilosa (“creeping strategy”) para a
independência, que possam estar sendo seguidas em Taiwan.
Um ângulo pouco adotado nas análises da Questão de Taiwan é o do papel da
presença taiwanesa nos avanços políticos na China continental. Avanços bem reais,
embora pouco reconhecidos. Vale a pena citar, a respeito, um artigo recente do
reputado sinologista David Shambaugh: “O ambiente político na China torna-se
gradualmente mais plural e liberal. Grande parte das reformas políticas (inclusive no
interior do PCC) são difíceis de ver do exterior do país, mas é fato que o sistema
político vem adquirindo maior transparência, responsabilidade, respeito ao mérito,
abertura, eficiência e sintonização com o público. Apesar disso (ou talvez por causa
disso), o PCC mantém-se firme no controle, com ampla legitimidade popular.” O ponto
aqui é reconhecer a influência taiwanesa nessa evolução. Dois ex-funcionários
graduados do Departamento de Estado americano exploraram o tema, em artigo de
200815. Acentuam eles que os investimentos e implantações industriais dos taiwaneses
têm ajudado substancialmente a estabilização e modernização da RPC. À medida que
se intensificam os laços entre os dois lados do Estreito, a interdependência econômica
não só desencoraja a idéia da independência de jure de Taiwan, como tem também
impulsionado a liberalização pacífica da China. Schriver e Stokes, os autores que estou
invocando, chamam a atenção para a contribuição que a infusão maciça de capitais e
perícia taiwanesa terá dado para a melhoria das condições de vida, o aumento da
escolaridade e da liberdade pessoal na RPC. Empresários taiwaneses operam cerca de
100 mil empresas mistas ou subsidiárias no continente; 63 das 500 maiores
companhias da RPC são propriedade de taiwaneses. Os empresários da Ilha dão
emprego a algo em torno de dez milhões de operários, no continente, e estima-se que
outros 40 milhões dependam de empregos ancilares. Os gerentes taiwaneses têm tido
uma ação inestimável na formação dos seus correspondentes chineses, habilitando-os
a produzir bens competitivos no mercado global. Há, pois, em ação um “poder
brando”, cujo peso tenderá a aumentar, em função dos desenvolvimentos posteriores
ao quadro descrito pelos autores americanos. Avoluma-se o fluxo de turistas do
13
continente, cada vez mais interessados nos debates da televisão da Ilha e no modo de
vida ali. Cresce, por outro lado, o número de jovens diplomados taiwaneses que
buscam no continente o seu primeiro emprego.
6. Fim de Jogo?
O grau de interdependência econômica e de interação das populações, já
atingido no entorno do Estreito de Taiwan, permite que se considere remoto o perigo
de choque armado entre chineses dos dois lados do Estreito. É certo que a RPC segue
montando um poderoso dispositivo bélico na sua costa, mas a desproporção desse
dispositivo diante das possibilidades de Taiwan e o próprio tipo do armamento que se
acumula sugerem que o adversário mirado não é o regime taiwanês. A RPC busca, na
verdade, dotar-se de um poderio militar assimétrico que lhe dê condições de não fazer
feio, se tiver de enfrentar a potência hegemônica do presente, os EUA. Este outro
perigo não pode ser descartado por Pequim. Ainda a 15.11.10, o Conselho de Relações
Exteriores, editores da Foreign Affairs, circulou um texto do Capitão Raul Pedrozo,
professor no U.S. Naval War College, afirmando o direito dos EUA de manterem “um
programa vigoroso e ostensivo de vigilância e reconhecimento” nas águas próximas da
China, inclusive no interior da sua Zona Econômica Exclusiva. A RPC tem contestado tal
pretensão, desde a famosa interceptação do avião-espião U.S. EP-3 (abril de 2001) até
casos recentes, como a abordagem do U.S.S. Impeccable (março de 2009), quando o
mesmo evoluía próximo a base de submarinos na Ilha de Hainan. A eventualidade de
uma derrapada que leve a choque armado é teoricamente mais realista nessas
gesticulações estratégicas, do que na Questão de Taiwan. É também pouco provável,
pois o Birô Político dificilmente autorizaria o ELP a atacar Taiwan, sem estar
totalmente certo da perspectiva de triunfo. E o Presidente Ma Ying-jeou, em maio de
2010, fez uma proclamação retumbante: “Jamais pediremos aos EUA que venham
lutar por Taiwan.”
A Questão de Taiwan parece, pois, ter entrado numa fase de ajustamentos, na
qual se entremearão todos os múltiplos antecedentes históricos, políticos e
econômicos que eu procurei alinhar neste trabalho. E na qual, além dos antecedentes
locais, vão entrar em cena considerações do equilíbrio global. Por maiores que sejam
as divergências entre EUA e RPC, os dois países coincidem em não desejar uma guerra
que ninguém sabe como acabará16. A dinâmica da agitação democrática em Taiwan
tem levado, na verdade, a uma aproximação entre as duas grandes potências. No
plano local, o jogo concreto será conduzido até 2012 pelos dois presidentes em posto.
Hu Jintao já deu forma à sua própria visão do processo, num discurso de 31.12.08 em
que enunciou “Seis Pontos”: (1) um acordo pondo fim às hostilidades e instalando a
paz, com base no princípio da “China única”; (2) reforço dos laços comerciais, inclusive
com a negociação de um minucioso acordo de cooperação; (3) aprofundamento das
comunicações e do intercâmbio entre os dois lados do Estreito; (4) desenvolvimento
14
das trocas culturais e pedagógicas; (5) busca de “ajustes apropriados e razoáveis” para
a participação de Taiwan em instâncias internacionais”; (6) intensificação de trocas e
contatos no campo militar, e abertura de um debate em torno de medidas para a
construção de confiança.
Ma Ying-jeou, do seu lado, está trabalhando sob o lema: “Não à reunificação;
não à independência; não a um conflito.” Vale dizer, buscando uma solução mediana
ainda por ser inventada: Confederação? Estado associado à maneira de Porto Rico? Na
sua condição de presidente do KMT, Ma influiu na conclusão do ECFA e está agora
empenhado em dar substância a esse acordo quadro, através da negociação de uma
zona de livre-comércio com a China que evite a marginalização de Taiwan, diante da
multiplicação de acordos desse tipo no âmbito da ANSEA (Associação das Nações do
Sudeste Asiático)17. A economia taiwanesa, apesar das suas realizações tecnológicas,
padece de fraquezas estruturais como o peso excessivo do comércio externo ou a
grande concentração, regional e setorial, das exportações. Ou ainda a dependência de
empresas americanas, japonesas e até sul-coreanas para obter tecnologias de ponta.
Diante do crescente peso mundial da RPC, buscar uma composição com o colosso,
preferentemente no quadro do chamado “Círculo Chinês”, impõe-se como uma
tendência forte aos governantes de Taiwan.
Notas Bibliográficas:
1
Fell, Dafydd. “Was 2005 a Critical Election in Taiwan?” Asian Survey - Vol. 50, nº 5 (Sept/Oct 2010)
O Estado de São Paulo (14.03.05) “Antes de votar lei contra Taiwan, Hu fala em guerra”
3
Winckler, Edwin A & Susan Greenhalgh Contending Approaches to the Economy of Taiwan Armonk:
M.E. Sharpe, 1988. Há muitos outros livros sobre a história de Taiwan, registrarei dois, de que também
me servi para este trabalho: (1) Clark, Cal. Taiwan’s Development. New York: Greenwood Press, 1989.
(2) Klintworth, Gary. New Taiwan, New China. Melbourne: Longman Australia, 1995.
4
A Revista The China Quarterly, da Universidade de Londres, publicou em março de 2001 um número
especial com intenção de dar um retrato abrangente de Taiwan, no século XX. Sobre a evolução
econômica, destacaram-se dois artigos: (1) Cheng Tun-jen. “Transforming Taiwan’s Economic Structure
th
in the 20th Century”, (2) Howe, Christopher. “ Taiwan in the 20 Century: Model or Victim?
Development Problems in a Small Asian Economy”. O Professor Howe tem um outro artigo, muito útil
publicado na mesma revista em 1996: “The Taiwan Economy: The transition to Maturity and the Political
Economy of its Changing International Status”
5
Cumings, Bruce. “The Origins and Development of the Northeast Asian Political Economy” in Deyo,
Frederic C. The Political Economy of the New Asian Industrialism. Ithaca: Cornell University Press, 1987
6
Barret, Richard E. “ Autonomy and Diversity in the American State on Taiwan”, in Winckler, Edwin A.
Contending Approaches to the Economy of Taiwan Armonk: M.E. Sharpe, 1988.
7
Simon, Denis Fred. “External Incorporation and Internal Reform”, in Winckler, Edwin A. Contending
Approaches to the Economy of Taiwan Armonk: M.E. Sharpe, 1988.
8
V. por Exemplo: Haggard, Stephan Pathways from the Periphery Ithaca: Cornell University Press, 1987,
passim
9
Cf. Nolan, Janne E. Military Industry in Taiwan and South Korea, London: The Macmillan Press, 1986
2
15
10
Cf. Amsden, Alice H. “O Estado e o Desenvolvimento Econômicos de Formosa” in Revista de Economia
Política, São Paulo - Vol. 7, nº 4 (Out/Dez 1987); Yu-Shan Wu. “Taiwan’s Developmental State”, in Asian
Survey - Vol. 47, nº 6 (Nov/Dec 2007)
11
A história da indústria eletrônica em Taiwan está contada em muitos livros e artigos. Destaco uma
obra recente e de boa qualidade: Rowen, Henry S. et allia (Eds). Making IT: The Rise of Asia in High Tech
Stanford: Stanford University Press, 2007. Mais antigo, mas igualmente válido, há um estudo de Ernst,
Dieter. New Opportunities and Challenges for Taiwan Electronics Industry – The Role of International
Cooperation University of California Berkeley: Berkeley Roundtable on the International Economy
(BRIE), nº 78, July/1995
12
Num importante artigo em The China Journal, revista da Universidade Nacional da Austrália:
“Taiwan’s Domestic Politics and Cross-Strait Relations” (nº 53, Jan/2005), Yu-Shan Wu sugere que a
escolha de Chiang Ching-Kuo fazendo seu anúncio no jornal americano mostra que o gesto
democratizante era dirigido à audiência dos EUA mais do que ao público doméstico. (pg. 35, n. 1)
13
A revista The China Quarterly, da Universidade de Londres é um farto repositório de artigos
analisando a marcha dos investimentos taiwaneses na China Continental, Registro uns quantos aqui:
Ping Deng. “Taiwan’s Restriction of Investment in China in the 1990s” Vol. 40, nº 6 (Nov/Dec 2000); TseKang Leng. “Economic Globalization and it Talent Flows Across the Taiwan Strait” Vol. 42, nº 2 (Mar/Apr
2002); Sutter, Karen M. “Business Dynamism Across the Taiwan Strait” Vol. 42, nº 3 (May/Jun 2002);
Fuller, Douglas B. “The Cross-Strait Economic Relationship’s Impact on Development in Taiwan and
China” Vol. 48, nº 2 (Mar/Apr 2008). Úteis, são também: Tse-Kang Leng. “State and Business in the Era
of Globalization: The Case of Cross-Strait Linkages in the Computer Industry”, in The China Journal,
Canberra nº 53, January 2005; Ming-Chin Monique Chu. “Contrôler l’incontrôlable: La delocalisation de
l’indrustrie taiwanaise des semi-conducteurs vers La Chine Et sés implications pour la sécurité”, in
Perspectives Chinoises, Hong Kong (2008 nº 1)
14
Yun-han Chu. “Power Transition and the Making of Beijing’s Policy towards Taiwan”, in The China
Quarterly (2003)
15
Schriver, Randall & Mark Stokes. “Taiwan’s Liberation of China”, in Current History (September 2008).
V. Também: Tain-Jy Chen. “Will Taiwan Be Marginalized by China?” New York, Columbia University
(Asian Economic Papers 2:2), 2003; Smith, Heather & Stuart Harris. Economic Relations Across the
Strait: Interdependence or Dependence? Canberra: ANU Australia-Japan Research Centre (Pacific
Economic Papers nº 264)
16
Em artigo na Current History (September 2010), o renomado sinólogo David Shambaugh mostrou-se
bem mais otimista: “...cross-strait relations have now developed to such an extent that the “Taiwan
Issue” has essentially been resolved. Game over.” (pg. 224)
17
Perspectives Chinoises, revista do Centre d’études français sur La Chine Contemporaine publicou, no
seu número 112 (2010/3) todo um dossiê sobre as opções de Ma Ying-jean diante do ECFA, que ele ajudou a negociar
16

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